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Ser ou não ser? Mas, ser o quê?

A subversão ôntica do ser

É evidente a crise existencial em que a humanidade está submersa e na qual está praticamente
afogada. Crise essa, que atinge todas as esferas daquilo que forma interiormente a pessoa e dos
fatores externos que fazem parte de sua formação como ser humano. Não há como negar que
estamos testemunhando e vivendo um período de obscurantismo e que assustadoramente, não
dá sinais de que será um tempo curto, mas que certamente deixará profundas marcas na
formação das próximas gerações que talvez sejam mais deletérias ao ser, do que já foi registrado
até os dias atuais, e essas marcas influenciarão consequentemente no comportamento humano.
É um processo natural que a geração atual seja de alguma maneira influenciada pela anterior.

Entretanto, em meio a toda essa realidade, inegavelmente dolorosa e problemática do ponto


de vista ôntico, e que graças a facilidade de acesso a informação e a superexposição das pessoas,
agora é explícita, precisamos nos perguntar se esse acontecimento é um processo involuntário
ou se é algo provocado. A forma como toda essa alteração da humanidade está acontecendo dá
a impressão que é algo sistematizado e não aleatório. Evoluir é próprio do ser humano, mas o
que temos presenciado não parece uma evolução, no sentido do ser, mas uma involução.
Próprio do processo de evolução de uma planta é crescer e algo que imponha uma involução a
ela é estranho à sua evolução, como por exemplo no processo de produção de um bonsai, em
que um ser extrínseco altera o curso normal da árvore a fim de moldá-la conforme sua vontade,
confundindo o DNA da planta que, sendo destinada a ser uma árvore enorme, é tornada uma
plantinha ornamental de alguns centímetros.

Parece que não, mas transformar um carvalho numa planta de vaso é uma violência contra o
seu ser original. É uma violência adornada de cuidados e foleada a ouro, mas que no fundo,
sequestra toda a potência do carvalho reduzindo-o a uma mera plantinha, por aquele que afirma
estar cuidando, quando literalmente está subvertendo a essência do carvalho1.

O problema que surge então é que, ao contrário do ser humano, o carvalho não tem consciência,
isto é, não tem alma. Ele tem em si uma informação genética que deve ser um carvalho
imponente, mas em contraposição a isso, tem um ser estranho que pretende alterar essa
informação, causando uma crise no seu ser.

Observando o ser humano do século passado, tem-se a impressão de que este parecia ter mais
clareza da sua essência pela maneira que exercia o seu papel na sociedade, e que apesar de
todas as vicissitudes inerentes ao período, aparentemente tinha mais tenacidade e resiliência
no enfrentamento dos problemas. Fenômeno bem observado pelo Doutor Viktor Emil Frankl,
de modo dramaticamente particular nos campos de concentração nazistas.

O propósito do carvalho é ser uma árvore. O propósito do ser humano é ser, e sendo,
desenvolver suas potências. Contudo, parece existir uma certa força extrínseca que pretende
alterar esse propósito aos moldes do cultivador de bonsais, ou seja, que parece ser seu cuidador,
mas que na realidade é seu algoz.

É claramente perceptível que vem sendo realizada no ser humano uma certa metanoia
sistemática que tem causado grandes conflitos interiores e que pouco a pouco vem alterando a
percepção do ser e desse ser no mundo. Não há aparentemente uma tentativa de negar
diretamente aquilo que é verdade para o ser humano, pois isso causaria uma reação contrária
automática. Uma ferramenta particularmente eficaz nesse processo é a afirmação de que as

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coisas não são exatamente o que são, o tão conhecido “não é bem assim”. Dessa forma não se
contraria uma verdade, mas com um simples jogo de palavras, a verdade é simplesmente
subvertida deixando de ser objetiva sendo tornada relativa, passando a partir de agora a não
existir em lugar algum e essa dinâmica é aplicada a qualquer realidade. Nada mais é verdadeiro,
tudo é relativo e passa a depender estritamente do ponto de vista de quem faz a afirmação.

Aqui está a chave da questão. Não é uma simples questão de mudança de ponto de vista. É algo
mais profundo, onde é provocada uma subversão ôntica do ser, que serve de gatilho para todos
os conflitos pessoais e crises existenciais do ser humano. Afinal de contas, se nada é verdadeiro
e tudo é relativo, agora foram desfeitas também as certezas que nortearam a humanidade
durante toda sua existência até agora.

Essa relativização penetrou em todos os âmbitos da sociedade ao que parece, a partir da


educação regular disseminada de maneira filosófica, apresentada pelos meios de comunicação
como modernidade e foi acolhida pela população, mesmo que com certa desconfiança inicial,
não como subversão, mas como uma evolução da humanidade, dizia-se que era preciso abrir a
cabeça. De modo que, não há mais certo ou errado, nem homem ou mulher. Cada um é o que
quiser ou acha que deve ser usando o livre arbítrio como subterfúgio para justificar sua
subversão.

Diante desse novo normal é mais do que normal que a humanidade esteja sofrendo espasmos
ontológicos pois, foi provocado um desequilíbrio na natureza do ser. O ser humano já não sabe
mais quem é, o que nasceu para ser e o que deve fazer da vida e toda essa incerteza produz no
ser humano agora um medo de ser, já que não possui mais uma identidade.

Acontece então que, por causa dessa insegurança gerada pela ausência de uma base sólida de
formação e de não ter certezas outrora consolidadas a respeito do seu próprio ser, a pessoa por
medo de encarar e de se decepcionar com esse Ser desconhecido que mora no seu interior,
passa a assumir, ainda que de forma inconsciente, formas prontas de eu que no fundo não tem
nada de seu, mas, vai formando uma vida feita de vários eus que lhe parecem aceitáveis pela
sociedade e pelos seus novos conceitos. Por não conhecer o seu próprio eu, passa a desejar o
eu de outrem assumindo para si características que não lhe são naturais, ao contrário, lhe são
estranhas. É como se quisesse roubar a alma do outro que lhe parece mais agradável. Sente-se
como se vivesse numa casa mal-assombrada onde acontecem fenômenos adversos que é
habitada e atormentada por uma oculta presença tão desconhecida quanto desagradável, que
impede sua felicidade e que por isso deve ser expulsa ou pelo menos aprisionada por um ritual
que, ainda que aparentemente traga ordem à casa.

A pessoa então, sequestra o seu próprio ser, amordaça-o e lhe impede de se manifestar, certa
de que o seu ser agora é demodê e corre o sério risco de ser rejeitado mediante o novo normal
imposto pela sociedade moderna. Prefere assim, pelo medo da rejeição, aliado a insegurança da
relativização de tudo, manter o seu eu em cativeiro sem se dar conta de que o seu
definhamento, é raiz de graves males interiores.

A rejeição do seu ser a fim de amoldar-se aos atuais padrões flutuantes, provoca mais perdas do
que ganhos. Perde-se a autoconfiança, a autoimagem, a identidade, a autoestima, levando à
busca de reconforto em vícios em entorpecentes ou de cunho sexual, ou mesmo em mudanças
estéticas que lhe ajustem às tais exigências, por exemplo. Outrossim toda essa instabilidade
produzirá também desordem nos afetos e desejos sexuais, que desnorteados levarão a pessoa
a tentar preencher o vazio deixado pelo seu eu ora cativo, com experiências sensoriais, usando
e deixando-se usar por outros eus perdidos na mesma busca.

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Normalmente a pessoa tenta assumir para si, um eu que lhe seja atrativo como ela deseja ser,
com aquelas características físicas e comportamentais, e como pela lógica buscará esse eu em
pessoas do mesmo sexo, pode então acabar desenvolvendo desejos pseudo-homoafetivos2 que
no fundo não passam de desejo de possuir aquele eu que para ela seria o ideal, que no contexto
atual da sociedade será muito provavelmente diagnosticado como orientação sexual
homossexual o que pode ser na verdade um desencontro do eu, uma confusão ôntica ou um
transtorno de personalidade, pois, a pessoa sente desejo por um eu que ela pensa existir
levando-a a intuir que, possuindo outros eus do mesmo sexo poderá encontrar um eu vagante
que possa substituir aquele seu eu sequestrado e cativo. É claro que existem outros fatores
externos e internos que estão ligados à questão homossexual que não serão comentados nessa
reflexão haja vista a mesma ter tão somente objetivo especulativo. Sendo assim, não trataremos
da questão moral do fato em si.

O ser humano nasceu para ser, mas a relativização da verdade e do ser, geraram um
desequilíbrio mundial tirando do lugar aspectos humanos até então inabaláveis, os quais
serviam de bússola para a sociedade e agora empurrados pela pressa da atualidade, as pessoas
empreenderam uma busca desenfreada pelo ser que não sabendo viver dentro de si, pretendem
encontrá-lo fora. Essa busca que ocorre quase sempre desamparada tem muitas vezes, se
tornado causa de morte seja pelo chamado crime passional ou pelo suicídio. Este, levado pela
aparente impossibilidade de se encontrar e se encontrando vislumbrar o sentido da vida, aquele
pelo medo de perder o seu eu conquistado que, contudo, habita em um corpo alheio.

Contemplamos então uma sociedade sem rosto, isto é, sem identidade, que se apoia nos frágeis
conceitos de normalidade já tão arraigados na atualidade. O fato de não encontrar um rosto-
ser-humano facilmente, pode explicar de modo razoável o exagerado tratamento dado aos
animais de estimação em detrimento do ser humano, e a preferência de muitos em ter “filhos”
animais em vez de crianças, mas também isso é uma subversão.

A crise existencial, bem como a perda da pessoalidade geradas a partir de uma mudança
filosófica, causou alterações ônticas capazes de tornar o ser humano tão vulnerável e confuso
com relação ao seu próprio ser, que muitas vezes ele não se reconhece como pessoa e
desenvolve patologias que o levam a acreditar que são animais, por exemplo. É uma mudança
que arranca a pessoa da sua subjetividade e a transforma num objeto que serve às satisfações
do outro e que é escrava de seus impulsos. Ela perde de vista o seu ser transcendental, passando
a mal viver sua vida baseada no seu ser imanente.

Tudo isso é um processo interior muito doloroso para a pessoa que o experimenta, já que é
levada a violentar a sua subjetividade em vista de um eu distante e utópico. É um processo de
desamparo total, principalmente pela falta de consciência e pela dificuldade de expressar esse
movimento interior, ou até mesmo por vergonha de demonstrar tamanha fragilidade, o que
acarreta em que muitos carreguem esse fardo solitariamente, tornando sua vivência mais
pesada e dificultosa de encarar. Nesses casos, a ajuda profissional é indispensável para ajudar a
pessoa a reencontrar o seu caminho e libertar o seu eu do cativeiro no qual está aprisionado.

Fabrício Alves da Silva

1. Aqui não há intenção julgar o cultivo de bonsais, mas foi citado apenas para fins de ilustração;
2. Pseudo porque nesse aspecto, não tem origem em fatores intrínsecos, mas sim em fatores extrínsecos.

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