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Da Providência [Sêneca] – Segunda parte


Ou porque os homens de bem não estão isentos de desgraças malgrado a existência da
providência

[...] (IV.6) O infortúnio é a ocasião da virtude. Com razão chamaríamos desafortunados


aqueles que se entorpecem numa felicidade excessiva, os que imobilizam suas vidas
numa tranqüilidade preguiçosa como sobre um mar de óleo. Tudo aquilo que lhes
sobrevêm é novo para eles; as situações violentas acertam especialmente aqueles que
não têm experiência delas; o jugo é mais pesado para um pescoço que não se
fortaleceu. O novato empalidece face à idéia de uma ferida; o veterano assiste, sem
fraqueza, escorrer seu sangue; ele sabe que a vitória com freqüência se segue às suas
feridas. (7) É por esse motivo que Deus fortalece, testa e persegue aqueles que ele
favorece e que ama; mas os que ele parece poupar e tratar docemente, ele os mantêm
sem força contra os males vindouros; enganas-te, com efeito, se tu crês que alguém
possa estar isento; após uma longa felicidade tua parte virá; aquele que se crê livre
não é senão adiado. [...]

[...] (9) Fujas dos prazeres; fujas desta felicidade sem vigor em que as almas se
amolecem, adormecidas em uma embriaguez perpétua se nada lhes ocorre para
advertir-lhes da condição humana. Este que as janelas sempre protegeram do vento,
cujos pés se aquecem graças a óleos sem cessar renovados, de quem as salas de jantar
conservam um calor propagado a partir do piso e das paredes, não será alcançado sem
perigo para si, por um ligeiro sopro. (10) Tudo o que ultrapassa a medida é nocivo; mas
o excesso de felicidade é o pior dos perigos; ele sacode o cérebro fazendo nascer vãs
imagens no espírito; ele por vezes, espalha uma névoa aonde o verdadeiro e o falso
não mais se distinguem. [...] (12) Porque espantar-se que Deus ponha à prova
duramente as almas generosas? A virtude jamais se mostra na frouxidão – mollitia. A

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fortuna nos chicoteia e nos dilacera? Sofrêmo-la; não há aí crueldade, há combate;


quanto mais vezes nós a afrontamos, mais forte seremos. A parte mais resistente do
corpo é aquela que um emprego repetido exercitou; é preciso oferecermo-nos aos
golpes da fortuna a fim de que ela nos fortaleça contra ela mesma; pouco a pouco ela
nos fará iguais a ela mesma. A continuidade do perigo produzirá o desprezo do perigo.
(13) Assim os corpos dos marinheiros fortalecem-se para suportar o mar; as mãos dos
camponeses ficam calosas; os braços dos soldados são fortes o suficiente para lançar
dardos; os corredores possuem pernas ágeis. Em cada um a parte mais resistente é
aquela que mais se exercita. Pelo sofrimento a alma chega a desprezar os males de
que sofre; saberás tudo o que ela pode produzir em nós se considerares o tipo de
trabalho que povos quase selvagens podem fazer, tornados mais fortes pela
indigência. Consideres todas as nações aonde cessa a pax romana, digo, os germânicos
e todos os povos que vagam em torno do Danúbio: ali o inverno é perpétuo, um céu
lúgubre pesa sobre eles; um sol estéril lhes nutre escassamente, eles se protegem da
chuva sob telhados de palha e de folhagens; eles saltam sobre lagoas endurecidas pelo
gelo; capturam bestas ferozes para alimentar-se. (15) Parecem-te desafortunados?
Nada daquilo que o hábito transformou em natureza é causa de infelicidade; pouco a
pouco se tira prazer daquilo que se acolhe por necessidade. Eles não possuem casas;
nenhuma residência senão aquelas que a fadiga lhes impõe a cada dia. Sua
alimentação não se compra, ela deve ser buscada com as mãos; os excessos do clima
são terríveis e eles não cobrem o corpo; o que te parece ser um estado desafortunado
é o regime de vida de inumeráveis nações. [...]

Tais provações são conformes à lei do destino

[...] (V.7) Nossos destinos nos carregam e a primeira hora de nosso nascimento
determinou todo o tempo que nos resta. Uma causa depende de uma causa; uma
ordem eterna de coisas determina a vida privada e a vida pública. É por isso que é
preciso suportar tudo com coragem; é que nada ocorre por acaso como acreditamos;
tudo vêm à sua hora; antes o tempo decidiu o que te alegra e o que te faz chorar;
ainda que a vida pareça nuançar-se de uma grande variedade de eventos singulares ela
se reduz em suma à unidade de um princípio: seres perecíveis, nós recebemos dons
perecíveis. (8) Porque, portanto nos indignamos assim? Do que nós nos lamentamos?

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Somos nascidos para isso. Que a natureza use, como ela queira, dos corpos que a ela
pertencem. Para nós, sempre felizes e corajosos, pensemos que nada perece daquilo
que é verdadeiramente nosso. O que concerne ao homem de bem? Oferecer-se ao
destino. É uma grande consolação ser levado com o universo. Qualquer que seja o ser
que nos deu a ordem de viver e morrer assim, ele encadeia os deuses com a mesma
necessidade; um curso irrevogável transporta do mesmo modo as coisas divinas e as
coisas humanas. O criador e reitor de todas as coisas na verdade escreveu ele mesmo
os destinos, mas ele os segue. Ele sempre obedece ao mesmo tempo que ordena. [...]

Prosopopéia final

[...] (VI.5) Eu te permiti desprezar as coisas duvidosas e desdenhar os desejos.


Exteriormente tu não brilhas; teus bens estão dentro de ti mesmo: assim o universo
despreza o que lhe é exterior; contemplar-se a si mesmo é o suficiente à sua felicidade.
Eu situei todos os bens em tu mesmo; tua felicidade é não ter necessidade da
felicidade. (6) Mas, dirão, ocorrem muitos acontecimentos tristes, terríveis,
insuportáveis. Posto que não posso subtrair-te a isso armei tua alma contra todos eles.
Suporta-os com coragem, é por isso que tu és superior a Deus; ele, ele é externo aos
sofrimentos, tu, tu estás acima.

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