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Matilha de Homens e Feras

No meio da floresta de gelada, dois corvos voavam entre os pinheiros cobertos de


gelo, pousaram no braço do rapaz que se aquecia junto a fogueira. Svein era o mestre dos dois
corvos, Kaira e Igor, que exaustos de voar no meio da nevasca fina, contavam sem usar
palavras o que viram nas últimas 3 horas. A presa finalmente foi localizada.

Niels, o mais velho dos rapazes, afiava a espada junto à fogueira enquanto esperava
impaciente o diálogo entre seu irmão do meio e os corvos. O som do fogo e do vento era leve,
a noite estava calma e uma neve fina caia calmamente, o chão tinha uma camada de neve que
lentamente ficava mais branca. A calma do ambiente só era perturbada pelo ronco alto de
Rurik, um urso polar enorme deitado em volta do mais novo dos irmãos, protegendo-o do frio
e roncando sincronizado com ele. Axel, o mais novo, ainda nem tinha chegado à idade adulta,
“não tinha barba” mas era mestre de uma fera temível como um urso polar. Ulfer não dormia,
o lobo só se permitia descansar depois que seu mestre estivesse repousando seguro e no
momento ele afiava a espada. A expressão grave de Niels dava a Ulfer certeza de que a ação
estava próxima.

Svein ergueu o braço, os dois corvos voaram e se assentaram próximos à fogueira,


onde uma pequena tigela de madeira com um punhado de grãos eram a recompensa pelas
horas de trabalho duro. Niels se levantou, colocou a espada na bainha e se assentou próximo
do seu irmão.

_Então? – Perguntou Niels.

_Axel, levanta e vem ouvir, eu achei ele. – Disse Svein, despertando seu irmão mais
novo.

O jovem rapaz levantou-se e sonolento caminhou até perto do irmão do meio e se


sentou abraçando o próprio corpo para se proteger do frio. Rurik, o urso, logo o seguiu,
deitando-se atrás dele formando um confortável encosto de pelos.

_Ele está numa caverna a 3 horas de viagem rumo ao norte. Se sairmos agora a gente
alcança ele quando o sol estiver nascendo. A caverna é rasa e ele ainda não é muito grande,
mas mal cabe dentro caverna, ai fica fácil atrair ele pra fora.

Svein explicava para os irmãos o que seus corvos tinham visto. A criatura que eles
precisavam abater era a missão dos três, um dragão branco, essa era a primeira missão deles
sem o tio que os treinou. O problema começou quando alguns animais da aldeia sumiam
ficando apenas o rastro de sangue, os sumiços ficaram cada vez mais frequentes ao longo de
algumas semanas. Parecia ser apenas uma matilha de lobos até que encontraram o corpo de
um senhor da aldeia. Seu tronco sem as pernas estava dentro de um pedaço de gelo no pé de
uma arvore na floresta de pinheiros. Sangue em grande quantidade e tiras de couro com
escamas brancas denunciavam o algoz do querido senhor de idade avançada. O velho Hans
havia dado ao jovem dragão uma luta difícil e a fera preferiu fugir do que desfrutar da sua
refeição toda. Segundo o tio Hendrik, o dragão não era adulto pelas características das
escamas, provavelmente tinha deixado a mãe a pouco tempo, 2 anos no máximo. Era
descuidado e pouco inteligente.
No mesmo dia, Hendrik chamou os sobrinhos e os incumbiu da caça. Explicou por
quase uma hora para os dois mais velhos as características dos dragões brancos, características
que ele conhecia bem já que ele e o pai dos rapazes tinham matado um décadas atrás. A
menção do pai os fez ouvir a história com mais atenção e eles sabiam que deveriam pesquisar
bem a criatura antes de caça-la. “Estudar a presa é o que um bom patrulheiro faz”, dizia tio
Hendrik.

Os 3 rapazes apesar de bem treinados ainda não tinham provado para o povoado que
já eram homens, pois nasceram numa época de relativa paz. A falta de oportunidade
incomodava os mais velhos e o Tio Hendrik os confortavam dizendo que talvez os espíritos da
floresta estavam esperando pra transformar os três irmãos em “homens” juntos. Mais alguns
verões e o jovem Axel poderia ser um caçador como os irmãos, mas seria uma espera
interminável, pensavam Svein e Niels. Um belo dia Axel encontrou um urso polar no meio da
floresta e o trouxe pra casa. A docilidade do animal com o pequeno de apenas 12 verões
demonstrava que a ligação entre eles era sobrenatural.

Semanas depois da chega de Rurik os ataques do dragão branco começaram. Quando


entendeu a gravidade da ameaça Hendrik concluiu que a provação da natureza chegava para
os seus sobrinhos, o dragão era um pressagio da natureza. A mãe dos rapazes não estava
muito feliz com seu caçula no meio da floresta caçando um dragão branco na neve, mas seu
irmão Hendrik era muito sábio para se enganar diante dos presságios que os espíritos
sopravam com o vento.

E cá estão eles, no meio da neve discutindo como matar um dragão:

_Presta atenção Axel, você só vai se aproximar depois que o Niels conseguir machucar
bem o dragão, ele é perigoso ok?

_ Tá, tá, eu vou me esconder atrás do Rurik – O urso acenou com a cabeça como se
concordasse com os termos que Svein estava estabelecendo. O irmão do meio era o mais
eloquente e acabava liderando de certa forma.

_Eu vou me proteger com minha magia e vou tentar fazer ele girar, se conseguirmos
posicionar ele direito as costelas ficam expostas pro Svein. Se eu me ferir muito, Ulfer uiva.
Rurik e Axel chamam atenção dele e continuamos a luta à distância pode ser? – Perguntou
Niels.

_Sim, eu vou atirar nele com tudo, nessa idade o couro dele não é tão grosso. Olha o
quanto é frágil. – Svein estendeu para Niels o pedaço de couro com as escamas, que o tio deu
pra eles estudarem a criatura. Niels pegou o couro, examinou e assentiu com a cabeça
concordando com o irmão. – Só temos que evitar as placas escamosas que protegem os órgãos
dele, elas são realmente duras.

_Além disso – Continuou Svein – Kaira e Igor me mostraram que ele tem uma ferida no
pescoço, deve ser das últimas caçadas. A escama está quebrada, tem uma fenda na parte
esquerda do pescoço, perto da asa. Também, a placa escamosa que protege o olho direito está
trincada. Ele deve ter caçado algo grande e apanhado bastante. É nossa chance.

Os rapazes animadamente recolheram suas coisas enquanto debatiam e repassavam a


estratégia, desarmaram a pequena barraca, apagaram a fogueira e seguiram para o norte.
Kaira e Igor voavam quilômetros à frente e voltavam para Svein. Os pequenos batedores os
conduziram em segurança pela floresta, fazendo-os contornar o território de uma matilha de
lobos para não enfrentar uma luta que certamente seria difícil.

Duas horas depois, a vegetação que aparecia começava a ficar menor, mais escassa e o
frio aumentou, cada comentário era uma nuvem de vapor frio que voava da boca. Axel
cavalgava Rurik, o urso. Niels andava ao lado de Ulfer, seu lobo, enquanto Kaira e Igor, subiam
e desciam nos ares para manter Svein informado. Era uma matilha de homens e feras.

A caverna do dragão estava no pé de uma pequena colina, era bem pequena, usada
por viajantes que vinham por aquelas bandas, mal cabia o dragão. Um rastro de sangue no
chão e pedaços de um alce deram aos patrulheiros a certeza de que esse era o endereço da
sua presa. Niels cobriu a cabeça com o capuz da capa de couro, amarrou uma tira pano grosso
em volta do nariz e boca uma passou a mão na cabeça do Ulfer e disse:

_Agora somos eu e você amigão. – O lobo lambeu a mão do seu mestre como que
respondendo ao comentário e virou o rosto para a entrada da caverna levantando as orelhas
em sinal de alerta.

Enquanto o irmão mais velho caminhava lentamente em direção à entrada da caverna,


o lobo o seguia abaixado, escondendo-se no mato baixo. Niels pronunciava palavras antigas
que fortaleciam seu próprio corpo e o do lobo com magia pois provavelmente ele iria ser o
mais atacado pela fera. Essa era a obrigação de um homem, de um irmão mais velho.

Svein procurou um ponto mais elevado de onde ele poderia ter total visão da área
onde Niels estava e de onde ele poderia atirar contra o lagarto gigante. Ele distribuía as aljavas
em volta da sua posição enquanto tentava conter a preocupação com o irmão, se fortalecendo
com a ideia de que eles eram homens adultos. Que eles saberiam vencer aquele desafio, o pai
deles venceu, o avô venceu, e os pais dos pais do avô também. Com eles não seria diferente.
Axel olhava preocupado para Niels, se posicionando cada vez mais à frente sempre que Svein
abaixava o olhar para mexer nas aljavas, indo na direção da caverna. Quando Svein prestou
atenção, o moleque já estava uns 30 metros à frente. Svein puxou o ar para mandar Axel
voltar, mas lembrou que não podia gritar. Enquanto ele tentava “gritar baixo” para o irmão,
um som cavernoso quebrou o silencio bruscamente. O barulho do dragão ampliado pelo
formato da caverna perturbou aquela manhã que começava a nascer no horizonte. A cabeça
escamada e branca do dragão apareceu na porta da caverna, ele acreditava que Niels fosse
apenas um viajante andando sozinho no meio do nada. Estava tão hipnotizado pela refeição
que se aproximava, que não notou o lobo escondido alguns metros atrás do rapaz.

Niels buscou as suas espadas nas bainhas. Ele sentia suas mãos tremerem enquanto
tentava segurar o cabo das laminas que já refletiam a imagem do dragão se aproximando.
Svein não sabia se prestava atenção no irmão pronto para enfrentar um dragão sozinho ou na
bobagem que certamente o caçula estava planejando. Imaginar a cena na cabeça era menos
assustador do que vive-la. Svein era um rapaz racional, o mais sisudo dos três, ele respirou
fundo, pegou seu arco, contou as aljavas, estava tudo no lugar ao alcance da mão. Ele entesou
o arco ficou no aguardo, pois a melhor coisa que ele poderia fazer agora era seguir o plano,
Svein precisava esperar Niels começar a lutar pois se atirasse antes o dragão poderia voar e
seria muito mais difícil.

O dragão começou caminhar na direção de Niels, depois trotar, depois galopar e saiu
do chão indo em direção ao rapaz. Niels repassava na mente os versos das magias que poderia
usar naquele instante que parecia ser uma eternidade. O dragão não subiu muito e já desceu
com um voo rasante na direção de Niels soprando o ar congelante que certamente o mataria.
Niels terminava de entoar as palavras da sua magia de proteção quando deu uma cambalhota
para o lado, se protegendo de boa parte do sopro de gelo. Ao colocar a o pé no chão sentiu a
perna dormente com o frio, a dor excruciante, sentiu vontade de gritar, mas mordeu os lábios.
Ele não podia fazer isso, não poderia desesperar os mais jovens. O Jovem rapaz se colocou em
guarda e correu na direção do dragão.

Ulfer o seguiu e ambos atingiram o dragão ao mesmo tempo, o Niels na pata e o lobo
logo acima de onde a espada acertou. As espadas e o lobo dançavam juntos no combate. O
dragão ainda inexperiente se assustou com a bravura da sua presa e girou para tentar morde-
lo.

Era o que Svein aguardava, as flechas começaram a voar e o assobio dos dardos
cortando o ar foram recebidos por Niels com contentamento, a luta seguia como planejado,
tudo iria bem, ele só precisava evitar ser comido. Ele sorriu pela simplicidade quase estúpida
do seu pensamento quando sentiu o gosto de sangue na boca, e uma pancada que o fez
perder o ar acompanhada do estalo das suas costelas sendo atingidas pela cauda do animal.

Quando Niels caiu para o lado com a caudada, o dragão olhou para a direção de Svein
algumas dezenas de metros ali, mas logo se voltou para Niels se equilibrando para se pôr de pé
novamente. O rapaz gritou, para chamar atenção do dragão enquanto cravou as duas espadas
na placa peitoral do monstro. As laminas entraram um pouco, mas uma das espadas chegou a
entortar a ponta, tamanha a resistência das placa de escamas que protegiam o coração do seu
inimigo.

O lobo veio correndo, pulou e alcançou a base do pescoço do dragão e prendeu-se lá.
Nesse momento o dragão enfurecido com a determinação da sua refeição bateu as garras no
Niels e as enterrou na coxa esquerda dele. O rapaz foi empurrado para o lado, mas se manteve
de pé enquanto o sangue escorria enchendo sua bota. Enquanto se refazia da ferida, Niels viu
seu lobo ser abocanhado pelo dragão. Ele estava furioso, mas a perna estava muito
danificada para correr, ele mancava tentando encontrar forças para ir pra cima do inimigo.

Axel planejava atacar o dragão desde sempre. Ele tinha uma lança e cavalgando Rurik
ele ia para cima do dragão sem o menor medo, mas a linha que separa a coragem da estupidez
é realmente muito fina. O dragão se assustou com o chão tremendo sob o peso gigantesco de
Rurik que vinha pelo seu flanco e acabou deixando Ulfer escapar da sua boca. Quando se virou
para o urso, Axel viu a placa escamosa do olho trincada, ele gritou para o Rurik que entendeu a
o comando. O urso saltou com a boca no olho do dragão, mordeu a parte direita da cabeça e
travou sua mandíbula com toda força, Rurik não dia deixar o inimigo soprar novamente. O
peso e força do Rurik fizeram o dragão curvar-se, expondo o pescoço.

À distância, Svein continuava atirando contra o dragão, mirando agora as patas, para
evitar que ele conseguisse apoio para contrapor a força do Urso. Niels se erguia e o calor da
batalha o fez ignorar a dor quase insuportável e pegar suas duas espadas, seu lobo se erguia
do chão junto com seu mestre e ambos dispararam em direção ao dragão que estava curvado
à frente deles.

O dragão finalmente conseguiu se apoiar mesmo com a dor das flechas cravadas na
suas patas e sua força superou a do urso, fazendo-o soltar sua cabeça e empurrando-o pra
trás. O lagarto coberto de sangue, cego de um olho e furioso encheu os pulmões novamente,
esticou o pescoço e preparou-se para soprar com toda força contra Rurik e Axel, que viu a boca
do dragão se abrir diante dele. A essência congelante podia ser ouvida enquanto percorria a
garganta do dragão indo em direção à dupla. Axel paralisou de medo, a boca do dragão
cintilava gelo mágico a pouco mais de um metro dele e parecia ser o fim. A coragem estúpida o
levaria à morte.

De repente, Axel sentiu uma pancada forte o jogando para trás, Rurik ficou de pé sobre
as patas traseiras, jogando Axel para trás e recebendo em seu lugar todo o sopro congelante.
O urso polar cambaleou para trás e caiu, tomando o cuidado para não cair em cima do seu
jovem mestre. A lealdade de Rurik parecia não ter limites.

Svein já gritava de desespero enquanto sua mão lançava uma chuva de flechas contra
seu inimigo. Ele se sentia totalmente impotente diante da situação, estava muito distante para
fazer algo, não tinha como alcança-los. Ele deveria ter previsto que Axel ia agir como criança,
Ele deveria ter previsto que Niels não era o suficiente para um dragão desse tamanho. Ele se
culpava. Os dedos já doíam de tanta tensão enquanto o arco era entesado, as flechas miradas
e disparadas quase que automaticamente. A mente dele rodava no terror de ter que
comunicar à mãe a morte dos dois irmãos. Então ele decidiu que não iria parar de atirar, se
fosse para morrer, que todos morressem juntos. Isso deu a ele a frieza para continuar.

A baforada do dragão estava acabando quando o pescoço esticado do lagarto alado foi
duramente ferido na sua base por duas espadas no lado esquerdo, em cima da fenda nas
escamas que os corvos tinham comunicado a Svein. A escama quebrada permitiu a espada de
Niels ir fundo na carne do dragão, ele tossiu sangue e gelo, não chegando a terminar o sopro.
O animal começou a urrar, engasgando com o próprio sangue e tentando respirar, mas era
inútil, seu pescoço havia sido ferido mortalmente. O monstro se debateu, tentando se manter
de pé, as asas batiam freneticamente tentando alçar voo, mas só conseguiram derrubar Niels e
Ulfer no chão, o sangue do dragão espirrava em neles, em Axel, em Rurik e a neve branca que
cobria o lugar deu lugar a uma mancha de sangue de vários metros. Em alguns instantes seu
último suspiro foi ouvido. O barulho da sua queda parecia silenciar qualquer outro som. Era o
barulho de meninos se tornando homens, de patrulheiros ganhando uma história para contar
pelo resto da vida.

Svein vinha correndo desesperado, com o arco armado, temendo que o dragão ainda
se movesse. De longe Niels parecia ser uma mancha de sangue com dois pontos azuis. Era a
única coisa que dava pra ver no meio do sangue, os olhos dele. Axel estava do mesmo jeito. O
sangue do dragão era morno e até aliviava um pouco o frio daquela manhã. Axel e Niels riam
de maneira nervosa da situação, a consciência de que eles passaram tão perto da morte os
fazia rir compulsivamente, Rurik e Ulfer se sacodiam tentando se limpar do sangue e sujavam
todos em volta. Svein riu, mas não antes de dar um tapa na cabeça de Axel que escorregou e
caiu numa poça de sangue se levantando mais sujo ainda. Eles riam, era o que dava pra fazer,
era um nervosismo misturado com alivio, uma sensação nunca experimentada antes.

O medo passa, a batalha passa, a glória dura uma vida inteira. Essa é a matilha de
homens e feras.

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