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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
Disciplina: Organização do espaço interno das cidades
Docentes: Désiée Guichard, Nilo Sérgio, Matheus Grandi e
Gabriel Siqueira
Discente: Felippe Cajão

ORGANIZAÇÃO INTERNA DA CIDADE

AVALIAÇÃO 3

O termo “espaço público” aqui usado está baseado no conceito proposto por
Queiroga que o entende como “todo aquele de propriedade pública, podendo se prestar,
ou não, à esfera pública” (2012, p.58). A partir desse conceito, o trabalho tem como foco
os espaços de uso comum do povo que, por sua natureza pública, permitem a
manifestação de ação política. Esse entendimento se faz pertinente na dinâmica da
cidade de São Paulo, e de muitas outras metrópoles brasileiras, já que ela possui muitas
áreas abertas e de propriedade pública que não apresentam vida pública, mas que, por se
enquadrarem no sistema de espaços públicos das cidades, possibilitam essa
manifestação.
Muitos dos espaços públicos possuem em seus nomes os termos praças, parques,
largos, porém nem sempre atendem à finalidade de lazer e convívio para as pessoas e
tampouco apresentam características paisagísticas como tais nomes sugerem.
Seguindo a mesma lógica, muitas praças e largos da cidade, principalmente nas
regiões mais centrais, acabaram perdendo o papel de encontro e convívio das pessoas.
Assim, esses locais tornaram-se espaços de passagem, enquanto isso, nos bairros mais
periféricos, a vida no espaço público teve maior liberdade.

A partir dos anos 2000, começou a haver uma inversão na dinâmica de uso dos
espaços públicos por parte das classes mais abastadas na cidade de São Paulo. A cidade
de muros passou a ser negada por alguns grupos sociais, enquanto espaços abertos, de
lazer e convivência, passaram a ser reivindicados por parte das classes mais altas,
principalmente pelos jovens que viveram suas infâncias dentro de espaços fechados,
controlados e excludentes. Muitos deles puderam conhecer experiências e vivenciar o
espaço público em outras cidades do mundo, dando-lhes a consciência de que a cidade de
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Docentes: Désiée Guichard, Nilo Sérgio, Matheus Grandi e
Gabriel Siqueira
Discente: Felippe Cajão

São Paulo é carente de espaços públicos de qualidade, adequados ao uso democrático


de todo cidadão.

Dessa forma, esses jovens começaram a formar grupos para promover o uso
democrático dos espaços públicos da cidade de São Paulo através de apropriações e
manifestações inusitadas. Tirando proveito da quantidade significativa de espaços públicos
com potencialidades ocultas pelo abandono e falta de manutenção, esses grupos
passaram a ocupá-los com o intuito de transformá-los em locais de lazer e convivência
reivindicados por determinadas parcelas da sociedade.
Ao longo dos últimos anos, vimos acontecer nas cidades brasileiras uma explosão
de ocupações de espaços públicos e privados, ações de movimentos populares e novos
coletivos intervindo em áreas públicas, dispersos ou organizados, reclamando o “direito à
cidade”, numa grande multiplicidade de iniciativas que tem sido descritas por expressões
como “reconquista do espaço público” ou “novos ativismos urbanos”.

As ocupações culturais e o surgimento de amplos movimentos que contestam


projetos públicos ou privados e seus processos de gentrificação em áreas das cidades
reclamadas como bens comuns urbanos , como por exemplo as lutas pelo Parque
Augusta em São Paulo, pelo Parque Jardim América em Belo Horizonte, pelo Cais Mauá
em Porto Alegre ou pelo Ocupe Estelita em Recife, os vários grupos parecem ter em
comum a reinvindicação da cidade como valor de uso, assim como a contestação das
lógicas de produção do espaço pelo Estado-capital calcadas na razão neoliberal do
mundo (dardot; laval, 2013), e consequentemente, na espetacularização da cidade e na
rentabilidade do solo como critério fundamental.

Instrumentos de regulação urbanística, ao contrário do que prometiam seus


defensores, abriram portas para uma crescente apropriação da coisa pública pelo privado,
contribuindo assim para que se mantenha ou se aprofunde um padrão desigual de
distribuição da riqueza nas cidades. Destas muitas regulações e intervenções propostas
pelo Estado-capital, como as várias formas de PPPs (Parcerias Público-Privadas),
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emergem oposições e resistências, fortalecendo em várias partes do país novas


organizações centradas justamente na defesa dos bens comuns e espaços públicos.

Diversos coletivos, movimentos sociais, ambientais, culturais, grupos de vizinhos,


surgem como ativismos que se organizam trazendo a possibilidade de participar
ativamente nas definições sobre o destino das cidades. Essa nova forma de resistência
urbana, em geral contra grandes projetos ou em defesa de lugares e bens comuns da
cidade, é distinta daquela praticada pelos grandes movimentos setoriais urbanos. São
novos grupos menos condicionados pela tutela partidária, mais autônomos, ativistas e
multitudinários, cuja luta pretende fortalecer o acesso e apropriação coletiva dos bens
comuns, do que é ou deveria ser realmente público.

Além de introduzirem novos temas, estes novos ativismos também introduzem


práticas de organização e mobilização política que incluem, por exemplo, modelos mais
horizontais de participação e decisão, recusa às formas clássicas de representação e
organização partidária, além de uma dimensão de experimentação e prefiguração
imediata de novas maneiras de ocupar, resistir e existir na cidade.
Os grupos ativistas que emergem das lutas pelos espaços públicos parecem
reivindicar sobretudo a cidade como valor de uso e bem comum do povo, negando a ideia
do público como propriedade do Estado, o que reflete no retorno dos “comuns” como
questão política. Se organizam de forma a se autogerir ou ao menos carregam a
horizontalidade como valor.
No caso das novas ocupações – sejam culturais ou hibridas com movimentos
ambientais ou por moradia, muitas destas lutas não estão atreladas aos movimentos
tradicionais que se utilizam da ocupação como estratégia para reivindicar, por exemplo,
unidades habitacionais pela via da política habitacional local ou de programas nacionais
como o “Minha Casa, Minha Vida”, mas o que se reivindica, via de regra, é sobretudo a
possibilidade de permanecer, de se manter um espaço ocupado autônomo de cultura na
cidade.
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No entanto, tais movimentos também apresentam importantes limites e


contradições: quase todos os grupos em destaque nas metrópoles brasileiras como Belo
Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife, Fortaleza, são articulados,
principalmente, pela classe média urbana, branca e universitária. Muitos grupos
pertencem à chamada “classe criativa” e vivem ou frequentam as regiões centrais das
cidades. Atuando comumente sobre territórios considerados desvalorizados, correm o
risco de terem suas ações ativistas impactando na valorização destes territórios no
sentido de abrir novas frentes para o mercado imobiliário, gerando valorização fundiária e
se confundindo com estratégias dos “place making” que as próprias construtoras vem
empregando para ressignificar bairros nos quais têm interesse de valorização.
É o caso, por exemplo, do “embelezamento” e “animação” por grafites
encomendados (por agentes públicos e privados), dos estacionamentos de food trucks e
parklets, que se proliferam em cidades como São Paulo, copiando a estética do
“urbanismo DIY” ou “urbanismo tático” empregados por coletivos ativistas.

A nova condição de classe e renda desse ativismo permite, ao mesmo, maior


repertório de práticas e teorias, cosmopolistismo, conexão com redes globais, novas
dimensões artísticas, entre outras qualidades incomuns entre os movimentos tradicionais
dos “sem-” (sem-teto, sem-terra, etc.). Sua mobilização não nasce da precariedade e da
luta pela sobrevivência e atenção às necessidades básicas.

Talvez, a maior contradição deste processo é que os desejos representados por


essas insurgências vêm sendo apropriados tanto pelas gestões municipais, que passam a
promover ações e políticas públicas para espaços públicos, muitas vezes através de
concessões onerosas e parcerias público-privadas, quanto pelo mercado imobiliário, que
passa a adequar seu discurso para o de uma “cidade aberta” e “para as pessoas”.

Outras questões aparecem. Existe um limite de classes para o envolvimento na luta


por comuns urbanos? Em que medida essas lutas fazem resistência aos circuitos
capitalistas de produção do espaço urbano? Em que medida não são cooptados e
contribuem em processos de gentrificação e ampliação das fronteiras imobiliárias? Em
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que medida combatem ou reforçam desigualdades socioterritoriais? Em que medida


interesses de grupos específicos são capazes de representar o interesse coletivo, dos
que dependem da cidade como meio de vida? Trazemos essas reflexões para casos nas
cidades de Belo Horizonte, São Paulo, Fortaleza e Rio de Janeiro.

Por fim, vale dizer que o termo “coletivo urbano” passou a ser questionado pelos
próprios grupos que atuam na cidade na tentativa de criar espaços públicos mais
democráticos e inclusivos. Além disso, outros grupos que não tratavam especificamente
da transformação do espaço passaram a se sobressair no debate urbano ao lidar com
questões de caráter mais político, como gênero, raça e mobilidade.

Englobando uma pluralidade maior de grupos, o termo “ativismo urbano” ganhou força
e passou a melhor representar a diversidade de reivindicações desses grupos que têm
em comum uma forma de ação prática e efetiva na busca pela transformação da
realidade, independente do poder público ou de instituições privadas, tendo a cidade
como cenário de suas reivindicações.

Bibliografia:

LAVAL, Christian; DARDOT; Pierre. La nueva razón del mundo. Ensaio sobre la
sociedad neoliberal. Barcelona: Gedisa, 2013

ARANTES, P. A Anti-Reforma Urbana Brasileira e um novo ciclo de lutas nas


cidades. São Paulo, Editora Caio Prado Jr, 2014.

MARQUES, Guilherme J. A. L. Movimentos sociais urbanos: uma questão de


classe? 2014. 297 fls. Tese - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da
UFRJ. Rio de Janeiro, 2014.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do


Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
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QUEIROGA, E. F. Dimensões públicas do espaço contemporâneo:


resistências e transformações de territórios, paisagens e lugares urbanos
brasileiros. 2012. 284p. Tese (Livre Docência – Área de Concentração: Paisagem e
Ambiente)– FAUSP, São Paulo.

LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2015.


HARVEY, D. Cidades Rebeldes. Do direito à cidade à revolução urbana. São
Paulo: Martins Fontes, 2014.

ABERS, R., VON BULOW, M. Movimentos sociais na teoria e na prática:


como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade?. In:
Sociologias, 2011, vol. 13, n. 28. Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo. oa?
id=86821166004>

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