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Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade
Federal de Pernambuco como
requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre, sob a
orientação da Profa. Dra. Nina
Velasco e Cruz.
Inclui bibliografia.
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
Based on Benjamin’s thought about image and time, we delineate a parallel between the
concept of photography and the notion of ruin. We showed what is common in this analogy in
order to intensify the discussion of the question: how does photography, when characterized
as ruin, dialogue to discontinuity of time? So we can view in the legacy of Walter Benjamin
key points to raise our basis, such as: the concept of history, the memory, the allegorical
baroque ruin and the photography. The philosopher’s contribution allowed us to connect these
themes to the photographic theory so discussed by Roland Barthes, Philippe Dubois, André
Bazin, among others who have guided the photography under the perspective of the vestige,
the trace of real. We are interested on the nearness between photographic image and
discontinuous time that is established in the dialectic between past and present, visibility and
hiding, death and life. Beyond this, we relate photography and history, which highlight
doubles like: document/monument and truth/lie. Throughout the text, we are dedicated to
show pictures of photographers who cultivate, in many ways, photography as ruin. They are:
Eugène Atget, Christian Boltanski and Rosângela Rennó. This choice of images steps up
Benjamin’s subjects we work. So we try building and basing a text with the aim to approach
of what would be, for Benjamin, the photographic image of his thought.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................11
CONCLUSÕES.....................................................................................................................111
As descontinuidades atravessadas...........................................................................................111
Pequenas fotografias do pensamento......................................................................................114
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................119
11
INTRODUÇÃO
Elaboramos, neste capítulo primeiro, aquilo que poderia ser chamado de uma
ancoragem benjaminiana, em que o texto é seccionado por temas de nosso interesse central.
Cada tópico apresentado, no entanto, diferentemente de Benjamin, não se pretende um
mosaico, em que os fragmentos são propositalmente descontínuos e desordenados. Não
concretizamos essa premissa assistemática. Propomos uma condução de leitura – que, claro,
pode ser seguida ou não –, para termos um entendimento mais lúcido sobre cada assunto
abordado e, também, para facilitar a lembrança de cada tema quando a ele nos reportamos em
outras seções e capítulos.
Na primeira seção, trataremos da concepção benjaminiana de história e mostraremos
como sua escrita fragmentária consolida seu pensamento. Utilizaremos as “teses sobre o
conceito da história” como articulação desses temas. Na seção seguinte, buscaremos esmiuçar
o seu pensamento sobre a memória, que está evidentemente ligada à dimensão temporal,
apresentando o entrelaçamento de suas ideias às de Proust, de Bergson e de Baudelaire. Na
terceira seção, daremos ênfase à visão barroca na constituição de uma história a partir e por
meio das ruínas. Por último, esboçamos uma articulação sobre a fotografia e os temas
anteriormente apontados.
Com isso, não esperamos dar conta da arquitetura do pensamento de Benjamim. É
nossa intenção esboçarmos algumas reflexões de temas relevantes que se articulam com a
imagem fotográfica. Comprometemo-nos em não ser demasiadamente extensos nem
insuficientemente breves.
1
A concepção barroca de ideia como mônada muito influenciou Benjamin para sua concepção barroca de
história. O Trauerspiel – drama barroco – é o paradigma para sua análise, como veremos no tópico “A ruína é
uma miniatura de mundo”.
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tornar as coisas imediatas, mas de convocar, trazer para uma proximidade “a vigência do que
antes não havia sido convocado”. Sublinhamos que, para o filósofo, o termo essência carrega
o sentido do vigor, do vigorar (wesen). “Evocar é sempre provocar e invocar, provocar a
vigência e invocar a ausência” (id., ib., p.16).
Na proposição de Heidegger (e também na de Benjamin), no nome das coisas, ligamos
mortais e divinos, pois a evocação nomeadora convida as coisas para perdurarem no mundo.
“No nomear, as coisas nomeadas são evocadas em seu fazer-se coisa. Fazendo-se coisa, as
coisas des-dobram mundo, mundo em que as coisas perduram (...) Fazendo-se coisa, as coisas
são gesto de mundo” (id., ib., p.16-17). Entender essa capacidade de evocação do nome é
captar que o mundo, para Heidegger, concede às coisas sua essência. Em essência, o homem é
linguagem. Heidegger e Benjamin privilegiam o aspecto linguístico não como instrumento,
mas como essencial. Essa “virada linguística” da filosofia participa do movimento de
pensamento do século XX que privilegiou as formas de expressão da literatura e da filosofia.
Rainer Rochlitz (2003, p.34) assinala que Benjamin recusa o caráter instrumental da
linguagem, pois ela é “(...) medium de todo o conhecimento anterior a qualquer pensamento e
constitutivo de toda consciência”. A concepção da linguagem é mística por dar ao homem um
“papel messiânico na Criação”, um papel libertador, capaz de lidar com a experiência
fragmentada do mundo. Antes do pecado original, quando as coisas não tinham nome, homem
e natureza se comunicavam de forma imediata. Depois da Queda, a fala humana se tornou
mediata, uma língua sobre as coisas e não das coisas, como coloca Mauricio Lissovsky
(1998). O ato de nomear, então, adquire uma dimensão receptiva da própria língua das coisas
e é reparador ao apaziguar a dor da perda desse elo imediato, adâmico.
Tendo claras essas formulações, é mais compreensível apreender o que seria o
“método” de Benjamin, que embora tenha a linguagem como primordial, leva-nos ao mundo
das imagens presente nos textos. Paulo Rouanet (1984) designa esse método como “tratado
filosófico” que se propõe a representar as ideias e, por isso, ele se recusa às falsas
totalizações, como nas ciências sistemáticas. O sistema se opõe ao tratado. Enquanto o
primeiro se baseia em elos, continuidades, coerências, o tratado é como mosaico: é composto
de fragmentos de pensamento assim como o mosaico se compõe de fragmentos de imagem.
Origem do drama barroco alemão, obra benjaminiana de 1928, é um exemplo dessa primazia
do fragmentário. Seu texto é totalmente assistemático: há passagens bruscas, desconexões de
um tópico a outro, citações, retomadas de temas constantemente. Passagens é outra obra que
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retoma esse caráter fragmentário do Trauerspiel (drama barroco) nos seus temas heterogêneos
e citações, construindo-se pela montagem. É como se Benjamin, no intento de representar a
natureza da verdade como ideia, mostrasse sua construção descontínua, estilhaçada.
Na sua filosofia da história, Benjamin traz à tona tanto a sua abordagem fragmentária
do tempo, como a sua rejeição a um tempo cronológico, linear, homogêneo, causal, herdado
pela historiografia tradicional burguesa (o historicismo). Sua defesa é de que o historiador
materialista, dialético, pode fundar uma outra concepção de tempo, calcado na intensidade
relampejante do “agora” (jetztzeit), baseado na tradição messiânica e mística judaica. E isto,
mais uma vez, carrega a visão de mônada de que falamos.
(...) o historiador dialético deve libertar o objeto histórico do fluxo da
história contínua, salvando-o, sob a forma de um objeto-mônada: fragmento
de história, agora intemporal, que o olhar de Medusa do historiador
mineraliza, transformando-o em natureza, e que como tal dá acesso à pré-
história do objeto, e à sua pós-história (ROUANET, 1984, p.19).
Há, dessa forma, uma temporalidade fundada no instante fixado pelo historiador. Ao
mesmo tempo em que recorta o objeto da continuidade histórica, ele o salva do vir-a-ser
enquanto mônada, que é intemporal. A partir dessa quebra na linearidade histórica, o objeto-
mônada se estabelece como origem, salto, dando acesso à sua pré e pós-história. Esse salto é
atual, emergente, libertador das amarras cronológicas. Ele inaugura um momento. É neste
raciocínio que Benjamin escreve as suas “teses sobre o conceito da história”, de 1940. O
filósofo expressa essa imagem do tempo, em que a visão verdadeira do passado é relâmpago,
neste trecho da “tese” 5: “A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se
deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é
reconhecido” (BENJAMIN, 1994a, p.224).
Há um movimento veloz em jogo, que deve ser imobilizado. A imagem relampejante
do passado só pode ser fixada no ato de seu reconhecimento. Temos, no trecho citado na
“tese” 5, a imagem enquanto fugacidade, latência. O historiador dialético deve “mineralizar”
esse instante imagético, pois o movimento historicista tradicional é o da marcha linear,
progressista, que abafa essas possibilidades de congelamento e ruptura, fugidias. O passado
enquanto “verdade”, “ideia”, na reflexão de Benjamin, não morre nas relações causais de
passado, presente e futuro. Ele é atual, desde que salvo enquanto fragmento, mônada.
Na “tese” 9, temos a imagem do anjo, quadro de Paul Klee descrito por Benjamin,
como elucidativa dessa visão do passado. Aqui é ressaltado o aspecto catastrófico com que o
anjo olha os fragmentos.
19
***
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Consagrado por fotografar construções e ruas de Paris vazias, Eugène Atget não esteve
sensível apenas a registrar a cidade extinta do movimento de pessoas. Dentre seus registros,
ainda que em menor número, destacam-se imagens como essa (acima, Fig.1), que retrata um
grupo de pessoas em uma moradia provisória, isolada da agitação de um grande centro
urbano. Trata-se das margens ao sul da cidade, em que estrangeiros e ciganos procuravam
acomodar-se, uma vez que sua presença era ameaçada pelo exército.
Nessa zona, assim nomeada até a Segunda Guerra, como destaca Szarkowski (2003),
distante a uma milha do centro da cidade como forma de defesa, era proibido construir
moradias de estruturas permanentes. Talvez a maioria dos residentes da zona fossem ciganos,
que, não tendo interesse na permanência naquele lugar, pareciam invisíveis e, das minorias
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étnicas, os menos discutidos. Contudo, aos olhos de Atget, eles não passaram despercebidos.
Da invisibilidade e vulnerabilidade as quais estavam sujeitos, o fotógrafo agiu contra a
marcha progressiva, retratando-os e mantendo com eles uma troca de olhares que, ainda que
provisória, possibilitou-lhes a visibilidade.
Estando também atento à periferia da cidade, Atget rompeu com o olhar tradicional e
historicista, que silencia as possibilidades de um desvio das amarras contínuas do tempo
homogêneo. A fotografia acima é uma ruptura com a sequencia de acontecimentos que Paris
seguia com o objetivo de se defender das ameaças externas. Nessa imagem, estão seres
humanos, que à margem de um grande centro, viveram na incerteza da permanência. E ainda
que alheios aos acontecimentos para além da zona, não foram sujeitos menos históricos.
Ruínas de uma Paris em expansão, os residentes da zona, região provisória, foram alvo
de um olhar incerto de Atget. Ao mesmo tempo em que a imagem capta um momento fugidio,
o olhar fixo do fotógrafo para as pessoas estabelece um contato também incerto e arredio.
Aquelas pessoas pouco compreendiam a escolha do fotógrafo, assim como o fotógrafo
desconhecia a vida que ali se passava. Poderíamos dizer que Atget, ao congelar sua visão das
ruínas, parece estar entre a tempestade que o leva e a possibilidade de salvá-las, bem ao modo
do anjo da história. Esse momento de reconhecimento, é instantâneo, relampejante, tal como
uma fotografia.
Assim, essa imagem destaca-se não apenas de um fluxo histórico que o exército de
Paris tinha a missão de manter, mas também de uma linearidade que a maioria das fotografias
de Atget registrava, que eram as ruas, parques e cafés de Paris vazios de pessoas. Esses
lugares o fotógrafo já conhecia com certa familiaridade e já realizava seus registros de forma
metódica. A zona, contudo, para ele, era tão imprecisa quanto o confronto de olhares com
aqueles que ali estavam. Sua fotografia interrompe um fluxo para dar visibilidade a uma
minoria esquecida, de futuro incerto. A imagem permaneceu como pegada, poderíamos dizer,
desse confronto de olhares entre ruína e anjo da história.
***
O “agora” a que Benjamin se refere implica a ideia de “origem”, que como já dito
anteriormente, é o salto no curso do vir-a-ser. Os acontecimentos, como massa homogênea,
abafam esses possíveis “agoras”, saltos e cristalizações. Esse abafamento reforça o princípio
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Nesta direção, apreendemos uma atitude histórica marxista voltada para a atualidade,
independentemente do período temporal em que ela acontecer. A sua atualidade é “livre”, sem
as amarras de uma visão dominante. Nisso, ela se distingue da moda. No entanto, a ideia do
salto para a moda afirma a atemporalidade presente na origem. É a ideia de uma emergência
que pode ser atual a qualquer momento, mesmo que cite um momento passado. O “agora”
está disperso e pode explodir do continuum. Há uma força revolucionária nesse “agora”.
Essa irrupção no tempo é messiânica, salvadora, como é colocado por Benjamin em
alguns trechos de suas teses, os quais citaremos. O materialista histórico aproveita a
oportunidade de cristalização do tempo de natureza monadológica, “(...) reconhece o sinal de
uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma
oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido” (id., ib., p.231). A tarefa da
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história enquanto salvadora é arrancar o passado da opressão dominante, assim como Messias,
na tradição judaica.
“O ‘agora’, que como modelo do messiânico abrevia num resumo incomensurável a
história de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela
história humana” (id., ib., p.232). Nesse trecho da “tese” 18, há uma comparação da
abreviação da história humana com o “agora” messiânico. É como se esse “agora” nos desse
uma noção do ínfimo tamanho da história que conhecemos e da imensidão que ainda
desconhecemos. É uma proporção em escala: enquanto um salto messiânico nos dá a ver toda
história da humanidade, essa mesma história corresponde a um ínfimo lugar no universo. O
“agora”, ao mesmo tempo em que abrevia, age como mônada. Traz à tona a ideia do todo no
minúsculo, no fragmento.
O nexo causal existente entre os vários momentos da história contenta o historicista.
Contudo, o historiador consciente desse nexo, não se conforma em tomá-lo enquanto verdade.
Ele capta essa configuração causal, em que sua época “(...) entrou em contato com uma época
anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um
“agora” no qual se infiltram estilhaços do messiânico” (id., ib., p.232). A determinação de
uma época, o seu enclausuramento entre limites temporais da história dos vencedores, em
nada perturba ou apela, pois é preenchida pela “massa dos fatos”, homogênea, contínua e
vazia. Já o presente enquanto “estilhaço messiânico” é carregado de uma força redentora,
“uma experiência única”, como o ímpeto do anjo da história. Neste presente, “ele mesmo
escreve a história”. (id., ib., p.230).
Como na crença judaica, “cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o
Messias” (id., ib., p.232). Encarar esta emergência permanente do tempo coloca o historiador
materialista em um estado de alerta constante, pois o “estilhaço” é, muitas vezes,
imperceptível. “Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um
misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história” (id., ib.,
p. 224). Nessa metáfora, Benjamin descreve o momento tênue, sutil, em que o historiador
materialista pode salvar o passado em um “estilhaço”.
O perigo é outra forma do passado se apresentar enquanto ameaça, catástrofe. A visão
do anjo ressalta esse aspecto. Ela relampeja perigosamente. Na “tese” 6, é evidenciada essa
ameaça da imagem do passado, a qual o materialismo histórico deve fixar e apresentar ao
sujeito histórico, sem que ele seja consciente disso. “O perigo ameaça tanto a existência da
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tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes
dominantes, como seu instrumento”. (id., ib., p. 224). Cabe ao historiador impedir que esta
entrega se perpetue.
Benjamin, na “tese” 7, também fala da aderência ao “método de empatia” por parte do
investigador historicista e que é rompido pelo materialismo histórico. Essa empatia é com os
vencedores.
Sua origem é a inércia do coração, a acedia2, que desespera de apropriar-se
da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. (...) A empatia
com o vencedor beneficia sempre (....) dominadores. Isso diz tudo para o
materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo
triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão
prostrados no chão. (BENJAMIN, 1994a, p.225)
Os vencedores de hoje são herdeiros dos que dominaram antes. Nesta herança, o
triunfo de cada dominador carrega o preço da opressão dos dominados, “seus corpos
espezinhados”. Vale destacar aqui a apatia, a inércia, com que os vencedores contêm o
desespero do “relampejar fugaz” do passado. É nesta inércia diante do desespero que faz com
que o passado homogêneo seja transmitido de forma empática. A atenção do materialista
histórico é decisiva nessa relação, pois ele deve olhar também para os mortos nesse triunfo,
rompendo a empatia da vitória herdada ao longo das gerações.
A barbárie em que se caracterizou o processo de transmissão cultural, ou, em outras
palavras, os bens culturais resultantes do “espezinhamento” dos vencidos, leva o materialista
histórico a refletir o “cortejo triunfal” com horror. A cultura carrega em si a barbárie. “Nunca
houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (id. ib.,
p.225). Neste sentido, Benjamin agrega um caráter negativo à cultura que, no caso, está aliada
aos valores burgueses, das classes dominantes. A tarefa do historiador consciente é se
distanciar dela, escovando a “história a contrapelo”.
Nesta visão da barbárie, temos também a visão catastrófica do anjo da história. Como
já citado, o anjo “(...) vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína
e a dispersa a nossos pés” (id., ib., p.226). Redimir o passado, colher seus fragmentos
relaciona-se também com a descontinuidade da cultura. História e cultura são alvos do ato de
“despertar os mortos”. Para ambas, é necessário um olhar iconoclasta, que escape do
progresso e resgate “os corpos prostrados no chão”. “O dom de despertar no passado as
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Na sua concepção medieval, a acedia é a “preguiça do coração”, mal da alma, o abandono da busca de Deus.
(MATOS, Olgária. Aufklärung na metrópole: Paris e via láctea, in: BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo
Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa oficial, 2007).
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narrar. Os primeiros por conhecerem as tradições e histórias de sua terra. Os segundos por
terem histórias de viagens a contar. Leskov, narrador-objeto do texto, acumulou experiências
em viagens pela Rússia, conheceu seitas rurais, marcou a sua narrativa com uma “dimensão
utilitária”, ou seja, com conselhos morais, sábios. As histórias, para serem mais facilmente
memorizadas, deveriam renunciar aos traços psicológicos. “Quanto mais o ouvinte se esquece
de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido” (id., ib., p.205).
A característica moderna do desaparecimento da arte de narrar tem seu cerne no
isolamento do sujeito que, com a mecanização do trabalho e a difusão da informação, tem
acesso fácil a notícias diárias de forma clara, objetiva, não deixando liberdade para a
interpretação do leitor. Há uma outra relação com o espaço e com o tempo, já que “o saber
que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos
próximos” (id., ib., p.202). A imprensa é imediata. E foi ela que também favoreceu a
produção de livros de romances que, para Benjamin, não se alimentam da tradição oral como
acontece na narrativa. Há um desaparecimento da experiência coletiva. “O narrador retira da
experiência o que ele conta (...) E incorpora as coisas narradas à experiência dos ouvintes. O
romancista segrega-se” (id., ib., p.201).
No romance, o tempo, tomado em seus matizes psicológicos, é constitutivo.
É um tempo fragmentado e descontínuo que corresponde à experiência
temporal da era industrial. Esta temporalidade rompe com a memória – “a
mais épica de todas as faculdades” – que está vinculada a um tempo
artesanal ou orgânico, aquele em que, trabalhando em seus teares, os homens
podiam, junto ao fogo, ouvir e contar histórias nas quais reconheciam a sua
experiência (MURICY, 1998, p.188).
Nesta distinção da memória na vida moderna, são sedimentados dois termos na escrita
de Benjamin: experiência (Erfahrung) e vivência (Erlebnis). A primeira se refere ao
comunitário, à memória individual e coletiva, à tradição, enquanto a segunda se relaciona ao
mundo privado, ao indivíduo solitário. Assim, a memória, “a mais épica de todas as
faculdades”, vai perdendo suas forças para o homem moderno que se recolhe em seu mundo
particular, em seu trabalho segmentado. Não mais o seduz conservar o que foi narrado. A
segurança da reprodução foi colocada nas mãos das técnicas.
O atrofiamento da memória na modernidade também é apresentado por Benjamin no
seu ensaio Experiência e pobreza, de 1933. É reforçada a subtração da experiência no período
em que o hábito de contar histórias foi substituído pelo silêncio do pós-guerra, que assolou a
geração que viveu de 1914 a 1918. Os combatentes calaram. Voltaram pobres em
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29
FIGURA 2: Petit intérieur d'un artiste dramatique. Mr R., rue Vavin – Eugène Atget (1909 or 1910)
Benjamin, em seu texto sobre o flâneur, personagem que está no limiar tanto da
burguesia quanto da grande cidade, que passeava pelas ruas parisienses sem rumo, anônimo,
observando tudo, como em um panorama cuja paisagem é a multidão, diz que o morador do
intérieur, em seu mundo privado, reprime as reflexões sociais. Ele tenta despir seus objetos
do caráter de mercadoria para dar a eles um valor afetivo, em vez do valor de uso, de
utilidade, como faz o colecionador. Todos os seus rastros estavam bem guardados no
intérieur. Tanto que sua morada era seu mundo em miniatura, e seus objetos eram guardados
em caixas, estojos, protetores etc., dando à sua casa um caráter ainda mais particular.
Esse “pequeno interior de um artista dramático” apresentado na imagem (Fig.2) faz
parte de um projeto de Atget de construir um ensaio com diversos interiores parisienses de sua
época. Móveis, espelhos, quadros, livros e adornos compõem um cenário tipicamente
burguês, em que todos os vestígios de seu dono estão ali protegidos. Manter particulares esses
vestígios era o motivo pelo qual a cultura de vidro se colocava como uma atitude contrária ao
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hábito burguês. O risco da transparência, da exposição dos rastros do intérieur, fez com que o
próprio Atget, nessa fotografia, não afirmasse se esse lugar era ou não a sua morada.
Atget, além de fotógrafo, foi ator. Assim, o título da fotografia poderia ser associado a
ele. Szarkowski (2003) comenta que o artista teria sido capaz de incluir no seu ensaio sobre os
interiores parisienses fotografias de seu próprio apartamento, subtitulado como do Mr. R.,
artista dramático, vivendo na rua Vavin. Essa incerteza mistura verdade e ficção que, para um
ator (que ele ainda era, até 1913), era agradável. E, por outro lado, misturar realidade e
invenção poderia ser uma forma de proteger seus próprios vestígios, como assim faziam os
burgueses em suas moradas.
Mesmo sendo um artista com pouco financiamento, o fotógrafo-ator chegou a se
apresentar em algumas universidades populares com peças de Moliére e Victor Hugo. Era um
homem de muita leitura, o que leva a crer que sua vida, mesmo não sendo das mais
favorecidas, primava pela intelectualidade. E a fotografia foi também um meio de
sobrevivência, já que ele comercializava suas imagens para desenhistas e ilustradores. Assim,
pelo que transparece a fotografia acima, como coloca Szarkowski (ib.), não se podia ter
certeza se Atget morou ou não ali. A quantidade de livros condiz com o interesse do artista
pela leitura, mas ainda não é suficiente para afirmar que ali estão seus vestígios.
Berenice Abbott, fotógrafa americana fã do trabalho de Atget, por volta de 1925, fez
visitas ao artista e, em nenhum momento, foi convidada por ele para conhecer além de seu
quarto de trabalho. A intimidade do artista, assim, era preservada, e não seria uma jovem
estrangeira que iria ter a permissão de entrar nos quartos da casa. Entretanto, 50 anos depois,
Maria Hambourg provou para Abbott que o apartamento da fotografia acima foi, sim, uma das
moradas de Atget. Tratava-se do quinto lugar do artista em Paris, desde que ele havia chegado
à cidade há 20 anos antes da data da fotografia. Quando fotografou seus quartos, ele tinha
estado lá por uma década, e as imagens parecem refletir uma vida estável e decidida, sem
evitar conforto material e intelectual (id., ib.).
O “pequeno interior do artista dramático”, então, mesmo no jogo entre verdade e
ficção, dá indícios não de um homem arruinado, mas de um fotógrafo e leitor de grande
curiosidade, que deixa em seus lugares de morada suas pegadas. Não foi à toa que, mesmo
fotografando esses lugares, guardando-os em imagens, Atget não deixou claro que eram seus,
ocultando sua verdadeira identidade.
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31
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33
esse teor sugestivo, “os dez retratos fotográficos de Christian Boltanski” trata de uma ficção
biográfica do autor. Apropriando-se de vários vestígios de infância, ele encena uma história.
Pouco se pode dizer de cada criança retratada. É outra característica das obras de
Boltanski trabalhar a questão do anonimato nas imagens. Essa questão, inclusive, influenciou
outros artistas contemporâneos (como a francesa Sophie Calle e a brasileira Rosângela
Rennó) que, no intuito de utilizarem o documento fotográfico como matéria-prima de suas
obras, trabalham com o que a imagem pode sugerir - suas ausências, suas incompletudes. O
passado, que na fotografia é ontologicamente tão enfático, passa de uma constatação para uma
criação. Esse potencial criativo dos fragmentos imagéticos elaboram uma nova relação com o
tempo: tanto o passado quanto o futuro podem ser reinventados.
Se assim pensarmos, Boltanski e “seus retratos” colocam para nós a reversibilidade
temporal possível dos documentos fotográficos. A reconstrução da realidade por meio das
imagens se torna expressão de um tempo não apenas declarado pelo testemunho visual, mas
também realizável pela criatividade do artista ao montar sua narrativa. Ainda que não se trate
de um entrecruzamento temporal proustiano, a obra de Boltanski convida a ceder a tempos
imprevistos.
***
3
Há controvérsias sobre a questão da rememoração dentre os estudiosos de Benjamin. Martha D’Angelo (2006)
coloca que é inerente à lembrança o “tecido da rememoração”. Muricy (1998) assinala que há distinção entre os
termos, pois na rememoração está embutida a ligação com o passado original, a relação do comunitário com o
individual, que seria a experiência autêntica, mística. Rochlitz (2003) fala que a rememoração é teológica por
transmitir uma força “messiânica”. Pela anamnesis (recordação) é possível, analisando a palavra profana,
lembrar-se de sua nomeação original e conduzi-la novamente à ordem do Nome, como ideia, conforme Paulo
Rouanet (1984).
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4
Baudelaire, nesta obra, aborda a época de transformações sociais e estéticas da segunda metade do século XIX,
tempo em que o pintor Constantin Guys sugere em seus trabalhos a experiência estética da efemeridade.
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5
As correspondências são dois poemas assim intitulados, contidos em As Flores do Mal, em que o poeta ressalta
a relação do belo (culto) com a Natureza. Julgamos importante dar destaque à imensa nota explicativa de
Benjamin sobre o belo, exposta nas páginas 132 e 133 de Sobre alguns temas em Baudelaire. O belo pode estar
ligado à natureza e à história. Conforme a história, o belo é um apelo ao elo com o que já anteriormente
admirado. Sua aparência consiste na busca da admiração fora da obra. É recolhido, nesta admiração, o que as
gerações anteriores nela admiraram. Ou seja, aquilo que já produziu grande efeito, não pode hoje ser mais
absolutamente julgado. Em sua ligação com a natureza, o belo se relaciona com a imitação, a reprodução na obra
de arte de algo indefinível. “As correspondances, representam a instância, diante da qual se descobre o objeto de
arte como objeto fielmente reproduzido e, por conseguinte, inteiramente problemático” (BENJAMIN, 1994b,
p.133). Como exemplo do caráter da obra de arte como cópia do belo, Benjamin fala de Proust que, em sua
busca de reencontrar o tempo, reproduziu na sua forma loquaz de escrita o aspecto desconcertante de sua
intenção, seu “aqui insuficiente”.
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O tempo aqui parece ignorar qualquer estímulo. É “engolido” pela vida insignificante,
pelo estado de alerta da consciência, sem cor. O homem (e o poeta), mesmo ao ver um
fenômeno natural – o “globo curvo” –, não se anima a cultuá-lo, não estabelece nenhum
envolvimento. Ele “vê” e “não procura”; o tempo “engole” e é “brancor”. Podemos destacar
dessas expressões a intenção de Baudelaire em fazer de seus versos semelhantes à sua
experiência, à da modernidade, à da atualidade.
Um tempo sem história, ou pré-histórico, como na mémorie involontaire. Há nessa
concepção temporal, “fragmentos desiguais e privilegiados” que objetivam ir da exacerbação
da vivência à verdadeira experiência. A experiência histórica, que Benjamin vê como
estilhaçada, fragmentada, é composta por Baudelaire. Ele corporifica o historiador
materialista que resgata o que foi esquecido, tornando-o presente no seu fazer artístico.
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Rememora as forças messiânicas, minadas pelo curso do via-a-ser. A história e a arte são
formas de rememoração. Com esse entendimento, parece mais claro para nós a correlação
entre a experiência baudelaireana e a histórica.
“Se no spleen (...), Baudelaire ainda dispõe dos estilhaços da verdadeira experiência
histórica, Bergson, por sua vez em sua concepção da durée, se afastou consideravelmente da
história” (id., ib., p.137). Estaria no spleen a presença da morte, a nudez da vivência. A morte,
então, é o elemento distintivo de Baudelaire em relação a Bergson. “A durée, da qual a morte
foi eliminada, tem a mísera eternidade de um arabesco; exclui a possibilidade de acolher a
tradição. É a síntese de uma vivência que se pavoneia nas vestes que toma emprestadas à
experiência” (id., ib., p.137). Ao tentar definir o sentido de experiência histórica, Benjamin
recorre à dimensão tradicional, teológica, que por sua vez está ligada à memória.
“O que é ‘teológico’ no espírito de Benjamin é a faculdade profana da memória de
destinar seu inacabamento à morte e ao sofrimento passado” (ROCHLITZ, 2003, p.240). Sem
essa incompletude inerente à morte e ao passado, o presente individual (da vivência), esquece
a dívida que tem com os vencidos que ficaram para trás. Nesse sentido, a durée de Bergson é
um exemplo desse esquecimento. Não remonta a um senso comunitário, de solidariedade.
Apesar de dar a merecida importância ao trabalho de Bergson, Benjamin faz aí a sua crítica à
duração.
Sobre a exclusão da morte, Olgária Matos (1998) complementa que, na civilização
industrial, agindo pelo princípio do rendimento, as manifestações da experiência vivida, como
o amor, a felicidade e a morte, são contidas. O homem estaria sendo esmagado pelos seus
próprios produtos, pela “especialização da duração” e “decadência da historicidade”. À luz
desse raciocínio, fazemos uma ponte com a durée de Bergson. A noção bergsoniana de
experiência estaria enclausurada pelo próprio motor do sistema capitalista, que dita quanto
vale cada hora de produção. É como se, nesses moldes, o tempo do trabalho sempre corresse
preenchido, igual ou alienante, na expressão de Marx. A repetição culmina em carência de
recordação.
Especificando-se a duração, que corrobora com o continuum, a memória tem um
sentido reparador, de recuperação da experiência do passado. Recorramos à Benjamin. “A
Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo
calendário funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna
sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência”. (BENJAMIN,
40
1994a, p.230). As revoluções, assim, instauram uma nova concepção de tempo que é
abreviado, carregado de história, e os feriados marcam um outro tempo, em que retornam as
possibilidades do recordar. Ou seja, a memória se estabelece nesse esforço de rompimento, de
reiteração da experiência, em contraponto à cristalização do sentido.
Assim, a memória em Benjamin assume sua ligação direta com a história. Ambas
lutam contra o esquecimento e a sujeição ao passado anestésico. Nas ruínas, nas
reminiscências do tempo, mora uma força rejuvenescedora que nos desafia. A melancolia que
elas suscitam, como em um spleen baudelaireano, anuncia não apenas vestígios do que foi,
mas apelos à vitalidade da recordação.
***
***
6
Há quem diga que “a alegoria engloba o símbolo, transcendendo-o” (KOTHE, 1976, p.35).
43
7
Aura: o “aqui e agora” do original. “Aparição única de uma coisa distante, por mais perto que esteja”.
46
colocamos acerca da narrativa no tópico anterior. A perda ou destruição da aura seria o corte
desse elo distante no qual estava impregnada a força primitiva, a “percepção original”. O
declínio da aura, assim, foi impulsionado pela paixão das massas modernas em “fazer as
coisas ficarem mais próximas” pela sua reprodutibilidade. Mas isso ainda não nos diz muito.
Comentando essa quebra com o elo original, Rochlitz (2003) aponta que a aura em
Benjamin, niilista, sempre está associada à destruição e ao declínio. Destruir, porém, é
desmascarar, desnudar a “falsa aparência”, é ser bárbaro. “À medida que a idéia de uma
autonomia da arte está ligada, para Benjamin, à aura mágica e religiosa, ela não tem mais
razão de ser e apresenta, doravante, um caráter puramente ilusório”. (id., ib., p.219). É preciso
redimir na ruína toda realidade falsa e ilusória. A obra de arte pode ser ruína, na atualidade, de
pluralidade de significações. Esse papel de escavação da obra cabe a mais uma disposição em
descontinuar o curso da história: a do crítico.
Para o crítico da obra de arte, o passado deve ser capturado em função de sua
atualidade, de sua plurivocidade. Assim como o passado é aberto para o historiador dialético,
deve ser também a obra para o crítico. O caráter autônomo de cada uma não pode ser reduzido
ao mero documento sócio-histórico do que houve no passado. Sua autonomia está também em
ser ruína (e paralelamente não-ruína) de algo que não houve, de ficções, de concretizações em
aberto, de alternativas à realidade. A obra é ruína de “algo não havido”, por isso, inconsciente.
Em Rua de mão única, Benjamin (1995) define alguns direcionamentos do crítico,
reunidos no que nomeou de A técnica do crítico em treze teses. A terceira “tese” diz que o
crítico “não tem nada a ver com o intérprete de épocas artísticas passadas” (id., ib., p.32). Ou
seja, seu interesse é no resgate do passado da obra que repercute em presentes posteriores e
não a interpretação do passado circunscrito na época artística. Criticar é apreender o passado
da obra no diálogo com a atualidade do próprio crítico e, nesse diálogo, perceber o “rosto” de
uma época que o autor faz presente. Benjamin acrescenta na oitava “tese” que “a posteridade
esquece ou celebra. Só o crítico julga no rosto do autor” (id., ib., p.32).
A celebração de determinadas obras, movimentos artísticos, em detrimento do
esquecimento de outras, demonstra um problema que se dá na relação da história com a arte.
O que denominamos de “história da arte” só nos mostra a concretização de períodos em que
artistas-autores celebrados se inserem na lógica do tempo linear. Contudo, o crítico, como
Benjamin aponta acima, julga a obra na sua inter-relação contemporânea com o artista, seu
47
tempo, seu “rosto”. Essa inter-relação se estabelece ao passo que o crítico considera a
obra/autor como autônoma, ruína.
Na visão crítica, o passado precisa ser melhor compreendido pois nele já se aninhava o
presente. Aí está a astúcia de sua atividade: atentar para a existência do presente no passado.
Essa tarefa está diretamente ligada à ressurreição. Quando lembramos a análise que Benjamin
faz da obra de Baudelaire e, até mesmo, do próprio Baudelaire em relação a de Constantin
Guys (o pintor da vida moderna), temos, em ambos, exemplos dessa atuação crítica. Ambos
apreendem a fisionomia de uma época nas obras ao mesmo tempo em que elas. É o exercício
de ver uma “historiografia inconsciente” nas obras, como coloca Kothe (1976). É o exame
duplo da obra: tanto como fenômeno social, quanto como mônada. Isso implica em “decifrar
o pacto fugaz” entre as forças contraditórias da obra (passado e presente) no intuito de
capturar, atualizar essas forças como em um sonho.
O estudo da obra “deve ser (...) o mover-se na tensão entre estas duas posições. A
‘intemporalidade’ da obra de arte, como a ‘intemporalidade’ do inconsciente, é
transtemporalidade” (id., ib., p.46). Assim, cabe ao crítico transpor dimensões temporais,
desnudar passados para prever futuros, combinar passado, presente e futuro. Contida nessa
relação temporal do crítico, está seu esforço em contrastar utopia e realidade da obra de arte
que, em outras palavras, é ver a alegoria presente na ruína. Daí surge a correspondência entre
a obra de arte/ruína/alegoria e a história. A obra é ruína alegórica que testemunha o sido e o
não-sido da história, uma vez que documenta um passado concretizado e aponta, ao mesmo
tempo, para o que poderia ter sido e não foi (o sonho).
***
48
FIGURA 5: Série Vermelha - Rosângela Rennó FIGURA 6: Série Vermelha –Rosângela Rennó
(2000) (2000)
Nessas imagens, Rosângela Rennó não nos oferece claramente, à primeira impressão,
os sujeitos fotografados. Encobertos pela cor vermelha, os retratados só se tornam mais
visíveis ao nos aproximarmos mais das imagens. Como é característico da artista, os
documentos fotográficos são manipulados de forma a fabricar um outro contexto para as
pessoas retratadas. A cor foi um dos artifícios usados para envolver as fotografias com outra
atmosfera, não existente nos originais. Há um jogo entre o visível e o invisível.
Composta por imagens digitais realizadas a partir de originais do século XX obtidos
em álbuns de famílias e negativos de vidro, com pessoas vestidas de militares, a Série
Vermelha (Fig.5 e Fig.6) encobre a identidade dos fotografados como um véu. Rennó, com
essas pessoas anônimas – no caso das duas imagens, crianças -, traz à tona certa opacidade à
normatividade dos militares. Quando olhamos cada imagem, precisamos ultrapassar uma
barreira. O véu vermelho nos convida a olhar além do opaco.
49
***
Também como ruína alegórica pode ser vista a própria história enquanto detrito da
possibilidade concretizada (consciente) e índice do que não se concretizou (inconsciente). A
aparência e as ocultações do passado, dessa forma, são decisivas para o trabalho do
50
Passagens é o alvo desse pensamento dialético, alegórico, crítico. Essa obra é uma
imensa coleção de notas e citações em que, Benjamin, num empenho surrealista, agarra-se
compulsivamente aos detritos da sociedade. Como colecionador, ele se assemelha ao
“trapeiro”, que encontra nos dejetos, nos objetos ignorados, o tesouro de sua obra. Ele os
resignifica, transforma-os em matéria de seu conhecimento, faz com que contenham uma
outra história que a sociedade da época não nos contou. Na coleção, é montada uma nova
“totalidade” cujos fragmentos, introduzidos em novo contexto, libertam-se de sua função
originária. Revela-se para nós um novo “rosto” de uma época.
Há, nessa intenção do colecionador, o empenho de escrever a história como mônada,
em que os “detritos” revelam toda uma época, assim como o microcosmo contém e espelha o
macrocosmo. Nas palavras de Benjamin (id., ib., p. 241): “colecionadores são fisiognomistas
do mundo das coisas”. Assim, dos autores célebres aos anônimos, a obra-coleção das
Passagens reúne, em pé de igualdade, citações dos mais diversos tipos para que o todo
comunique a fisionomia das coisas e do tempo. Cada fragmento é selecionado com a atenção
51
de um trapeiro que, não podendo recolher todos os cacos, preocupa-se com que cada um,
eleito, contenha o todo.
Junto ao colecionador-trapeiro, dessa forma, avizinha-se o historiador e o alegorista,
assim como o próprio crítico. Comenta Marcio Selligmann-Silva (1999, p.185): “O
colecionador/historiador/alegorista quer salvar na sua arca8 (...) o máximo possível de ruínas
da enchente/tempestade chamada progresso/fascismo”. Nesse gesto, de salvar as coisas de seu
destino ignóbil, o colecionador dá um novo salto no céu da história. Daí entendermos que,
para a ruína, ainda há história por ser escrita, uma história inconsciente, a ser revelada. Sob
sua máscara mortuária, está o indício de sua redenção, do seu futuro a ser libertado.
Somemos às disposições em deter o curso da história, então, a do crítico e a do
colecionador, que fazem das ruínas caminho de conhecimento. Ao interpretar as obras de arte
ou ao recolher os cacos no presente, eles rejuvenescem o tempo, desconstroem a ordem
causal. As ruínas desafiam a dimensão espacial com o caos das lembranças (o sido, o ainda, o
não-sido). São vestígios invisíveis, melancolia que sorri.
Olgária Matos (1998, p.83) assim caracteriza o “instante único” das ruínas:
As ruínas contrariam o devir abstrato do tempo, compensando a sistemática
tripartição – antes, durante, depois – pela dinâmica pas encore (ainda não) e
jamais plus (nunca mais). (...) Instante único, elas atestam um tempo antes
do qual nada foi consumado e depois do qual tudo está perdido.
8
O autor se refere à “arca construída segundo um modelo judeu”. As Passagens seria essa enorme “arca”.
52
Esse confronto só poderia ser um momento do confronto entre arte e técnica, realizado pela
história” (id., ib., p.717).
Benjamin, em sua Pequena história da fotografia, ao comentar o frágil conceito
antitécnico e fetichista de arte que a nova técnica instaurou, enfatiza o vazio que se deu no
longo debate dos teóricos da fotografia que se ocuparam em abominá-la sem chegarem a
nenhum lugar. Julgaram-na sob o mesmo pilar que ela havia destruído. O fato de a fotografia
estar ligada, diretamente, à representação do real por um meio mecânico foi um dos motivos
que a fizeram tomar muito do espaço destinado à pintura. Os pintores que tomavam a
realidade como paradigma para suas obras, logo perceberam que, por mais detalhistas que
fossem, não iriam ser tão verossímeis quanto a reprodução que uma imagem fotográfica
prontamente alcançaria.
Os primeiros clichês, placas expostas na camera obscura, eram como joias, peças
únicas. Por volta de 1840, os álbuns de família marcavam o glamour que os retratos de
homens influentes faziam questão de possuir. Hill, famoso retratista da época que utilizava a
fotografia como auxílio à pintura, teve seu nome transmitido à história pelo uso das
fotografias e não pelo seu mérito de pintor. A pintura já conhecia esses retratos. Então, para
Benjamin (1994a), interessa mais pensar a introdução da nova técnica a partir de imagens de
pessoas anônimas, que a história do primeiro decênio pré-industrial da fotografia ainda não
havia mostrado. Imagens essas que não se dirigem ao gênio do autor. Nelas, existe uma
magia, “algo de estranho e novo”.
A “magia” estranha que os rostos anônimos passaram a revelar está na possibilidade
de neles ser desvendado o “inconsciente ótico” do que é alvo da câmera. Isso quer dizer que,
além de um planejamento acurado do fotógrafo ao produzir sua imagem, resta uma “pequena
centelha do acaso” em um “lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em
minutos únicos, há muito extintos” (id., ib., p.94). É neste lugar descoberto “olhando para
trás” que o observador buscará fixar-se. É o despertar de imagens adormecidas, ocultas no
acaso que chamuscou a imagem apreendida pelo fotógrafo - sem que ele tenha planejado.
Esses retratos, na visão profética de Benjamin, atestam que “a técnica mais exata pode dar às
suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós” (id, ib. p.94).
***
53
Em Les suisses morts, temos vários rostos participando da instalação. Idosos, jovens,
criança, lado a lado, compõem um mural fisionômico. As expressões faciais se diversificam.
E inevitavelmente, pelo título da obra, associamos a morte a todos esses rostos. “Os suíços
mortos” dirigem ao espectador, ainda que com expressões descontraídas e singulares, uma
indagação: qual foi a nossa história? Qual nossa individualidade? O anonimato das fotografias
nos questiona acerca de suas particularidades.
“Os suíços mortos” são pessoas humanas, cotidianamente esquecidas, e que, pelo
trabalho de Christian Boltanski, vêm novamente à tona, em uma outra construção.
Percebemos, inclusive, como ele trabalha a disposição das imagens para compor sua obra -
compilando as expressões e iluminando-as, ocultando e revelando-as. Faces fadadas ao
esquecimento, entretanto, como obra, inverte-se sua banalidade em significância, em
imaginação.
54
Esses rostos não se tratam das primeiras fotografias, como coloca Benjamin quando
expõe sobre o caráter mágico das primeiras pessoas fotografadas. Boltanski coletou esses
semblantes de obituários de um jornal suíço e, eliminando dessas imagens qualquer tipo de
identificação, os sentidos para elas são reelaborados. O deslocamento de um contexto
midiático para um contexto artístico retira desses “mortos” informações sobre a vida de cada
um. Isso faz com que suas vidas sejam imaginadas por quem os vê. É recorrente em Boltanski
trabalhar com os temas da morte e do anonimato de forma a devolver um despertar às
imagens. Nisso, identificamos um empenho benjaminiano. Do acaso que chamuscou as
fotografias em um dado momento passado, vem à tona um futuro não previsto.
E por que mortos suíços? Qual seria a diferença deles? Boltanski responde que:
“porque os suíços não têm razão de morrer, em todo caso não por razões históricas” 9. O
artista, assim, aponta para uma morte que independe de país, raça, religião. Morte que
independe de guerra ou identidade. Por razões históricas ou não, muitas pessoas comuns
morrem e são esquecidas. A obra também acena para o grande número de judeus mortos,
durante a segunda guerra, dizimados por “razões históricas”. Inclusive, Boltanski é de família
judaica e dedica vários de seus trabalhos à memória do Holocausto.
O artista faz questão de mexer na amnésia das imagens e, consequentemente, naquela
de quem vê. Os indivíduos esquecidos, sem identidade, transformam-se em matéria
incorpórea, pois não mais são os do jornal suíço nem os possíveis judeus dizimados. Eles são
a própria ausência de um tempo que os identifica. Se resta alguma individualidade para os
rostos apresentados, ela não está no lugar de onde vieram, no contexto em que viveram, nem
no veículo midiático em que foram publicadas suas imagens. O que Boltanski sublinha com
esse trabalho é a humanidade que se desprende das barreiras cronológicas e historicistas.
***
9
Tradução livre de “parce que les Suisses n'ont pas de raison de mourir, en tous cas pas de raisons historiques”.
Disponível em: <http://www.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-boltanski/ENS-boltanski.htm>.
55
fração de segundo”. Percebemos na imagem congelada aquilo que não perceberíamos sem ela
(graças às suas possibilidades de ampliação, controle de tempo). Esse é seu “inconsciente
ótico”.
Mas ao mesmo tempo a fotografia revela nesse material os aspectos
fisionômicos, mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas,
suficientemente ocultas e significativas para encontrarem um refúgio nos
sonhos diurnos, e que agora, tornando-se grande e formuláveis, mostram que
a diferença entre a técnica e a magia é uma variável totalmente histórica (id.,
ib., p.94-95).
Cabe aqui resgatar o porquê dessa variável histórica. Como expomos anteriormente, o
historiador dá fisionomia às épocas e, para isso, atenta para os resíduos ignorados pelo curso
contínuo do tempo. Ao articular uma nova construção histórica, ele dá relevo, significado, a
fenômenos que o passado da historiografia tradicional oculta. Nesse sentido, Benjamin
percebe a força mágica ou “messiânica” que a fotografia pode trazer à tona. Essa força
inconsciente, onírica, habita o minúsculo que a técnica mais exata apreende em “instantes
únicos”. Não foi por acaso que sua atenção se voltou para os rostos anônimos. Eles eram
ruínas. Ruínas da história, do tempo instantâneo moderno e progressivo que a fotografia
passou a representar com o advento das técnicas de reprodução. O que Benjamin percebe e
quer reforçar são os acenos, as centelhas de um futuro que relampeja nas imagens, a presença
do antigo no novo.
“As primeiras pessoas reproduzidas entravam nas fotos sem que nada se soubesse
sobre sua vida passada, sem nenhum texto escrito que as identificasse” (id., ib., p.95). Os
jornais e revistas ainda não faziam dessas fotografias seu instrumento. Esses rostos não
tinham contato com a vivência dos choques urbanos, não carregavam consigo informações
dadas da atualidade, estabelecidas por quem se interessa pela venda de notícia. O olhar
repousava no silêncio que rodeava o rosto humano. Silêncio este, possível pelo
distanciamento, pela falta de vínculo da fotografia com os eventos e burburinhos da
atualidade da época. Nesses primeiros retratos, a fraca sensibilidade para fixar a imagem
exigia um tempo longo de exposição e imobilidade do modelo. Nelas, a expressão humana
tinha tempo para crescer dentro do momento da fotografia.
Como crítico, na busca das melhores obras que falem de forma autônoma sobre o sido
e o não-sido da história, Benjamin via nos rostos anônimos captados por Hill uma suspensão
do tempo. Neles, resvalava um tempo persistente, durável, que impregnava a imagem em que
o modelo vivia dentro do instante, devido à longa duração de sua pose. Esse tempo persistente
56
e, por assim dizer, mais durável das fotografias, evocava no observador uma impressão
também mais duradoura, diferente do instantâneo10. Estaria nessa impressão mais durável,
também, a fisionomia da época.
Tudo nessas primeiras imagens era organizado para durar; não só os grupos
incomparáveis formados quando as pessoas se reuniam, e cujo
desaparecimento talvez seja um dos sintomas mais precisos do que ocorreu
na sociedade na segunda metade do século, mas as próprias dobras de um
vestuário, nessas imagens, duram mais tempo (id., ib., p.96).
O que se mostra nessas imagens duradouras está também no que nelas se prenuncia da
época. Benjamin aponta, nessa passagem, o desaparecimento do senso comunitário, coletivo,
ou seja, a morte da experiência na segunda metade do século XIX que se anunciava. É como
se essas imagens nos comunicassem um apelo, para que se olhe para elas à procura do
“rosto” do tempo. Estaria abrigada nos rostos fotografados a faísca do acaso, escondida no
pequeno detalhe, que persiste, mesmo na dobra de um vestuário. Há neles algo de definitivo,
não datado, feito para ficar.
O invisível, escondido no continuum entre o claro e o escuro, ou entre a luz e a
sombra, era, vale ressaltar, fruto da convergência entre objeto e técnica, que foi tão completa
nesses primórdios quanto sua dissociação, no momento de decadência. O “equivalente
técnico” das primeiras fotografias as distinguia claramente dos instantâneos, pelo já citado
longo tempo de exposição, assim como a técnica do mezzo tinto, “uma florescência única”
advinda da pintura. “O mesmo pode se dizer do condicionamento técnico do fenômeno
aurático” (id., ib., p.99). Fotógrafos, a partir de 1880, esforçaram-se em “criar uma ilusão de
aura” e, para isso, utilizaram os mais diversos recursos, dentre os quais se destacou o retoque
por off-set. Caiu na moda um “tom crepuscular”, artificial, que “apesar dessa penumbra,
distinguia-se com clareza crescente uma pose cuja rigidez traía a impotência daquela geração
em face do progresso técnico” (id., ib., p.99).
No retrato de Kafka criança, Benjamin reforça essa ligação dos fotógrafos ao
“simulacro”. Os álbuns de família burgueses da época eram produzidos por ateliês que, com
cenários de palmeiras, colunas de mármore, tapeçarias, submetiam os modelos a uma
torturante representação diante da câmera. Vestido com uma roupa sufocante, adornada com
rendas, segurando um grande chapéu do tipo espanhol na mão esquerda, sob um fundo com
palmeiras tropicais imóveis, Kafka quase desaparece na fotografia se não fosse seu olhar triste
10
Benjamin opõe a durabilidade das primeiras fotografias ao instantâneo, que se trata das fotografias modernas.
O instantâneo era tirado em uma “fração de segundo”.
57
que domina a cena. “Em sua tristeza, esse retrato contrasta com as primeiras fotografias, em
que os homens ainda não lançavam no mundo, como o jovem Kafka, um olhar desolado e
perdido” (id., ib., p.98).
Retirar a máscara, desnudar a verdadeira face impotente dessa época. Na fotografia,
poucos o fizeram como Atget11, segundo Benjamin. Fotógrafo que vendia suas fotos por
alguns cêntimos, e anônimo até a descoberta quase póstuma de seu material por Berenice
Abbot. Viveu em Paris na sombra de sua modéstia por volta de 1900. Suas fotos, contudo,
alcançaram o que ele não imaginara. Sendo precursoras da fotografia surrealista, elas foram
mestres em sugar a aura da realidade. Buscaram “desinfetar a atmosfera sufocante” dos
retratos convencionais burgueses, na época do seu declínio. Atget purifica essa atmosfera ao
começar a livrar o objeto de sua aura. Mérito que a escola moderna surrealista conseguiu
movimentar.
Quando o surrealismo se anunciou nas fotografias de Atget, segundo Benjamin, a aura
da realidade foi suprimida. As imagens surrealistas buscaram registrar coisas perdidas,
transviadas, obsoletas. A fotografia, como mero exercício do retrato convencional, dava lugar
a outro olhar, que divergiu da visão romântica e majestosa. É como se vê nas imagens de
Atget, que descobre esses motivos primeiramente. Nelas, a cidade se encontra esvaziada.
Ruas, pátios, cafés e parques estão na atmosfera do silêncio, da solidão. Atget, como um
trapeiro que recolhe os resíduos de Paris na sua “arca”, “(...) não negligenciou uma grande fila
de formas de sapateiro, nem os pátios de Paris, onde da manhã à noite se enfileiram carrinhos
de mão, nem as mesas com os pratos sujos ainda não retirados, como existem aos milhares, na
mesma hora (...)” (id., ib., p. 102). Contudo, a maioria das fotos é vazia.
A fotografia surrealista extingue aquela representação burguesa – tão bem paga e
cultuada no gênero do retrato representativo -, preparando “uma saudável alienação do
homem com relação ao seu mundo ambiente” e libertando “para o olhar politicamente
educado o espaço em que toda intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores (id., ib., p.
102)”. Nas obras dos surrealistas, é exercitado o poder transformador da fotografia. Insere-se
o homem no mundo à sua ausência. A energia revolucionária passa a ser percebida nas coisas
banais e obsoletas do cotidiano da época, nas primeiras fábricas e construções de ferro, nos
objetos fadados ao desuso, nas ruínas modernas.
11
Só por volta de 1930, Camille Recht publica um volume com uma seleção das mais de quatro mil fotografias
de Atget recolhidas por Berenice Abbot.
58
***
Como um trapeiro em busca de imagens com as quais pudesse ganhar alguns trocados,
Atget se destacou por utilizar a fotografia como possibilidade de sobrevivência. Em troca de
alguns trocados, vendia suas imagens a artistas. Flagrava cenas mundanas de Paris, dentre as
quais poucas são as que aparecem pessoas. Aquelas que aparecem são personagens comuns,
como o músico de rua, a prostituta e esse da foto, o trapeiro. Coletando os restos, os destroços
da burguesia francesa, tanto o trapeiro, quanto o fotógrafo são personagens alegóricos nessa
tarefa. Veem nas ruínas caminhos.
Quando fotografou pessoas, o interesse de Atget se direcionava aos anônimos, aos
personagens marginais, que se dedicavam a pequenos ofícios – como os comércios de rua, por
exemplo. Assim, por mais que as ruas e parques parisienses vazios tenham marcado sua
produção, vale lembrar que o trapeiro da fotografia muito personifica seu modo de registrar a
cidade. Diferenciando-se do gênero burguês do retrato, as pessoas fotografadas não estão em
59
cenários artificiais, especialmente produzidos para o momento da fotografia. Ainda que haja
certa preparação ou pose do retratado, Atget o fotografa em plena rua, sem grandes recursos
de produção.
Até 1900, o fotógrafo se interessou por registrar pequenos ofícios (petits-métiers).
Cada pequeno ofício – ou cada pequeno trabalhador - era registrado de forma a mostrar a
roupa, mercadorias, equipamentos ou, mesmo, uma postura de servilismo (SZARKOWSKI,
2003). O trabalhador da fotografia (Fig. 8) é mostrado dessa forma. Puxando seu carro de mão
repleto de sacos, vestido de forma humilde e com uma inclinação servil, ele aparece parado
para o clique do fotógrafo. Mesmo que esteja posando para a câmera, há no semblante do
personagem certa seriedade no olhar, de entrega não tão amigável.
Tipos como o trapeiro retratam bem os habitantes de uma Paris além do salão burguês.
Os retratistas que se dedicavam a servir a burguesia não tinham interesse nesse gênero de
habitante. Aliás, se as famílias abastadas eram fotografadas por poderem pagar um retratista,
este não se envolveria com um humilde personagem de rua, que luta para sobreviver com o
pouco que ganha. É nesse momento que o próprio Atget se confunde com esses personagens
mundanos. Por muito tempo, a fotografia foi a atividade que lhe rendeu algum dinheiro. Não
servia a uma burguesia abastada, mas a artistas e ilustradores que precisavam das suas
imagens.
O trapeiro, que recolhe o tecido sujo do mundo, é um personagem-ruína que, no raiar
do século XX, é soterrado pelo crescimento da burguesia industrial capitalista. Os pequenos
ofícios se viram ignorados por um crescente comércio fabril. De uma individualização
comercial, passou-se às fábricas, à industrialização. A produção em série assustou não só os
pequenos trabalhadores, mas o próprio Atget, que viu a transição de um modo tradicional de
comércio para as lojas de departamento. A serialização dos produtos, ainda que ofensiva para
o fotógrafo, ressoou nas suas imagens. (ver Fig.9).
Sendo testemunha das mudanças sociais, políticas e econômicas do início do século, o
fotógrafo coletou imagens que bem condensam as ruínas que deixaram o século anterior. Não
é por acaso que os temas de suas fotografias mudam, já que ele precisa acompanhar o novo
contexto capitalista industrial das vitrines de produtos. Vitrines estas em que os inanimados
manequins ganham vida pela transitoriedade das mercadorias.
60
***
E o rosto humano? Teria ele um outro valor para a fotografia na modernidade? Como
essa ruína foi retrabalhada? Sem consistir mais no retrato, foi dada uma nova significação ao
rosto pelo fotógrafo alemão August Sander. Benjamin comenta que Sander construiu uma
“galeria fisionômica” do povo alemão. Reuniu rostos de diferentes camadas sociais, desde
camponeses a membros da alta sociedade, em uma rica variação, alcunhada por alguns da
época de “científica”. Entretanto, a atualidade desse trabalho se dá na sua função social de
retirar das imagens os “traços fisionômicos” de nós próprios. É este exercício atemporal,
independente de raça ou credo, de olhar nos outros nós mesmos e vice-versa que Benjamin
(1994a, p. 103) enfatiza:
Sob o efeito dos deslocamentos de poder, como os que estão hoje iminentes,
aperfeiçoar e tornar mais exato o processo de captar traços fisionômicos
pode converter-se numa necessidade vital. (...) A obra de Sander é mais que
um livro de imagens, é um atlas, no qual podemos exercitar-nos.
61
Ver o “semelhante” em nós mesmos. Não se trata mais da aura artística, o “algo único
e distante”. Mas de uma nova experiência, que não limita a fotografia ao seu status de arte.
Perceber, de forma inversa, a “arte como fotografia” é reconhecer a sua contribuição decisiva
para a experiência humana. Nossa percepção das grandes obras se modifica com o
aprimoramento das técnicas de reprodução. Essas obras não são mais frutos de um só
indivíduo; “(...) elas se transformaram em criações coletivas tão possantes que precisamos
diminuí-las para que nos apoderemos delas” (id., ib., p. 104). Por isso, a fotografia, assim
como as demais formas reprodutivas, constitui uma “técnica de miniaturização”, pela qual o
homem mantém certo domínio sobre as obras e sem o qual as obras ficariam inutilizadas.
Miniaturizar as obras por meio das técnicas, segundo Benjamin, acaba por desligá-las
do culto. Foi neste aspecto que muitos dos teóricos se prenderam ao abordarem a fotografia.
No entanto, decorrente da percepção fotográfica do mundo, passamos a acompanhar a
mudança na própria natureza da arte, que parece mais dependente da técnica do que nunca
antes se tinha dado conta. Torna-se ainda mais desafiante assumir o papel do crítico, já que
numa época em que as obras chegam ao público pela reprodução, tanto a fotografia quanto o
cinema passam a ser dificilmente isentos de propagação das ideias políticas, ideológicas e de
estímulos ao consumo. A ênfase dada ao cinema no ensaio A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica confirma essa capacidade do “aparelho” de mobilizar as massas, já
que a exibição fílmica demanda do espectador uma “atenção aguda” ao movimento da
imagem. Em outras palavras, o cinema também altera a estrutura do sistema perceptivo
daquele que incorpora a câmera, suas acelerações, seus ângulos, suas interrupções e
miniaturizações.
“Se a fotografia se libera de certos contextos, obrigatórios para um Sander, uma
Germaine Krull, um Blossfeldt, se ela se emancipa de todo interesse fisionômico, político e
científico, ela é considerada ‘criadora’” (id., ib., p. 105). Benjamin contrapõe a fotografia
criadora à construtiva e diz que ser criador é “uma forma de ceder à moda”. Sua crítica fala da
necessidade de desnudar a técnica de seu invólucro capitalista, progressivo, de trazê-la para
um diálogo construtivo. Libertar a fotografia das amarras de um discurso fetichizado,
comercial (“fotografia como arte”) é separá-la de interesses institucionais, panfletários. É
preciso, então, ultrapassar essa “criatividade” fotográfica aliada à venda e fabricar, construir
algo. Se a “criatividade” está associada à venda, menos serve ao conhecimento. A
62
Podemos compreender Breton como um dos primeiros a enxergar a beleza das ruínas
do seu tempo. Ele desvenda a nova e, ao mesmo tempo, “antiquada” Paris, presente nos seus
personagens, objetos e desejos mundanos. Daí a luz “profana” que toca a construção de
Nadja. Nesse registro escrito – para não denominarmos “romance”, já que o próprio autor o
combatia -, a fotografia é um dos artifícios decisivos. São instantâneos que saltam ao leitor: de
personagens, objetos, espaços etc. Eles compõem a diversidade da narrativa que parece
ganhar forma psíquica, permeada de encontros insólitos. Breton parece querer tecer, com
imagens, a relação de objetos cotidianos com o mundo interior. Estimula-nos a despertar
sonhando.
Está na vida, no cotidiano iluminado o espaço da ótica dialética. As suas energias
revolucionárias e profanas se transformam em “inervações do corpo coletivo”. O mérito dos
surrealistas esteve em reacender essa força. A força no despertar dos fragmentos fadados ao
63
astrólogos é, várias vezes, colocado por Benjamin por resguardar duas dimensões preciosas da
significação da palavra leitura: a profana e a mágica.
O colegial lê o abecedário, e o astrólogo, o futuro contido nas estrelas. No
primeiro exemplo, o ato de ler não se desdobra em dois componentes. O
mesmo não ocorre no segundo caso, que torna manifestos os dois estratos da
leitura: o astrólogo lê no céu a posição dos astros e lê ao mesmo tempo,
nessa posição, o futuro ou o destino (id., ib., p.112).
Essa força primitiva vinda dos astros haveria migrado paulatinamente para a
linguagem e para escrita, nas quais as semelhanças extra-sensíveis são ativadas não mais de
forma direta como ocorre ao vidente, mas como medium12, na receptividade nomeadora das
coisas. A velocidade rítmica da leitura e da escrita na percepção das semelhanças é
instantânea. Elas são clics que “irrompem do fluxo das coisas, transitoriamente, para
desaparecerem logo em seguida” (id., ib., p. 112-113). A partir dessa analogia ao clic do
fotógrafo é que Lissovsky (1998) comenta a ligação da fotografia com a história em
Benjamin. Cremos ser bastante construtiva essa reflexão para entendermos a fotografia como
“imagem dialética” e também, para posteriormente, relacionarmos mais de perto fotografia à
ruína.
Lissovsky diz que, em Benjamin, o “uso das imagens” assume uma dimensão
transcendental. O filósofo se dedica a
(...) tomar a fotografia como modelo da “imagem dialética”, do “isolamento
inalienável” da idéia do pensamento. Por intermédio da fotografia, será
possível pensar a apropriação da história em sua forma; a apreensão do
passado, no acontecimento, no “instante em que é reconhecido”
(LISSOVSKY, 1998, p.22).
12
Sobre essa concepção de medium, relembrar o que expomos no tópico 1.1.
65
punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte. O Punctum de
uma foto é esse acaso que nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)” (id., ib.,
p.46). Não citaremos os exemplos de punctum que o autor cita durante a obra a partir de
algumas fotografias. Portanto cabe destacar que o que punge o observador em determinada
fotografia é um detalhe, um objeto parcial.
***
13
Disponível em: <http://www.rosangelarenno.com.br/bibliografia/en>. Acesso em: 30 set. 2009.
69
***
Ora, esse estalo que uma fotografia me proporciona, e outra não, detém-me, como uma
ferida: “vejo, sinto, portanto noto, olho e penso” (BARTHES, 1980, p.46). Esse corte, essa
picada, não pertence à objetividade da câmera, mas ao espectador, à sua subjetividade. Diante
da foto do Jardim de Inverno (foto de sua mãe), Barthes se deixa levar pelos sentimentos e
lembranças, mas reitera que esse campo aberto e não-codificado só se manifesta dada a
presença do referente, constituinte do “isso foi”.
Na fotografia a presença da coisa jamais é metafórica. A imobilidade da foto
é como o resultado de uma confusão perversa entre dois conceitos: O Real e
o Vivo: ao atestar que o objeto foi real, ela induz sub-repticiamente a
acreditar que ele está vivo, por causa desse logro que nos faz atribuir ao Real
um valor absolutamente superior, como que eterno. Mas ao deportar esse
real para o passado ela sugere que esse real está morto (id., ib., p.118).
pedaço, uma sobra do que já passou e persiste) e a morte/vida (pois estamos falando de uma
aniquilação do tempo, mas também de sua persistência em parte). Para permear esses três
motivos, parece-nos inevitável um mergulho na categoria sígnica do índice, proveniente das
teorias de Charles Sanders Peirce, que foi abordada e discutida por Philippe Dubois (2009).
Está vinculado à noção de índice, a propósito, um dos discursos apontados pelo autor, que é o
da fotografia como traço de um real. Embora esse discurso trate também da questão do
realismo, a mimese não é mais central. O traço nos dá a ideia de marca, vestígio,
incompletude. E por ele ser originário de um real – notemos aqui a ênfase no artigo singular -,
é um traço particular, único, determinado exclusivamente por seu referente - o real que
queima a imagem e não mais se repetirá.
Índice é “representação por contiguidade física do signo com seu referente” (DUBOIS,
2009, P.45). Ele se distingue do ícone e do símbolo (outras duas categorias) por ser o primeiro
uma “representação por semelhança” e do segundo por ser uma “representação por convenção
geral”. Ambos (ícone e símbolo) são representações mentais, não possuem ligação física com
o referente. A fotografia, por ser uma emanação, uma impressão do objeto, caracteriza-se
como índice. Nessa categoria, estaria a fumaça – índice do fogo, a ruína – “traço do que havia
ali”. O denominador comum a esses exemplos é serem signos afetados por seus objetos. Sem
se demorar em detalhar o exemplo da ruína como índice, mas sim, na fotografia, Dubois
reforça que sendo a foto uma impressão luminosa, não quer dizer que ela, necessariamente,
tenha que passar por um aparelho, nem que se pareça com o objeto que lhe deu origem. Para
essa distinção, ele fala do fotograma, que é uma imagem obtida pelo decalque direto do objeto
exposto à luz em papel sensível, sem passar por um aparelho fotográfico e sem, praticamente,
possuir semelhança com o referente – dada a falta de clareza nos contornos de luz e sombra.
Prevalece apenas o princípio do traço. Traço esse de um momento único – o de inscrição na
imagem.
Vemos que Dubois quer resguardar a fotografia do discurso da mimese e da gênese
automática. Para isso, recorre a Peirce e os princípios que interessam a um recorte, a um traço
de realidade próprio à fotografia. Do índice, ele retira as premissas de uma pragmática da
fotografia (fazendo questão de opor à semântica). Não interessa o sentido atribuído à imagem
(“isso quer dizer aquilo”), mas a existência do que ela representa. “Como índice, a imagem
fotográfica não teria outra semântica que não sua própria pragmática” (id., ib., p.52). Não
vemos mal em revisitar os princípios indiciários apontados pelo autor, já que muito
71
contribuem para um melhor entendimento dos três motivos (apontados por nós) que sustentam
a fotografia como ruína.
A condição de índice da imagem fotográfica implica, caso quisermos
sintetizar nesse ponto as aquisições de Peirce, que a relação que os signos
indiciais mantêm com seu objeto referencial seja sempre marcada por um
princípio quádruplo, de conexão física, de singularidade, de designação e de
atestação. (id. ib., p.51).
14
François Soulages diz que a fotografia digital é uma imagem da imagem e não mais uma imagem da realidade.
“A ruptura com o real é infinitamente maior com a imagem numérica, que pode tornar-se totalmente autônoma –
se modificamos a matriz numérica - em relação ao real que lhe deu origem, passando da esfera que em algum
72
“prova” física se evanesce com a lógica numérica dos sistemas digitais – temos inúmeros
“originais” e “cópias”.
A matriz física, entretanto, é, por assim dizer, um testemunho de presença única,
quando pensada enquanto índice. E a essa afirmação se relaciona também ao princípio da
atestação. A foto, traço de um real, é atestado desse real. “Enquanto índice, a fotografia é por
natureza um testemunho irrefutável da existência de certas realidades” (id., ib., p.74). Ruínas
também indicam a existência de que algo havia ali. Mesmo em uma implicação mais genérica,
partimos da noção de que ruínas e fotografias atestam a existência de um momento pregresso.
O noema barthesiano do “isso foi” enfatiza essa relação de testemunho de um momento
passado-ruína. O que vejo na fotografia já aconteceu. Fotos são, elas mesmas, ruínas.
Designam a existência do que foi e do que é.
Dessa indicação característica do signo indiciário, Dubois ressalta o princípio de
designação. Voltando ainda a Barthes, fotos sinalizam, apontam com o dedo. “Uma fotografia
sempre se encontra no extremo desse gesto [dêitico]; ela diz: isso é isso, é tal! mas não diz
nada mais” (BARTHES, 1980, p.14). Contudo, indicar, mostrar, são atribuições de qualquer
signo indiciário. O que difere, ao pensarmos na fotografia, é que ela é índice que para com o
“isso foi” (existência), ou seja, não vai além com o “isso quer dizer” (sentido). Além disso,
Dubois reforça que o instante de “puro ato-traço”, de impressão do referente, é ínfimo em
relação a todo o processo fotográfico e que “convém libertar bem o signo fotográfico desse
fantasma de uma fusão com o real” (DUBOIS, 2009, p.87).
No esforço de apartar o índice fotográfico de uma “totalidade” com o real, em que
objeto e representação se transformam em um só, Dubois se dedica a argumentar a distância
espaço-temporal, o abismo inerente ao dispositivo fotográfico. Espacialmente, essa distância
se manifesta no próprio ato do fotógrafo (ele precisa se distanciar do objeto para capturá-lo
com a câmera) e também na separação que advém pelo aqui do signo e o ali do referente
(“veja, nós que estamos aqui com você olhando essa imagem, fomos até lá”). Até na extrema
proximidade do fotograma, em que objeto e representação se tocam fisicamente, o signo não é
a coisa; há uma distância entre visível e intocável. “O referente que nos sidera é de fato o
intocável da imagem fotográfica, mesmo que a última emane fisicamente do primeiro.
lugar tratava de uma lógica fotográfica para uma lógica puramente numérica na qual encontram-se também as
imagens calculadas realizadas sem nenhuma relação com um real já existente, de um real do qual teríamos como
que apreendido em vôo uma imagem pelo viés do cálculo (...)” (SOULAGES, 2008, p. 83-84).
73
Obrigatoriamente, qualquer chapa só mostra em seu lugar uma ausência existencial. O que se
olha na película jamais está ali”. (id., ib., p. 88).
Lembremos o nosso primeiro motivo de abordagem da fotografia como ruína:
presença/ausência. O signo ruína implica, necessariamente, em presença do objeto – pois o
próprio signo é resto dele. A ausência, porém, não é existencial, já que a ruína pode ser um
vestígio físico do que ali havia antes. Mencionamos em outro momento que é na relação
temporal que a presença/ausência figura como característica da fotografia como ruína, uma
vez que o instante de emanação do objeto é vestígio na imagem. E, seguindo esse raciocínio, é
na incompletude temporal e em uma não totalidade da realidade é que podemos falar em
fotografia-ruína. Ora, percebemos, com isso, que nos debruçarmos sobre o tempo é
fundamental para compreender melhor essa temática.
Temporalmente, a distância fotográfica também se manifesta. Há uma decalagem
temporal entre o momento em que a imagem é captada e o momento em que a vejo.
“Qualquer foto só nos mostra por princípio o passado, seja este mais próximo ou distante”
(id., ib., p.89). Vale reiterar que, em qualquer situação, a ruína também aponta para o passado.
Faz parte dela, enquanto signo, dirigir-se a um tempo anterior – antes de sua constituição.
Ruínas arquitetônicas, por exemplo, são indícios de uma construção anteriormente em estado
íntegro. O motivo da incompletude, já citado, associa-se claramente à distância – de um antes
conservado e o seu depois arruinado.
Na fotografia, o desaparecimento do objeto real na imagem reforça o princípio da
distância, assim como coloca em cheque o motivo da presença/ausência. Presença da foto,
ausência do referente. “(...) no próprio instante em que é tirada a fotografia, o objeto
desaparece. (...) Só lhe resta a foto, frágil, incerta, quase estranha. É a foto que literalmente
vai se tornar sua lembrança, substituir a ausência” (id., ib., p.90). Assim surge a foto, de um
instante ao modelo do mito de Orfeu, que morre ao ver Eurídice. Nos Infernos, ele desmaia no
exato momento em que a reconhece.
Ainda que pareça oportuno passar, aqui, a abordar o terceiro motivo – morte/vida, é
interessante ainda pensarmos acerca da natureza do índice ruína e sua relação com a
fotografia. Devemos mencionar a breve distinção que o próprio Dubois faz especificamente
dos dois signos (dedica apenas uma página para diferenciá-los). O substrato dessa distinção
cremos estar neste trecho:
(...) esse critério de distância no espaço e no tempo permite assinalar a
diferença de condição desses dois tipos de índice que são a foto e a ruína. Se
74
Dessa relação que o autor nos coloca, podemos observar que o aspecto de
contiguidade física intrínseco ao índice ruína não permite que ele se separe espacialmente do
seu referente. Inclusive, também falamos sobre isso quando nos reportamos à incompletude.
A ruína não só representa o seu objeto anterior. Ela é parte dele ainda que em outro estado de
integridade material. O que tentaremos desenvolver no outro capítulo parte justamente desse
caráter físico que se sobressai na ruína e não na fotografia. Entretanto, supomos que ao nos
debruçarmos sobre elas – as ruínas –, especificamente, iremos contribuir para pensarmos com
mais afinco sobre a temática, ao levantarmos questões de ordem não apenas semiótica.
Resta-nos, por ora, abordar um pouco mais a questão do passado, já que a fotografia
como ruína levanta esse aspecto. Sabemos que advém da fotografia enquanto rastro, vestígio,
um lapso temporal. Essa brecha no tempo, pelo que já expomos, acontece no próprio processo
de fixação da imagem. Por ser uma imagem que congela uma cena e, com isso, detém um
instante, ela coloca em jogo o desejo pela própria conservação temporal. Sabemos que o
tempo flui. Quando nos remetemos a fotografias como vestígios, elas se colocam como
paradas, cortes nesse vir-a-ser. Do mito de Orfeu, vamos ao de Medusa: aquele que a olha é
petrificado em estátua por seu olhar.
A partir da íntima relação com o passado, é que a imagem fotográfica também
mortifica. Agora falamos do nosso terceiro motivo: morte/vida. Na fotografia, eu morro como
referente para me fazer nascer em imagem. E não só isso: pela imagem, tenho o tempo detido,
fixado para guardá-lo, embalsamá-lo. A relação do morto com o vivo foi discutida por
Barthes e dele citamos, no início do texto, a confusão que existe entre o vivo e o próprio real,
uma vez que a presença do referente faz crer que, quando apreendido, é eterno. O autor
também problematiza uma “microexperiência da morte” ao falar da pose no retrato: “não sou
nem um sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto (...) torno-
me verdadeiramente espectro” (BARTHES, 1980, p.29). Desse transformar-se em espectro,
transformo-me em ruína.
75
mundo”. Por um lado, a impregnação do real na fotografia. Por outro, a sua possibilidade de
brincar com o mundo em cuts. É nesse segundo aspecto que nos aprofundaremos. Lembrando
que nossa abordagem benjaminiana da fotografia está imbricada à visão do autor sobre a
história, é imprescindível que atentemos ao que faz da fotografia um objeto que favorece a
descontinuidade. Aqui, faremos uma abordagem que ainda se relaciona ao motivo da
incompletude, mas que não se encerra na sua particularidade indicial. Pois se trata de pensar a
experiência fenomênica da fotografia como fundamento à teoria de Benjamin do
acontecimento histórico. E, para isso, precisamos ir do corte à instabilidade das imagens.
***
Trazemos aqui essa imagem de Eugène Atget para sublinhar o que nela há de vestígio
instável do tempo. O fotógrafo, nessa época, ainda se dedicava a realizar registros para o
77
álbum “Paris pitoresca, pequenos ofícios” (Paris pittoresque, petits métiers). Inclusive,
produzir imagens das ruas tipológicas de Paris tornou-se um hábito entre artistas. E Atget, já
que fornecia imagens para a inspiração deles, não podia ausentar-se dessa tarefa. Personagens
diversos foram capturados por sua câmera de forma a compor um rico álbum. Dentre eles,
músicos de rua, como o da imagem anterior (Fig. 11).
A fotografia foi realizada em uma dessas ruas da cidade em que transitavam os
pequenos comerciantes. Contudo, o que se retratou foi uma jovem cantora e seu parceiro,
responsável pelo instrumento musical, o barrel organ15, transportado no carrinho
(SZARKOWSKI, 2003). Esse clique, além de registrar uma cena “pitoresca”, dá lugar a certa
vitalidade da imagem, uma vez que a personagem foi congelada no ápice de uma ação. A
pequena cantora, de braços e sorriso abertos, olhando para o alto, destaca-se no quadro. Seu
semblante se diferencia nitidamente da seriedade do seu parceiro, que lança um olhar
intimidador e direto para a câmera.
Os personagens desse fragmento fotográfico, além de se posicionarem de forma
distinta no enquadramento, rompem com a frontalidade dos rostos tão exercitada por Atget
nos seus retratos. Ao recorrermos à ideia de corte fotográfico, essa imagem deixa vestígios de
que foi paralisada no tempo. É como se Atget tivesse flagrado esse momento no seu
desenrolar, sem que tenha havido uma preparação do instante, mas um flagra dele. A ação da
cantora, como congelada numa fração de segundo de uma duração, é uma fatia do tempo.
Outro fator que colabora para o destaque desse instantâneo é a expressão feliz da
pequena cantora. Segundo Szarkowski (ib.), contrariando a falta de “riso” na obra de Atget, a
jovem e seu semblante radiante nos levam a crer que, mesmo não sendo uma famosa cantora,
é uma profissional do entretenimento e, tal como seu sorriso radiante, não evidencia uma
inautenticidade ordinária. Assim, esse instantâneo fala de um tempo descontinuado, tanto pela
captura de um instante do desenrolar da ação, quanto pela ruptura que esse fragmento consiste
nos retratos de Atget.
É desse instante paralisado a uma instabilidade presente na imagem a trajetória que
enfatizamos nessa fotografia. Um instante – tomado no seu acontecimento – deixa rastros do
seu antes e seu depois, ainda que se desenvolvam imaginativamente. É um instante que se
move na sua instabilidade, no jogo entre o congelamento e o movimento. Por ter sido a
15
O barrel organ se trata de um grande instrumento que toca música mediante o acionamento de uma manivela.
Costumava ser utilizado para entreter as pessoas na rua.
78
***
na linearidade temporal, ruínas se amontoam aos nossos pés. Há uma passagem da totalidade
aos fragmentos.
Sobre esse momento de perigo, mineralizado pelo olhar de Medusa do historiador,
apreendemos uma importante ligação entre a fotografia e a história em Benjamin: o signo do
clic. Mauricio Lissovsky (1998), mencionado no capítulo anterior, desenvolve, com especial
atenção, essa relação:
O historiador e o fotógrafo são ambos regidos pelo signo do tigre – o totem
interruptor, o animal sagrado do clic. No salto do tigre sobre a presa, o
acontecimento é imobilizado, ‘cristaliza-se como mônada’: ‘uma
configuração saturada de tensões (...) Benjamin persegue no ‘objeto
histórico’ o ‘sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos’.
Também o disparo do fotógrafo pertence à ordem das interrupções: ‘A
máquina comunicava ao instante, por assim dizer, um choc póstumo’.
(LISSOVSKY, 1998, p. 23).
O que Sontag afirma sobre a instantaneidade do passado por meio da fotografia atrela
a imagem ao espelho do real. E isso corrobora para o desenrolar de uma narrativa imagética
irreversível, já que são instantes “fixos para sempre” e, por assim dizer, irrevogáveis. É nesse
aspecto que Benjamin faz questão de diferir suas “imagens”. A imagem do passado que
ocorre ao historiador se dá em um instante específico – o “agora” da cognoscibilidade -, como
no momento de um clic. Contudo, esse clic se dá por congelamento apenas por uma fração de
segundo, uma centelha. Ele paralisa para reconhecer tanto as ruínas como suas possibilidades
de redenção. É essa fixação do instante que impele o passado ao futuro.
Para termos essa compreensão, porém, além de exigir um mergulho na natureza
dialética do pensamento benjaminiano, que nos coube fazer no capítulo anterior, também foi
preciso recorrer, em contrapartida, nesse capítulo, à própria natureza fotográfica que os
teóricos da fotografia já citados nos descrevem – principalmente, Dubois. Na sua terceira
reflexão sobre o corte fotográfico, a imobilidade é mais uma vez anunciada como própria à
fotografia. No que ele chama de “a flecha partida ou o pensamento descontínuo”, afirma que o
movimento da flecha só existe em ilusão, já que é pelas diferentes posições que o objeto
ocupa, a cada instante, no espaço, que somamos momentos de imobilidade em uma ideia de
movimento. Assim, “(...) em cada fragmento do tempo, por mais infinitesimal e até teórico
que seja, a flecha está fixa. Jamais se pode dizer estritamente aqui-agora que está se
mexendo” (DUBOIS, 2009, p.165-166).
O instante fotográfico, para que lhe seja definida uma fixação ou imobilidade
característica, é recorrentemente comparado ou mesmo acompanhado da ideia de movimento.
Nas três reflexões de Dubois sobre o corte (“detenção da memória”, “estátua” e “flecha
partida ou pensamento descontínuo”), a circuncisão do instante está imbricada a um tipo de
congelamento ou parada do acontecimento. O próprio autor, inclusive, afirma que nessas suas
reflexões sobre o corte, a noção de instante não é definida de maneira simples.
Toda a relação do ato fotográfico com a temporalidade vai começar a atuar
aqui em sua extrema complexidade, e veremos que a noção de instante
(único, pontual etc.), tantas vezes dada como consubstancial à própria idéia
que se tem do ato fotográfico, é de fato uma noção menos evidente e menos
simples do que parece, em particular porque não exclui nem uma certa
relação com a duração, nem a existência de uma grande mobilidade interior.
O instante fotográfico é um instante eminentemente paradoxal (id., ib.,
p.166).
16
Denis Roche é o fotógrafo que insistiu na repetição do ato de tomada. Para ele, a fotografia se distingue de
outras artes por reclamar essa repetição imediata do instantâneo.
84
17
Na série especial de documentários intitulada Contacts, fotógrafos renomados mostram como funciona o
processo de produção e escolha das fotos. Cartier-Bresson, depois de ver a cópia contato de seus negativos,
circula aquelas que deverão ser ampliadas. O fato mostra como, dentre vários instantâneos em sequência, apenas
um é eleito como “apogeu”.
85
expressão desse “inconsciente”. A percepção, também, diante do muito rápido era outra, com
as possibilidades fotográficas (congelamento, ampliação etc) e cinematográficas (close,
câmera lenta, dentre outros). O próprio filósofo, ao esboçar seu pensamento, mostra como
estava regido pelo signo do clic.
Cada tecnologia da imagem, diz Lissovsky (ib., p.21), carrega uma visualidade que lhe
é própria, “estabelecendo não apenas as condições do que é visível, mas, sobretudo, do
invisível que lhe é correlato”. Em uma sociedade onde a experiência declina, a fotografia
passa a ser sua conquista. O pensamento benjaminiano estava baseado nesse paradoxo de
visibilidade e invisibilidade. Assim,
a recuperação dessa experiência tanto em Benjamin como em Proust, é
dependente da “participação do instante” - isto é, dá-se em um instante
particular, destacado de uma série supostamente homogênea, e no qual toda
a temporalidade está implicada. É uma prerrogativa do instante fazer da
convergência entre passado e futuro um salto em direção ao “tempo perdido”
(id., ib., p.20).
18
Sob a ótica do aspecto, Lissovsky analisa o conjunto de fotografias modernas não só de Bresson, mas também
de Diane Arbus, Sebastião Salgado e August Sander.
87
E ainda que essa atividade não garanta “eternidade” ao tempo registrado, pelo menos, deixa
rastros para ativar lembranças. Ao nos referirmos ao termo “memória” e sua relação com a
fotografia, muitos desdobramentos são sugeridos. Contudo, é comum percebermos a
proximidade que o próprio ato de registrar tem com o tempo passado (interrompido) e,
paralelamente, ao tempo presente, que corre. É disso que iremos nos ocupar nesse primeiro
momento.
A memória se liga à fotografia, para autores como Laura Flores (2005, p.139), pela
própria condição indicial dela advinda. Trazendo algo do passado ao presente da percepção
visual, ela se constitui como imagem-rastro evanescente. “Ambas, fotografía y memoria,
tienen como objetivo principal almacenar algún tipo de esencia inmaterial, instantánea y
volátil”. Tanto a percepção como a imagem só existem como instantes frágeis. Uma vez
materializada, a fotografia funciona como “equivalente físico e mental” da memória. Não foi
à toa que o uso de imagens fotográficas como forma de “documentar” o passado, no século
XIX, foi também uma forma de mantê-lo presente.
Caracterizadas como “voláteis”, fugidias, fotografia e memória, embora preservem
algo do passado, são meios por quais as lembranças tomam forma de rastro. Vamos perceber
essa analogia ao longo do texto. Entretanto, sem descrever uma “equivalência” entre os dois
termos, Benjamin ressalta a noção de memória como “meio” e não “instrumento” de
aproximação com o passado. Em seu texto Escavando e recordando, faz questão de sublinhar
que
(...) a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes,
o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no
qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do
próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava
(BENJAMIN, 1995, p.239).
“como ele de fato foi”. “Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja
no momento de um perigo”.
Recordar, então, é lidar com rastros de um tempo sobre o qual não conheço em
integridade. A memória como meio de perscrutação do passado lida com as obscuridades de
um terreno repleto de “achados”, ruínas. Por tudo que já falamos acerca da noção de índice
em fotografia e na ruína, estabelecemos um paralelo, aqui, com a memória como meio. Meio,
segundo Benjamin, onde se investiga os resquícios de tempo passado. Ou seja, mais do que
encontrar uma exatidão dos acontecimentos passados, as lembranças informam, revelam seus
destroços que até hoje ressoam. A “verdadeira lembrança” deve, ao mesmo tempo, “fornecer
uma imagem daquele que se lembra” e indicar as camadas que “foram atravessadas
anteriormente”.
Desse raciocínio, identificamos na memória do escavador algumas semelhanças com a
atividade da memória em Bergson. Como que acionando “camadas”, a memória, no entender
bergsoniano, atualiza-se nas virtualidades do objeto. Ela está sempre presente e em
reconstrução constante, uma vez que a própria percepção transcorre diferentes níveis. As
camadas da memória, desse modo, rondam em torno do objeto percebido. Assim, “essa
memória, que sua elasticidade permite dilatar indefinidamente, reflete sobre o objeto um
número crescente de coisas sugeridas – ora os detalhes do próprio objeto, ora detalhes
concomitantes capazes de ajudar a esclarecê-lo” (BERGSON, 2006, p.119).
Agindo por expansão, a memória não é estanque. Unindo, e assumindo os riscos dessa
ponte bergson-benjaminiana, a tarefa da memória oscila conforme o sujeito, que potencializa
os desdobramentos daquele objeto, e o próprio objeto, que sugere detalhes ao sujeito,
ajudando a esclarecê-lo. Considerando a fotografia como esse possível objeto, chegamos a
uma consideração importante: como alvo de uma reconstrução constante da memória, meio de
esclarecer o passado, ela sugere informações sobre esse passado, contudo, somada à
atualidade do próprio sujeito que a investiga. Pela memória, escavadora de camadas, a
fotografia, ainda que imagem interrompida pelo golpe temporal, é objeto em crescente estado
de atualização.
Exemplifiquemos com a lembrança de Barthes (1984) ao olhar a imagem de sua mãe.
Diante da foto do Jardim de Inverno, ele se deixa levar pelos sentimentos e lembranças,
percorrendo um campo aberto que não se limita ao código fotográfico, mas se expande e se
atualiza ao revisitar a imagem. O sentimento do autor, ao ver a fotografia, é descrito como
89
uma aparição na memória, uma lembrança involuntária, viva e completa. Por meio da foto,
assim como Proust, Barthes se deixou levar pelos tempos memoráveis, reminiscentes. Tempos
esses não explícitos na fotografia em si, mas evocados no acontecimento lembrado, que tece
seu próprio caminho, do presente para o antes e o depois.
Ainda que saibamos que Barthes identifica na foto uma presença incontestável do
referente, já passado, a sua atividade mnemônica, no momento da lembrança, desvenda
camadas outrora encobertas. É como se a fotografia fosse a ponta de um iceberg que esconde
muitos porvires. Da premissa barthesiana do “isso foi”, desprende-se, pela memória, um
instante instável. Entretanto, esse desprendimento acontece conforme a tarefa do escavador.
Barthes, ainda que reconheça na atualidade da lembrança uma “aparição na memória”,
designa nessa experiência “o real no estado passado”. Um atestado da presença e não das
virtualidades dele ressonantes.
É dessa relação testemunhal com o real que Kossoy (1999) fala do documento
fotográfico como memória. Da aparência do referente, desdobram-se realidades além da
exterior, mais explícita. As outras faces do documento não podem ser vistas. “É o outro lado
do espelho”. Da constatação, detecta-se o oculto, pois nem tudo está ali. A realidade interior
da imagem perturba a imobilidade fotográfica. Em um trabalho mental de reconstituição,
mergulhamos no conteúdo da foto, tentando articular as circunstâncias que envolveram a
situação documentada. Visitamos o passado ao rememorá-lo. Isso, para Kossoy (ib., p.132)
implica no processo de criar realidades. “Fotografia é Memória e com ela se confunde. O
estatuto de recorte espacial/interrupção temporal da fotografia se vê rompido na mente do
receptor em função da visibilidade e ‘verismo’ dos conteúdos fotográficos”.
A reconstituição oriunda da ruptura do estatuto do recorte, para o autor, pode ser
dirigida tanto à articulação histórica quanto à recordação pessoal. Um aspecto interessante
apontado aqui é que, a partir da ideia de corte defendida por Dubois, tem-se, no ato da criação
de realidades para o documento, não a característica do congelamento, mas do seu contrário.
“Na tentativa de ‘descongelarmos’ o documento poderemos, talvez, devolver aos cenários e
personagens sua anima, ainda que seja por um instante” (id., ib., p.135). Esse instante, em que
a fotografia ganha vida imaginativamente, é dedicado a explorar o oculto do documento.
Possível instante-escavação.
Benjamin, como sabemos, em suas teses, dirige-se a uma história fragmentária,
descontínua. E, a cargo do historiador, está a tarefa de desconfiança do passado, da sua
90
verdade. Desconfiar do documento histórico, inclusive, foi uma das tarefas que fizeram de
Michel Foucault um marco dentre os pensadores no século XX. Ele se destacou por trabalhar
a noção de descontinuidade histórica e também por perceber como os corpus documentais
com os quais trabalhava apresentavam regularidades e rupturas discursivas. Esse novo tipo de
história – a arqueologia – dedica-se a explorar não apenas as práticas de um discurso único,
mas todas aquelas que nele se apoiam. O empenho é de questionar o documento quanto à sua
verdade, chegando a tratá-lo como mentira. Logo mais abordaremos essa dualidade
verdade/mentira no documento.
O caráter de presença/ausência que parte da ligação da fotografia com o passado é
recorrente, principalmente, sob a imagem do rastro, do vestígio. Vimos que o documento, ao
mesmo tempo em que certifica uma presença, também o faz com a ausência. Sendo a
memória o meio pelo qual o passado ganha vida, fazendo da sua realidade também uma
ficção, sua atividade requer uma exploração dos rastros do tempo. Na visão da história
benjaminiana, não podemos conhecer o passado com exatidão, mas apenas o articularmos.
Não temos acesso a uma totalidade dele, uma vez que só cintila em um instante de perigo.
Fotografia, memória e história se entrelaçam nesse momento visionário. Momento-ruína.
A noção de rastro é complexa por unir uma presença do ausente e a ausência da
presença. Falamos dessa relação indicial que tanto ruína quanto fotografia carrega.
Encontramos no texto da filósofa e professora Jeanne Gagnegin (1998, p.218), Verdade e
memória do passado, um questionamento fundamental: “por que a reflexão sobre a memória
utiliza tão frequentemente a imagem – o conceito – de rastro?”. Movida por essa indagação, a
autora identifica uma fragilidade essencial que essa imagem traz para nós.
(...)a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do
presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do
passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente.
Riqueza da memória, certamente, mas também fragilidade da memória e do
rastro. Podemos também observar que o conceito de rastro rege igualmente
todo o campo metafórico e semântico da escrita, de Platão a Derrida (id., ib.,
p.218).
Está na escrita a característica de assinalar a ausência das coisas e, por isso, sua
analogia ao rastro. Contudo, a autora, nessa passagem, faz questão de frisar o aspecto frágil
que o conceito estabelece. Ele nos dá consciência do quanto a fragilidade percorre a memória.
Mais uma vez recorremos a Benjamin quando diz que o passado relampeja perigosamente. É
o perigo de uma irrupção em “um presente evanescente”, fugaz. Contrariando o desejo de
91
plenitude e presença, o rastro e sua fragilidade essencial faz da tarefa do historiador uma luta
contra o esquecimento e a mentira, “sem cair em uma definição dogmática de verdade”. Nas
palavras de Gagnegin (ib., p.218), “o rastro inscreve a lembrança de uma presença que não
existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente”.
O historiador é desafiado a não se entregar a essa fragilidade. Lutar contra o
esquecimento e a mentira, é escavar as camadas desse passado, não deixando de “despertar os
mortos” no presente. Ao entrelaçar-se com a história, a memória assume essa “frágil força
messiânica” presente na visão relampejante do passado. Por ser evanescente, ou seja, por
poder aparecer e desaparecer em apenas um instante, essa fragilidade do rastro é complexa.
No rastro, eu vejo e lembro. Contudo, se eu não o vejo, o que significa? Aí está um nó. A
ausência do rastro também significa.
Seria mentira o extermínio de pessoas na segunda guerra, por exemplo, pela escassez
de arquivos dos campos de concentração? Sabemos que esses “documentos” foram destruídos
com a intenção também de aniquilar a expressão da história e da memória de um povo inteiro.
Qualquer rastro de existência dele, para Hitler, deveria ser destruído e, em consequência,
apagaríamos sua existência também da memória. É manter atual a lembrança do esquecimento
um dos principais desafios do historiador. Essa tarefa, para Gagnebin, é “sem glória”, uma
vez que se trata de “transmitir o inenarrável”, manter acesa a memória dos anônimos, lembrar
que o “inesquecível existe”, mesmo que não se possa descrevê-lo.
***
mostrar e ocultar é também sobre o que fala Benjamin (1984, p.198), em sua visão alegórica
da imagem. “Na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza
simbólica se evapora (...) o falso brilho de totalidade se extingue”.
Reconstituir totalmente as lembranças não é uma tarefa que cabe à fotografia nem ao
artista. Entretanto, ambos atuam na escavação das camadas da memória do passado. Ao trazer
à tona a inconclusão dos acontecimentos, a ausência de testemunhas do Holocausto, a
fragilidade da lembrança, Reserve Canada e Reliquaire lançam luz à sombra sobre a qual
persiste um fato histórico. A partir dos fragmentos, mostram que as recordações dos sujeitos
mortos, ali representados pelas fotografias e vestimentas, não são reconstituíveis, mas essa
impossibilidade convoca a persistir acesa a existência do inenarrável.
***
94
Tagg enfatiza que a noção de prova “documental” associada à fotografia está envolta
de um aparato social, mais do que do seu vínculo existencial, condicionado pelo índice.
Afirma que o problema da evidência fotográfica é histórico e não apenas proveniente de um
“feito natural”. Ou seja, é um resultado da história o discurso da fotografia enquanto prova.
Não é à toa que ele relaciona as técnicas de representação e regulação social do século XIX
(vigilância, arquivos de penitenciárias, manicômios) ao reconhecimento da fotografia como
instrumento de “prova” oficial das instituições. Arquivos fotográficos foram montados nessa
época com o intuito de guardar “evidências” em investigações judiciais. Só posteriormente,
em um contexto capitalista, segundo o autor, é que o “documental” se sobressaiu como
discurso, quando a imediatez e a verdade19 tiveram no meio fotográfico um lugar privilegiado.
19
O autor se refere ao um momento de crise (social, econômica e identitária) vivido na Europa Ocidental e nos
Estados Unidos que teve como resposta o discurso documental de “expor os fatos”, a “experiência de primeira
mão”.
95
Se, nesse esforço de “provar”, “evidenciar” fatos, a imagem fotográfica é usada pelo
corpo social, ela também é, dizemos, manipulável, construída. Kossoy (1999, p.134) nos fala
dessa construção em outro momento: a fotografia cria realidades; “é uma representação
elaborada cultural/estética/tecnicamente”. Essas realidades da fotografia fazem com que sua
“essência” puramente técnica e tida como “neutra”, que garante um estatuto de “verdade”,
seja questionada. “Sempre houve um condicionamento quanto à ‘certeza’ de a fotografia ser
uma prova irrefutável de verdade”. (id., ib., p. 133).
Retomemos o duplo verdade/mentira do documento no que concerne à sua
apresentação do passado. Não é apenas a existência documental que garante a apreensão da
verdade. Precisamos, também, levar em consideração a ausência como forma de compreender
essa “vontade de verdade”. A noção de rastro ligada à memória, ao mesmo tempo em que nos
coloca diante de uma “evidência” mutilada do passado, liga-se ao seu correlato, a “ocultação”.
Nessa perspectiva é que, mais uma vez, citamos a memória como meio para o
escavador/historiador/arqueólogo e, também, para aquele que investiga o passado com base
em fotografias. O documento deve ser questionado como a quem interroga um criminoso que
mente.
***
Difícil falar de criação de realidades para o documento fotográfico sem citar a Série
Vulgo de Rosângela Rennó. Isso acontece porque, nessa série, são utilizadas fotografias
pertencidas originalmente ao Arquivo do setor de Psiquiatria e Criminologia da Penitenciária
do Estado de São Paulo, e concedidas à artista para a execução da obra. As fotografias foram
feitas e arquivadas pelo citado setor com o propósito de identificar os prisioneiros por
número, características físicas, cicatrizes, dentre outras marcas. Quando deslocadas de seu
contexto original, as imagens são esteticamente reelaboradas.
Esse arquivo penitenciário e seus objetivos de identificação dos detentos põem em
evidência o discurso da fotografia enquanto prova. Como forma de vincular às imagens o
estatuto de documento-verdade, a penitenciária também está, de certa forma, carregando-as de
intencionalidade. Rennó não faz nada mais do que evidenciar esse jogo de intenções que
existe na elaboração dos documentos. Trazendo as imagens para o campo artístico, em que o
peso de “verdade” diminui, ela põe em discussão possibilidades criadas para as imagens de
arquivo. Ou seja, ela se apropria do rastro documental para dele elaborar uma ficção para os
retratados.
Sabemos que o documento não é capaz de dar conta da totalidade da realidade. Eles
são parciais, são rastros. Rennó não nega essa característica. Expôs as fotografias em grande
tamanho, de maneira que até mesmo as manchas originais das imagens fossem ampliadas
(manchas pretas nas bordas e no topo da cabeça do detento). Contudo, acrescenta-lhes, além
da enorme dimensão, outro tipo de sinal, que, de alguma forma, individualiza cada indivíduo
e não os padroniza.
A artista selecionou fotografias que contivessem marcas distintas no couro cabeludo
dos detentos e, nelas, acrescentou uma sutil cor vermelha, como podemos observar na
imagem (Fig.14). Essa intervenção na materialidade documental diverge da padronização com
que foram realizadas as fotografias: mesmo enquadramento, mesma posição e vestimentas. As
fronteiras visuais do registro documental criminal, dessa forma, são diluídas para que, no
campo artístico, possam não carregar apenas um discurso anteriormente estabelecido.
O documento joga com aparências e ocultações. E quando se trata de imagem
fotográfica, suas camadas podem ser trabalhadas de diversas formas, como acontece no caso
da Série Vulgo. A maleabilidade documental acompanha o processo histórico, e, ainda no
século XIX, ela estava a serviço das intenções de instituições que regulavam o corpo social.
97
Na arte, pois, os usos do documento ultrapassam essa dimensão reguladora e ganham uma
dimensão estética. O documento, visivelmente, é manipulável e passível de críticas, seja pelo
historiador ou pelo artista.
É essa intenção de dar anima ao documento que podemos experimentar ao ver a
fotografia da Série Vulgo, de Rosângela Rennó. Deslocada de seu contexto “original” –
arquivos de penitenciárias –, a imagem passa a abrir para nós o seu lado oculto. Manipulando
os documentos – selecionando-os, ampliando-os e editando-os -, a artista cria uma outra
versão deles. Ela demole sua função de “verismo” e de congelamento do passado. O código
fotográfico é retrabalhado no intuito de escavar suas camadas, suas outras narrativas. Rennó
trata o documento como uma mentira.
***
20
Faz-se referência a Maurice Halbwachs que, em seu livro A Memória Coletiva (2006), diz ser a memória
resultante da ligação a um grupo. Carregamos lembranças conosco ao termos experiências em grupo. Com isso,
só existe memória individual em relação à memória coletiva.
21
Do latim, monuetum se dirige à raiz indo-européia men, que exprime uma função primordial do espírito
(mens), a memória (meminí). Monere quer dizer “fazer recordar”, “iluminar”, “instruir”. Monumentum é sinal do
passado (LE GOFF, 1990).
100
e a história na postura do historiador, mesmo que seja para um aguçamento de sua crítica? Por
mais que se estabeleçam as diferenças, ambas vêm à tona quando o assunto é a exploração do
passado.
Nora afirma que, pelo viés da memória, impunha-se o “culto à continuidade”, a
“necessidade do sagrado”. O futuro era previsível, uma vez que era “projeção do presente”. Já
na abordagem descontinuísta da nova história, em que passado, presente e futuro entram em
uma outra dinâmica, chegamos “a um passado que vivemos como rompimento; de uma
história que era procurada na continuidade de uma memória a uma memória que se projeta na
descontinuidade de uma história” (NORA, 1993, p.19). Novamente próximas, história e
memória mudam de estatuto, ainda sendo ressaltada a projeção de uma sobre a outra. Não
mais história-monumento, mas história pela crítica dos documentos/monumentos.
Cabe, aqui, esclarecer, para além das comparações entre história e memória, que
adotamos a concepção de memória como meio de perscrutar o passado e, também, de
atualizar as camadas do objeto percebido (já mencionada via Benjamin e Bergson). Fizemos
isso porque essa concepção atinge de forma mais completa o objeto fotografia e suas
implicações com a noção de rastro e a memória, que, como expõe Gagnebin, lida com a
presença e ausência, o presente e o passado; dialética fundamental às imagens benjaminianas.
Na tarefa “crítico-destruidora” dos historiadores Le Goff, Foucault e Nora, pudemos
enxergar outros duplos presentes nas relações documento/monumento e história/memória:
aparência/ocultação, verdade/mentira e lembrança/esquecimento. Se esses duplos são
apontados é porque está em jogo sempre uma dinâmica, que não se limita a apenas um dos
estados. A percepção da fotografia como ruína passa por esses duplos, por essa instabilidade.
Mostrando e ocultando, questionando a verdade e a mentira, fazendo lembrar e esquecer. Eis
o golpe, eis a brecha da imagem, eis sua demolição, eis a passagem.
***
101
Diz o artista: “interesso-me pelo que chamei de A pequena memória, uma memória
afetiva, um saber cotidiano, o contrário da grande memória preservada nos livros”22
(BOLTANSKI, 1998). As “pequenas memórias” trabalhadas nas imagens de Boltanski não se
dirigem ao tempo homogêneo da história tradicional. Elas são fragmentos no chão da grande
memória lembrada. Monuments, ao iluminar esses rastros “pequenos de memória”, entretanto,
apontam para a ausência de recordação das ruínas deixadas no curso linear histórico, ou seja,
os pequenos saberes esquecidos. O duplo lembrança/esquecimento se desdobra de forma
enfática na obra de Boltanski. Não se trata de uma “monumentalização” de documentos, de
uma memorização do passado, mas de uma quebra dele em vários pequenos pedaços.
Além do duplo lembrança/esquecimento, podemos dizer que Boltanski chama atenção
para a verdade/mentira dos documentos. Quem garante que o nosso passado foi tal e qual
narram os livros? De outro lado, onde estão os testemunhos das “pequenas memórias”? Como
na discussão sobre o caráter da verdade fotográfica dos documentos, há, sobre isso, uma
certeza: qualquer documento deve ser olhado com desconfiança, pois ele está intencionado a
mostrar e a esconder. Se as “pequenas memórias” permanecem alheias a muitos de nós, isso é
fruto de uma intencionalidade que vem sendo transmitida de geração a geração: a
intencionalidade dos vencedores.
É interessante como o artista materializa o tema da ausência: seja de testemunhos, de
humanidade ou de lembranças. Os retratos aparentam quase desaparecer não fosse a luz que é
colocada sobre ele. E ainda iluminados, os rostos não são mostrados com inteira clareza.
Estão no limiar entre a presença e a ausência, entre o aparecer e o desaparecer. Vemos nesses
aspectos relações com a dialética das imagens benjaminianas. Os rostos estão entre o sonho e
o acordar. Quando nos esforçamos para identificá-los, eles parecem fugir, escapar de um
reconhecimento. Essa fuga presente em Monuments também reforça um caráter instável das
imagens, como a própria “centelha” benjaminiana.
A obra de Boltanski é fotográfica ainda que não se utilize apenas de fotografias. As
questões trazidas concernem à própria natureza fotográfica, que vai da transparência à
ocultação, da presença à ausência. Jogando com esses estados, o artista persiste na tarefa de
atuar na fragilidade da “pequena memória”, já que ela, de tão quebradiça, pode desaparecer.
22
Tradução livre de: “Je m'intéresse à ce que j'ai appelé La petite mémoire, une mémoire affective, un savoir
quotidien, le contraire de la grande mémoire préservée dans les livres”.
103
“Essa pequena memória, que forma para mim nossa singularidade, é extremamente frágil, e
desaparece com a morte”23 (id., ib.).
***
23
Tradução livre de: “Cette petite mémoire, qui forme pour moi notre singularité, est extrêmement fragile, et elle
disparaît avec la mort”.
24
O título da conferência em questão era: Viagem ao país das imagens: a instabilidade das fotografias e suas
propriedades combinatórias.
104
imagens de arquivo, ele responde: elas esperam. E, claro, aguardam por sua “desmontagem”,
seu desvelamento.
Lissovsky mostrou diversas fotografias de arquivo pelas quais demonstra que o
arquivo tem lacunas: “eles não falam do que foi, mas balbuciam o que poderia ter sido”. Em
menção a Benjamin, o conferencista enfatiza essa relação do futuro com o pretérito. Ele diz
que o “futuro habita as imagens”. Como o ovo em seu ninho, o futuro está aninhado nelas.
Fica claro o apelo benjaminiano dessa relação. Em Pequena história da fotografia, sublinha
que na imagem há um “lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos
únicos, há muito extintos” (BENJAMIN, 1994. p.94).
A descontinuidade histórica reflete diretamente na noção de tempo benjaminiana. O
tempo histórico é incompleto. Não é dado em totalidade. Já ressaltamos esse motivo de
ligação entre fotografia e ruína. Ambas se apresentam incompletas, são rastros. Porém, o lugar
em que o futuro se instala na imagem é “imperceptível”, não se dá explicitamente, mas ainda
está lá. Lissovsky (2003, p.144), em um texto específico sobre o tempo na fotografia
moderna, fala que foi a maneira como “aceitando o tempo como o invisível da imagem
fotográfica, permitiu que ele a atravessasse de múltiplas maneiras. Aceitando o desafio de
exprimir a ausência do tempo, a fotografia moderna percorreu seus mais belos caminhos”. O
autor se debruça sobre as produções de Sebastião Salgado, Cartier Bresson, Diane Arbus e
Auguste Sander para expressar o modo como o tempo que se ausenta atravessa as imagens
desses fotógrafos.
A invisibilidade está inerente à fotografia, assim como o seu correlato. É mais um
duplo do qual participa a fotografia como ruína. Esse lugar invisível, “em que o futuro se
aninha ainda hoje em minutos únicos”, deixa vestígios nas imagens. Contudo, uma maneira de
enxergar esses vestígios, ou seja, compreender o que significam, é ao dar mobilidade ao
instante capturado, ao colocá-lo em uma duração (LISSOVSKY, 2003, 2008), e, claro, tendo
conhecimento de como o fotógrafo trabalhava para essa captura. Destacaremos aqui a
fotógrafa americana Diane Arbus, no intuito de demonstrar essa ação do instante.
Recorreremos, para isso, às informações que Susan Sontag nos dá sobre o trabalho da
fotógrafa.
Em vez de tentar persuadir seus temas a se pôr numa atitude natural ou
típica, ela os incentivava a ficar constrangidos – ou seja, a posar. (...) O que
torna tão impressionante o emprego da pose frontal em Arbus é que seus
temas são, não raro, pessoas que não esperaríamos que se oferecessem tão
gentilmente e tão ingenuamente para a câmera. Assim, nas fotos de Arbus, a
105
25
Diferencia-se, por exemplo, segundo o autor, de Sebastião Salgado, no qual o instante devém por construção,
acúmulo.
106
Até aqui, nossa abordagem da fotografia como ruína seguiu a trilha do que na imagem
implica em ausência e presença, em traço, vestígio. Desde as considerações históricas às
formulações próprias do campo fotográfico, vimos que a descontinuidade do tempo se
impregna na imagem. Quando abordamos a memória, inclusive, a própria ausência de
vestígios é significativa, já que implica em não fazer lembrar. Por último, pudemos ver que a
duração é também da ordem do ausente. E deixa na imagem seu vestígio (nomeado por
Lissovsky de aspecto). De todas as maneiras, vendo-a de fora como suporte, mergulhando em
seu interior, pesquisando a sua história, a fotografia é rastro ou deixa rastros.
A imagem fotográfica sendo caracterizada como descontínua deixa brechas, lacunas
para apresentação de um tempo histórico incompleto. Benjamin (1994a, p.232), sobre a
temporalidade histórica, frisa, inclusive, que “cada segundo era a porta estreita pela qual
podia penetrar o Messias”. Porta tão estreita quanto veloz, já que é no instante que o passado
relampeja irreversivelmente. Nesse momento fugaz é que o historiador materialista pode
redimir o passado, desde que nele reconheça o “agora” messiânico. A característica fugaz da
temporalidade histórica se reflete, inclusive, no modo fotográfico de percebê-la: na espera e
no instante.
Nessa visão do passado que prevê futuro, exige-se a habilidade da lontra de impor
espera. “Signo das coisas fugidias, dos ‘confins do zoológico’, a lontra estende seus domínios
pelo território mais vasto: os ‘lugares que têm’ o ‘poder’ de ‘nos fazer ver o futuro’, onde
‘parece ser coisa do passado tudo o que nos espera’”. (LISSOVSKY, 1998, p.24). A lontra,
por sua característica fugaz, de aparecer e logo desaparecer, exige que esperemos sua próxima
aparição. É assim que, ao interpretar o pensamento de Benjamin e sua ligação aos animais
totêmicos, Lissovsky diferencia a lontra do tigre. O tigre é o animal interruptor, a lontra, o
fugaz. “A espera pela irrupção da lontra é também a espera pela recuperação do passado” (id.,
ib., p.24).
A fotografia é atravessada pela dialética do tigre e da lontra. Uma vez que aquilo que é
fugaz – o próprio instante -, só pode ser percebido pela interrupção. Contudo a fugacidade é
justamente o que não se pode interromper. Esse impasse entre visibilidade e invisibilidade, o
qual exemplificamos com a noção de duração na fotografia, monta um paradoxo. “Na
fotografia, os dois modos da temporalidade – a fugacidade e a interrupção – evidenciam-se
como problema de visibilidade: problemas da aura e da centelha. A foto oscila entre aquilo
que lhe escapa e isto que nela se infiltra” (id., ib., p.26).
107
O uso da centelha, por sua vez, como imagem dialética persiste no pensamento
benjaminiano. Associada aos fragmentos do mundo barroco, a centelha se dirige à redenção.
Como faísca, que cintila, o fragmento e a ruína esperam por um ato religioso, messiânico.
Não é à toa a importância, em suas teses da história, da expressão “estilhaço”, “ruína”,
“fragmento”. Dirigindo-se ao barroco, os “estilhaços”, as “ruínas”, têm possibilidade de
redenção. Podem ser redimidos pela alegoria, já que esta tem um princípio construtivo
(expomos melhor no capítulo anterior, 1.3). Identifica-se na alegoria, contudo, a questão da
morte, já que para tornar o fragmento significativo é preciso arrancá-lo, com violência, do
fluxo da história-destino. O alegorista, então, mata para significar, para construir, para redimir
pelo conhecimento.
Com isso, como na imagem da centelha, a fotografia, como experiência do tempo, se
dá nessa espera de um “clarão”, que acontece em um instante particular. A participação nesse
instante de fugacidade e interrupção dá densidade ao tempo do “salto”. Trata-se do instante
movente, fluido. Lembremos a visão monádica, estabelecendo nela um ritmo.
“A monadização rítmica da fotografia, como essa forma de fluido, está a serviço da
‘imobilização do acontecimento’, contrariando em si – segundo sua perceptibilidade singular
– uma infinidade de relações” (LISSOVSKY, 1998, p.32). Ou seja, há uma temporalidade
fotográfica densa, que não se dá nem somente na fixidez, nem somente na mobilidade. Eis um
de seus principais paradoxos.
Vimos, ao longo do capítulo, diversas referências à fotografia quanto ao seu caráter
“imóvel”, “congelado”, “morto”, “petrificado”. Entretanto, tomando como referências
Benjamin e Lissovsky, podemos ter mais clara outra reflexão sobre a imagem fotográfica,
que, sem anular as considerações de Barthes, Dubois e outros autores citados que se alinham
no tema, coloca-nos sob outra ótica para pensarmos a mesma temática. Do “isso foi”, da
morte do passado, da irreversibilidade do tempo, chegamos à instabilidade das imagens.
Vemos, nessa perspectiva, uma relação fotografia/ruína para além do gesto brusco do índice.
Na ótica do alegorista, que da morte traz à vida, a fotografia como ruína, ainda que
compartilhe das formulações sobre a imobilização, o passado fixo, o efeito Medusa, pode vir a
ser fragmento à espera de redenção. Como rastros do passado, fotografias/ruínas aguardam
por escavação, por uma descoberta de futuro. Fotógrafo e historiador precisam dos tempos da
lontra e do tigre para decifrarem a densidade do “agora”, o mistério que impele o passado à
redenção.
108
Para finalizar, volto à conferência de Lissovsky, a que me referi no início desse tópico,
para citar mais uma de suas frases pensadoras (dessa vez não sendo mais uma pergunta) sobre
a fotografia. “Sua atualidade pouco significa diante de sua potência de reencarnação”. O apelo
que nos dirige a imagem fotográfica é por essa nova chance à vida, por sua salvação, por seu
caminho reversível – da pedra à carne. Isso não depende de sua contemporaneidade. A própria
reencarnação é esse refluir do tempo.
***
FIGURA 16: A Última Foto - Paula Trope, formato 9x12, lente Extar – Rosângela Rennó (2006)
A imagem acima foi extraída do trabalho A Última foto, de Rosângela Rennó, em que
a artista põe em atividade diversos aparelhos fotográficos antigos colecionados por ela. Ela
oferece a 43 fotógrafos, incluindo ela mesma, a oportunidade de clicarem, pela última vez,
com esses aparelhos, o Cristo Redentor, ícone do Rio de Janeiro. Por que pela última vez?
Pois logo depois desse derradeiro uso, os aparelhos fotográficos utilizados seriam lacrados.
109
Como na imagem (Fig. 16), cada fotógrafo utilizou uma câmera analógica que variava
conforme o formato e a fabricação (de chapa 9x12cm a reflex de 35mm; do início do século
XX a década de 80). Câmeras estas colecionadas por Rennó ao longo de 15 anos. Desta vez,
Rennó não resgata imagens passadas mas, sim, aparelhos passados e dá a eles o seu último
uso. E o tema para as últimas fotografias, não escolhido em vão, trata-se de um dos mais
incansavelmente fotografados. O desafio era fazer com que cada fotógrafo, tendo sua
derradeira chance de fotografar um clichê, o Cristo Redentor, desse a ele uma nova dimensão.
As fotografias que compõem a série26 colocam em questão, em diferentes modos,
nosso próprio olhar, contaminado pela exaustiva repetição e difusão do assunto em imagens
turísticas e midiáticas, ou seja, o referente já enraizado na mente. As feições, tamanhos,
ângulos, enquadramentos e intervenções que o Cristo recebe dotam o assunto das fotos de
uma realidade que não se encerra na aparência, mas se oculta nos seus detalhes mais
significantes. Elas questionam sua própria existência enquanto registro do real.
Foram dadas aos fotógrafos novas condições de experiência e fruição de suas próprias
imagens, uma vez que seus olhares sobre o Cristo, tidos como derradeiros antes da “morte” da
câmera, não se conformariam com o lugar trivial e já registrado. Desse trabalho de busca do
novo no corriqueiro, de experiência última, é também possível extrair uma crítica ao caráter
descartável da fotografia digital em nossos dias, que só cresce em número e pouco deixa
espaço para uma fruição reciclável do destino das imagens.
A “morte” da câmera analógica vivenciada por nós hoje, inclusive, é colocada em A
Última Foto como aceno, apelo. Onde foram parar nossas câmeras com filme, as manivelas
que faziam avançar as películas, as fotografias em papel? Ficaram no passado? Nesse trabalho
de desafiar nossa amnésia, o aparelho fotográfico está presente não apenas como testemunho
de um tempo remoto, quando a tecnologia digital ainda não assustava. Está também como
forma de despertar, de ruína. Ao lado de cada câmera, não temos imagens antigas, datadas
com o aparelho. Temos imagens atuais. O aparelho capta imagens contemporâneas,
independentemente de sua data de fabricação.
Poderíamos ver na fotografia da página anterior, por exemplo, uma cena dos anos 70,
dada a própria maneira em que a imagem se encontra: em preto e branco, com recantos
desgastados, manchas claras e escuras, dando a impressão de desbotamento com o passar do
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Para ver todas as fotografias da série, assim como demais trabalhos da artista, acessar
<http://www.rosangelarenno.com.br>.
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CONCLUSÕES
As descontinuidades atravessadas
Como todo processo de criação, a pesquisa toma caminhos, muitas vezes, imprevistos
em seu princípio. Foi o caso desta. E sua concretização é fruto da escolha de momentos que
mais tomaram corpo no processo. Falamos disso para lembrarmos que o ato de concluir
demanda olhar para o passado e desenhar na mente o que permaneceu, depois das idas e
vindas do ato da escrita. Destacar as permanências é uma tarefa não muito difícil, pois, como
já diz o termo, elas continuam, persistem. Já as impermanências, os desvios, esses são mais
difíceis de resgatar. Começamos nossas conclusões partindo dessa dificuldade: lembrar o que
foi deixado para trás para, depois, sublinhar o que permanece.
Partimos, antes mesmo de optar pelo aporte benjaminiano para pensar a imagem e o
tempo, de um projeto de pesquisa de mestrado que questionava uma possível “estética da
ruína” presente nas imagens do fotógrafo tcheco Josef Koudelka. Esse fotógrafo se destacou
por registrar cenas de guerra em imagens que se espalharam pelo mundo, como as da
Primavera de Praga. Além disso, registrou os ciganos da Europa Ocidental, etnia itinerante,
muitas vezes esquecida, assim como lugares devastados pelas agressões ao meio ambiente.
Espaços arruinados, pessoas em situações de catástrofe, vazios de grandes cidades e
degradações ambientais são assuntos evidentes em seu acervo. Contudo, falar das ruínas de
Koudelka, especificamente, acabaria por não abranger outras questões que nos atingiram na
relação de fotografia e ruína. Questões essas que não se limitam à análise do suporte
fotográfico e seu conteúdo, mas auxiliam a compreendê-los de forma mais orgânica, ou seja,
ligada a questões mais profundas sobre a natureza da imagem.
Por isso dedicamo-nos a desvincular do próprio Koudelka o caráter da fotografia como
ruína. Ruína esta não só estampada na imagem, mas trabalhada de diferentes formas por
outros fotógrafos e artistas que lidam com a imagem fotográfica como vestígio, traço, de um
mundo não tão verdadeiro quanto parece ser. É principalmente nesse ponto que Koudelka se
afasta dos fotógrafos/artistas que trabalhamos ao longo do trabalho. Suas imagens, pelo
menos as trágicas, de cunho fotojornalístico, parecem assumir o objetivo de documentar cenas
fiéis aos fatos ocorridos. E sabemos, até pelo que expomos no segundo capítulo, que é
arriscado esse intuito de marcar a imagem fotográfica com o estatuto de “documento-prova”
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do que passou. Provar, espelhar a realidade tal como ela é, não faz sentido para aqueles que
desconfiam da fotografia como documento calcado no discurso da mimese.
É por isso que, em um desvio proposital e crítico dessa proposta inicial de trabalho do
projeto de pesquisa, optamos por extrair conceitos que estavam ali dispersos, sem muito
aprofundamento no projeto: documento, monumento, ruína, história. E, dentre os autores
citados, Walter Benjamin figurou como um dos que apontavam para uma crítica dessas
noções. A leitura do filósofo, considerada enigmática, abriu-nos os olhos para um outro
patamar de análise. Sairíamos de um trabalho vinculado especificamente à linguagem
fotográfica e seu conteúdo estético, para uma pesquisa teórica e analítica de conceitos,
estando esses presentes não apenas em um olhar do fotógrafo, mas em uma maneira
fotográfica de lidar com a imagem. Nessa direção, Benjamin foi fundamental para mudarmos
o foco para a questão: como a “fotografia como ruína” nos auxilia a entender a imagem como
descontínua? Ou seja, nosso interesse se voltou para uma imagem fotográfica que não se finda
no suporte, mas no que dele se desprende como vestígio de um tempo descontínuo.
A questão, então, deu corpo a uma discussão não prevista anteriormente com os
autores do projeto. Ler Benjamin exigiu leituras de outros autores que dessem a
fundamentação pertinente para o diálogo do filósofo e seu pensamento sobre a imagem e o
tempo. Inclusive, “imagem” e “tempo” já são noções, em primeira instância, bastante
complexas de abordar. Seguir, porém, as ideias benjaminianas, ainda que desafiante, foi uma
forma de direcionar melhor a base teórica do trabalho. Além disso, os fotógrafos que
escolhemos solicitavam esse olhar benjaminiano aliado à fotografia, pela maneira como se
apropriaram da noção de ruína. Uma ruína que, sob uma máscara mortuária, volta à vida.
Sem, talvez, conseguir cercear, delimitar bem o sentido de ruína que trabalhamos – até
porque, em alguns momentos, ela pode ter se confundido simplesmente com a ruína enquanto
signo indicial – buscamos entender, primeiramente, como ela é abordada quando colocada nos
textos benjaminianos. Sobre o conceito da história e a Origem do drama barroco alemão
pareceram indicar melhor do que se trata essa ruína aos olhos do filósofo. Ruína está
intimamente entrelaçada à visão barroca de história em Benjamin. A história como ruína se
fundiu a um cenário de declínio inevitável. “A fisionomia alegórica da natureza-história, posta
no palco pelo drama, só está verdadeiramente presente como ruína” (BENJAMIN, 1984, p.
199-200). Nesses textos, contudo, o filósofo alerta não somente para o malogro da história
como ruína, mas para seu caráter alegórico e messiânico. “As alegorias são no reino dos
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pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas (...) O que jaz em ruínas, o fragmento
significativo, o estilhaço: essa é a matéria mais nobre da criação barroca” (id., ib., p.200).
Assim, criar a partir do “estilhaço”, empreender uma tarefa messiânica a partir da
morte são ações do alegorista e do historiador materialista e dialético. Pudemos perceber, no
legado de Walter Benjamin, a dialética constante das suas ideias alegóricas. Perseguimos o
conceito de “imagem dialética”, que tanto acompanha o seu pensamento, para passarmos a ver
sua obra como fotográfica, ainda que não mostre nenhuma imagem. Sua escrita é visual e,
como fragmentos de saber, destina-se a se desenvolver no pensamento. Identificamos, dessa
forma, o “estilhaço” como conteúdo e forma dos seus escritos. Pequenos ensaios, fragmentos
textuais, citações, possibilitam uma leitura de forma não tão hierárquica e contínua. Eis a
descontinuidade, tanto no seu pensamento teórico quanto na visualidade da sua escrita. Foi
com essa descontinuidade que resolvemos dialogar.
Fugir de um continuum implica em romper com um tempo progressivo, causal,
“homogêneo e vazio”. A temporalidade do “estilhaço”, como um “salto no céu da história”
rompe com essas amarras do tempo linear. Aproveitamos essa ideia monádica de tempo para
relacionarmos às imagens fotográficas que, como expomos, são também fragmentárias e
descontínuas. Partimos, então, desse paralelo entre fotografia e as ideias de Benjamin para
traçarmos uma ótica das ruínas – a própria fotografia como ruína. Percebemos que aliar
história e imagem foi fundamental para estabelecermos ainda mais diálogos sobre nosso tema
principal, como com a memória, por exemplo.
Curiosamente, pudemos encontrar no que Benjamin problematiza sobre a memória a
influência de Proust, Bergson e Baudelaire. Esses autores, contemporâneos a ele, viram nascer
o século XX e presenciaram as transformações vertiginosas no cotidiano moderno pelo
advento da imprensa e das técnicas reprodutivas, como a fotografia. Associada à dimensão
temporal, a noção de memória para esses três autores assume forte influência das tecnologias
da imagem, como a fotografia e o cinema. Isso foi interessante para perceber como o tempo
acelerado e a grande quantidade de estímulos visuais da modernidade acometeram os
habitantes das metrópoles e a sua faculdade da memória. As ideias de mémoire volontaire e
involontaire em Proust, duração em Bergson e a experiência do choque em Baudelaire foram
bases para que Benjamin fundamentasse a sua noção de experiência. Essa experiência, como
apresentamos, entrou em declínio, pois a capacidade de narrar, sendo coletiva, foi atrofiada
pela falta de memórias a compartilhar dos que voltavam da guerra silenciosos. Outro fator foi
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por uma interrupção temporal, “uma experiência de corte radical da continuidade”. Para
Dubois, a fotografia é uma fatia espaço-temporal. Ou seja, é parte de um todo que está do lado
de fora da câmera, e aquilo que nela penetra é, por essa razão, a interrupção de uma ação
contínua, uma duração. Foi inevitável para nós não compararmos esse jogo de interrupção e
continuidade com o que vimos sobre história descontínua em Benjamin. A temporalidade do
clic do fotógrafo muito fala ao tempo do “salto” da história. O “salto” é a interrupção no vir-
a-ser dos acontecimentos, rompe com a linearidade do tempo. Desprendemos disso a
possibilidade de a fotografia, como corte, apresentar-se como imagem descontínua, pelo
menos temporalmente. Pelo clic, o fotógrafo congela uma cena, extraindo-a de uma duração,
para que, apenas depois, possamos descongelá-la mentalmente e redefinir seu percurso. Daí
falarmos do “efeito Medusa” indo em direção a um “instante movente”.
Fazendo cortes da realidade, o fotógrafo está o tempo todo congelando pedaços do
fluxo temporal que não cessa, que é movimento. Chegamos ao duplo
congelamento/mobilidade. A realização de uma fotografia parte de um mobilidade
seccionada, detida, para daí mover-se mentalmente depois desse corte. Dentre os caminhos
que apontamos como possibilidade de mobilidade das imagens no pensamento é a memória.
Ao recordar, estamos movimentando fotografias. E, na visão benjaminiana da história, a
percepção da imagem do passado é veloz, tal como um clic fotográfico. Esse clic necessita
despertar para a memória dos oprimidos, espezinhados pelo tempo “homogêneo e vazio dos
vencedores”.
Não tivemos intenção de forçar comparações entre Benjamin e a imagem fotográfica.
Elas surgiram naturalmente ao longo das leituras. Foi bastante enriquecedor aprofundarmo-
nos nesses duplos da fotografia para também melhor elucidar as ambivalências
benjaminianas. Um pensador como ele não deixou de ser influenciado pelas tecnologias da
imagem. Percebemos que a fotografia, além de ser o assunto de alguns de seus escritos, figura
como imagem do seu pensamento, principalmente, ao considerarmos os duplos que
apontamos. Seria forçoso ignorar essas semelhanças já que elas aparecem visivelmente. Sendo
parte de nosso interesse de pesquisa fazer uma analogia entre fotografia e ruína, foi bastante
proveitoso perceber as imagens como dialéticas.
Interrupção e fugacidade, especialmente, fazem parte de uma análise específica, feita
por Mauricio Lissovsky. Essa análise foi uma das poucas sobre o assunto que encontramos. O
autor discute fotografia e história em Benjamin sob o signo do clic, do instantâneo
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fotográfico. Expomos no texto do trabalho como ele destaca essa manifestação instantânea.
Contudo, vale recordar que “o historiador e o fotógrafo são ambos regidos pelo signo do tigre
– o totem interruptor, o animal sagrado do clic. No salto do tigre sobre a presa, o
acontecimento é imobilizado, ‘cristaliza-se como mônada’” (LISSOVSKY, 1998, p. 23). Por
outro lado, a fugacidade da lontra parece exigir um modo de nos fazer ver o futuro. “Signo
das coisas fugidias, dos ‘confins do zoológico’, a lontra estende seus domínios pelo território
mais vasto: os ‘lugares que têm’ o ‘poder’ de ‘nos fazer ver o futuro’, onde ‘parece ser coisa
do passado tudo o que nos espera’” (id., ib., p.24). A dialética do tigre e da lontra, da
interrupção e da fugacidade, convidou-nos a abrir os olhos para esse instante fotográfico
fugaz, instável: instante movente.
A noção de documento também foi trabalhada a partir do olhar dialético. Christian
Boltanski e Rosângela Rennó, como vimos, questionam os documentos e suas historicidades.
O que está além da aparência fotográfica? Que rastros nos são deixados pelas imagens e como
podemos reinventá-los? Artistas não conformados com uma postura passiva em relação ao
passado, criam, elaboram outra temporalidade para as imagens, a partir da desconfiança do
documento como prova do real. Enquanto vestígios, os documentos possuem aparências e
ocultações. Muitas vezes, eles precisam ser criticados de forma a salientar a “mentira” que
neles existe, como destaca Le Goff. Boltanski e Rennó assumem esse empenho de enfatizar
no documento seu caráter ficcional, ainda que concretizem obras distintas.
Boltanski, conforme expomos com base em imagens de suas obras, atua nas “pequenas
memórias”, aquelas dos anônimos, à margem do que se conta nos livros. Tendo o Holocausto,
a memória, a morte e a ausência como temas imbricados aos seus trabalhos, o artista desafia a
fragilidade de nossas lembranças. Pudemos ver como o vazio, o apagamento dos rostos
mostrados, a multiplicidade de pessoas comuns lançam luz à crítica do passado. Os vestígios
que são trabalhados em suas instalações, como vestimentas e fotografias figuram como
lembranças de esquecimentos. É nesse jogo entre aparência e ocultação, verdade e mentira,
presença e ausência, lembrança e esquecimento, que Boltanski traz a obra para um diálogo
atual, rompendo as fronteiras sequenciais de um tempo histórico contínuo. Ele assume a
postura do alegorista, que passa a significar os fragmentos dando vida a eles.
Sem nos esquecermos de dar ênfase ao empenho do historiador dialético em escavar o
passado, desnudando ocultações e apagamentos, discutimos como a noção de “documento-
mentira” colabora para um questionamento da fotografia enquanto prova do real,
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