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Transgrediência ecológica: atravessando por orifícios (in)visíveis

Guilherme Lisboa Morgan

Discursos ecoam das e nas multidões em uma espécie de prece, pedindo


pela volta do normal ou ainda de um novo normal. Covid-19, para alguns uma
pandemia indiferente, para outros uma fase marcada por exaustões, perdas e lutos,
tem os que acham que é uma invenção exagerada, para este escrito, um marco
histórico, que vem tirar a sujeira sociopolítico-econômica-ecológica varrida para
debaixo do tapete por um governo que a palavra e a contra palavra se findam na
negação.
Nesta esteira errante de um desgoverno e seus projetos, é possível encontrar
facilmente terrenos produtores de uma não-ecologia, que partem de estratégias de
controle e permanência de um regime hierárquico, neoliberal, fascista, estratificado
e moldante, o qual favorece o capitalismo e seus beneficiários, o
homem-cis-hétero-branco-burguês. No entanto, torna-se para esta forma de
governar, cômodo disseminar a ideia e modos viventes de corpos autossuficientes,
acabados e fechados, propagando adjetivos de louco, desviante, problemático etc.,
para quem fugir desta normativa, interferindo e limitando diretamente na construção
de vida, sentido e experiências das pessoas e suas subjetividades.
Esta óptica e engrenagem social começa a tomar forma quando Descartes
anuncia a sua máxima valorização pela razão, a qual possibilitou agregar para a
lógica das relações uma perspectiva de dominação sobre aqueles que não possuem
o mesmo tipo de racionalidade, outros seres vivos por exemplo, ou aqueles que
vivenciam a racionalidade de forma desviante/inferior, título este atribuído por uma
comunidade fundamentada em um certo tipo de saber (FOUCAULT, 2004). Como
exemplo podemos citar aqueles chamados de loucos, mulheres, nordestinos,
trabalhadores, em síntese as minorias.
Paralelamente ao legado da razão se deu a emancipação e o
desenvolvimento do capitalismo e do catolicismo, consequentemente dos
dispositivos normativos de controle e poder, os quais encontraram um terreno fértil
de propagação e afirmação na ideia de corpo racional, não-místico, não pertencente
de um todo, uma vez que “a noção de universo orgânico vivo e espiritual foi
substituída pela noção de mundo como uma máquina, e a máquina do mundo
tornou-se a metáfora dominante da era moderna” (CAPRA, 1996, p. 37).
Em contrapartida, Bakhtin (2010), presenteia a humanidade ao parir em meio
seus estudos a noção de Corpo Grotesco, que vem justamente como um fluxo
contrário a este Eu castrado e controlado pelo regime, abrindo novos horizontes à
corporeidade no limiar das potências criativas, dos atravessamentos inúmeros, das
possibilidades múltiplas, híbridas, metamórficas, fragmentadas, construída
constantemente.

Em oposição aos cânones modernos, o corpo grotesco não está


separado do mundo, não está isolado, acabado nem perfeito, mas
ultrapassa-se a si mesmo, franqueia seus próprios limites. Coloca-se
ênfase nas partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior,
isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para
o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e
excrescência, tais como boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo,
barriga e nariz. É em atos tais como o coito, a gravidez, o parto, a
agonia, o comer, o beber, e a satisfação de necessidades naturais,
que o corpo revela sua essência como princípio em crescimento que
ultrapassa seus próprios limites. É um corpo eternamente
incompleto, eternamente criado e criador, um elo na cadeia da
evolução da espécie ou, mais exatamente, dois elos observados no
ponto onde se unem, onde entram um no outro (BAKHTIN, 2010, p.
23).

Como novos possíveis frente a ordem verticalizada, séria e moldante,


Bakhtin (2010), propõe a carnavalização, em outros termos, a desestabilização dos
lugares sociais, políticos, econômicos, institucionais atribuindo ao corpo grotesco,
aquele que ri dos discursos oficiais o posto suprassumo de poder.

O carnaval (repetimos, na sua acepção mais ampla) liberava a


consciência do domínio da concepção oficial, permitia lançar um
olhar novo sobre o mundo; um olhar destituído de medo, de piedade,
perfeitamente crítico, mas ao mesmo tempo positivo e não niilista,
pois descobria o princípio material e generoso do mundo, o devir, a
mudança, a força invencível e o triunfo eterno do novo, a
imortalidade do povo. (...) é isso que nos entendemos como
carnavalização do mundo, isto é, a liberação total da seriedade
gótica, a fim de abrir caminho a uma seriedade nova, livre e lúcida
(Bakhtin, 2010, p. 239).

Quando se coloca o mundo de ponta cabeça, pelo ato de carnavalizar,


o Eu antes funcional e autossuficiente percebe sua incompletude inacabada a qual
só ganha acabamentos e sentidos necessariamente na relação com o Outro que
não seja o Eu, não importando que tipo de alteridade seja, colocando assim, os
existentes em um nivelamento igualitário.
Com um mesmo teor transgrediente e subversivo das relações, Capra (1996)
apresenta uma superação e re-significação das hierarquizações estratificadas, a
partir do que chamou de ecologia profunda, que “vê o mundo não como uma
coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão
fundamentalmente interconectados e são independentes” (CAPRA, 1996, p. 26), no
entanto, esta visão de mundo “reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos
e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida”
(CAPRA, 1996, p. 26).
A ideia de teia horizontal das relações vivas, ganha interlocuções através de
tons imanentes, com o conceito de Guattari (2012) sobre a ecologia, que contempla
e entrelaça ético-estético-politicamente as esferas ambientais, sociais e mentais, as
quais denominou de as três ecologias ou ecosofia, conceito este que desprende
“dos paradigmas pseudocientífico" (GUATTARI, 2012, p. 27), consolidando-se a
partir das desterritorializações suaves que fazem com que os agenciamentos
evoluam processualmente, permitindo a criação de novas alternativas desejantes
para a existência.
Para uma experimentação factível de tal movimento ecológico, re-visitar e se
voltar aos orifícios seria uma movimentação interessante, já que é por meio deles
que o Eu se conecta com o outro e com o mundo, em relação com Guattari (2012),
respectivamente com o social e o ambiente. O mental por sua vez, pode-se dizer
que seria a prática em si do corpo grotesco, com ênfase na sua característica
plástico-criativa constantemente.

Todas essas excrescências e orifícios caracterizam-se pelo fato de


que são o lugar onde se ultrapassam as fronteiras entre dois corpos
e entre o mundo, onde se efetuam as trocas e as orientações
recíprocas (BAKHTIN, 2010, p. 277)

Os orifícios metaforicamente ganham uma imagem invisível de teias e fluxos


os quais partem e ao mesmo tempo chegam, expelem e absorvem atravessamentos
múltiplos e é por meio destas conexões horizontais constantes que todos os
possuintes de matéria se equivalem e constituem, rompendo com a ideia
disseminada de que uma parcela da população (homem-hétero-cis-branco-burguês)
ou uma espécie (Homo sapiens) têm o aval para dominar e docilizar os demais.
O anus do Eu se liga com a narina da vaca, que se conecta com o ostíolo da
planta, esta se finda com os poros das rochas, que atravessa o orifício da uretra do
Eu e de um Outro. Este um possível exemplo de conexão, longe de ser a única,
uma vez que ela não se caracteriza por uma cadeia fixa, ordenada e determinada,
mas sim se expande ao infinito de possibilidades de conjuntos n-1, devires e
cruzamentos.
Contudo, esta forma de conceber a ecologia se opõem radicalmente com a
ecologia capitalística que Boff (2012) escancara e problematiza criticamente, esta
que segundo o autor se pauta e defende preceitos de funcionalidade e
desenvolvimento, atribuindo ao meio-ambiente e seus personagens uma categoria
de recursos para a majestade superior, o ser humano.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail Mjkhailovitch. A Cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.

BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é – o que não é. Petrópolis: Vozes, 2012.

CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas
vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 23. ed. São Paulo: Graal, 2004.

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. 21. ed.
Campinas: Papirus, 2012.

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