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Número e Título do ST 02
Título do trabalho: Questão nacional na Teoria Social Latino-americana e o
Plurinacionalismo como questão
Nome do autor: Vivian Urquidi
Questão nacional na Teoria Social Latino-americana e o Plurinacionalismo
como questão
Urquidi, Vivian,
Universidade de São Paulo/Universidade de Coimbra
Essa aposta vai mudar somente na segunda metade do século XX, quando uma
nova perspectiva, da dependência, distingue outro problema para a questão nacional e,
muito embora as posições divergentes entre os teóricos desta abordagem, alcança-se o
consenso de que na América Latina vinha se impondo um capitalismo de tipo dependente
pelo modo como as economias regionais se inseriam no sistema econômico já dominado
pelos países centrais. A tarefa, assim, seria repensar criticamente a questão nacional a
partir das estruturas globais e definir no cenário da dependência a reconfiguração das
forças sociais internas.
Eis que o pensamento social latino-americano recupera um dos seus autores mais
destacados, o peruano José Carlos Mariátegui, quem no início do século XX já pensou
num projeto revolucionário na América Latina a partir da experiência dos povos
indígenas.
Como estudioso profundo do marxismo, mas sem uma leitura ortodoxa — o que
não o poupou de críticas — José Carlos Mariátegui buscou pensar um programa
1
Ver especialmente Siete Ensayos de la Realidad Peruana, escrito em 1928. Também El Problema de las
Razas en América Latina; além de Punto de Vista Antiimperialista, textos apresentados no Congreso
Constituyente de la Confederación Sindical Latinoamericana de Montevideo, e na Primera Conferencia
Comunista Latinoamericano de Buenos Aires, realizados em maio e junho de 1929, respectivamente.
2
Gamonalismo é o tipo de poder particular que se estabelece regionalmente pelo latifúndio e que nasce
da relação peculiar de servidão entre o senhor latifundiário e o camponês-indigena no Peru, e por extensão na
América indígena. É um poder econômico e político que nasce do latifúndio e que se estende à família do
latifundiário e que se manifesta pelo controle, por meios espúrios, das comunidades indígenas e de toda uma
estrutura de suporte administrativo e político do entorno regional, consolidando assim as relações típicas do
colonialismo interno (Mariátegui, 2007 [1928]; Flores Galindo, 2001; Quijano, 2007).
revolucionário num país heterogêneo, com um proletariado ainda muito pequeno e um
campesinato-indígena, o maior contingente da população, mas sem articulação orgânica.
O potencial dos indígenas era evidente para Mariátegui não apenas pelos levantamentos
que protagonizara na década de 1920, senão principalmente pela sobrevivente estrutura
comunitária do ayllu, cujas características de trabalho e propriedade coletivas poderiam
ser a base de novas relações materiais e do futuro socialismo indo-americano.
É justamente nesses aspectos que Mariátegui daria sua maior contribuição para
pensar a questão nacional. De início, percebeu que a incipiente burguesia —
essencialmente comercial —, não havia desenvolvido interesses, como era de se esperar,
antagônicos em relação ao latifúndio gamonal, e atuava, porém, aliada a ele como
intermediária do capital internacional. Desta constatação, era possível completar que a
burguesia não apenas seria incapaz de desenvolver no futuro as forças produtivas e
sociais ou de ter um projeto de nação com ambição nacionalista. Pelo contrário, à medida
que a organização popular se estruturava, a posição liberal-democrática da burguesia
deixava passo para versões mais coercitivas de exercício do poder, ou inclusive a
manifestações saudosas de valores aristocráticos coloniais –numa aversão cada vez mais
evidente à nação indígena.
Subjaz nessa interpretação uma das teses mais originais até então da realidade da
região, qual era negar as teses dualistas sobre a situação latino-americana, como era
comum nas teses ora vigentes, em que o progresso era concebido como horizonte para o
desenvolvimento dos setores atrasados e tradicionais, ou o etapismo determinava a
evolução da revolução. A posição de Mariátegui era possível por seu marxismo não
ortodoxo. Para ele, os tempos produtivos não se sucediam, mas coexistiam sem
profundas contradições na América Latina, pois que a economia comunitária era
subsumida à produção “semifeudal” gamonal que, pelo seu turno, se articulava
subordinadamente com a lógica do capital mundial em fase monopolista. Por isto, o
processo europeu, em que um modo de produção é superado por outro, no continente
colonizado ocorre como uma totalidade de diversas modalidades produtivas
funcionalmente articuladas ao capitalismo internacional.
Era, porém, exatamente a experiência dos indígenas que daria o tom ao projeto
revolucionário latino-americano e que superaria também a fragmentação nacional: “No
queremos, ciertamente, que el socialismo sea en América calco y copia. Debe ser
creación heroica. Tenemos que dar vida, con nuestra propia realidad, en nuestro propio
lenguaje, al socialismo indo-americano” (Mariátegui: [1928] 2013).
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“No debe haber alta cultura, porque será falsa y efímera, donde no haya cultura popular” (Mariátegui:
2007: 129), citando a Pedro Henriquez Ureña.
da modernização e de acompanhar o ritmo dos países desenvolvidos. Assim, a lógica
dualista, que nunca abandonara a academia e a política, ganhou então progressivamente
fôlego com análises sobre as sociedades feudais latino-americanas, em que o moderno
opõe-se ao tradicional, e o desenvolvimento ao subdesenvolvimento. Dão-se assim as
bases para a teoria da modernização e para uma nova posição sobre a questão nacional.
4
Walter Whitman Rostow (1916-2003) era um economista estadunidense e político que apostou no livre
mercado para o desenvolvimento econômico, determinando as “Etapas do crescimento econômico”, nome da
obra em que se apresenta a clave do desenvolvimento econômico, partindo das sociedades tracionais até chegar
às de alto consumo massivo. Neste processo passar-se-ia por uma fase de despegue até a maturidade. Foram
teses muito promovidas nos programas de desenvolvimento da década de 1960, na América Latina, pelo governo
Kennedy, a quem Rostow assessorou, principalmente na Aliança para o Progresso. O modelo rostowniano tinha
a clara tarefa de neutralizar a cubanização do continente pelo incentivo rápido ao crescimento.
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Conceito utilizado por Otavio Ianni (1983) para analisar o desenvolvimento industrial brasileiro e a
introdução de uma base técnica nova na produção rural. O aspecto conservador da modernização relaciona-se
com a manutenção da estrutura fundiária altamente concentrada, a promoção do desenvolvimento urbano
industrial acelerado, a ausência de um processo democrático e a tutela do povo pelo Estado.
A despeito do sucesso relativo destas políticas, o impacto negativo das promessas
não cumpridas da modernização é bastante conhecido: paisagens urbanas expandidas e
degradadas como resultado do êxodo desmedido às cidades, paralelo ao desmonte e
desvalorização das estruturas comunitárias camponesas e indígenas. Afirma-se (Ianni,
1983; Heintz, 1964; Chonchol, 1994) que a migração teria gerado certa disponibilidade
moral dos migrantes a aceitar as expressões da autoridade ou da vontade do líder do
governo, independentemente do teor democrático ou não das posições governamentais. O
carisma paternalista garantiria a fidelidade das massas ao líder, ao ponto de a politização
ceder lugar à moral clientelar, impactando finalmente, de modo crucial, o
desenvolvimento do proletariado latino-americano como classe em formação. As
experiências mais conhecidas do fenômeno do populismo, na América Latina, foram o
varguismo no Brasil, o peronismo, na Argentina e o cardenismo, no México, mas
posteriormente, ele também designará governos como de Velasco Ibarra no Equador,
Velasco Alvarado no Peru, Arbenz na Guatemala, Ibañez no Chile e Paz Estenssoro na
Bolívia, entre outras experiências.
A mesma leitura sobre a nação possivelmente seja a utilizada nas obras que
analisam as novas lutas sociais em prol de projetos plurinacionais para a Bolívia e o
Equador, questionando o modelo de Estado-Nação ainda vigente. Assim, é possível
encontrar nos setores detratores dos projetos plurinacionais, certa tendência a considerar
as novas lideranças naqueles países como casos de neopopulismo. Algo semelhante
ocorre na análise do Lulismo no Brasil e do Chavismo na Venezuela.
Mais desafiante que denunciar a situação periférica, porém, foi apontar a lógica
econômica da dependência, e neste aspecto, foi o cientista social brasileiro, Rui Mauro
Marini (1932-1997), quem possivelmente fez as contribuições mais lúcidas, na
celebrizada “Dialéctica de la Dependencia”, que, em 1973, ofereceu uma cabal descrição
da origem da dependência e das contradições fundamentais ao interior dos países
dependentes. Marini (2008) advertiu que o tipo de exploração da força de trabalho entre
Estados nacionais centrais e periféricos permitia mudar o padrão de exploração em países
industriais –da exploração absoluta para a relativa-, e aprofundar e manter vigente o
padrão de exploração do mais-valor absoluto nas economias dependentes e exportadoras.
Desta relação, produzia-se o tipo específico das relações de produção nas sociedades
dependentes, a superexploração do trabalho: para diminuir o impacto da perda do mais-
valor drenado para as economias centrais, as classes dominantes, aumentavam o tipo de
exploração absoluta do trabalho rural e mineiro, graças à elevada disponibilidade de mão
de obra local, determinando a superexploração do trabalho. Assim, este tipo de
exploração não seria uma forma a mais das relações de produção, mas seria a forma
específica que assumiam as relações de exploração numa nação dependente.
Sabe-se que os estudos pós-coloniais têm partido da crítica aos crimes contra a
humanidade que os modelos de dominação colonialista e o capitalismo imperialista
impuseram sobre o resto do mundo. Nesse ponto de partida, o marxismo teve um papel
categórico na inspiração das lutas de resistência anticoloniais, já que, por muito tempo,
foi ele o único pensamento a sustentar as críticas da esquerda sobre os efeitos do sistema
imperialista e das formas coloniais existentes de dominação e exploração (Young, 2001).
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Em Francisco Weffort, por exemplo, as relações de dependência só devem ser analisadas em
correspondência com as classes nacionais e o papel das elites que controlam o Estado, i.e, se –e em que grau- o
tipo de relações de classe ao interior de cada país determina o caráter nacional ou dependente da sua economia,
da política e de outras dimensões da nação. As variáreis de classes e controle do Estado na questão nacional
permitem estabelecer a situação ambígua e contraditória de um Estado-Nação latino-americano que é
dependente economicamente, embora independente no plano político: as elites atuam ambiguamente quando no
país formalmente independente, elas apostam na dependência econômica, como política de Estado. A situação é
contraditória, porém, quando os interesses nacionais –políticos e econômicos- se opõem aos interesses do
mercado internacional. São exemplo disto as experiências em que a autonomia política coincidiu com o projeto
de autonomia econômica, gerando uma contradição de interesses com o mercado, mas não uma política ambígua
com os interesses da nação (Weffort, 1995).
7
Vide, por exemplo, Dussel (2004), que ao analisar as culturas latino-americanas percebe que no período
de produção mais profícuo das teorias da dependência, ao conceito mais substancialista da cultura, se impusera
“descubrir sus fracturas internas (dentro de cada cultura) y entre ellas no sólo como ‘diálogo’ o ‘choque’
intercultural, sino más estrictamente (las fracturas) como dominación y explotación de una sobre otras. La
asimetría de los actores había que tenerla en cuenta en todos los niveles” (Dussel, 2004: 6)
É esta filosofia também que influenciara as diversas possibilidades vigentes de
socialismo do século XXI, que ora entram na agenda de governos e nas lutas sociais. O
tom obreirista e urbano, que marcara o ritmo das lutas até a década de 1960, perdeu
fôlego para um socialismo humanista entusiasmado pelo guevarismo8 e a luta armada, e
por uma ética de liberação da igreja dos pobres (Freire, 1967; Gutierrez, 1971, Dussel,1998).
8
Vide Guevara (1964; 1967)
asimilación y el aprovechamiento de los recursos de la técnica moderna y de la cultura
universal” (apud, Pineda, 2012).
Simbolicamente, o Congresso foi inaugurado pelo populista Lazaro Cárdenas9, do
governo mexicano, que fez do indigenismo a versão populista da política de massa para
os índios-camponeses na segunda metade do século XX na América Latina.
Por isso, as lutas libertárias que se deflagraram nas áreas rurais, a partir da década
de 1960, podem ser consideradas resposta do camponês-indígena à ética populista do
indigenismo. Das lutas, emergiram os primeiros intelectuais e lideranças indianistas, e
daí nasceram os albores da organização indígena contemporânea voltada, no início, para
a luta pela terra e contra as diversas formas de exploração do índio. Mas, à medida que os
movimentos avançam em posições políticas locais, um plano mais abstrato de princípios
e direitos começaram a ser observados na retórica indianista (Barre, 1983). Em
levantamento10 delicado dos principais textos clássicos do indianismo e de documentos
históricos de referência, Bonfil Batalla, o antropólogo mexicana, conseguiu algumas
tendências no pensamento indianista. Observou uma atitude de reafirmação do
pensamento político índio pela contraposição ao pensamento e civilização ocidental.
Analisou a denúncia ao colonialismo vigente nas relações racializadas e na razão
genocida. Também nas tentativas de reinterpretar a história índia na história colonial. E
muito embora, ao longo das lutas indígenas, alguns movimentos atuassem orquestrados
com a luta armada da guerrilha de esquerda, até final da década de 1970, ou em
movimentos de base da igreja católica, observou também que havia uma tendência nos
ideólogos indianistas a rejeitar tanto a religiosidade ocidental quanto a doutrina marxista,
fonte de eurocentrismo e de valores civilizatórios alheios:
“El ‘soplo vital’ del pensamiento de Occidente es la razón. La razón en ‘tiempo
rectilíneo’. De Sócrates a Kant, y de Kant a Marx, la razón marcha en línea recta. (…).
Occidente desde su mito: la serpiente del paraíso que tienta a Eva, y Caín que mata Abel; hasta
el resplandor de Atenas (…), la Roma (…), la noche de 12 siglos de feudalismo medieval; la
9
O discurso de inauguração de Cárdenas é ilustrativo do espírito do indigenismo colocado em marcha.
Enquanto expressava o valor e a contribuição dos povos indígenas na história mexicana e Americana, afirmava
sua intenção de incorporá-lo à cultura universal para que usufrua da ciência e das técnicas, de modo que possam
ser cidadãos úteis. E mais: “nuestro problema –diria- no es conservar indio al indio, ni en indigenizar a México,
sino en mexicanizar al indio. Para ello es necesario dotarlo con tierra, crédito y educación” (apud Pineda,
2012).
10
Os textos indianistas, um conjunto de documentos históricos e de análise produzidos pelos indígenas
intelectuais e pelos movimentos sociais indígenas, foram publicados por Bonfil Batalla (1977; 1981). O trabalho
reúne o projeto político que começava a se configurar, e as conclusões dos primeiros encontros regionais dos
movimentos. A Declaração de Barbados II, publicada em 1977, também recuperada por Bonfil Batalla (1977)
reúne as posições indígenas da época, sobre a situação social, econômica e política, e, principalmente, sobre o
projeto de autonomias para os povos indígenas. Este evento inaugura o debate contemporâneo sobre o direito à
autonomia dos povos indígenas.
revolución francesa (…), la revolución rusa; Alemania de Hitler (…) Hiroshima y Nagassaki …
es la marcha de la razón en tiempo rectilíneo. (…) El pensamiento en el Nuevo Mundo, no es la
‘razón genocida’. Es la razón cósmica: razón vital (…) sin hambre ni opresión”. (Reinaga,
[1969] 1981).
O projeto índio parte das oposições estabelecidas em relação ao projeto ocidental
nas formas consolidadas da modernidade: o colonialismo e o capitalismo imperialista,
sistemas de opressão e dominação a partir da etnia11. A oposição ao ocidente busca,
também, um projeto panindianista, e inclusive uma civilização paníndia12, composta
pela diversidade de povos e culturas indígenas, que se unam pela história colonial e pelo
projeto de construir um futuro descolonizado, em que persistam as identidades e as
culturas próprias, e no qual se suprimam todas as formas de dominação e desigualdade.
11
“Únicamente la colonización mental puede explicar la supervivencia de la colonización económica y
política. El dominio sobre la mente permite el dominio de las riquezas, del trabajo, de los gobiernos, etc.
Imperialismo económico y coloniaje mental son causa y efecto, uno del otro, en un proceso incansable y
creciente” (Reinaga, [1972], 1981: 88).
12
De acordo com a Declaração de Barbados II, de 1977, as primeiras orientações para a luta de
libertação passa por “(c)onseguir la unidad de la población india, considerando que para alcanzar esta unidad
el elemento básico es la ubicación histórica y territorial en relación con las estructuras sociales y el régimen de
los Estados Nacionales, en tanto se está participando total o parcialmente en estas estructuras. A través de esta
unidad, retomar el proceso histórico y tratar de dar culminación al capítulo de colonización’ (Declaración de
Barbados, [1977], 1981: 415)
uma etnia oprimida e, o que é mais crítico, que muitas vezes a última estaria sendo
oprimida e negada pela primeira.
Este tipo de indianismo que vingou até final da década de 1970 teve entre seus
principais ideólogos os bolivianos quéchua-aimaras Fausto e Ramiro Reinaga, os
peruanos quéchuas Guillermo Carnero Hoke e Virgílio Roel Pineda, além de outros
como o maya Antonio Pop Caal, guatemalteco; e do mixteco mexicano, Franco Gabriel
Hernandez (Bonfil Batalla, 1981). O indianismo criou também instrumentos políticos
importantes como o Manifesto Tiawanaku, de 1973, que deu suporte ideológico ao
importante Movimento Katarista da Bolívia; e a Declaração de Barbados II13, que em
1977, se dispôs a pensar os procedimentos da Descolonização.
13
A Primeira Declaração de Barbados, ocorrida em 1971, teve como objetivo reunir os antropólogos que
discutiam a questão indígena na América Latina, pelo que não houve presença indígena. Conforme Bonfil
Batalla (1981), apesar disto, é um documento muito citado pelos indígenas, pois seu foco na libertação dos povos
indígenas e na responsabilização do Estado nas relações coloniais permitiu fortalecer as lutas indígenas e abriu o
caminho para a Declaração de Barbados II, evento realizado seis anos mais tarde, e com presença indígena junto
a outros antropólogos. Aqui se definiram os rumos do indianismo.
14
A Convenção 169, sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, parte de princípios
essências para os povos indígenas, a saber: o reconhecimento dos povos como sujeitos coletivo de direito, o
princípio de autodeterminação -não independência, mas como direito que as comunidades indígenas têm de
decidir o futuro das suas comunidades; e a auto identificação como critério de definição do cidadão de direito
(Chaters & Stavenhagen 2010, Verdum, 2009, Urquidi, Teixeira & Lana, 2008).
Desde então, os povos têm avançado posições para a etnização da política, com o
objetivo de descolonizar as diversas esferas dos poderes coloniais: das relações sociais,
das hierarquias epistemológicas, do direito e da política local, nacional e internacional. A
expressão política máxima da irrupção dos indígenas na política será a legitimação e
legalização das suas autonomias, lá onde sejam demandadas, uma empreitada que foi
iniciada já na década de 1980 pelo povo Miskito na Nicarágua, e posteriormente pelos
zapatistas, já no limiar do novo século XXI, em México. O primeiro caso como
experiência inaugural de autonomia, em acordo de paz assinado com o Estado; o segundo
como construção política à margem da ordem institucional, em territórios em que o
Estado historicamente esteve, e assumiu continuar, ausente.
As autonomias são também o âmago das lutas atuais nos Estados Plurinacionais em
que o corpo doutrinário reconhece e especifica o tipo e níveis em que a autonomia será
implementada. A despeito dos avanços, as comunidades indígenas ainda enfrentam a
rigidez das formas clássicas do Estado, ainda centralizador e colonial, de modo que o
desafio, nos países em que o plurinacionalismo é reconhecido, é a garantia dos direito já
positivados na lei (Santos & Exeni Rodriguez, 2012; Santos & Grijalva, 2012).
A irrupção dos movimentos indígenas na política nacional fez com que, em 2003,
Gonzalez Casanova propusesse um alargamento ao sentido do colonialismo interno:
En una definición concreta de la categoría de colonialismo interno, tan significativa para
las nuevas luchas de los pueblos, se requiere precisar: primero, que el colonialismo interno se da
en el terreno económico, político, social y cultural; segundo, cómo evoluciona a lo largo de la his-
toria del Estado-nación y el capitalismo; tercero, cómo se relaciona con las alternativas
emergentes, sistémicas y antisistémicas, en particular las que conciernen a “la resistencia” y “la
construcción de autonomías” dentro del Estado-nación, así como a la creación de vínculos (o a la
ausencia de estos) con los movimientos y fuerzas nacionales e internacionales de la democracia, la
liberación y el socialismo (González Casanova, 2008: 409).
A consciência da existência de poderes coloniais e de lutas contra o colonialismo
interno, entretanto, não impedem a cilada da mistificação da etnização da política. Não é
incomum que as lutas étnicas menosprezem o debate sobre o conteúdo classial da
protesta ou que seus militantes se neguem a afinar discursos com os outros trabalhadores.
A luta anticolonial pela democracia e a emancipação às vezes é separada das lutas
étnicas, e as esquerdas ainda insistem em subordinar a dimensão étnica à classial.
Foi possível também observar que os movimentos que outrora lutaram contra o
colonialismo interno, ao assumir o poder se esqueceram de que a principal contradição
está na forma que assume o próprio Estado-nação, seja pelas suas relações de
dependência, seja pela desintegração social e nacional.
A distinção que inspirou a nova esquerda nasce dos trabalhos do pensador italiano,
Antonio Gramsci (1891-1937) e da sua preocupação durante o fascismo por articular os
setores populares dispersos num bloco histórico e numa nova hegemonia sob liderança
do proletariado, a partir de uma aliança de classes entre os principais grupos populares do
país. O sentido de nacional-popular que Gramsci (1980; 1982) propõe não se refere, por
isso, a uma massa vazia, mas ao conteúdo político e cultural dos setores sociais
subalternos que compõem a ampla base de classes populares e que tem potencialmente
interesses coincidentes. É uma massa cujo sentido de ações e visões de mundo emana da
vontade coletiva geralmente contra a opressão. É nesse sentido, que Gramsci (1970)
afirma que todo homem é um filósofo, porque compartilha de uma concepção de mundo,
cuja virtualidade é poder se transformar numa consciência crítica do mundo.
Muito embora em Gramsci o termo não tenha sentido político imediato, mas seja
concebido como uma articulação cultural da hegemonia, o nacional-popular e seus
derivados –“popular-nacional”, “povo-nação”, “nação-povo” (Gramsci, 1980, 1982)- lhe
permitem idealizar um projeto a partir também da cultura para um país, como a Itália, que
até início do século XX não foi unificada sob um projeto de Estado-nação. O projeto
nacional-popular fará coincidir, assim, o Estado e a nação com o que existe de povo.
Foi em Gramsci que alguns dos teóricos mais importantes do pensamento crítico
latino-americano -como Rodolfo Stavenhagen, Enrique Dussel, René Zavaleta Mercado,
para citar apenas alguns que são em si mesmos totalmente diferentes- inspiram suas
reflexões sobre as culturas populares e os projetos nacionais-populares15.
15
Outro termo também proposto é o de Nacional-revolucionário, mormente utilizado para os processos
de fato revolucionários com ampla base social e direção socialista, como o cubano (Ianni, 1975).
René Zavaleta Mercado (1935-1984) 16, o sociólogo boliviano, é um dos autores
que avança com maior originalidade na compreensão de “Lo Nacional-Popular en
Bolivia”, obra póstuma publicada em 1986. Zavaleta Mercado utiliza o conceito nas
análises em que apresenta a massa com uma qualidade social: a autodeterminação. Seu
objetivo é explicar um país de composição social heterogênea –que ele chama de
abigarrada17-, e que é impossível de ser compreendido por categorias e regularidades
que servem para pensar a totalidade social em países ocidentais. Zavaleta Mercado tem
também uma urgência política: compreender de que modo, um país cujas forças
produtivas estão pouco desenvolvidas -na acepção moderna da palavra- pode ter formado
um nível de autodeterminação social capaz de protagonizar grandes feitios, como a
Revolução Nacionalista de 1952, ou multitudinárias manifestações camponesas-
indígenas de final da década de 1970 e em defesa do voto popular e a democracia.
A tese de Zavaleta Mercado (1983, 1986), pensada para a Bolívia até a década de
1980, é que numa sociedade abigarrada na qual não houve um projeto de Estado-Nação
que articulasse a diversidade social, e garantisse própria presença territorial e política
nacional, coexistem imbricadamente as temporalidades diversas: a formação econômica e
política estatal e as comunitárias indígenas. Nesse cenário, o Estado é aparente porque
não representa a totalidade da nação nem tem capacidade de integrá-la ou de realizar a
transformação das forças sociais. Tampouco tem condições –e de fato, as teorias sociais
16
Zavaleta Mercado possivelmente seja o maior teórico social crítico da Bolívia. A partir de um
marxismo nacionalizado, sua obra amadurece, desde a década de 1960 até sua morte em 1984, a explicação mais
sólida já feita sobre o país heterogêneo e cujas elites não conseguiram nunca elaborar um projeto para a
totalidade do país. Suas análises inicialmente preocupadas com o movimento operário avançam aos poucos para
a compreensão do campesinato-indígena como sujeito político fundamental no país. Para tal, há de desenvolver
uma metodologia que permitirá tornar inteligíveis sociedades heterogêneas como a boliviana. Suas principais
obras foram reunidas na antologia organizada pelo também boliviano, o politólogo Luis Tapia (2002), em que se
apresentam seus principais conceitos sobre as sociedades abigarradas, a composição das massas, a acumulação
no seio da massa e, entre outros, sua teses sobre os movimentos constitutivos. A última obra, e póstuma, Lo
Nacional-Popular em Bolivia, juntamente com Las Masas en Noviembre y Cuatro Conceptos de la Democracia
reúnem os conceptos aqui apresentados.
17
O significado de abigarrado encontra-se disseminado na obra de Zavaleta Mercado. Luis Tapia (2002)
tentou sintetizar o conceito de modo muito rico: o abigarrado é uma diversidade múltipla, de tempos históricos e
de Histórias diversas, com formas políticas ou estruturas de autoridade que implicam diversidade cultural ou, em
sentido mais amplo, de civilizações que coexistem dentro do que se chama nação ou país. Aqui, tempo histórico
é a organização do movimento das sociedades a partir do princípio organizativo de seu momento produtivo ou do
seu próprio padrão de transformação da natureza. É uma forma ou ritmo próprio que as sociedades têm de
mover-se. Já as Histórias são o movimento das sociedades nos seus processos de articulação ou totalização que
implicam tanto a continuação do passado, como as inovações presentes e suas projeções. As Histórias são a
totalidade dos fatos tal como acontecem e aconteceram, na forma matriz de organização, que é o tempo histórico.
tampouco- de entender o que há na formação social abigarrada, pois a nação real está
oculta18, silenciada, quase na clandestinidade em que a colocou a experiência colonial:
Si se dice que Bolivia es una formación abigarrada es porque en ella se han superpuesto las
épocas económicas (las del uso taxonómico común) sin combinarse demasiado (…) Tenemos,
por ejemplo, un estrato, el neurálgico, que proviene de la construcción de la agricultura andina,
o sea de la formación del espacio; tenemos por otra parte (…) el que resulta del epicentro
potosino (da mineração), que es el mayor caso de descampesinización colonial; verdaderas
densidades temporales mezcladas, no obstante, no sólo entre sí del modo más variado, sino
también con el particularismo de cada región, porque aquí cada valle es una patria, en un
compuesto en el que cada pueblo viste, canta, come y produce de un modo particular y todos
hablan lenguas y acentos diferentes sin que unos ni otros puedan llamarse por un instante la
lengua universal de todos. (…) De tal manera que no hay duda de que no es sólo la escasez de
estadísticas confiables lo que dificulta el análisis empírico en Bolivia, sino la propia falta de
unidad convencional del objeto que se quiere estudiar.
Detener la descripción de este punto no llevaría, con todo, sino a pensar que se trata de una
dispersión condenada a la dispersión. La entidad social, sin embargo, es una realidad poderosa
de una manera enigmática. Esto pertenece a un género de evidencia que contiene sus propias
contradicciones (quizá como toda evidencia). Todo ello —mercados, épocas, latitudes, hablas,
rostros— pertenece a lo que algunos llaman un fondo histórico, (…) hay una entidad que se
reconoce a sí misma. Pues bien, hay una medida en que el sentimiento de la identidad es la
prueba de que la identidad existe. (…) Los acontecimientos, teniendo por ellos desde el espacio
hasta la familiaridad y la violencia, han producido las premisas inconscientes de la unificación,
y en esto es natural no concebir la nación como un mercado. El problema radica en esto, en que
la intersubjetividad existe antes de las premisas materiales (supuestas premisas) de la
intersubjetividad. (Zavaleta Mercado, 1983: 17-18)
Para conhecer a nação enigmática, Zavaleta Mercado propôs a análise da crise
nacional geral como método de conhecimento das sociedades abigarradas, pois, “(l)a
crisis (…) no sólo revela lo que hay de nacional en Bolivia, sino que es en sí misma un
acontecimiento nacionalizador. Los tiempos diversos se alteran con su irrupción
(Zavaleta Mercado, 1983: 19).
18
É o que Bonfil Batalla (1987) chama de o México Profundo para o caso do seu país.
acumulou historicamente nas experiências de luta e confronto como classe e etnia desde
o momento colonial opressor. Mostra suas forças e as coloca à prova, exercita seus
conhecimentos e valores, suas melhores práticas e propostas, e também expõe os limites
do seu horizonte político. Por isso, também, a aparição da massa como fenômeno social
durante a crise é pedagógica para os outros e para si mesma, porque permite entender a
história das diversidades evidenciadas na crise e o rumo das suas potencialidades.
19
Conforme Zavaleta Mercado (2009b:182), “(n)o es que la lucha de clases dependa del carácter de la
dominación, porque en este caso la sociedad dependiente no podría producir sino dependencia indefinidamente,
e incluso las propias luchas de los sectores oprimidos no podrían moverse sino en los términos dados por la
conservación del sector opresor. La propia dependencia y la dominación en general dependen, por el contrario,
del modo de definición interior de la lucha de clases, aunque es obvio que, hasta que no triunfe la línea de
liquidación de la dependencia, esto no hace sino condicionar una dependencia que de todas maneras debe
suceder”.
Ora, pois, Zavaleta apresenta uma interpretação em que setores outrora
considerados como atrasados são agora capazes de manifestar grandes aspirações e
vontade coletiva em torno a projetos emancipatórios. A forma coercitiva e aparente do
Estado impediu de entender à teoria social o conteúdo real histórico deste povo, restando
apenas considerá-lo como massa típica do (neo)populismo: passiva e manipulável. Esta
tendência é maior quando se observam aos povos indígenas, cuja alteridade em si mesma
é pouco compreendida no pensamento colonizado, mas sem a qual é impossível
considerar os projetos emancipatório nacional-populares estatalmente constituídos nos
países de presença indígena.
A partir dos anos 1980, grandes transformações fraturaram o eixo das alternativas
de esquerda e as nacionais populares da América Latina. A reestruturação profunda do
aparato estatal, que colocou de lado os projetos nacionalistas em prol da abertura de
mercados vulnerou também a forma relativamente autônoma do Estado-nação. E por isto
que afirmamos que a crise do socialismo real desafiou a imaginação política e intelectual
regional da esquerda e castrou seus intentos de sugerir alternativas fora das estruturas
tradicionais de organização das resistências, isto é, fora dos partidos e dos sindicatos.
A crítica que emana deste novo pensamento questiona ainda o pensamento dual –de
fato nunca superado totalmente. Os críticos pós-coloniais latino-americanos (Quijano,
2005; Dussel, 2004; Mignolo 2000, Lander, 2000) denunciam que, ao ser o Ocidente
Europeu o centro fundacional moderno e irradiador da matriz colonial, o conjunto de
práticas e valores dessa matriz será conhecido como eurocentrismo, palavra-chave que
designa o modelo civilizatório que se impôs ao resto das civilizações nos planos material
e filosófico, e como práticas em conformidade com as hierarquias de privilégio do
homem heterossexual/ branco/ patriarcal/ cristão/ militar/ capitalista/ europeu
(Grosfoguel, 2010).
Quanto ao cenário interno, a unicidade dos projetos nacionais cedeu, pelo menos
nos projetos constitucionais, à diversidade, com critério de igualdade legítima, em que o
Estado reconhece e viabiliza a existência das diversas formas de organização política e
reprodução social, ou de gestão do território e da propriedade. No princípio jurídico, é
um Estado que aceita a alteridade vivida nos diversos modos de justiça e de
conhecimentos da natureza, ou nos vários princípios de bem viver. Os Estados
Plurinacionais, por isto, representam a expressão normativa mais depurada dos anseios de
autonomia dos povos indígenas, e são um desafio para a imaginação política porque se
definem como o campo mais avançado das lutas anticapitalistas e anticolonialistas.
Aceita uma nova territorialidade, com níveis distintos de autonomia e com diversos
tipos de instituições, em que se possam exercer as experiências democráticas particulares,
bem como a justiça comunitária e os novos critérios de gestão pública.
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