Você está na página 1de 32

37º Encontro Anual da ANPOCS;

Número e Título do ST 02
Título do trabalho: Questão nacional na Teoria Social Latino-americana e o
Plurinacionalismo como questão
Nome do autor: Vivian Urquidi
Questão nacional na Teoria Social Latino-americana e o Plurinacionalismo
como questão
Urquidi, Vivian,
Universidade de São Paulo/Universidade de Coimbra

América Latina vive desde a primeira década do século XXI a institucionalização


de duas experiências de refundação do Estado em moldes plurinacionais no Equador e na
Bolívia, objetivos consagrados nos textos constitucionais de 2008 e 2009,
respectivamente. A refundação dos Estados Plurinacionais alude a um longo processo de
mobilização e construção programática de um projeto de país em que os povos indígenas
vêm participando com as principais iniciativas, e junto a eles outros setores populares e
das classes médias, políticos e intelectuais, dispostos a dar resposta às pendências da
questão nacional. Nem sempre foi assim.

A questão nacional na América Latina nasce, como problema, já nos projetos


republicanos, como a necessidade de articular o crescimento e desenvolvimento das
forças sociais em países que formam parte do sistema-mundo capitalista, em posição
subordinada na divisão internacional do trabalho. Surge, pois, no início do século XIX,
contra a improdutiva carga colonial e inspirando-se no liberalismo e positivismo, com
inclinações ora mais protecionistas, ora mais abertas aos mercados externos, e sempre
sob o imperativo da modernização e o progresso.

Essa aposta vai mudar somente na segunda metade do século XX, quando uma
nova perspectiva, da dependência, distingue outro problema para a questão nacional e,
muito embora as posições divergentes entre os teóricos desta abordagem, alcança-se o
consenso de que na América Latina vinha se impondo um capitalismo de tipo dependente
pelo modo como as economias regionais se inseriam no sistema econômico já dominado
pelos países centrais. A tarefa, assim, seria repensar criticamente a questão nacional a
partir das estruturas globais e definir no cenário da dependência a reconfiguração das
forças sociais internas.

Porém, a crise do socialismo real, que na década de 1980 culminou na queda do


Muro de Berlim, forçou o pensamento crítico dependentista a questionar seus paradigmas
teóricos -como se sabe-, colocando ainda para a esquerda uma devastadora dúvida
existencial. Às violentas ditaduras dos anos 60 e 70, seguiu-se um período democrático
de reformas estruturais de ordem neoliberal no Estado, cujo aparente sucesso expulsou
dos centros do debate crítico e político não apenas a imaginação política revolucionária
como também seus sujeitos e projetos locais de emancipação. Assim, o promissor
pensamento político e social latino-americano, que até as décadas precedentes parecia ter
encontrado seu prumo na Teoria da Dependência, viu-se assim novamente no desafio de
repensar a questão nacional com novas problemáticas.

Em tal contexto de incertezas, ao longo da década de 1990, ficou por conta de


novos setores sociais trazerem de volta as grandes questões não resolvidas da região: a
ausência de projetos autônomos para o país, o padrão de dominação interna e a
inabilidade das elites locais de articular a totalidade social e cultural num projeto de país.
Aqui, porém, a questão terá um teor plurinacional e seus atores principais serão os povos
indígenas.

Eis que o pensamento social latino-americano recupera um dos seus autores mais
destacados, o peruano José Carlos Mariátegui, quem no início do século XX já pensou
num projeto revolucionário na América Latina a partir da experiência dos povos
indígenas.

A questão nacional e o socialismo incaico de José Carlos Mariátegui

A obra1 de José Carlos Mariátegui (1895-1930) envolve um conjunto vasto de


análises teórica e política, ensaios e críticas literárias sobre a vanguarda da época, e sobre
os acontecimentos de um mundo convulsionado de início de século XX. Seu desafio,
porém, era produzir um instrumento ideológico para as lutas populares que nas cidades
iniciavam uma embrionária mobilização de trabalhadores e estudantes e no campo se
manifestavam em levantamentos de comunidades indígenas, indicando que o modelo de
produção e exploração gamonal, o gamonalismo2, estava se esgotando.

Como estudioso profundo do marxismo, mas sem uma leitura ortodoxa — o que
não o poupou de críticas — José Carlos Mariátegui buscou pensar um programa
1
Ver especialmente Siete Ensayos de la Realidad Peruana, escrito em 1928. Também El Problema de las
Razas en América Latina; além de Punto de Vista Antiimperialista, textos apresentados no Congreso
Constituyente de la Confederación Sindical Latinoamericana de Montevideo, e na Primera Conferencia
Comunista Latinoamericano de Buenos Aires, realizados em maio e junho de 1929, respectivamente.
2
Gamonalismo é o tipo de poder particular que se estabelece regionalmente pelo latifúndio e que nasce
da relação peculiar de servidão entre o senhor latifundiário e o camponês-indigena no Peru, e por extensão na
América indígena. É um poder econômico e político que nasce do latifúndio e que se estende à família do
latifundiário e que se manifesta pelo controle, por meios espúrios, das comunidades indígenas e de toda uma
estrutura de suporte administrativo e político do entorno regional, consolidando assim as relações típicas do
colonialismo interno (Mariátegui, 2007 [1928]; Flores Galindo, 2001; Quijano, 2007).
revolucionário num país heterogêneo, com um proletariado ainda muito pequeno e um
campesinato-indígena, o maior contingente da população, mas sem articulação orgânica.
O potencial dos indígenas era evidente para Mariátegui não apenas pelos levantamentos
que protagonizara na década de 1920, senão principalmente pela sobrevivente estrutura
comunitária do ayllu, cujas características de trabalho e propriedade coletivas poderiam
ser a base de novas relações materiais e do futuro socialismo indo-americano.

É preciso lembrar que quando Mariátegui propôs sua interpretação sobre a


realidade peruana, a 3ª. Internacional — ao amparo da Revolução Russa de 1918 —
estava em franca expansão na América Latina, inspirada, porém, antes nas lutas nacionais
e anti-imperialistas do Leste Asiático. Tinham os comunistas, por isso, grande
dificuldade para entender a composição das sociedades americanas, seja o papel das
elites em relação ao capital internacional, seja a situação e estruturas comunais dos povos
indígenas.

É justamente nesses aspectos que Mariátegui daria sua maior contribuição para
pensar a questão nacional. De início, percebeu que a incipiente burguesia —
essencialmente comercial —, não havia desenvolvido interesses, como era de se esperar,
antagônicos em relação ao latifúndio gamonal, e atuava, porém, aliada a ele como
intermediária do capital internacional. Desta constatação, era possível completar que a
burguesia não apenas seria incapaz de desenvolver no futuro as forças produtivas e
sociais ou de ter um projeto de nação com ambição nacionalista. Pelo contrário, à medida
que a organização popular se estruturava, a posição liberal-democrática da burguesia
deixava passo para versões mais coercitivas de exercício do poder, ou inclusive a
manifestações saudosas de valores aristocráticos coloniais –numa aversão cada vez mais
evidente à nação indígena.

Mariátegui se negou assim a compactuar com a burguesia, mas se opôs também


às diretrizes da Internacional comunista e seu etapismo preparatório da verdadeira
revolução. O mesmo motivo, a desconfiança na burguesia peruana, finalmente, fez
Mariátegui contestar também aos setores do nacionalismo democrático, entre eles ao
intelectual e militante Victor Haya de la Torre (1895-1979), que ansiava por um pacto de
classes nacionais, incluída ai a burguesia, para construir um projeto anti-gamonal e anti-
imperialista.
Ao negar o caráter revolucionário da burguesia peruana, Mariátegui apostava,
porém, na possibilidade de constituir um novo bloco socialista de setores populares, em
que os operários teriam a tarefa de articular as classes médias intelectuais, a pequena
burguesia e as comunidades indígenas sob uma ética pautada pelo indo-socialismo.

Subjaz nessa interpretação uma das teses mais originais até então da realidade da
região, qual era negar as teses dualistas sobre a situação latino-americana, como era
comum nas teses ora vigentes, em que o progresso era concebido como horizonte para o
desenvolvimento dos setores atrasados e tradicionais, ou o etapismo determinava a
evolução da revolução. A posição de Mariátegui era possível por seu marxismo não
ortodoxo. Para ele, os tempos produtivos não se sucediam, mas coexistiam sem
profundas contradições na América Latina, pois que a economia comunitária era
subsumida à produção “semifeudal” gamonal que, pelo seu turno, se articulava
subordinadamente com a lógica do capital mundial em fase monopolista. Por isto, o
processo europeu, em que um modo de produção é superado por outro, no continente
colonizado ocorre como uma totalidade de diversas modalidades produtivas
funcionalmente articuladas ao capitalismo internacional.

Ao romper com o pensamento dualista e determinista Mariátegui pôde enxergar,


então, que as condições da revolução já estavam estabelecidas na experiência indígena. A
pugna do proletariado e da pequena burguesia contra o capitalismo devia, assim, estar
ligada estreitamente à luta do indígena contra o gamonalismo. E mais: lutas latino-
americanas deveriam ser, ao mesmo tempo, antigamonais, anticoloniais, anti-
imperialistas e se organizar rumo ao socialismo indo-americano, a partir da estrutura
complexa indígena já existente. Por último, assim como a revolução operária devia ser
idealizada e realizada pelos operários, para “(l)a solución del problema del indio tiene
que ser una solución social. Sus realizadores deben ser los propios indios” (Mariátegui,
2007, 38). Premissa que inspiraria as futuras lutas libertárias latino-americanas.

O caráter da questão nacional para Mariátegui é dar ao mesmo tempo uma


resposta ao latifúndio gamonal, ao capitalismo imperialista e à subordinação do momento
produtivo local ao capital internacional. Paralelamente, é pensar um projeto a partir dos
setores médios, operários e camponeses da sociedade, articulados numa frente popular.
Finalmente, a questão nacional é um projeto de nação socialista, a partir do acervo
cultural e das experiências organizativas dos povos indígenas.
Muito embora o projeto de Mariátegui fosse sensível às experiências
revolucionárias do velho continente e do México, ele considerava o país concreto em que
ele vivia, o Peru que não tinha condições de reproduzir as experiências revolucionárias
da Rússia ou da China, nem interesse no modelo de socialdemocracia europeia, e que na
própria vivência acumulava as experiências para um modelo local de (indo-)socialismo.

Partir de um marxismo localmente referenciado foi fundamental em Mariátegui,


muito embora por esta filiação ideológica fosse vezes denunciado europeísta –por Haya
de la Torre, por exemplo. Entretanto, muito embora as importantes influências europeias,
Mariátegui, de fato, nacionalizou o marxismo (Tapia, 2002: 330).

Sabe-se que os métodos que observou na campanha de Lenin o inspiraram para


pensar as ações e o papel dos sujeitos na luta revolucionária em Peru, mas que foi o
conhecimento da experiência sindical e partidária na Itália da segunda década de século
XX, o que lhe deu o tom ao seu marxismo não ortodoxo e localmente situado. Pois, sem
ser possível afirmar que Mariátegui tenha conhecido Gramsci, o autor peruano vivenciou
com esse grupo os debates exemplares que lhe permitirão pensar depois a situação
peruana. Participou nos congressos de operários e viu, com o nascimento do PC Italiano,
nascer um bloco nacional-popular cuja tarefa seria construir o caminho para a -cada vez
mais difícil- revolução; pois na Itália de Gramsci –e que Mariátegui acompanhou- o
fascismo instalado já no poder crescia pela aliança de classes entre a burguesia do norte
industrial e a oligárquica fundiária do sul, e pelo apoio crucial da pequena burguesia.
Construir um bloco histórico de composição nacional-popular era a alternativa italiana
contra as derrotas do, já reduzido, operariado italiano e perante o enfraquecimento da
esquerda. Esse bloco não seria possível, porém, sem incorporar às classes médias -
geralmente de posição política oscilante- e ao enorme contingente de camponeses do Sul,
aquela população dispersa e que era politicamente mais conservadora.

Dai a solução do bloco nacional-popular aparecer como escolha adequada para


formar uma vontade coletiva e colocar as bases futuras de um partido de massas cuja
tarefa, entre outras, fosse resolver a fratura cultural do país cindido pela diversidade de
dialetos, de manifestações folclóricas e pelo descaso com a cultura popular.

A realidade peruana, em algum sentido, não era totalmente distinta à italiana:


longe de a burguesia e o latifúndio estarem em posições antagônicas, como vimos, estas
classes se afinavam e subordinavam ao capitalismo imperialista. Por outro lado, a
sociedade não estava articulada nem geográfica nem culturalmente, e tinha que suportar
ainda a endurecimento crescente do Estado contra qualquer tentativa de contestação.

Muito embora as coincidências fortuitas, as relações coloniais na América Latina


haviam dado o caráter específico à questão nacional: “En el Perú, el aristócrata y el
burgués blancos, desprecian lo popular, lo nacional. (Mariátegui, [1929a], 2013). Con
esto, esa clase no ha hecho otra cosa que reproducir, en esta cuestión nacional interna,
las razones de la raza blanca en la cuestión del tratamiento y tutela de los pueblos
coloniales (Mariátegui, [1929b], 2013).

Era, porém, exatamente a experiência dos indígenas que daria o tom ao projeto
revolucionário latino-americano e que superaria também a fragmentação nacional: “No
queremos, ciertamente, que el socialismo sea en América calco y copia. Debe ser
creación heroica. Tenemos que dar vida, con nuestra propia realidad, en nuestro propio
lenguaje, al socialismo indo-americano” (Mariátegui: [1928] 2013).

É nesse contexto que inspirado no marxismo Mariátegui rediscute os fundamentos


arraigados que conformam também a nação, sejam os religiosos, seja a educação ou a
arte e cultura populares3. Quando trata dos problemas do índio, ele sabe que a questão
nacional para o índio é a terra, contudo, não apenas como um meio de subsistência ou
reprodução material, mas principalmente por todo o conteúdo cultural e mítico:
“La República ha significado para los indios la ascensión de una nueva clase
dominante que se ha apropiado sistemáticamente de sus tierras. En una raza de
costumbre y de alma agrarias, como la raza indígena, este despojo ha constituido una
causa de disolución material y moral. La tierra ha sido siempre toda la alegría del indio.
El indio ha desposado la tierra. Siente que “la vida viene de la tierra” y vuelve a la
tierra. Por ende, el indio puede ser indiferente a todo, menos a la posesión de la tierra
que sus manos y su aliento labran y fecundan religiosamente” (Mariátegui, 2007: 36).
A questão nacional, assim, é abordada por José Carlos Mariátegui nos vários
aspectos do problema: no âmbito econômico e dos tempos produtivos imbricados e no
das relações internacionais; no campo político da concepção das forças locais e regionais,
e na cultura e a composição social heterogênea do seu povo. Propõe, finalmente, a
solução do problema nacional pela constituição de um socialismo incaico que se expanda
pela América Indígena.

A consolidação da influência norte-americana na região, ao longo da primeira


metade do século XX, permitiu que a teoria social regional se impregnasse do imperativo

3
“No debe haber alta cultura, porque será falsa y efímera, donde no haya cultura popular” (Mariátegui:
2007: 129), citando a Pedro Henriquez Ureña.
da modernização e de acompanhar o ritmo dos países desenvolvidos. Assim, a lógica
dualista, que nunca abandonara a academia e a política, ganhou então progressivamente
fôlego com análises sobre as sociedades feudais latino-americanas, em que o moderno
opõe-se ao tradicional, e o desenvolvimento ao subdesenvolvimento. Dão-se assim as
bases para a teoria da modernização e para uma nova posição sobre a questão nacional.

À luz da Guerra Fria e do espanto gerado pela Revolução cubana, as teorias da


modernização trouxeram um modelo de desenvolvimento inspirado nas etapas de
crescimento de Rostow4.

A configuração local destas teorias pode ser sintetizada pelas teses da


industrialização pela substituição de importações a partir de categorias como centro-
periferia que se formularam nos trabalhos da CEPAL e pela autoria de intelectuais como,
principalmente, Raúl Prebisch (1901-1986). A obra “O Desenvolvimento Econômico da
América Latina e alguns dos seus Principais Problemas”, escrita já em 1949, influenciou
decisivamente nas ideias e na implementação de programas de modernização
conservadora da região, características dos modelos populistas. Assim, Programas como
a Aliança para o Progresso –o plano de investimento produtivo na forma de capital,
tecnologia e experiência dos Estados Unidos na região- e as ditaduras militares dos anos
dos anos 1960 na América Latina finalmente forneceram as condições para a
disseminação de um tipo específico de desenvolvimento, a modernização conservadora.

Questão Nacional no Populismo e modernização conservadora

Muito embora a heterogeneidade de interpretações sobre o populismo, há certo


consenso em caracterizá-lo como um fenômeno de massa, determinado como política de
Estado com foco no incentivo à modernização conservadora5, modelo espalhado em
maior ou menor medida, desde a década de 1930 pela América Latina.

4
Walter Whitman Rostow (1916-2003) era um economista estadunidense e político que apostou no livre
mercado para o desenvolvimento econômico, determinando as “Etapas do crescimento econômico”, nome da
obra em que se apresenta a clave do desenvolvimento econômico, partindo das sociedades tracionais até chegar
às de alto consumo massivo. Neste processo passar-se-ia por uma fase de despegue até a maturidade. Foram
teses muito promovidas nos programas de desenvolvimento da década de 1960, na América Latina, pelo governo
Kennedy, a quem Rostow assessorou, principalmente na Aliança para o Progresso. O modelo rostowniano tinha
a clara tarefa de neutralizar a cubanização do continente pelo incentivo rápido ao crescimento.
5
Conceito utilizado por Otavio Ianni (1983) para analisar o desenvolvimento industrial brasileiro e a
introdução de uma base técnica nova na produção rural. O aspecto conservador da modernização relaciona-se
com a manutenção da estrutura fundiária altamente concentrada, a promoção do desenvolvimento urbano
industrial acelerado, a ausência de um processo democrático e a tutela do povo pelo Estado.
A despeito do sucesso relativo destas políticas, o impacto negativo das promessas
não cumpridas da modernização é bastante conhecido: paisagens urbanas expandidas e
degradadas como resultado do êxodo desmedido às cidades, paralelo ao desmonte e
desvalorização das estruturas comunitárias camponesas e indígenas. Afirma-se (Ianni,
1983; Heintz, 1964; Chonchol, 1994) que a migração teria gerado certa disponibilidade
moral dos migrantes a aceitar as expressões da autoridade ou da vontade do líder do
governo, independentemente do teor democrático ou não das posições governamentais. O
carisma paternalista garantiria a fidelidade das massas ao líder, ao ponto de a politização
ceder lugar à moral clientelar, impactando finalmente, de modo crucial, o
desenvolvimento do proletariado latino-americano como classe em formação. As
experiências mais conhecidas do fenômeno do populismo, na América Latina, foram o
varguismo no Brasil, o peronismo, na Argentina e o cardenismo, no México, mas
posteriormente, ele também designará governos como de Velasco Ibarra no Equador,
Velasco Alvarado no Peru, Arbenz na Guatemala, Ibañez no Chile e Paz Estenssoro na
Bolívia, entre outras experiências.

Numa abordagem na perspectiva classial, Ianni (1975) chegou a afirmar que o


populismo, à medida que as oligarquias fundiárias perdiam espaço na política e uma nova
classe liberal ainda não se alçava para substituí-las, o populismo teria obtido sucesso ao
combinar desigualmente classes sociais que foram, então, agrupadas sob um projeto
nacionalista conservadora. Sem o conteúdo de classe, e muito embora o cenário
coercitivo de regimes ditatoriais, o elemento articulador das massas foi então a ideia e o
sentimento de nação, ou melhor, o sentimento contra o que era considerado de anti-
nação: o imperialismo e as oligarquias tradicionais.

A perspectiva de classe, no entanto, não tem contribuído de fato para entender o


fenômeno nacional na América Latina. Sabe-se que o marxismo considerou que, no
cenário de formação da sociedade burguesa, a questão nacional da autonomia do Estado
e da integração social é um dilema a ser resolvido pelo desenvolvimento das forças
produtivas locais, e pelo fortalecimento do poder político da burguesia na formação
estatal moderna, isto é, no Estado Nação.

No Manifesto Comunista, por exemplo, são três os momentos de constituição da


sociedade capitalista e do poder burguês: primeiro, o desenvolvimento das forças
produtivas nacionais e internacionais; segundo, a emergência e consolidação da classe
dirigente da revolução burguesa e, finalmente, a criação do Estado moderno, o Estado-
nação, como expressão da hegemonia da nova classe dirigente e do modo como organiza
a sociedade política, econômica e culturalmente.

A falta de unificação italiana e a inexistência atípica –no cenário da Europa


ocidental- de um Estado-Nação foram também o foco das preocupações de Gramsci por
articular um bloco histórico de núcleo nacional-popular, que permitisse os comunistas
confrontar a aliança fascista entre a burguesia, o latifúndio e o exército que se
disseminava crescentemente nas massas populares.

Como no caso do fascismo italiano, a caracterização do populismo na América


Latina tem um cenário também de governos militares, apoiados em políticas paternalistas
e de modernização conservadora, como estratégia de realização da fadada unificação
política que é o Estado-Nação, aquela que seria a tarefa das elites desde os estatutos de
independência, mas que a herança colonial não conseguiu desenvolver.

Muito embora os significados que a forma Estado-nação implique dentro da teoria


política clássica, para o caso latino-americano é conveniente lembrar das relações
específicas de poder que subjazem a esta formação:
Um Estado-nação é um tipo de sociedade individualizada entre as demais. Por isso, pode ser
sentida entre seus membros como identidade. No entanto, toda sociedade é uma estrutura de poder.
É o poder que articula formas de existência social dispersas e diferentes em uma totalidade única,
uma sociedade. Toda estrutura de poder é sempre, parcial ou totalmente, a imposição de alguns,
frequentemente o mesmo grupo, sobre os demais. Consequentemente, todo Estado-nação possível é
uma estrutura de poder, assim como é produto do poder (Quijano, 2005: 69).
Na América Latina, foi a matriz colonial a que deu o tom das relações de poder que
atuaram na constituição do Estado-nação:
“Ainda não é possível encontrar, em nenhum país latino-americano, uma sociedade
plenamente nacionalizada nem tampouco um genuíno estado-nação. A homogeneização nacional
da população, de acordo com o modelo eurocêntrico de nação, só poderia ter sido alcançada
através de um processo radical e global de democratização da sociedade e do Estado. Antes de
tudo, essa democratização deveria e ainda deve implicar um processo de descolonização das
relações sociais, políticas e culturais entre as raças, ou mais propriamente, entre os grupos e
elementos de existência social europeus e não-europeus. Não obstante, a estrutura de poder foi e
continua a ser organizada sobre e ao redor do eixo colonial. A construção da nação e
principalmente do Estado-nação tem sido conceitualizada e trabalhada contra a maioria da
população, neste caso, os índios, negros e mestiços. A colonialidade do poder ainda exerce seu
domínio na maior parte da América Latina, contra a democracia, a cidadania, a nação e o Estado-
Nação moderno”. (Quijano, 2005:84).
Ao ser o Estado-nação a unidade privilegiada da regulação social, porém, ele
também se presenta como o espaço de disputa da emancipação social (Santos, 2010b). A
empreitada dos movimentos contrários à matriz colonial dos poderes na América Latina
vem concentrando crescentemente sua atenção no próprio significado do Estado-nação,
ora denunciando sua unicidade arrogante e hierárquica, ora negando sua própria
existência uni-nacional.

A despeito deste debate, muito destacado no pensamento pós-colonial, a existência


relativa do Estado-Nação na América Latina tem servido de referência para a pensar a
situação latino-americana e propor algumas alternativas. Ao tratar do populismo, por
exemplo, do ponto de vista das relações de classe, Ianni (1975) buscou indicar o caminho
das principais lutas para a superação da fase populista do Estado-Nação latino-americano
a partir da luta de classes. Com esse propósito, assim, Ianni não se debruçou
profundamente para entender o sentido de nação na América Latina, ora considerada
como sinônimo de massa, ora como totalidade da população nacional, ora por fim como
conceito oposto a o que é externo ou internacional. Parte da ideia, assim, do pressuposto
de existência de um Estado-Nação como o projeto estatalmente construído pelas elites no
resguardo dos seus interesses particulares de classe, o que não difere em muito das
abordagens marxistas mais clássicas ou das dependentistas. Não parece haver, de resto,
nos trabalhos que Ianni referencia sobre o populismo -e por isto, tampouco há nas suas
conclusões- a caracterização de nação nos aspectos culturais ou de pertença a uma
comunidade de identidade abstrata imaginada. Menos se observa, ainda, qualquer leitura
sobre as populações rurais na América Latina com sua mediação étnica.

A mesma leitura sobre a nação possivelmente seja a utilizada nas obras que
analisam as novas lutas sociais em prol de projetos plurinacionais para a Bolívia e o
Equador, questionando o modelo de Estado-Nação ainda vigente. Assim, é possível
encontrar nos setores detratores dos projetos plurinacionais, certa tendência a considerar
as novas lideranças naqueles países como casos de neopopulismo. Algo semelhante
ocorre na análise do Lulismo no Brasil e do Chavismo na Venezuela.

Ao analisar o populismo contemporâneo, ou neopopulismo, observa-se que ele é


relacionado a governos que, na primeira década de 2000, surgem em países identificados
como de baixa institucionalidade política, ou seja, a Bolívia de Evo Morales, o Equador
de Rafael Correa ou a Venezuela de Hugo Chaves. O neopopulismo também seria um
fenômeno de massa como política de governo, embora desta vez, de esquerda. O foco do
neopopulismo é ainda o trabalhador –concebido no sentido policlassial e basicamente
urbano-, e também os novos movimentos sociais, cujas demandas são heterogêneas e
amplas. Os governos de esquerda ditos “neopopulistas” se utilizariam, então, da velha
política clientelar e assistencialista, para satisfazer as diversas demandas da massa, sem
transformar profundamente a estrutura econômica nem as relações de poder. A leitura
vale também para analisar as experiências sindicais, as posições de intelectuais e de
partidárias populares (Baquero, 2010; Plattner, 2010, Leis, 2008; Demers, 2001, Vélez
Rodríguez, 2011).

As experiências recentes latino-americanas, entretanto, merecem abordagens mais


cuidadosas (Villa & Urquidi, 2006, Santos, 2010) que entendam a formação policlassista
destas experiências, mas sempre que atrelada tal formação aos pressupostos do bloco
plural histórico que se forma, com um núcleo popular, isto é, numa estrutura que lembra
antes o nacional-popular na acepção gramsciana, do que o populismo acima referido.

Sem este cuidado, as análises sobre o populismo latino-americano correm o risco


de reduzir a heterogeneidade de experiências e de respostas sociais a um dualismo pobre
que opõe institucionalidade forte a experiências em que há um ativo capital social
(Hebets, 2009, Villaume Carranza, 2010, 351) -base também da democracia- que disputa
o poder estatal e que é por isso fonte da baixa institucionalidade, incompleta ou atrasada.

Crítica às Teses Duais e a Especificidade da Dependência Regional

A mudança de foco na teoria social sobre a modernização latino-americana ocorre


principalmente quando críticas à visão dualista obrigam a repensar a lógica das mudanças
do desenvolvimentismo e da modernização. A nova perspectiva surge dentro das teorias
da dependência por trabalhos como “Siete Tesis Equivocadas sobre América Latina”,
obra publicada em 1965, em que o sociólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen denuncia
na teoria social, inclusive nos dependentistas, o suposto das sociedades duais. A
confrontação “arcaica, tradicional agrária, estancada ou retrograde” à sociedade
“moderna, urbanizada, industrializada, dinâmica, progressista e em desenvolvimento”,
conforme Stavenhagen, teve um impacto devastador para a compreensão da questão
nacional: as economias rurais –i.e. as comunidades camponesas e indígenas- foram
inculpadas de ser obstáculo ao desenvolvimento; apostou-se no potencial revolucionário
da burguesia latino-americana e no nacionalismo das classes médias urbanas; na via
mestiça das alianças sociais e da integração; e acriticamente seguiu-se o dogma classial
como base da articulação da frente popular de operários e camponeses.
As teorias da dependência também são denunciadas quanto à logica dualista em
“Feudalismo y Capitalismo na América Latina”, nome sugestivo de obra em que, em
1971, o politólogo argentino Ernesto Laclau (1978) denuncia as teses que desde o século
XIX afirmam que o latifúndio latino-americano é uma experiência feudal. Para Laclau, o
modo de produção capitalista na América Latina tem coexistido desde antes das lutas de
Independência, funcionalmente com os modos não capitalistas –os comunitários e as
formas coercitivas de trabalho não livre no latifúndio. De modo que a tese mais correta
para a situação latino-americana seria aceitar a complexidade dos tempos históricos que
funcionalmente se incorporaram ao sistema-mundo capitalista, mas de modo
subordinado. Dar resposta anticapitalista e anti-imperialista a essa coexistência funcional
e dependente das estruturas econômicas locais seria o desafio da questão nacional.

A Questão Nacional como problema de Dependência

Pelo acima indicado, denunciar a posição periférica e as consequências para o


Terceiro Mundo foi um desafio político importante para a teoria social latino-americana.
E, muito embora, esta posição oferecesse leituras da dependência nas múltiplas
dimensões da vida social, foram os aportes na esfera econômica e das relações
internacionais os que com maior ênfase se disseminaram mundo afora, contribuindo
assim com uma das mais criativas leituras da situação periférica no sistema-mundo
capitalista. E mais: o marxismo localmente referenciado destes estudos –em confronto
com as interpretações mais ortodoxas da tradição marxista- foi basilar para compreender
as relações coloniais quando aludidas ao sistema capitalista. Contribuiu-se, assim,
decisivamente para melhor entender as relações com o imperialismo e para superar as
proposições mais ortodoxas da tradição marxista (Young, 2001).

Mais desafiante que denunciar a situação periférica, porém, foi apontar a lógica
econômica da dependência, e neste aspecto, foi o cientista social brasileiro, Rui Mauro
Marini (1932-1997), quem possivelmente fez as contribuições mais lúcidas, na
celebrizada “Dialéctica de la Dependencia”, que, em 1973, ofereceu uma cabal descrição
da origem da dependência e das contradições fundamentais ao interior dos países
dependentes. Marini (2008) advertiu que o tipo de exploração da força de trabalho entre
Estados nacionais centrais e periféricos permitia mudar o padrão de exploração em países
industriais –da exploração absoluta para a relativa-, e aprofundar e manter vigente o
padrão de exploração do mais-valor absoluto nas economias dependentes e exportadoras.
Desta relação, produzia-se o tipo específico das relações de produção nas sociedades
dependentes, a superexploração do trabalho: para diminuir o impacto da perda do mais-
valor drenado para as economias centrais, as classes dominantes, aumentavam o tipo de
exploração absoluta do trabalho rural e mineiro, graças à elevada disponibilidade de mão
de obra local, determinando a superexploração do trabalho. Assim, este tipo de
exploração não seria uma forma a mais das relações de produção, mas seria a forma
específica que assumiam as relações de exploração numa nação dependente.

O rigor com o que Marini aplicou os instrumentos metodológicos do marxismo


para entender a forma sui generis do capitalismo dependente latino-americano bem como
o movimento do capital imperialista na formação dessa dependência lhe permite concluir
quais as tarefas do teórico crítico para dar conta da dependência:
“Utilizar esa línea de análisis para estudiar las formaciones sociales concretas de América
Latina, orientar ese estudio en el sentido de definir las determinaciones que se encuentran en la
base de la lucha de clases que allí se desenvuelve y abrir así perspectivas más claras a las fuerzas
sociales empeñadas en destruir esa formación monstruosa que es el capitalismo dependiente: éste
es el desafío teórico que se plantea hoy a los marxistas latino-americanos” (Marini, 2008: 149).
A análise de Marini restringe seu objetivo à esfera econômica e das relações
sociais. Novas leituras aportarão dimensões políticas6 ou culturais7 outras da dependência
naquilo que se conhecerá como o pensamento pós-colonial latino-americano.

Sabe-se que os estudos pós-coloniais têm partido da crítica aos crimes contra a
humanidade que os modelos de dominação colonialista e o capitalismo imperialista
impuseram sobre o resto do mundo. Nesse ponto de partida, o marxismo teve um papel
categórico na inspiração das lutas de resistência anticoloniais, já que, por muito tempo,
foi ele o único pensamento a sustentar as críticas da esquerda sobre os efeitos do sistema
imperialista e das formas coloniais existentes de dominação e exploração (Young, 2001).

6
Em Francisco Weffort, por exemplo, as relações de dependência só devem ser analisadas em
correspondência com as classes nacionais e o papel das elites que controlam o Estado, i.e, se –e em que grau- o
tipo de relações de classe ao interior de cada país determina o caráter nacional ou dependente da sua economia,
da política e de outras dimensões da nação. As variáreis de classes e controle do Estado na questão nacional
permitem estabelecer a situação ambígua e contraditória de um Estado-Nação latino-americano que é
dependente economicamente, embora independente no plano político: as elites atuam ambiguamente quando no
país formalmente independente, elas apostam na dependência econômica, como política de Estado. A situação é
contraditória, porém, quando os interesses nacionais –políticos e econômicos- se opõem aos interesses do
mercado internacional. São exemplo disto as experiências em que a autonomia política coincidiu com o projeto
de autonomia econômica, gerando uma contradição de interesses com o mercado, mas não uma política ambígua
com os interesses da nação (Weffort, 1995).
7
Vide, por exemplo, Dussel (2004), que ao analisar as culturas latino-americanas percebe que no período
de produção mais profícuo das teorias da dependência, ao conceito mais substancialista da cultura, se impusera
“descubrir sus fracturas internas (dentro de cada cultura) y entre ellas no sólo como ‘diálogo’ o ‘choque’
intercultural, sino más estrictamente (las fracturas) como dominación y explotación de una sobre otras. La
asimetría de los actores había que tenerla en cuenta en todos los niveles” (Dussel, 2004: 6)
É esta filosofia também que influenciara as diversas possibilidades vigentes de
socialismo do século XXI, que ora entram na agenda de governos e nas lutas sociais. O
tom obreirista e urbano, que marcara o ritmo das lutas até a década de 1960, perdeu
fôlego para um socialismo humanista entusiasmado pelo guevarismo8 e a luta armada, e
por uma ética de liberação da igreja dos pobres (Freire, 1967; Gutierrez, 1971, Dussel,1998).

Paralelamente, no âmbito das análises das relações étnicas, observou-se o


aparecimento dos primeiros intelectuais e líderes de origem indígena, avessos à ideia da
integração dos índios nas políticas indigenistas. E se no início, estes autores buscaram
nas lutas libertárias do após revolução cubana uma fonte de inspiração, com o tempo eles
assumiram uma agenda própria –quando não oposta à influência do marxismo e da
religião ocidental (Bonfil Batalha, 1981)- pautada pelo projeto da descolonização.

Assim, a questão nacional passou a ser, segundo o sociólogo mexicano, Pablo


Gonzalez Casanova (1922---), um eufemismo de um tipo específico de relação colonial, o
colonialismo interno.

Questão Indígena e o Colonialismo Interno

Sabe-se que as políticas de modernização e populismo atuaram com incrementada


violência física e simbólica contra os povos indígenas. O presidente peruano Velasco
Alvarado, no período 1968 a 1975, por exemplo, quando decretava a reforma agrária,
instituía também o desaparecimento do índio ao transformá-lo em campones-comunário.
Em 1973, o Estatuto do Índio no Brasil, por seu lado, enquanto o Estado abria estradas
nas regiões amazônicas, decidia a tutela do índio pelo Estado.

As políticas indigenistas na América Latina são a situação típica do pensamento


moderno colonial, daquela racionalidade que reconhece a diversidade, mas que a
subordina ao imperativo do progresso e do desenvolvimento. Foi o Congresso
Indigenista, realizado na cidade mexicana de Patzcuaro, em 1940, que marcou o início da
história oficial do indigenismo latino-americano, com um novo corpo doutrinário, que
harmonizou e organizou as tarefas dos governos participantes para resolver ‘o problema
do índio’. Na “Declaração Solene de Princípios” anunciava-se, logo no início, que:
“Todas las medidas o disposiciones que se dicten para garantizar los derechos y proteger
cuanto sea necesario a los grupos indígenas, deben ser sobre el respeto a los valores positivos
de su personalidad histórica y cultural y con el fin de elevar su situación económica y la

8
Vide Guevara (1964; 1967)
asimilación y el aprovechamiento de los recursos de la técnica moderna y de la cultura
universal” (apud, Pineda, 2012).
Simbolicamente, o Congresso foi inaugurado pelo populista Lazaro Cárdenas9, do
governo mexicano, que fez do indigenismo a versão populista da política de massa para
os índios-camponeses na segunda metade do século XX na América Latina.

Por isso, as lutas libertárias que se deflagraram nas áreas rurais, a partir da década
de 1960, podem ser consideradas resposta do camponês-indígena à ética populista do
indigenismo. Das lutas, emergiram os primeiros intelectuais e lideranças indianistas, e
daí nasceram os albores da organização indígena contemporânea voltada, no início, para
a luta pela terra e contra as diversas formas de exploração do índio. Mas, à medida que os
movimentos avançam em posições políticas locais, um plano mais abstrato de princípios
e direitos começaram a ser observados na retórica indianista (Barre, 1983). Em
levantamento10 delicado dos principais textos clássicos do indianismo e de documentos
históricos de referência, Bonfil Batalla, o antropólogo mexicana, conseguiu algumas
tendências no pensamento indianista. Observou uma atitude de reafirmação do
pensamento político índio pela contraposição ao pensamento e civilização ocidental.
Analisou a denúncia ao colonialismo vigente nas relações racializadas e na razão
genocida. Também nas tentativas de reinterpretar a história índia na história colonial. E
muito embora, ao longo das lutas indígenas, alguns movimentos atuassem orquestrados
com a luta armada da guerrilha de esquerda, até final da década de 1970, ou em
movimentos de base da igreja católica, observou também que havia uma tendência nos
ideólogos indianistas a rejeitar tanto a religiosidade ocidental quanto a doutrina marxista,
fonte de eurocentrismo e de valores civilizatórios alheios:
“El ‘soplo vital’ del pensamiento de Occidente es la razón. La razón en ‘tiempo
rectilíneo’. De Sócrates a Kant, y de Kant a Marx, la razón marcha en línea recta. (…).
Occidente desde su mito: la serpiente del paraíso que tienta a Eva, y Caín que mata Abel; hasta
el resplandor de Atenas (…), la Roma (…), la noche de 12 siglos de feudalismo medieval; la

9
O discurso de inauguração de Cárdenas é ilustrativo do espírito do indigenismo colocado em marcha.
Enquanto expressava o valor e a contribuição dos povos indígenas na história mexicana e Americana, afirmava
sua intenção de incorporá-lo à cultura universal para que usufrua da ciência e das técnicas, de modo que possam
ser cidadãos úteis. E mais: “nuestro problema –diria- no es conservar indio al indio, ni en indigenizar a México,
sino en mexicanizar al indio. Para ello es necesario dotarlo con tierra, crédito y educación” (apud Pineda,
2012).
10
Os textos indianistas, um conjunto de documentos históricos e de análise produzidos pelos indígenas
intelectuais e pelos movimentos sociais indígenas, foram publicados por Bonfil Batalla (1977; 1981). O trabalho
reúne o projeto político que começava a se configurar, e as conclusões dos primeiros encontros regionais dos
movimentos. A Declaração de Barbados II, publicada em 1977, também recuperada por Bonfil Batalla (1977)
reúne as posições indígenas da época, sobre a situação social, econômica e política, e, principalmente, sobre o
projeto de autonomias para os povos indígenas. Este evento inaugura o debate contemporâneo sobre o direito à
autonomia dos povos indígenas.
revolución francesa (…), la revolución rusa; Alemania de Hitler (…) Hiroshima y Nagassaki …
es la marcha de la razón en tiempo rectilíneo. (…) El pensamiento en el Nuevo Mundo, no es la
‘razón genocida’. Es la razón cósmica: razón vital (…) sin hambre ni opresión”. (Reinaga,
[1969] 1981).
O projeto índio parte das oposições estabelecidas em relação ao projeto ocidental
nas formas consolidadas da modernidade: o colonialismo e o capitalismo imperialista,
sistemas de opressão e dominação a partir da etnia11. A oposição ao ocidente busca,
também, um projeto panindianista, e inclusive uma civilização paníndia12, composta
pela diversidade de povos e culturas indígenas, que se unam pela história colonial e pelo
projeto de construir um futuro descolonizado, em que persistam as identidades e as
culturas próprias, e no qual se suprimam todas as formas de dominação e desigualdade.

A empreitada de reinterpretar a história –negar-se a aceitar que houve conquista,


mas invasão e etnocídio- coloca-se como tarefa política fundamental. Dela decorrerão as
próximas ações, da própria história e de uma nova concepção sobre si mesmo e sobre sua
situação concreta local. A segunda tarefa será a revalorização dos valores morais e
comunais, e dos conhecimentos ancestrais. Eles permitiram estabelecer um tipo de
relação harmoniosa com a natureza e participar nas conquistas universais no campo do
conhecimento. Relacionada com esta revalorização, denunciam-se as principais mazelas
–miséria, a fome, as doenças e condutas antissociais- como heranças da situação colonial
e experiências alheias à fase pré-colonial (Bonfil Batalla, 1981).

De resto, o indianismo surgiu com vertentes heterogêneas e questões que nem


sempre puderam ser conciliadas entre os intelectuais ou os membros dos movimentos.
Uma corrente pode ter um viés mais essencialista e buscar a restauração do passado,
enquanto outra assume uma posição mais reformista ou abraça um ideário revolucionário
socialista. A posição de classe pode ser interpretada como consequência das relações
coloniais, em que as classes e as etnias oprimidas teriam em comum as lutas e os
opressores. Entretanto, também pode considerar-se que uma classe oprimida não é igual a

11
“Únicamente la colonización mental puede explicar la supervivencia de la colonización económica y
política. El dominio sobre la mente permite el dominio de las riquezas, del trabajo, de los gobiernos, etc.
Imperialismo económico y coloniaje mental son causa y efecto, uno del otro, en un proceso incansable y
creciente” (Reinaga, [1972], 1981: 88).
12
De acordo com a Declaração de Barbados II, de 1977, as primeiras orientações para a luta de
libertação passa por “(c)onseguir la unidad de la población india, considerando que para alcanzar esta unidad
el elemento básico es la ubicación histórica y territorial en relación con las estructuras sociales y el régimen de
los Estados Nacionales, en tanto se está participando total o parcialmente en estas estructuras. A través de esta
unidad, retomar el proceso histórico y tratar de dar culminación al capítulo de colonización’ (Declaración de
Barbados, [1977], 1981: 415)
uma etnia oprimida e, o que é mais crítico, que muitas vezes a última estaria sendo
oprimida e negada pela primeira.

Este tipo de indianismo que vingou até final da década de 1970 teve entre seus
principais ideólogos os bolivianos quéchua-aimaras Fausto e Ramiro Reinaga, os
peruanos quéchuas Guillermo Carnero Hoke e Virgílio Roel Pineda, além de outros
como o maya Antonio Pop Caal, guatemalteco; e do mixteco mexicano, Franco Gabriel
Hernandez (Bonfil Batalla, 1981). O indianismo criou também instrumentos políticos
importantes como o Manifesto Tiawanaku, de 1973, que deu suporte ideológico ao
importante Movimento Katarista da Bolívia; e a Declaração de Barbados II13, que em
1977, se dispôs a pensar os procedimentos da Descolonização.

Foi um rico período de emergência de um pensamento índio. O processo resultou


em duas conclusões categóricas sintetizadas por Bonfil Batalla: primeiro, que não é
possível entender o problema indígena, sem trabalhar também a dimensão nacional e
política, pois: “el contenido profundo de la lucha de los pueblos indios es su demanda de
ser reconocidos como unidades políticas”. Deste aspecto, decorre a segunda conclusão:
‘todas (as organizações indígenas), implícita o explícitamente, afirman que los grupos
étnicos son entidades sociales que reúnen condiciones que justifican su derecho a
gobernarse a sí mismas, bien sea como naciones autónomas, o bien como segmentos
claramente diferenciados de un todo social más amplio”. O reconhecimento da unidade
política das comunidades e do direito à autonomia são, pois, a questão nacional dos
povos indígenas: a ‘razón de la lucha india’ (Bonfil Batalla, 1981: 50)

Na III Declaração de Barbados, em 1993, então, os indígenas acertarão os termos


da autonomia política para os povos, a partir de princípios já consagrados desde 1989 na
Convenção 16914, como um foro em que as comunidades conseguiram, pela primeira vez,
de fato ver plasmadas suas demandas no sistema internacional de direitos.

13
A Primeira Declaração de Barbados, ocorrida em 1971, teve como objetivo reunir os antropólogos que
discutiam a questão indígena na América Latina, pelo que não houve presença indígena. Conforme Bonfil
Batalla (1981), apesar disto, é um documento muito citado pelos indígenas, pois seu foco na libertação dos povos
indígenas e na responsabilização do Estado nas relações coloniais permitiu fortalecer as lutas indígenas e abriu o
caminho para a Declaração de Barbados II, evento realizado seis anos mais tarde, e com presença indígena junto
a outros antropólogos. Aqui se definiram os rumos do indianismo.
14
A Convenção 169, sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, parte de princípios
essências para os povos indígenas, a saber: o reconhecimento dos povos como sujeitos coletivo de direito, o
princípio de autodeterminação -não independência, mas como direito que as comunidades indígenas têm de
decidir o futuro das suas comunidades; e a auto identificação como critério de definição do cidadão de direito
(Chaters & Stavenhagen 2010, Verdum, 2009, Urquidi, Teixeira & Lana, 2008).
Desde então, os povos têm avançado posições para a etnização da política, com o
objetivo de descolonizar as diversas esferas dos poderes coloniais: das relações sociais,
das hierarquias epistemológicas, do direito e da política local, nacional e internacional. A
expressão política máxima da irrupção dos indígenas na política será a legitimação e
legalização das suas autonomias, lá onde sejam demandadas, uma empreitada que foi
iniciada já na década de 1980 pelo povo Miskito na Nicarágua, e posteriormente pelos
zapatistas, já no limiar do novo século XXI, em México. O primeiro caso como
experiência inaugural de autonomia, em acordo de paz assinado com o Estado; o segundo
como construção política à margem da ordem institucional, em territórios em que o
Estado historicamente esteve, e assumiu continuar, ausente.

As autonomias são também o âmago das lutas atuais nos Estados Plurinacionais em
que o corpo doutrinário reconhece e especifica o tipo e níveis em que a autonomia será
implementada. A despeito dos avanços, as comunidades indígenas ainda enfrentam a
rigidez das formas clássicas do Estado, ainda centralizador e colonial, de modo que o
desafio, nos países em que o plurinacionalismo é reconhecido, é a garantia dos direito já
positivados na lei (Santos & Exeni Rodriguez, 2012; Santos & Grijalva, 2012).

Afinado com as demandas e pensamento indianista, um aporte importante à agenda


das teorias sociais latino-americanas, ocorreu já na década de 1960, pela recuperação que
o sociólogo Pablo Gonzalez Casanova fez do conceito de colonialismo interno,
‘(e)ufemisticamente chamado de cuestión nacional’ (González Casanova, 2008: 413), o
colonialismo interno indica que em cada país teriam se reproduzido as características das
relações coloniais que se criticam às nações metropolitanas:
Los pueblos, minorías o naciones colonizados por el Estado-nación sufren condiciones
semejantes a las que los caracterizan en el colonialismo y el neocolonialismo a nivel internacional:
habitan en un territorio sin gobierno propio; se encuentran en situación de desigualdad frente a las
elites de las etnias dominantes y de las clases que las integran; su administración y responsabilidad
jurídico-política conciernen a las etnias dominantes, a las burguesías y oligarquías del gobierno
central o a los aliados y subordinados del mismo; sus habitantes no participan en los más altos
cargos políticos y militares del gobierno central, salvo en condición de “asimilados”; los derechos
de sus habitantes y su situación económica, política, social y cultural son regulados e impuestos por
el gobierno central; en general, los colonizados en el interior de un Estado-nación pertenecen a
una “raza” distinta a la que domina en el gobierno nacional, que es considerada “inferior” o, a lo
sumo, es convertida en un símbolo “liberador” que forma parte de la demagogia estatal; la
mayoría de los colonizados pertenece a una cultura distinta y habla una lengua distinta de la “na-
cional”. (Gonzalez Casanova, 2008: 410)
Gonzalez Casanova percebeu que o colonialismo reproduzia internamente as
relações coloniais já estabelecidas no plano internacional. Assim, havia três componentes
que sustentavam a questão nacional: (a) a marginalidade, fenômeno típico de sociedades
subdesenvolvidas, segundo a qual uma parte importante da população não participa das
benesses do desenvolvimento econômico, político social ou cultural, por causa de uma
brecha social que permite que, o setor dominante, que também é o que controla todos os
benefícios, limite o setor dominado e o destine a ficar à margem das benesses. O segundo
que o conceito de colonialismo interno permite entender é a pluralidade social, dos
países latino-americanos. O que caracteriza esta diversidade é que os setores dominantes
se organizam e vinculam com os grupos de origem castiça, branca ou mestiça, e os
subordinados com o indígena ou afrodescendente. Finalmente, a marginalidade e a
pluralidade da sociedade se articulam com a terceira característica das relações
coloniais: o “preconceito, discriminação, exploração do tipo colonial, formas ditatoriais,
alinhamento de uma população dominante com uma etnia e uma cultura, de outra
população dominada com raça e cultura distintas” (Gonzalez Casanova, 1969: 104).

Em síntese, o colonialismo interno acirra as formas já existentes de desigualdades


que há entre nações no plano internacional, mas soma a elas as desigualdades “raciales,
de castas, de fueros, religiosas, rurales y urbanas, de clases” (Gonzalez Casanova,
1969: 235), típicas deste tipo de colonialismo ao interior de cada país.

Sem desconsiderar a existência de classes sociais, o colonialismo interno agrega a


heterogeneidade às divisões sociais e traz à tona a exploração étnica de comunidades
culturais, de nações independentes, de regiões dentro de um mesmo país, entre outras, em
que um povo explora o outro, impõe sua forma de governo, legislação e justiça, e limita
ao outro povo sua possibilidade ulterior de exercer sua autonomia e alteridade.

Muito embora na década de 1960, quando o conceito é recuperado, não implicasse


formas de dominação que posteriormente serão consideradas no pensamento pós-colonial
-relações de género ou hierarquias epistemológicas, por exemplo-, o colonialismo interno
relacionou a exploração nas relações de dependência entre nações ou entre classes com a
opressão às minorias étnicas e nacionais, superando assim, posições dogmáticas sobre as
relações econômicas de exploração. Isto explica também que, o debate sobre o
colonialismo interno, junto à questão nacional, surgisse junto a um socialismo renovado
pós-59, afinando-se com as às lutas libertárias do mundo afora, e com as lutas contra os
regimes militares e contra a modernização conservadora que assolava o continente.

A irrupção dos movimentos indígenas na política nacional fez com que, em 2003,
Gonzalez Casanova propusesse um alargamento ao sentido do colonialismo interno:
En una definición concreta de la categoría de colonialismo interno, tan significativa para
las nuevas luchas de los pueblos, se requiere precisar: primero, que el colonialismo interno se da
en el terreno económico, político, social y cultural; segundo, cómo evoluciona a lo largo de la his-
toria del Estado-nación y el capitalismo; tercero, cómo se relaciona con las alternativas
emergentes, sistémicas y antisistémicas, en particular las que conciernen a “la resistencia” y “la
construcción de autonomías” dentro del Estado-nación, así como a la creación de vínculos (o a la
ausencia de estos) con los movimientos y fuerzas nacionales e internacionales de la democracia, la
liberación y el socialismo (González Casanova, 2008: 409).
A consciência da existência de poderes coloniais e de lutas contra o colonialismo
interno, entretanto, não impedem a cilada da mistificação da etnização da política. Não é
incomum que as lutas étnicas menosprezem o debate sobre o conteúdo classial da
protesta ou que seus militantes se neguem a afinar discursos com os outros trabalhadores.
A luta anticolonial pela democracia e a emancipação às vezes é separada das lutas
étnicas, e as esquerdas ainda insistem em subordinar a dimensão étnica à classial.

Foi possível também observar que os movimentos que outrora lutaram contra o
colonialismo interno, ao assumir o poder se esqueceram de que a principal contradição
está na forma que assume o próprio Estado-nação, seja pelas suas relações de
dependência, seja pela desintegração social e nacional.

Finalmente, a preocupação com as autonomias dos povos indígenas não é apenas


uma resposta à situação de desigualdade histórica em relação aos povos, nem uma
política populista. É um debate que se impôs quando os indígenas irromperam
diretamente na política nacional, pois, contrariamente à análise sobre o populismo e sobre
as massas passivas e manipuláveis, o que se vê aqui é que não se pode mais ignorar a
percepção diferenciada que os indígenas têm de fazer política e se autogovernar.

Sabe-se que a teoria crítica eurocêntrica tem relacionado o grau de


desenvolvimento das forças produtivas de um país, ao nível de maturação da consciência
de uma classe para desempenhar suas tarefas históricas. A luta dos povos indígenas
latino-americanos, em cenários despidos de progresso, no sentido moderno desta palavra,
i.e., material, tem indicado que paralelamente à luta pela manutenção das suas culturas,
os povos adquiriram uma qualidade política em termos de autodeterminação.

Ao se transformarem em sujeitos políticos da vida nacional, os povos indicaram


que podem ser base e núcleo, também, de um novo bloco popular na América Latina e
que essa alternativa deve estar na base de um projeto de Estado-Plurinacional.

Questão Nacional e a Formação de um bloco popular


Acabamos de afirmar que, muito embora algumas características do novo momento
da política latino-americana tenham sido assemelhadas ao populismo da época da
modernização conservadora, a tendência de tratar os fenômenos como iguais negligencia
o que aqui chamaremos de o conteúdo nacional-popular dos projetos iniciados em países
como a Bolívia e o Equador.

Muito embora, as políticas populistas possam ter sido caracterizadas na teoria


social latino-americana como nacionais-populares (Germani, 1962) é preciso fazer uma
distinção ontológica de ambos os fenômenos, porquanto o nacional-popular parte do
princípio de que há um conteúdo social emergente e uma potencialidade não advertida
nas análises sobre o populismo e a massa. Tomamos emprestada a noção de nacional-
popular da nova esquerda europeia, particularmente da teoria crítica inglesa (Forgacs,
1993) que confronta os projetos de massa da direita com aqueles alternativos e de
potencial emancipatórios, com uma massa qualificada, de um programa de esquerda.

A distinção que inspirou a nova esquerda nasce dos trabalhos do pensador italiano,
Antonio Gramsci (1891-1937) e da sua preocupação durante o fascismo por articular os
setores populares dispersos num bloco histórico e numa nova hegemonia sob liderança
do proletariado, a partir de uma aliança de classes entre os principais grupos populares do
país. O sentido de nacional-popular que Gramsci (1980; 1982) propõe não se refere, por
isso, a uma massa vazia, mas ao conteúdo político e cultural dos setores sociais
subalternos que compõem a ampla base de classes populares e que tem potencialmente
interesses coincidentes. É uma massa cujo sentido de ações e visões de mundo emana da
vontade coletiva geralmente contra a opressão. É nesse sentido, que Gramsci (1970)
afirma que todo homem é um filósofo, porque compartilha de uma concepção de mundo,
cuja virtualidade é poder se transformar numa consciência crítica do mundo.

A ideia que sustenta o nacional-popular e que originará a tese do bloco histórico


em Gramsci, de fato busca superar a estreita concepção corporativa de classes -ou de uma
fração das classes-, para ascender a um plano subjetivo que se constrói na superestrutura
e que Gramsci nomeia, no sentido moderno, como vontade coletiva: “voluntad como
conciencia activa de la necesidad histórica, como protagonista de un drama histórico
efectivo y real”. Por isso, Gramsci se pergunta:
“ ‘Cuándo puede decirse que existen las condiciones para que se pueda suscitar y
desarrollar una voluntad colectiva nacional-popular?’, o sea efectuando un análisis histórico
(económico) de la estructura social del país dado y una representación ‘dramática’ de las
tentativas realizadas a través de los siglos, para suscitar esta voluntad y las razones de sus
sucesivos fracasos” (Gramsci, 1980, 13)
O conceito de nacional popular em Gramsci trata de um conteúdo social
qualificado pela consciência prática de um povo numa realidade concreta e a partir de
suas experiências contra sua situação de opressão. Foi elaborado, como vimos, na
necessidade histórica de dar uma resposta ao fascismo e ao bloco conservador de poder
econômico e militar -sustentado numa base camponesa-, e cuja força coercitiva e
ideológica tornava inviável qualquer ação revolucionária frontal na Itália. Gramsci no
Partido Comunista propunha-se a alternativa de construir a contra-hegemonia, a partir de
um bloco histórico novo e um partido de massas que articulassem as forças populares
emergentes em torno do proletariado, e que definissem uma estratégias de transição
capaz de superar o fascismo e realizar a passagem para a verdadeira Revolução.

Muito embora em Gramsci o termo não tenha sentido político imediato, mas seja
concebido como uma articulação cultural da hegemonia, o nacional-popular e seus
derivados –“popular-nacional”, “povo-nação”, “nação-povo” (Gramsci, 1980, 1982)- lhe
permitem idealizar um projeto a partir também da cultura para um país, como a Itália, que
até início do século XX não foi unificada sob um projeto de Estado-nação. O projeto
nacional-popular fará coincidir, assim, o Estado e a nação com o que existe de povo.

Levemos a reflexão para o que nos interessa: aparentemente a questão é diferenciar


como a política de massa do Estado -ou de outras instâncias de organização social-
influencia na formação política dos setores populares, tendo como foco a formação de
um bloco alternativo e contra-hegemônico. O fator classial para Gramsci é essencial,
principalmente porque destaca a centralidade do proletário nas ações políticas, mas a
valorização dos aspectos culturais e da vontade popular introduz no debate fatores
subjetivos qualitativamente distintos daqueles que as teorias sobre o populismo destacam
na emotividade e passividade da massa.

Foi em Gramsci que alguns dos teóricos mais importantes do pensamento crítico
latino-americano -como Rodolfo Stavenhagen, Enrique Dussel, René Zavaleta Mercado,
para citar apenas alguns que são em si mesmos totalmente diferentes- inspiram suas
reflexões sobre as culturas populares e os projetos nacionais-populares15.

15
Outro termo também proposto é o de Nacional-revolucionário, mormente utilizado para os processos
de fato revolucionários com ampla base social e direção socialista, como o cubano (Ianni, 1975).
René Zavaleta Mercado (1935-1984) 16, o sociólogo boliviano, é um dos autores
que avança com maior originalidade na compreensão de “Lo Nacional-Popular en
Bolivia”, obra póstuma publicada em 1986. Zavaleta Mercado utiliza o conceito nas
análises em que apresenta a massa com uma qualidade social: a autodeterminação. Seu
objetivo é explicar um país de composição social heterogênea –que ele chama de
abigarrada17-, e que é impossível de ser compreendido por categorias e regularidades
que servem para pensar a totalidade social em países ocidentais. Zavaleta Mercado tem
também uma urgência política: compreender de que modo, um país cujas forças
produtivas estão pouco desenvolvidas -na acepção moderna da palavra- pode ter formado
um nível de autodeterminação social capaz de protagonizar grandes feitios, como a
Revolução Nacionalista de 1952, ou multitudinárias manifestações camponesas-
indígenas de final da década de 1970 e em defesa do voto popular e a democracia.

A tese de Zavaleta Mercado (1983, 1986), pensada para a Bolívia até a década de
1980, é que numa sociedade abigarrada na qual não houve um projeto de Estado-Nação
que articulasse a diversidade social, e garantisse própria presença territorial e política
nacional, coexistem imbricadamente as temporalidades diversas: a formação econômica e
política estatal e as comunitárias indígenas. Nesse cenário, o Estado é aparente porque
não representa a totalidade da nação nem tem capacidade de integrá-la ou de realizar a
transformação das forças sociais. Tampouco tem condições –e de fato, as teorias sociais

16
Zavaleta Mercado possivelmente seja o maior teórico social crítico da Bolívia. A partir de um
marxismo nacionalizado, sua obra amadurece, desde a década de 1960 até sua morte em 1984, a explicação mais
sólida já feita sobre o país heterogêneo e cujas elites não conseguiram nunca elaborar um projeto para a
totalidade do país. Suas análises inicialmente preocupadas com o movimento operário avançam aos poucos para
a compreensão do campesinato-indígena como sujeito político fundamental no país. Para tal, há de desenvolver
uma metodologia que permitirá tornar inteligíveis sociedades heterogêneas como a boliviana. Suas principais
obras foram reunidas na antologia organizada pelo também boliviano, o politólogo Luis Tapia (2002), em que se
apresentam seus principais conceitos sobre as sociedades abigarradas, a composição das massas, a acumulação
no seio da massa e, entre outros, sua teses sobre os movimentos constitutivos. A última obra, e póstuma, Lo
Nacional-Popular em Bolivia, juntamente com Las Masas en Noviembre y Cuatro Conceptos de la Democracia
reúnem os conceptos aqui apresentados.
17
O significado de abigarrado encontra-se disseminado na obra de Zavaleta Mercado. Luis Tapia (2002)
tentou sintetizar o conceito de modo muito rico: o abigarrado é uma diversidade múltipla, de tempos históricos e
de Histórias diversas, com formas políticas ou estruturas de autoridade que implicam diversidade cultural ou, em
sentido mais amplo, de civilizações que coexistem dentro do que se chama nação ou país. Aqui, tempo histórico
é a organização do movimento das sociedades a partir do princípio organizativo de seu momento produtivo ou do
seu próprio padrão de transformação da natureza. É uma forma ou ritmo próprio que as sociedades têm de
mover-se. Já as Histórias são o movimento das sociedades nos seus processos de articulação ou totalização que
implicam tanto a continuação do passado, como as inovações presentes e suas projeções. As Histórias são a
totalidade dos fatos tal como acontecem e aconteceram, na forma matriz de organização, que é o tempo histórico.
tampouco- de entender o que há na formação social abigarrada, pois a nação real está
oculta18, silenciada, quase na clandestinidade em que a colocou a experiência colonial:
Si se dice que Bolivia es una formación abigarrada es porque en ella se han superpuesto las
épocas económicas (las del uso taxonómico común) sin combinarse demasiado (…) Tenemos,
por ejemplo, un estrato, el neurálgico, que proviene de la construcción de la agricultura andina,
o sea de la formación del espacio; tenemos por otra parte (…) el que resulta del epicentro
potosino (da mineração), que es el mayor caso de descampesinización colonial; verdaderas
densidades temporales mezcladas, no obstante, no sólo entre sí del modo más variado, sino
también con el particularismo de cada región, porque aquí cada valle es una patria, en un
compuesto en el que cada pueblo viste, canta, come y produce de un modo particular y todos
hablan lenguas y acentos diferentes sin que unos ni otros puedan llamarse por un instante la
lengua universal de todos. (…) De tal manera que no hay duda de que no es sólo la escasez de
estadísticas confiables lo que dificulta el análisis empírico en Bolivia, sino la propia falta de
unidad convencional del objeto que se quiere estudiar.
Detener la descripción de este punto no llevaría, con todo, sino a pensar que se trata de una
dispersión condenada a la dispersión. La entidad social, sin embargo, es una realidad poderosa
de una manera enigmática. Esto pertenece a un género de evidencia que contiene sus propias
contradicciones (quizá como toda evidencia). Todo ello —mercados, épocas, latitudes, hablas,
rostros— pertenece a lo que algunos llaman un fondo histórico, (…) hay una entidad que se
reconoce a sí misma. Pues bien, hay una medida en que el sentimiento de la identidad es la
prueba de que la identidad existe. (…) Los acontecimientos, teniendo por ellos desde el espacio
hasta la familiaridad y la violencia, han producido las premisas inconscientes de la unificación,
y en esto es natural no concebir la nación como un mercado. El problema radica en esto, en que
la intersubjetividad existe antes de las premisas materiales (supuestas premisas) de la
intersubjetividad. (Zavaleta Mercado, 1983: 17-18)
Para conhecer a nação enigmática, Zavaleta Mercado propôs a análise da crise
nacional geral como método de conhecimento das sociedades abigarradas, pois, “(l)a
crisis (…) no sólo revela lo que hay de nacional en Bolivia, sino que es en sí misma un
acontecimiento nacionalizador. Los tiempos diversos se alteran con su irrupción
(Zavaleta Mercado, 1983: 19).

O pressuposto é que nas grandes convulsões sociais –como a Revolução


Nacionalista de 1952 na Bolívia- as formas rotineiras de mediação social, principalmente
as coercitivas, entram em situação de colapso, e nesse momento, nos interstícios do bloco
que se fratura, as massas podem finalmente expressar toda a experiência dormida da
nação real:
“un número no demasiado grande de hombres, con sentido de la concentración y algún
grado de temeridad táctica, puede expresar tendencias que están escondidas en el “sueño” de
la sociedad. (…) Una parte (da massa) quiere (querer, equivale a “querer” de modo estatal, a
voluntad de poder) en nombre de otra o, de alguna manera, manifiesta lo que la otra contiene y
no conoce aún. (…) De otro modo, cualquiera que sea la extensión de la masa, lo que importa
es la recepción de su llamado de masa”. (Zavaleta Mercado, 2009a: 139).
O que a massa expressa no momento da crise é sua latência, que se coloca em ação.
Na crise, a massa ensina –no sentido de mostrar e também de instruir- o que sabe e

18
É o que Bonfil Batalla (1987) chama de o México Profundo para o caso do seu país.
acumulou historicamente nas experiências de luta e confronto como classe e etnia desde
o momento colonial opressor. Mostra suas forças e as coloca à prova, exercita seus
conhecimentos e valores, suas melhores práticas e propostas, e também expõe os limites
do seu horizonte político. Por isso, também, a aparição da massa como fenômeno social
durante a crise é pedagógica para os outros e para si mesma, porque permite entender a
história das diversidades evidenciadas na crise e o rumo das suas potencialidades.

A este conhecimento prático que se manifesta na massa, Zavaleta Mercado chama


de ‘acumulação no seio da massa’ ou ‘da classe’, sem fazer distinção entre ambos os
conceitos quando referidos ao conhecimento incorporado e à vontade que motiva e
realiza transformações, pois nas sociedades abigarradas em que as classes sociais estão
irremediavelmente mediadas pela situação étnica colonial, não é possível distinguir uma
experiência histórica concreta ou una consciência local a partir unicamente da posição
estrutural do sujeito na produção. Assim, o conceito de massa, com toda sua acumulação
que um povo oprimido pode ter, em Zavaleta Mercado, completa o conceito de classe.

De fato, Zavaleta Mercado não ignora a situação de dependência 19 específica do


país essencialmente primário exportador, mas quer entender o que há no conteúdo social,
o que há de experiência política e democrática e de autodeterminação como projeto
emancipatório. Na crise, a massa irrompe na mobilização social com um conteúdo
essencialmente anti-estatista –e aqui Zavaleta Mercado se empresta o conceito de
sociedade civil em Gramsci, para entender a posição da massa em relação ao Estado-, e
surge articulando o heterogêneo e a dispersão social num bloco social alternativo –eis,
novamente o apelo a Gramsci, na tese do bloco histórico ou popular.

A perspectiva com que Zavaleta Mercado observa o conteúdo do nacional-popular


nega, pois, os sentidos que uma parte da teoria social latino-americana deu ao conceito de
massa sob o foco do populismo, pois parte da tese da existência de um conteúdo político
-em termos de autodeterminação- que é capaz de constituir um bloco popular que se
forma nos atos da massa.

19
Conforme Zavaleta Mercado (2009b:182), “(n)o es que la lucha de clases dependa del carácter de la
dominación, porque en este caso la sociedad dependiente no podría producir sino dependencia indefinidamente,
e incluso las propias luchas de los sectores oprimidos no podrían moverse sino en los términos dados por la
conservación del sector opresor. La propia dependencia y la dominación en general dependen, por el contrario,
del modo de definición interior de la lucha de clases, aunque es obvio que, hasta que no triunfe la línea de
liquidación de la dependencia, esto no hace sino condicionar una dependencia que de todas maneras debe
suceder”.
Ora, pois, Zavaleta apresenta uma interpretação em que setores outrora
considerados como atrasados são agora capazes de manifestar grandes aspirações e
vontade coletiva em torno a projetos emancipatórios. A forma coercitiva e aparente do
Estado impediu de entender à teoria social o conteúdo real histórico deste povo, restando
apenas considerá-lo como massa típica do (neo)populismo: passiva e manipulável. Esta
tendência é maior quando se observam aos povos indígenas, cuja alteridade em si mesma
é pouco compreendida no pensamento colonizado, mas sem a qual é impossível
considerar os projetos emancipatório nacional-populares estatalmente constituídos nos
países de presença indígena.

A partir dos anos 1980, grandes transformações fraturaram o eixo das alternativas
de esquerda e as nacionais populares da América Latina. A reestruturação profunda do
aparato estatal, que colocou de lado os projetos nacionalistas em prol da abertura de
mercados vulnerou também a forma relativamente autônoma do Estado-nação. E por isto
que afirmamos que a crise do socialismo real desafiou a imaginação política e intelectual
regional da esquerda e castrou seus intentos de sugerir alternativas fora das estruturas
tradicionais de organização das resistências, isto é, fora dos partidos e dos sindicatos.

O aparecimento de novos movimentos fez ver, porém, a rearticulação da sociedade


em questões outras –como gênero ou etnia- desconsideradas nos discursos classiais. E se
por um lado é bem verdade que os ideais revolucionários da esquerda na América Latina
não morreram graças à intensidade da luta contra os regimes ditatoriais, por outro, os
projetos libertários antiestatistas foram substituídos por movimentos que agora atuam
junto ao Estado com demandas de reconhecimento de direitos e de maior participação.

A crise de 1980, assim, foi fundamental para a emergência do movimento indígena


na América Latina, porque se apresentou com um discurso diferente, nascido naquele
primeiro indianismo, mas também nas reflexões de um pensamento pós-colonial que
rapidamente se disseminou pela América Latina. Este novo debate veio cobrir o vazio
deixado na teoria social latino-americana pela rica geração de intelectuais dos anos 1960
e 1970 que, transformados em vítimas prioritárias das ditaduras, foram tolhidos de
expressar suas críticas políticas.

Surge, então, um novo pensamento social latino-americano que busca um caminho


na trilha do pensamento pós-colonial que se consolidara mundo afora em consonância
com as lutas anti-coloniais na Ásia e na África. Novas questões, principalmente as
relacionadas a gênero entrarão, então, a fazer parte dos debates mais acirrados sobre os
poderes coloniais, juntamente com as lutas contra o racismo e capitalismo.

A crítica que emana deste novo pensamento questiona ainda o pensamento dual –de
fato nunca superado totalmente. Os críticos pós-coloniais latino-americanos (Quijano,
2005; Dussel, 2004; Mignolo 2000, Lander, 2000) denunciam que, ao ser o Ocidente
Europeu o centro fundacional moderno e irradiador da matriz colonial, o conjunto de
práticas e valores dessa matriz será conhecido como eurocentrismo, palavra-chave que
designa o modelo civilizatório que se impôs ao resto das civilizações nos planos material
e filosófico, e como práticas em conformidade com as hierarquias de privilégio do
homem heterossexual/ branco/ patriarcal/ cristão/ militar/ capitalista/ europeu
(Grosfoguel, 2010).

Agora, não se trata mais de integrar dentro do Estado-nação à diversidade de povos


marginalizados, mas de assumir que há um problema com a própria forma estatal, e que
as hierarquias coloniais a ela atreladas criaram um território existencial “ilegítimo”, de
exclusão, que se mantém separado do território reconhecido como universal, em que a
Europa ocidental e o norte imperial simbolicamente se situam, e que tem servido como
referência às elites locais latino-americanas. A linha de ruptura entre ambos os territórios
de existência –linha muitas vezes sutil e invisível- instituiu um abismo de
ininteligibilidade que impede os que estão no território consagrado como legítimo, de
perceber ou enxergar o sentido de existência dos que estão invisibilizados, excluídos,
silenciados; daqueles que, negado, ficaram ao outro lado do abismo. Esse é o pensamento
abissal (Santos, 2007), característico da modernidade e que distingue, classifica e
hierarquiza, i.e. nega ao estranho a copresença existencial no território legitimado.

O acesso a diversas instâncias de poder pelos movimentos sociais, principalmente


os indígenas, permitiu mais que nunca enxergar quanto a matriz de poder estaria
arraigada na forma concreta do Estado-Nação. Por isto, este molde institucional e
jurídico é o foco das críticas a partir do qual se busca construir um projeto descolonizado
de Estado. Daqui surge, progressivamente, com foco revigorado, a famigerada questão
nacional, mas em moldes novos, como a questão plurinacional.

Na questão nacional havia a necessidade de resolver a integração da diversidade –


cultural, política, territorial e econômica- num projeto nacional, estatalmente constituído
com o povo, e que fosse capaz de consolidar o crescimento e desenvolvimento do país
numa cenário de dependência econômica internacional capitalista.

A questão plurinacional ainda se desenvolve no cenário hostil das relações


econômicas de centro-periferia típicas do sistema mundo-capitalista, muito embora o
espírito autonomista –entendido como autodeterminação ou soberania no sentido que as
relações internacionais reconhecem ao termo- dos instrumentos constitucionais criados
nas constituições que reconhecem a questão plurinacional, i.e., na Bolívia e no Equador.

Quanto ao cenário interno, a unicidade dos projetos nacionais cedeu, pelo menos
nos projetos constitucionais, à diversidade, com critério de igualdade legítima, em que o
Estado reconhece e viabiliza a existência das diversas formas de organização política e
reprodução social, ou de gestão do território e da propriedade. No princípio jurídico, é
um Estado que aceita a alteridade vivida nos diversos modos de justiça e de
conhecimentos da natureza, ou nos vários princípios de bem viver. Os Estados
Plurinacionais, por isto, representam a expressão normativa mais depurada dos anseios de
autonomia dos povos indígenas, e são um desafio para a imaginação política porque se
definem como o campo mais avançado das lutas anticapitalistas e anticolonialistas.

O novo constitucionalismo (Santos: 2010a, 71-111) busca uma nova


institucionalidade que inclua a plurinacionalidade, como reconhecimento de que a nação,
como síntese da identidade, está incompleta. Abre desse modo, a possibilidade de
coexistência da diversidade de nações na comunidade cívica do mesmo Estado e do
mesmo território.

Aceita uma nova territorialidade, com níveis distintos de autonomia e com diversos
tipos de instituições, em que se possam exercer as experiências democráticas particulares,
bem como a justiça comunitária e os novos critérios de gestão pública.

Finalmente, ao definir um novo Estado, a partir do princípio do Sumaj Kawsay (o


bom viver), o novo constitucionalismo pode estar colocando as bases de uma alternativa
distinta ao capitalismo, à dependência, ao extrativismo e ao modelo agroexportador, ora
vigentes. O reconhecimento dos direitos da Mãe Terra (Pachamama), junto ao princípio
do bom viver, implicam uma proposta de relação distinta com a natureza, em que ela não
é mais considerada como capital, mas como patrimônio. Daqui pode emergir uma lógica
de autodeterminação que controle o ritmo e o tipo de desenvolvimento nacional.
Entretanto, por ora, aparentemente, quando se esperava:
“la muerte del Estado-nación, que es la expresión colonial del Estado liberal y de la
República, y la construcción del Estado plurinacional, comunitario y autónomo”, o que se
observa ainda é que “(s)e ha restaurado al Estado-nación y su mapa institucional con sus
normas y estructuras liberales. Así, en vez de descolonizarnos, estamos recolonizándonos”
(Prada Alcoreza, 2012: 410)
Se esta constatação é um fato definitivo, ainda está por se ver. Por ora,
possivelmente a conclusão possível seja que a questão (pluri)nacional na América
indígena seja ainda uma pendência a ser resolvida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRE, Marie-Chantal. Ideologías Indigenistas y movimentos índios. México: Siglo XXI, 1983.
BAQUERO, Marcello “Populismo e neopopulismo na América Latina: o seu legado nos partidos e na
cultura política”. Sociedade e Cultura, vol. 13, núm. 2, julio-diciembre, 2010, pp. 181-192,
Universidade Federal de Goiás. Disponível em http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=70316920004.
Acedido em: 16.05.2013.
BONFIL BATALLA, Guillermo (Comp.). Utopía y Revolución: El pensamiento Político Contemporáneo
de los Indios en América Latina. México: Ed. Nueva Imagen, 1981.
BONFIL BATALLA, Guillermo et alii. “La Declaración de Barbados II y Comentarios”. Revista Nueva
Antropología, vol. II, núm. 7, Diciembre, 1977, pp. 109-125.
BONFIL BATALLA, Guillermo. El México Profundo, una civilización negada. Editorial Grijalbo, 1987.
CHARTERS, Claire, STAVENHAGEN, Rodolfo (ed.) El Desafio de la Declaración: Historia y Futuro de
la Declaración de la ONU sobre Pueblos Indígenas. Copenhagen: IWGIA, 2010
CHONCHOL, Jacques. Sistemas Agrarios em América Latina: de la etapa prehispánica a la modernización
conservadora. México: Fondo de Cultura Económica. 1994.
DECLARACIÓN de Barbados II [1977]. In Bonfil Batalla, Guillermo (Comp.). Utopía y Revolución: El
pensamiento Político Contemporáneo de los Indios en América Latina. México: Ed. Nueva Imagen,
1981.
DEMERS, Jolle (Ed.): Miraculous Metamorphoses: The neoliberalization of Latin American Populism.
New York, ZED 2001.
DUSSEL, Enrique. Oito Ensaios sobre Cultura Latino-Americana e Libertação. São Paulo: Paulinas, 1998.
DUSSEL, Enrique. Transmodernidad e Interculturalidad: Interpretación desde la Filosofia de la Liberación.
In: FORNET-BETANCOURT, Raúl. Crítica Intercultural de la Filosofía Latinoamericana Actual,
Editorial Trotta: Madrid, 2004. pp. 123-160.
FLORES GALINDO, Alberto. Los Rostros de la Plebe. Barcelona: Crítica, 2001
FORGACS, David. National popular: genealogy of a concept. In: DURING, Simon (Ed.). The Cultural
Studies Reader. London: Routledge, 1o. Editon. 1993. pp 177-190
FREIRE, Paulo. Educação como Prática de Liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
GERMANI, Gino. “Clases Populares y Democracia Representativa en la América Latina”. Rev. Desarrollo
Económico Vol. 2, No. 2 (Jul. - Sep., 1962), pp. 23-43 . Disponível em:
http://www.jstor.org/discover/10.2307/3465689?uid=3738880&uid=2129&uid=2&uid=70&uid=4&si
d=21102421347261. Acedido em: 29.05.2013
GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo. Colonialismo Interno [una redefinición]. In: BORON, Atílio A.,
AMADEO, Javier & GONZALEZ, Sabrina. La Teoría Marxista Hoy: Problemas y perspectivas. Bs
Aires: CLACSO, 2008.
GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo. Sociología de la explotación. México: Siglo XXI, 1969.
GRAMSCI, Antonio. Introducción a la filosofía de la praxis. Barcelona: Ed. Península (Nueva Colección
Ibérica), 1970.
GRAMSCI, Antonio. Notas sobre Maquiavelo, sobre a política e sobre o Estado Moderno. Buenos Aires:
Nueva Visión, 1980.
GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Ed. Civilização
Brasileira, 4ª. Ed. 1982.
GROSFOGUEL, Ramon. Para Descolonizar os Estudos de Economia Política e os estudos Pós-coloniais:
Transmodernidade, pensamento froteira e colonialidade global. In. SANTOS, Boaventura de Sousa &
MENEZES, Maria Paula (Org). Epistemologias do Sul. Coimbra: Ed. Almedina, 2010.
GUEVARA, Ernesto Che. “Crear dos, tres … muchas Vietnam, es la consigna: Mensaje a la
Tricontinental”. 1967. Disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=124578
GUEVARA, Ernesto Che. “Discurso del Comandante Che Guevara en la Asamblea General de las
Naciones Unidas”. 1964. Acessível em: http://pt.scribd.com/doc/47836000/Discursos-del-Che-
Guevara
GUTIERREZ, Gustavo. Teología de la liberación-perspectivas. Lima: Centro de Estudios y Publicaciones,
1971.
HEBETS, Jennifer. Value Chain Promotion and the Role of Social Capital in Ecuador: an Illustrative
Study. Ecuador: Flacso. 2009. Disponivel em:
flacsoandes.org/dspace/bitstream/10469/3377/1/TFLACSO-2009JH.pdf. Acedido em: 18.1.13
HEINTZ, Peter. Um Paradigma Sociológico del Desarrollo, con especial referencia a América Latina.
Buenos Aires: Instituto Torcuato Di Tella, 1964
IANNI, Octávio. A Formação do Estado Populista na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975.
IANNI, Octávio. O Ciclo da Revolução Burguesa. Petrópolis: Vozes, 1983.
LACLAU, Ernesto. Feudalismo y Capitalismo en América Latina [1971]. In: Política e Ideología en la
Teoría Marxista: Capitalismo, Populismo y fascismo. México: Siglo XXI, 1978.
LANDER, Edgardo (Ed.). La Colonialidad del Saber: eurocentrismo en Ciencias Sociales – Perspectivas
Latino-americanas. Bs. Aires: Clacso, 2000
LEIS, Hector. “Populismo e democracia liberal na América do Sul”. Revista Debates UFRGS, vo. 2. No. 2,
p. 25-47, 2008.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Aniversario y Balance. Editorial de “Amauta”, Nº 17, año II, Lima,
Setiembre de 1928. In.: Ideología y Política. (Colección Obras Completas de José Carlos
Mariátegui). Online: v. 13. Disponível em:
http://www.patriaroja.org.pe/docs_adic/obras_mariategui/Ideologia%20y%20Politica/paginas/anivers
ario%20y%20balance.htm#1. Acedido em: 10.05.2013.
MARIÁTEGUI, José Carlos. El Problema de la Raza [1929b]. In.: Ideología y Política. (Colección Obras
Completas de José Carlos Mariátegui). Online: v. 13.
http://www.patriaroja.org.pe/docs_adic/obras_mariategui/Ideologia%20y%20Politica/index.html .
Acessado em: 10.05.2013
MARIÁTEGUI, José Carlos. Punto de Vista Antiimperialista [1929a]. In.: Ideología y Política. (Colección
Obras Completas de José Carlos Mariátegui). Online: v. 13.
http://www.patriaroja.org.pe/docs_adic/obras_mariategui/Ideologia%20y%20Politica/index.html .
Acessado em: 10.05.2013
MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete Ensayos de la Realidad Peruana. Caracas: Fundación Ayacucho. 2007.
MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependencia [1973]. In: América Latina, dependencia y
globalización. Fundamentos conceptuales Ruy Mauro Marini. Antología y presentación Carlos
Eduardo Martins. Bogotá: Siglo del Hombre - CLACSO, 2008.
MIGNOLO, Walter D. La colonialidad a lo largo y a lo ancho: el hemisferio occidental en el horizonte
colonial de la modernidad. In: LANDER, Edgardo (Ed.). La Colonialidad del Saber: eurocentrismo en
Ciencias Sociales – Perspectivas Latino-americanas. Bs. Aires: Clacso, 2000.
PINEDA C., Roberto. “El Congreso Indigenista de Pátzcuaro,1940, una nueva apertura en la política
indigenista de las Américas”. Baukara 2 - Bitácoras de antropología e historia de la antropología en
América Latina. Bogotá, julio-diciembre 2012, p.10-28. Disponível em:
http://www.humanas.unal.edu.co/colantropos/baukara/sites/default/files/Baukara%232%2005%20Pin
eda(10-28).pdf. Aceso em: 15.03.2013
PLATTNER, Marc. “Populism, pluralismo, and liberal democracy”. Jornal fo Democracy, vo. 21, no.1,
2010, p. 81- 92.
PRADA ALCOREZA, Estado Plurinacional Comunitário Autonômico y Pluralismo Jurídico. In.
SANTOS, Boaventura de Sousa & EXENI Rodríguez, José Luis (orgs.), Justicia indígena,
plurinacionalidad e interculturalidad en Bolivia. Quito: Fundación Rosa Luxemburg y Abya-Yala.
2012.
QUIJANO, Anibal, Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LEHER, Roberto &
SETÚBAL, Mariana (org). Pensamento Crítico e Movimentos Sociais: Diálogos para uma nova
Práxis. São Paulo: Ed. Cortez, 2005.
QUIJANO, Anibal. Prólogo. In: Siete Ensayos de la Realidad Peruana. Caracas: Fundación Ayacucho.
2007.
REINAGA, Fausto. Manifiesto del Partido Índio de Bolívia. La Paz: Ed. PIB: 1970.
REINAGA, Fausto. Mi Palabra. [La Revolución Índia. La Paz, Ed. PIB: 1969, pp. 45-55]. In Bonfil
Batalla, Guillermo (Comp.). Utopía y Revolución: El pensamiento Político Contemporáneo de los
Indios en América Latina. México: Ed. Nueva Imagen, 1981.
REINAGA, Ramiro. [Ideología y raza en América Latina. La Paz: Ed. Futuro, 1972, pp 4-78]. In Bonfil
Batalla, Guillermo (Comp.). Utopía y Revolución: El pensamiento Político Contemporáneo de los
Indios en América Latina. México: Ed. Nueva Imagen, 1981.
SANTOS, Boaventura de Sousa & EXENI Rodríguez, José Luis (orgs.), Justicia indígena,
plurinacionalidad e interculturalidad en Bolivia. Quito: Fundación Rosa Luxemburg y Abya-Yala.
2012.
SANTOS, Boaventura de Sousa & GRIJALVA, Agustin. Justicia Indígena, Plurinacionalidad e
Interculturalidad en Ecuador. Quito: Ediciones Abya Yala y Fundación Rosa Luxemburg, 2012.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Além do Pensamento Abissal: das linhas globais para uma Ecologia
do Saber. Rev. Novos Estudos CEBRAP. n.79. nov. 2007.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: Perspectivas desde una
epistemología del Sur. Lima: IIDS, 2010a.
SANTOS, Boaventura de Sousa & MENEZES, Maria Paula (Org). Epistemologias do Sul. Coimbra: Ed.
Almedina, 2010b.
STAVENHAGEN, Rodolfo. “Siete tesis equivocadas sobre a América Latina”. Política Externa
Independente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Ano 1. No. 1 1965.
TAPIA, Luis. La Producción del Conocimiento Local: Historia y Política en la obra de Rene Zavaleta. La
Paz: Muela del Diablo, 2002.
URQUIDI, Vivian; Teixeira, Vanessa; Lana, Eliana. Questão Indígena na América Latina: Direito
Internacional, Novo Constitucionalismo e Organização dos Movimentos Indígenas. Cad. PROLAM,
v. 1/ano7, p. 199-222, 2008.
VÉLEZ RODRIGUEZ, Ricardo. “Patrimonialismo, Democracia Direta e Neopopulismo na América
Latina”. Diálogos Latinoamericanos. núm. 18, 2011, pp. 1-20,. Aarhus Universitet. Dinamarca
VERDUM, Ricardo (org.). Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina.
Brasilia: INESC, 2009
VILLA, Rafael; URQUIDI, Vivian. “Venezuela e Bolívia: legitimidade, petróleo e neopopulismo”.
Política Externa (USP), São Paulo, v. 14, n. 4, p. 63-78, 2006.
VILLAUME CARRANZA, La Nueva Constituição Política del Estado Plurinacional Boliviano. In:
Miradas: Nuevo Texto Constitucional. La Paz: IIICAB, 2010. Disponível em:
http://www.vicepresidencia.gob.bo/IMG/pdf/texto_miradas_ncpe.pdf. Acessado em: 15.07.13
WEFFORT, Francisco. “Notas sobre la „teoría de la dependencia‟: ¿teoria de clases o ideología
nacional?”. Revista Política y Sociedad. Madri: Facultad de Ciencias Políticas y Sociología;UCM, no.
17. 1995.
YOUNG, Robert J. C. Postcolonialism: An Historical Introduction. Singapore: Blackwell Publishing, 2001.
ZAVALETA MERCADO, René. Cuatro Conceptos de Democracia [1981]. In: Zavaleta Mercado, Rene
(Tapia, Luis, Comp.). La Autodeterminación de las Masas. Bogotá: Siglo del Hombre Ed. e Clacso,
2009a.
ZAVALETA MERCADO, René. El Proletariado Minero en Bolivia [1978]. In: Zavaleta Mercado, Rene
(Tapia, Luis, Comp.). La Autodeterminación de las Masas. Bogotá: Siglo del Hombre Ed. e Clacso,
2009b.
ZAVALETA MERCADO, René. Las Masas en Noviembre. In ZAVALETA MERCADO: René. Bolivia
Hoy. México, Siglo XXI, 1983.
ZAVALETA MERCADO, René. Lo nacional-popular en Bolivia. México, Siglo XXI, 1986

Você também pode gostar