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INIMPUTÁVEL
Neumar Michaliszyn (2014)

Estou isolado... Não porque eles tenham receio do quê os outros


internos possam fazer comigo. O que eles receiam é o que posso fazer,
considerando o mal encarnado que sou. (pausa) Como cheguei aqui? A história
não é longa. Parte dela é. A mais importante. Tudo começou quando ainda
criança. Um sedutor morava... (pausa) Não! (pausa) Direi... (pausa) um cara
qualquer passava pela parada de caminhão. Uma daquelas que ficam numa
estrada de chão batido, sabe? Com lanchonete, borracharia, pequeno posto de
gasolina. Muita poeira. Tudo começa quando, numa dessas paradas, o tal conhece
uma atendente gorda, daquelas gordas de carnes e banhas firmes, você sabe?!
Loira, sebosa e empoeirada, como tudo na lanchonete. Mas ainda
jovem. (pausa) Ele... saiu hoje! Cinco anos cumprindo pena! Sem saber o cheiro e
o gosto de uma boa carne mijada! Ela... sem poder sair da lanchonete... O cheiro
de sexo por acontecer impregnando o ar. (pausa) Ela sai detrás do balcão, vai para
o banheiro. (pausa) Por uma fresta apenas o suficiente para cuidar do movimento
e... (pausa) ver o rapaz sedutor, masturba-se... (pausa) Em pé mesmo. (pausa)
Pela fresta, por onde só passa seu gordo, besuntado e agora babado dedo, ela
impudicamente chama o rapaz. Ele vê a longa unha lascada, com o esmalte
vermelho carcomido. Dá uma cheirada no ar feito um animal. Sente o cheiro bom
e quente de buceta quentinha e molhada. (pausa) Eles fazem em pé. Ali mesmo.
Em meio ao calor e às moscas. Nunca mais se viram. Nasci.
Bullying... Na época tinha um amiguinho ruivo na escola, o Nenê. Com
oito anos me chamavam de bichinha, florzinha, viadinho, frutinha, bambi. Davam
cascudos na cabeça. Derrubavam no chão. Empurravam da fila. Cochichavam e
riam na cantina. Meninos maiores, 12, 14 anos, me arrastaram pro banheiro
durante uma aula vaga. Me pelaram. Chuparam meu rabo, meu pau. Me
curraram. Sangraram meu cu. Cheguei chorando em casa e contei pra mãe. A filha
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da puta me bateu. Nem foi na escola. (pausa) Filha da puta sim. Minha vó era
puta, dessas de zona de estrada. Morreu sifilítica com 35. (pausa) Minha mãe
também era puta. Dava pra qualquer um que quisesse. Afinal, ninguém quer
foder uma gorda. Só os pervertidos fodem gorda. Gente normal não fode.
Não era violento. Nem maldoso. Nenê uma vez quis descer uma ladeira
num carrinho de madeira, tipo rolimã. Deixei. Empurrei por vários metros, à toda.
No fim da ladeira havia um valetão. Ele caiu com a cara contra o barranco. Ficou
muito machucado. Dona Teresa proibiu de brincar comigo. Na escola um menino
maior passou por mim na chegada. Passou a mão em minha bunda, enfiando o
dedo médio no meu cuzinho e dizendo: “Vô te comê hoje, viadinho!” A escola
tinha um pátio com brita. No recreio, peguei o menino por trás. Corri a toda, pulei
com os joelhos nas costas dele, derrubei, e... antes que se recobrasse do susto,
agarrei-o pelos cabelos da nuca e esfolei muito a cara dele nas pedras. Esse
(pausa) nunca mais me incomodou. Os outros me encoxavam. Me mostravam o
pau durante as aulas, bem duro! (pausa) Ficava perturbado. (pausa) Olhava os
meninos com um misto de ódio e repulsa. Justiça. Um dia faria justiça.
Terminado o primeiro grau, fui para um internato militar por quatro; de
lá, direto pro exército, por mais três anos. (Pausa) Sete anos... (Pausa) Sete anos...
(Pausa) Neles, convivendo com meus companheiros de caserna, fazendo
exercícios, refeições, tomando banhos coletivos e dormindo juntos no alojamento
ou em barracas durante os exercícios de campo... (pausa) ajudaram a descobrir o
quanto apreciava, amava, desejava os corpos de outros homens, ao mesmo
tempo que sentia repulsa por suas mentes confusas, desorganizadas, quase
infantis. Também descobri que desprezava em profundidade todas as mulheres,
com suas exigências emocionais egoístas e mesquinhas, seus corpos macios e
despelados. O pior de tudo era aquela gruta de mistérios insondáveis, úmida,
escorregadia (pausa) e fétida. Todos eles, homens e mulheres, corpos feitos para
o prazer. Eles, para o prazer deleitoso. Elas, para o prazer sádico. Minha vingança
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mudou de foco. Os homens viraram meu vício e perdição, pecado e redenção. De


corpo. De alma. (Pausa) A primeira vítima foi a puta de minha mãe. Estava dopada
de medicação e bebida. Emparedei viva no grande porão de casa. Os espaços
(pausa) preenchi com concreto. Não senti nada.
Anos de exercício militar me tornaram metódico, frio, calculista. Me
ensinaram a matar de forma limpa. Aprendi a rastrear e a esconder os meus.
Nunca fui feio. Consegui emprego num shopping, longe de minha casa.
Trabalhava, comia, fazia compras. Me exercitava numa academia do outro lado
da rua. Voltava para casa. Como balconista de uma loja multimarca conheci
muitas garotas. Foi com elas que comecei. Era simpático, paquerava, levava ao
cinema, dava uns beijinhos, estuprava e matava estrangulada. Senti o poder
percorrendo meus braços fortes.
O corpo (pausa) colocava no porta-malas e desovava do outro lado da
cidade, num alagado ou num lixão. Escolhia as vítimas entre as jovens. Solteiras.
De outra cidade. Sozinhas, carentes e românticas. Sentia necessidade de
aperfeiçoar os métodos.
Fiz o isolamento acústico do porão. Instalei uma iluminação melhor.
Comprei uma mesa de necropsia. Instrumentos. Aos poucos, comecei a levá-las
para casa. Aprendi a controlar o estrangulamento até o desmaio. Acordavam
nuas, presas pelos pulsos por fortes correias de couro, acima da cabeça. (Pausa)
Pelos tornozelos, mantendo as pernas abertas.
(Imitando as vítimas chorosas, no momento da tortura.) —
Aaaaaaeeee... a a a aaaa.... Minha mãe! Quero minha mãe! Aaaaaaeeee... a a a
aaaa.... Mamãe! Não! Não! Por favor, não! Isso não... Mãe! Minha mãe!
Aaaaaaaaiiii!
Cansei das vítimas do shopping. Eram enfadonhas, não resistiam e só
queriam a puta que as pariu. (Pausa. Justificando-se.) Eram chatas. Era mais
interessante caçar minhas presas na rua. Geralmente solitárias, não andam em
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bandos como no shopping... (Pausa) Primeiro foram as garotas, essas nunca


associaram a mim! Nem mesmo confessei ou contei onde estavam os corpos.
Minha sede de matar tornava-se cada vez maior. Era impulsionada por uma força
interior escura e tenebrosa. (pausa) Então comecei a me descuidar. Nunca
descobriram, nem mesmo atribuíram a um assassino serial; mesmo porque
diziam que não havia um método, uma assinatura. (pausa) Havia sim. (pausa) Eles
é que não souberam para onde olhar.
Vou falar apenas das últimas três vítimas. Todos gerados pela ânsia em
tocar outro corpo masculino. Ânsia essa mascarada por uma forte homofobia
autodirigida. Os crimes tornaram-se mais requintados, pois o corpo masculino,
pelo desejo que inspirava, exigia uma maior refinamento que os grosseiros corpos
das mulheres. (pausa) Tornar-me garoto de programa ajudou em muito a
realização do meu projeto. Ajudou em termos. Era eu que escolhia os clientes.
Não fosse assim, eu teria muito mais vítimas que os dezessete em três meses.
A primeira vítima
O segundo
O terceiro foi um garoto que anotava os nomes de (com nojo) todos
com quem transava nos seus jeans. (pausa) Com tinta indelével, pra não sair. Era
uma calça largona, reta, da cintura à barra. Não me lembro o nome do modelo.
Era algo assim como plus size... Lembro que era da Wrangler Austin! O viado só
falava nisso... Ele sacou que eu era GP. Empolgou-se com meu físico. Ele era uma
bichinha miudinha, magrinha, sabe?! Fácil de dominar... Não tinha grana. Não
tinha local. (pausa) Muito simpático e sedutor, expliquei que a primeira era grátis.
Pra formar clientela. Perguntou onde iríamos. Disse que conhecia um lugar legal.
(pausa) Achou romântica a estradinha antiga, de paralelepípedos, à margem do
rio. Ladeada de frondosos salgueiros. (Solene e pesado, como quem realiza um
ritual muito antigo) Nos beijamos. Apertei seu pescoço frágil. (pausa) Até perder a
consciência. Ele nem percebeu. Enquanto o beijava, envolvia seu pescoço com
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esta mão, pela nuca. Como nos beijos apaixonados dos filmes. Deitei-o com
delicadeza sobre uma grande pedra, embaixo de um salgueiro. Peguei o saco de
estopa que havia deixado atrás de um tronco. Acendi uma pequena fogueira. Do
saco, retirei um grosso pedaço de barra de construção, que coloquei para aquecer
ao rubro. Retirei do saco as cordas, uma marretinha e cinco estacas de madeira.
Despi-o. Deitei-o no caminho da estrada abandonada. Posição de homem
ritruviano. Fixei firmemente as estacas. Uma em cada extremidade da figura.
Ligeiramente inclinadas para fora. Com cada pedaço do grosso sisal dei três voltas
nas extremidades e as prendi firmemente nas estacas. Apliquei uma injeção de
adrenalina. Acordou imediatamente. Com um sorriso no rosto, misto de lascívia e
loucura, tirei do bolso traseiro uma pequena faca de aço carbono. Afiada
cirurgicamente. Cuidadosamente, separei o pau, o saco, a carne peluda que
recobre o púbis, como um troféu. Cauterizei com a barra quente. O garoto entrou
em choque. (Sai do clima pesado, banalizando, comenta animadamente) Afinal, o
objetivo não era que ele se esvaísse em sangue, eu queria, queria muito que ele
visse tudo. (Voltando gradativamente à solenidade inicial) Chupei a cabeça do pau
dele. Tinha um formato estranho, alongado demais, quase metade do tamanho
do pau. Arranquei-a com os dentes, mastiguei, engoli. O restante, joguei dentro
do saco de estopa. Desmaiou.

Fui considerado insano, inimputável.

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