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Anais do VII EPEM

02 a 04 de novembro de 2017
Garanhuns - Pernambuco

ESTUDO DOS SABERES NUMÉRICOS NA “ESCOLA DE VIDA” DE UM


FEIRANTE ANALFABETO

Candy Marques Laurendon 1


Univerdidade Federal de Pernambuco

RESUMO

Considerando o processo de “conceitualização no fundo da ação” 2 (Vergnaud,1996), este


trabalho teve por objetivo estudar os saberes na “Escola da Vida” de Seu Júlio, adulto
nordestino analfabeto comerciante de frutas e legumes. Neste contexto, os saberes na
“Escola da Vida” são assim considerados como conhecimentos operatórios mobilizados na
ação em relação à classes de situações dentro de campos de experiência (Boero, 1995).
Inicialmente focado nos conhecimentos numéricos, ou seja, os conhecimentos relativos à
manipulação e ao tratamento de quantidades e medidas, utilizamos uma metodologia psico -
antropológica (a partir das técnicas da observação participante das atividades profissionais
do adulto e da sua história de vida) para caracterizar a variedade de conhecimentos. Em
relação às situações na “Escola da Vida”, o sujeito mobiliza conhecimentos de diversos
tipos, não só numéricos como agrícolas, sociais, econômicos...Apesar da sua condição de
analfabeto, Seu Júlio revelou ser um perito na sua vida profissional, demonstrando uma
variedade e uma riqueza de competências desenvolvidas na “Escola da Vida” a partir de
toda a gama de classes de situações conhecidas dentro dos seus contextos profissionais tais a
cana de açúcar ou a agricultura.
Palavras chave: Conceitualização. Classes de situações. “Escola da Vida”. Abordagem
psico-antropológica.

INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende mostrar os resultados de uma parte da nossa pesquisa de
doutorado sobre os conhecimentos operatórios na “Escola da Vida” no caso de Seu Júlio,
adulto analfabeto comerciante de frutas e legumes em uma feira do Nordeste do
Brasil(LAURENDON-MARQUES, 2014). A expressão “Escola da Vida”, frequentemente
usada por pessoas de camadas populares, destaca a importância da vida cotidiana para as
aprendizagens, em oposição à “Escola” em que essas pessoas se encontram, muitas vezes, em

1
nacyda@gmail.com
2
Se referindo ao título original de um texto de Gérard Vergnaud “Au fond de l'action, la
conceptualisation” no livro sobre “Savoirs théoriques et Savoirs d’action” de Jean-Marie Barbier (1996).

2017. Anais do VII EPEM – Encontro Pernambucano de Educação Matemática. Garanhuns -


Pernambuco, Brasil.
Estudo dos saberes numéricos na "escola da vida" de um feirante analfabeto
VII EPEM – Encontro Pernambucano de Educação Matemática
02 a 04 de novembro de 2017

situação de fracasso escolar. Afinal, o que sabem aqueles que não sabem na “Escola da
Vida”?

Consideramos os saberes na “Escola da Vida” como conhecimentos operatórios


mobilizados dentro de classes de situações por meio de representações linguísticas e
simbólicas (Vergnaud, 1990). Focado inicialmente sobre os conhecimentos numéricos
relativos à manipulação e ao tratamento de quantidades e de medidas dentro dos campos de
experiência profissional (Boero, 1995) de Seu Júlio, utilizamos uma metodologia psico-
antropológica composta por um trabalho etnográfico com observação participante das práticas
profissionais do feirante ao longo de um período de seis meses e entrevistas sobre sua história
de vida para caracterizar esses conhecimentos-em-ação. A análise dos resultados permitiu
identificar uma variedade de classes de situações encontradas pelo feirante e os
conhecimentos mobilizados por Seu Júlio na “Escola da Vida” não só numéricos, mas
também de outros tipos como conhecimentos agrícolos, econômicos, sociais, etc.

A CARACTERIZAÇÃO DOS SABERES NA “ESCOLA DA VIDA”

A partir da teoria dos Campos Conceituais de Gérard Vergnaud (1990), consideramos


os saberes na “Escola da Vida” como conhecimentos-em-ação mobilizados dentro de
determinadas classes de situações por meio das representações linguísticas e simbólicas. Esses
conhecimentos são definidos como os produtos da atividade conceitual da pessoa que
permitem determinar as características operatórias mais pertinentes das situações, às quais ela
tenta responder de forma eficaz. Os conhecimentos-em-ação são compostos por conceitos-em-
ação necessários para extrair das situações as informações pertinentes para orientar a ação, ou
seja, os objetos, as suas propriedades e as relações entre várias situações para adaptar sua
conduta e por teoremas-em-ação que são proposições consideradas como verdadeiras para o
sujeito sobre esses tipos de informações extraídas (Vergnaud, 1996). Esses saberes
correspondem à forma operatória do conhecimento que permite agir em situação, a ser
distinguida da forma predicativa que anuncia as propriedades e as relações dos objetos do
pensamento. Esta forma operatória do conhecimento costuma ser mais rica e mais subtil que a
forma predicativa permitindo compreender como a ação é organizada e como se constroem as
competências.

“É pela ação que começa o pensamento” (VERGNAUD, nossa tradução, 1996, p.


275), ou seja, confrontado à realidade, o sujeito se constrói uma representação operatória das

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situações às quais ele tenta responder para agir de forma eficaz. Isso requer uma identificação
das características funcionais da realidade concretizada através dos eskemas 3 que são
definidos como formas de organização invariante de atividade que se adaptam às situações.

Vergnaud define um campo conceitual como um conjunto estruturado de classes de


situações que requer eskemas, conceitos, procedimentos e representações para ser tratado. No
entanto, sendo difícil de conseguir delimitar campos conceituais na experiência de vida das
pessoas, escolhemos o campo de experiência como unidade de análise dos conhecimentos
operatórios e das classes de situações do sujeito. Os campos de experiência que incluem
vários tipos de práticas e de conceitos mobilizados em um modo cotidiano são definidos como
“esferas de atividade socialmente perenes reconhecidas pelas práticas que se
desenvolvem e se estabilizam em uma certa comunidade, os saberes que se
estabelecem de uma forma mais ou menos institucionalizada e as diversas
representações simbólicas que estão em vigor” (BOERO e DOUEK, nossa tradução,
2008, p.100).

Os campos de experiência compostos por classes de situações, técnicas e


instrumentos são na vida profissional de Seu Júlio a cana de açúcar, a agricultura, a compra
dos produtos no interior e a venda dos produtos na feira.

UMA ABORDAGEM PSICO-ANTROPOLÓGICA PARA O ESTUDO DOS SABERES


NA “ESCOLA DA VIDA”

Para estudar os conhecimentos-em-ação na « Escola da Vida » que por natureza


são implícitos e difíceis de verbalizar, adotamos uma metodologia com uma abordagem
psico-antropológica composta pela observação participante das práticas profissionais de Seu
Júlio e a realização de entrevistas sobre a sua história de vida. As observações das práticas
profissionais foram registradas em um diário de campo que reúne observações, diálogos e
questionamentos sobre os saberes numéricos envolvidos nas situações observadas, como as
trocas comerciais. Realizamos observação participante das práticas de Seu Júlio durante um
período de seis meses, contando dois dias por semana ao ser 4 horas de observação por dia.
Incluído nesse trabalho etnográfico de campo, realizamos duas idas ao campo para observar
as práticas de escolha e de compra dos produtos na cidade de residência de Seu Júlio, a fim de
compreender melhor o processo de compra e venda dos produtos como as classes de situações
encontradas nesse processo.

3
Eskemas é a escrita proposta por Grossi para traduzir o mais adequadamente o termo "schèmes" em
francês, a ser distinguido do "schéma".
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Estudo dos saberes numéricos na "escola da vida" de um feirante analfabeto
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A partir do nosso quadro teórico de Vergnaud e de Boero, adotamos uma análise de


dados qualitativa e interpretativa, identificando no diário de campo os diferentes campos de
experiência e seus componentes. A Tabela n°1 representa um trecho do diário de campo, com
as categorias de análise citadas.

Tabela 1- Trechos do diário de campo sobre Seu Júlio


Data Temática Classes de situações Anotações

Campo de experiência: Calcular o custo de Um freguês chega e pede 2 kilos de


Venda dos produtos várias frutas e quilos farinha mais 3 cocos. Seu Júlio diz:
« dois e quarenta mais quatro faz
seis e quarenta reais ». O quilo de
farinha custa 2R$, o que faz 4R$.
Transação comercial Cálculo do custo total
Sexta-feira
Pesquisador pede Cálculo do preço total Eu pergunto então a Seu Júlio (C
explicação à Seu Júlio da compra de vários pesquisador, J Seu Júlio):
17/04
sobre o cálculo cocos
“C: explica-me então isso. Por que
envolvido nesta
dois e quarenta?
situação (diálogo)
J : Por quê o coco está à oitenta (R$
multiplicação
0,80). Ô minha filha, 3 X 8 faz 24
então 2 e 40.
C : ah 3X8, você sabe fazer
multiplicação ?
J : devemos saber, não é ?”

OS SABERES DE SEU JÚLIO NA « ESCOLA DA VIDA »

A análise dos dados permitiu distinguir diversos campos de experiência na vida


profissional de Seu Júlio. A seguir, descreveremos o principal desses campos: a venda dos
produtos na feira de Recife.

Venda dos produtos na Feira

Seu Júlio vende produtos como a jaca, a pitomba, bananas, inhame, coco e farinha na
feira de Recife, que ele compra no Interior de Pernambuco, depois de realizar ele próprio a
colheita das frutas e verduras. Segue na tabela n°2 os diferentes componentes (classes de
situações, técnicas e instrumentos) do campo de experiência da venda.

Tabela 2- Os diferentes componentes do campo de experiência da venda de produtos

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Laurendon

Classe de situações Técnica Instrumentos

-Determinar o preço de venda Os saquinhos de jaca Balança de dois pratos com


do produto (em relação ao custo diferentes pesos,
total, balanço oferta/compra, A pesquisa (preço proposto
pelos outros feirantes) Sacos, Bicos escoador, Faca,
período na feira),
Isopor
-Tornar o produto atrativo O pagamento por crédito A mão, o olhar, o sorriso
-Atender o pedido do freguês
Dinheiro (notas, moedas)
(ex: cortar a fruta, peneirar a
farinha...) Caderneta
-Pesar o produto, Sistemas de representação orais
-Calcular o custo total da
e escritos
compra de x quantidades de um
produto,
-Calcular o custo total da
compra de vários produtos,
-Dar o troco

Caracterização dos conhecimentos numéricos de Seu Júlio


A análise das situações numéricas revelou a presença de problemas com a estrutura
multiplicativa de tipo isomorfismo de medidas, com uma relação ternária. Outros problemas
implicaram a estrutura aditiva com o tipo de composição das medidas ou de transformação de
um estado, buscando o valor da transformação para dar o troco. A análise revelou um maior
uso de procedimentos de resolução de problemas que sejam do tipo decomposição do
problema, o que facilita o cálculo mental.
As diferentes situações revelam que os conhecimentos matemáticos desenvolvidos
durante as transações comerciais são ligados ao significado do contexto no qual eles são
mobilizados. Apesar de modificações sobre os valores envolvidos no problema aritmético
(como a conversão de um número decimal em número inteiro) ou usando a decomposição dos
problemas, Seu Júlio chega a resultados intermediários que têm sentido e consegue conservar
o significado geral do problema inicial. Por exemplo, quando se calcula o custo da compra de
2 quilos de inhame, mesmo decompondo o problema, os valores manipulados continuam
sendo quilos e reais ou centavos. Os conhecimentos numéricos estão intrinsicamente ligados
ao contexto da atividade da qual eles emergem. Os problemas numéricos estão sim
relacionados a manipulação de quantidades, e não a manipulação simbólica.
Alguns elementos relacionados a relação social entre o freguês e o feirante puderam
por vezes modificar a atividade matemática iniciada por Seu Júlio. Por exemplo, quando o

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freguês tenta convencer Seu Júlio a baixar o preço do produto, o problema numérico
envolvido na situação é então modificado e deixado para o segundo plano para priorizar a
relação com o freguês. Pela natureza dos conhecimentos operatórios definidos como
implícitos, Seu Júlio apresentou dificuldades a verbalizar ao ser questionado os
procedimentos de resolução de problemas utilizados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos resultados demonstrou a esperteza de Seu Júlio com o domínio de uma
variedade de classes de situações na sua vida profissional, envolvendo saberes relativos a
quantidades e medidas. Nesse contexto, a pesquisa exemplifica o processo de
conceitualização na ação do sujeito, com uma forma operatória do conhecimento muito rica, a
partir da resolução de uma variedade de situações problemáticas.

Assim, apesar da sua condição de analfabeto, Seu Júlio revelou uma variedade e uma
complexidade de competências desenvolvidas na “escola da vida” a partir de toda a gama de
classes de situações conhecidas dentro dos seus contextos profissionais tais a cana de açúcar
ou a agricultura. No entanto, mesmo sendo de uma grande riqueza, estes saberes da vida
demonstram um caráter limitado e servem principalmente a atividade do sujeito operando mas
dificilmente para se comunicar com outros, como os fregueses. Pois para tanto, precisam ser
formalizados e explorados em uma instituição de ensino.

REFERÊNCIAS
BOERO, Paolo; DOUEK, Nadia. La didactique des domaines d’expérience. Carrefours de
l’Education, 26, p.99-114, 2008.

LAURENDON-MARQUES, Candy Estelle. Uma abordagem psico-antropológica dos


saberes na « Escola da Vida » no caso de adultos pouco ou não escolarizados. Tese de
Doutorado de Psicologia em Co-tutela entre Université d'Angers e UFRN- 2014.

VERGNAUD, Gérard. La théorie des champs conceptuels. Recherches en didactique des


mathématiques, vol.10 (2/3), 1990, p.133-170.

VERGNAUD, Gérard. Au fond de l'action, la conceptualisation. In: BARBIER, Jean-Marie


(dir.). Savoirs théoriques et savoirs d'action. Paris : Presses Universitaires de France, 1996.
p. 275-292.

VERGNAUD, Gérard. Réponse de Gérard Vergnaud. In : MERRI, Maryvonne (org.).


Activité humaine et conceptualisation. Toulouse : Presses Universitaires du Mirail, 2007. p.
341-357.

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