Você está na página 1de 17

ARTIGO

A divisão sexual dos cuidados: do welfare state ao neoliberalismo


The sexual division of care: from the welfare state to the neoliberalism

Mariana Mazzini MARCONDES1

Resumo: O objetivo deste artigo é a análise teórica sobre o cuidado, na perspectiva


da divisão sexual do trabalho, investigando em que medida a agenda política da
provisão do bem-estar vem incorporando essa questão. Por meio de revisão da
literatura sobre o tema, buscamos articular o processo de assalariamento feminino
com a responsabilização das mulheres pela reprodução social e, mais
especificamente, pelo cuidado, considerando o papel tradicionalmente atribuído às
famílias. Nosso fio condutor é a comparação dos arranjos priorizados para a provisão
do bem-estar em dois contextos – o welfare state e o neoliberalismo – e a relação de
cada modelo com a divisão sexual dos cuidados. Por fim, buscamos discutir as linhas
gerais para a formação de uma agenda de democratização do cuidado, concluindo
que é necessária a combinação de mudanças nas responsabilidades familiares entre
mulheres e homens com a transformação do padrão de divisão de responsabilidades
entre famílias, Estado e mercado.
Palavras-chave: Divisão sexual do trabalho. Cuidado. Provisão de bem-estar.

Abstract: The aim of this paper is the theoretical analysis of care in view of the sexual
division of labor, investigating how the political agenda of welfare provision has in-
corporated this issue. Through literature review, the article seeks to articulate the
process of wage-earning women with women's responsibility for social reproduction
and, more specifically, by the care, considering the traditionally role assigned to fam-
ilies. Our guideline is the comparison of priority arrangements for the provision of
welfare in two contexts – the welfare state and the neoliberalism – and the relation of
each model with the sexual division of care. Lastly, we will discuss the main points
to a political agenda formulation in order to democratize the care and to promote
gender equality, concluding that the care issue democratization requires a combina-
tion of changes into the families responsibilities between women and men and a
transformation of the pattern of shared responsibility between families, State and
market.
Keywords: Sexual division of labor. Care. Welfare provision.

Submetido em: 9/1/2012 Aceito em: 14/2/2012

1 Graduada em direito pela Universidade de São Paulo é mestranda em Política Social pela
Universidade de Brasília e integrante do grupo de pesquisa Trabalho, Educação e Discriminação
(TEDIs – UnB). Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do
Planejamento, exerce suas funções na Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República. Email: <mariana.mazzini.m@gmail.com>.
91
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
Mariana Mazzini MARCONDES

1 Introdução: O problema da divisão universo familiar quanto nas instituições


sexual dos cuidados de cuidado (BANDEIRA, 2010). Apesar
da importância do cuidado para a

A
história das mulheres no sobrevivência da espécie humana, essa
mundo do trabalho é uma problemática esteve e continua, em
narrativa de negação, grande medida, encerrada atrás das
desagregação e contradição. portas da esfera intramuros dos
Tradicionalmente responsáveis pela domicílios.
reprodução da vida social, o trabalho por
elas exercido foi sempre compreendido O que conecta essas duas narrativas?
como um não trabalho, em decorrência
da separação física, típica do modo de A divisão sexual do trabalho, que,
produção capitalista, entre espaço segundo Kergoat (2009), é forma
doméstico e produção para o mercado, derivada de divisão social do trabalho
sendo o cerne do que é considerado decorrente das relações de gênero, em
trabalho correspondente apenas ao que há a separação e a hierarquização
trabalho assalariado (MARTÍNEZ valorativa das esferas produtivas e
FRANZONI, 2005). reprodutivas, sendo a primeira, mais
valorizada, destinada prioritariamente
Apesar das jornadas intensas e extensas aos homens, e a segunda, menos
de dedicação à produção permanente do valorizada, compreendida como
bem-estar social no âmbito doméstico, as conectada à natureza das mulheres.
mulheres foram qualificadas como
improdutivas até consolidarem o A divisão sexual do trabalho demonstra-
ingresso no mercado de trabalho. Essa se uma categoria útil por conferir
trajetória de assalariamento feminino é, unidade de sentido ao mundo do
contudo, uma história de contradições, já trabalho, além de afirmar como trabalho
que o mesmo processo que gera a o que é compreendido usualmente como
emancipação parcial das mulheres não trabalho. A ressignificação do
converte-se em intensificação de mundo do trabalho por essa ótica
desigualdades, incorporando o trabalho permite compreender as esferas
feminino de modo desigual e produtivas e reprodutivas não como
diferenciado (ANTUNES, 2009). dicotômicas, mas como articuladas para
a manutenção do modelo econômico
Em paralelo a essa narrativa, existe outra capitalista.
que com ela converge ou, ainda,
condiciona-a. Os trabalhos que envolvem Desta forma, a reprodução das condições
o cuidado, que deveriam envolver toda a de vida é compreendida como fator
sociedade, o Estado, as instituições elementar para a manutenção da força de
privadas e as próprias famílias, são trabalho, que, por sua vez, é
tradicionalmente atribuídos às mulheres, imprescindível para gerar valor no
tanto na divisão sexual do trabalho no processo produtivo (CARLOTO;

92
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
A divisão sexual dos cuidados: do welfare state ao neoliberalismo

GOMES, 2011). Essa incindibilidade mas deveria ser compreendido como


significa, para as mulheres, a vivência do uma questão social e política (TRONTO,
trabalho total, ou seja, com as duas 1997), o cenário indicado pela nova
esferas articuladas (BRUSCHINI; configuração da divisão sexual do
LOMBARDI, 2008). trabalho torna-se ainda mais dramático.

O mundo do trabalho – resultante da É nesse contexto que se coloca o


articulação dessas duas esferas – é propósito do presente artigo, que visa a
cenário de metamorfoses constantes e, analisar a problemática do cuidado na
embora os princípios constitutivos da perspectiva da divisão sexual do
divisão sexual do trabalho – a separação trabalho, investigando em que medida a
e a hierarquização – sejam válidos para agenda política vem incorporando essa
todas as sociedades conhecidas, sua questão, considerando os arranjos
formatação é modulada histórica e priorizados para a provisão do bem-estar
socialmente (HIRATA; KERGOAT, e o impacto sobre as desigualdades de
2007). A intitulada nova configuração da gênero. É nosso objetivo, ainda, com base
divisão sexual do trabalho funda-se na análise proposta, apresentar algumas
sobre um paradoxo, cuja base notas preliminares para a construção de
fundamental consiste no fato de as uma agenda política para a
reorganizações simultâneas entre democratização do cuidado, visando à
trabalhos produtivos e reprodutivos promoção da igualdade de gênero. Para
configurarem-se por meio da que possamos realizar a análise a que
continuidade da responsabilização das nos propomos, devemos, entretanto,
mulheres por esse último. Em síntese, evidenciar algumas premissas
tudo muda, mas nada muda (Idem). conceituais e metodológicas.

As mulheres estão, atualmente, inseridas A nossa categoria analítica central será o


no mercado de trabalho. No entanto, o cuidado, compreendido como um dos
trânsito das mulheres do doméstico para desdobramentos específicos dos
o espaço público não foi correspondido trabalhos reprodutivos , cujo conteúdo
2

por um trânsito dos homens na direção


inversa (SORJ; FONTES; MACHADO, 2 Utilizaremos, ao longo do texto, os conceitos de
2007). Tampouco o Estado assumiu a trabalho reprodutivo (ou de reprodução social),
corresponsabilização pelos trabalhos de trabalho de cuidado e trabalho doméstico e,
ainda que estejam relacionados, identificamos
cuidado, por meio do oferecimento de
diferenças entre eles. Entendemos como trabalho
equipamentos sociais adequados. reprodutivo o conjunto de atividades que cria as
condições indispensáveis para a reprodução da
Observando a problemática da força de trabalho, e, portanto, abarcam os
perspectiva que identifica o cuidado com trabalhos de cuidado diretamente voltado às
pessoas (crianças, idosos/as, pessoas com
uma condição para a existência da vida
deficiência etc.), mas também os trabalhos
humana, e que, portanto, não poderia ser rotineiros de limpeza da casa, higienização e
entendido como uma questão familiar, alimentação (ANTUNES, 2009). O conceito de
trabalho doméstico, por sua vez, será utilizado
93
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
Mariana Mazzini MARCONDES

envolve responder às necessidades formação de Estados nacionais e


particulares, concretas, físicas, estabelecimento de pactos societários
espirituais, intelectuais, psíquicas e também não. Isso significa que as
emocionais de outros (TRONTO, 1997). especificidades históricas são a regra, e
Em face da opção por empreender a não a exceção.
análise na perspectiva da divisão sexual
do trabalho, qualificamos o cuidado Em que pese assumirmos, como ponto
como uma atividade tradicionalmente de partida, essa limitação de nossa
feminina, muitas vezes não remunerada análise, entendemos ser esse caminho o
ou, quando remunerada, desprestigiada mais adequado para o que nos
social e economicamente (AGUIRRE, propomos, pois, tal qual a alegoria
2007). empregada por Esping-Andersen (2000),
em seu estudo sobre a tipologia de
Por se tratar de um estudo de caráter regimes de bem-estar, interessa-nos ver o
conceitual, nossa metodologia limitar-se- bosque e não as árvores. Tendo como fio
á à revisão da literatura sobre o tema. condutor esse enredo, buscaremos
Para isso, analisaremos as linhas gerais demonstrar que, da forma que o olhar
das agendas políticas da provisão do sobre o bosque foi elaborado, algumas
bem-estar nos paradigmas do welfare raízes ficaram invisíveis, embora caibam
state e do neoliberalismo, trazendo, a elas a sustentação do bosque e a
ainda, a crítica feminista. Por fim, reprodução de sua vitalidade.
apresentaremos algumas notas Entendemos que esse olhar crítico
preliminares acerca dos grandes eixos permitirá rever o desenho da paisagem,
que devem ser considerados para o que pode subsidiar a reflexão sobre a
postular uma agenda de efetiva agenda de políticas públicas sobre o
democratização dos cuidados. cuidado.

Para realizarmos nosso percurso, 2 O paradigma do Welfare state e os


lançaremos mão da utilização de cuidados: as mulheres como produtoras
paradigmas por entendermos que essa do bem-estar
ferramenta analítica encerra a
preocupação com as peças estruturais de O intitulado paradigma do welfare state
um modelo, e não com as dobradiças das compreende a formação de uma agenda
especificidades históricas, que conferem política que emerge na trilha da
a dinâmica da realidade. Assumiremos denominada questão social3,
essa escolha como uma limitação da
análise, em decorrência do entendimento 3 Há que se reconhecer as diferenças entre
de que o capitalismo não se limita a um política social e welfare state, assim como apontar
padrão homogêneo, assim como a as linhas gerais sobre a compreensão da questão
social. Embora não caiba, no escopo desse
estudo, aprofundar a questão, vale salientar que
em referências às mesmas atividades, quando o entendemos a política social como uma espécie
locus de realização for o domicílio, ou seja, no do gênero políticas públicas, que visa à
âmbito privado das famílias. concretização de direitos sociais e à satisfação
94
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
A divisão sexual dos cuidados: do welfare state ao neoliberalismo

representando um afrouxamento da na assistência aos pobres. Já no regime


lógica capitalista da força de trabalho de bem-estar conservador, a ênfase é
como mercadoria (ESPING-ANDERSEN, conferida às famílias, imperando o
1991). Sua pauta, que se tornou central distanciamento da mulher do mercado
para o debate público nos mais diversos de trabalho e o encorajamento à
países – sobretudo no pós-segunda maternidade. Por fim, o regime de bem-
guerra mundial –, abarca a cidadania, o estar social democrata prioriza o Estado,
pleno emprego e a proteção social. fundando-se na cidadania social e no
pleno emprego.
Os arranjos de provisão do bem-estar
nesse contexto, conforme aponta Esping- Não nos interessa aprofundar a
Andersen (1991), variam conforme o classificação de Esping-Andersen, mas
padrão de interação entre Estado, família tão somente assinalar que, ainda que o
e mercado e, especialmente, quanto à paradigma do welfare state assuma como
centralidade de cada uma dessas agenda a segurança social na perspectiva
unidades de produção de bem-estar. da cidadania e proteção ao trabalho, o
Essa constatação é central para a grau de desmercantilização e desfamilização
tipologia de regime de bem-estar do pode variar profundamente.
autor, que define padrões classificatórios
e comparativos, em face dessas três A desmercantilização remete à
variáveis, resultado em 3 tipos de compreensão da prestação de serviço
regimes: o regime de bem-estar liberal, o como um direito do cidadão de manter-
conservador e o social-democrata. se sem depender do mercado; sua
variação se dá conforme o grau em que o
No regime de bem-estar liberal, o bem-estar se distancia do poder
mercado exerce função central, sob a aquisitivo, relativizando a proeminência
égide da ética do trabalho e da dos recursos financeiros como forma de
responsabilidade individual, sendo a acesso a bens e serviços (MARTÍNEZ
intervenção estatal residual, focalizada FRANZONI, 2005). Assim, seguindo a
tipologia de Esping-Andersen, a
das necessidades sociais, em relação a qual “desmercantilização” seria maior no
trataremos do bem-estar social. Já o welfare state regime social-democrata, cuja provisão é
tem perspectivas histórica e normativa baseada no direito e nas políticas
específicas, cujo apogeu se dá no pós-guerra. públicas, do que no regime liberal, cuja
Assim, a política social e a preocupação com o
ênfase é no mercado.
bem-estar social não são exclusivas do welfare
state (PEREIRA-PEREIRA, 2009a e 2009b). É
nesse contexto que emerge a questão social, do A desfamilização, por sua vez, refere-se ao
ponto de vista da luta de classes, visto que é nível de provisão de bem-estar que deixa
nesse momento histórico que a burguesia passa de ser responsabilidade das famílias
a ser classe dominante e o proletariado assume
(MARTÍNEZ FRANZONI, 2005). Na
consciência de classe, o que coloca ao Estado a
atribuição de mediação social e política tipologia de Esping-Andersen (2000), a
(PEREIRA-PEREIRA, 2009b). título ilustrativo, a desfamilização seria

95
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
Mariana Mazzini MARCONDES

maior no regime social-democrata do que coloca os trabalhadores para


que no regime conservador, pelas sustentar o modelo, e não representa um
características apresentadas. prenúncio de uma provisão socialista,
que seja de acordo com as necessidades
Empregando esses conceitos para a sociais. As feministas acrescentariam,
análise dos cuidados, podemos notar que ainda conforme a autora, que o welfare
o paradigma do welfare state incorpora state era especialmente opressivo às
essa questão em seu repertório, embora o mulheres, pois a provisão de bem-estar
grau de desmercantilização e desfamilização cabia a elas, embora essa atividade fosse
seja diferenciado conforme o regime de cercada de desprestígio e de falta de
bem-estar. Com efeito, o locus da reconhecimento.
prestação de cuidados, no regime liberal,
é o mercado, sem dispensar as famílias, A crítica feminista apontava que no
já que se trata de um problema a ser paradigma do welfare state a provisão do
resolvido por indivíduos. Apenas em bem-estar era realizada em duas
situações de vulnerabilidade excepcional camadas (PATERMAN, 2007). A
o Estado deve assumir a tarefa dos primeira diz respeito ao bem-estar que é
cuidados. No modelo conservador, por provido no âmbito doméstico, tendo
sua vez, não é esperado que o mercado como unidade de produção as famílias e,
atenda às demandas por cuidado, mas dentro delas, as mulheres. A segunda diz
sim que as famílias o façam, sobretudo as respeito ao bem-estar que é provido no
mulheres. Por fim, no modelo social- espaço público das relações sociais
democrata, a provisão estatal assume (extramuro do âmbito doméstico), que
especial importância em relação aos pode ter como unidade de produção as
cuidados, especialmente por meio de políticas públicas e os serviços oferecidos
serviços de saúde e educação, pelo mercado.
especialmente se comparado aos outros
dois modelos (o que não significa a A combinação do conceito de
anulação da família e do mercado). desfamilização com a compreensão do
bem-estar em duas camadas permite
E como o paradigma do welfare state constatar que a família, como unidade de
assume a preocupação com as produção de bem-estar, é essencial ao
desigualdades de gênero? A perspectiva paradigma do welfare state, havendo
de classe já vinha orientando uma leitura variações apenas quanto ao grau de
crítica da questão, especialmente em prevalência. Dentro das famílias, essa
decorrência da agenda política em unidade de produção funciona com base
questão não propor a superação da na exploração do trabalho não
contradição fundamental entre capital e remunerado das mulheres que, na
trabalho. Como sintetiza Mc Intosh verdade, nem sequer é compreendido
(2007), os críticos radicais diriam que o como um trabalho, mas como realização
welfare state não elimina a pobreza, não é de um atributo essencialmente feminino,
redistributivo entre as classes, uma vez o que significa que as mulheres são,

96
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
A divisão sexual dos cuidados: do welfare state ao neoliberalismo

primordialmente, as titulares naturais do trabalho acompanharia a exteriorização


dever de reprodução social. dos trabalhos de cuidado para o
extramuro da esfera doméstica, uma vez
Essa compreensão social do trabalho que a elas caberiam exercer as atividades
doméstico lhe confere o caráter de um necessárias ao funcionamento dos
trabalho invisível. O ambíguo serviços estatais e privados,
reconhecimento da “contribuição notadamente na saúde, educação e
feminina à nação” remete ao Plano assistência (MCINTOSH, 2007).
Beveridge, marco da instituição do
sistema de seguridade social. Com efeito, Esta seria a marca que acompanharia,
como destaca Paterman (2007, p. 145), pari passu, a intensificação do
The Social Insurance and Allied Services assalariamento feminino: a segmentação
Report explicitava que: “[…] the great horizontal no mercado de trabalho, com
majority of married women must be re- a concentração de oportunidades para as
garded as occupied on work which is mulheres em atividades cujas
vital though unpaid, without which the características lhes são atribuídas
nation could not continue”.4 culturalmente (YANNOULAS, 2004). As
ocupações compreendidas como
Ainda que essa problemática tenha sido femininas, quando não são extensões
marginalizada na agenda política do diretas da domesticidade, requerem
welfare state – e também em parte qualidades muito estimuladas pela
expressiva da produção do pensamento socialização das meninas, tais como
crítico –, a divisão sexual dos cuidados paciência, docilidade, delicadeza etc
não é uma problemática marginal em si. YANNOULAS, 2004). É exatamente o
Isso porque as relações de caso da profissionalização dos cuidados,
interdependência familiares definem, em que se iniciaria no paradigma do welfare
grande medida, o acesso direto ou state e seria caracterizada pelo
indireto ao mercado de trabalho, à renda, desprestígio sócio-econômico. Ademais,
aos serviços públicos e ao próprio essas profissões apresentariam um
trabalho não remunerado de cuidado quadro de segmentação vertical do
(MARTÍNEZ FRANZONI, 2005). mercado de trabalho, o que abarca
diferenças salariais, ascensão profissional
É de se notar, ainda, que a provisão do e condições de trabalho (como exemplo,
bem-estar no espaço público também o setor de saúde, em que mulheres
dependeria, em grande medida, do estariam expressivamente presentes, mas
trabalho feminino. A progressiva seriam chefiadas por homens)
inserção das mulheres no mercado de (YANNOULAS. 2004).

A crítica feminista ao paradigma do


4 “Deve-se reconhecer que a grande maioria das
welfare state voltou-se a dois aspectos
mulheres casadas ocupa-se de um trabalho vital,
ainda que não remunerado, sem o qual não seria tangenciados nessa análise. O primeiro,
possível à Nação sua continuidade” que denominaremos matriz crítica da
(PATERMAN, 2007, p.145, tradução nossa).
97
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
Mariana Mazzini MARCONDES

igualdade, consistia na compreensão de


que o pleno emprego e a ênfase na Já a matriz crítica da diferença apontaria
cidadania social excluíam as mulheres que, apesar de a produção do bem-estar
(PATERMAN, 2007). Além de não ser social familiar ser estratégica para o
reconhecido às mulheres o status de funcionamento do sistema, o
cidadãs, a centralidade da sociedade desprestígio assolava o papel
salarial para o paradigma do welfare state socialmente construído como feminino.
impunha a sua exclusão maciça, tendo Isso porque a valoração do mundo seria
em vista que o sistema de proteção social forjada exclusivamente com base nos
era estruturado no padrão breadwinner valores masculinos, o que implicava
system. tanto o desprestígio de tudo aquilo que é
compreendido como feminino quanto o
Esse sistema consistia na identificação não reconhecimento das contribuições
dos homens, enquanto indivíduos prestadas pelas mulheres. Assim, para
inseridos em relações de emprego além de se estender a igualdade de status
formal, como provedores e titulares de a mulheres, era necessário reconfigurar
direitos à proteção social (vínculo os valores sociais, para que a cidadania
principal), cujos benefícios eram social reconhecesse a importância dos
comunicados ao resto da família (vínculo cuidados e do trabalho doméstico não
dependente) (BARBA, 2004). Enquanto remunerado para a sociedade
isso, as mulheres eram responsáveis pela (AGUIRRE, 2007).
reprodução social, especialmente por
meio do trabalho doméstico não A crítica feminista apontava, portanto,
remunerado (e, vale frisar, elas não que a cidadania no paradigma do welfare
contavam com nenhuma medida de state era repleta de paradoxos para as
proteção ao trabalho, como jornada mulheres (PATERMAN, 2007). Uma das
regulamentada e licença remunerada). contradições poderia ser assim
formulada: as mulheres devem lutar
A proteção social baseada em para alcançar o patamar da igualdade,
breadwinners and house-wives encerrava compartilhando do mesmo status de
uma contradição profunda: as mulheres cidadania, ou deveriam lutar pelo
não podiam se cuidar sozinhas, por isso reconhecimento das especificidades dos
eram dependentes e protegidas por atributos ditos femininos? (idem). Outro
homens independentes. No entanto, as paradoxo que a crítica feminista
mulheres deveriam cuidar de todos e apontava era que o Estado do welfare
inclusive delas mesmas (PATERMAN, state, tal qual nos conflitos de classe,
2007). O desenho de cidadania na representava a fonte de reprodução da
sociedade salarial era, portanto, dominação patriarcal e chave para a sua
decorrente de um binômio inseparável: superação, o que se cristalizava nas
(in)dependência econômica e políticas sociais (MCINTOSH, 2007).
(in)dependência de cuidado
(MARTÍNEZ FRANZONI, 2005).

98
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
A divisão sexual dos cuidados: do welfare state ao neoliberalismo

Com a crise do pleno emprego nos países meio das privatizações dos serviços e
desenvolvidos e com o advento do bens públicos e das reformas do sistema
neoliberalismo, milhares estariam tributário e de seguridade social, o que
excluídos, questiona Paterman (2007). acarretaria forte impacto sobre as
Deveria, portanto, ser o pleno emprego políticas sociais (BARBA, 2004).
compreendido como uma prerrogativa
dos homens capitalistas, prossegue a A reorientação das políticas sociais no
autora, ou a democracia, nesse contexto paradigma neoliberal é sintetizada na
de crise, deveria ter seus postulados seguinte máxima, de Martínez Franzoni
repensados? Essa questão central nos (2005): políticas públicas amplas
leva à análise do paradigma neoliberal. apresentam retrocesso e as políticas
focalizadas, expansão. Os
3 O paradigma neoliberal e os cuidados: desdobramentos diretos dessa
complexificação de um cenário de reorientação são a redução de custos
desigualdades de gênero sociais e a focalização na extrema
pobreza e na vulnerabilidade social5.
Nas décadas de 1980 e 1990, com a crise Desta forma, as perspectivas de
do paradigma do welfare state, desmercantilização e desfamilização do
configurava-se um novo cenário, paradigma do welfare state foram
alimentado por processos heterogêneos substituídas pela valorização da
de ajustes e estabilização econômica, igualdade de oportunidades e
bem como por novas perspectivas de investimento em capital humano para a
desenvolvimento social. Impulsionadas incorporação no mercado de trabalho
por instituições financeiras e (MARTÍNEZ FRANZONI, 2005).
internacionais e governos nacionais, a
política social assumia, nesse contexto, Em paralelo à ascensão da agenda
cada vez mais, um corte residual política neoliberal, ocorre a consolidação
(BARBA, 2004). da participação das mulheres no
mercado de trabalho. É de se notar,
Na América Latina, essa agenda de contudo, que os movimentos de
reformas, sintetizada pelo Consenso de segmentação horizontal e vertical do
Washington, calcava-se na consagração mercado de trabalho, iniciados no
do capitalismo de livre-mercado, que, paradigma do welfare state,
por sua vez, estruturava-se no seguinte intensificaram-se ainda mais.
tripé: desregulamentação (tanto das
relações de trabalho quanto do capital Para além das desigualdades entre
financeiro); adoção de políticas mulheres e homens, entretanto, o que o
macroeconômicas mínimas e paradigma neoliberal também intensifica
monetaristas; e abertura comercial. são as assimetrias entre as próprias
Concomitantemente, a reforma
estrutural do Estado combinava-se às 5 O que levaria à contramão do que, no caso
demais medidas, concretizando-se por brasileiro, a Constituição Federal de 1988
preconizava.
99
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
Mariana Mazzini MARCONDES

mulheres, vez que o trabalho feminino trabalho invisível, agora elas não mais
passou a ser caracterizado pela poderiam executá-los em sua totalidade.
bipolarização, ou seja, as mulheres Tampouco o Estado assumiria a
aparecem representadas nos polos corresponsabilização pelos cuidados, já
opostos das relações de trabalho. que, como mencionamos, essas políticas
Destarte, se, por um lado, a presença (tais como creches, asilos, restaurantes
feminina no mercado de trabalho comunitários etc.) foram especialmente
alcançou os polos de maior valorização afetadas pelos programas de ajustes
social e econômica – cargos de direção e estruturais, o que implicou a diminuição
carreiras de prestígio, como as de dos gastos públicos na área social
médicos/as e advogados/as –, por outro, (RICOLDI, 2010). Por fim, o mercado só
as mulheres seguem representando a atende a quem possui os meios para
força de trabalho majoritária do polo custear os serviços, o que é insuficiente
oposto, caracterizado por trabalhos para fazer frente à demanda, sobretudo
precarizados e, especialmente, em cenários de recessão e desemprego.
concentrando-se nas ocupações ditas O paradigma neoliberal significou,
femininas – com baixa proteção social e consequentemente, um nível ainda mais
piores remunerações – como é o caso das baixo do que o do welfare state, no que
trabalhadoras domésticas (HIRATA; tange à incorporação da preocupação
KERGOAT, 2007). com os cuidados enquanto tema central
para a agenda política, em uma
A combinação da redução das perspectiva de igualdade de gênero.
atribuições do Estado, em relação à Ademais, a revisão do padrão de
provisão do bem-estar social, com a interação de Estado, família e mercado
inserção das mulheres no mercado na provisão de bem-estar complexificou
geraria um déficit de cuidado (AGUIRRE, sobremaneira os arranjos de cuidados,
2007). Se no âmbito das famílias as conforme sintetizado na figura abaixo,
mulheres vinham respondendo pela reproduzida por Aguirre (2007).
reprodução social por meio de um

Figura 1
O Diamante do Bem-Estar – Aguirre (2007)

100
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
A divisão sexual dos cuidados: do welfare state ao neoliberalismo

O Diamante do Bem-Estar permite Esse fenômeno é o que Hirata e Kergoat


visualizar as possíveis estratégias de (2007) denominam de relação de
articulação do trabalho doméstico com a delegação, a qual tende a se sobrepor ou
inserção feminina no mercado de mesmo substituir a sobrecarga. A
trabalho, que variaram conforme a delegação se materializa na situação em
realidade de cada país, mas, sobretudo, que mulheres de classes média e alta
com a realidade sócio-econômica das beneficiam-se dos serviços das
mulheres. Sobrecarga e dupla jornada, trabalhadoras domésticas, transferindo a
trabalho parcial, informal e precário, essas a execução dos trabalhos de
delegação e inatividade (SANTOS, 2008): cuidado de suas famílias. A capacidade
todas essas ideias compõem a matéria- de delegar o trabalho doméstico a
prima do Diamante do Bem-Estar. terceiros (ou, no caso, a terceiras) passa a
ser, na nova configuração da divisão
As mulheres que ocupam o polo de sexual do trabalho, uma variável
prestígio tendem a optar, no todo ou em relevante para ampliar ou diminuir as
parte, pela faceta 4 do Diamante do Bem- oportunidades de acesso a postos de
Estar: buscar no mercado os serviços trabalho que oferecem boa remuneração
privados de cuidado. Embora parte da e proteção social.
demanda tenha sido absorvida por
jardins de infância e cuidadores/as Segue, contudo, expressivo o peso da
profissionais, no Brasil, a solução faceta 3 (famílias extensas), em relação às
preferencial, viabilizada pela existência mulheres que ocupam o polo de maior
de ampla oferta de mão de obra feminina prestígio. Dupla jornada, busca de
barata, priorizou a contratação de carreiras públicas ou jornadas parciais
trabalhadoras domésticas. são formas que as mulheres encontram
para seguirem nas duas esferas do
mundo de trabalho – mercado de

101
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
Mariana Mazzini MARCONDES

trabalho e a reprodução social. Além Essa sobrecarga nas mulheres que estão
disso, com alguma frequência, outras no beco sem saída do arranjo de cuidados
pessoas da família assumem, no todo ou vigente é determinante para a
em parte, a responsabilidade pelos diferenciação de acesso e permanências
cuidados. Cabe citar, nesse sentido, o no mercado de trabalho, tornando-as
papel que as avós, mesmo nas famílias adaptadas às diversas formas de
mais abastadas, assumem no cuidado precarização, tais como flexibilização,
das crianças. informalização e jornadas parciais
(CARLOTO; GOMES, 2011). Isso porque
No caso das mulheres pobres, também a flexibilização permite a essas mulheres
há um mix de diferentes soluções, conciliarem a jornada de trabalho dentro e
embora a delegação apresente um peso fora do âmbito doméstico, e, portanto,
menos expressivo. Uma delas é a realizar um trabalho tão central para a
utilização dos serviços estatais de sobrevivência humana quanto
creches6 (faceta 1 do Diamante do Bem- negligenciado pela sociedade: o trabalho
Estar), muitas vezes focalizados nas de cuidado.
mulheres pobres. Como a cobertura das
creches é insuficiente – seja no número É a precarização das condições de
de vagas, no período de funcionamento trabalho dessas mulheres que concorre
ou na distribuição geográfica –, uma para a efetividade da solução da
segunda opção são os serviços delegação, haja vista o baixo custo
voluntários, tais como ONGs e grupos de econômico da exploração da mão de obra
autoajuda (faceta 2 do Diamante do Bem- barata ser o fator que torna viável esse
Estar), os quais, no caso brasileiro, são arranjo. A ocupação das trabalhadoras
cada vez mais financiados pelos recursos domésticas – desprestigiada social,
estatais. econômica e juridicamente7 – é o
principal expoente desse fenômeno e,
No caso das mulheres pobres, o arranjo também, a pedra fundante de
central para lidar com o problema sustentação desse arranjo de cuidados.
caracteriza-se pelo que Hirata e Kergoat Logo, é nelas que os polos das
(2008) denominam “[...] acúmulo de desigualdades intragênero se encontram,
tarefas e a prática do ‘se virar’[...]”, haja vista serem elas que respondem,
especialmente concentrado nas famílias maciçamente, pelo atual arranjo dos
extensas (faceta 3 do Diamante do Bem- cuidados.
Estar), ou seja, nas próprias mulheres,
filhas, avós e vizinhas.

7 No caso brasileiro, a desproteção jurídica e


social das trabalhadoras domésticas tem
respaldo constitucional, já que a Constituição
6 Cabe chamar a atenção à diferenciação, Federal de 1988, em seu artigo 7º, parágrafo
propositalmente utilizada no texto, entre jardim único, restringe o acesso a um conjunto de
de infância e creches, cujas nomenclaturas direitos assegurados a todos os trabalhadores e
refletem os marcadores de classe. trabalhadoras no Brasil.
102
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
A divisão sexual dos cuidados: do welfare state ao neoliberalismo

Podemos concluir, portanto, que no


paradigma neoliberal as problemáticas Como assevera Martínez Franzoni
acerca da responsabilização das (2005), o cuidado condiciona o exercício
mulheres pela produção do bem-estar – da cidadania e, ainda que esta se
por meio dos trabalhos de cuidado nos apresente como universal, ela ainda não
domicílios e nas profissões a essa o é nem na sua concepção e nem no seu
atividade conectadas – não só não foram efetivo exercício. Por tais razões que,
assumidas pelo Estado como um quando a cidadania se reconstrói
problema político e social central, como incorporando classe e gênero, observam-
houve um agravamento das condições se aspectos que, de outra maneira,
em relação ao paradigma anterior, ficariam ocultos. É nesse sentido que
decorrente da diminuição da provisão concluímos que os regimes de bem-estar,
estatal, fruto da implementação da tanto no paradigma do welfare state
agenda de reformas neoliberais. quanto no paradigma neoliberal,
forjaram-se sobre estruturas de
Soma-se a esse fator a consolidação da desigualdades entre mulheres e homens.
participação das mulheres no mercado
de trabalho, o que projetou um déficit de Todavia, a conjuntura política atual,
cuidado no período, que, por sua vez, especialmente a latino-americana e a
complexificou os arranjos de produção brasileira, vem apresentando mudanças
do bem-estar, destacando-se as soluções importantes em relação ao paradigma
no âmbito privado, seja pela contratação neoliberal. Em todo caso, ainda que
dos serviços de trabalhadoras mantenha uma linha de continuidade em
domésticas, no caso das classes mais relação a diversos aspectos –
altas, seja pela familização e prática do se notadamente da política econômica –, há
virar, no caso das famílias mais pobres. reconfigurações importantes no que
Martínez Franzoni (2005) denomina o
Por fim, constata-se que a não resolução pós-consenso de Washington na região,
do problema dos cuidados, por meio da em que emerge a valoração positiva da
sua socialização, é determinante do atuação interventiva do Estado, os
padrão de inserção das mulheres no estímulos a investimentos públicos e a
mercado de trabalho. As mulheres destinação de recursos às políticas
pobres, por não gozarem das condições sociais. Independente de se tratar ou não
financeiras para delegar a execução dos da emergência de um novo paradigma, é
trabalhos para outras mulheres, tornam- inegável que se trata de uma janela de
se adaptáveis ao trabalho precário, oportunidade para a projeção de uma
parcial e informal, o que as colocam nova arquitetura do bem-estar, cujo êxito
como mais suscetíveis aos riscos de perpassa pela inserção da questão dos
empobrecimento. cuidados nessa agenda política.

4 Considerações finais: por uma agenda Apresentamos, ao longo desse estudo de


política de democratização do cuidado caráter conceitual, algumas das linhas

103
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
Mariana Mazzini MARCONDES

gerais do debate do cuidado e da sua deve, portanto, guiar-se pelo


relação com as políticas sociais, reconhecimento da importância do tema
buscando destacar as limitações da e pela superação das relações
compreensão do cuidado como um assimétricas de poder que historicamente
problema privado das famílias. Abordar caracterizam essas relações de
a problemática dos cuidados enquanto interdependência.
uma questão social e política é, portanto,
um dos requisitos para uma revolução A superação dessas relações de poder
na noção de democracia (TRONTO, pressupõe, contudo, a maior valorização
2007). A sua efetiva valorização de quem cuida, e não apenas da atenção
enquanto condição de sobrevivência de à pessoa que deve ser cuidada
toda a humanidade é outro requisito. (AGUIRRE, 2007). A preocupação com a
profissionalização da atividade de
Para que essa agenda seja bem-sucedida, cuidado é imperativa, incluindo proteção
é necessário superar a permanente social e remuneração compatível com o
vigência da concepção liberal de grau da importância das atividades
democracia, que vem sustentando a realizadas. Isso porque o reconhecimento
ficção de que os/as cidadãos/ãs são na esfera pública do trabalho realizado
autônomos e que estabelecem entre si tradicionalmente pelas mulheres na
apenas relações contratuais baseadas no esfera doméstica é fundamental para a
consentimento. Igualmente, é sua afirmação enquanto trabalho, bem
imprescindível avançar para além da como na integração de homens nessas
compreensão de que o cuidado, ocupações (HIRATA, 2009).
enquanto problema político, diz respeito
apenas a um grupo de vulneráveis ou É nesse sentido que se projeta o dever do
pessoas dependentes, que demandam Estado tanto na socialização dos
intervenções estatais focalizadas trabalhos de cuidado quanto na sua
(TRONTO, 2007). Na verdade, todas as valorização. Como observa Bandeira
pessoas são, ao mesmo tempo, (2010), as atividades de cuidado
independentes e dependentes, embora assumem maior reconhecimento social
em alguns períodos da vida prevaleça no momento em que se deslocam da
um aspecto sobre o outro. Em síntese, e à esfera doméstica, o que demanda
luz de Tronto (1997), não é possível políticas públicas. Destarte, se o que se
conceber o cuidado à Robinson Crusoé. pretende é transformar os laços de
socialiabilidade para a interdependência
Com efeito, o cuidado é sempre comunitária, e não mais familiar, é
relacional e compreende o imprescindível o envolvimento do
desenvolvimento de redes de Estado (MCINTOSH, 2007).
interdependência para atendimento das
necessidades de todos, não apenas os O problema político relacionado aos
vulneráveis (TRONTO, 1997). Um cuidados pressupõe uma agenda que
projeto de democratização dos cuidados aborde o tema na perspectiva

104
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
A divisão sexual dos cuidados: do welfare state ao neoliberalismo

microssocial – de repartição das Irma (Coord.). Família y políticas


responsabilidades familiares entre publicas em América Latina: uma
homens e mulheres – e na perspectiva história de desencuentros. Santiago de
macrossocial – divisão da provisão dos Chile: Cepal, 2007. p. 187-198.
cuidados entre famílias, Estado e
mercado (AGUIRRE, 2007). Essas ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do
questões devem, obrigatoriamente, trabalho: ensaio sobre a afirmação e a
perpassar os diversos aspectos de uma negação do trabalho. 2. ed., 10. reimpr.
agenda de políticas públicas, podendo-se São Paulo: Boitempo, 2009.
destacar algumas medidas de relevo: a
profissionalização do cuidado (como a BANDEIRA, Lourdes Maria.
equiparação dos direitos das Importância e motivações do Estado
trabalhadoras domésticas aos demais Brasileiro para pesquisas de uso do
trabalhadores celetistas), a ampliação de tempo no campo de gênero. Revista
redes de equipamentos sociais estatais Econômica, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p.
(como creches, asilos, restaurantes 47-63, jun. 2010.
comunitários etc.) e o debate público em
torno de medidas que redefinam os BARBA, Carlos. Régimen de bienestar y
papéis de gênero em relação aos reforma social en México. Santiago de
cuidados (como licenças-parentais). Chile: Cepal, jul. 2004. (Serie Políticas
Sociales, 92). Disponível em:
No contexto narrado, para que a <http://www.eclac.cl/publicaciones/xml/
cidadania exista em sua plenitude, uma 3/15523/sps92_lcl2168p.pdf>. Acesso em:
das questões a ser enfrentada é a 13 jul. 2011.
superação da divisão entre trabalho
remunerado e não remunerado BRUSCHINI, Cristina; LOMBARDI,
(PATERMAN, 2007), o que pressupõe a Maria Rosa. Trabalho, Educação e
afirmação do trabalho de reprodução Rendimento das mulheres no Brasil em
social como trabalho, de modo a anos recentes. In: HIRATA, Helena;
reagregar o mundo do trabalho cindido. SEGNINI, Liliana (Org.). Organização,
Para isso, a preocupação fundamental é Trabalho e Gênero. São Paulo: Senac,
dar visibilidade e prestígio ao tema do 2008. p. 43-87.
cuidado, enquanto problema público e
objeto de políticas públicas (AGUIRRE, CARLOTO, Cássia Maria; GOMES, Anne
2007). Grace. Geração de renda: enfoque nas
mulheres pobres e divisão sexual do
trabalho. Serviço Social e sociedade, São
5 Referências Paulo, n. 105, p. 131-145, jan./mar. 2011.
Disponível em:
AGUIRRE, Rosario. Los cuidados <http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n105/08.
familiares como problema público y pdf>. Acesso em: 10 jan. 2012.
objeto de políticas. In: ARRIAGAGA,

105
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
Mariana Mazzini MARCONDES

ESPING-ANDERSEN, Gosta. As três MARTÍNEZ FRANZONI, Juliana. Regí-


economias políticas do Welfare State. menes de bienestar en América Latina:
Lua Nova, São Paulo, n. 24, p. 85-116, consideraciones generales e itinerarios
1991. regionales. Revista Centroamericana de
ESPING-ANDERSEN, Gosta. Un nuevo Ciencias Sociales, Costa Rica, v. 2, n. 2,
examen comparativo de los distintos re- p. 41-77, dic. 2005. Disponível em:
gímenes del bienestar. In: ______. <http://www.flacso.or.cr/fileadmin/docu
Fundamentos sociales de las economias mentos/FLACSO/revista4.pdf>. Acesso
postindustriales. Barcelona: Ariel, 2000. em: 10 jan. 2012.
p. 101-127.
MCINTOSH, Mary. Feminism and Social
HIRATA, Helena. Globalização e divisão Policy. In: PIERSON, Christopher; CAS-
sexual do trabalho numa perspectiva TLES, Francis (Ed.). The welfare state
comparada. In: GUIMARÃES, Nadya reader. 2. ed. Cambridge: Polity Press,
Araújo et al. (Org). Trabalho flexível, 2007. p. 120-133.
empregos precários. São Paulo: Edusp,
2009. p. 145-167. PATERMAN, Carole. The patriarchal
welfare state. In: PIERSON, Christopher;
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. CASTLES, Francis (Ed.). The welfare
Novas Configurações da Divisão Sexual state reader. 2nd. Ed. Cambridge: Polity
do Trabalho. Cadernos de Pesquisa Press, 2007. p. 134-150.
Fundação Carlos Chagas, São Paulo, v.
37, n. 132, p. 595- 609, set./dez. 2007. PEREIRA-PEREIRA, Potyara A. Política
Disponível em: social: temas & questões. 2. ed. São
<http://www.scielo.br/pdf/cp/v37n132/a0 Paulo: Cortez, 2009a.
537132.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2012.
______. Discussões conceituais sobre a
HIRATA, Helena. KERGOAT, Danièle. política social como política pública e
Divisão sexual do trabalho profissional e direito de cidadania. In: BOSCHETTI,
doméstico: Brasil, França e Japão. In: Ivanete et al. (Org.). Política Social no
COSTA, Albertina de Oliveira et al. capitalismo: tendências contemporâneas.
Mercado de trabalho e gênero: 2. ed. São Paulo: Cortez, 2009b.
comparações internacionais. Rio de
Janeiro: FGV, 2008. p. 263-278. RICOLDI, Arlene Martinez. A noção de
Articulação entre família e trabalho e
KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do políticas de apoio. Mercado de trabalho,
trabalho e relações sociais de sexo. In: Brasília, n. 42, fev. 2010. Disponível em:
HIRATA. Helena et al. (Orgs.). <http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/bole
Dicionário Crítico do Feminismo. São tim_mercado_de_trabalho/mt42/05_nota
Paulo: Unesp, 2009. _tecnica03_nocao.pdf>. Acesso em: 10
jan. 2012.

106
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012
A divisão sexual dos cuidados: do welfare state ao neoliberalismo

SANTOS, Tânia Steren dos. Gênero e


políticas sociais: novos relacionamentos
sobre a estrutura familiar. SER Social,
Brasília: v. 10, n. 22, p. 97-128, jan./jun.
2008.

SORJ, Bila; FONTES, Adriana;


MACHADO, Danieli Carusi. Políticas e
práticas de conciliação entre família e
trabalho no Brasil. Cadernos de
Pesquisa Fundação Carlos Chagas, São
Paulo, v. 37, n. 132, p. 573-594, set./dez.
2007. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/cp/v37n132/a0
437132.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2012.

TRONTO, Joan C. Mulheres e cuidados:


o que as feministas podem aprender
sobre a moralidade a partir disso? In:
JAGGAR, Alison M.; BORDO, Susan R.
Gênero, Corpo, Conhecimento. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. p. 186-
204.

______. Assistência democrática e


democracias assistenciais. Sociedade &
Estado [online], v. 22, n. 2, p. 285-308,
2007. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/03.p
df>. Acesso em: 10 jan. 2012.

YANNOULAS, Silvia Cristina. Gênero e


Mercado de Trabalho: situando a
problemática. In: YANNOULAS, Silvia
Cristina (Coord.) A convidada de pedra:
mulheres e políticas públicas de trabalho
e renda: entre a descentralização e a
integração supracional: um olhar a partir
do Brasil 1988-2002. Brasília: Flacso,
2004. p. 48-62.

107
Argumentum, Vitória (ES), v. 4, n.1, p. 91-106, jan./jun. 2012

Você também pode gostar