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Abstract: The aim of this paper is the theoretical analysis of care in view of the sexual
division of labor, investigating how the political agenda of welfare provision has in-
corporated this issue. Through literature review, the article seeks to articulate the
process of wage-earning women with women's responsibility for social reproduction
and, more specifically, by the care, considering the traditionally role assigned to fam-
ilies. Our guideline is the comparison of priority arrangements for the provision of
welfare in two contexts – the welfare state and the neoliberalism – and the relation of
each model with the sexual division of care. Lastly, we will discuss the main points
to a political agenda formulation in order to democratize the care and to promote
gender equality, concluding that the care issue democratization requires a combina-
tion of changes into the families responsibilities between women and men and a
transformation of the pattern of shared responsibility between families, State and
market.
Keywords: Sexual division of labor. Care. Welfare provision.
1 Graduada em direito pela Universidade de São Paulo é mestranda em Política Social pela
Universidade de Brasília e integrante do grupo de pesquisa Trabalho, Educação e Discriminação
(TEDIs – UnB). Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do
Planejamento, exerce suas funções na Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República. Email: <mariana.mazzini.m@gmail.com>.
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A
história das mulheres no sobrevivência da espécie humana, essa
mundo do trabalho é uma problemática esteve e continua, em
narrativa de negação, grande medida, encerrada atrás das
desagregação e contradição. portas da esfera intramuros dos
Tradicionalmente responsáveis pela domicílios.
reprodução da vida social, o trabalho por
elas exercido foi sempre compreendido O que conecta essas duas narrativas?
como um não trabalho, em decorrência
da separação física, típica do modo de A divisão sexual do trabalho, que,
produção capitalista, entre espaço segundo Kergoat (2009), é forma
doméstico e produção para o mercado, derivada de divisão social do trabalho
sendo o cerne do que é considerado decorrente das relações de gênero, em
trabalho correspondente apenas ao que há a separação e a hierarquização
trabalho assalariado (MARTÍNEZ valorativa das esferas produtivas e
FRANZONI, 2005). reprodutivas, sendo a primeira, mais
valorizada, destinada prioritariamente
Apesar das jornadas intensas e extensas aos homens, e a segunda, menos
de dedicação à produção permanente do valorizada, compreendida como
bem-estar social no âmbito doméstico, as conectada à natureza das mulheres.
mulheres foram qualificadas como
improdutivas até consolidarem o A divisão sexual do trabalho demonstra-
ingresso no mercado de trabalho. Essa se uma categoria útil por conferir
trajetória de assalariamento feminino é, unidade de sentido ao mundo do
contudo, uma história de contradições, já trabalho, além de afirmar como trabalho
que o mesmo processo que gera a o que é compreendido usualmente como
emancipação parcial das mulheres não trabalho. A ressignificação do
converte-se em intensificação de mundo do trabalho por essa ótica
desigualdades, incorporando o trabalho permite compreender as esferas
feminino de modo desigual e produtivas e reprodutivas não como
diferenciado (ANTUNES, 2009). dicotômicas, mas como articuladas para
a manutenção do modelo econômico
Em paralelo a essa narrativa, existe outra capitalista.
que com ela converge ou, ainda,
condiciona-a. Os trabalhos que envolvem Desta forma, a reprodução das condições
o cuidado, que deveriam envolver toda a de vida é compreendida como fator
sociedade, o Estado, as instituições elementar para a manutenção da força de
privadas e as próprias famílias, são trabalho, que, por sua vez, é
tradicionalmente atribuídos às mulheres, imprescindível para gerar valor no
tanto na divisão sexual do trabalho no processo produtivo (CARLOTO;
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Com a crise do pleno emprego nos países meio das privatizações dos serviços e
desenvolvidos e com o advento do bens públicos e das reformas do sistema
neoliberalismo, milhares estariam tributário e de seguridade social, o que
excluídos, questiona Paterman (2007). acarretaria forte impacto sobre as
Deveria, portanto, ser o pleno emprego políticas sociais (BARBA, 2004).
compreendido como uma prerrogativa
dos homens capitalistas, prossegue a A reorientação das políticas sociais no
autora, ou a democracia, nesse contexto paradigma neoliberal é sintetizada na
de crise, deveria ter seus postulados seguinte máxima, de Martínez Franzoni
repensados? Essa questão central nos (2005): políticas públicas amplas
leva à análise do paradigma neoliberal. apresentam retrocesso e as políticas
focalizadas, expansão. Os
3 O paradigma neoliberal e os cuidados: desdobramentos diretos dessa
complexificação de um cenário de reorientação são a redução de custos
desigualdades de gênero sociais e a focalização na extrema
pobreza e na vulnerabilidade social5.
Nas décadas de 1980 e 1990, com a crise Desta forma, as perspectivas de
do paradigma do welfare state, desmercantilização e desfamilização do
configurava-se um novo cenário, paradigma do welfare state foram
alimentado por processos heterogêneos substituídas pela valorização da
de ajustes e estabilização econômica, igualdade de oportunidades e
bem como por novas perspectivas de investimento em capital humano para a
desenvolvimento social. Impulsionadas incorporação no mercado de trabalho
por instituições financeiras e (MARTÍNEZ FRANZONI, 2005).
internacionais e governos nacionais, a
política social assumia, nesse contexto, Em paralelo à ascensão da agenda
cada vez mais, um corte residual política neoliberal, ocorre a consolidação
(BARBA, 2004). da participação das mulheres no
mercado de trabalho. É de se notar,
Na América Latina, essa agenda de contudo, que os movimentos de
reformas, sintetizada pelo Consenso de segmentação horizontal e vertical do
Washington, calcava-se na consagração mercado de trabalho, iniciados no
do capitalismo de livre-mercado, que, paradigma do welfare state,
por sua vez, estruturava-se no seguinte intensificaram-se ainda mais.
tripé: desregulamentação (tanto das
relações de trabalho quanto do capital Para além das desigualdades entre
financeiro); adoção de políticas mulheres e homens, entretanto, o que o
macroeconômicas mínimas e paradigma neoliberal também intensifica
monetaristas; e abertura comercial. são as assimetrias entre as próprias
Concomitantemente, a reforma
estrutural do Estado combinava-se às 5 O que levaria à contramão do que, no caso
demais medidas, concretizando-se por brasileiro, a Constituição Federal de 1988
preconizava.
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mulheres, vez que o trabalho feminino trabalho invisível, agora elas não mais
passou a ser caracterizado pela poderiam executá-los em sua totalidade.
bipolarização, ou seja, as mulheres Tampouco o Estado assumiria a
aparecem representadas nos polos corresponsabilização pelos cuidados, já
opostos das relações de trabalho. que, como mencionamos, essas políticas
Destarte, se, por um lado, a presença (tais como creches, asilos, restaurantes
feminina no mercado de trabalho comunitários etc.) foram especialmente
alcançou os polos de maior valorização afetadas pelos programas de ajustes
social e econômica – cargos de direção e estruturais, o que implicou a diminuição
carreiras de prestígio, como as de dos gastos públicos na área social
médicos/as e advogados/as –, por outro, (RICOLDI, 2010). Por fim, o mercado só
as mulheres seguem representando a atende a quem possui os meios para
força de trabalho majoritária do polo custear os serviços, o que é insuficiente
oposto, caracterizado por trabalhos para fazer frente à demanda, sobretudo
precarizados e, especialmente, em cenários de recessão e desemprego.
concentrando-se nas ocupações ditas O paradigma neoliberal significou,
femininas – com baixa proteção social e consequentemente, um nível ainda mais
piores remunerações – como é o caso das baixo do que o do welfare state, no que
trabalhadoras domésticas (HIRATA; tange à incorporação da preocupação
KERGOAT, 2007). com os cuidados enquanto tema central
para a agenda política, em uma
A combinação da redução das perspectiva de igualdade de gênero.
atribuições do Estado, em relação à Ademais, a revisão do padrão de
provisão do bem-estar social, com a interação de Estado, família e mercado
inserção das mulheres no mercado na provisão de bem-estar complexificou
geraria um déficit de cuidado (AGUIRRE, sobremaneira os arranjos de cuidados,
2007). Se no âmbito das famílias as conforme sintetizado na figura abaixo,
mulheres vinham respondendo pela reproduzida por Aguirre (2007).
reprodução social por meio de um
Figura 1
O Diamante do Bem-Estar – Aguirre (2007)
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trabalho e a reprodução social. Além Essa sobrecarga nas mulheres que estão
disso, com alguma frequência, outras no beco sem saída do arranjo de cuidados
pessoas da família assumem, no todo ou vigente é determinante para a
em parte, a responsabilidade pelos diferenciação de acesso e permanências
cuidados. Cabe citar, nesse sentido, o no mercado de trabalho, tornando-as
papel que as avós, mesmo nas famílias adaptadas às diversas formas de
mais abastadas, assumem no cuidado precarização, tais como flexibilização,
das crianças. informalização e jornadas parciais
(CARLOTO; GOMES, 2011). Isso porque
No caso das mulheres pobres, também a flexibilização permite a essas mulheres
há um mix de diferentes soluções, conciliarem a jornada de trabalho dentro e
embora a delegação apresente um peso fora do âmbito doméstico, e, portanto,
menos expressivo. Uma delas é a realizar um trabalho tão central para a
utilização dos serviços estatais de sobrevivência humana quanto
creches6 (faceta 1 do Diamante do Bem- negligenciado pela sociedade: o trabalho
Estar), muitas vezes focalizados nas de cuidado.
mulheres pobres. Como a cobertura das
creches é insuficiente – seja no número É a precarização das condições de
de vagas, no período de funcionamento trabalho dessas mulheres que concorre
ou na distribuição geográfica –, uma para a efetividade da solução da
segunda opção são os serviços delegação, haja vista o baixo custo
voluntários, tais como ONGs e grupos de econômico da exploração da mão de obra
autoajuda (faceta 2 do Diamante do Bem- barata ser o fator que torna viável esse
Estar), os quais, no caso brasileiro, são arranjo. A ocupação das trabalhadoras
cada vez mais financiados pelos recursos domésticas – desprestigiada social,
estatais. econômica e juridicamente7 – é o
principal expoente desse fenômeno e,
No caso das mulheres pobres, o arranjo também, a pedra fundante de
central para lidar com o problema sustentação desse arranjo de cuidados.
caracteriza-se pelo que Hirata e Kergoat Logo, é nelas que os polos das
(2008) denominam “[...] acúmulo de desigualdades intragênero se encontram,
tarefas e a prática do ‘se virar’[...]”, haja vista serem elas que respondem,
especialmente concentrado nas famílias maciçamente, pelo atual arranjo dos
extensas (faceta 3 do Diamante do Bem- cuidados.
Estar), ou seja, nas próprias mulheres,
filhas, avós e vizinhas.
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