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2016 / 2019
Secretário
Dênis José Nascimento
Membros
Alberto Carlos Moreno Zaconeta
Alessandra Lourenço Caputo Magalhães
Ana Cristina Pinheiro Araújo
Belmiro Gonçalves Pereira
Helaine Maria Besteti Pires Mayer Milanez
Henrique Zacharias Borges Filho
José Meirelles Filho
Marcelo Luis Nomura
Mario Julio Franco
Mylene Martins Lavado
Octávio de Oliveira Santos Filho
Simone Angélica Leite de Carvalho Silva
Lúpus eritematoso sistêmico e gravidez
Descritores
Lúpus eritematoso sistêmico; Gravidez; Cuidado pré-natal; Protocolo de acompanhamento
Como citar?
Surita FG, Pastore DE. Lúpus eritematoso sistêmico e gravidez. São Paulo: Federação Brasileira das
Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO); 2018. (Protocolo FEBRASGO - Obstetrícia, no. 90/
Comissão Nacional Especializada em Gestação de Alto Risco).
Introdução
O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é um transtorno do tecido
conjuntivo, de etiologia autoimune e acometimento multissis-
têmico. Apresenta prevalência de 40 a 200 casos por 100.000
habitantes, sendo mais comum entre descendentes africanos e
asiáticos. No Brasil, sua prevalência é em torno de 8,7 por 100
mil habitantes.(1,2) Tem predileção pelo sexo feminino, afetando
especialmente mulheres em idade reprodutiva, com proporção de
nove mulheres para cada homem. Sua ocorrência na gestação é
particularmente importante ao impactar direta ou indiretamen-
te a saúde materna e perinatal.(3) Entre as gestantes, a incidência
de LES varia entre 1:660 e 1:2.952. Com os recentes avanços no
diagnóstico e no tratamento das complicações obstétricas e na
assistência neonatal, as chances de bons resultados perinatais
*Este protocolo foi validado pelos membros da Comissão Nacional Especializada em Gestação de Alto Risco
e referendado pela Diretoria Executiva como Documento Oficial da FEBRASGO. Protocolo FEBRASGO de
Obstetrícia nº 90, acesse: https://www.febrasgo.org.br/protocolos
Diagnóstico
O LES apresenta vasta gama de apresentações clínicas diversas.
As principais incluem manifestações mucocutâneas, musculoes-
queléticas, hematológicas, cardiopulmonares, renais e do siste-
ma nervoso central. Encontram-se entre as formas mais graves
a nefrite lúpica e o lúpus neuropsiquiátrico, comumente asso-
ciados à redução significativa na expectativa de vida.(2) A nefri-
te lúpica é uma das principais causas de morte, juntamente com
as condições infecciosas ligadas à doença e ao seu tratamento.(8)
Entre os sintomas, nota-se perda de peso, anemia, artralgia e ar-
trite. O envolvimento do sistema osteoarticular é a manifesta-
ção clínica mais frequente.(2) A síndrome antifosfolipídica pode
ocorrer em associação com o LES e é caracterizada por trombo-
ses arteriais e venosas, bem como presença de perdas gestacio-
nais recorrentes.(9) O Colégio Americano de Reumatologia (ACR)
propôs critérios para o diagnóstico de LES (Quadro 1)(10) e, para
ser classificado como tal, pelo menos quatro critérios devem
estar presentes (em série ou simultaneamente).(2,9,11) Pacientes
com menos de quatro critérios e com forte suspeita clínica de-
vem ser acompanhados com atenção, recebendo o diagnóstico
de “lúpus provável” se presentes três critérios, ou “lúpus possí-
vel” se presentes apenas dois dos critérios.(5)
Continuação.
Critério Descrição
4. Úlceras orais/nasais Úlceras orais ou nasofaríngeas, usualmente indolores, observadas
pelo médico.
5. Artrite Não erosiva envolvendo duas ou mais articulações periféricas,
caracterizadas por dor e edema ou derrame articular.
6. Serosite Pleurite (caracterizada por história convincente de dor pleurítica,
atrito auscultado pelo médico ou evidência de derrame pleural)
ou pericardite (documentado por eletrocardiograma, atrito ou
evidência de derrame pericárdico).
7. Comprometimento renal Proteinúria persistente (> 0,5 g/dia ou 3+) ou cilindrúria anormal.
8. Alterações neurológicas Convulsão (na ausência de outra causa) ou psicose (na ausência de
outra causa).
9. Alterações hematológicas Anemia hemolítica ou leucopenia (menor que 4.000/mm3 em duas
ou mais ocasiões) ou linfopenia (menor que 1.500/mm3 em duas
ou mais ocasiões) ou plaquetopenia (menor que 100.000/mm3 na
ausência de outra causa).
10. Alterações imunológicas Anticorpo anti-DNA nativo ou anti-Sm ou presença de anticorpo
antifosfolípide com base em: a) níveis anormais de IgG ou IgM
anticardiolipina; b) teste positivo para anticoagulante lúpico; ou c)
teste falso-positivo para sífilis, por, no mínimo, seis meses.
11. Anticorpos antinucleares Título anormal de anticorpo antinuclear por imunofluorescência
indireta ou método equivalente, em qualquer época, e na ausência
de drogas conhecidas por estarem associadas à síndrome do lúpus
induzido por drogas.
Fonte: Guidelines for referral and management of systemic lupus erythematosus in adults. American
College of Rheumatology Ad Hoc Committee on Systemic Lupus Erythematosus Guidelines. Arthritis Rheum.
1999 Sep;42(9):1785-96. (10)
Continuação.
Critérios Definição
Leucopenia ou linfopenia Leucopenia (<4000/mm3 pelo menos uma vez) (na ausência de outras
causas conhecidas, como síndrome de Felty, drogas e hipertensão portal),
OU
Linfopenia (<1000/mm3 pelo menos uma vez) (na ausência de outras
causas conhecidas, como uso de glicocorticoides, drogas e infecção).
Trombocitopenia Trombocitopenia (<100.000/mm3) pelo menos uma vez na ausência de
outras causas conhecidas, como drogas, hipertensão portal e púrpura
trombocitopênica trombótica.
Critérios imunológicos
FAN FAN acima do limite de referência do laboratório.
Anti-dsDNA Nível de anticorpos anti-dsDNA acima do intervalo de referência do
laboratório (ou acima do dobro limite superior se testado por ELISA).
Anti-Sm Presença de anticorpos contra o antígeno nuclear Sm.
Antifosfolípides Anticorpos antifosfolipídes positivos, conforme determinado por qualquer
um dos seguintes: Resultado positivo do teste para anticoagulante
lúpico; resultado de teste falso-positivo para VDRL; níveis de anticorpo
anticardiolipina de título médio ou alto (IgA, IgG ou IgM); ou resultado
positivo do teste para antibeta 2-glicoproteína I (IgA, IgG ou IgM).
Complemento baixo Baixo C3; baixo C4; OU baixo CH50.
Teste de Coombs direto Teste de Coombs direto na ausência de anemia hemolítica.
Fonte: Petri M, Orbai AM, Alarcon GS, Gordon C, Merrill JT, Fortin PR, et al. Derivation and validation of the
Systemic Lupus International Collaborating Clinics classification criteria for systemic lupus erythematosus.
Arthritis Rheum. 2012;64(8):2677-86.(12)
Orientação pré-concepcional
O manejo mais adequado da gravidez que corre em paralelo ao curso
do LES deve contar com a integração de diferentes especialidades mé-
dicas: obstetras, reumatologistas, hematologistas e nefrologistas.(13) O
aconselhamento pré-concepcional é essencial para avaliar os riscos
de complicações fetais e maternas, e condições específicas devem ser
avaliadas, particularmente, os antecedentes de complicações em ges-
tações anteriores, a presença de danos orgânicos severos e irreversí-
veis, a atividade do lúpus (recente ou atual), a presença de anticorpos
ou síndrome antifosfolípide, a positividade para anticorpos anti-Ro/
anti-La, o tratamento medicamentoso em curso, a presença de outras
condições crônicas (tais como hipertensão, diabetes, etc.) e hábitos
Protocolos Febrasgo | Nº90 | 2018
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Lúpus eritematoso sistêmico e gravidez
Acompanhamento obstétrico
O cuidado pré-natal da gestante com LES demanda estreita cola-
boração entre o obstetra e algumas especialidades clínicas (reu-
matologista, nefrologista ou hematologista). O acompanhamento
deve-se dar em um centro de referência de alto risco, com avalia-
ções periódicas pelo clínico a cada 4 a 6 semanas. A visita obstétri-
ca deve ser mensal até a 20ª semana, quinzenal até a 28ª e, após,
semanal até o parto.(14) Além da avaliação laboratorial de rotina do
pré-natal, devem ser verificados hemograma completo, função re-
nal e hepática e quantificação de proteína urinária em coleta de 24
horas.(18) Outros testes devem incluir dosagens do complemento
(C3, C4, CH5O), anticorpos anticardiolipina, anti-dsDNA, antico-
agulante lúpico e anti-SSA e SSB (Ro e La).(19) O risco de ocorrência
de um flare (surto de ativação) durante a gravidez parece estar re-
lacionado à ocorrência de atividade da doença 6 a 12 meses antes
da concepção.(18,20-23) Observa-se ainda risco maior na vigência de
nefrite lúpica no período periconcepcional, mesmo em mulheres
em remissão.(18,20,24,25)Todas as gestantes com suspeita clínica de
doença ativa ou mal controlada devem ser hospitalizadas devido
Continuação.
Modificado
Escore Descrição Considerações
para a gestação
8 Vasculite Sim Considerar eritema palmar.
4 Artrite Sim Considerar derrames articulares.
4 Miosite Não
4 Cilindros urinários Não
4 Hematúria Sim Excluir cistite e hemácias na vagina
decorrentes de problemas placentários.
4 Proteinúria Sim Excluir eclâmpsia.
4 Piúria Sim Excluir infecção.
2 Novo rash Sim Considerar cloasma.
2 Alopecia Sim Considerar alopecia pós-parto fisiológica.
2 Ulcerações nasais Não
2 Pleurisia Sim Hiperventilação pode ser secundária
aos elevados níveis de progesterona;
dispneia secundária ao aumento do
útero.
2 Pericardite Não
2 Hipocomplementemia Sim Complementos normalmente aumentam
durante a gravidez.
2 Aumento do anti-DNA Não
1 Trombocitopenia Sim Excluir pré-eclâmpsia, síndrome HELLP e
trombocitopenia incidental da gravidez.
1 Leucopenia Sim Considerar o aumento normal da
contagem de leucócitos durante a
gravidez.
1 Febre Não
Fonte: Buyon JP. Updates on lupus and pregnancy. Bull NYU Hosp Jt Dis. 2009;67(3):271-5. Review.(27)
Especificidades do tratamento
medicamentoso durante a gravidez
Os riscos e os benefícios do tratamento de longo prazo para o
LES devem ser cuidadosamente avaliados pela equipe multidis-
ciplinar, não se esquecendo de considerar que a doença em ati-
Protocolos Febrasgo | Nº90 | 2018
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Lúpus eritematoso sistêmico e gravidez
Continuação.
Ciclofosfamida • Não deve ser prescrita durante o primeiro trimestre por apresentar
reconhecida associação com defeitos cromossômicos. Categoria D pela
FDA.(32,34)
• Durante o segundo ou terceiro trimestres, pode ser uma opção, mas
reservada somente aos surtos severos com risco de vida materno que não
cedem à pulsoterapia com corticosteroides.(32,34)
• Uso durante o segundo e terceiro trimestres pode estar associado à
frequência maior de abortos espontâneos e parto prematuro.(32,34)
Leflunomida • Associa-se a efeitos teratogênicos e fetotóxicos em animais.(32)
• Formalmente contraindicada em mulheres grávidas. Categoria X pela
FDA.(32)
• Uso só pode ser iniciado após exclusão de gravidez.(32)
Metotrexate • Medicamento teratogênico, classificado pela FDA como X.(32)
• Uso no primeiro trimestre associado a restrição de crescimento e más-
formações (ausência ou hipoplasia dos ossos frontais, craniossinostose,
fontanela grande e hipertelorismo ocular).(32)
Rituximab • Anticorpo monoclonal com passagem transplacentária muito baixa
durante o primeiro trimestre, com alguns estudos relatando gestações
seguras nos casos de exposição. Categoria B pela FDA.(32,34)
• No segundo ou terceiro trimestres, pode atravessar a placenta e induzir
linfopenia neonatal grave.(32,34)
• Para crianças nascidas de mães que receberam essa medicação, as vacinas
de agentes vivos devem ser evitadas durante os primeiros 6 meses de
vida.(32)
Assistência ao parto
Mulheres com LES possuem maior risco de parto prematuro, que
pode ocorrer de forma espontânea ou devido a complicações, de-
mandando o parto antecipado.(18) Para interrupções entre 24 e 34
semanas, recomenda-se aceleração da maturação pulmonar fetal
com duas aplicações intramusculares de esteroides (12 mg de beta-
metasona), independentemente de administração prévia de este-
roides orais (pois estes não ultrapassam a barreira placentária).(18)
Devido aos seus benefícios neuroprotetivos para o feto, o sulfato
de magnésio deve ser considerado quando a idade gestacional é in-
ferior a 32 semanas.(18) A via de parto preferencial deve ser vaginal,
recomendando-se a cesariana apenas para indicações obstétricas
em vista de seus fatores de risco extras para tromboembolismo ve-
noso (TEV), perda de sangue e infecção, bem como repercussões
para futuras gestações.(18) Nos casos de uso de corticosteroides em
dose imunossupressora (superior a 1 mg/kg), antibioticoprofilaxia
no trabalho de parto é recomendada devido aos riscos de infecção
e sepse.(17,32) O ajuste da medicação de uso materno durante o tra-
balho de parto pode ser necessário; opta-se por hidrocortisona en-
dovenosa se houver uso prolongado de esteroides orais a fim de se
superar o estresse fisiológico do trabalho de parto. A HBPM profi-
lática deve ser descontinuada no início do trabalho espontâneo e
na noite anterior ao trabalho de parto induzido, ou cesariana ele-
tiva. A anestesia regional (epidural ou espinhal) pode ser realizada
12 horas após a última dose de HBPM.(18)
Cuidado puerperal
O tratamento para LES ativo no período pós-parto é semelhante ao
de mulheres não grávidas. No entanto ressalta-se que vários medi-
Recomendações finais
1. Adiar a concepção até doença inativa por pelo menos seis meses.
2. Integração de especialistas e manejo em centro de referência
de alto risco.
3. Avaliações basais de função renal e hepática, proteinúria total
em 24 horas, complemento e anticorpos (anticardiolipina, an-
ti-DNA, anticoagulante lúpico e anti-Ro e La).
4. Avaliações mensais da atividade da doença (especial atenção à
função renal).
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Lúpus eritematoso sistêmico e gravidez
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