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HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

Unidade II
De agora em diante, desenvolvendo a temática das independências, vamos passar pelos processos
de construção de mitos nacionais em torno das figuras tidas como “pais da pátria”: os Libertadores da
América. Nossa abordagem está centrada na problematização da América de origem espanhola. No
entanto, iniciamos nossa discussão com o questionamento das noções tradicionais de que os Estados
Nacionais são herdeiros diretos do universo colonial. Apresentamos, para isso, discussões historiográficas
recentes sobre as noções de Estado e nação.

Os processos em que vamos nos concentrar são referentes a Bolívar, San Martín e O’Higgins; então
abordaremos o problema político da construção dos mitos nacionais em torno dos líderes. As disputas
entre centralização e descentralização, entre formas de organização dos Estados e a presença dos
caudilhos também nos são particularmente relevantes.

5 A AMÉRICA EM TEMPOS DE INDEPENDÊNCIAS E A QUESTÃO DOS


NACIONALISMOS

Considerando o quadro geral que envolve as mais diversas regiões, os Estados Unidos, devido à
condição de detentores da primeira e exemplar revolução, foram transformados em paradigma
para diversas outras independências ou mesmo movimentos de rebeldia no Brasil, que assumiram o
republicanismo como sua bandeira e ideologia.

Além do caso dos Estados Unidos, a Independência do Brasil, que nos é particularmente cara, deve
ser lembrada no processo de ruptura dos laços que uniam as Américas ao Velho Continente.

Movimento quase singular, a constituição de uma monarquia no Brasil e, o que causava ainda
mais estranhamento em países vizinhos republicanos, o fato de ser chefiada pelo herdeiro da Coroa
Portuguesa fazia o Brasil ainda permanecer muito tempo, no decorrer do século XIX e mesmo nos
princípios do século XX, buscando se relacionar com outras regiões, como Europa e Estados Unidos, sem
privilegiar os vizinhos latinos.

No caso do restante da América Latina – espanhola e francesa – as independências geralmente se


desenvolveram em movimentos complicados, longos, conflituosos e repletos de episódios de guerras,
massacres e rebeliões, constituindo elementos fundamentais na construção do imaginário social e
político dessas regiões. A ruptura com as metrópoles – Espanha e França, no caso – não assegurava uma
construção de nações pacificadas internamente e vivendo tranquilamente suas histórias nacionais. Os
anos que se seguiram às independências são ainda repletos de conflitos, disputas, guerras civis e ações
dentro dos Estados que chegam mesmo a se fragmentar ainda mais. Essas disputas que perduraram ao
longo do século XIX são parte de nossas discussões nesta unidade.

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A América Espanhola, em linhas mais gerais, mesmo conseguindo romper com sua subordinação,
ainda passou por sérias instabilidades no decorrer do século XIX. Podemos considerar como muito fortes
as heranças coloniais para as sociedades que começavam a se desenvolver por todo o continente. Vale
lembrar que, no caso do Brasil, por exemplo, a produção agrária nos tempos da colônia só deixou de
estar em primeiro lugar no século XX e também que o peso que a escravidão representou e representa
para a sociedade brasileira é de imensa importância.

No caso da América Espanhola, as diferenças sociais existentes desde o Período Colonial não desapareceram
da noite para o dia. As elites locais criollas, que se consideravam brancas e legítimas detentoras dos poderes
políticos, uma vez que teriam sido o grupo social que conduziu o processo de ruptura política, buscaram
assegurar a manutenção de sua hegemonia política por meio dos mais diversos mecanismos políticos e
sociais. Emergem daí dois aspectos extremamente importantes para que possamos compreender a América
Espanhola no século XIX: o caudilhismo e as disputas políticas entre os poderes locais e os Estados que
buscavam se tornar nacionais. Os reflexos dessas disputas foram os constantes choques que muitas vezes
caminharam para guerras entre os partidários de sociedades mais liberais ou mais conservadoras, assumindo
aqui os sentidos adotados no século XIX, ou seja, de sociedades mais centralizadas ou descentralizadas.

Em seu artigo sobre a independência e nacionalismos em Nova Granada, Colômbia, Hans‑Joachim


Köning (PAMPLONA, 2009, p. 21) ressaltou um aspecto do século XIX que para nós é fundamental nesse
momento das discussões que apresentamos, a saber, que geralmente as pesquisas sobre nacionalismo
são a respeito dos europeus, considerando a formação dos Estados‑nações, a modernização da
Revolução Industrial e a Revolução Francesa. No entanto, de acordo com suas colocações, muito
acertadas, por sinal,

[...] a América Latina é muito importante para a análise do nacionalismo,


porque as Américas fizeram os primeiros esforços para estabelecer nações,
ou seja, Estados‑nações, em face da queda dos impérios europeus. Esses
Estados‑nações têm uma longa história no processo de nation building, de
“forjar a pátria” e de “forjar a nação”, isto é, de modelar cidadãos patrióticos,
obedientes e leais ao Estado (PAMPLONA, 2009, p. 21).

Podemos considerar que muitos dos debates são do momento das independências no qual, no
contexto de enfrentamentos, de guerras abertas e de disputas políticas, muitos e muitos projetos foram
apresentados e muitos mais, ao que nos parece, ficaram pelo caminho. Pamplona (2009) enfatiza um
ponto absolutamente fundamental para nossas observações quando fala do nacionalismo:

[...] estudos mais recentes, a defini‑lo não tanto pelo seu conteúdo, mas
pelo seu caráter funcional‑instrucional [Hobsbawm]. De acordo com
estas pesquisas, o nacionalismo pode ser definido como um instrumento
– a maioria das vezes manipulado pelas elites políticas – para motivar as
atividades e a solidariedade política. Serve para mobilizar as parcelas da
sociedade identificadas como a “nação” ou a coletividade concebida como
“nação” contra opositores internos e externos ou contra qualquer ameaça
(PAMPLONA, 2009, p. 23).
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Note‑se que Estado e nação, no século XIX, passaram a ser comumente grafados juntos, como
Estado‑nação, e isso não é algo de menor importância. A operação não é um descuido, e sim um esforço
de associar sentimentos e lealdades ao Estado e à nação como uma entidade única. Os estudos de
Benedict Anderson sobre o tema (Comunidades Imaginadas) são fundamentais, pois enfatizam que o que
existe, na realidade, são comunidades imaginadas, produtos de ordens sociais pensadas e não naturais,
diferentemente do que a ideia de nação muitas vezes nos faz acreditar. Os debates historiográficos
contemporâneos levam em consideração as diferentes possibilidades do sentido de nação – ideologia,
doutrina, sentimentos –, vale dizer, não existe uma definição unívoca ou mesmo majoritária, o que nos
leva a um problema teórico bastante importante: quem usa a ideia de nação e para quê? No limite, está
errado dizer que nação é um conceito em razão de: 1) uma polissemia; 2) dependendo do momento
histórico (mais ou menos crítico), a palavra pode ser usada para congregar alguns seres humanos ou
mesmo para destruir milhões e milhões deles (ANDERSON, 1989; 2012).

Abordaremos diversos pontos sobre a construção dos nacionalismos, mas, em se tratando de América,
quer seja Latina ou mesmo Anglo‑saxônica, uma pergunta se coloca desde o início de nosso trabalho
e vai nos conduzir, no século XIX: quem fazia parte dessa ideia de nação e quem era excluído? Dito de
outra forma, quem pertencia e quem não pertencia à nação?

A construção dos mitos nacionais projeta figuras políticas e sociais que aparentemente estão acima
e distantes de nossas vidas cotidianas atuais. As figuras heroicas são quase descarnadas e viram nomes
decorados por muitos milhões de estudantes e que, após algum tempo, não têm grande significado
além do nome que todos devem saber. Monumentos são erguidos, alguns, inclusive, possivelmente
falsificados, como nos indica Gabriel García Márquez em seu discurso por ocasião do recebimento do
Prêmio Nobel de Literatura em 1982 (MÁRQUEZ, 2009, p. 7-13).

As populações indígenas existentes na América Espanhola seriam incorporadas como parte da nação?
Em que termos? E os setores mais populares e mesmo pobres das Treze Colônias Britânicas da América do
Norte, teriam eles suas demandas atendidas e seriam contemplados em suas preocupações de construção
da exemplar república fundada na região? No Caribe, quem pertenceria à nação? A imensa maioria da
população negra de origem escrava? Como seria ela incorporada aos projetos políticos? Mesmo entre as
elites brancas, quem era parte da nação? Quais critérios utilizar? Nascimento? Identidade política?

E o caso do Brasil, então? A população branca e pobre era incorporada? Como ficava isso no discurso
das elites em meio a tantas revoltas de origem popular? O problema da escravidão, vale lembrar,
atravessou todo o império, e sua solução em 1888 foi considerada por muitos demasiado tardia.

Para nos dar a dimensão da importância da região platina nas convulsões que assolaram a América
do Sul, por exemplo, o historiador João Paulo Garrido Pimenta (2002) faz uma observação que deve ser
estendida em uso, pois não está discutindo apenas o século XIX, mas também a própria natureza do uso
das ideias de Estado e nação:

Mesmo após consolidado o Estado nacional brasileiro, aquisições territoriais


– portanto, perdas dos vizinhos – se observam. Magnoli, aliás, bem
demonstrou que a extensão de limites brasileiros definidos nos períodos do
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Império e da República foi muito maior do que os acertados pelas Coroas


ibéricas. Durante o Período Colonial, 2.709 quilômetros de fronteiras,
correspondentes a 17% do total atual, foram delimitados, contra 7.948 km
(51%) do império e 5.062 km (32%) do que resultou da atuação de Rio
Branco (PIMENTA, 2002, p. 242; 295).

Uma suposta legitimação do território uruguaio tampouco poderia passar


por qualquer “coincidência” entre territórios colonial e nacional pois, com
a criação do Vice‑Reino do Prata, em 1776, Montevidéu e adjacências a
ele se incorporaram administrativamente. Nesse caso, como subdivisão
daquela unidade maior, poderia argumentar‑se que, gravitando em torno
de Montevidéu, o “Uruguai” estava em preparação, estabelecendo‑se
assim uma suposta ligação entre um “Uruguai província do Vice‑Reino” e
o Uruguai Estado nacional. O fato porém é que a maior parte do território
que corresponde atualmente ao Uruguai foi durante toda a vigência do
sistema colonial na América área de permanente litígio entre as Coroas,
não estando claramente sujeita a nenhum governo que pudesse ser tomado
como “antecessor” de um outro, nacional. No outro lado do Prata, é certo
que vários dos projetos ditos “unitários” surgidos após 1810 reivindicavam
a jurisdição das áreas até então compreendidas pelo Vice‑Reino sediado em
Buenos Aires. Logo, em 1810, porém, Montevidéu e toda uma região sob sua
influência recusaram a legitimidade da junta de Buenos Aires (no que se
observariam mudanças anos depois). O Paraguai seguiu trajetória distinta,
e posteriormente o Alto Peru, parte então do Vice‑Reino, integrou a Bolívia
(PIMENTA, 2002, p. 54).

Ou seja, não é correto, tampouco historicamente adequado, recorrer a simples continuidades entre
as realidades históricas da América Latina – incluindo aí o Brasil. Entretanto, também podemos lembrar
que nem mesmo os Estados Unidos já estavam postos como Estado e nação no interior das 13 Colônias,
visto que os territórios iniciais constituíram uma parte – por sinal, bastante reduzida em termos espaciais
– do país que seria construído posteriormente com acréscimos territoriais feitos por meio de diversos
mecanismos.

Para apresentar como é problemática a simples projeção dos países atuais sobre as colônias, Pimenta
(2002) volta seu olhar para realidade do Uruguai e conclui que:

Entretanto, o caso uruguaio repõe com clareza um dos problemas centrais


de toda a discussão: o das verdadeiras continuidades entre colônias e
Estados nacionais. Não é possível ignorar que alguns centros administrativos
coloniais – casos de Montevidéu, Buenos Aires e Rio de Janeiro – exerceram
papel diferenciado de aglutinadores de interesses diversos, constituindo‑se
quando da crise do sistema colonial em espécies de centros decisórios
em contexto pautado pela emergência de diversas alternativas políticas.
Benedict Anderson, com sua ideia de “comunidades imaginadas”, observa
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que “para perceber de que modo unidades administrativas podem, como


o correr do tempo, vir a ser concebidas como pátrias, não só na América
como também em outras partes do mundo, é preciso examinar de que modo
organizações administrativas criam significado”. Premissa extremamente
sugestiva não correspondida pela equivocada conclusão do autor, para
o caso hispano‑americano, de que “fato notável [...] cada uma das novas
repúblicas sul‑americanas havia sido uma unidade administrativa entre os
séculos XVI e XVIII. A configuração original das unidades americanas era,
em certa medida, arbitrária e fortuita, assinalando os limites espaciais de
determinadas conquistas militares. Com o correr do tempo, porém, elas
desenvolveram uma realidade mais estável, sob a influência de fatores
geográficos, políticos e econômicos” (PIMENTA, 2002, p. 54).

O autor completa lançando exemplos muito claros desse processo de projeção do Estado e da nação
no passado colonial:

Argumento semelhante é o de que os Estados Nacionais modernos


hispano‑americanos teriam sido configurados, territorialmente, com
base nos limites da prática política possível pelos colonos, ou seja, o das
audiencias, unidades diversificadas dentro dos Vice‑Reinos. Vejamos, então,
se esse argumento é consistente, tentando “corresponder” às audiencias
existentes no interior do Vice‑Reino do Prata em fins do século XVIII com
os Estados Nacionais aí surgidos: Buenos Aires (“Argentina”), Charcas
(“Bolívia”), Chile (“Chile”); mas, seguindo nesta lógica, como ficariam Lima
e Cusco (duas audiencias), que vieram a integrar um mesmo Peru? E o
Paraguai e o Uruguai, a que audiencias próprias esses Estados Nacionais
corresponderiam? (PIMENTA, 2002, p. 54).

Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino (2014) propõem diversas discussões fundamentais para
entender nossas trajetórias comuns, que algumas vezes são mais próprias, noutras mais distantes, mas
que, para serem entendidas, precisam que pensemos em termos mais amplos, observando as conexões
existentes e, mais do que isso, como as problemáticas sociais, econômicas, políticas ou históricas podem
assumir os mais diversos sentidos. Assim, olhar para a América Latina é fundamental para pensarmos a
nossa própria realidade social, histórica e política.

Saiba mais

Recomendamos a leitura da obra:

PRADO, M. L.; PELLEGRINO, G. História da América Latina. São Paulo:


Contexto, 2014. (Disponível na biblioteca virtual.)

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De acordo com Francisco Alambert (apud BARRIO, 2011):

[...] se a imagem que um país constrói de si está relacionada à diferença que impõe
em relação à imagem de outras nações, então o “outro” do Brasil foi toda a América
Latina. Nesse contexto, o contraponto entre o Brasil monárquico e português e a
América Espanhola e republicana refletia‑se, no campo ideológico, por uma “guerra
de ideias assentada na defesa brasileira de sua ‘civilização imperial e escravista’”,
cujo liberalismo sonhava ser a diferença, particularmente significativa diante do
modelo liberal‑revolucionário europeu que nossos “bárbaros vizinhos” meramente
copiavam (ALAMBERT apud BARRIO, 2011, p. 81).

Buscando ressaltar de que maneira as disputas permeavam as relações cotidianas, tanto no campo
quanto nas cidades e entre diversas regiões, trazemos aqui as palavras de Donghi (1975):

A implantação de ordenamentos estáveis, de qualquer modo, revela‑se


difícil por toda parte. As dificuldades são devidas, em parte, [...] à nova
situação econômica desfavorável àqueles que dominaram a economia e a
sociedade antes de 1810; mas derivam também do fato de que um exército
insuficiente ligado aos novos ordenamentos funciona como árbitro entre os
dirigentes urbanos e os da zona mineradora, bem como entre os senhores
das zonas rurais caracterizadas por uma economia quase inteiramente
isolada e a plebe urbana que começa a fazer‑se escutar (no Peru, a plebe
rural não fora despertada pela revolução, ao passo que, no México, havia
sido brutalmente recolocada em estado de submissão). Os comandantes
veteranos das revoluções, bem como aqueles que vieram casualmente a
obter uma certa influência numa região à qual não pertenciam por origem,
estabelecem lentamente ligações com estratos sociais bem enraizados na
realidade pós‑revolucionária, até o ponto de se identificarem com eles. O
comportamento dos generais e de suas tropas, no mais das vezes estranhas
à região, é ditado por convergências entre as oposições internas à sociedade
civil e as rivalidades entre comandantes militares (DONGHI, 1975, p. 112).

Mais ainda, quando continua o quadro de instabilidades que assolavam o continente no


pós‑independência:

É uma situação nascida do modo particular pelo qual o México e o Peru


viveram as lutas de independência: no México, a independência foi adquirida
tão somente quando os adversários dela fizeram suas as reivindicações
políticas da independência, a fim de melhor combater suas aspirações em
outros setores; no Peru, a independência se afirma com a conquista do país
por exércitos provenientes do norte e do sul. Em outras regiões da América
Espanhola, a nova ordem surgiria a partir de forças internas; e, se essa não
era uma condição suficiente para garantir uma evolução pacífica, favorecia
em alguns casos o desenvolvimento da mesma (DONGHI, 1975, p. 112).
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Por quase todo o território que outrora pertencera aos espanhóis se desenvolveram conflitos entre
grandes senhores rurais e os poderes estabelecidos nas capitais representando as leis das repúblicas.
Atritos entre elites de regiões litorâneas e grupos do interior ou das áreas serranas povoam as narrativas
na América Latina do século XIX.

O importante a ressaltar aqui é que, ao contrário do que as histórias ditas nacionais e as memórias
escritas sobre a formação dos Estados Nacionais latino‑americanos buscaram construir, nem todas as
grandes lideranças emergiram dentre esforçados criollos que sacrificaram suas fortunas, arriscaram suas
famílias e suas vidas pelas nações que estavam construindo – vale enfatizar que essas narrativas deram o
tom laudatório da afirmação das figuras dos próceres nacionais – tais como verdadeiros “pais da pátria”.
Os nomes dos considerados como os grandes Libertadores das Américas ainda hoje povoam os livros
didáticos e são repetidos pelos estudantes: Simón Bolívar, San Martín, Francisco de Miranda, Santander,
Bernardo O’Higgins, Agustín Iturbide e, considerando o caso do Brasil, Pedro I e lorde Cochrane (que
participou da libertação do Peru junto às tropas de San Martín), Sucre, Hidalgo, Morellos, mas também
Vicente Rocafuerte (México), Artigas, Toussaint Louverture, Jacques Dessalines, Pétion e, por que não,
Martí Rosas, De Francia, Inca Yupanqui, Túpac Amaru.

Figura 22 – Simón Bolívar

Na eleição das figuras históricas que merecem destaque, geralmente membros das classes subalternas
e mulheres foram deixados de lado – ao menos para o grande público.

Um dos exemplos desse processo é a figura de um líder de origem bastante controvertida, talvez
popular e nascido nas Astúrias e que teria se transferido para a região da Venezuela no início do século
XIX, chamado Boves. Tal líder foi comandante de um grupo errante de lanceiros que, mal comparando com
figuras históricas brasileiras, seriam algo como bandoleiros que tinham uma organização própria e viviam
apartados das regras dos Estados. Seu grupo pode ter chegado a possuir 7.500 homens, dos quais entre
60 e 80 eram brancos, e algo entre 40 e 45, oficiais de origens variadas (espanhóis e criollos) – sendo um
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verdadeiro exército composto por peões e escravos que chegaram mesmo a combater contra chefes locais
e membros das elites como o próprio Bolívar. Cidades foram atacadas, e populações, massacradas por esses
grupos armados. Se aparecem nos livros escolares, são usados mais para afirmar a necessidade de uma
certa ordem social comandada pelas elites de origem criolla contra essa possibilidade de barbárie. Não se
enfatiza, assim, a questão da tensão social presente na América Espanhola entre senhores e escravos, entre
as elites criollas e os de origem indígena mantidos em condição de intensa exploração. Nesse sentido,
podemos inclusive fazer um paralelo com a história do Brasil, na qual apenas recentemente a historiografia
mais crítica passou a dar conta dos movimentos sociais do século XIX considerando sua importância no
desenvolvimento da sociedade brasileira, e não apenas pintando‑os como terríveis ameaças à ordem que
se procurava construir.

Saiba mais

Para o caso do Brasil, recomendamos:

CAROS AMIGOS. Coleção Rebeldes Brasileiros. São Paulo: Caros


Amigos, 2008.

DANTAS, M. D. Revoltas, motins, revoluções: homens livres, pobres e


libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.

REIS, J. J. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em


1835. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

Retornando para os acontecimentos na América Espanhola, no México irrompe algo que foi tido na
época das independências como uma guerra de “castas”, de grupos sociais:

No México, “desgraçadamente a guerra se transformou em uma guerra


de castas; não se tratava dos abusos dos europeus; os então chamados
criollos, que são a maioria dos americanos [...] se viram ameaçados de ser
exterminados” (RAMOS, 2012, p. 145, tradução nossa).

Completa ainda o mesmo autor:

Os defensores da Coroa [...] não eram chefes regulares, mas sim caudilhos que se
alçavam junto aos elementos mais baixos da sociedade, desde os negros escravos
de fazendas, até “zambos” e mulatos das cidades e habitantes das planícies, para
aniquilar a elite mantuana dos criollos aristocratas que representavam a causa
da independência (RAMOS, 2012, p. 145, tradução nossa).

Dessa forma, procuramos enfatizar que as elites da América hispano‑americana, em certo sentido,
lutaram contra a Coroa da Espanha, mas internamente também foram travados combates para manter

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condições de classe. Tal como no Brasil ou nos Estados Unidos, as independências hispano‑americanas
foram carregadas do ideário liberal e iluminista que pregava o uso da razão, a defesa da liberdade e das
luzes, mas isso não se aplicava necessariamente a todos os setores sociais.

A revolução de independência não era vista pelas diversas elites como revoluções sociais. A existência
da escravidão em algumas das áreas mencionadas foi um fator de conflitos no decorrer do século XIX.
As bases econômicas continuavam a ser a agricultura e a mineração, e, nesses setores, poucas eram
as mudanças no início do século XIX, com exceção da penetração gradativamente mais significativa
do liberalismo econômico, que se assenhoreava de cada vez mais mercados consumidores e fontes de
matérias‑primas, devido às indústrias europeias, que necessitavam de forma crescente explorar essas
regiões, o que acontecia de maneira cada vez mais intensa.

5.1 Colômbia e Venezuela: Simón Bolívar

Vale ainda a menção de que na atual Colômbia, na rica região de Cartagena, no momento da
emancipação, a sociedade admitia a divisão das mulheres em três categorias: as senhoras brancas, chamadas
de “blancas de Castilla”, as mulheres pardas, vistas como mestiças e, assim, inferiores, e as mulheres negras
livres. Por ocasião de festividades, bailes, por exemplo, os grupos se dividiam, inclusive frequentando salões
separados! Conforme nos indica Ramos (2012), o que dá o tom mais discriminatório e ressaltado é que
os homens brancos podiam dançar nos três salões; os pardos, apenas em seu espaço e naquele destinado
aos negros; e os negros estavam confinados apenas ao seu salão! Esse pensamento discriminatório e
profundamente preconceituoso determinava as relações entre os grupos sociais de forma generalizada nas
regiões hispano‑americanas, sendo a discriminação exercida ora contra os negros, ora contra aqueles de
origens indígenas – mas ainda assim as relações eram pautadas pela discriminação.

Como um complicador do quadro geral, as elites criollas se recusavam a dar a liberdade a seus
escravos, e os espanhóis, no momento das lutas de independência, perceberam que essa seria uma
importante maneira de arregimentar pessoas contra essas elites. Raros foram os casos que destoaram
desse comportamento, sendo o mais significativo deles o do próprio Simón Bolívar, que libertou
seus escravos e chegou a embarcar rumo ao Haiti de Pétion – ele próprio ex‑escravo – com o qual
estabeleceu acordos de ajuda mútua de tropas, víveres, navios. Além disso, fato absolutamente inovador
e fundamental, Bolívar prometeu a abolição da escravidão nos territórios que controlasse. De fato,
no dia 2 de junho de 1816, em Carúpano, declarou livres os escravos e sua aceitação no Exército
Libertador; em 1819, ratificou a medida ao determinar que “todos os homens que antes eram escravos
se apresenta[ssem] ao serviço para defender sua liberdade” (RAMOS, 2012, p. 148).

Os atritos entre as elites locais da América Hispânica e Bolívar – ele próprio filho das elites criollas,
nascido José Antonio de la Santíssima Trindad Simón Bolívar y Palacios, e membro de uma das mais ricas
famílias de Caracas, que em sua juventude deu os mesmos passos que seus iguais, ou seja, foi para a
Europa, estudou e depois retornou à América – não se deram apenas em torno da questão da escravidão
e não foram poucos. Contudo, é importante ressaltar que, no Congresso de Angostura, ele defendia o
abolicionismo “como imploraria por minha vida ou pela vida da República”. Entretanto, ao contrário
dele, os proprietários das elites preferiram processos graduais, e essa forma de atuação espalhou-se pela
América Latina, exceto pelo Haiti, em razão de sua rebelião libertadora.
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Figura 23 – Simón Bolívar

As ações de Bolívar foram, espacialmente falando, extensas, envolvendo lutas na Capitania Geral da
Venezuela, passando ao Vice‑reino de Nova Granada e ao Peru e ao Vice‑reino do Rio da Prata – quando
das lutas no Alto Peru, depois batizado em sua homenagem como Bolívia.

No século XIX, era comum nos discursos elitistas e de matriz ilustrada a ideia de que primeiro era
necessário preparar os escravos como cidadãos para só depois libertá‑los.

O espectro do Haiti, ao que parece, rondava muitas terras nas Américas, bem como a arraigada crença
no trabalho escravo. Na ilha caribenha, os brancos que tentaram reescravizar os libertos pela Revolução
Francesa encontraram uma reação extremamente aguerrida. Mesmo levando em consideração que
Toussaint Louverture fora preso e remetido para a França, onde morreu, as lutas continuaram com
Pétion, Dessalines e Boyer. A intensidade assustava proprietários em muitos lugares bastante distantes
da América Latina, inclusive em regiões de origem anglo‑saxônica.

Para se ter uma dimensão do imaginário construído em torno da figura de Toussaint Louverture,
sugerimos a leitura que se segue:

A Toussaint Louverture

Por William Wordsworth

Quando a sorte, Toussaint, encontrarás?


Se o rangido do arado das sementes
Ressoa em seus ouvidos; se consentes

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Dormir em poço imundo, pertinaz;


Quando e em que posto tu repousarás,
Mísero comandante? Embora ostentes
O orgulho por detrás dessas correntes,
Caíste, e nunca mais levantarás.

Sossega, atrás de ti ficou o poder


Que agirá em teu lugar: a terra e o dia,
Vendavais que nas brisas se consomem,

Não haverão jamais de te esquecer.


Deixas o amor, as glórias, a agonia.
E o espírito indômito do homem.

Fonte: James (2010, p. 343).

Logo nos primeiros momentos, para os criollos, assegurar as independências não era fazer a abolição
da escravidão, mas sim garantir o imediato exercício do poder político, econômico, social e militar no
nível mais básico da experiência direta – aquela restrita à área de influência pessoal dos chefes políticos.
Com esse movimento, a tendência existente para descentralização presente desde a época colonial
ganha contornos de realidade. Não se pode afirmar, no entanto, se obrigatoriamente deveria haver a
fragmentação, mesmo porque todo o esforço bolivarista caminhava no sentido contrário, buscando
alguma forma de unidade para salvaguardar as Américas do imperialismo externo.

Vale lembrar que, desde a época colonial, já existiam, ao menos na América hispânica, realidades
sociais e econômicas bastante diversas, em se tratando das distâncias a serem percorridas. Isso fica
mais claro ainda como uma necessidade administrativa e econômica. Podemos considerar em nosso
tempo as dificuldades para se locomover pelas Américas de forma geral; imagine, então, no século XIX,
tão convulsionado por disputas e lutas contra as metrópoles, guerras civis e ações de bandoleiros. A
possibilidade de fragmentação territorial estava posta já nas independências – o que alarmava o Brasil
e o colocava de prontidão contra as ameaças à integridade do império.

No Brasil, em sua independência, ocorreram confrontos tais como a Guerra de Independência na


Bahia, que durou quase um ano e teve seu encerramento em 2 de julho de 1823. Diferentemente dos
países vizinhos, no Brasil foram reprimidas as forças centrífugas, o que causou o triunfo da centralização
contra a descentralização e os poderes locais.

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Unidade II

No caso da América hispânica, desde os momentos iniciais havia a tentativa de pulverização do poder
político, como na região das atuais repúblicas da Colômbia, da Venezuela, do Panamá e do Equador, que
juntas somariam 2.600.000 km²! Sob a presidência de Bolívar havia três vice‑presidentes, e a região se
repartia em departamentos: Venezuela, Quito e Cundinamarca. Nesta última região, o chefe político
local era o general Santander, que passou a responder ao ideário dos liberais – ligados aos grandes
produtores de cacau, café, anil, tabaco, algodão e também ouro – e era muito interessado no fim de
impostos cobrados pelo governo central.

Observação

Vale a pena examinar em paralelo o caso da Revolução Farroupilha do


Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, ocorrida entre 1835 e 1845, que
também apresentou uma forte retórica contra o excessivo centralismo
imperial e, no limite, desejava mais autonomia e redução de impostos
centrais. A guerra comandada pelas elites proprietárias de estâncias e
fazendas conseguiu, mesmo depois de vitorioso o império, assegurar o
atendimento de algumas de suas reivindicações.

A guerra civil rondava a América independente em qualquer das macrorregiões culturais e


linguísticas – e de fato se presentificou em todas elas. Ramos (2012) se refere às instabilidades da
região Colômbia-Venezuela:

Santander nunca sentiu em exaltação o patriotismo colombiano, disse Blanco


Fombona. Queria a Cundinamarca, sua pequena pátria, como Páez queria
ao Apure, como Mariño queria o Oriente. Estes localistas medíocres foram
os “nacionalicidas” da grande pátria que nos deixou Bolívar. Eles queriam
pátrias do tamanho de suas ambições: pátrias microscópicas (RAMOS, 2012,
p. 152, tradução nossa).

Indica o mesmo autor, na sequência, que foi Santander quem firmou o acordo comercial com os
ingleses em troca do reconhecimento da Colômbia como nação independente. A semelhança com a
história do Brasil nesse momento de independência está menos na questão da fragmentação do que no
aspecto da forte presença do liberalismo econômico inglês que também, em troca do reconhecimento
da Independência do Brasil, negociou a renovação dos Tratados de 1810, obtidos em condições
extremamente vantajosas para os ingleses e como reconhecimento dos auxílios prestados na fuga
da Família Real Portuguesa das tropas napoleônicas. A Família Real, aliás, chegou ao Rio de Janeiro
com sua Corte em 1808, promovendo a Abertura dos Portos às Nações Amigas logo na sequência de
sua chegada. Assim, tanto quanto era possível, o liberalismo econômico inglês avançava pelas regiões
recém‑emancipadas – ao menos enquanto os Estados Unidos não se articulavam no âmbito continental
com a chamada Doutrina Monroe.

76
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

Observação

A Doutrina Monroe representa um símbolo da construção da hegemonia


dos Estados Unidos no continente americano por meio da oposição às
pretensões intervencionistas europeias. Dessa maneira, a referência direta
aparece geralmente com a frase “América para os americanos”. Em seu
esforço para estabelecer uma hegemonia continental, a doutrina remete
às noções de liberdade e solidariedade, conforme nos apresenta Mota:
“Os cidadãos dos Estados Unidos nutrem os mais amistosos sentimentos
em favor da liberdade e felicidade dos seus semelhantes deste lado do
Atlântico. Nas guerras das potências europeias por questões que lhes
dizem respeito nunca tomamos parte, nem o fazê‑lo se coaduna com nossa
política. Só quando nossos direitos são violados ou seriamente ameaçados
nos revoltamos contra os males que nos causaram ou nos preparamos para
defender‑nos. Estamos necessariamente mais ligados aos movimentos neste
hemisfério, e por motivos que hão de ser óbvios a todos os observadores
esclarecidos e imparciais” (MOTA, 1971, p. 337).

Figura 24 – James Monroe, presidente dos Estados Unidos

Em carta, Bolívar teria dito a Santander:

Não foi visto ainda o tratado de comércio e navegação com a Grã‑Bretanha


que, segundo você afirma, é bom, mas eu temo muito que não seja tão
vantajoso, porque os ingleses são terríveis para essas coisas (RAMOS, 2012,
p. 153, tradução nossa).

77
Unidade II

Em 27 de outubro de 1825, Bolívar, após tomar conhecimento do teor do tratado referido,


afirmou que:

O tratado de amizade e comércio entre a Inglaterra e a Colômbia tem a


equivalência de uma balança que tivera em um prato ouro e noutro
chumbo. Vendidas estas duas quantidades, veríamos se eram mesmo iguais.
A diferença que resultaria seria a igualdade que existe entre o forte e o
fraco. É do que se trata e não o podemos evitar (RAMOS, 2012, p. 153,
tradução nossa).

Ao longo de todo o século XIX, diversas nações latino‑americanas se ressentiram dessa situação
tão desigual nas trocas comerciais entre os países europeus e elas, fornecedoras de produtos primários
e consumidoras de bens, serviços e manufaturas, o que, de certa maneira, preservava as condições
econômicas de centro e periferia que existiam entre Europa e Américas, desde os tempos coloniais.
Aqui, talvez a exceção seja o Paraguai, que teve um processo paralelo de desenvolvimento econômico,
cultivando uma autonomia em relação aos ingleses que os vizinhos não tinham. No entanto, já
anunciamos que terríveis consequências provenientes dessa autonomia assolariam a nação de origem
guarani, em razão da Guerra do Paraguai.

A experiência europeia de Bolívar em sua formação de jovem proprietário de origem criolla o colocou
em contato com a política que se executava a partir do velho continente, e não foram raras as ocasiões
em que o libertador procurou articular poderes locais contra um crescimento de influências externas.

Logo que a Inglaterra se colocar à frente dessa liga, seremos seus humildes
servos, porque, fazendo um pacto com o mais forte, se torna eterna a
obrigação do mais fraco. Devemos levar em consideração que na juventude
tivemos tutores, senhores em nossa maturidade e que na velhice seremos
livres. Eu creio que Portugal não é mais que um instrumento da Inglaterra,
o qual não sonha com nada para não incomodar os companheiros, convida
os Estados Unidos para dar a aparência de desinteresse e para incitar os
convidados a participar do banquete; depois que estivermos reunidos será a
festa dos Lápitas, e aí entrará o Leão a devorar os convidados (RAMOS, 2012,
p. 159, tradução nossa).

Talvez valha um esclarecimento a respeito das referências mobilizadas por Bolívar nesse último
excerto que citamos. Os Lápitas, na mitologia grega, estão ligados à origem dos centauros, criaturas
que, com raras exceções, tratavam os homens com notória violência e crueldade. A segunda referência,
a do leão, além de apontar para a ferocidade e a capacidade de se impor, indica a própria monarquia
britânica, da qual é, inclusive, um dos símbolos.

As desconfianças de Bolívar, no entanto, não se restringiram aos ingleses, pois os norte‑americanos


eram igualmente criticados por ele, que os via como aliados egoístas. Bolívar chegou, em sua
correspondência, a se referir ao Brasil e a suas relações com a Inglaterra, ficando de sobreaviso para que
os ingleses não influenciassem demasiadamente o Congresso do Panamá.
78
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

Observação

O Congresso do Panamá foi uma reunião política na qual Bolívar


procurou orquestrar uma reação da América Hispânica [...] às ameaças
europeias de recolonização simbolizadas pela articulação da Santa Aliança.
Seria estabelecida uma espécie de federação para reagir contra ataques
externos e também se organizaria uma política externa comum dos
Estados recém‑emancipados. Para que isso funcionasse, Bolívar despachou
representantes seus para o México, Peru, Chile e Argentina, além de convidar
para o Congresso do Panamá governos da Colômbia, México, América
Central, Províncias Unidas e Chile. O governo colombiano convidou o Brasil,
a Inglaterra, os Estados Unidos, a França e os Países Baixos. Compareceram
representantes da Grã‑Colômbia, da América Central, do Peru e do México
(SANTOS, 2002, p. 32-3).

Bolívar, representando a força de um poder que se desejava central, precisava assim resolver diferentes
problemas que contestavam a própria viabilidade da união no território da Grã‑Colômbia. Os ingleses eram
um perigoso complicador na manutenção das autonomias relativas às independências, mas as ameaças de
recolonização presentes na existência da Santa Aliança não eram menos importantes. O próprio Império do
Brasil assustava os vizinhos de origem espanhola; e, no horizonte americano, emergiam os Estados Unidos com
sua Doutrina Monroe. Tudo isso apenas no plano externo, já que, internamente, os grandes senhores locais
provocavam tensões enormes nas macrorregiões anteriormente compreendidas pelos vice‑reinos, a saber:
Vice‑reino de Nova Espanha; Vice‑reino de Nova Granada; Vice‑reino do Peru; e Vice‑reino do Rio da Prata.

Em cada uma dessas distintas regiões que pouco a pouco se tornavam independentes, as contradições
já existentes eram, em certa medida, catalisadas pelas novas possibilidades que se abriam. Além disso,
cada setor tinha um entendimento bastante diferente em torno de questões centrais como participação
na política, voto, acesso à terra e formas de trabalho que seriam permitidas nos novos Estados.

Para se entender um pouco mais profundamente as mudanças desse período histórico – tão
complexo em termos de interesses, disputas de poder, conflitos sociais e interesses internos e externos
–, Levi (apud SOARES, 2008) afirma que:

Mas para todo indivíduo existe também uma considerável margem de liberdade
que se origina precisamente das incoerências dos confins sociais e que suscita
a mudança social. Portanto, não podemos aplicar os mesmos procedimentos
cognitivos aos grupos e aos indivíduos; e a especificidade das ações de cada
indivíduo não pode ser considerada irrelevante ou não pertinente (LEVI apud
SOARES, 2008, p. 10).

O que nos remete ao nosso ponto de que todas essas personagens, ainda um tanto quanto distantes
das nossas discussões de sala de aula no Ensino Fundamental e no Médio, mas que, num momento

79
Unidade II

oportuno, vêm sofrendo a devida alteração nesse quadro, são, fundamentalmente homens de seu tempo.
Assim, projetam disputas, interesses, mudanças e continuidades e mesmo contradições dificilmente
esquematizáveis sob o gigantismo dos “pais da pátria”, sob a glorificação acrítica dos Libertadores.

Como exemplo disso que estamos afirmando, a própria natureza da ideia de ruptura na América
Hispânica é alvo de controvérsias historiográficas, pois alguns afirmam que as ideias de ruptura e de
independência política começaram a aparecer no final do século XVIII, quando os Bourbons espanhóis
começaram uma série de reformas no sentido da centralização que aumentaram as pressões políticas,
comerciais e fiscais sobre as colônias, gerando reações que, apesar de malogradas, já seriam as sementes
da independência. Segundo Soares (2008), seria essa o ponto de vista defendido por John Lynch. Mas
outros, como Halperín Donghi, analisaram as ações nas Américas como parte do complexo mundo
atlântico abalado pelas ações napoleônicas, quando da invasão e da derrubada do monarca espanhol.
Ele pôde, dessa maneira e usando esses simples exemplos, perceber que para que as independências
ocorressem, foram necessárias as articulações de problemas internos e externos. Desse modo, a invasão
napoleônica tem seu peso, mas as ações anteriores da Coroa espanhola também influenciaram, bem
como o fizeram os desejos e projetos das elites criollas.

A construção da imagem em torno de Bolívar é um problema historiográfico e político muito atual,


uma vez que nesse processo são mesclados eventos de época e realidades nacionais contemporâneas,
fazendo surgir, inclusive, um termo que é cada vez mais utilizado na imprensa brasileira: “Libertador”.
Entretanto, é preciso ressaltar seu constante e muito pouco criticado uso, quase como um rótulo,
servindo mais como palavra de efeito, como retórica que lança juízos de valor como se fossem verdades
históricas inabaláveis, em vez de lançar questionamentos a respeito dos sentidos históricos ligados à
necessidade de um Libertador nas Américas.

As discussões acerca das independências remetem ao fato de que foi na Venezuela que os
movimentos de independência ganharam solidez, sendo a proclamação feita em 5 de julho de 1811,
o que lhe deu a condição de movimento inicial e inspirador de outras regiões. Contudo, um olhar
mais atento leva a perceber que lá os conflitos também se desenvolveram, uma vez que somente
a custo de muito desgaste é que a Junta Governativa das Províncias Unidas da Venezuela aceitou
um antigo defensor da ruptura chamado Francisco Miranda, com quem Bolívar teria se encontrado
quando esteve na Europa. Para se ter a dimensão dessas disputas, a República instalada nessa ocasião
durou apenas um ano, derrotada pelos espanhóis. A partir daí, Bolívar procurou construir um exército
para expulsar os realistas e, para tanto, precisou retomar a capital, Caracas – cidade na qual entrou
em 7 de agosto de 1813, fazendo a Venezuela ter sua segunda república. Conforme ressaltamos
anteriormente, os conflitos internos eram ainda mais complexos quando envolviam disputas sociais,
como a participação de Boves ao lado dos espanhóis.

Saiba mais

No Brasil, a experiência das Juntas foi fundamental para nossa


independência e para revelar que diversos projetos políticos estavam postos

80
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

nos debates e práticas políticas. Nesse sentido, os trabalhos de Denis


Antonio de Mendonça Bernardes permitem entender a construção de uma
determinada ordem na independência que articulou o então sul do Brasil
em torno do Rio de Janeiro, mas que, para isso, entrou em conflito com
os nortistas, dentre os quais os pernambucanos, que foram muito bom
exemplo de práticas políticas alternativas.

A respeito do tema, indicamos o livro produto de sua tese de


doutoramento:

BERNARDES, D. O patriotismo constitucional: Pernambuco: 1820-1822.


São Paulo: Hucitec, 2006.

A Espanha, com a restauração dos Bourbons, empreendeu um grande esforço para reconquistar os
espaços perdidos nas Américas. Assim, enviou o general Pablo Morillo contra a Venezuela e mandou‑o
retomar Nova Granada, tendo uma força de 15 mil homens.

Em torno de Bolívar, a imagem de Libertador tão instrumentalizada nos séculos XIX e XX permite
algumas discussões a partir de seus próprios escritos – lembrando que por vezes ele sofreu exílios –, e,
em suas cartas, aspectos dos conflitos são tratados e podem ser resgatados. Em sua primeira carta da
Jamaica, de 1815, escreveu:

O véu já foi rasgado, já vimos a luz, e querem nos devolver às trevas;


romperam‑se os grilhões, já fomos livres, e nossos inimigos pretendem
novamente escravizar‑nos. Por isso, a América combate desesperadamente,
e raras vezes o desespero não acarreta a vitória (SOARES, 2008, p. 22).

Foi nesse documento que Bolívar desenhou a estrutura política centralizada que acreditava mais
adequada para a região, onde o federalismo não teria espaço e Nova Granada e Venezuela, juntas,
seriam a Colômbia. O poder central seria vitalício, mas não hereditário, portanto não monárquico. Foi no
retorno de exílio na Jamaica que Bolívar passou pelo Haiti e travou conversações com Pétion, recebendo
auxílio do primeiro Estado negro das Américas e prometendo a abolição da escravatura na Venezuela.

Nos feitos de Bolívar, tradicionalmente se ressaltam características épicas. Entretanto, o provavelmente


mais arguto escritor da América Latina no século XX, Gabriel García Márquez, expôs Bolívar não como
o grande Libertador, mas em sua dimensão profundamente humana, debilitada e doente, quando o
descreveu no livro O General em seu Labirinto:

– Cuidado – disse‑lhes – que a mesma coisa acreditaram em Casacoima


[na sierra de Imataca, na Venezuela]. Pois ninguém esquecera o dia 4 de
julho de 1817, quando o general teve de passar a noite afundado na lagoa
de Casacoima, junto com um reduzido grupo de oficiais, entre os quais
Briceño Méndez, para escapar das tropas espanholas que estiveram a pique

81
Unidade II

de os surpreender num descampado. Meio nu, titiritando de febre, começou


de repente a anunciar aos gritos, passo por passo, tudo que ia fazer no
futuro: a tomada imediata de Angostura, a travessia dos Andes até libertar
Nova Granada e depois a Venezuela, para fundar a Colômbia, e por último
a conquista dos imensos territórios do sul, até o Peru. “Então escalaremos o
Chimborazo e plantaremos nos picos nevados a tricolor da América Grande,
unida e livre pelos séculos e séculos” (MÁRQUEZ apud SOARES, 2008, p. 24).

Bolívar, no livro citado, aparece por vezes desgostoso e desencantado – o que não é exatamente
heroico. Nesse sentido, essa caracterização é pouco convencional, principalmente, tendo em vista que se
trata de um dos mais afamados defensores das independências que, inclusive, é chamado de “o Libertador”.

Saiba mais

As imagens formadas pelas figuras históricas muitas vezes influenciaram


a literatura e foram influenciadas por ela. Na América Latina, um dos grandes
nomes contemporâneos foi Gabriel García Márquez, e dele recomendamos
o livro que lhe deu o Prêmio Nobel de Literatura, Cem Anos de Solidão. Além
disso, indicamos sua obra Notícia de um Sequestro, para discutir a força do
narcotráfico e a doença que o dinheiro “fácil” representa na América Latina.
Sobre Bolívar, indicamos seu livro O general em seu labirinto. Para um
contato inicial com uma narrativa dinâmica e inteligente, recomendamos
Crônica de uma morte anunciada.

MÁRQUEZ, G. G. Cem anos de solidão. Tradução de Eric Nepomuceno.


85. ed. São Paulo: Record, 1998.

___. Crônica de uma morte anunciada. Tradução de Remy Gorga Filho.


44. ed. São Paulo: Record, 2013.

___. Notícia de um sequestro. São Paulo: Record, 1996.

___. O general em seu labirinto. 12. ed. São Paulo: Record, 1989.

Ao perceber as divisões sociais americanas e as possibilidades existentes de mobilizar camadas


desfavorecidas para levar adiante as independências, Bolívar escreveu a Santander, em 20 de
abril de 1820:

As razões militares e políticas que me levaram a ordenar a vida de uma


leva de escravos são óbvias. Necessitamos de homens robustos e fortes
acostumados à inclemência e às fadigas, de homens que abracem a causa e
a carreira com entusiasmo, de homens que vejam identificada a sua causa

82
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

com a causa pública e homens para os quais o valor de sua morte seja um
pouco menor do que o da sua vida.

As razões políticas são ainda mais poderosas. Declarou‑se a liberdade dos


escravos de direito e de fato. [...] Com efeito, a lei do Congresso é sábia
em vários sentidos. [...] seria justo morrerem somente os homens livres para
então emancipar os escravos? Não seria útil que esses adquirissem seus
direitos no campo de batalha e que se diminua seu perigoso número por um
meio poderoso e legítimo? (SOARES, 2008, p. 26).

O que transparece aqui é a posição de um estrategista que faz cálculos políticos e sociais de
seus movimentos – o que, conforme ressaltamos, ocorria também no Brasil. Um dos receios da elites
americanas no início do século XIX era justamente o de revolta de escravos, o tão afamado haitianismo.
Assim, realizando a abolição, os libertadores conseguiam braços para os combates ao mesmo tempo que
afastavam o enorme e assustador fantasma de uma rebelião de escravos que poderia massacrar as elites
brancas e proprietárias de terras e no caso, de escravos.

Bolívar percebeu que para levar a cabo seus projetos era impossível caminhar sozinho e então se
esforçou na articulação de alianças; entretanto, ao longo de seu caminho, também fazia inimigos. Em
1817, em Angostura, na Colômbia, um líder local da população mestiça, chamado Manuel Piar, havia
se aproximado de Bolívar. Na estratégia do libertador, isso tinha muita importância, mas pouco depois
Piar se rebelou ao defender aspectos hoje considerados étnicos – uma identidade que excluía a elite
branca criolla. Diante da ameaça, Bolívar não hesitou em permitir, após a derrota e a prisão do líder
local, seu julgamento, condenação e fuzilamento como desertor, rebelde e conspirador. Desse modo, se
esforçando contra as clivagens étnicas, o projeto bolivariano estabelecia a igualdade entre os cidadãos
desconsiderando diferenças tão valorizadas na época em razão da cor de pele ou do fato de serem
indígenas, mestiços ou negros.

Em Angostura, em 1819, por ocasião do Congresso convocado em defesa da ideia de Colômbia,


ainda de acordo com Soares (2008), Bolívar teria anunciado:

Um governo republicano foi, é e deve ser o da Venezuela; suas bases devem


ser a soberania do povo, a divisão dos poderes, a liberdade civil, a prescrição
da escravidão e a abolição da monarquia e dos privilégios. Necessitamos da
igualdade para refundir, digamos assim, num todo, a espécie dos homens, as
opiniões políticas e os costumes públicos (SOARES, 2008, p. 28).

Apesar do exposto, o Congresso adiou os debates sobre a escravidão no momento da formação da


Grã‑Colômbia – quando Bolívar deixou a função de presidente para continuar as lutas de libertação
no Alto Peru e esteve à frente dos exércitos que completaram sua obra na batalha que expulsou
definitivamente os espanhóis em dezembro de 1824, em Ayacucho. Nessa ocasião, aliás, ele enviou
o general Sucre, pois necessitou retornar à Grã‑Colômbia para combater noutro plano, o político: o
Congresso por ele mesmo aberto ameaçava seus poderes.

83
Unidade II

Embora retomemos os eventos das independências, lembramos que não o fazemos para discutir
o rompimento com os espanhóis, as disputas, as batalhas e as estratégias, pois isso já foi discutido
neste livro‑texto. Estamos, neste momento, buscando as construções que se fizeram em torno das
personagens nos Estados Nacionais que se firmavam no século XIX e também posteriormente, quiçá
como ocorre até os dias de hoje:

Homem de seu tempo, desejou transformar de uma só vez as forças sociais


e as instituições, sem ter em conta que estas são vazias se aquelas não
as sustentam nem as movem. O destino de Bolívar encontrava‑se pois
condicionado pela necessidade histórica de providenciar muito em pouco
tempo (SORIANO apud SOARES, 2008, p. 30).

As disputas entre poder central e poder local foram sentidas em toda a sua profundidade na Venezuela,
pois, em 1826, José Antonio Páez, com apoio dos llaneros, rompeu com o governo central novamente
exercido por Bolívar, e isso fez que ele agisse para aumentar a centralização política e militar – não sem
reações e consequências importantes para o surgimento de novos países nas ruínas da Grã‑Colômbia.
Cartagena, em 1829, apoiou o general José Padilla a se rebelar com o apoio dos mestiços contra Bolívar
e com um discurso favorável a Santander, que na época era percebido geralmente como mais liberal
que a prática do bolivarismo. Ainda no mesmo ano, ocorreu um atentado contra a vida do Libertador,
deixando muito nítida a situação instável. Pouco depois, ainda no mês do atentado, a Venezuela se
separou do governo central. Em 1830, foi o Equador que saiu da aliança.

As reações ao poder de Bolívar se avolumavam, e sua Grã‑Colômbia se esfacelava. O edifício da


unidade nacional ruiria pela última vez. Bolívar rumou para o exílio, onde faleceria no ano de 1830.
Novamente recorrendo a Gabriel García Márquez, em O General em seu Labirinto,

Não conseguia dormir mais de três horas no começo da noite, e passava o


resto sufocado pela tosse, ou alucinado pelo delírio, ou desesperado pelo
soluço recorrente que principiara em Santa Marta e foi ficando cada vez
mais tenaz. Durante a tarde, enquanto outros cochilavam, entretinha a dor
contemplando pela janela os cumes nevados da serra.

Tinha atravessado quatro vezes o Atlântico e percorrido a cavalo territórios


libertados mais do que qualquer outro em qualquer tempo, e nunca fizera um
testamento, falha insólita para a época. [...] O general Pedro Alcántara Herrán
o sugerira em Santa Fé, quando se preparava a viagem, com o argumento de
que era uma precaução normal de todo passageiro, e ele respondera, mais a
sério do que de brincadeira, que a morte não estava em seus planos imediatos.
Contudo, em San Pedro Alejandrino, foi ele quem tomou a iniciativa de ditar
os rascunhos de sua última vontade e sua última proclamação.

Como Fernando estava doente, começou a ditar a José Laurencio Silva uma série
de notas um tanto descosidas que expressavam tanto os seus desejos como os
seus desenganos: a América era ingovernável, quem serve a uma revolução ara
84
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

no mar, este país caíra sem remédio em mãos da multidão desenfreada para
depois passar a tiranetes quase imperceptíveis de todas as cores e raças, e muitos
outros pensamentos lúgubres que já circulavam dispersos em cartas a diferentes
amigos (MÁRQUEZ apud SOARES, 2008, p. 34).

Soares ainda nos informa que foi na Quinta de San Pedro Alejandrino, em Santa Marta, que Bolívar
viveu seus últimos dias, pois morreu em 17 de dezembro de 1830, aos 47 anos.

Morto o Libertador, sua memória começou a ser alvo de interesses políticos que foram se apropriando
de sua imagem, quase buscando, sob sua égide, legitimar-se e consolidar projetos em seu nome – mas
vale notar que não necessariamente se trata dos projetos de Bolívar.

5.1.1 Bolivarismo

Na América do Sul, dois são os países que homenageiam Simón Bolívar – Bolívia e a República
Bolivariana da Venezuela. Durante as primeiras décadas do século XXI, o bolivarismo voltou com força à
agenda política e aos noticiários.

Em 1999, a Venezuela, sob o comando de Hugo Chávez, deu exemplos muito concretos dessa
utilização da figura do Libertador quando a nova Constituição do país estabeleceu o que é a democracia
participativa nos moldes venezuelanos. Conforme pontua muito bem Soares (2008, p. 37), contrariamente
à noção de democracia representativa, trabalhando no sentido de inclusão social das camadas mais
subalternas, o que lhe dá uma força razoável junto às massas populares. Em seus atritos com as elites
venezuelanas, Hugo Chávez as responsabilizava por desvirtuar a obra de Simón Bolívar, idealizador de
uma América livre, justa e unida.

Figura 25 – Simón Bolívar e Hugo Chávez

É ou não é um uso claramente político da imagem do Libertador que atura no século XIX
seu resgate tão enfático no final do século XX e início do século XXI? Vale lembrar que, em seus
pronunciamentos televisivos, a partir do gabinete presidencial, Chávez surgia sempre à frente de
um enorme quadro justamente de Simón Bolívar estrategicamente postado atrás dele, cuja imagem
tem ares impetuosos e grandiosos.
85
Unidade II

Saiba mais

A respeito das circunstâncias mais recentes envolvendo a Venezuela e


diversos conflitos e choques em torno de Hugo Chávez, fica a indicação do
documentário:

A REVOLUÇÃO não será televisionada. Dir. Kim Bartley; Donnacha


O’Briain. Irlanda; Holanda; EUA; Alemanha; Finlândia; Reino Unido: Power
Picture/Agência de Cinema da Irlanda, 2003. 74 minutos.

Esse trabalho discute e nos apresenta uma visão mais crítica e


complexa do que se desenvolveu na República Latino‑americana, que
vai muito além do simplório senso comum que tece comentários muitas
vezes preconceituosos e que não guardam quase nada, em termos sociais,
históricos e políticos, de relação com a Venezuela “real”.

Um olhar para a história da Venezuela desde o século XIX nos leva a perceber esses usos já com
outros governos, não com a mesma finalidade, mas com intenção claramente política.

Foi no século XIX, pouco depois de sua morte, que seus restos mortais foram trasladados para Caracas,
no governo de José Antonio Páez, em 1842. Vale lembrar que Páez era um antigo chefe político local desde
as guerras de independência. Na interpretação do historiador Germán Carrera, isso seria uma tentativa de
reunir as elites antes divididas sob o comando de proteção de Bolívar e, nesse sentido, seria um caminho para
suplantar divisões internas. Os dois lados políticos rivais na Venezuela, liberais e conservadores, se esforçaram
muito para tomar a memória do Libertador como o pensamento que referendava suas práticas. Livros e festas
públicas em torno do centenário de seu nascimento no século XIX, reportagens, iconografia, filmes e séries
televisivas contribuíram bastante com a mitificação de Bolívar. Além disso, a extensa bibliografia a respeito da
vida do Libertador contaminou os livros didáticos com esse olhar, geralmente mitificador.

Vale mencionar que mesmo no caso do Brasil existe bibliografia, em nossa língua, estudos acadêmicos
inclusive, a respeito de Bolívar, e nem por isso acaba sendo ele mais bem-analisado por aqui, mesmo
com nosso distanciamento e com o fato de ser evidentemente desnecessário politicamente reivindicar
sua memória para nossa independência.

No século XX, governos ditatoriais ou simplesmente autoritários na Venezuela também procuraram


construir “seu Bolívar”, mas foi à medida que o século avançou que novamente a discussão a respeito
de imperialismo e colonialismo entrou em pauta, que Bolívar foi resgatado como defensor da liberdade
e democracia – o que é diferente de dizer que é pai de uma pátria unitária. Os diversos usos de sua
imagem acabam dificultando ainda mais os debates – em 1951, o espanhol Salvador Madariaga
publicou uma obra em que expunha sua aproximação da monarquia, seus erros militares, as influências
de Manuela Sáenz. O que nos causa admiração é que junto ao esforço de mitificação existe um esforço
de desconstrução igualmente prisioneiro da lógica de que é preciso lidar com esse vulto histórico.
86
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

Existe também um viés historiograficamente crítico, mas que também é uma obra de seu tempo, de
1969, em que o historiador marxista Nuñez Tenorio, no livro Bolívar y la Guerra Revolucionária, vê um
Bolívar comprometido com o aspecto social.

Para encerrar seu balanço bibliográfico acerca dos diferentes olhares sobre Bolívar, Soares (2008)
remete aos trabalhos de Fabiana Fredrigo, que percebe um esforço do próprio Bolívar em suas cartas
para aparecer como indispensável. Resta, a quem lê todo esse material, questionar o quanto a publicação
é fruto da época ou construção de discurso de quem escolhe mencionar Simón Bolívar.

Outra discussão que ganhou importância recentemente foi o papel das mulheres nesse processo,
conforme apontam com propriedade Prado e Pellegrino (2014):

Além da Manuela, de Bolívar, outras mulheres participaram desse momento


histórico, mas muito pouco se enfatiza desse processo. [...] A criolla Javiera,
do clã dos Carrera chilenos, que promovia reuniões sediciosas em sua casa
e a ela foi atribuído o desenho da bandeira chilena [...] o primeiro exemplar
teria saído de suas mãos (PRADO; PELLEGRINO, 2014, p. 26).

Ou ainda:

Manoela Sáenz, a quem conhecera em Quito, em um baile de gala que


celebrava a libertação do Equador. Manuela foi condecorada com patente
militar pelo lugar estratégico que ocupou, como confidente a, protetora do
general e guardiã de seus arquivos, em momentos críticos da guerra e dos
primórdios da Terceira República (SOARES, 2008, p. 24).

Saiba mais

Para dar a dimensão, ainda que bastante rápida, de como a discussão a


respeito de Bolívar se desenvolveu, indicamos alguns livros mais:

BOLÍVAR, S. Escritos políticos. Campinas: Unicamp, 1992.

CASTRO, M. W. Bolívar (1783–1830). Rio de Janeiro: Editora Três, 1973.

___. O libertador. A vida de Simón Bolívar. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

FREDRIGO, F. S. Guerras e escritas: a correspondência de Simón Bolívar


(1799–1830). São Paulo: Unesp, 2010.

TREND, J. B. Bolívar e a independência da América Espanhola. Rio de


Janeiro: Zahar, 1965.

87
Unidade II

Leia também o livro a seguir, que é uma publicação patrocinada pela


Embaixada da República Bolivariana da Venezuela cujo prólogo tem como
título “Bolívar como Político e Reformador Social”:

VILA, M. P. Simón Bolívar: o libertador. Rio de Janeiro: Adipro, 2007.

A Revista História publicou uma resenha sobre o livro de Fredrigo (2010) que incluímos a seguir:

Simón Bolívar tem lugar cativo na memória política e social da


América Latina, inclusive como mito inspirador de diferentes bandeiras
político‑ideológicas. Por sua vez, as versões históricas em torno das
independências hispano‑americanas foram construídas a partir dos próprios
escritos do “Libertador”, que criou uma identidade de “herói sem fronteiras”.

Em seu livro Guerras e Escritas: a Correspondência de Simón Bolívar (1799-1830),


publicado pela Editora Unesp, a historiadora Fabiana de Souza Fredrigo, professora
do Departamento de História da Universidade Federal de Goiás, investiga o culto a
esse mito. Seu trabalho, que mescla história, memória, literatura e biografia, deu‑se
a partir da análise das cartas de Bolívar (2.815), buscando identificar os vínculos
construídos entre a memória individual, a memória coletiva e a historiografia em
torno das independências e de Simón Bolívar.

Sua análise é bastante original, já que utiliza as missivas para buscar a


subjetividade de Bolívar e dos diferentes atores históricos que aparecem
nas cartas. A historiadora procura apresentar o mundo do general a partir
do contexto depreendido das correspondências, sem seguir a cronologia
tradicional, pois seu objetivo central é investigar os temas mais relevantes
do epistolário, debruçando‑se sobre o que se tornou importante para Bolívar
no contexto em que vivia.

O que lhe interessa não é compreender por que Bolívar foi escolhido ícone
das independências latino‑americanas, mas, sim, como ele produziu esta
escolha ao criar seu próprio mito. Para a autora, “Simón Bolívar torna‑se
o Libertador, primeiro, por suas ações e suas palavras, tão valiosas como a
espada; segundo, pelo efeito inebriante que o ideal de liberdade produz em
meio à memória coletiva” (DULCI, 2012).

Para completar, Dulci afirma que, para a autora:

É a partir da fusão entre a necessidade de legitimidade, determinada


pelo jogo político do presente, e o desejo de memória, delimitado pela
perspectiva do futuro, que o missivista constrói e solidifica a memória da
indispensabilidade.

88
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

Isso, a nosso ver, corrobora toda a visão que estamos buscando construir acerca dos envolvidos nos
eventos mencionados.

Figura 26 – Monumento ao libertador Bolívar, na Colômbia

6 AMÉRICA ANDINA E PLATINA

Os principais acontecimentos relacionados às independências na América Hispânica não


ocorreram de forma localizada, respeitando os limites que seriam, depois, nacionais. A crise na
antiga região de Nova Granada, de alguma maneira, se relacionava com a crise no Alto Peru,
região integrante do Rio da Prata. Assim, a parte mais ao norte da América Espanhola se ligava,
também, com a região andina e a região platina, fazendo as diferentes dinâmicas se relacionarem
quase num sentido continental, ultrapassando, no limite, a América do Sul e chegando à Central
e mesmo à do Norte.

6.1 Chile

Podemos considerar também como exemplo das diferentes tensões existentes o Chile no início do
século XIX. A libertação teve como cabeça Bernardo O’Higgins Riquelme, curiosamente filho de um
antigo vice‑rei espanhol. As disputas lá não tinham características étnicas, mas sim diferenças entre os
interesses de fazendeiros, agricultores e mineiros – o que marcou significativamente o país ainda no
século XX:

“A luta constante era entre mineradores–industriais contra setores latifundiários, representando as


disputas pelo domínio e controle do Estado” (SEGALL apud RAMOS, 2012, p. 163, tradução nossa).

Existiam conflitos entre os setores proprietários. Os grandes exportadores de trigo desejavam comércio
internacional livre, sem barreiras impostas por um governo central – e essa reivindicação livre‑cambista
constituiu outro dos traços comuns da América hispânica, do Brasil e dos Estados Unidos no século XIX.
O’Higgins, mais ligado a San Martín, aproximava‑se dos britânicos em termos comerciais, sendo visto
89
Unidade II

politicamente como um conservador – o que, grosso modo, pode ser compreendido como favorável ao
governo central mais forte. Seu opositor no plano interno era José Miguel Carrera – militar que simbolizava
o poder para a burguesia mineradora. Era, assim, visto como mais progressista politicamente e travou
relações com os Estados Unidos envolvendo o comércio no Pacífico. O liberalismo que começava a ganhar
força defendia, de um lado, a abertura dos mercados, e, de outro, uma maior participação popular na
política, nas decisões governamentais, na realização de leis que garantissem direitos e liberdades
individuais, igualdade de direitos e modernização da educação – ideário tributário diretamente dos lemas
da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. José Miguel Carrera compôs juntamente com
Bernardo O’Higgins e José Gaspar Marín a Junta de Governo, que conduziu o processo de independência.

Figura 27 – Bernardo O’Higgins, líder das lutas de independência no Chile

O’Higgins, diante da ameaça espanhola na guerra de libertação e também devido à oposição interna
de Carrera, escreveu aos ingleses solicitando apoio em troca de recompensas, o que resultou num
empréstimo direto da Coroa Britânica de 1 milhão de libras esterlinas.

O mecanismo de fixação do capitalismo inglês funcionava buscando apoios dentro dos países
independentes – o que era conseguido, muitas vezes, por meio de empréstimos significativos, como foi
o caso da relação estabelecida com os portenhos e, o que nos é mais significativo, com o próprio Brasil.

Lembrete

No momento do reconhecimento da Independência do Brasil pela


Coroa Britânica, além da obtenção da renovação dos Tratados de 1810
(que passaram a ser os Tratados de Reconhecimento da Independência de
1827), significativamente vantajosa aos ingleses, ainda houve um vultoso
empréstimo de 2 milhões de libras esterlinas ao Brasil para o pagamento
da indenização devida, por acordo, aos portugueses, em razão da perda
da colônia.
90
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

A manutenção do poder das elites latifundiárias seria um processo repleto de conflitos – como
esses entre os proprietários das minas e os fazendeiros. Vale notar que, apesar de termos afirmado
que no Chile a questão não era necessariamente étnica, como o foi em diversas outras regiões, esse
elemento não estava completamente ausente da sociedade chilena, uma vez que o controle estatal
sobre o território somente foi obtido em fins do século XIX, justamente quando o Estado conseguiu
se impor aos indígenas de origem mapuche (grupo presente até os dias de hoje no país e ativo em
suas reivindicações).

Saiba mais

O grupo dos mapuches tem como palavras de ordem para fazer


reivindicações ao Estado chileno: Justicia, Territorio, Libre Determinación, o
que é tomado, geralmente, como uma atitude subversiva e que necessita de
forte repressão para ser contida. Para ter contato com as discussões atuais
que envolvem questões como essa, indicamos:

TEMPO: revista do departamento de história da UFF. Dossiê os índios na


história: abordagens interdisciplinares. Niterói: UFF, v. 12, n. 23, jul. 2007.

Na mesma revista, indicamos também o artigo:

BOCCARA, G. Poder colonial e etnicidade no Chile: territorialização e


reestruturação entre os mapuche da época colonial. Tempo, Niterói, v. 12,
n. 23, jul. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/
v12n23a05.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2015.

As disputas pelas terras no Chile logo no nascimento do país independente envolveram características
sociais e políticas, e isso ficou mais evidente quando o religioso Frei Antonio Orihuela, um franciscano,
chegou a pedir ao Congresso de 1811 a entrega das terras aos camponeses pobres – o que foi percebido
como uma manobra do grupo de Carrera contra as origens sociais do poder das elites latifundiárias.
Do ponto de vista dos fazendeiros, tratava‑se de uma enorme ameaça a sua existência como classe,
mas, para a burguesia que a articulava, era uma maneira de romper monopólios seculares e modernizar
economicamente o país. Isso, entretanto, fracassou.

A mudança política não era, uma vez mais, percebida como mudança social radical. Malogrado
o projeto de modernização (também em função de articulações de setores econômicos ingleses que
dominavam a exportação e a importação para o país, bem como, de maneira crescente, as áreas de
mineração), tratou de firmar-se uma memória nacional não em torno do chefe do grupo derrotado,
Carrera, mas sim em torno de Bernardo O’Higgins, que, nas palavras do próprio representante de Sua
Majestade, no Chile, se adotasse a proteção dos britânicos e seguisse seus princípios liberais, poderia ser
visto como o pai do país que nascia.

91
Unidade II

Bernardo O’Higgins ganhou, assim, espaço no panteão dos Libertadores da América, deixando José
Miguel Carrera quase nas sombras, bem como líderes de grupos populares, que quase nada aparecem
atualmente na história. No caso, estamos nos referindo a Manuel Rodríguez, caudilho de origens
populares e opositor ferrenho dos grupos latifundiários e, portanto, inimigo de O’Higgins que tombou
assassinado. Ramos (2012, p. 165) aponta que existem, em músicas chilenas, menções a ele, o que
deixa marginalmente desenhada sua importância, sobrevivendo em canções e memórias populares que
dificilmente são contadas em manuais de história aos quais o grande público e os alunos chilenos têm
acesso frequente.

Exemplo de aplicação

Tomando o exemplo citado anteriormente de um líder popular que sobrevive nas artes, no caso,
música, na América Latina, você consegue mencionar outras figuras históricas que também passam
por um processo semelhante? Valem os nomes de qualquer região e de qualquer período, não apenas
do século XIX. Sugerimos procurar em filmes, biografias recentes, músicas e outras expressões artísticas
igualmente relevantes.

Em sua breve introdução ao texto de Gabriel Passetti, a historiadora Maria Ligia Coelho Prado
ressalta um aspecto aparentemente prosaico, mas que norteia quase todo o nosso trabalho
neste ponto de nosso livro‑texto ao apontar que, na realidade, os estudos devem considerar que
Bernardo O’Higgins:

[...] foi bastante destacado e revisto pela história, transformado em herói


nacional, aqui se pretende vê‑lo como um homem de seu tempo, com
ideias e contradições próprias de sua época, além de suas particularidades.
Procura‑se compreender suas ações e objetivos, mas também as formas
pelas quais as gerações futuras entenderam a ele e a seus contemporâneos,
analisando‑os e ressignificando‑os em momentos distintos e com finalidades
às vezes até opostas (PRADO, 2008, p. 10).

A mesma historiadora completa:

[...] acompanhar a biografia do homem tido como “o pai da pátria


chilena”, compreendendo‑o dentro de sua época e sociedade, mas
também procura entender os motivos que levaram multidões de
desconhecidos a se engajar nas lutas contra a Espanha. No começo do
século XIX, pessoas morreram, se feriram, investiram vidas e riquezas em
lutas por projetos político‑sociais que não se sabia se seriam vitoriosos.
Alguns se tornaram “heróis nacionais”, outros não. Como que aconteceu
isso? Por quê? (PRADO, 2008, p. 10).

92
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

Lembrete

Com essas citações reafirmamos nossa perspectiva de questionar as


construções em torno de personagens que, por razões diversas, foram
rotulados com o título de “pais da pátria”. Dessa maneira, lembramos que
estamos abordando a construção de personagens heroicos, uns mais e
outros menos, e que o breve recuo ao momento das independências não
significa que essa unidade seja sobre independências, pois não o é.

Nosso intuito mais imediato é buscar os aspectos mais significativos da construção de figuras que se
convertem em grandes senhores da guerra que, no plano interno, não haviam “pacificado” seus territórios.

Nossa intenção é percorrer diferentes regiões e figuras históricas consagradas, mas, fundamentalmente,
estamos buscando os comportamentos políticos que mais influenciaram as populações por quase toda
a América Latina. Dessa forma, precisamos olhar não apenas para os grandes feitos dos “pais da pátria”,
mas também buscar ver as realidades das disputas internas como quadros muito mais complexos em que
nem todos os que se envolveram na construção dessas nações pensavam exatamente no mesmo sentido
e buscando o mesmo desenho institucional e político. No caso, estamos nos referindo diretamente à
presença de grandes líderes políticos regionais que se envolviam em disputas com seus pares e com
os próprios Estados que lentamente se firmavam, ou ainda que investiam contra o poder central na
tentativa de obter o seu controle e defender seus interesses e os de seus apoiadores.

Os conflitos na América do Sul não respeitavam as atuais fronteiras dos Estados nacionais,
frequentemente envolvendo áreas que hoje estão em diferentes países, como Chile e Argentina. O’Higgins,
que havia recorrido ao auxílio de San Martín – designado por Buenos Aires para dar combate aos
realistas e levar a cabo a independência –, sofria a oposição dos Carrera, que naquele momento estavam
na Argentina e se chocavam também contra o poder de Buenos Aires. Os atritos se espalhavam também
no interior, onde caudilhos enfrentavam caudilhos. No interior, o argentino Pancho Ramírez e Estanislao
López, poderosos senhores na região de Entre Rios e Santa Fé, comandavam mestiços armados (na
Argentina, gauchos) e indígenas, sendo controladores de importantes milícias locais. Auxiliando Carrera,
atacaram as províncias de Córdoba, San Luís, Mendoza e Buenos Aires. As investidas cessaram quando
foram derrotados em Córdoba. Então os irmãos Carrera foram presos, julgados e fuzilados.

As disputas internas e a aproximação da Loja Maçônica de Buenos Aires, Lautaro, na qual era irmão
de San Martín, bem como as mortes dos opositores, desgastavam sobremaneira a liderança de O’Higgins,
que chegou a renunciar ao cargo de chefe da república e partiu para o Peru, onde faleceu em 1842, ao
que tudo indica, em razão de complicações cardíacas.

O quadro interno do Chile, em termos políticos, era extremamente conturbado, causando, como
foi dito, a saída do próprio O’Higgins do país. Contudo, isso não era o suficiente para a pacificação
interna, pois as forças em movimento ainda não tinham sido acomodadas. Para se ter a medida da crise,
em apenas uma única década, foram quatro Constituições – o que evidenciava os conflitos abertos

93
Unidade II

e muito intensos entre os projetos já mencionados de centralização contra a descentralização. Ainda


como indica Passetti (2008), os setores liberais – federalistas – eram partidários da descentralização
e de um Estado laico, cuja religião a este fosse submetida. Esses pontos eram irredutíveis para os
conservadores, que defendiam o caminho da centralização – com um Estado forte e consolidado contra
os localismos, e a organização de um país definitivamente católico. Outro ponto característico daqueles
liberais era o Executivo mais forte que os demais poderes. Os criollos continuavam a se enfrentar nos
momentos posteriores à independência, e somente após abril de 1830, com a Batalha de Lircay, é que os
conservadores conseguiram assumir o poder e controlar o país pelo período de trinta anos.

É preciso ressaltar que o país estruturado seria elitista, conservador, católico e centralizado –
mas isso apenas após superar os atritos entre o poder central e os poderes dos grandes senhores
locais. Passetti (2008) observa que os líderes não foram unanimidade, e os confrontos entre as elites
foram sendo enfatizados cada vez menos, o que dava lugar à construção da ideia de Libertadores.
No entanto, a relevância da observação de Passetti não está na percepção dessa construção quase
propagandística, mas no que é o mais importante, na indicação do momento histórico em que essas
elaborações eram desenvolvidas.

Foi ainda no século XIX que a construção dos heróis nacionais se estabeleceu – mas, no caso do
Brasil, isso seria em alguma medida alterado, pois a monarquia dos Bragança, ao ser derrubada pelos
republicanos, perdeu a condição de imagem da nação. Assim, a escolha do novo herói recaiu sobre
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.

Contudo, voltando ao contexto da construção inicial, San Martín, Bolívar, O’Higgins, Washington, Pedro I
(Defensor Perpétuo do Brasil) e José Bonifácio (o Patriarca da Independência) foram instrumentalizados por
setores sociais altamente elitizados que escolhiam as qualidades que pedagogicamente queriam definir em seus
países, afastando modelos alternativos e contestatórios – como foram os outros líderes locais tão combatidos
internamente nesses países. A retórica em torno desses heróis geralmente atribui a eles papéis que seriam mais
“equilibrados”, e os extremismos, radicalismos, particularismos e aquilo que no Brasil do século XIX era visto
como anarquia seriam afastados e derrotados, ficando sob o olhar apenas aquilo tido como bom exemplo –
vidas dedicadas às suas pátrias. Se existiram aqueles que contribuíram com os projetos de independência, suas
participações eram tratadas com menos ênfase, sendo quase subsidiárias, e a atuação dos Libertadores é que
seria exemplar.

No caso do Chile, mas em outros países também, esse processo envolveu iconografia com a produção
de imagem que glorificava o líder político. Desse modo, um mausoléu foi erigido no Cemitério Geral de
Santiago – apesar de O’Higgins ter falecido fora do país.

Observação

Ainda segundo o texto de Passetti (2008), a construção dessas figuras


continuou sendo “atualizada” no século XX, pois a imagem de Bernando
O’Higgins se tornou símbolo das lutas pela independência e da própria
nacionalidade chilena. Pouco mais de um século após a construção do
94
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

mausoléu, o ditador chileno Augusto Pinochet, interessado em legitimar


seu governo, transferiu os restos mortais do Libertador para um novo
monumento, o “Altar da Pátria”. Este foi simbolicamente construído na
frente do palácio presidencial de La Moneda – o mesmo bombardeado
em 1973 durante o golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador
Allende – para legitimar, através da figura do Libertador, o governo ali
instalado pela força das armas.

No entanto, o autor continua e afirma que em 2000 uma nova elaboração


sobre O’Higgins foi feita, pois o governo de Ricardo Lagos mandou demolir
o Altar da Pátria e determinou a construção da Praça da Cidadania, onde
estão os restos mortais do Libertador.

O caudilho Manuel Rodriguez, antes relegado às trevas na historiografia chilena, recentemente foi
resgatado como um herói que, ao contrário de O’Higgins, lutou como um guerrilheiro contra o governo
e que acabou sendo perseguido e derrotado pelo poder central. Seu símbolo foi tão poderoso que havia
mesmo uma guerrilha no Chile da década de 1980 levando seu nome. Assim, a construção e elaboração
de heróis nacionais não é um processo que deve ser visto como algo pertencente a um distante passado,
e sim como a produção de sociedades dinâmicas e em constantes modificações.

Figura 28 – América do Sul – destaques: Chile, Bolívia, Argentina, Uruguai e Paraguai

6.2 Região Platina

É oportuno lembrar que nossa perspectiva ao observar a América Independente no século XIX deve
contemplar olhares mais locais em alguns momentos e noutros voltar a pensar os eventos mais regionais,
uma vez que, apesar de particularidades, muito era compartilhado por diferentes nações, ao menos em
se tratando de América do Sul.

O nosso olhar agora busca a região mais ao sul, que seria parte do Vice‑Reino do Rio da Prata no
Período Colonial. Já mencionamos que foi de Buenos Aires que partiram os esforços – personalizados
em San Martín – para expulsar os realistas que se refugiaram no Peru. Além disso, foi da Argentina que
partiram forças para apoiar os irmãos Carrera contra O’Higgins e foi no mesmo território platino, na
95
Unidade II

província de Córdoba, que os irmãos Carrera foram derrotados, julgados e executados. Havia, portanto,
clara ligação entre as pessoas de diversas regiões na América hispânica.

A importância econômica portenha, com sua dinâmica burguesia comercial pró‑Inglaterra, opôs‑se,
no decorrer do século XIX, aos interesses de Buenos Aires e dos caudilhos do interior, principalmente das
províncias de Entre Rios, Santa Fé e Corrientes. Contudo, as maior preocupação entre os construtores do
poder de Buenos Aires era a figura de Artigas – tido como o mais famoso e mais forte caudilho popular
da região das Províncias Unidas – sendo chamado de Protetor dos Povos Livres.

O caudilho Artigas era um problema também para o Brasil e o Uruguai. Logo após a
Independência do Brasil, em 1831, a Província Cisplatina se separou do Brasil e muito contribuiu
com o enfraquecimento de Pedro I.

Figura 29 – José Gervasio Artigas

O interior argentino era sacudido pelos senhores locais com seus exércitos particulares numa luta
de resistência contra o monopólio portuário exercido por Buenos Aires e contra a abertura econômica
vinculada aos produtos ingleses. A capital argentina detinha a aduana, que controlava o comércio
com o interior e o Prata. Isso provocava resistências – sendo o caso mais emblemático o da República
do Paraguai, que buscou evitar se enredar tanto pelo capital inglês quanto pelo domínio portenho.
Seguindo essa proposta, ao se tornar independente, a nação se fechou ao exterior – desde os tempos de
Rodríguez de Francia até o governo de Solano López, por ocasião da Guerra do Paraguai.

José Francisco de San Martín y Matorras, ou simplesmente San Martín, considerado o “pai da pátria”
argentino, tinha a percepção estratégica de que assegurar a independência em relação à Espanha não
era tratar apenas da Argentina e do porto de Buenos Aires – ele achava que a questão estava muito além
disso. Em suas lutas, levou seus exércitos até o Peru, expulsando os realistas, mas também voltando seu
olhar mais ao sul, foco constante de lutas e instabilidades.

É importante ressaltar que, apesar de considerado como um dos Libertadores, San Martín, assim
como Bernardo O’Higgins e o próprio Bolívar, não era unanimidade. Também no território das Províncias
Unidas, os conflitos locais ganhavam corpo. Quando, por exemplo, San Martín recorreu ao governo de
Buenos Aires pedindo auxílio (pois só de lá poderia obter o “dinheiro, o vestuário e o armamento” de
96
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

que necessitava), o governo portenho postergou a decisão de ajudá‑lo. Mesmo com sete províncias
apoiando San Martín, o governo central inventava subterfúgios contra o fortalecimento do chefe militar
longe de seu controle direto. Na interpretação de Ramos (2012), essa seria uma forma planejada de
derrubar San Martín, assim como havia sido feito com o líder uruguaio, o caudilho Artigas, que, para o
autor, foi apunhalado pelas costas.

Outro homem de enorme destaque nos momentos iniciais da Argentina independente foi Bernardino
Rivadavia – figura-chave da política portenha que se opunha ao fortalecimento de San Martín e de um
projeto de unidade em torno das antigas províncias. Ao evitar a união, separava‑se a região do Alto Peru
e também a Banda Oriental – no momento, a Cisplatina, que pertencia ao Brasil.

Figura 30 – Cisplatina, atual Uruguai

As lutas de San Martín se desenrolavam em locais tão distantes que foi preciso que ele se encontrasse
com o outro homem visto como libertador das Américas, no caso, O Libertador. Assim, tiveram uma
audiência em Guayaquil, no atual Equador, em 1822, para decidir os rumos dos movimentos de
independência pela América hispânica. A necessidade do encontro era articular as forças contra os
espanhóis, ainda em solo americano. Além disso, o encontro tinha como motivo o fato de as forças de
San Martín estarem debilitadas e desgastadas. Por fim, em razão das recusas de auxílio de Buenos Aires,
ele poderia, no máximo, ajudar Bolívar. Tal encontro ficou registrado como a Entrevista de Guayaquil,
e no lugar onde teria ocorrido hoje existem duas grandes estátuas dos Libertadores dando‑se as mãos,
num gesto de convergência e aproximação.

O encontro se deu no Equador, cujo libertador era um militar muito próximo a Simón Bolívar,
chamado Sucre – também lá idolatrado como o “pai da pátria” e merecedor, inclusive, de nomear
a moeda nacional equatoriana até o final do século XX, quando o país passou por um processo de
dolarização. Mas voltemos ao século XIX. Bolívar escreveu a Sucre:

97
Unidade II

Nem você, nem eu, nem o Congresso do Peru, nem da Colômbia, podemos
romper ou violar a base do direito público que temos reconhecido na
América. Nesta base é que os governos republicanos se fundamentam entre
os limites dos antigos vice‑reinos, capitanias gerais ou presidencias como o
Chile (BOLÍVAR apud RAMOS, 2012, p. 183).

Em 1825, o Congresso comandado por Rivadavia em Buenos Aires declarou:

Ainda que as quatro províncias do Alto Peru tenham sempre pertencido à


Argentina, é a vontade do Congresso Geral Constituinte que elas obtenham
plena liberdade para dispor de sua sorte, segundo acreditem mais conveniente
a seus interesses e felicidade.

É importante salientar que, além das disputas regionais, nesse momento, se buscava, a partir de
Buenos Aires, enfraquecer San Martín – projeto que, ao que parecia, estava funcionando.

Observação

O Vice‑Reino do Prata foi criado em 1776, englobando quatro


gobernaciones: Río de la Plata, Tucumán, Paraguai (ou Guayrá) e
Cuyo. Esta última era ligada ao governo da capitania do Chile. A nova
administração era dividida em oito intendências da seguinte forma: 1)
intendência de Buenos Aires (capital em Buenos Aires), englobando Santa
Fe, Corrientes, Montevidéu, Maldonado, Río Negro (costa patagônica), San
Miguel, Yapeyú e Concepción; 2) intendência de Córdoba del Tucumán
(capital em Córdoba), englobando Mendoza, San Juan, San Luis e La Rioja;
3) intendência de Salta de Tucumán (capital em Salta), englobando San
Miguel de Tucumán, Santiago del Estero, Catamarca, Jujuy, Nueva Orán
e Puno; 4) intendência do Paraguai (capital em Asunción), englobando
Candelaria, Santiago, Villarica, Curuguati e Villa Real; 5) intendência
de Potosí (capital em Potosí), englobando Parco, Chayanta, Chicas,
Tarija, Lipes e Atacama; 6) intendência de La Paz (com capital em La
Paz), englobando Sicasica, Pacages, Omasuyos, Larecaja, Cholumani e
Apolobamba; 7) intendência de Cochabamba (capital em Cochabamba),
englobando Santa Cruz de La Sierra, Valle Grande, Mizque, Clisa, Arque,
Tapacari, Hayopaya e Sacaba; 8) intendência de Charcas (capital em La
Plata), englobando Yamparaes, Tomina, Pilaya e Oruro. De todas essas
regiões, apenas as três primeiras foram a atual República Argentina, e
parte da antiga intendência de Buenos Aires é jurisdição da República do
Uruguai, inclusive a capital Montevidéu (PIMENTA, 2002).

Dessa forma, ressaltamos como absolutamente importante não acreditar simplesmente que
as nações já estivessem presentes dentro das áreas coloniais e que fossem, necessariamente, seus
98
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

correspondentes espaciais. A história da América independente no século XIX não é a mera continuação
da situação colonial.

A construção da imagem nacional era um problema comum aos americanos. Desse modo, de norte
a sul do continente, foram se desenhando os traços mais gerais daquelas figuras que devem representar
a essência de cada uma dessas nações.

No caso platino, a intensidade dos conflitos entre caudilhos e entre eles e o próprio Estado que
procurava firmar‑se produzia obras absolutamente fundamentais para se entender esse caráter nacional.
Um dos textos mais significativos sobre o tema é um livro chamado Facundo ou Civilização e Barbárie,
escrito por Domingo Faustino Sarmiento, que traça uma biografia de um dos mais exemplares caudilhos
platinos do século XIX, Facundo Quiroga.

Facundo era uma figura ambígua, pois ora apoiava, ora combatia o poder do presidente da república
Rosas. Ele foi assassinado em 1835. Prado (1985) indica com muita propriedade que Facundo acabou
corporificando a ideia de ferocidade, de ódio às leis (e, portanto, de contrariedade a uma ordem liberal
fundamentada, justamente, nas leis), enfim, um primitivo barbarismo. A autora ressalta que Domingo
Faustino Sarmiento era um admirador dos Estados Unidos em razão de seu sistema educacional e
também de seu progresso material, que era tido como um sinal de civilização.

Se retornássemos à questão da constituição dos Estados Nacionais e da eleição de seus “pais da


pátria”, ainda seguindo o projeto de compreender quem seriam os Libertadores, poderíamos continuar
a observar o quadro político da região platina. Buenos Aires, que buscava firmar-se regionalmente no
contexto de crise do sistema colonial metropolitano, encontrava fortes resistências armadas, entrando
em guerra com Montevidéu, por exemplo – como era a situação em 1811.

Nesse ponto, é necessário ressaltar que o Brasil também tinha seus interesses no Prata, e os teria
no decorrer de todo o século XIX. Atento às instabilidades regionais, também procurava agir quando
considerava mais oportuno, e um desses momentos ocorreu durante o Período Joanino. A intervenção
contra Montevidéu foi comandada por Diogo de Sousa, e a reação local foi imediata, pois Montevidéu e
Buenos Aires assinaram um armistício diante da ameaça portuguesa. Nesse momento crítico, destaca-
se uma liderança local que ganhou um espaço significativo da história da região do rio da Prata, mas,
quase como uma correspondência à sua relevância, foi execrado por Buenos Aires e mesmo pelo Brasil.

A importância de Artigas é assinalada por Pimenta (2002) quando afirma que:

Não obstante ser Artigas comumente considerado o precursor de um


federalismo na região do Prata por propor uma solução política incompatível
com a centralizadora encabeçada por Buenos Aires, vale lembrar que no
pensamento político da época não era esse o sentido de sua proposta. É bem
verdade que, aos poucos, os defensores do unitarismo passarão a referir‑se
a seus opositores como “federalistas”, mas isso se dará já em outro contexto,
alguns anos depois. As “instruções” de Artigas aos deputados orientais
traziam em si a ideia da preservação de um Estado soberano e autônomo
99
Unidade II

ligado, pela confederação, às demais províncias do Prata. [...] tal espacialidade


reivindicada por Artigas não tem correspondência em nenhum organismo
político atual (PIMENTA, 2002, p. 115).

As observações seguintes, ainda de Pimenta (2002), nos indicam que dos interesses localistas e de
seus choques com os projetos portenhos veio a desconstrução, ao menos em parte, da figura de grande
líder local – como era visto Artigas na época dos acontecimentos e por seus partidários.

Essa situação marcou o início de um período de extrema tensão entre as


duas vertentes políticas representadas por Artigas e pelo governo de Buenos
Aires. O último adquiriu um centralismo ainda maior a partir de janeiro do
ano seguinte (1814) [...] foram atribuídos amplos poderes a Gervasio Antonio
de Posadas [...] representante da corrente portenha mais acirradamente
antiartiguista. Logo nas primeiras semanas do novo governo, um decreto de
11 de fevereiro declarou Artigas “traidor da pátria”, e outro de 7 de março
criou a “Província Oriental” (PIMENTA, 2002, p. 118).

A situação platina, na ótica do governo joanino estabelecido no Rio de Janeiro, era parte de seus
interesses. No convulsionado (para o mundo português) ano de 1817, o Uruguai sofria com a nova
intervenção portuguesa, cuja maior relevância foi incorporar a área dos domínios dos Braganças, ao
menos até a crise do Primeiro Reinado no Brasil. Além disso, foi o Exército português que bateu Artigas
definitivamente, obrigando sua fuga para o Paraguai, onde ele viveu até sua morte, em 1850.

Com o crepúsculo desse líder local, novos “pais da pátria” foram construídos na região. No caso
argentino, apenas para pontuar as dificuldades em manter a unidade, devemos lembrar que, durante
toda a década de 1810, foram criadas nada menos que sete repúblicas autônomas – o que por si só já
chama a atenção. Dessa forma, novos atores políticos entraram em cena ou buscaram se firmar, e, ao
menos naquela época, isso ocorria contra as imagens de San Martín e de Artigas, “reabilitados” anos
depois para servirem como úteis propagandistas nos nascentes Estados Nacionais que se firmavam.

Vale lembrar que as independências não garantiram de imediato nem unidade, nem uma simples
continuidade entre passado colonial e realidade nacional, pois a ideia de nação como referência
fundamental é uma construção posterior – bem como as projeções que daí vieram.

As escolhas de determinados heróis nacionais excluíram personagens que também tiveram grande
relevância. É importante notar que, no caso argentino, a complexidade que envolve San Martín o leva de
herói a quase santo, tal como Ricardo Rojas, em 1933, teria se referido a San Martín, o Santo da Espada.

Os principais questionamentos atualmente não se dão mais em torno da grandiosidade dos feitos de
um único herói. Scatena (2008) afirma com propriedade que:

Mesmo em meio a tantas glórias, há sempre debilidades, contradições ou


fraquezas que permeiam as trajetórias individuais, sendo isso, justamente, o
que confere uma dimensão menos idealizada e, consequentemente, mais real
100
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

e humana ao personagem. Todas essas perspectivas críticas vêm enriquecendo


os debates a respeito dessa figura tão aclamada e mitificada, sem que se tenha
em vista o objetivo de anular suas contribuições para a história. Trata‑se de
um personagem de suma importância para a América do Sul e é de extremo
interesse não só o conhecimento de sua vida, mas também das histórias
elaboradas em torno de sua figura (SCATENA, 2008, p. 11).

Considerando a relevância da região platina e das relações entre antigos participantes de uma
mesma dinâmica colonial, mas já mirando possibilidades futuras pós‑coloniais, o governo de Buenos
Aires encarregou San Martín de avançar contra os espanhóis. Em seu “batismo de armas”, à frente de
cerca de 120 soldados, derrotou 250 espanhóis na Batalha de São Lourenço (ocorrida em 2 de fevereiro
de 1813). Esse feito contribuiu depois com a ideia de destreza em campo de batalha e de líder valente:

Foi nesse momento que ele traçou o plano de libertar o Peru, que era um
dos principais centros dos realistas na América Espanhola em razão de
ser importante Vice‑Reino desde o período inicial da colonização, o que
contribuiu para a formação de uma sociedade calcada em instituições
que tradicionalmente representavam o poder colonial. [...] o plano de San
Martín ia na contramão das estratégias utilizadas até então, por meio das
quais tentava‑se chegar ao Peru através da atual Bolívia, o que era quase
impossível, visto a resistência das forças militares realistas concentradas
naquela área. Diante disso, San Martín projetou cruzar a Cordilheira dos
Andes, passando ao Chile e dali pegando o caminho pelo Pacífico até o Peru.
Acreditava que a derrubada de Lima era fundamental para tomar o restante
do território deste Vice‑Reino (SCATENA, 2008, p. 25).

Talvez o episódio que mais tenha marcado esse aspecto seja o avanço em seu “Paso de los Andes”,
em 1817, para poder atacar os realistas. Apesar das ordens de avançar rumo ao Alto Peru, o governo
de Buenos Aires não estava livre de suas contradições internas. Havia aqueles que apostavam mais em
um esforço centralizador e em, a partir da capital, dominar as províncias. Essa maneira de proceder
politicamente seria conhecida como unitária e vista como o movimento de conservadores extremamente
perigosos e agressivos no sentido de retirar autonomias locais. Por outro lado, os partidários dessa
referida autonomia local, na qual as províncias não seriam subordinadas, eram, na Argentina, tidos como
federalistas e politicamente vistos como mais liberais. A tensão entre centralização e descentralização
era enorme, mas esse não era o único foco de instabilidades. O poder dos grandes senhores locais, ao se
estruturar, transformou‑se num problema de difícil solução e que, grosso modo, atravessou o século XIX
e chegou até a influenciar a política no Brasil.

6.3 O caudilhismo

As recorrentes intervenções do Brasil no Prata, ao longo do XIX, buscavam combater alguns


desses poderes locais – ao mesmo tempo que auxiliava outros, é verdade. Os líderes desses grupos
tanto na Argentina quanto no Uruguai são até hoje chamados, em livros didáticos e também na
historiografia, de caudilhos.
101
Unidade II

Observação

De acordo com Azevedo (1990), caudilhismo é:

Termo de origem espanhola, empregado para designar regime político


existente na maior parte dos países da América Espanhola na primeira
metade do século XIX e parte da segunda. O nome decorre das chefias
que de dividem o poder, geralmente de origem militar e provenientes,
igualmente, da desmobilização dos exércitos ocorrida nas guerras
de independência contra o inimigo espanhol. Os caudilhos, nome
pelo qual essas lideranças são identificadas, eram pessoas não raro
dotadas de pouca instrução, o que era compensado, porém, pela
eficácia e pelo carisma com que conduziam seus comandados. O
caudilhismo possui uma tendência inata a se transformar em ditadura
e, a exemplo dos tiranos gregos, procura estabelecer vinculações
ou pactos com os Estados que praticam esse regime. O termo tem
sido empregado na América Latina para indicar, também, lideranças
regionais, sem que tenha, entretanto, qualquer aproximação
sociológica com o coronelismo, uma das formas mais consistentes, em
determinada época, do mandonismo regional brasileiro. Na Espanha,
a ditadura franquista foi oficialmente institucionalizada como uma
manifestação declarada de caudilhismo. Seu chefe, o general Franco,
era abertamente chamado de caudilho. Durante a guerra civil que
ensanguentou aquele país, o tema das forças antirrepublicanas era:
uma fé, uma pátria, um caudilho. O termo caudilho foi também usado
para identificar os conquistadores espanhóis do novo mundo, sem,
nesse caso, expressar o aprofundamento político e sociológico que
tem modernamente (AZEVEDO, 1990, p. 83).

Feita essa apresentação conceitual, cabe ressaltar que esses líderes locais tinham poder porque
eram amparados por milícias extremamente leais ao chefe – com um sentimento de lealdade militar
– e conseguiam estender suas influências a setores vistos pela burguesia citadina como perigosos e
instáveis. Os cavaleiros armados, os peões que cuidavam do gado nos pampas lá chamados de gauchos
e, no Brasil, gaúchos, eram uma poderosa arma, a despeito da condição de mestiços. De fato, por
causa disso, eram oriundos dos diversos mundos que compunham a sociedade de origem colonial e
buscavam seu espaço social e de sobrevivência política. A população mais rústica do interior inspirava
receio naqueles que na capital se viam como mais elitizados, intelectualizados e mesmo europeizados.

Para se ter a dimensão das possibilidades de enfrentamento, os políticos portenhos, em 1819, fizeram
uma constituição atendendo às suas demandas centralizadoras – vale dizer, unitaristas. A possibilidade
de intervenção nas províncias com a nomeação dos governos de províncias acirrou os ânimos.

102
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

Observação

No Brasil, mais ou menos nessa época, as disputas políticas também


giravam em torno desses aspectos de centralização e descentralização. Foi um
ponto de muita controvérsia o governo do Rio de Janeiro ter a prerrogativa
de impor os presidentes de províncias – equivalentes a governadores. Esse
foi um dos fatores que fizeram eclodir a Confederação do Equador, em 1824,
pois o governo do Rio de Janeiro (centro) insistia em determinar quem seria o
presidente de Pernambuco, mesmo considerando que a escolha tinha recaído
em um político fortemente combatido por importantes setores locais. A
imposição foi percebida na época como uma intromissão do governo central
nos interesses locais e, nessa medida, como despotismo.

Contudo, tratando do Rio da Prata ainda:

A Constituição também deixava aberta uma possibilidade para a instauração


de uma monarquia constitucional. Em 1820, mediante a chamada Batalha
de Cepeda, o Congresso Nacional foi dissolvido e iniciou‑se uma fase em
que se formaram governos independentes e autônomos com relação a
um poder central. [...] Buenos Aires foi governado entre 1820 e 1829 por
Martín Rodríguez e Bernardino Rivadavia, entretanto, em 1829, o governo
de Buenos Aires passaria às mãos de um caudilho federalista, Juan Manuel
de Rosas, execrado pelos unitários e cujo poder teria uma longa vigência
(1829 a 1832 e 1835 a 1852) (SCATENA, 2008, p. 26).

Apesar da enorme relevância da figura de San Martín, ombreando inclusive com Simón Bolívar e,
para alguns, também merecedor do epíteto de Libertador, em razão de atritos locais e desentendimentos
quando aos rumos dos processos de independência, San Martín deixou a América e partiu para a Europa
em 1824, onde viveu na Bélgica e na França e encontrou a morte em 1850. Anos depois de seu falecimento,
foi trasladado para Buenos Aires e atualmente repousa no interior da Catedral Metropolitana de Buenos
Aires – um local muito requisitado pelos turistas que visitam a capital argentina.

6.4 A construção de “heróis nacionais”

No processo de construção do culto a San Martín, que ganhou impulso justamente com a chegada
à Argentina de seus restos mortais em 1880, celebrações que afetam a vida de todos os argentinos são
realizadas todos os anos:

Além disso, desde 1933 até a atualidade, o dia 17 de agosto, aniversário de


sua morte, é feriado nacional. [...] a morte de San Martín não figura como a de
qualquer um de nós, simples mortais. Ao contrário, ela sela simbolicamente
a sua definitiva passagem para a eternidade. [...] se é verdade que todas

103
Unidade II

essas celebrações conseguiram despertar emoções sinceras de muitos


cidadãos argentinos, não se pode afirmar que as mesmas tenham sido
sempre motivadas por puro sentimento de amor à pátria, pelo menos no que
diz respeito a alguns governos que se engajaram nestas campanhas para
resgatar/preservar a memória do herói. [...] um dos principais historiadores
do país, chamado Bartolomé Mitre, foi o primeiro presidente da república
na Argentina em sua fase de unificação, entre 1862 e 1868, período em que
finalmente todas as províncias foram reunidas sob uma mesma Constituição
(SCATENA, 2008, p. 33).

Figura 31 – San Martín

A invenção dos passados nacionais frequentemente é um processo maniqueísta, no qual alguns


setores são considerados heróis da nacionalidade, enquanto outros são seus inimigos desde sempre.
Nesse caso que estamos apresentando, o herói, claro, é San Martín, mas e os inimigos? Quem seriam eles?
Seriam os caudilhos – considerados por alguns como ameaçadores da unidade nacional, ao contrário de
San Martín, líder das lutas por uma pátria unida. Vale ressaltar que, na segunda metade do século XIX,
na Argentina, as instabilidades eram tão significativas que chegavam os caudilhos a atacar e derrubar
o poder central.

Lembrando que nossa proposta passa pela construção das figuras tidas como heroicas, já no século XX,
os lideres das independências foram instrumentalizados em função de um nacionalismo que procurava
inventar a unidade nacional argentina e buscava suas raízes justamente no século de fundação do
Estado nacional e independente para eles unificado em torno de um grande chefe. O tema dos grandes
chefes continuou muito importante, e até mesmo antigos caudilhos passaram a ser rediscutidos, sendo
vistos como representantes de uma natureza de homens valentes e guerreiros. O argentino do interior
seria, assim, acomodado no seio da pátria. Foi feito um esforço importante para

[...] reabilitar publicamente a memória de Rosas, que tinha sido banida


pelos historiadores liberais. E não foi ocasional que a primeira homenagem
pública organizada pra celebrar sua memória foi feita, em 1934, justamente
em frente a uma estátua de San Martín. O líder da independência teria
ainda elogiado as ações de Rosas nos episódios de rechaço às tentativas de
104
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

invasões estrangeiras (da França e da Inglaterra) à Argentina em meados da


década de 1840, ato em razão do qual San Martín teria legado sua espada a
Rosas. Os revisionistas tentavam com isso mostrar que o pai da pátria, San
Martín, reconhecia, com este gesto, os feitos de Rosas no panteão de heróis
nacionalistas (SCATENA, 2008, p. 33).

Quando nos referimos politicamente à Argentina do século XX é muito difícil não tocar no assunto
do peronismo – assim como, ao traçar uma visão panorâmica do Brasil no século XX, necessariamente
se toca no assunto Vargas.

Juan Domingo Perón (1946-1955) aproveitou o centenário da morte de San Martín, em 1950, para
capitalizar politicamente sua imagem. Scatena (2008) indica ter sido aquele o “Ano do Libertador”.
Assim, foi construída uma imagem de San Martín que podia ser instrumentalizada pelo governo –
a ideia de um militar hábil e acima das discordâncias, que superava a dicotomia entre unitaristas e
federalistas. Vale lembrar que Perón era um militar e que o discurso populista que se escrevia nesse
momento se caracterizava, também, como um discurso de Estado de compromisso no qual o líder era
capaz de entender, e mais, de atender aos anseios de diversos setores sociais, desde que no sentido
correto e adequado da construção nacional.

Assim, visitar a Catedral Metropolitana de Buenos Aires e observar o mausoléu de seu herói nacional
equivale a procurar no Monumento do Ipiranga o mausoléu de Pedro I, mas é preciso ressaltar que, uma
vez lá, o que se nos apresenta é mais a época que mandou erigir os mausoléus – o discurso nacional
sobre seus líderes – do que essas pessoas como eram em sua dimensão não heroica e não nacionalista.

Retomando a frase célebre de Simón Bolívar, escrita em sua Carta da Jamaica, de 1815, “quem somos
nós? Não somos índios nem europeus, e sim uma espécie média entre os legítimos proprietários do país
e os usurpadores espanhóis”. Prado e Pellegrino (2014, p. 88) abordam a questão de nossa identidade
como povos americanos. As construções românticas do século XIX e a necessidade de construir as
identidades nacionais acabaram sendo objeto de muitas controvérsias.

O fundamental era forjar as nações. As elites tomaram para si tal tarefa,


procurando despertar no “povo” o sentimento de lealdade à Pátria, elevada
à categoria de entidade superior aos desejos e interesses individuais (PRADO;
PELLEGRINO, 2014, p. 88).

As indicações dos percursos desenvolvidos nessas construções que as autoras fazem são muito
importantes para que seja possível perceber o esforço como generalizado, pois, no Chile, José Toribio
Medina, no Brasil, Francisco Adolfo de Varnhagen e, no México, Carlos María de Bustamante coletavam
documentos para construir uma memória nacional coletiva.

Como um bom exemplo, basta lembrar o conhecido quadro Independência


ou Morte, do pintor brasileiro Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-
1905), que retrata D. Pedro no momento da proclamação da independência,
às margens do riacho do Ipiranga. Pintado em Florença entre 1886 e 1888,
105
Unidade II

encontra‑se exposto no Museu do Ipiranga, alcançando grande sucesso


de público. Esta tela traz forte simbologia que permanece no imaginário
brasileiro contemporâneo, fato comprovado por sua constante reprodução
em diversos suportes, incluindo livros escolares, folhetos comemorativos,
calendário[se] e imagens televisivas (PRADO; PELLEGRINO, 2014, p. 90).

Figura 32 – Independência ou Morte, de Pedro Américo

Saiba mais

Como forma de problematizar todos esses movimentos ressaltados até


aqui, nos quais processos de crises coloniais são instrumentalizados como
movimentos de construção de determinadas ordens nacionais a partir das
independências na América Latina, certamente incluindo o Brasil, indicamos
o audacioso projeto cinematográfico Libertadores, que retrata oito dos
heróis das independências latino‑americanas. Dentre os filmes produzidos
pelo projeto, recomendamos enfaticamente aquele sobre Artigas, intitulado
Artigas, la Redota.

ARTIGAS, la Redota – uma história de Artigas. Dir. César Charlone.


Uruguai: Wanda Films, 2011. 115 minutos.

El OJO del canário. Dir. Fernando Perez. Cuba: Televisión Española, 2010.
120 minutos.

HIDALGO. Dir. Antonio Serrano. México: Astillero Films, 2010. 115 minutos.

REVOLUCIÓN, el cruce de los Andes. Dir. Leandro Ipiña. Argentina: TV


Pública, 2011. 90 minutos.

106
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

Ainda estão sendo produzidos, nesse mesmo projeto, os filmes sobre


Tiradentes, Bernardo O’Higgins, Túpac Amaru e Simón Bolívar. Você pode
ter mais informações consultando o site:

<http://www.loslibertadores.net/index.php>.

Recomendamos, ainda, como uma cinebiografia de Simón Bolívar, o


recente:

O LIBERTADOR. Dir. Alberto Arvelo. Espanha; Venezuela: Producciones


Insurgentes, 2014. 119 minutos.

Resumo

Buscamos apresentar e questionar de que maneira as figuras dos


grandes libertadores são tradicionalmente tratadas tanto no senso comum
quanto em publicações que buscam construir a imagens de heróis em
diversos Estados nacionais. A preocupação que nos impõe essa investigação
vem do contato com a mais recente produção historiográfica a respeito dos
questionamentos em torno da construção das ideias de Estado e de nação
no século XIX. Elencamos as imagens de personagens como Bolívar, San
Martín e O’Higgins, discutindo não apenas seus grandes feitos ou mesmo
governos; mais que isso, procuramos entender como estavam inseridos
nos processos de disputas locais de diversos setores sociais envolvidos nos
confrontos entre centralização e descentralização.

A difícil construção dos Estados Nacionais foi um tema presente desde o


início da unidade e se refere aos mais diferentes casos, como o dos Estados
Unidos, mas o que acontecia no século XIX na América Latina (portuguesa,
espanhola ou francesa) também foi objeto de discussões.

Independentes, os novos Estados precisavam se organizar, e foram


inevitáveis os confrontos entre caudilhos e entre eles e o Estado, ou
ainda entre as diversas manifestações políticas, pensando o fenômeno do
caudilhismo. Os efeitos da Revolução Industrial, do avanço de Napoleão e
da burguesia do Porto foram apresentados e questionados.

Foram apresentados também os debates relativos à construção dos


espaços/territórios nos países da América em geral.

O culto aos Libertadores, aos gloriosos “Pais da Pátria” em diversos


países foi debatido, bem como a apresentação de outros nomes que não

107
Unidade II

são a figura central do texto. Os nomes famosos são discutidos em vários


pontos, bem como as revoltas, motins e confrontos entre os diferentes
setores sociais. Os casos de Bolívar nas Colômbia e Venezuela, San Martín
no Rio da Prata e mesmo Toussaint de Louverture foram referidos e situados
nos debates historiográficos.

O Brasil não ficou alheio aos debates internacionais em torno da ruptura


dos laços coloniais, e trabalhamos isso desde a chegada da família real
portuguesa ao Rio de Janeiro.

Os Estados Unidos receberam certo destaque em razão da Doutrina


Monroe, com a ideia de “América para os americanos” e seu debate presente
nas apresentações de congressos internacionais.

O bolivarismo foi privilegiado nas discussões, bem como os discursos


favoráveis ou contrários à sua aproximação em termos sociopolíticos
desde o século XIX até pelo menos o século XIX. As dinâmicas platina e
andina ganharam destaque também quando passamos a debater o termo
caudilhismo e as práticas a ele relacionadas.

Exercícios

Questão 1. (Enade 2011) Nas primeiras décadas do século XIX, a região sobre a qual a Espanha
mantivera um longo domínio colonial, especialmente nas áreas que hoje correspondem a Venezuela,
Colômbia, Equador, Panamá e Peru, passou por conturbações que tiveram como um de seus protagonistas
Simón Bolívar (1783-1830). O fragmento a seguir, retirado de uma carta escrita por Bolívar no ano de
1830, em Bogotá, exprime o modo pelo qual, naquele momento, ele avaliava sua participação nos
eventos que se desenrolavam em torno de si.

“Tenho sacrificado minha saúde e fortuna para assegurar a liberdade e a felicidade de minha
pátria. Tenho feito por ela tudo o que pude, mas não tenho conseguido contentá-la e fazê-la feliz.
Tudo abandonei à sabedoria do Congresso, confiando que ele efetuaria o que não pôde um indivíduo
conseguir. [...] Minhas melhores intenções têm-se convertido nos mais perversos motivos, e nos Estados
Unidos, onde eu esperava que me fizessem justiça, tenho sido também caluniado. O que eu fiz para
merecer esse tratamento? Rico desde o meu nascimento e cheio de comodidades, hoje em dia não
possuo mais do que a saúde alquebrada. Podiam meus inimigos desejarem mais? Mas fazer-me tão
destituído é obra da minha vontade. Todos os recursos e exércitos vitoriosos da Colômbia estiveram à
minha disposição individual, e minha satisfação interior é por não ter lhes causado menor dano, [esse]
é meu maior consolo” (FREDRIGO, 2010, p. 229-30).

Associando os sentimentos expostos por Bolívar nessa correspondência aos processos que ele vivia
naquele momento, conclui-se que ele estava se referindo:

108
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE

A) Ao fracasso dos esforços para obter apoio das nações estrangeiras para a consolidação de regimes
democráticos instalados na região.

B) Ao resultado das guerras civis e às dissidências entre grupos políticos e militares, que inviabilizavam
o processo de unificação da região.

C) Às dificuldades de implantação do parlamentarismo na região, não obstante as grandes somas de


investimentos realizados pelas nações democráticas.

D) Às rebeliões promovidas pela baixa oficialidade, que o levaram a impor uma ditadura caudilhista
que findou por arruinar sua trajetória política.

E) À derrota final no comando da confederação de nações, que resistia às pressões do imperialismo


inglês pelo fim do trabalho escravo.

Resposta correta: alternativa B.

Análise das alternativas

A) Alternativa incorreta.

Justificativa: os países que surgiram no processo de independência da América espanhola


mergulharam em diferentes contendas com disputas de poder entre as elites latifundiárias, partidários
de um poder central ou descentralizado e, ainda, conflitos étnicos que os afastaram da democracia,
abrindo caminho para o caudilhismo.

B) Alternativa correta.

Justificativa: a convulsionada situação política resultante das lutas de independência e a falta de


consenso das elites quanto à unificação da região obstruíram a intenção de Bolívar de formar uma
grande nação latino-americana.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: o parlamentarismo não chegou a ser uma opção forte, e não houve esforços das nações
estrangeiras nesse sentido.

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: o declínio político de Bolívar ocorreu em meio às disputas entre poder central e poder
local e às questões regionais que acabaram por minar sua liderança e a derrocada da Grã-Colômbia. Os
problemas também se avolumavam na Venezuela, e Bolívar chegou a sofrer um atentado. Em meio à
instabilidade e à desagregação da unificação pretendida, ele se exilou e veio a falecer em 1830.

109
Unidade II

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: Bolívar chegou a promover a união de algumas províncias americanas no Congresso do


Panamá em 1826, ocupando o cargo de presidente da Colômbia, da Bolívia e de chefe supremo do Peru.
Entretanto, as aspirações regionalistas logo se manifestaram, minando suas intenções, desagregando
progressivamente o grupo de nações que havia se constituído e adiando propostas de extinção da escravidão.

Questão 2. Eric Hobsbawn, historiador de primeira grandeza que produziu reflexões de grande
importância sobre a questão dos processos de construção das nações, afirma que:

“[...] em seu sentido moderno e basicamente político, o conceito de nação é historicamente muito
recente. [...] a “nação” era o corpo de cidadãos cuja soberania coletiva os constituía como um Estado
concebido como sua expressão política [...]. A equação nação = Estado = povo e, especialmente, povo
soberano vinculou indubitavelmente a nação ao território, pois a estrutura e a definição dos Estados
eram agora essencialmente territoriais” (HOBSBAWN, 1990, p. 30-2).

Aplicando essas ideias acerca da constituição dos Estados nacionais, analise as afirmativas a seguir:

I – A história da América independente no século XIX dá sequência à situação colonial, pois as nações
já estavam presentes dentro das áreas territoriais coloniais, sendo seus correspondentes espaciais.

II – A nação não surge de forma automática com a independência, mas resulta de um longo processo
de construção de sentimentos de nacionalidade, em que muitas vezes se forjam mitos e heróis.

III – A construção das nações latino-americanas se deu em contextos regionais diversos e foi produto
de processo complexo, resultando em países que, embora tivessem as marcas da colonização,
percorreram caminhos próprios.

IV – Após a independência, os países que surgiram constituíram novas nações democráticas em que
imperou a harmonia social, tendo por base as estruturas políticas metropolitanas.

Assinale a alternativa correta:

A) Apenas as afirmativas I e II são corretas.

B) Apenas as afirmativas I e III são corretas.

C) Apenas as afirmativas I, II, III são corretas.

D) Apenas as afirmativas II e III são corretas.

E) Apenas as afirmativas II e IV são corretas.

Resolução desta questão na plataforma.


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