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Unidade II
De agora em diante, desenvolvendo a temática das independências, vamos passar pelos processos
de construção de mitos nacionais em torno das figuras tidas como “pais da pátria”: os Libertadores da
América. Nossa abordagem está centrada na problematização da América de origem espanhola. No
entanto, iniciamos nossa discussão com o questionamento das noções tradicionais de que os Estados
Nacionais são herdeiros diretos do universo colonial. Apresentamos, para isso, discussões historiográficas
recentes sobre as noções de Estado e nação.
Os processos em que vamos nos concentrar são referentes a Bolívar, San Martín e O’Higgins; então
abordaremos o problema político da construção dos mitos nacionais em torno dos líderes. As disputas
entre centralização e descentralização, entre formas de organização dos Estados e a presença dos
caudilhos também nos são particularmente relevantes.
Considerando o quadro geral que envolve as mais diversas regiões, os Estados Unidos, devido à
condição de detentores da primeira e exemplar revolução, foram transformados em paradigma
para diversas outras independências ou mesmo movimentos de rebeldia no Brasil, que assumiram o
republicanismo como sua bandeira e ideologia.
Além do caso dos Estados Unidos, a Independência do Brasil, que nos é particularmente cara, deve
ser lembrada no processo de ruptura dos laços que uniam as Américas ao Velho Continente.
Movimento quase singular, a constituição de uma monarquia no Brasil e, o que causava ainda
mais estranhamento em países vizinhos republicanos, o fato de ser chefiada pelo herdeiro da Coroa
Portuguesa fazia o Brasil ainda permanecer muito tempo, no decorrer do século XIX e mesmo nos
princípios do século XX, buscando se relacionar com outras regiões, como Europa e Estados Unidos, sem
privilegiar os vizinhos latinos.
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Unidade II
A América Espanhola, em linhas mais gerais, mesmo conseguindo romper com sua subordinação,
ainda passou por sérias instabilidades no decorrer do século XIX. Podemos considerar como muito fortes
as heranças coloniais para as sociedades que começavam a se desenvolver por todo o continente. Vale
lembrar que, no caso do Brasil, por exemplo, a produção agrária nos tempos da colônia só deixou de
estar em primeiro lugar no século XX e também que o peso que a escravidão representou e representa
para a sociedade brasileira é de imensa importância.
No caso da América Espanhola, as diferenças sociais existentes desde o Período Colonial não desapareceram
da noite para o dia. As elites locais criollas, que se consideravam brancas e legítimas detentoras dos poderes
políticos, uma vez que teriam sido o grupo social que conduziu o processo de ruptura política, buscaram
assegurar a manutenção de sua hegemonia política por meio dos mais diversos mecanismos políticos e
sociais. Emergem daí dois aspectos extremamente importantes para que possamos compreender a América
Espanhola no século XIX: o caudilhismo e as disputas políticas entre os poderes locais e os Estados que
buscavam se tornar nacionais. Os reflexos dessas disputas foram os constantes choques que muitas vezes
caminharam para guerras entre os partidários de sociedades mais liberais ou mais conservadoras, assumindo
aqui os sentidos adotados no século XIX, ou seja, de sociedades mais centralizadas ou descentralizadas.
Podemos considerar que muitos dos debates são do momento das independências no qual, no
contexto de enfrentamentos, de guerras abertas e de disputas políticas, muitos e muitos projetos foram
apresentados e muitos mais, ao que nos parece, ficaram pelo caminho. Pamplona (2009) enfatiza um
ponto absolutamente fundamental para nossas observações quando fala do nacionalismo:
[...] estudos mais recentes, a defini‑lo não tanto pelo seu conteúdo, mas
pelo seu caráter funcional‑instrucional [Hobsbawm]. De acordo com
estas pesquisas, o nacionalismo pode ser definido como um instrumento
– a maioria das vezes manipulado pelas elites políticas – para motivar as
atividades e a solidariedade política. Serve para mobilizar as parcelas da
sociedade identificadas como a “nação” ou a coletividade concebida como
“nação” contra opositores internos e externos ou contra qualquer ameaça
(PAMPLONA, 2009, p. 23).
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Note‑se que Estado e nação, no século XIX, passaram a ser comumente grafados juntos, como
Estado‑nação, e isso não é algo de menor importância. A operação não é um descuido, e sim um esforço
de associar sentimentos e lealdades ao Estado e à nação como uma entidade única. Os estudos de
Benedict Anderson sobre o tema (Comunidades Imaginadas) são fundamentais, pois enfatizam que o que
existe, na realidade, são comunidades imaginadas, produtos de ordens sociais pensadas e não naturais,
diferentemente do que a ideia de nação muitas vezes nos faz acreditar. Os debates historiográficos
contemporâneos levam em consideração as diferentes possibilidades do sentido de nação – ideologia,
doutrina, sentimentos –, vale dizer, não existe uma definição unívoca ou mesmo majoritária, o que nos
leva a um problema teórico bastante importante: quem usa a ideia de nação e para quê? No limite, está
errado dizer que nação é um conceito em razão de: 1) uma polissemia; 2) dependendo do momento
histórico (mais ou menos crítico), a palavra pode ser usada para congregar alguns seres humanos ou
mesmo para destruir milhões e milhões deles (ANDERSON, 1989; 2012).
Abordaremos diversos pontos sobre a construção dos nacionalismos, mas, em se tratando de América,
quer seja Latina ou mesmo Anglo‑saxônica, uma pergunta se coloca desde o início de nosso trabalho
e vai nos conduzir, no século XIX: quem fazia parte dessa ideia de nação e quem era excluído? Dito de
outra forma, quem pertencia e quem não pertencia à nação?
A construção dos mitos nacionais projeta figuras políticas e sociais que aparentemente estão acima
e distantes de nossas vidas cotidianas atuais. As figuras heroicas são quase descarnadas e viram nomes
decorados por muitos milhões de estudantes e que, após algum tempo, não têm grande significado
além do nome que todos devem saber. Monumentos são erguidos, alguns, inclusive, possivelmente
falsificados, como nos indica Gabriel García Márquez em seu discurso por ocasião do recebimento do
Prêmio Nobel de Literatura em 1982 (MÁRQUEZ, 2009, p. 7-13).
As populações indígenas existentes na América Espanhola seriam incorporadas como parte da nação?
Em que termos? E os setores mais populares e mesmo pobres das Treze Colônias Britânicas da América do
Norte, teriam eles suas demandas atendidas e seriam contemplados em suas preocupações de construção
da exemplar república fundada na região? No Caribe, quem pertenceria à nação? A imensa maioria da
população negra de origem escrava? Como seria ela incorporada aos projetos políticos? Mesmo entre as
elites brancas, quem era parte da nação? Quais critérios utilizar? Nascimento? Identidade política?
E o caso do Brasil, então? A população branca e pobre era incorporada? Como ficava isso no discurso
das elites em meio a tantas revoltas de origem popular? O problema da escravidão, vale lembrar,
atravessou todo o império, e sua solução em 1888 foi considerada por muitos demasiado tardia.
Para nos dar a dimensão da importância da região platina nas convulsões que assolaram a América
do Sul, por exemplo, o historiador João Paulo Garrido Pimenta (2002) faz uma observação que deve ser
estendida em uso, pois não está discutindo apenas o século XIX, mas também a própria natureza do uso
das ideias de Estado e nação:
Ou seja, não é correto, tampouco historicamente adequado, recorrer a simples continuidades entre
as realidades históricas da América Latina – incluindo aí o Brasil. Entretanto, também podemos lembrar
que nem mesmo os Estados Unidos já estavam postos como Estado e nação no interior das 13 Colônias,
visto que os territórios iniciais constituíram uma parte – por sinal, bastante reduzida em termos espaciais
– do país que seria construído posteriormente com acréscimos territoriais feitos por meio de diversos
mecanismos.
Para apresentar como é problemática a simples projeção dos países atuais sobre as colônias, Pimenta
(2002) volta seu olhar para realidade do Uruguai e conclui que:
O autor completa lançando exemplos muito claros desse processo de projeção do Estado e da nação
no passado colonial:
Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino (2014) propõem diversas discussões fundamentais para
entender nossas trajetórias comuns, que algumas vezes são mais próprias, noutras mais distantes, mas
que, para serem entendidas, precisam que pensemos em termos mais amplos, observando as conexões
existentes e, mais do que isso, como as problemáticas sociais, econômicas, políticas ou históricas podem
assumir os mais diversos sentidos. Assim, olhar para a América Latina é fundamental para pensarmos a
nossa própria realidade social, histórica e política.
Saiba mais
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[...] se a imagem que um país constrói de si está relacionada à diferença que impõe
em relação à imagem de outras nações, então o “outro” do Brasil foi toda a América
Latina. Nesse contexto, o contraponto entre o Brasil monárquico e português e a
América Espanhola e republicana refletia‑se, no campo ideológico, por uma “guerra
de ideias assentada na defesa brasileira de sua ‘civilização imperial e escravista’”,
cujo liberalismo sonhava ser a diferença, particularmente significativa diante do
modelo liberal‑revolucionário europeu que nossos “bárbaros vizinhos” meramente
copiavam (ALAMBERT apud BARRIO, 2011, p. 81).
Buscando ressaltar de que maneira as disputas permeavam as relações cotidianas, tanto no campo
quanto nas cidades e entre diversas regiões, trazemos aqui as palavras de Donghi (1975):
Por quase todo o território que outrora pertencera aos espanhóis se desenvolveram conflitos entre
grandes senhores rurais e os poderes estabelecidos nas capitais representando as leis das repúblicas.
Atritos entre elites de regiões litorâneas e grupos do interior ou das áreas serranas povoam as narrativas
na América Latina do século XIX.
O importante a ressaltar aqui é que, ao contrário do que as histórias ditas nacionais e as memórias
escritas sobre a formação dos Estados Nacionais latino‑americanos buscaram construir, nem todas as
grandes lideranças emergiram dentre esforçados criollos que sacrificaram suas fortunas, arriscaram suas
famílias e suas vidas pelas nações que estavam construindo – vale enfatizar que essas narrativas deram o
tom laudatório da afirmação das figuras dos próceres nacionais – tais como verdadeiros “pais da pátria”.
Os nomes dos considerados como os grandes Libertadores das Américas ainda hoje povoam os livros
didáticos e são repetidos pelos estudantes: Simón Bolívar, San Martín, Francisco de Miranda, Santander,
Bernardo O’Higgins, Agustín Iturbide e, considerando o caso do Brasil, Pedro I e lorde Cochrane (que
participou da libertação do Peru junto às tropas de San Martín), Sucre, Hidalgo, Morellos, mas também
Vicente Rocafuerte (México), Artigas, Toussaint Louverture, Jacques Dessalines, Pétion e, por que não,
Martí Rosas, De Francia, Inca Yupanqui, Túpac Amaru.
Na eleição das figuras históricas que merecem destaque, geralmente membros das classes subalternas
e mulheres foram deixados de lado – ao menos para o grande público.
Um dos exemplos desse processo é a figura de um líder de origem bastante controvertida, talvez
popular e nascido nas Astúrias e que teria se transferido para a região da Venezuela no início do século
XIX, chamado Boves. Tal líder foi comandante de um grupo errante de lanceiros que, mal comparando com
figuras históricas brasileiras, seriam algo como bandoleiros que tinham uma organização própria e viviam
apartados das regras dos Estados. Seu grupo pode ter chegado a possuir 7.500 homens, dos quais entre
60 e 80 eram brancos, e algo entre 40 e 45, oficiais de origens variadas (espanhóis e criollos) – sendo um
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verdadeiro exército composto por peões e escravos que chegaram mesmo a combater contra chefes locais
e membros das elites como o próprio Bolívar. Cidades foram atacadas, e populações, massacradas por esses
grupos armados. Se aparecem nos livros escolares, são usados mais para afirmar a necessidade de uma
certa ordem social comandada pelas elites de origem criolla contra essa possibilidade de barbárie. Não se
enfatiza, assim, a questão da tensão social presente na América Espanhola entre senhores e escravos, entre
as elites criollas e os de origem indígena mantidos em condição de intensa exploração. Nesse sentido,
podemos inclusive fazer um paralelo com a história do Brasil, na qual apenas recentemente a historiografia
mais crítica passou a dar conta dos movimentos sociais do século XIX considerando sua importância no
desenvolvimento da sociedade brasileira, e não apenas pintando‑os como terríveis ameaças à ordem que
se procurava construir.
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Retornando para os acontecimentos na América Espanhola, no México irrompe algo que foi tido na
época das independências como uma guerra de “castas”, de grupos sociais:
Os defensores da Coroa [...] não eram chefes regulares, mas sim caudilhos que se
alçavam junto aos elementos mais baixos da sociedade, desde os negros escravos
de fazendas, até “zambos” e mulatos das cidades e habitantes das planícies, para
aniquilar a elite mantuana dos criollos aristocratas que representavam a causa
da independência (RAMOS, 2012, p. 145, tradução nossa).
Dessa forma, procuramos enfatizar que as elites da América hispano‑americana, em certo sentido,
lutaram contra a Coroa da Espanha, mas internamente também foram travados combates para manter
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condições de classe. Tal como no Brasil ou nos Estados Unidos, as independências hispano‑americanas
foram carregadas do ideário liberal e iluminista que pregava o uso da razão, a defesa da liberdade e das
luzes, mas isso não se aplicava necessariamente a todos os setores sociais.
A revolução de independência não era vista pelas diversas elites como revoluções sociais. A existência
da escravidão em algumas das áreas mencionadas foi um fator de conflitos no decorrer do século XIX.
As bases econômicas continuavam a ser a agricultura e a mineração, e, nesses setores, poucas eram
as mudanças no início do século XIX, com exceção da penetração gradativamente mais significativa
do liberalismo econômico, que se assenhoreava de cada vez mais mercados consumidores e fontes de
matérias‑primas, devido às indústrias europeias, que necessitavam de forma crescente explorar essas
regiões, o que acontecia de maneira cada vez mais intensa.
Vale ainda a menção de que na atual Colômbia, na rica região de Cartagena, no momento da
emancipação, a sociedade admitia a divisão das mulheres em três categorias: as senhoras brancas, chamadas
de “blancas de Castilla”, as mulheres pardas, vistas como mestiças e, assim, inferiores, e as mulheres negras
livres. Por ocasião de festividades, bailes, por exemplo, os grupos se dividiam, inclusive frequentando salões
separados! Conforme nos indica Ramos (2012), o que dá o tom mais discriminatório e ressaltado é que
os homens brancos podiam dançar nos três salões; os pardos, apenas em seu espaço e naquele destinado
aos negros; e os negros estavam confinados apenas ao seu salão! Esse pensamento discriminatório e
profundamente preconceituoso determinava as relações entre os grupos sociais de forma generalizada nas
regiões hispano‑americanas, sendo a discriminação exercida ora contra os negros, ora contra aqueles de
origens indígenas – mas ainda assim as relações eram pautadas pela discriminação.
Como um complicador do quadro geral, as elites criollas se recusavam a dar a liberdade a seus
escravos, e os espanhóis, no momento das lutas de independência, perceberam que essa seria uma
importante maneira de arregimentar pessoas contra essas elites. Raros foram os casos que destoaram
desse comportamento, sendo o mais significativo deles o do próprio Simón Bolívar, que libertou
seus escravos e chegou a embarcar rumo ao Haiti de Pétion – ele próprio ex‑escravo – com o qual
estabeleceu acordos de ajuda mútua de tropas, víveres, navios. Além disso, fato absolutamente inovador
e fundamental, Bolívar prometeu a abolição da escravidão nos territórios que controlasse. De fato,
no dia 2 de junho de 1816, em Carúpano, declarou livres os escravos e sua aceitação no Exército
Libertador; em 1819, ratificou a medida ao determinar que “todos os homens que antes eram escravos
se apresenta[ssem] ao serviço para defender sua liberdade” (RAMOS, 2012, p. 148).
Os atritos entre as elites locais da América Hispânica e Bolívar – ele próprio filho das elites criollas,
nascido José Antonio de la Santíssima Trindad Simón Bolívar y Palacios, e membro de uma das mais ricas
famílias de Caracas, que em sua juventude deu os mesmos passos que seus iguais, ou seja, foi para a
Europa, estudou e depois retornou à América – não se deram apenas em torno da questão da escravidão
e não foram poucos. Contudo, é importante ressaltar que, no Congresso de Angostura, ele defendia o
abolicionismo “como imploraria por minha vida ou pela vida da República”. Entretanto, ao contrário
dele, os proprietários das elites preferiram processos graduais, e essa forma de atuação espalhou-se pela
América Latina, exceto pelo Haiti, em razão de sua rebelião libertadora.
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As ações de Bolívar foram, espacialmente falando, extensas, envolvendo lutas na Capitania Geral da
Venezuela, passando ao Vice‑reino de Nova Granada e ao Peru e ao Vice‑reino do Rio da Prata – quando
das lutas no Alto Peru, depois batizado em sua homenagem como Bolívia.
No século XIX, era comum nos discursos elitistas e de matriz ilustrada a ideia de que primeiro era
necessário preparar os escravos como cidadãos para só depois libertá‑los.
O espectro do Haiti, ao que parece, rondava muitas terras nas Américas, bem como a arraigada crença
no trabalho escravo. Na ilha caribenha, os brancos que tentaram reescravizar os libertos pela Revolução
Francesa encontraram uma reação extremamente aguerrida. Mesmo levando em consideração que
Toussaint Louverture fora preso e remetido para a França, onde morreu, as lutas continuaram com
Pétion, Dessalines e Boyer. A intensidade assustava proprietários em muitos lugares bastante distantes
da América Latina, inclusive em regiões de origem anglo‑saxônica.
Para se ter uma dimensão do imaginário construído em torno da figura de Toussaint Louverture,
sugerimos a leitura que se segue:
A Toussaint Louverture
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Logo nos primeiros momentos, para os criollos, assegurar as independências não era fazer a abolição
da escravidão, mas sim garantir o imediato exercício do poder político, econômico, social e militar no
nível mais básico da experiência direta – aquela restrita à área de influência pessoal dos chefes políticos.
Com esse movimento, a tendência existente para descentralização presente desde a época colonial
ganha contornos de realidade. Não se pode afirmar, no entanto, se obrigatoriamente deveria haver a
fragmentação, mesmo porque todo o esforço bolivarista caminhava no sentido contrário, buscando
alguma forma de unidade para salvaguardar as Américas do imperialismo externo.
Vale lembrar que, desde a época colonial, já existiam, ao menos na América hispânica, realidades
sociais e econômicas bastante diversas, em se tratando das distâncias a serem percorridas. Isso fica
mais claro ainda como uma necessidade administrativa e econômica. Podemos considerar em nosso
tempo as dificuldades para se locomover pelas Américas de forma geral; imagine, então, no século XIX,
tão convulsionado por disputas e lutas contra as metrópoles, guerras civis e ações de bandoleiros. A
possibilidade de fragmentação territorial estava posta já nas independências – o que alarmava o Brasil
e o colocava de prontidão contra as ameaças à integridade do império.
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No caso da América hispânica, desde os momentos iniciais havia a tentativa de pulverização do poder
político, como na região das atuais repúblicas da Colômbia, da Venezuela, do Panamá e do Equador, que
juntas somariam 2.600.000 km²! Sob a presidência de Bolívar havia três vice‑presidentes, e a região se
repartia em departamentos: Venezuela, Quito e Cundinamarca. Nesta última região, o chefe político
local era o general Santander, que passou a responder ao ideário dos liberais – ligados aos grandes
produtores de cacau, café, anil, tabaco, algodão e também ouro – e era muito interessado no fim de
impostos cobrados pelo governo central.
Observação
Indica o mesmo autor, na sequência, que foi Santander quem firmou o acordo comercial com os
ingleses em troca do reconhecimento da Colômbia como nação independente. A semelhança com a
história do Brasil nesse momento de independência está menos na questão da fragmentação do que no
aspecto da forte presença do liberalismo econômico inglês que também, em troca do reconhecimento
da Independência do Brasil, negociou a renovação dos Tratados de 1810, obtidos em condições
extremamente vantajosas para os ingleses e como reconhecimento dos auxílios prestados na fuga
da Família Real Portuguesa das tropas napoleônicas. A Família Real, aliás, chegou ao Rio de Janeiro
com sua Corte em 1808, promovendo a Abertura dos Portos às Nações Amigas logo na sequência de
sua chegada. Assim, tanto quanto era possível, o liberalismo econômico inglês avançava pelas regiões
recém‑emancipadas – ao menos enquanto os Estados Unidos não se articulavam no âmbito continental
com a chamada Doutrina Monroe.
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Observação
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Ao longo de todo o século XIX, diversas nações latino‑americanas se ressentiram dessa situação
tão desigual nas trocas comerciais entre os países europeus e elas, fornecedoras de produtos primários
e consumidoras de bens, serviços e manufaturas, o que, de certa maneira, preservava as condições
econômicas de centro e periferia que existiam entre Europa e Américas, desde os tempos coloniais.
Aqui, talvez a exceção seja o Paraguai, que teve um processo paralelo de desenvolvimento econômico,
cultivando uma autonomia em relação aos ingleses que os vizinhos não tinham. No entanto, já
anunciamos que terríveis consequências provenientes dessa autonomia assolariam a nação de origem
guarani, em razão da Guerra do Paraguai.
A experiência europeia de Bolívar em sua formação de jovem proprietário de origem criolla o colocou
em contato com a política que se executava a partir do velho continente, e não foram raras as ocasiões
em que o libertador procurou articular poderes locais contra um crescimento de influências externas.
Logo que a Inglaterra se colocar à frente dessa liga, seremos seus humildes
servos, porque, fazendo um pacto com o mais forte, se torna eterna a
obrigação do mais fraco. Devemos levar em consideração que na juventude
tivemos tutores, senhores em nossa maturidade e que na velhice seremos
livres. Eu creio que Portugal não é mais que um instrumento da Inglaterra,
o qual não sonha com nada para não incomodar os companheiros, convida
os Estados Unidos para dar a aparência de desinteresse e para incitar os
convidados a participar do banquete; depois que estivermos reunidos será a
festa dos Lápitas, e aí entrará o Leão a devorar os convidados (RAMOS, 2012,
p. 159, tradução nossa).
Talvez valha um esclarecimento a respeito das referências mobilizadas por Bolívar nesse último
excerto que citamos. Os Lápitas, na mitologia grega, estão ligados à origem dos centauros, criaturas
que, com raras exceções, tratavam os homens com notória violência e crueldade. A segunda referência,
a do leão, além de apontar para a ferocidade e a capacidade de se impor, indica a própria monarquia
britânica, da qual é, inclusive, um dos símbolos.
Observação
Bolívar, representando a força de um poder que se desejava central, precisava assim resolver diferentes
problemas que contestavam a própria viabilidade da união no território da Grã‑Colômbia. Os ingleses eram
um perigoso complicador na manutenção das autonomias relativas às independências, mas as ameaças de
recolonização presentes na existência da Santa Aliança não eram menos importantes. O próprio Império do
Brasil assustava os vizinhos de origem espanhola; e, no horizonte americano, emergiam os Estados Unidos com
sua Doutrina Monroe. Tudo isso apenas no plano externo, já que, internamente, os grandes senhores locais
provocavam tensões enormes nas macrorregiões anteriormente compreendidas pelos vice‑reinos, a saber:
Vice‑reino de Nova Espanha; Vice‑reino de Nova Granada; Vice‑reino do Peru; e Vice‑reino do Rio da Prata.
Em cada uma dessas distintas regiões que pouco a pouco se tornavam independentes, as contradições
já existentes eram, em certa medida, catalisadas pelas novas possibilidades que se abriam. Além disso,
cada setor tinha um entendimento bastante diferente em torno de questões centrais como participação
na política, voto, acesso à terra e formas de trabalho que seriam permitidas nos novos Estados.
Para se entender um pouco mais profundamente as mudanças desse período histórico – tão
complexo em termos de interesses, disputas de poder, conflitos sociais e interesses internos e externos
–, Levi (apud SOARES, 2008) afirma que:
Mas para todo indivíduo existe também uma considerável margem de liberdade
que se origina precisamente das incoerências dos confins sociais e que suscita
a mudança social. Portanto, não podemos aplicar os mesmos procedimentos
cognitivos aos grupos e aos indivíduos; e a especificidade das ações de cada
indivíduo não pode ser considerada irrelevante ou não pertinente (LEVI apud
SOARES, 2008, p. 10).
O que nos remete ao nosso ponto de que todas essas personagens, ainda um tanto quanto distantes
das nossas discussões de sala de aula no Ensino Fundamental e no Médio, mas que, num momento
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oportuno, vêm sofrendo a devida alteração nesse quadro, são, fundamentalmente homens de seu tempo.
Assim, projetam disputas, interesses, mudanças e continuidades e mesmo contradições dificilmente
esquematizáveis sob o gigantismo dos “pais da pátria”, sob a glorificação acrítica dos Libertadores.
Como exemplo disso que estamos afirmando, a própria natureza da ideia de ruptura na América
Hispânica é alvo de controvérsias historiográficas, pois alguns afirmam que as ideias de ruptura e de
independência política começaram a aparecer no final do século XVIII, quando os Bourbons espanhóis
começaram uma série de reformas no sentido da centralização que aumentaram as pressões políticas,
comerciais e fiscais sobre as colônias, gerando reações que, apesar de malogradas, já seriam as sementes
da independência. Segundo Soares (2008), seria essa o ponto de vista defendido por John Lynch. Mas
outros, como Halperín Donghi, analisaram as ações nas Américas como parte do complexo mundo
atlântico abalado pelas ações napoleônicas, quando da invasão e da derrubada do monarca espanhol.
Ele pôde, dessa maneira e usando esses simples exemplos, perceber que para que as independências
ocorressem, foram necessárias as articulações de problemas internos e externos. Desse modo, a invasão
napoleônica tem seu peso, mas as ações anteriores da Coroa espanhola também influenciaram, bem
como o fizeram os desejos e projetos das elites criollas.
As discussões acerca das independências remetem ao fato de que foi na Venezuela que os
movimentos de independência ganharam solidez, sendo a proclamação feita em 5 de julho de 1811,
o que lhe deu a condição de movimento inicial e inspirador de outras regiões. Contudo, um olhar
mais atento leva a perceber que lá os conflitos também se desenvolveram, uma vez que somente
a custo de muito desgaste é que a Junta Governativa das Províncias Unidas da Venezuela aceitou
um antigo defensor da ruptura chamado Francisco Miranda, com quem Bolívar teria se encontrado
quando esteve na Europa. Para se ter a dimensão dessas disputas, a República instalada nessa ocasião
durou apenas um ano, derrotada pelos espanhóis. A partir daí, Bolívar procurou construir um exército
para expulsar os realistas e, para tanto, precisou retomar a capital, Caracas – cidade na qual entrou
em 7 de agosto de 1813, fazendo a Venezuela ter sua segunda república. Conforme ressaltamos
anteriormente, os conflitos internos eram ainda mais complexos quando envolviam disputas sociais,
como a participação de Boves ao lado dos espanhóis.
Saiba mais
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HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE
A Espanha, com a restauração dos Bourbons, empreendeu um grande esforço para reconquistar os
espaços perdidos nas Américas. Assim, enviou o general Pablo Morillo contra a Venezuela e mandou‑o
retomar Nova Granada, tendo uma força de 15 mil homens.
Em torno de Bolívar, a imagem de Libertador tão instrumentalizada nos séculos XIX e XX permite
algumas discussões a partir de seus próprios escritos – lembrando que por vezes ele sofreu exílios –, e,
em suas cartas, aspectos dos conflitos são tratados e podem ser resgatados. Em sua primeira carta da
Jamaica, de 1815, escreveu:
Foi nesse documento que Bolívar desenhou a estrutura política centralizada que acreditava mais
adequada para a região, onde o federalismo não teria espaço e Nova Granada e Venezuela, juntas,
seriam a Colômbia. O poder central seria vitalício, mas não hereditário, portanto não monárquico. Foi no
retorno de exílio na Jamaica que Bolívar passou pelo Haiti e travou conversações com Pétion, recebendo
auxílio do primeiro Estado negro das Américas e prometendo a abolição da escravatura na Venezuela.
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Bolívar, no livro citado, aparece por vezes desgostoso e desencantado – o que não é exatamente
heroico. Nesse sentido, essa caracterização é pouco convencional, principalmente, tendo em vista que se
trata de um dos mais afamados defensores das independências que, inclusive, é chamado de “o Libertador”.
Saiba mais
___. O general em seu labirinto. 12. ed. São Paulo: Record, 1989.
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com a causa pública e homens para os quais o valor de sua morte seja um
pouco menor do que o da sua vida.
O que transparece aqui é a posição de um estrategista que faz cálculos políticos e sociais de
seus movimentos – o que, conforme ressaltamos, ocorria também no Brasil. Um dos receios da elites
americanas no início do século XIX era justamente o de revolta de escravos, o tão afamado haitianismo.
Assim, realizando a abolição, os libertadores conseguiam braços para os combates ao mesmo tempo que
afastavam o enorme e assustador fantasma de uma rebelião de escravos que poderia massacrar as elites
brancas e proprietárias de terras e no caso, de escravos.
Bolívar percebeu que para levar a cabo seus projetos era impossível caminhar sozinho e então se
esforçou na articulação de alianças; entretanto, ao longo de seu caminho, também fazia inimigos. Em
1817, em Angostura, na Colômbia, um líder local da população mestiça, chamado Manuel Piar, havia
se aproximado de Bolívar. Na estratégia do libertador, isso tinha muita importância, mas pouco depois
Piar se rebelou ao defender aspectos hoje considerados étnicos – uma identidade que excluía a elite
branca criolla. Diante da ameaça, Bolívar não hesitou em permitir, após a derrota e a prisão do líder
local, seu julgamento, condenação e fuzilamento como desertor, rebelde e conspirador. Desse modo, se
esforçando contra as clivagens étnicas, o projeto bolivariano estabelecia a igualdade entre os cidadãos
desconsiderando diferenças tão valorizadas na época em razão da cor de pele ou do fato de serem
indígenas, mestiços ou negros.
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Embora retomemos os eventos das independências, lembramos que não o fazemos para discutir
o rompimento com os espanhóis, as disputas, as batalhas e as estratégias, pois isso já foi discutido
neste livro‑texto. Estamos, neste momento, buscando as construções que se fizeram em torno das
personagens nos Estados Nacionais que se firmavam no século XIX e também posteriormente, quiçá
como ocorre até os dias de hoje:
As disputas entre poder central e poder local foram sentidas em toda a sua profundidade na Venezuela,
pois, em 1826, José Antonio Páez, com apoio dos llaneros, rompeu com o governo central novamente
exercido por Bolívar, e isso fez que ele agisse para aumentar a centralização política e militar – não sem
reações e consequências importantes para o surgimento de novos países nas ruínas da Grã‑Colômbia.
Cartagena, em 1829, apoiou o general José Padilla a se rebelar com o apoio dos mestiços contra Bolívar
e com um discurso favorável a Santander, que na época era percebido geralmente como mais liberal
que a prática do bolivarismo. Ainda no mesmo ano, ocorreu um atentado contra a vida do Libertador,
deixando muito nítida a situação instável. Pouco depois, ainda no mês do atentado, a Venezuela se
separou do governo central. Em 1830, foi o Equador que saiu da aliança.
Como Fernando estava doente, começou a ditar a José Laurencio Silva uma série
de notas um tanto descosidas que expressavam tanto os seus desejos como os
seus desenganos: a América era ingovernável, quem serve a uma revolução ara
84
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE
no mar, este país caíra sem remédio em mãos da multidão desenfreada para
depois passar a tiranetes quase imperceptíveis de todas as cores e raças, e muitos
outros pensamentos lúgubres que já circulavam dispersos em cartas a diferentes
amigos (MÁRQUEZ apud SOARES, 2008, p. 34).
Soares ainda nos informa que foi na Quinta de San Pedro Alejandrino, em Santa Marta, que Bolívar
viveu seus últimos dias, pois morreu em 17 de dezembro de 1830, aos 47 anos.
Morto o Libertador, sua memória começou a ser alvo de interesses políticos que foram se apropriando
de sua imagem, quase buscando, sob sua égide, legitimar-se e consolidar projetos em seu nome – mas
vale notar que não necessariamente se trata dos projetos de Bolívar.
5.1.1 Bolivarismo
Na América do Sul, dois são os países que homenageiam Simón Bolívar – Bolívia e a República
Bolivariana da Venezuela. Durante as primeiras décadas do século XXI, o bolivarismo voltou com força à
agenda política e aos noticiários.
Em 1999, a Venezuela, sob o comando de Hugo Chávez, deu exemplos muito concretos dessa
utilização da figura do Libertador quando a nova Constituição do país estabeleceu o que é a democracia
participativa nos moldes venezuelanos. Conforme pontua muito bem Soares (2008, p. 37), contrariamente
à noção de democracia representativa, trabalhando no sentido de inclusão social das camadas mais
subalternas, o que lhe dá uma força razoável junto às massas populares. Em seus atritos com as elites
venezuelanas, Hugo Chávez as responsabilizava por desvirtuar a obra de Simón Bolívar, idealizador de
uma América livre, justa e unida.
É ou não é um uso claramente político da imagem do Libertador que atura no século XIX
seu resgate tão enfático no final do século XX e início do século XXI? Vale lembrar que, em seus
pronunciamentos televisivos, a partir do gabinete presidencial, Chávez surgia sempre à frente de
um enorme quadro justamente de Simón Bolívar estrategicamente postado atrás dele, cuja imagem
tem ares impetuosos e grandiosos.
85
Unidade II
Saiba mais
Um olhar para a história da Venezuela desde o século XIX nos leva a perceber esses usos já com
outros governos, não com a mesma finalidade, mas com intenção claramente política.
Foi no século XIX, pouco depois de sua morte, que seus restos mortais foram trasladados para Caracas,
no governo de José Antonio Páez, em 1842. Vale lembrar que Páez era um antigo chefe político local desde
as guerras de independência. Na interpretação do historiador Germán Carrera, isso seria uma tentativa de
reunir as elites antes divididas sob o comando de proteção de Bolívar e, nesse sentido, seria um caminho para
suplantar divisões internas. Os dois lados políticos rivais na Venezuela, liberais e conservadores, se esforçaram
muito para tomar a memória do Libertador como o pensamento que referendava suas práticas. Livros e festas
públicas em torno do centenário de seu nascimento no século XIX, reportagens, iconografia, filmes e séries
televisivas contribuíram bastante com a mitificação de Bolívar. Além disso, a extensa bibliografia a respeito da
vida do Libertador contaminou os livros didáticos com esse olhar, geralmente mitificador.
Vale mencionar que mesmo no caso do Brasil existe bibliografia, em nossa língua, estudos acadêmicos
inclusive, a respeito de Bolívar, e nem por isso acaba sendo ele mais bem-analisado por aqui, mesmo
com nosso distanciamento e com o fato de ser evidentemente desnecessário politicamente reivindicar
sua memória para nossa independência.
Existe também um viés historiograficamente crítico, mas que também é uma obra de seu tempo, de
1969, em que o historiador marxista Nuñez Tenorio, no livro Bolívar y la Guerra Revolucionária, vê um
Bolívar comprometido com o aspecto social.
Para encerrar seu balanço bibliográfico acerca dos diferentes olhares sobre Bolívar, Soares (2008)
remete aos trabalhos de Fabiana Fredrigo, que percebe um esforço do próprio Bolívar em suas cartas
para aparecer como indispensável. Resta, a quem lê todo esse material, questionar o quanto a publicação
é fruto da época ou construção de discurso de quem escolhe mencionar Simón Bolívar.
Outra discussão que ganhou importância recentemente foi o papel das mulheres nesse processo,
conforme apontam com propriedade Prado e Pellegrino (2014):
Ou ainda:
Saiba mais
87
Unidade II
A Revista História publicou uma resenha sobre o livro de Fredrigo (2010) que incluímos a seguir:
O que lhe interessa não é compreender por que Bolívar foi escolhido ícone
das independências latino‑americanas, mas, sim, como ele produziu esta
escolha ao criar seu próprio mito. Para a autora, “Simón Bolívar torna‑se
o Libertador, primeiro, por suas ações e suas palavras, tão valiosas como a
espada; segundo, pelo efeito inebriante que o ideal de liberdade produz em
meio à memória coletiva” (DULCI, 2012).
88
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE
Isso, a nosso ver, corrobora toda a visão que estamos buscando construir acerca dos envolvidos nos
eventos mencionados.
6.1 Chile
Podemos considerar também como exemplo das diferentes tensões existentes o Chile no início do
século XIX. A libertação teve como cabeça Bernardo O’Higgins Riquelme, curiosamente filho de um
antigo vice‑rei espanhol. As disputas lá não tinham características étnicas, mas sim diferenças entre os
interesses de fazendeiros, agricultores e mineiros – o que marcou significativamente o país ainda no
século XX:
Existiam conflitos entre os setores proprietários. Os grandes exportadores de trigo desejavam comércio
internacional livre, sem barreiras impostas por um governo central – e essa reivindicação livre‑cambista
constituiu outro dos traços comuns da América hispânica, do Brasil e dos Estados Unidos no século XIX.
O’Higgins, mais ligado a San Martín, aproximava‑se dos britânicos em termos comerciais, sendo visto
89
Unidade II
politicamente como um conservador – o que, grosso modo, pode ser compreendido como favorável ao
governo central mais forte. Seu opositor no plano interno era José Miguel Carrera – militar que simbolizava
o poder para a burguesia mineradora. Era, assim, visto como mais progressista politicamente e travou
relações com os Estados Unidos envolvendo o comércio no Pacífico. O liberalismo que começava a ganhar
força defendia, de um lado, a abertura dos mercados, e, de outro, uma maior participação popular na
política, nas decisões governamentais, na realização de leis que garantissem direitos e liberdades
individuais, igualdade de direitos e modernização da educação – ideário tributário diretamente dos lemas
da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. José Miguel Carrera compôs juntamente com
Bernardo O’Higgins e José Gaspar Marín a Junta de Governo, que conduziu o processo de independência.
O’Higgins, diante da ameaça espanhola na guerra de libertação e também devido à oposição interna
de Carrera, escreveu aos ingleses solicitando apoio em troca de recompensas, o que resultou num
empréstimo direto da Coroa Britânica de 1 milhão de libras esterlinas.
O mecanismo de fixação do capitalismo inglês funcionava buscando apoios dentro dos países
independentes – o que era conseguido, muitas vezes, por meio de empréstimos significativos, como foi
o caso da relação estabelecida com os portenhos e, o que nos é mais significativo, com o próprio Brasil.
Lembrete
A manutenção do poder das elites latifundiárias seria um processo repleto de conflitos – como
esses entre os proprietários das minas e os fazendeiros. Vale notar que, apesar de termos afirmado
que no Chile a questão não era necessariamente étnica, como o foi em diversas outras regiões, esse
elemento não estava completamente ausente da sociedade chilena, uma vez que o controle estatal
sobre o território somente foi obtido em fins do século XIX, justamente quando o Estado conseguiu
se impor aos indígenas de origem mapuche (grupo presente até os dias de hoje no país e ativo em
suas reivindicações).
Saiba mais
As disputas pelas terras no Chile logo no nascimento do país independente envolveram características
sociais e políticas, e isso ficou mais evidente quando o religioso Frei Antonio Orihuela, um franciscano,
chegou a pedir ao Congresso de 1811 a entrega das terras aos camponeses pobres – o que foi percebido
como uma manobra do grupo de Carrera contra as origens sociais do poder das elites latifundiárias.
Do ponto de vista dos fazendeiros, tratava‑se de uma enorme ameaça a sua existência como classe,
mas, para a burguesia que a articulava, era uma maneira de romper monopólios seculares e modernizar
economicamente o país. Isso, entretanto, fracassou.
A mudança política não era, uma vez mais, percebida como mudança social radical. Malogrado
o projeto de modernização (também em função de articulações de setores econômicos ingleses que
dominavam a exportação e a importação para o país, bem como, de maneira crescente, as áreas de
mineração), tratou de firmar-se uma memória nacional não em torno do chefe do grupo derrotado,
Carrera, mas sim em torno de Bernardo O’Higgins, que, nas palavras do próprio representante de Sua
Majestade, no Chile, se adotasse a proteção dos britânicos e seguisse seus princípios liberais, poderia ser
visto como o pai do país que nascia.
91
Unidade II
Bernardo O’Higgins ganhou, assim, espaço no panteão dos Libertadores da América, deixando José
Miguel Carrera quase nas sombras, bem como líderes de grupos populares, que quase nada aparecem
atualmente na história. No caso, estamos nos referindo a Manuel Rodríguez, caudilho de origens
populares e opositor ferrenho dos grupos latifundiários e, portanto, inimigo de O’Higgins que tombou
assassinado. Ramos (2012, p. 165) aponta que existem, em músicas chilenas, menções a ele, o que
deixa marginalmente desenhada sua importância, sobrevivendo em canções e memórias populares que
dificilmente são contadas em manuais de história aos quais o grande público e os alunos chilenos têm
acesso frequente.
Exemplo de aplicação
Tomando o exemplo citado anteriormente de um líder popular que sobrevive nas artes, no caso,
música, na América Latina, você consegue mencionar outras figuras históricas que também passam
por um processo semelhante? Valem os nomes de qualquer região e de qualquer período, não apenas
do século XIX. Sugerimos procurar em filmes, biografias recentes, músicas e outras expressões artísticas
igualmente relevantes.
Em sua breve introdução ao texto de Gabriel Passetti, a historiadora Maria Ligia Coelho Prado
ressalta um aspecto aparentemente prosaico, mas que norteia quase todo o nosso trabalho
neste ponto de nosso livro‑texto ao apontar que, na realidade, os estudos devem considerar que
Bernardo O’Higgins:
92
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE
Lembrete
Nosso intuito mais imediato é buscar os aspectos mais significativos da construção de figuras que se
convertem em grandes senhores da guerra que, no plano interno, não haviam “pacificado” seus territórios.
Nossa intenção é percorrer diferentes regiões e figuras históricas consagradas, mas, fundamentalmente,
estamos buscando os comportamentos políticos que mais influenciaram as populações por quase toda
a América Latina. Dessa forma, precisamos olhar não apenas para os grandes feitos dos “pais da pátria”,
mas também buscar ver as realidades das disputas internas como quadros muito mais complexos em que
nem todos os que se envolveram na construção dessas nações pensavam exatamente no mesmo sentido
e buscando o mesmo desenho institucional e político. No caso, estamos nos referindo diretamente à
presença de grandes líderes políticos regionais que se envolviam em disputas com seus pares e com
os próprios Estados que lentamente se firmavam, ou ainda que investiam contra o poder central na
tentativa de obter o seu controle e defender seus interesses e os de seus apoiadores.
Os conflitos na América do Sul não respeitavam as atuais fronteiras dos Estados nacionais,
frequentemente envolvendo áreas que hoje estão em diferentes países, como Chile e Argentina. O’Higgins,
que havia recorrido ao auxílio de San Martín – designado por Buenos Aires para dar combate aos
realistas e levar a cabo a independência –, sofria a oposição dos Carrera, que naquele momento estavam
na Argentina e se chocavam também contra o poder de Buenos Aires. Os atritos se espalhavam também
no interior, onde caudilhos enfrentavam caudilhos. No interior, o argentino Pancho Ramírez e Estanislao
López, poderosos senhores na região de Entre Rios e Santa Fé, comandavam mestiços armados (na
Argentina, gauchos) e indígenas, sendo controladores de importantes milícias locais. Auxiliando Carrera,
atacaram as províncias de Córdoba, San Luís, Mendoza e Buenos Aires. As investidas cessaram quando
foram derrotados em Córdoba. Então os irmãos Carrera foram presos, julgados e fuzilados.
As disputas internas e a aproximação da Loja Maçônica de Buenos Aires, Lautaro, na qual era irmão
de San Martín, bem como as mortes dos opositores, desgastavam sobremaneira a liderança de O’Higgins,
que chegou a renunciar ao cargo de chefe da república e partiu para o Peru, onde faleceu em 1842, ao
que tudo indica, em razão de complicações cardíacas.
O quadro interno do Chile, em termos políticos, era extremamente conturbado, causando, como
foi dito, a saída do próprio O’Higgins do país. Contudo, isso não era o suficiente para a pacificação
interna, pois as forças em movimento ainda não tinham sido acomodadas. Para se ter a medida da crise,
em apenas uma única década, foram quatro Constituições – o que evidenciava os conflitos abertos
93
Unidade II
É preciso ressaltar que o país estruturado seria elitista, conservador, católico e centralizado –
mas isso apenas após superar os atritos entre o poder central e os poderes dos grandes senhores
locais. Passetti (2008) observa que os líderes não foram unanimidade, e os confrontos entre as elites
foram sendo enfatizados cada vez menos, o que dava lugar à construção da ideia de Libertadores.
No entanto, a relevância da observação de Passetti não está na percepção dessa construção quase
propagandística, mas no que é o mais importante, na indicação do momento histórico em que essas
elaborações eram desenvolvidas.
Foi ainda no século XIX que a construção dos heróis nacionais se estabeleceu – mas, no caso do
Brasil, isso seria em alguma medida alterado, pois a monarquia dos Bragança, ao ser derrubada pelos
republicanos, perdeu a condição de imagem da nação. Assim, a escolha do novo herói recaiu sobre
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
Contudo, voltando ao contexto da construção inicial, San Martín, Bolívar, O’Higgins, Washington, Pedro I
(Defensor Perpétuo do Brasil) e José Bonifácio (o Patriarca da Independência) foram instrumentalizados por
setores sociais altamente elitizados que escolhiam as qualidades que pedagogicamente queriam definir em seus
países, afastando modelos alternativos e contestatórios – como foram os outros líderes locais tão combatidos
internamente nesses países. A retórica em torno desses heróis geralmente atribui a eles papéis que seriam mais
“equilibrados”, e os extremismos, radicalismos, particularismos e aquilo que no Brasil do século XIX era visto
como anarquia seriam afastados e derrotados, ficando sob o olhar apenas aquilo tido como bom exemplo –
vidas dedicadas às suas pátrias. Se existiram aqueles que contribuíram com os projetos de independência, suas
participações eram tratadas com menos ênfase, sendo quase subsidiárias, e a atuação dos Libertadores é que
seria exemplar.
No caso do Chile, mas em outros países também, esse processo envolveu iconografia com a produção
de imagem que glorificava o líder político. Desse modo, um mausoléu foi erigido no Cemitério Geral de
Santiago – apesar de O’Higgins ter falecido fora do país.
Observação
O caudilho Manuel Rodriguez, antes relegado às trevas na historiografia chilena, recentemente foi
resgatado como um herói que, ao contrário de O’Higgins, lutou como um guerrilheiro contra o governo
e que acabou sendo perseguido e derrotado pelo poder central. Seu símbolo foi tão poderoso que havia
mesmo uma guerrilha no Chile da década de 1980 levando seu nome. Assim, a construção e elaboração
de heróis nacionais não é um processo que deve ser visto como algo pertencente a um distante passado,
e sim como a produção de sociedades dinâmicas e em constantes modificações.
É oportuno lembrar que nossa perspectiva ao observar a América Independente no século XIX deve
contemplar olhares mais locais em alguns momentos e noutros voltar a pensar os eventos mais regionais,
uma vez que, apesar de particularidades, muito era compartilhado por diferentes nações, ao menos em
se tratando de América do Sul.
O nosso olhar agora busca a região mais ao sul, que seria parte do Vice‑Reino do Rio da Prata no
Período Colonial. Já mencionamos que foi de Buenos Aires que partiram os esforços – personalizados
em San Martín – para expulsar os realistas que se refugiaram no Peru. Além disso, foi da Argentina que
partiram forças para apoiar os irmãos Carrera contra O’Higgins e foi no mesmo território platino, na
95
Unidade II
província de Córdoba, que os irmãos Carrera foram derrotados, julgados e executados. Havia, portanto,
clara ligação entre as pessoas de diversas regiões na América hispânica.
A importância econômica portenha, com sua dinâmica burguesia comercial pró‑Inglaterra, opôs‑se,
no decorrer do século XIX, aos interesses de Buenos Aires e dos caudilhos do interior, principalmente das
províncias de Entre Rios, Santa Fé e Corrientes. Contudo, as maior preocupação entre os construtores do
poder de Buenos Aires era a figura de Artigas – tido como o mais famoso e mais forte caudilho popular
da região das Províncias Unidas – sendo chamado de Protetor dos Povos Livres.
O caudilho Artigas era um problema também para o Brasil e o Uruguai. Logo após a
Independência do Brasil, em 1831, a Província Cisplatina se separou do Brasil e muito contribuiu
com o enfraquecimento de Pedro I.
O interior argentino era sacudido pelos senhores locais com seus exércitos particulares numa luta
de resistência contra o monopólio portuário exercido por Buenos Aires e contra a abertura econômica
vinculada aos produtos ingleses. A capital argentina detinha a aduana, que controlava o comércio
com o interior e o Prata. Isso provocava resistências – sendo o caso mais emblemático o da República
do Paraguai, que buscou evitar se enredar tanto pelo capital inglês quanto pelo domínio portenho.
Seguindo essa proposta, ao se tornar independente, a nação se fechou ao exterior – desde os tempos de
Rodríguez de Francia até o governo de Solano López, por ocasião da Guerra do Paraguai.
José Francisco de San Martín y Matorras, ou simplesmente San Martín, considerado o “pai da pátria”
argentino, tinha a percepção estratégica de que assegurar a independência em relação à Espanha não
era tratar apenas da Argentina e do porto de Buenos Aires – ele achava que a questão estava muito além
disso. Em suas lutas, levou seus exércitos até o Peru, expulsando os realistas, mas também voltando seu
olhar mais ao sul, foco constante de lutas e instabilidades.
É importante ressaltar que, apesar de considerado como um dos Libertadores, San Martín, assim
como Bernardo O’Higgins e o próprio Bolívar, não era unanimidade. Também no território das Províncias
Unidas, os conflitos locais ganhavam corpo. Quando, por exemplo, San Martín recorreu ao governo de
Buenos Aires pedindo auxílio (pois só de lá poderia obter o “dinheiro, o vestuário e o armamento” de
96
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE
que necessitava), o governo portenho postergou a decisão de ajudá‑lo. Mesmo com sete províncias
apoiando San Martín, o governo central inventava subterfúgios contra o fortalecimento do chefe militar
longe de seu controle direto. Na interpretação de Ramos (2012), essa seria uma forma planejada de
derrubar San Martín, assim como havia sido feito com o líder uruguaio, o caudilho Artigas, que, para o
autor, foi apunhalado pelas costas.
Outro homem de enorme destaque nos momentos iniciais da Argentina independente foi Bernardino
Rivadavia – figura-chave da política portenha que se opunha ao fortalecimento de San Martín e de um
projeto de unidade em torno das antigas províncias. Ao evitar a união, separava‑se a região do Alto Peru
e também a Banda Oriental – no momento, a Cisplatina, que pertencia ao Brasil.
As lutas de San Martín se desenrolavam em locais tão distantes que foi preciso que ele se encontrasse
com o outro homem visto como libertador das Américas, no caso, O Libertador. Assim, tiveram uma
audiência em Guayaquil, no atual Equador, em 1822, para decidir os rumos dos movimentos de
independência pela América hispânica. A necessidade do encontro era articular as forças contra os
espanhóis, ainda em solo americano. Além disso, o encontro tinha como motivo o fato de as forças de
San Martín estarem debilitadas e desgastadas. Por fim, em razão das recusas de auxílio de Buenos Aires,
ele poderia, no máximo, ajudar Bolívar. Tal encontro ficou registrado como a Entrevista de Guayaquil,
e no lugar onde teria ocorrido hoje existem duas grandes estátuas dos Libertadores dando‑se as mãos,
num gesto de convergência e aproximação.
O encontro se deu no Equador, cujo libertador era um militar muito próximo a Simón Bolívar,
chamado Sucre – também lá idolatrado como o “pai da pátria” e merecedor, inclusive, de nomear
a moeda nacional equatoriana até o final do século XX, quando o país passou por um processo de
dolarização. Mas voltemos ao século XIX. Bolívar escreveu a Sucre:
97
Unidade II
Nem você, nem eu, nem o Congresso do Peru, nem da Colômbia, podemos
romper ou violar a base do direito público que temos reconhecido na
América. Nesta base é que os governos republicanos se fundamentam entre
os limites dos antigos vice‑reinos, capitanias gerais ou presidencias como o
Chile (BOLÍVAR apud RAMOS, 2012, p. 183).
É importante salientar que, além das disputas regionais, nesse momento, se buscava, a partir de
Buenos Aires, enfraquecer San Martín – projeto que, ao que parecia, estava funcionando.
Observação
Dessa forma, ressaltamos como absolutamente importante não acreditar simplesmente que
as nações já estivessem presentes dentro das áreas coloniais e que fossem, necessariamente, seus
98
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE
correspondentes espaciais. A história da América independente no século XIX não é a mera continuação
da situação colonial.
A construção da imagem nacional era um problema comum aos americanos. Desse modo, de norte
a sul do continente, foram se desenhando os traços mais gerais daquelas figuras que devem representar
a essência de cada uma dessas nações.
No caso platino, a intensidade dos conflitos entre caudilhos e entre eles e o próprio Estado que
procurava firmar‑se produzia obras absolutamente fundamentais para se entender esse caráter nacional.
Um dos textos mais significativos sobre o tema é um livro chamado Facundo ou Civilização e Barbárie,
escrito por Domingo Faustino Sarmiento, que traça uma biografia de um dos mais exemplares caudilhos
platinos do século XIX, Facundo Quiroga.
Facundo era uma figura ambígua, pois ora apoiava, ora combatia o poder do presidente da república
Rosas. Ele foi assassinado em 1835. Prado (1985) indica com muita propriedade que Facundo acabou
corporificando a ideia de ferocidade, de ódio às leis (e, portanto, de contrariedade a uma ordem liberal
fundamentada, justamente, nas leis), enfim, um primitivo barbarismo. A autora ressalta que Domingo
Faustino Sarmiento era um admirador dos Estados Unidos em razão de seu sistema educacional e
também de seu progresso material, que era tido como um sinal de civilização.
Nesse ponto, é necessário ressaltar que o Brasil também tinha seus interesses no Prata, e os teria
no decorrer de todo o século XIX. Atento às instabilidades regionais, também procurava agir quando
considerava mais oportuno, e um desses momentos ocorreu durante o Período Joanino. A intervenção
contra Montevidéu foi comandada por Diogo de Sousa, e a reação local foi imediata, pois Montevidéu e
Buenos Aires assinaram um armistício diante da ameaça portuguesa. Nesse momento crítico, destaca-
se uma liderança local que ganhou um espaço significativo da história da região do rio da Prata, mas,
quase como uma correspondência à sua relevância, foi execrado por Buenos Aires e mesmo pelo Brasil.
As observações seguintes, ainda de Pimenta (2002), nos indicam que dos interesses localistas e de
seus choques com os projetos portenhos veio a desconstrução, ao menos em parte, da figura de grande
líder local – como era visto Artigas na época dos acontecimentos e por seus partidários.
A situação platina, na ótica do governo joanino estabelecido no Rio de Janeiro, era parte de seus
interesses. No convulsionado (para o mundo português) ano de 1817, o Uruguai sofria com a nova
intervenção portuguesa, cuja maior relevância foi incorporar a área dos domínios dos Braganças, ao
menos até a crise do Primeiro Reinado no Brasil. Além disso, foi o Exército português que bateu Artigas
definitivamente, obrigando sua fuga para o Paraguai, onde ele viveu até sua morte, em 1850.
Com o crepúsculo desse líder local, novos “pais da pátria” foram construídos na região. No caso
argentino, apenas para pontuar as dificuldades em manter a unidade, devemos lembrar que, durante
toda a década de 1810, foram criadas nada menos que sete repúblicas autônomas – o que por si só já
chama a atenção. Dessa forma, novos atores políticos entraram em cena ou buscaram se firmar, e, ao
menos naquela época, isso ocorria contra as imagens de San Martín e de Artigas, “reabilitados” anos
depois para servirem como úteis propagandistas nos nascentes Estados Nacionais que se firmavam.
Vale lembrar que as independências não garantiram de imediato nem unidade, nem uma simples
continuidade entre passado colonial e realidade nacional, pois a ideia de nação como referência
fundamental é uma construção posterior – bem como as projeções que daí vieram.
As escolhas de determinados heróis nacionais excluíram personagens que também tiveram grande
relevância. É importante notar que, no caso argentino, a complexidade que envolve San Martín o leva de
herói a quase santo, tal como Ricardo Rojas, em 1933, teria se referido a San Martín, o Santo da Espada.
Os principais questionamentos atualmente não se dão mais em torno da grandiosidade dos feitos de
um único herói. Scatena (2008) afirma com propriedade que:
Considerando a relevância da região platina e das relações entre antigos participantes de uma
mesma dinâmica colonial, mas já mirando possibilidades futuras pós‑coloniais, o governo de Buenos
Aires encarregou San Martín de avançar contra os espanhóis. Em seu “batismo de armas”, à frente de
cerca de 120 soldados, derrotou 250 espanhóis na Batalha de São Lourenço (ocorrida em 2 de fevereiro
de 1813). Esse feito contribuiu depois com a ideia de destreza em campo de batalha e de líder valente:
Foi nesse momento que ele traçou o plano de libertar o Peru, que era um
dos principais centros dos realistas na América Espanhola em razão de
ser importante Vice‑Reino desde o período inicial da colonização, o que
contribuiu para a formação de uma sociedade calcada em instituições
que tradicionalmente representavam o poder colonial. [...] o plano de San
Martín ia na contramão das estratégias utilizadas até então, por meio das
quais tentava‑se chegar ao Peru através da atual Bolívia, o que era quase
impossível, visto a resistência das forças militares realistas concentradas
naquela área. Diante disso, San Martín projetou cruzar a Cordilheira dos
Andes, passando ao Chile e dali pegando o caminho pelo Pacífico até o Peru.
Acreditava que a derrubada de Lima era fundamental para tomar o restante
do território deste Vice‑Reino (SCATENA, 2008, p. 25).
Talvez o episódio que mais tenha marcado esse aspecto seja o avanço em seu “Paso de los Andes”,
em 1817, para poder atacar os realistas. Apesar das ordens de avançar rumo ao Alto Peru, o governo
de Buenos Aires não estava livre de suas contradições internas. Havia aqueles que apostavam mais em
um esforço centralizador e em, a partir da capital, dominar as províncias. Essa maneira de proceder
politicamente seria conhecida como unitária e vista como o movimento de conservadores extremamente
perigosos e agressivos no sentido de retirar autonomias locais. Por outro lado, os partidários dessa
referida autonomia local, na qual as províncias não seriam subordinadas, eram, na Argentina, tidos como
federalistas e politicamente vistos como mais liberais. A tensão entre centralização e descentralização
era enorme, mas esse não era o único foco de instabilidades. O poder dos grandes senhores locais, ao se
estruturar, transformou‑se num problema de difícil solução e que, grosso modo, atravessou o século XIX
e chegou até a influenciar a política no Brasil.
6.3 O caudilhismo
Observação
Feita essa apresentação conceitual, cabe ressaltar que esses líderes locais tinham poder porque
eram amparados por milícias extremamente leais ao chefe – com um sentimento de lealdade militar
– e conseguiam estender suas influências a setores vistos pela burguesia citadina como perigosos e
instáveis. Os cavaleiros armados, os peões que cuidavam do gado nos pampas lá chamados de gauchos
e, no Brasil, gaúchos, eram uma poderosa arma, a despeito da condição de mestiços. De fato, por
causa disso, eram oriundos dos diversos mundos que compunham a sociedade de origem colonial e
buscavam seu espaço social e de sobrevivência política. A população mais rústica do interior inspirava
receio naqueles que na capital se viam como mais elitizados, intelectualizados e mesmo europeizados.
Para se ter a dimensão das possibilidades de enfrentamento, os políticos portenhos, em 1819, fizeram
uma constituição atendendo às suas demandas centralizadoras – vale dizer, unitaristas. A possibilidade
de intervenção nas províncias com a nomeação dos governos de províncias acirrou os ânimos.
102
HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE
Observação
Apesar da enorme relevância da figura de San Martín, ombreando inclusive com Simón Bolívar e,
para alguns, também merecedor do epíteto de Libertador, em razão de atritos locais e desentendimentos
quando aos rumos dos processos de independência, San Martín deixou a América e partiu para a Europa
em 1824, onde viveu na Bélgica e na França e encontrou a morte em 1850. Anos depois de seu falecimento,
foi trasladado para Buenos Aires e atualmente repousa no interior da Catedral Metropolitana de Buenos
Aires – um local muito requisitado pelos turistas que visitam a capital argentina.
No processo de construção do culto a San Martín, que ganhou impulso justamente com a chegada
à Argentina de seus restos mortais em 1880, celebrações que afetam a vida de todos os argentinos são
realizadas todos os anos:
103
Unidade II
Lembrando que nossa proposta passa pela construção das figuras tidas como heroicas, já no século XX,
os lideres das independências foram instrumentalizados em função de um nacionalismo que procurava
inventar a unidade nacional argentina e buscava suas raízes justamente no século de fundação do
Estado nacional e independente para eles unificado em torno de um grande chefe. O tema dos grandes
chefes continuou muito importante, e até mesmo antigos caudilhos passaram a ser rediscutidos, sendo
vistos como representantes de uma natureza de homens valentes e guerreiros. O argentino do interior
seria, assim, acomodado no seio da pátria. Foi feito um esforço importante para
Quando nos referimos politicamente à Argentina do século XX é muito difícil não tocar no assunto
do peronismo – assim como, ao traçar uma visão panorâmica do Brasil no século XX, necessariamente
se toca no assunto Vargas.
Juan Domingo Perón (1946-1955) aproveitou o centenário da morte de San Martín, em 1950, para
capitalizar politicamente sua imagem. Scatena (2008) indica ter sido aquele o “Ano do Libertador”.
Assim, foi construída uma imagem de San Martín que podia ser instrumentalizada pelo governo –
a ideia de um militar hábil e acima das discordâncias, que superava a dicotomia entre unitaristas e
federalistas. Vale lembrar que Perón era um militar e que o discurso populista que se escrevia nesse
momento se caracterizava, também, como um discurso de Estado de compromisso no qual o líder era
capaz de entender, e mais, de atender aos anseios de diversos setores sociais, desde que no sentido
correto e adequado da construção nacional.
Assim, visitar a Catedral Metropolitana de Buenos Aires e observar o mausoléu de seu herói nacional
equivale a procurar no Monumento do Ipiranga o mausoléu de Pedro I, mas é preciso ressaltar que, uma
vez lá, o que se nos apresenta é mais a época que mandou erigir os mausoléus – o discurso nacional
sobre seus líderes – do que essas pessoas como eram em sua dimensão não heroica e não nacionalista.
Retomando a frase célebre de Simón Bolívar, escrita em sua Carta da Jamaica, de 1815, “quem somos
nós? Não somos índios nem europeus, e sim uma espécie média entre os legítimos proprietários do país
e os usurpadores espanhóis”. Prado e Pellegrino (2014, p. 88) abordam a questão de nossa identidade
como povos americanos. As construções românticas do século XIX e a necessidade de construir as
identidades nacionais acabaram sendo objeto de muitas controvérsias.
As indicações dos percursos desenvolvidos nessas construções que as autoras fazem são muito
importantes para que seja possível perceber o esforço como generalizado, pois, no Chile, José Toribio
Medina, no Brasil, Francisco Adolfo de Varnhagen e, no México, Carlos María de Bustamante coletavam
documentos para construir uma memória nacional coletiva.
Saiba mais
El OJO del canário. Dir. Fernando Perez. Cuba: Televisión Española, 2010.
120 minutos.
HIDALGO. Dir. Antonio Serrano. México: Astillero Films, 2010. 115 minutos.
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HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE
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Resumo
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Unidade II
Exercícios
Questão 1. (Enade 2011) Nas primeiras décadas do século XIX, a região sobre a qual a Espanha
mantivera um longo domínio colonial, especialmente nas áreas que hoje correspondem a Venezuela,
Colômbia, Equador, Panamá e Peru, passou por conturbações que tiveram como um de seus protagonistas
Simón Bolívar (1783-1830). O fragmento a seguir, retirado de uma carta escrita por Bolívar no ano de
1830, em Bogotá, exprime o modo pelo qual, naquele momento, ele avaliava sua participação nos
eventos que se desenrolavam em torno de si.
“Tenho sacrificado minha saúde e fortuna para assegurar a liberdade e a felicidade de minha
pátria. Tenho feito por ela tudo o que pude, mas não tenho conseguido contentá-la e fazê-la feliz.
Tudo abandonei à sabedoria do Congresso, confiando que ele efetuaria o que não pôde um indivíduo
conseguir. [...] Minhas melhores intenções têm-se convertido nos mais perversos motivos, e nos Estados
Unidos, onde eu esperava que me fizessem justiça, tenho sido também caluniado. O que eu fiz para
merecer esse tratamento? Rico desde o meu nascimento e cheio de comodidades, hoje em dia não
possuo mais do que a saúde alquebrada. Podiam meus inimigos desejarem mais? Mas fazer-me tão
destituído é obra da minha vontade. Todos os recursos e exércitos vitoriosos da Colômbia estiveram à
minha disposição individual, e minha satisfação interior é por não ter lhes causado menor dano, [esse]
é meu maior consolo” (FREDRIGO, 2010, p. 229-30).
Associando os sentimentos expostos por Bolívar nessa correspondência aos processos que ele vivia
naquele momento, conclui-se que ele estava se referindo:
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HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE
A) Ao fracasso dos esforços para obter apoio das nações estrangeiras para a consolidação de regimes
democráticos instalados na região.
B) Ao resultado das guerras civis e às dissidências entre grupos políticos e militares, que inviabilizavam
o processo de unificação da região.
D) Às rebeliões promovidas pela baixa oficialidade, que o levaram a impor uma ditadura caudilhista
que findou por arruinar sua trajetória política.
A) Alternativa incorreta.
B) Alternativa correta.
C) Alternativa incorreta.
Justificativa: o parlamentarismo não chegou a ser uma opção forte, e não houve esforços das nações
estrangeiras nesse sentido.
D) Alternativa incorreta.
Justificativa: o declínio político de Bolívar ocorreu em meio às disputas entre poder central e poder
local e às questões regionais que acabaram por minar sua liderança e a derrocada da Grã-Colômbia. Os
problemas também se avolumavam na Venezuela, e Bolívar chegou a sofrer um atentado. Em meio à
instabilidade e à desagregação da unificação pretendida, ele se exilou e veio a falecer em 1830.
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Unidade II
E) Alternativa incorreta.
Questão 2. Eric Hobsbawn, historiador de primeira grandeza que produziu reflexões de grande
importância sobre a questão dos processos de construção das nações, afirma que:
“[...] em seu sentido moderno e basicamente político, o conceito de nação é historicamente muito
recente. [...] a “nação” era o corpo de cidadãos cuja soberania coletiva os constituía como um Estado
concebido como sua expressão política [...]. A equação nação = Estado = povo e, especialmente, povo
soberano vinculou indubitavelmente a nação ao território, pois a estrutura e a definição dos Estados
eram agora essencialmente territoriais” (HOBSBAWN, 1990, p. 30-2).
Aplicando essas ideias acerca da constituição dos Estados nacionais, analise as afirmativas a seguir:
I – A história da América independente no século XIX dá sequência à situação colonial, pois as nações
já estavam presentes dentro das áreas territoriais coloniais, sendo seus correspondentes espaciais.
II – A nação não surge de forma automática com a independência, mas resulta de um longo processo
de construção de sentimentos de nacionalidade, em que muitas vezes se forjam mitos e heróis.
III – A construção das nações latino-americanas se deu em contextos regionais diversos e foi produto
de processo complexo, resultando em países que, embora tivessem as marcas da colonização,
percorreram caminhos próprios.
IV – Após a independência, os países que surgiram constituíram novas nações democráticas em que
imperou a harmonia social, tendo por base as estruturas políticas metropolitanas.