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“OLHADOS E QUEBRANTES, COM DOIS TE BOTAI COM TRÊS EU TE TIRO”: Práticas culturais e

catolicismo popular no cotidiano das Rezadeiras.


Alaíze dos Santos Conceição1.
alizesantos@yahoo.com.br

Resumo

As Rezadeiras do Recôncavo baiano, mulheres negras e integrantes das camadas populares, são
detentoras de saberes que remontam notável contribuição africana, sobretudo quando levado em
consideração aspectos da religiosidade e práticas culturais. Concentram-se sobre sua égide
ensinamentos e práticas de cura eficazes para intervir nos desequilíbrios corporais e espirituais dos
membros da comunidade. Nesse sentido, a comunicação visa discutir algumas práticas culturais que
permeiam o cotidiano e/ou o universo religioso das Rezadeiras do município de Governador
Mangabeira - Ba, levando em consideração a presença do catolicismo (re) significado, tido como
popular, um misto do catolicismo europeu associado às contribuições das populações afro-brasileiras.
Estas mulheres deixam transparecer em seu cotidiano o caráter somático das religiões tradicionais
africanas ao agregar devoções, práticas religiosas e celebrações que conseguem abranger
características negras, indígenas e européias. Assim, pretende-se trabalhar com a hipótese de um
catolicismo cuja expressividade das práticas culturais negras tende a se “sobressair” à contribuição de
outros elementos culturais. Para tanto, os depoimentos orais das Rezadeiras constitui importante
veículo facilitador da pesquisa.

PALAVRAS – CHAVE: Rezadeiras; Catolicismo popular; religiosidade.

INTRODUÇÃO
A formação cultural brasileira contou com a contribuição e influência de povos diversos, a
saber, negros, brancos e índios. Estes povos comungaram de um mesmo espaço físico (território) e de
forma particularizada externalizaram práticas culturais proveniente das diferentes concepções de
mundo.
Os portugueses, por exemplo, logo que aqui chegaram objetivaram transpor parte dos
elementos culturais vigentes na Europa para o Brasil, interessados em transformar a colônia numa
extensão territorial européia, no qual os elementos religiosos e simbólicos, bem com a organização
social deveriam remeter a seus apegos organizacionais. Contudo, na prática, o que se verificou foram
outros acontecimentos, os portugueses se depararam com demonstrações de resistência indígena e
posteriormente resistência africana ao ignorar as diversas concepções culturais já existentes.
Os ameríndios e africanos possuíam concepções culturais que zelavam o mundo natural e
as diversas entidades sobrenaturais, o que se contrapunha ao mundo “pré-moldado” e “ortodoxo” ao
qual os lusitanos faziam parte. A importância que diversos elementos advindos da natureza possuíam,

1
Graduada em História pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Mestranda em História Social pela
Universidade Federal da Bahia – UFBA e Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia -
FAPESB. E-mail: alaizesantos@yahoo.com.br.
sobretudo nas religiões tradicionais africanas, recebiam interpretações depreciativas na concepção
portuguesa acarretando diversos conflitos. O sociólogo francês, pesquisador das religiões africanas,
Roger Bastide assinalou com bastante precisão tal fenômeno: “O branco não podendo compreender
uma religião tão diferente da sua, julgava-a ‘ demoníaca’ já que não era cristã.” (BASTIDE, 1985,
p.128).
Em meio às tentativas de sufocar as celebrações do mundo africano, os portugueses
elaboraram estratégias para manter o controle daqueles cultos, inclusive em diversos momentos os
africanos percebendo tal intencionalidade também se faziam de “rogados” e tiravam bom proveito da
situação. O processo de adoração aos santos católicos e virgens negras e a (re) significação
implantada pelos africanos, podem ser considerados como nítido exemplo da (re) interpretação da
população afro-brasileira na tentativa de manter vivo elementos integrantes de suas práticas culturais.
Esses fatores bem indicam que o culto de santos negros ou de virgens negras
foi, de início, imposto de fora ao africano, como uma etapa da cristianização, e
que foi considerado pelo senhor branco como meio de controle social, um
instrumento de submissão para o escravo. (BASTIDE, 1985, p.163).

Os portugueses acreditavam que podiam controlar os passos dos africanos, e estes – por sua
vez – se utilizavam dessas brechas para preservar as diversas celebrações de seus guias e orixás que
de maneira inteligente puderam servir nas “associações” aos santos católicos, através das trocas
culturais, servindo para manter a ordem e as aparências cobradas pelos portugueses.
O apego ao mundo natural e as divindades sobrenaturais, faziam as populações negras não
aceitarem o catolicismo da forma ortodoxa e pré-moldada que os portugueses insistiam em
representar, mas em meio a presença marcante desses diversos elementos culturais poderia ter
nascido um catolicismo mais “popular” ligado às camadas afro-brasileiras da população. Um misto do
mundo indígena, negro e português.
Em se tratando de Recôncavo sul baiano, podemos identificar à presença marcante desse
“emaranhado de crenças, saberes e práticas em que ritos originários dos índios, dos negros se
interpenetraram ao catolicismo e às tradições mágicas religiosas européias, aumentando a riqueza e a
complexidade de tais práticas” (SANTOS, 2005, p.75). Este é o caso, por exemplo, das rezadeiras,
curandeiros, raizeiros, mandigeiros, dentre outros que ainda hoje habitam o Recôncavo e colocam em
prática o exercício das benzeções, curas ou receituários provenientes dessa longa tradição.
É considerando justamente essa heterogeneidade cultural que se faz presente em diversos
espaços do país, que o artigo pretende se debruçar, para tanto se faz necessário levar em
consideração as diversas contribuições desses povos e pensar de que forma diversas práticas culturais
puderam contribuir na formação identitária das rezadeiras do Recôncavo sul baiano.
“CATOLICISMO POPULAR”

Desde a colonização brasileira o catolicismo foi declarado religião oficial, não admitindo,
portanto, a existência, de qualquer outra prática religiosa. O catolicismo que se implantaria no Brasil
procuraria se caracterizar como o catolicismo presente no mundo europeu, uma religião ortodoxa sem
grandes flexibilidades.
Contudo, a presença dos elementos religiosos dos ameríndios, juntamente com as
concepções religiosas dos africanos, proporcionou a formação de outro catolicismo paralelo aquele
desenvolvido na Europa: o catolicismo popular. Entende-se por catolicismo popular:

O conjunto de representações e práticas religiosas dos católicos que não


dependem da intervenção da autoridade eclesiástica para serem adotados
pelos fiés. Concretamente chamamos provisoriamente ‘catolicismo popular’ as
representações e práticas relativas ao culto dos santos e à transação com a
natureza e não os sacramentos e a catequese formal (RIBEIRO OLIVEIRA,
1985, p.113).

As celebrações vindas do catolicismo popular admitem a intercessão de outros indivíduos


que não precisam ser necessariamente padres ou representantes da igreja e apresenta grande
aproximação com os elementos da natureza como a utilização de plantas, banhos e chás. Tais práticas
muito têm em comum com a religiosidade indígena e afro-brasileira.
No catolicismo popular, existe um apego muito grande aos santos, cujas representações
transcendem ao mundo material. São seres dotados de poderes sobrenaturais, capazes de exercer
influências sobre o mundo natural e espiritual (RIBEIRO OLIVEIRA, 1985). O catolicismo popular
possibilita a veneração de diversos santos: os canonizados oficialmente, os santos populares e os
santos locais que possuem relativa significância em espaços limitados, haja vista o não
reconhecimento da igreja.

O fato dos santos estarem no céu não impedem sua intercessão, muito menos
suas representações no cotidiano das pessoas. Eles podem se fazer
presentes através da devoção intercedida pela representação simbólica da
imagem. A presença da imagem do santo no catolicismo popular representa o
possível contato direto entre os devotos e o santo, sem haver a necessidade
de intercessão de um membro religioso. Os santos são acessíveis a todos os
fiés. (RIBEIRO OLIVEIRA, 1985, p.117).
As rezadeiras demonstraram grande afeição a figura dos santos, fazendo questão de
demonstrar de forma prática sua eficácia e revelaram possíveis intervenções que determinados santos
puderam fazer em suas vidas.
Elas são consideradas sujeitas históricas que estão inseridas no âmbito do catolicismo popular
e pratica diversos ensinamentos herdados desse catolicismo alternativo, ajudando a preservá-lo. A
realização de uma súplica religiosa, por exemplo, intercedida pela figura da rezadeira, tende a
possibilitar novos vínculos de propagação da fé quebrando a visão conservadora dos pedidos serem
sempre intercedidos por membros eclesiásticos, a saber, do padre. Veja o depoimento da rezadeira
Celininha:
Eu tô viva abaixo de Deus, com a força e a fé, eu já sofri! Já cuidei de tanta
gente... Nossa alegria é nossa oração, vai pra igreja, tudo na igreja, mas a
gente pode fazer nossas oração dentro de casa.

A srª Celina embora tenha tido uma vida muito ativa ao freqüentar a igreja católica, mesmo
assim reconheceu a importância e eficácia da reza, independente do espaço que a mesma poderá ser
executada.
Ainda hoje, a rezadeira Celina possui um altar em sua casa com diversos santos: Cosme &
Damião, Rita de Cássia, São Pedro, Santo Antônio, São José, Nossa Senhora Aparecida, Santo
Expedito etc e ela insiste em dizer que faz suas orações para todos eles e por isso se sente muito
abençoada e protegida, mesmo que não possa freqüentar a igreja como fazia antes. Segundo ela, mais
importante que está sempre presente nas celebrações da igreja, é estar em dias com as orações.
As rezadeiras que vivenciam esta atmosfera de crença parecem não atentar para a existência
dessas duas modalidades de catolicismo, o popular e o oficial, simplesmente comungam desses dois
universos religiosos sem restrições, daí o caráter inclusivo das concepções de mundo presentes entre
elas. A rezadeira Neném contribuiu sobre o assunto com o depoimento:

Sou católica. Credito em tudo que é passado em minha igreja eu credito.


Quando não vou lá em baixo, eu vou aqui ó (fazendo menção a igreja de São
Benedito). Tanta igreja, eu vou no Gravatá , vou no Bonsucesso. Dia de
Domingo quando não tô com as pernas cansadas vou lá fazer visita dele.
Quando to em Salvador, eu vou no Bonfim, aquele do Cristo Redentor é perto.
Aquela que tem junto da praia,... Conceição da Praia é tudo perto da casa de
meus filhos.

Ao mencionar tão enfaticamente sua atuação enquanto católica, a srª Neném se


demonstrou bastante orgulhosa pela escolha feita, fazendo questão de elencar os diversos espaços
religiosos que costuma freqüentar.
Contudo, nesse campo de crenças religiosas (re) significadas por negros, índios e
europeus, as rezadeiras, trazem em seu cotidiano amostras desses imbricamentos culturais e
elementos presentes na natureza como as ervas, banhos e chás, que foram utilizados também no
intuito de levar tranqüilidade àqueles que precisavam. Pensar no encontro de culturas diferenciadas,
requer que consideremos as trocas culturais existentes no processo, ao tempo em que devemos
atentar para esses empréstimos recíprocos como possibilidade de enriquecer as práticas culturais dos
povos, muitas vezes contribuindo para o surgimento de concepções culturais híbridas, como bem
assinalou o historiador Peter Burke (2003).
Quando levado em consideração o imbricamento cultural religioso, a rezadeira Merú assim
que perguntada acerca de sua formação religiosa relatou:
Sou católica, tenho devoção a santo, Santo Antônio. Sete flecha, D. Oxum, a
princesa do mar, todos orixá.

O depoimento deixa evidente essa interpenetração cultural, pois a rezadeira se autodenomina


católica, justamente pelo caráter flexível que concebe a religião, fruto, sobretudo da incorporação das
diversas concepções culturais. A fluidez a qual a srª Merú assinala com relação aos seus devotos
“Santo Antônio”, santo reconhecido pela igreja católica, Sete flecha, o caboclo e Oxum, orixá das
religiões tradicionais africanas ou do Candomblé brasileiro, nos leva a acreditar que o “sincretismo2 é
fluído e móvel, não é rígido e nem cristalizado” (BASTIDE, 1985, p.370). A interpenetração cultural
defendida por Bastide (1985) assinala essas aproximações entre os diversos elementos religiosos.
A possibilidade de a srª Merú poder ser devota do santo católico, do caboclo e do orixá do
Candomblé ao mesmo tempo, revela aspectos religiosos existentes entre as religiões tradicionais
africanas, na qual zela pela inserção de novos elementos culturais e ao contrário da cultura ocidental,
não separa elementos culturais nem religiosos, mas inclui, somando novos símbolos e ritos. Portanto,
nessa visão de mundo, é possível sim, a rezadeira ser católica e ao mesmo tempo resguardar práticas
dos cultos afro-brasileiros, sem nenhum problema.
A rezadeira Neném relatou uma situação vivida, para justificar sua devoção a São Benedito.
Segundo ela, seu Marido Ovídio ao cometer adultério começou a maltratá-la e aos seus filhos. As
súplicas ao santo Benedito, bem como a promessa feita no momento de angústia, tornou-se de
fundamental importância para alcançar a graça:

2
A utilização do termo sincretismo religioso no parágrafo, pode ser justificada pela necessidade encontrada em
relatar como se deram as primeiras concepções conceituais acerca das trocas culturais existentes no Brasil, desde
a colonização. Entretanto, é inegável que tal conceito é rebatido por diversos estudiosos das religiões, sobretudo
por entenderem que o conceito “sincretismo” trata-se de uma nomenclatura de cunho etnocêntrico, tendo em
vista a notória tentativa de sobreposição de elementos culturais europeus, em contraposição aos africanos.
Ai,... Ovídio deixou a casa, ranjou uma mulher e foi morar com a mulher ,...e
tinha um senhor e uma senhora de junto de mim, era muito minha amiga ai
disse: Isso não foi a toa ( é não sei) o que não sei o quê! Vamo lá em
Cachoeira (...).
E lá vai, lá vai...quem me valeu foi São Benedito, viu, foi São Benedito que me
valeu, não precisou ir em lugar nenhum. Tinha festa lá de São Benedito qui
quando deu 6 horas eu juelhei pro lado dele e pedi: Oh! Meu São Benedito
que vóis me ajudar que cumpade Luís bote Ovídio dessa fazenda pra fora ,
pra ele procurar outro trabalho, eu sou devota de vóis enquanto vida eu tiver.
Quando cabou a festa de São Benedito, cumpade Luís chegou lá e disse: Seu
Ovídio, eu sou seu cumpade, mas não quero o Senhor aqui mais não. O
senhor procure seu lugar, que eu ajudo a comprar, mas a fazenda quem vai
tomar conta sou eu.
(...) a gente com fé em Deus, pede e vê mermo (...) O santo vale rapaz, quem
quiser acreditar, acredita! Nessa eu nasci, nessa eu morro! Não tem quem me
faça sair!

A narrativa de srª Neném assinala com precisão a eficácia da intervenção dos santos
protetores, devoção esta de suma importância para o retorno do marido para casa. Segundo ela, as
súplicas associadas à fé de alcançar o pedido desejado bastaram para ser atendida. Nesse caso,
insinua que resistiu ao apelo da vizinha que queria levá-la para uma casa de candomblé e resolver o
problema na cidade de Cachoeira, cidade esta bastante conhecida pela quantidade de terreiros
existentes. O depoimento também nos possibilita compreender a veneração aos santos e virgens
negras ao qual Bastide faz alusão em seu livro: As religiões Africanas no Brasil (1985).
Desse modo, nota-se que uma vida intercedida por santos protetores tende a assegurar a
estabilidade cotidiana das rezadeiras, nesse caso, os santos equivalem a personificação das forças
sagradas entre os seres humanos.

DEVOÇÃO AOS SANTOS GÊMEOS: SÃO COSME E DAMIÃO.

São Cosme e São Damião são santos católicos com grande receptividade entre as
camadas afro-brasileiras do Recôncavo baiano. No “sincretismo religioso”i, os santos foram
“associados” aos Ibejís, divindades gêmeas do Candomblé. Apesar do catolicismo oficial venerar a
figura de Cosme e Damião como santos adultos e que dedicaram a vida a praticar a medicina caridosa,
os mesmos santos “correspondem” a entidades infantis nos cultos afro-brasileiros, e é justamente
dessa maneira que Cosme e Damião são venerados pela maior parte de seus devotos: os santos
meninos.
Nos dias de comemoração 26 e 27 de setembro seus devotos geralmente ofertam doces,
balas, pirulitos, pipocas para alegrar a meninada ou preparam e ofertam o tradicional caruru de sete
meninos. O culto aos santos gêmeos: Cosme e Damião teve seu início no século XVI, sendo trazido
para o Brasil pelos portugueses. Com o passar dos anos, os santos que se tornaram padroeiros dos
médicos, dos farmacêuticos e dos cirurgiões foram rejuvenescendo e aos poucos se identificando com
os mitos africanos: o orixá Ibeji, responsável pelo nascimento de gêmeos entre os nagôs. É importante
pensar que os novos contatos culturais de uma sociedade mestiça favoreceram a infantilização dos
santos. (LIMA, 2005).
É justamente nesse contexto de devoção que podemos notar o envolvimento das
rezadeiras nos festejos aos santos gêmeos e a popularidade que estes têm. Indiretamente, a forma
pela qual existe a veneração dos santos gêmeos, nos remete a elementos presentes nos cultos afro-
brasileiros e que historicamente foram incorporados ao catolicismo através das trocas culturais. As
rezadeiras vivenciam essas diversas trocas culturais, sobretudo em função da presença marcante dos
elementos africanos no Brasil. Entretanto, algumas demonstraram certo menosprezo em reconhecer as
possíveis origens da benzeção, bem como se demonstraram um tanto quanto taxativas ao relegar para
segundo plano as religiões que descendem dos africanos. Nesse sentido, a srª Celininha afirmou:
Rezo de tudo minha fiá, com os poderes de Deus! Meu corpo ta doente, mas
minha mente não! Tenho amigo do Candomblé, mas não sou do Candomblé!
Sou católica, acredito nas forças da Virgem Maria. A gente tem que escolher
um caminho só!

A fala deixa transparecer uma ligeira recusa da rezadeira Celininha a manter relações de
aproximações com o Candomblé, o que segundo ela desvia por completo da opção religiosa que faz
parte: o mundo católico. Ela admite relativas aproximações com os freqüentadores dos cultos afro-
brasileiros, entretanto está segura do “caminho” que escolheu.
Assim como Celininha, outras rezadeiras se demonstraram reticentes aos cultos afro-
brasileiros, sobretudo quando interrogadas se conheciam ou acreditavam na sua eficácia. A rezadeira
Teka demonstrou opinião parecida com a da srª Celininha acerca dos cultos afro-brasileiros:
Não credito nesse negócio de Candomblé! Eu... Credito em Deus. Nunca fui
nesse lugar, desde pequena acho que esse negócio não bota ninguém a
frente. O povo (...) tudo atrasado! A gente crê em Deus, é quem nos vale e não
essas coisas!

Nota-se a repulsa da srª Teka ao falar do Candomblé, entretanto não devemos esquecer que
essa visão preconceituosa acerca dos cultos afro-brasileiros foi historicamente construída como mais
uma estratégia do mundo europeu em sempre associar a cultura negra a atributos pejorativos. Prova
desse processo é justamente o repúdio que determinadas pessoas atribuem ao Candomblé sem ao
menos visualizar alguns elementos básicos que o compõe. Trata-se de estereótipos erguidos e que
sobrevivem até hoje.
Ora, apesar de algumas rezadeiras possuírem concepções conservadoras acerca dos cultos
afro-brasileiros, todas elas demonstraram grande afinidade ao São Cosme e Damião e os festejos
existentes nas celebrações dos santos gêmeos. É justamente esta “harmonia” e devoção que
passaremos a analisar. São Cosme e Damião são tão presentes na vida das rezadeiras que careceram
de atenção especial, os santos gêmeos conseguiram adentrar nesses espaços da cultura popular com
relativa facilidade:
O São Cosme era de meu pai, mas eu era uma filha tão amada de pai que
ele já tava velhinho, ele me entregou o São Cosme que eu adoro desde
mocinha,... (Depoimento da srª Celininha)

A relação estabelecida entre a srª Celininha e o São Cosme foi feita antes mesmo de seu
nascimento, pois a devoção de seu pai remontava longa data. Assim, o vínculo entre o santo era de
cunho familiar e de aliança, na qual existia uma relação permanente de devoção e proteção entre eles,
membros da família. As celebrações feitas em homenagem aos santos gêmeos existiam de maneira
incondicional e não por razões de promessas ou pedidos de favores. O São Cosme deveria proteger a
família da srª Celininha independente das solicitações.
Observa-se ainda que o culto aos santos gêmeos é justificado por diversos motivos e razões. A
rezadeira Teka iniciou o culto aos santos por ter tido netas gêmeas e na busca pela saúde de suas
netas e proteção, resolveu ofertar o caruru como possível forma de selar aliança com os santos. No
caso da srª Neném, ela foi aconselhada a fazer a oferta do caruru a fim de “abrir seus caminhos” e ter
mais prosperidades na vida. Vejamos o que informou a rezadeira Neném:
O negócio é pegar,... não podia dormi de noite, aquele negócio, aquele sono
na minha frente,... Ai eu fui lá em Carmelita, ela mandou eu fazer! que eu
fizesse o caruru ficava bom. Ai eu comecê fazer, fiz até sete ano, de sete ano
eu parê porque Ovídio morreu, quem era a cabeça era Carlinhos, morreu
também,... a vida miorou, miorou sim!

Após a realização do caruru a srª Neném diz que realmente as melhoras foram obtidas,
assegurando os bons resultados. Segundo ela bastou somente agradar os santos, que logo eles
puderam interceder em sua vida e promover melhoras. Ainda no depoimento a srª Neném mencionou a
srª Carmelita que para algumas pessoas se tratava de uma médium que dava orientações espirituais.
As rezadeiras concebem a existência de um vínculo eterno entre elas, devotas e o santo, não
podendo haver o rompimento da aliança firmada, pois se caso venha a acontecer, as mesmas estariam
sujeitas a possíveis cobranças.
Nessa atmosfera de devoção, a rezadeira Merú narrou uma determinada situação em sua vida
que a remeteu a identificar como possível “castigo” do santo, ao ter sido momentaneamente ignorado:
Eu adoeci, ai o médico Dr. Valdi mandou buscar uma moça em Conceição de
Feira que não sarava a doença de jeito nenhum. Fiquei cega e alejada, ai a
doença não sarava de jeito nenhum, o braço não saia, ficou alejado! Ai vortou ,
ai ele mandou buscar essa, essa mandigueira quando ela chegou passou os
banhos. Com esses banhos fiquei boa, ai acorde, ai pronto acordê! Disso pra
cá, eu não queria cuidar peguei sofrendo muito, cuido! Agora só deixo quando
morrer! E digo a minhas irmã se tiver qualquer... vá pro médico não dá jeito
porque tem muito médico de espiritismo que já avisa logo: procure uma
folhinha pra tomar um banho porque sua doença não é aqui. Pois é peguei a
dá o caruru com 17 ano, quando parei adoeci!

A depoente narrou o fato como nítida expressão das cobranças feitas por São Cosme e
Damião, ao terem sido ignorados por ela, ocasionando a quebra de um vínculo firmado. Segundo ela,
só conseguiu visualizar a situação após a manifestação da doença, seguida da interferência de outras
pessoas “entendidas do assunto”. A fala ainda revela a curiosa situação em que um médico dá
orientações à paciente para que se sirva dos serviços de uma mandingueira no combate da doença.
Tal situação nos remete a pensar que o Dr. Valdir possui aproximações e crenças com os cultos afro-
brasileiros, inclusive reconhecendo as limitações que a “medicina oficial” possui em determinadas
“doenças”.
Nesse caso, através da manifestação da doença, a senhora pôde visualizar os maus fluídos
que tumultuavam sua vida, ao tempo em que recorreu a explicações que não conseguia encontrar no
plano físico.
A doença desestruturou a vida da srª Merú de tal maneira que a mesma procurou explicações
científicas para dar conta da situação em que vivia, não conseguindo êxito e por fim recorreu a uma
explicação sobrenatural, que a forçou a rememorar os passos que haviam dado nos últimos tempos
acerca de sua displicência para com os santos gêmeos. A srª Merú relembrou possíveis falhas em suas
condutas enquanto fiel ao não cumprir uma obrigação firmada entre ela e São Cosme e Damião: a
oferta do caruru todos os anos. Assim, o firmamento do vínculo entre os santos gêmeos e a rezadeira e
o possível rompimento, acarretou uma situação catastrófica, na qual ela perdeu os movimentos do
corpo.
Nesse sentido, acreditando que o Recôncavo apresenta traços das diversas concepções
culturais do mundo africano, é possível entender a situação de instabilidade que fez parte da vida da
srª Merú a partir da visão de mundo de alguns povos africanos. Na África, acredita-se que a
estabilidade da vida é regida por um equilíbrio de forças, seria a ação constante do indivíduo com o
mundo terreno que irá ser fator determinante para manter o equilíbrio nas relações que executam.
(HAMPATÈ BÂ, 1982).
Uma vez violando as forças que regem o universo através das relações de doação e devoção,
haveria a perturbação da organização do indivíduo. Nesse caso, a srª Merú quebrou o equilíbrio
existente entre ela e os santos gêmeos, o qual possuía um vínculo de oferta e proteção, acarretando a
desordem e o desequilíbrio na saúde.
No imaginário das populações afro-brasileiras, Cosme e Damião são entendidos como santos,
cuja impulsividade e vaidade rememoram as crianças, portanto os santos meninos não gostam de
serem contrariados e se caso alguém prometer algo para eles, devem cumprir o mais rápido possível,
pois os mesmos não admitem interrupções nas oferendas. Notamos que apesar de serem enxergados
como santos católicos, São Cosme e Damião são agradados e venerados como os Ibejís do
Candomblé.
Ora, Cosme e Damião santos católicos em nada tem a ver com os Ibejís do Candomblé que
gostam de doces, balas e caruru, afinal trata-se de médicos nascidos na Arábia, cristãos, portanto seus
agrados no mínimo se distanciariam de todos esses adorados pelos Ibejís. Na verdade, sabe-se que
tais práticas de agrado ao Cosme e Damião católico, da mesma maneira que os orixás do Candomblé,
tiveram seu surgimento a partir da interpenetração cultural advinda do Brasil colonial. (LIMA, 2005).
Assim, os orixás africanos foram associados aos santos católicos havendo a “correspondência”
dos Ibejís ao santos Cosme e Damião. Contudo, os agrados costumeiros ofertados aos Ibejís eram
direcionados da mesma forma aos santos católicos, prática esta que passou a ser executada pelos
diversos grupos sociais e que perdura na atualidade.
Nesse contexto, há quem acredite fielmente que a forma de agradar o Cosme e Damião seja
ofertando doces e o caruru. Mas, se formos tomar como ponto de partida a distribuição do caruru, por
exemplo, de nada mantêm aproximações com a cultura européia, muito menos é um prato típico da
Arábia, onde nasceram os santos católicos. Do mesmo modo, pensar na simbologia do caruru e os
elementos que o compõe, a saber, do azeite-de-dendê encontraremos marcas do “mundo africano”,
que por hora encontra-se imbricado nos festejos aos santos gêmeos.
Ao que parece, ao nos referimos à religiosidade das rezadeiras devemos nos preocupar em
não cometer generalizações, pois o mundo das benzeções é por demais amplo e complexo, podendo
abarcar diversas concepções culturais a depender do indivíduo participante.
Para Burke (2003), em seus estudos acerca do hibridismo cultural, ao nos defrontarmos com
que possivelmente diz respeito a duas tendências culturais distintas, não devemos ter a falsa
impressão, muito menos devemos tentar entendê-la de forma separada, pois “não existe uma fronteira
cultural nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo contrário, um continuum cultural” (BURKE, 2003, p.16).
Portanto, no contexto das benzeções definir até que ponto o culto aos santos gêmeos trazem
elementos do mundo afro-brasileiro ou do catolicismo popular é uma empreitada difícil de se resolver,
contudo dentro desse universo é possível identificar elementos presentes nessas duas tendências
culturais. Ora a rezadeira tida como católica recorre a uma médium – denominação mais amena, para
muitas depoentes, que curandeira – ora freqüenta assiduamente as igrejas católicas.

FONTES ORAIS:

Aumerinda Conceição Rodrigues. Apelido D. Merú. 59 anos de idade. Lavradora e charuteira em


exercício da profissão. Rezadeira, nascida no Município de Governador Mangabeira, atualmente reside
nesse mesmo município. Data de nascimento: 20/07/1946. Entrevista em 11/07/2007.

Celina de Jesus Neris. Apelido D. Celininha. 84 anos de idade. Charuteira aposentada. Rezadeira,
nascida na cidade de Bonfim de Feira de Santana. Atualmente reside no Município de Governador
Mangabeira. Data de nascimento: 15/05/1923. Entrevista em 06/12/2006 e 10/07/2007.

Francisca Santos Oliveira. Apelido D. Neném. 73 anos de idade. Lavradora aposentada. Rezadeira,
nascida em Laranjeiras, zona rural do Município de Governador Mangabeira. Atualmente reside na
cidade de Governador Mangabeira. Data de nascimento: 08/02/1934. Entrevista em 26/04/2007 e
14/07/2007.

Maria Custódia Cerqueira da Silva. Apelido D. Teka. 73 anos de idade. Lavradora aposentada.
Rezadeira, nascida em Queimadas, zona rural do Município de Governador Mangabeira. Atualmente
reside na cidade de Governador Mangabeira. Data de nascimento: 24/07/1934.Entrevista em
29/04/2007.

REFERÊNCIAS:

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: Contribuições a uma sociologia das interpenetrações
de civilizações. Tradução: Maria Eloísa Capellato e Olívia Krahenbuhl. 2ºed. São Paulo: Livraria
Pioneira, 1985.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo um estudo sobre religião popular. 2º ed. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
BURKE, Peter. A cultura popular na Idade Moderna. Europa 1500-1800. Tradução: Denise Bottmann.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
____________. Hibridismo cultural. São Leopoldo – RS: Unisinos, 2003.
DIAS, Maria Rosália Correia. Por uma compreensão do conceito de gênero. In: CARVALHOS, Tereza
Cristina Pereira Fagundes (org.).Ensaios sobre Identidade e gênero. Salvador: Helvécia, 2003.
FENELON, Déa Ribeiro. Cultura e história social: historiografia e pesquisa. In: Projeto história: Revista
do Programa de estudos pós-graduados em História e do departamento de história da PUC-SP. São
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..............................................

Umbanda, Quimbanda e Candomblé: tensão moral produtora do novo religioso

Ângela Cristina Borges3.


cre_unimontes@yahoo.com.br.

Deus mostra o caminho, o Diabo, o desvio.


Então: béra o bêco
(Ditado sertanejo)

No sertão norte-mineiro o campo religioso afro-brasileiro - por nós denominado como afro-
sertanejo - tem se caracterizado pela coexistência num mesmo terreiro de três religiões: Umbanda,
Quimbanda e Candomblé. O trânsito entre estas tradições religiosas não é um tanto inusitado, a
migração entre as mesmas é considerada como algo comum. No entanto, não se pretende neste texto
tratar especificamente da conversão de uma religião à outra ou mesmo de uma simples circulação de
adeptos pela tríade. Interessa-nos abordar o desdobramento axiológico-metafísico gerado pela
convivência do trio num mesmo terreiro sertanejo. Desdobramento que emerge como algo complexo e
passível de análise na medida em que aponta para a institucionalização de uma nova crença, uma
religiosidade que reflete a hibridez típica de regiões de fronteira como o sertão norte-mineiro.

3
Mestre em Ciências da Religião PUC-SP. Professora da UNIMONTES-MG.
Entre os sacerdotes das religiões afro-sertanejas, principalmente entre aqueles que circulam
em outras regiões permeia a certeza de que no Norte de Minas Gerais a demanda “corre solta”.
Comentam que os habitantes do sertão têm uma “queda” por feitiços. Quando não conseguem resolver
seus problemas apelam para o misticismo afro. Não é novidade que o homem se direciona para a
religião quando a razão demonstrativa, esbarrando em seus limites, recua dando espaço para a busca
do sobrenatural. No Norte de Minas Gerais verificamos que a motivação pelos feitiços que sustenta os
terreiros sertanejos são as demandas, as guerras que se instauram na vida profissional e familiar a
ponto de não se esperar a ação da razão. Injustiças e perseguições idealizadas ou não tornam a magia
um recurso urgente para se encontrar equilíbrio e tranqüilidade bem como sua manutenção. De acordo
com o Pai-de-Santo Ricardo Luiz de Freitas Rosa, sacerdote da região, um dos motivos principais pela
procura do terreiro afro no sertão norte-mineiro é “derrubar” pessoas. O desejo de arruinar alguém
certamente possui uma causa ou pretexto, sendo que em pesquisa de campo detectamos como
motivos principais: disputa amorosa, disputa profissional, retaliação e inveja.
O sacerdote da Roça Gongobiro Unguzu Moxicongo - terreiro sertanejo - Maurício Pereira de
Jesus narra um fato que ilustra a certeza dos sacerdotes sertanejos da existência da macumba e seus
perigos. De acordo com ele, um dia, ao abrir o portão do seu terreiro encontra sobre a calçada um
“despacho”. Para se orientar sobre o que fazer recorre ao Exu da Quimbanda. A entidade o orienta a
trazer o “despacho” para o interior do templo e depositá-lo em sua casa (casa de Exu). Seguindo as
orientações da entidade, o sacerdote com a ajuda de médiuns de sua confiança, “desfaz” a magia. O
“des-fazer”, na verdade, é o retorno da mesma, sob a forma de energia, ao lugar de origem e,
conseqüentemente, ao seu autor. Sem ter conhecimento do inimigo, o sacerdote recomendado pela
entidade Exu esperou resultados. Passados dias, um homem o procura e lhe confessa ter depositado o
“despacho” em sua calçada. Revela-lhe o nome dos autores e o motivo: fechar seu terreiro.
Muitos casos semelhantes ao relatado são narrados por sacerdotes, integrantes e clientes dos
terreiros. Como dito, para os primeiros, a procura por feitiços e a contratação de trabalhos para atacar
ou defender no sertão norte-mineiro é superior a outras regiões. Acreditam que a proximidade com a
Bahia e o misticismo indígena aliados às baixas condições de vida no sertão e em menor proporção, a
divulgação da existência demoníaca feita pelo simulacro pentecostal nutrem a “natureza” do sertanejo.
Esta parece ser eternamente marcada pela violência sempre presente na sua história. Situado na
fronteira com a Bahia e possuindo clima, fauna e flora semelhantes à área nordestina, o sertão norte-
mineiro se manteve, durante um longo período da sua história, longe do aparelho colonizador atraindo
desta forma aqueles que não se subordinavam ao controle português. Terra inóspita, o sertão abrigou
bandos que saqueavam o litoral. A presença destes e a ausência estatal o tornou uma terra “sem lei”,
ou melhor, uma terra com suas próprias leis.
Os fatores citados contribuem na manutenção de um quadro místico onde, mesmo
veladamente, viver no sertão norte-mineiro é “negócio perigoso”, a possibilidade de estar sendo
perseguido espiritualmente causando o “desandar” da sua vida direciona o sertanejo culturalmente
místico aos templos afro. Procedentes das mais variadas religiões recorrem aos seus rituais em busca
de ajuda, defesa e proteção. Entretanto, proteger e defender no sertão pode significar contra-atacar
como forma de manter a integridade espiritual e física, ouvimos de muitos sacerdotes: “se uma mãe
tem que chorar que não seja a minha”.
Reforça o mencionado os resultados da pesquisa que realizamos em 2007 nas principais
casas de comércio de artigos de Umbanda na cidade de Montes Claros, pólo industrial e comercial da
região. Detectamos que sequencialmente os produtos mais procurados pelos sacerdotes são velas,
pólvora, banhos, incenso e imagens. Os três primeiros produtos revelam o movimento em busca de
defesa, na linguagem mística, do descarrego. Incenso, perfumes e defumadores denunciam a crença
do sertanejo na possibilidade de ser atingido por algum tipo de energia negativa que possa atrapalhar
sua vida profissional e amorosa, a última se protege com o extrato de alfazema e lavanda. Entre as
imagens mais procuradas destaca-se a de São Jorge guerreiro/Ogum, responsável pelas demandas e
Orixá da guerra. A cachaça também é utilizada como banho de descarrego ou remédio após ser
“preparada” pelo entidade Escora ( Exu doutrinado).
Esse universo constituído de incensos, pólvoras, pingas, ritos de descarrego, velas de todas
as cores, em especial, vermelhas e pretas e ainda despachos, demandas, galinhas pretas, cervejas e
ebós, nos leva a pensar que a violência é face oculta nesta cultura. A sobrevivência do sertanejo numa
terra onde o banditismo e o mandonismo local outorgavam uma ordem caótica certamente contribuiu
para o desenvolvimento de uma visão de mundo baseada no choque de valores contraditórios. A busca
pelo bem, isto é, a garantia da integridade física, material e emocional pode engendrar o mal. Rosa
explicita claramente esta questão axiológica na passagem abaixo, do Grande Sertão Veredas:

Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas,
não dá mandioca mansa, que se como comum, e a mandioca - brava, que
mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de
repente virar azangada - motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada
no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai amargando, de
tanto em tanto, de si toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava,
também é que as vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum
mal (ROSA, 1985, p. 10).

Não se trata apenas de afirmar que no sertão sempre houve uma tensão entre o bem e o mal,
mas de reconhecer que esta tensão é uma realidade sertaneja presente nos seus universos simbólicos.
Cada um destes valores produz o seu contrário ou é produto dele, pois um nasce do outro. Essa tensão
é perceptível no imaginário umbandista sertanejo, sendo que para este não é o bem que combate o
mal, pois, a única força capaz de anular a ação deste é o próprio mal, colocado a serviço do bem.
Sobre as noções de bem e mal, na Umbanda podemos vislumbrá-las a partir de uma
comparação com o cristianismo. Na opinião de Negrão:

A questão axiológica referente ao bem e ao mal e seus limites se coloca,


conforme toda religião de alguma forma moralizada, como central na
Umbanda. Não é, contudo uma questão teologicamente equacionada, como
no universo simbólico cristão, plenamente definido. Neste, além do evidente
maniqueísmo, o mal está configurado no demônio, personagem mítico
essencial, pois sem ele a bondade divina seria sem sentido. Bem e mal, Deus
e o Diabo, anjos e demônios existem, opõem-se drasticamente e não
comportam gradações em si. Na Umbanda, tal como afirma um pai-de-santo,
“Deus é bom e o Diabo não é mau”. Se o bem é inquestionável e identificado a
Deus, os espíritos maléficos não são intrinsecamente maus, podem ser
batizados ou doutrinados e evoluir em sua direção (NEGRÃO, 1996, p. 337).

Esta questão axiológica é também definida no sertão por Silva, sacerdotisa de Umbanda,
Quimbanda e Magia Negra, Rosa dos Santos Silva, em entrevista:

Acredito em Deus, mas não rezo pra ele.


Deus tem poder, o Diabo tem força.
Deus é pai do Diabo e nós somos irmãos dele.
Nada mais, nada menos, eu mecho com a
criação de Deus. (Rosa dos Santos Silva.
Entrevista, 2007).

Para o sacerdote Maurício Pereira de Jesus a Quimbanda, com um panteão constituído de


Exus e elementos das profundezas não representa o mal em si, mas sim a defesa contra este.
Ontologicamente os Exus não são maus, mas apenas desconhecem o bem. Faz-se necessário o
trabalho com estes em rituais de Quimbanda para adquirirem discernimento e assim não prejudicarem
os seres humanos. Em entrevista realizada em outubro de 2006 com a sacerdotisa de Umbanda Nair
Lopes Dias verificamos a relação afetiva que a mesma mantém com sua Pomba-Gira:

Eu quero agradecer Serena.... quando eu falo que se não fosse minha amiga,
se você [Pomba-Gira Serena] não ficasse perto de mim, eu não sei não,[...]
Então ela é uma moça que eu agradeço muito, porque eu falo: a baixo de
Deus se não fosse essa força, eu acho que não estaria aqui não (Nair Lopes
Dias. Entrevista, 2006).

Deus, no alto e Exu, em sua forma de Moça Bonita, do lado para amparar, apoiar e
defender. A sacerdotisa sertaneja confia sua proteção e segurança a uma entidade que para ela não
faz o mal. Somente a protege afastando dela qualquer coisa que signifique “atrapalho”, ou seja,
energias negativas. A defesa contra o mal, então, deve ser elaborada por uma força semelhante em
nome do bem. No imaginário religioso do umbandista sertanejo se acredita na lei do retorno, afastar o
negativo encomendado significa retorná-lo a quem por direito pertence: o autor da magia. Retroceder o
mal via “amigos” espirituais não é enveredar pelo caminho negativo - conotação cristã - mas se
esquivar, se desvencilhar, beirar o bêco, se proteger e livrar-se da negatividade.
Entretanto, a Umbanda e a Quimbanda parecem não serem suficientes para os sertanejos,
observa-se desde os meados dos anos 60 o fenômeno da inserção dos seus sacerdotes no
Candomblé. Prandi afirma que,

No curso da década de 1960, [...], o velho Candomblé surgiu como forte


competidor da Umbanda. Com sua lógica própria e sua capacidade de
fornecer ao devoto uma rica e instigante interpretação do mundo, o
Candomblé foi se espalhando da Bahia para todo o Brasil, seguindo a trilha já
aberta pela vertente umbandista. (PRANDI, 2004, p. 3)

No sertão, a aproximação entre estas religiões acrescida do Candomblé pode ser


encarada como um processo híbrido, uma vez que sua adesão, como ocorreu em outras regiões, não
significa o abandono ou negação da Umbanda, Canclini ( 2006, p.XIX) afirma que estruturas e práticas
separadas “se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. É o que ocorre no sertão
norte-mineiro, estruturas e práticas da Umbanda e Quimbanda se misturam às composições do
Candomblé mediante um fluxo dialético de significação e re-significação, em ritmos que fogem à
percepção dos seus adeptos. Muito possivelmente o fato das práticas bantos – que influenciaram o
universo religioso afro brasileiro - dominarem o Candomblé Sertanejo pode ter contribuído para o
desencadeamento do fenômeno de introdução de sacerdotes umbandistas nesta religião bem como
estar influenciando na combinação de suas práticas e cosmologias a ponto de gerar uma nova
religiosidade. Processo semelhante originou a Umbanda. (BASTIDE apud CONCONE, 1972, p. 25)
considera que a Macumba, estágio anterior a Umbanda, “seria resultante da introdução do culto dos
Orixás na Cabula de origem banto, aliada a influencias indígenas e influencias do catolicismo popular”.
Silva (2005) demonstra através de um quadro que elaborou sobre as influências e denominações
regionais das religiões afro-brasileiras que as religiões indígenas, o catolicismo popular, o espiritismo
popular europeu e o kardecismo associados às práticas bantos entre outras manifestações religiosas
afro originaram o Candomblé de Angola e de caboclo na Bahia e a Umbanda de todo o Brasil. Desta
forma, pode-se inferir que a influência banto/angola presente no Candomblé e na Umbanda tenha
também aproximado, no sertão fronteiriço, as duas religiões a ponto de junto a Quimbanda, coexistirem
institucionalmente.
Retornando ao campo afro-sertanejo, no continuum , o Candomblé se apresenta como
mais um recurso mediúnico na busca por proteção e equilíbrio. O ingresso nesta crença pode
acontecer de maneira total ou parcial. Consideramos como inserção total a Feitura de Santo, atitude
vulgarmente conhecida como “fazer a cabeça” ou “fazer o santo”. Para a feitura de santo o iniciado é
recolhido por dias se submetendo a sucessivos rituais até estar preparado para representar seu Orixá
de cabeça se comprometendo com ele. A inserção parcial não tem o mesmo nível de comprometimento
que a total e, acontece de várias formas dependendo da “necessidade espiritual” daquele que a
procura. Pode se restringir a um Bori (Rito para fortalecimento espiritual da cabeça (ori) de uma
pessoa), ou assentamento do Orixá (Conjunto de objetos (pratos, ferro, búzios, pedra, etc que
representa o Orixá) . De toda maneira, qualquer inserção significa manter ligações eternas com o Orixá
que deve ser cultuado à maneira do Candomblé. Na atualidade, muitos sacerdotes umbandistas
sertanejos optam pela introdução parcial e em função desta alternativa não se vêem como
candomblecistas, apenas como um umbandista que apelou ao Candomblé no intuito de encontrar
estabilidade espiritual não encontrada na Umbanda. De qualquer maneira, a inserção parcial ou total
influencia a prática umbandista revestindo-a de uma hibridez que propicia o novo, foi o que verificamos
nos terreiros afro-sertanejos.
Nestes, as giras de Umbanda e Quimbanda são marcadas pelo expontaneísmo. Nota-se
através da expressão corporal e do canto a identificação entre médium e entidade antes mesmo do
transe ocorrer, a lógica do ritual é inteiramente espiritual. A intuição, motor que alimenta o misticismo
ao demolir a racionalidade aproxima o sensível do supra-sensível. No entanto, cada vez mais, à
medida que o Candomblé ocupa espaço no terreiro, se observa alterações nas giras de Umbanda,
principalmente quando o sacerdote é “feito no santo”. Progressivamente, tais giras estão se
assemelhando a roda de dança do Candomblé quando se canta e dança especificamente para cada
Orixá. Como muitos adeptos não possuem um conhecimento vasto do Candomblé, o sacerdote se vê
como regente da gira inserindo no rito uma nova lógica na medida em que o conduz de forma
semelhante ao rito do Candomblé. Ganha-se em organização e perde-se em liberdade, o ritual é de
Umbanda mas sua gira lembra o Candomblé.
Outra característica da gira de Umbanda e Quimbanda que vem sendo alterada pela
influência candomblecista é o transe. Segundo o Tatêto Ricardo Luiz de Freitas Rosa, o Kiozô, a
manifestação do Orixá no Candomblé difere da manifestação de um antepassado (Umbanda e
Quimbanda), pois no Candomblé não há in-corporação, mas sim ex-corporação. O médium externa o
Orixá presente em seu interior, que não é um ser estranho, mas sua própria natureza. Assim, no ato de
externar a natureza – transe -, o corpo do médium sacode como se algo adormecido ganhasse
movimento. Na gira de Umbanda, ocorre o contrário, o corpo é ocupado por um agente estranho, ou
seja, num mesmo espaço corporal dois seres devem permanecer. Para que isso seja viabilizado o
corpo do médium é girado pelo espírito num ritmo rápido até a entidade sentir que é ela quem domina.
Cada vez mais, nos terreiros sertanejos onde o Candomblé está presente, é comum que o transe de
possessão se assemelhe ao transe de ex-corporação do Orixá próprio do Candomblé.
Da relação entre Candomblé e Umbanda, outras mudanças ocorrem tornando o espaço
religioso umbandista híbrido e intersticial. Do encontro com o Candomblé o tratamento dispensado ao
sacerdote de Umbanda pelos seguidores, “Meu padrinho”, “Minha madrinha” foram substituídos por
“Meu Pai e Minha Mãe”. Como é sabido por todos, este tratamento é comum no Candomblé onde a
relação entre Tatêto e adepto se configura numa relação filial. A introdução no Candomblé tem
concedido à comunidade umbandista sertaneja a certeza de que a partir do terreiro que fazem parte,
constituem uma família com laços de parentesco espiritual tecidos na convivência religiosa regida pelo
Tatêto. Mesmo quando o sacerdote não está inserido no Candomblé a relação que anteriormente
configurava os adeptos como seus afilhados e protegidos hoje os configuram como filhos. Tais laços
concedem ao grupo uma nova identidade, o Candomblé parece dar ao grupo maior coesão ao
promover, mais que a Umbanda, um consenso não apenas espiritual, mas também familiar. Mesmo os
não iniciados, que não compartilham dos fundamentos do Candomblé, mas participam ativamente dos
seus rituais, se vestem de forma semelhante aos candomblecistas, cantam e se cumprimentam em
africano.
O continuum mediúnico torna o espaço mais místico ao alterar a geografia dos terreiros
traduzindo, a partir de transformações estruturais, uma dimensão espacial híbrida e sincrética onde
estão distribuídos elementos do Candomblé, da Umbanda e da Quimbanda. É o que se vislumbra na
Roça Gongobiro Unguzu Moxicongo, terreiro afro-sertanejo onde coexistem as três religiões. De forma
a oferecer equilíbrio ao continuum mediúnico, neste terreiro foram edificadas construções que
acomodassem a cosmologia da tríade, vejamos: Sevêro das Almas (Umbanda), Casa de Exu
(Quimbanda),Assentamentos (Candomblé), Tronqueiras ( Quimbanda), Casa de Exu ( Candomblé),
Casa de Ogum (Candomblé), Casa do Marujo e do Caboclo ( Candomblé), Casa de Tempo e Catendê (
Candomblé), Gruta do Baiano ( Umbanda), Pejí (Umbanda), Quartos de santos, Sabají, Rancó (
Candomblé), Quarto de Oxalá (Candomblé), Quarto do Mutacalambô Gongobiro (Candomblé), área ao
ar livre (aproximadamente 250m²) com um cupim ao centro(Quimbanda) e um grande salão onde são
realizadas as sessões. Num mesmo local, três religiões afro-brasileiras não apenas dividem o espaço,
mas interagem e, interagindo o utilizam segundo suas prerrogativas de forma a oferecer aos adeptos e
clientes um leque de alternativas para o enfrentamento da vida.
Um estudo mais aprofundado sobre a coexistência num mesmo templo das três religiões
pode nos dês-velar sobre categorias articuladas entre si, nos referimos à cultura, à identidade e à
religiosidade sertanejas. A questão axiológica presente neste território reflete o ethos sertanejo e se
revela na dimensão espacial do terreiro, basta nos ater à presença da entidade Exu tanto na prática da
Quimbanda quanto do Candomblé. Exu tem existência nas Tronqueiras da Quimbanda, nos
Assentamentos do Candomblé, é presente no Peji de Umbanda como Escora e de alguma maneira tem
sua representação sugerida através da Casa de Ogum pelo Candomblé. Mas, o marco da sua
presença é a sua existência num grande cupim (1,80m² de altura por 2m² de largura) cultivado no
centro de uma área de 250m². Neste, Exu é cultuado, alimentado e invocado. Vislumbrar a dimensão
espacial deste terreiro afro-sertanejo tendo como ponto de referência a entidade Exu nos leva à
compreensão da visão de mundo dominante no sertão, nos colocando-nos diante não apenas da sua
religiosidade, mas, sobretudo, frente à sua cultura e identidade.
Neste sentido, em pesquisa de campo, constatamos que as mudanças não se reduzem à
estrutura física, mas se estendem e se aprofundam na medida em que atingem a dimensão metafísica
presente no imaginário dos adeptos do terreiro. A questão essencial para o entendimento da metafísica
resultante da tríade é a compatibilidade cosmológica que aproximam as religiões no sertão norte-
mineiro. Verificamos na região que a influência Angola/Banto domina o seu Candomblé evitando, desta
forma, uma ruptura entre este e a Umbanda, principalmente, em terreiros onde dividem espaço
juntamente com a Quimbanda. Nestes terreiros não nos parece haver uma oposição, a começar pela
proveniência do Candomblé da região. Sobre a diversidade dos ritos bantos na cidade de Montes
Claros foi constatado em estudo que,

[...] realmente os Terreiros de Candomblé existentes nessa região são todos


provenientes na Nação Angola, ou seja, praticantes dos ritos Bantu, com todos
os aspectos culturais pertencentes a esses povos, oriundos das regiões
africanas de Angola, Congo, Moçambique e toda África do Sul Equatorial [...].
(CAMPOS, 2004, p. 68)

Desta forma, no sertão - espaço intersticial, isto é, de fronteira, onde elementos culturais
se misturam em movimentos dialéticos de combinação e negação ao processar re-significações - está
se tornando impossível qualquer possibilidade de ruptura entre Umbanda, Candomblé e Quimbanda
em função da concepção metafísica de mundo espiritual que se originou da sua coexistência. Como
campo do conhecimento, para Romero (2003) a metafísica é o estudo dos três mundos: o mundo
absoluto, o mundo ideal e o mundo material. Interessa-nos neste estudo a concepção que os adeptos
da Roça Gongobiro Unguzu Moxicongo possuem do mundo ideal e da relação deste com o mundo
material. Desta forma, conceberemos nesta discussão o conceito de metafísica como teologia, que
consiste em reconhecer como seu objeto um ser elevado e perfeito do qual provêm os outros seres e
as coisas do mundo. As especulações metafísicas, assim como as ciências, são baseadas na
observação do mundo material, portanto, se a prática religiosa se modifica entende-se que a
transformação corresponde à realidade ideal, sem a qual a religião não poderia existir. Nesta
concepção então, o mundo material não surge de si mesmo, isto é, do profano, pois procede do espaço
sagrado. Sendo assim, a tríade Umbanda, Quimbanda e Candomblé, como dizem os adeptos da Roça
Gongobiro Unguzu Moxicongo, é uma extensão do espaço espiritual que corresponde à realidade ideal.
Concordamos com Ciampa (2005) quando diz que o nome não é a identidade, mas a
representação dela. A identidade estaria na ação e no movimento, ou seja, na prática. O agir, portanto,
é o que realmente identifica. Partindo deste princípio, a tríade como prática religiosa descarta a
possibilidade do adepto em se identificar optando por uma ou outra, uma vez que o seu agir religioso
corresponde ao continuum visto por ele como conexo. A tríade não se trata apenas de um caso de
tripla pertença ou mesmo – em função da sincretização entre Umbanda e Candomblé - de um
Umbandomblé, a questão é mais profunda se estendendo a um plano metafísico resultante da
integração prática entre estas religiões.
Na Roça Gongobiro Unguzu Moxicongo há um cuidado em se cultuar equilibradamente as
três religiões como a realização dos seus rituais em dias diferentes e a observância dos fundamentos,
festividades e datas sagradas de cada uma. O cuidado com os fundamentos de cada “energia”, o rigor
em manter cada uma delas dentro da sua proposta constrói um conjunto que reflete um todo mediúnico
e religioso. No atendimento aos clientes ou mesmo no retorno de alguma demanda enviada ao terreiro
recorrem-se as três “energias”, ou seja, a “receita” - para a resolução dos problemas de quem procura
os serviços do terreiro – pode possui ingredientes de Umbanda, de Quimbanda e de Candomblé.
O continuum mediúnico, portanto, está envolvido numa mística de atividades inter-
relacionadas construídas pela tríade, o que nos induz a vislumbrar o nascimento de uma nova
coerência religiosa neste terreiro. Coerência que pode assinalar a institucionalização de uma nova
religião. Mesmo que sejam executadas em separado suas práticas preenchem possíveis lacunas, ou
seja, o que a Umbanda não atende é atendido pela Quimbanda ou Candomblé. O mesmo pode ser dito
das outras. Suas limitações são superadas pela totalidade metafísica que construíram no terreiro. No
plano transcendente suas noções são associadas pelos adeptos gerando um todo cosmológico que
concilia a cosmologia de cada uma. Mesmo que seus elementos sejam contrapontos, muito
possivelmente ocorre o que Canclini (2001) prevê: os opostos ao mesmo tempo em que tendem a se
excluírem tendem também a se interpenetrar, conjugar e se identificar. Em contato, signos, sentidos e
significados diferentes provocam relações de conflito e de harmonia, ou seja, relações sincréticas.
No imaginário religioso deste terreiro constatamos a construção de uma ordem espiritual
que constitui um novo mundo supra-sensível, uma totalidade das coisas existentes numa dimensão
acima do espaço físico. Devemos entender que,
Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta
roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das
outras.[...]. Há, portanto, um espaço sagrado [...] e há outros espaços não-
sagrados. [...] para o homem religioso essa não-homogeneidade espacial
traduz-se pela experiência de uma oposição entre o espaço sagrado – o único
que é real, que existe realmente – e todo o resto,[...] (ELIADE, 2001, p. 25).

No mundo além físico, os Orixás habitam um plano mais alto (Candomblé), abaixo estão os espíritos
em evolução (Umbanda) que regidos pelos Orixás ajudam a humanidade; inferior a este há outros
planos habitado por eguns involuídos e em evolução (Quimbanda ), completa a lógica sobrenatural a
certeza de que cada pessoa manifesta em sua natureza um Orixá. O conjunto, de todos estes seres
compõem uma metafísica que na linguagem deste terreiro se denomina “espiritualidade”. Portanto, as
influências do Candomblé nos terreiros de Umbanda provocam um deslocamento metafísico: o mundo
supra-sensível de versão kardecista que compôs a metafísica da Umbanda é substituída por uma visão
influenciada pelo Candomblé de natureza banto. Tal deslocamento certamente altera a visão de
mundo do crente que diante deste não é apenas candomblecista, sua identificação neste sentido reduz
sua identidade. Na falta de um nome que o identifique, o adepto se autodenomina espírita.
Quanto à preferência por uma ou outra religião, entre os clientes do terreiro notamos o
gosto pelas sessões e festas de Quimbanda. Das três “energias”, o Candomblé ocupa o terceiro lugar.
Segundo o sacerdote, isso se deve ao fato desta “energia” ter sido implantada posteriormente, quando
todos já estavam acostumados com a Umbanda e a Quimbanda. Já os adeptos declararam não
conhecerem bem a nova “energia” e quando cantam em língua africana não compreendem com clareza
o significado das palavras, mas se dizem cientes de que os Búzios no Candomblé possui poder
profundo a ponto de “enxergar” o que os olhos físicos não vêem. Embora não compreendam bem esta
“força espiritual” cada vez mais sentem confiança em relação a ela crendo que pelo Candomblé é
possível alcançar equilíbrio do espírito e saúde, nem sempre encontrados na Umbanda e na
Quimbanda. Assim navegam pela tríade, considerando as “energias”, mas demonstrando afinidades e
confiança em uma ou outra. Podemos considerar a tríade como uma construção eclética pós-moderna
que atende preferências e necessidades do sertão pós-moderno.
Em relação aos motivos responsáveis pela inserção dos sacerdotes de Umbanda no
universo candomblecista, dois consensos permeiam o imaginário afro-sertanejo. Para o povo-de-santo,
em relação à Umbanda, o Candomblé significa uma graduação de nível superior. Com mais
conhecimento espiritual, principalmente acerca da natureza (Orixás), o candomblecista aprimoraria sua
faculdade de discernimento, isto é, teria mais facilidade e competência para discernir entre o certo e o
errado sem se apegar a dogmas considerados universais. Entretanto, muitos umbandistas e entre
estes aqueles que parcialmente aderiram ao Candomblé discordam. Para eles, a nova opção religiosa
é motivada pela oportunidade profissional que esta religião concede, isto é, como a lei de Umbanda é a
da caridade, entidades como Preto-Velho e Caboclo não permitem aos seus médiuns a cobrança por
atendimentos e trabalhos. Já no Candomblé isto pode ser feito, pois a preparação do Tatêto, a
aquisição do conhecimento e atualização, e manutenção material dos Orixás geram custos. Para o
sacerdote umbandista Gersom Pereira de Souza - que está se iniciando no Candomblé “A Umbanda é
a raiz, mas o Candomblé é o sustento”, em suas palavras percebe-se a preocupação quanto a força
que o sacerdote deve ter para se manter em equilíbrio, ou como o próprio diz “É preciso manter-se em
pé”. Consensos e dissensos à parte, verificamos que a questão central motivadora encontra-se velada
nos discursos de candomblecistas e umbandistas. O que realmente move e estimula a procura pelo
Candomblé como mais um recurso mágico religioso é a questão moral historicamente presente na
cultura norte mineira: o conflito entre o bem e o mal: tensão moral produtora do novo religioso.
Na questão axiológica sertaneja que se reflete na irmanação dos contrários – Bem e Mal -
e, na inauguração de uma nova coerência religiosa, uma personalidade que consideramos ser central é
o Exu. A ênfase nesta personalidade não descarta outras, como exemplo, a do Caboclo, mas na tensão
entre o bem e o mal, Exu é a personalidade principal ao agir como força ambivalente e ambígua que
nutre a tensão. A representação vulgar deste Orixá (Candomblé) e Egum (Umbanda e Quimbanda) foi
traçada a partir de considerações cristãs que o associaram ao Demônio. De mensageiro iorubano,
Legba (assim era chamado e venerado pelos fons.) se tornou uma das representações do Diabo
cristão, não apenas por contrariar regras - em função das suas atribuições específicas no panteão que
o tornava um ser livre - mas também pela representação africana da sua figura (era representado
sempre com o falo evidenciado). A visão euro-cristã logo o associou a imoralidade, indecência e
vaidade, atributos do Diabo cristão.
Desta forma, ganhou deste, entre outras, as qualidades de embusteiro, astucioso,
enganador, violento, irascível e perverso sendo que sua noção como princípio dinâmico que nos foi
legada pela filosofia africana, vulgarmente é ignorada. Para Trindade e Coelho:

O pensamento lógico africano baseia seus conceitos sobre o universo na


premissa epistemológica que trata das ações e relações entre os fenômenos,
como um constante processo dialético de equilíbrio e desequilíbrio provocado
pelas forças contidas neste fenômeno. Desta maneira, o universo é concebido
como um complexo de forças que se defrontam, se opondo ou se
neutralizando. O equilíbrio atingido na configuração dos sistemas não implica
em harmonia estática e estruturada, mas é sempre um equilíbrio instável
dirigido por princípios dinâmicos e estruturantes.
O princípio dinâmico da existência cósmica e humana é simbolizado, nas
religiões ioruba e fon, pela divindade Exu. Exu é um princípio. Pertence e
participa de todos os domínios da existência cósmica e humana (TRINDADE;
COELHO, 2006, p. 23).

Nesta perspectiva são muitas as narrativas míticas sobre esta divindade e em todas há um
ponto em comum: a liberdade, o dinamismo e o movimento de Exu. Nas religiões afro-brasileiras, em
função de todo um processo histórico-cultural - em que o negro africano teve a sua liberdade cerceada
e, na luta pela sobrevivência mascarou suas crenças redefinindo-as, Exu foi reconstruído
simbolicamente a partir de mutações e permanências do pensamento africano. No Candomblé, suas
relações simbólicas foram mantidas com as divindades e os homens, entretanto, estas relações
adquirem o significado de atuação e regência de Exu na ordem social, mas sempre sujeito ao sistema
de crenças desta religião. Na Quimbanda, Exu é transportado ao âmbito dos comportamentos e nesta
dimensão é individualizado adquirindo mais liberdade, quebrando a tradição, colocando regras em
dúvida e rompendo normas. Além de ser uma força contra a ordem social dominante que expropria o
negro, Exu é recurso e esperança diante das insatisfações, infelicidades, perseguições e demandas
pessoais. Seu caráter duvidoso leva esperança àqueles que presos pelos grilhões das convenções
desejam romper com a tradição seja ela social, política ou moral.
Na Quimbanda, Exu se aproxima dos homens ao estabelecer via magia relações diretas
com eles, ouve, aconselha, orienta, elogia, diminui o peso das regras, deixando claro que podem ser
rompidas ou transformadas. Exu alimenta a auto-estima do consulente. No combate místico, é a
resistência humana a situações sociais indesejáveis e, na busca pela felicidade é o desejo individual de
liberdade ao transcender normas comportamentais. Sem dúvida, é a entidade mais procurada nos
terreiros sertanejos, ou através do jogo de búzios (Candomblé) ou no atendimento público e individual
(Umbanda e Quimbanda). Amaral ao abordar a gira de Exu no Terreiro do São Domingos (Americana-
SP) afirma:

É facilmente verificado o aumento tanto de adeptos quanto de consulentes nos


dias de gira de Exu. Segundo o sacerdote, isto se dá porque eles são mais
acessíveis e falam mais diretamente com as pessoas, dando certa liberdade.
Já os caboclos e os Pretos Velhos são mais sérios e não atendem
determinados pedidos feitos pelos consulentes (AMARAL, 2006, p. 26).

A observação do autor se aplica também ao sertão norte-mineiro. Verifica-se em seus


terreiros que a gira de Exu concentra mais pessoas, apesar dos Pretos Velhos serem acessíveis e
atenciosos. Dependendo do problema do consulente, o próprio Preto Velho pode orientá-lo a procurar
Exu. No terreiro sertanejo, Recanto de Pai João Velho, esta entidade não trabalha se não autorizado
pelos Pretos Velhos, portanto, estes estão cientes do seu movimento. Sebastião Leite sacerdote afro-
sertanejo há mais de 40 anos afirma: Os Exus são capangas dos Pretos Velhos, o Preto Velho não faz,
mas tem quem faz: os Exus. Quanto à preferência pelos Exus, observamos, nas sessões de
Quimbanda, que Escoras e Pomba-Gira deixam os consulentes mais a vontade tratando-os com humor
e intimidade.
Neste sentido, acreditamos que a procura por Exu nos terreiros do sertão, mais que
acessibilidade e despojamento, se deve à identificação entre os sertanejos e esta personalidade. O
Exu é uma figura ambivalente que retrata o perfil do homem do sertão, homem que se delineia nas
oscilações entre o bem e o mal, o amor e ódio, Deus e Demônio, fé e descrença, religião e magia,
situando-se sempre na posição fronteiriça que o ambiente do sertão inflige. Em Exu, o sertão extrapola
a noção de espaço físico e geográfico para se tornar marco da alma humana. A busca por ele pode
significar a procura por si mesmo, o herói morto pelas condições sociais não satisfatórias, mas que
revive ao driblar pela magia a incapacidade material de resolver suas condições existenciais. Através
de Exu o homem, dialeticamente, se movimenta movendo sua realidade, pois Exu é princípio dinâmico
denunciador do devir, da instabilidade e da inversão, isto é, é a dinâmica que restaura o equilíbrio
instável, portanto, é vida, vigor, irreverência, ação e liberdade.
A tríade possui Exu como elo, como conexão entre as “energias”. Ele está sempre
presente. No Candomblé é a natureza humana, portanto, ao olhar para Exu, o homem olha para si
mesmo. Não é apenas uma mera afinidade, mas reconhecimento de si. No Candomblé não se fala com
Exu, uma vez que ele é natureza. Então, é procurado na Quimbanda e a ele são confiados segredos e
os desejos mais íntimos. Ele orienta sobre a vida profissional e familiar, une e separa pessoas, oferece
ajuda, esclarece enigmas pessoais. Sua liberdade e movimento o tornam atraente, pois não existem
limites para essa entidade. Agradá-lo, torná-lo amigo, ganhar sua simpatia é garantia do bom combate
e da vitória.
Esta personalidade é esfera viva no dia-a-dia do terreiro ao se manifestar como ponte pela
tríade. No jogo de búzios concede intuição ao Tatêto intermediando homens e divindades. Detecta
também se o consulente está sofrendo a ação de um Exu obsessor, ou seja, de Quimbanda, neste
sentido Exu (Candomblé) orienta agradar Exu (Quimbanda) que uma vez satisfeito pode inclusive se
transformar em capanga de Preto Velho (Umbanda). Em função de um encosto (Exu) causador das
agruras humanas, as pessoas procuram a Umbanda se consultando com suas entidades que também
indicam Exu (Escora, Pomba-Gira) para afastar o encosto. Portanto, tem presença marcante no terreiro
a partir das funções que lhe são próprias em cada uma destas “energias”. Sem Exu a Umbanda, a
Quimbanda e o Candomblé não existem, perdem a razão de ser. Sem ele a tríade não é possível.
Enfim, essa personalidade tão híbrida quanto à alma sertaneja mantém o continuum
integrado, firme e cada vez mais forte na medida em que se coloca numa posição fronteiriça entre o
bem e o mal. Na relação entre o sagrado e a conduta sertaneja, Exu expressa a visão de mundo no
sertão. Seu movimento, sua possibilidade de inverter situações e criar ambigüidades, sua capacidade
de beirar o bêco, e de se colocar nos limites axiológicos próprios do sertão o tornam atrativo, pois à
alma sertaneja se identifica. Exu alimenta a irmanação dos contrários e estimula o nascimento de uma
nova religião

REFERÊNCIAS
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O CANDOMBLÉ NA CIDADE DE GOIANIA

Clarissa Adjuto Ulhoa4


clarissau@gmail.com

O objetivo central do presente trabalho consiste em apontar algumas reflexões acerca do


processo de constituição do candomblé goianiense, de forma a dar continuidade aos estudos iniciados
na graduação e, ainda, formular questões para o que virá a se constituir em uma dissertação de
mestrado. Vale ressaltar que esta pesquisa encontra-se vinculada à linha de pesquisa “identidades,
fronteiras e culturas de migração”, a partir da qual se baseia teórico e metodologicamente. Nesse
sentido, é importante ter em vista que o candomblé consiste em uma cultura de migração por
excelência, pois partiu da Bahia para outros estados brasileiros, a partir da década de 1960. E, nessa
direção, observa-se que se constitui, nesta capital, como fenômeno que privilegia o estudo de fronteiras
e identidades. Sendo assim, há aqui o esforço em se problematizar as questões das identidades
presente, fundamentalmente, na situação de fronteira entre as religiões de matriz européia e as de
influência africana, assim como entre as diferentes vertentes destas últimas.
As motivações que precederam o interesse em investigar temas ligados às religiões de
influência africana na capital goiana estão relacionadas, primeiramente, com a constatação de que a
produção acadêmica acerca do assunto encontra-se em situação deficitária. Nesse sentido, o déficit de
pesquisas que abordem estas religiões em Goiás, aponta para um processo de “silenciamento”
presente no seio da sociedade em geral e reiterado pela academia. Em especial no que diz respeito à
produção historiográfica, uma vez que geógrafos, antropólogos e teólogos já têm se debruçado de
forma mais efetiva sobre essas questões. Tudo isso em face da instituição da Lei 10.639/2003, que
torna inadiável o aprofundamento sobre os temas a serem trabalhados de acordo com suas diretrizes.
Finalmente, a confrontação com o “Episódio Vaca Brava”, contribuiu para reforçar a necessidade de se
pensar a presença destas religiões em Goiânia. Segue, portanto, a descrição deste episódio e algumas
reflexões subseqüentes.

4
Pesquisadora do Centro Interdisciplinar de Estudos África-Américas (CIEAA / UEG). Mestranda em História
pela UFG.
Goiânia, dia 20 de novembro de 2006. Em comemoração ao dia da consciência negra, a capital
goiana recebe em um dos seus cartões postais – o Parque Vaca Brava – a exposição itinerante do
artista baiano Tati Moreno. A obra, composta por oito estátuas representando os orixás, cada qual
medindo cerca de sete metros, foi instalada no interior do lago do parque, onde sua permanência
estava prevista para até meados do mês de janeiro. No entanto, o que era para constituir-se como um
momento de apreciação, tornou-se um espaço aberto para a manifestação de preconceitos e para a
edificação da discriminação. Nessa ocasião, líderes religiosos de determinadas igrejas pentecostais
goianienses encabeçaram várias ações de repúdio às estátuas dos orixás, no intuito de promover a
depreciação das imagens e exigir a remoção das mesmas. Jornais goianos de grande circulação, como
o “Diário da Manhã” e “O Popular”, veicularam uma série de reportagens a respeito deste episódio, o
que demonstra sua grande repercussão.
Em entrevista ao jornal “Diário da Manhã”, o bancário Gilmar César afirmou não ter gostado da
presença das estátuas no parque. Segundo ele, “a data não é apropriada para este tipo de crendice”,
referindo-se a proximidade com o Natal. Já a atendente Helvenai de Castro, disse a esse mesmo jornal
que a exposição se prestava a impor a cultura negra, o que para ela aumenta ainda mais a diferença
entre as raças. O autônomo Evaldo Simão, por sua vez, demonstrou desconhecer completamente o
que as estátuas representavam, arriscando dizer que se tratava de algo relacionado a Roma. Há
também a opinião da pastora da Igreja da Paz, Sandra Cardoso, para quem “esses tipos de crenças
vêm cooperar para dar abertura a influências demoníacas nas vidas das pessoas”. Assim, a pastora
afirma que se posicionar contra a exposição significa proteger a cidade de influências espirituais
negativas. Representantes das religiões católica, espírita e evangélica disseram ao jornal que
gostariam de ter o mesmo espaço que foi oferecido ao candomblé.
O acontecimento acima descrito, além de ilustrar as tensões existentes no campo religioso da
capital goiana, fornece subsídios para discussões específicas importantes. Entre elas o processo de
“invisibilização” que acomete o candomblé na cidade de Goiânia, processo este exemplificado por meio
do total desconhecimento de muitos a respeito não apenas de seus elementos marcantes, como
também da sua própria existência nesta cidade. Afinal, é muito comum deparar-se com o espanto do
interlocutor que acaba de ser informado que em Goiânia existem, sim, terreiros de candomblé. Há,
ainda, o processo de “demonização”, freqüentemente empreendido pelas religiões cristãs de matriz
européia, em uma tentativa de desqualificar e deslegitimar o candomblé enquanto uma religião
possível. Nesse sentido, não há o “encontro” entre universos religiosos distintos, mas o “encobrimento”
de um sobre o outro (DUSSEL, 1993). As tensões delineiam, desta forma, o que se pode chamar de
“situação de fronteira”.
Para Pesavento (2000), o conceito de fronteira relaciona-se “com princípios de reconhecimento
que envolvem analogias, oposições e correspondências de igualdade, em um jogo permanente de
interpenetração e conexões variadas”. (PESAVENTO, 2000, p. 36). A “fronteira” estabelece-se,
portanto, como local privilegiado para a observação da construção e reconstrução das identidades.
Sendo assim, é possível notar no emaranhado discursivo inerente ao “Episódio Vaca Brava”,
justamente o jogo de oposições, baseado na compreensão de que a identidade depende
necessariamente da marcação da diferença (WOODWARD, 2000). Observa-se, entretanto, que esta
marcação se dá, na maioria das vezes, por meio da ação dos grupos hegemônicos que se prestam a
“encobrir”, de forma a violentar, explicitamente ou não, as possibilidades enunciativas e, nesse caso,
cosmogônicas, do “Outro”. No entanto, é importante ressaltar que há, por parte do grupo “encoberto”,
aquilo que Matory (1998) chama de “agency”.
De acordo com a compreensão deste autor, os adeptos das religiões de influência africana são
sujeitos igualmente ativos no processo de negociação de identidades e de sobrevivência. São,
portanto, “agentes” e não apenas vítimas passivas do agenciamento alheio. Assim, ao se pensar o
contexto do candomblé goianiense, observa-se o esforço por parte de seus adeptos em expor, divulgar
e se inserir, inclusive politicamente, nos mais diversos espaços sociais. Nesse sentido, as estátuas dos
orixás não são apenas uma divulgação da cultura afro-brasileira – como argumentou muitos daqueles
que, apesar de defenderem a permanência da exposição no parque, não queriam tocar na delicada
questão religiosa – mas uma tentativa nada inocente de divulgar a cosmogonia do candomblé e tornar,
esta e outras religiões de influência africana, “visíveis”. O mesmo pode-se dizer sobre o Afoxé de
Goiânia que, desde 1992, busca consolidar-se como espaço de divulgação, de reivindicação e de
enunciação das referidas religiões.
Quando se trata, ainda, da “declaração de identidade”, os candomblecistas lançam mão de
outro expressivo recurso: a identificação com as chamadas “nações diaspóricas”. Na opinião de muitos
autores, “nação diaspórica” consiste em um conceito adequado para definir a maneira como uma
grande variedade de povos e culturas distintas foi agrupada, por imposição do colonizador, segundo
semelhanças lingüísticas, étnicas, religiosas, entre outras. Nesse sentido, não se trata de nações
anteriores à diáspora, que foram essencializadas e conservadas até chegarem ao Brasil. É o que
afirma Matory (1998), ao utilizar a nação yorubana como exemplo: “Foi a dispersão e as atividades de
milhares de retornados durante a fase de colonialismo britânico que produziu a identidade novamente
unitária chamada ‘Yorubá’” (MATORY, 1998: 60). Assim, o candomblé não pode ser visto como a
expressão estática daquilo que existia na África, como se fosse uma “religião em conserva” (AGIER,
2001), embora o povo-de-santo assim afirmar muitas vezes.
No entanto, o estudo destas “nações diaspóricas” é fundamental para a compreensão dos
códigos simbólicos dos candomblés, tendo em vista que cada “nação” originou um modelo ritualístico
diferenciado. É também fundamental para se perceber a maneira como o povo-de-santo constrói e
negocia sua identidade. Para Silva (2006), “[...] através da relação entre pai e filho-de-santo e do
pertencimento a determinadas “nações” (ou terreiros destas “nações”), as pessoas sabem que posição
ocupam no conjunto das identidades constitutivas do povo-de-santo”. (SILVA, 2006, p. 114). No
âmbito do candomblé goianiense, está identificação com diferentes “nações” não poderia deixar de
estar fortemente presente. Nesse sentido, torna-se particularmente interessante se perceber a maneira
como essa identificação ancestral é manipulada por seus agentes, não apenas no diálogo entre os
candomblecistas, como também entre estes e as outras religiões de influência africana e até mesmo
com as religiões cristãs de matriz européia.
Segundo a documentação oral, na capital goiana há terreiros que se auto-identificam como
pertencentes à nação banta e outros que se vinculam à nação jeje-nagô. O rito jeje-nagô diz respeito
às nações nagôs (ketu, ijexá, etc.) e jejes (jeje-fon e jeje-marrin), e o rito angola aos povos da nação
banta, como os falantes das línguas kikongo e kimbundo, provenientes da região de Angola.
Geralmente, nos terreiros em que se prevalece o rito jeje-nagô são cultuados orixás, voduns, erês e
caboclos. Os terreiros de candomblé que cultuam predominantemente os orixás são conhecidos como
candomblé de ketu, enquanto aqueles que enfatizam o culto aos voduns são chamados de candomblé
jeje. Já nos terreiros de candomblé angola, se cultua os inquices, os orixás, os voduns, os vunjes e os
caboclos (SILVA, 2005). Sendo assim, é possível observar o caráter fundamentalmente híbrido do
candomblé de angola, revelado pela diversidade de seu panteão. Já o candomblé de ketu reivindica o
título de “pureza”, em vista de sua pequena parcela de hibridização.
De acordo com a oralidade, o primeiro terreiro goianiense de candomblé, em atividade desde
1973, se identifica com a tradição angola. Fundado pelo Babalorixá João de Abuque (ou João de
Oxóssi), o Ilê Axé Ibá Ibomin localiza-se no Setor Pedro Ludovico e possui diversos filhos e filhas-de-
santo. João de Abuque nasceu na cidade de Salvador e, segundo ele, decidiu se instalar na capital
goiana devido ao desejo dos orixás, que queriam estender o candomblé até outros lugares do país. O
Babalorixá conta que se iniciou no candomblé de ketu baiano, aos oito anos de idade, devido a
problemas de saúde, pelas mãos do Babalorixá Zequinha de Oxóssi (GARCIA, 2002). Seu terreiro, em
consonância com a tradição angola, apresenta uma forte hibridização, em vista da presença de
imagens de santos católicos – que estão relacionados a determinados orixás – assim como a imagem
de um caboclo. O complexo do terreiro é formado pelas instalações comumente encontradas nesse tipo
de espaço: o barracão, a cozinha de santo, os quartos de santo e o roncó.
O Ilê Axé Omi Bagtô Jegedé, atualmente localizado na cidade de Águas Lindas de Goiás, foi,
segundo a documentação oral, o primeiro terreiro goianiense de ketu. Seu fundador, o Babalorixá Djair
de Logunedé, se iniciou nesta religião na cidade do Rio de Janeiro, mudando-se para Goiânia em
1993. De acordo com um de seus filhos-de-santo, as motivações que precederam a trajetória do
Babalorixá Djair são de duas ordens: uma mítica, e a outra prática. Segundo a concepção mitológica,
ele recebeu do seu orixá a incumbência de partir em busca de novos caminhos, uma vez que, em um
dos rituais de ebó que realizou, o orixá de sua cabeça se manifestou e disse que deveria formar um
terreiro em Goiás. Além do mais, no que diz respeito às motivações de ordem prática, o Babalorixá
Djair desejava conduzir seu próprio Ilê Axé. Neste terreiro, apenas os orixás são reverenciados, uma
das características que marca sua vinculação com a tradição ketu, sendo também reconhecido pelos
seus pares como o pioneiro desta tradição em Goiás.
No entanto, conjectura-se que outra religião de influência africana contribuiu decisivamente para a instalaç
umbandista a responsável por abrir o caminho das religiões de influência africana nesse novo espaço,
estranho ao candomblé. Nessa análise, deve-se levar em conta que os terreiros de umbanda seguem
uma classificação, de acordo com sua aproximação em relação ao kardecismo ou, por outro lado, em
relação ao candomblé. Nos que estão mais próximos ao candomblé, pode-se observar o culto aos
orixás, muitas vezes relacionados a santos católicos. Nesse sentido, a umbanda rompeu paradigmas
ao se inserir em um espaço dominado fundamentalmente pela religião católica e impor, desta maneira,
outros elementos de significação religiosa, tais como o culto aos orixás, aos caboclos e aos preto-
velhos.
Além do mais, de acordo com a documentação oral, com a chegada do candomblé na capital
goiana, muitos adeptos da umbanda decidiram tomar obrigação nesta nova religião da qual muito se
ouvia falar, mas muito pouco se conhecia. Esse fenômeno de troca de terreiro se configurou tanto no
início da década de 1970, com a chegada do Babalorixá João de Abuque, quanto no início da década
de 1990, com a chegada do Babalorixá Djair. Neste segundo caso, no entanto, não houve apenas o
fluxo de umbandistas para o candomblé de ketu, como também de adeptos do candomblé de angola
em direção a este último. Desta forma configurou-se uma situação de conflito, uma vez que perder
filhos-de-santo para outro babalorixá passou a representar não apenas a perda de prestígio – aspecto
possivelmente central no continuum que parte da umbanda em direção ao candomblé – mas também a
perda de “clientes” interessados naquilo que Alves (1979) denomina como “bens espirituais de
consumo”.
A respeito deste conflito há ainda poucas informações. Afinal, trata-se de um assunto
melindroso, sobre o qual os entrevistados preferem não se delongar. No entanto, foi possível constatar
que a questão das identidades vinculadas às nações de candomblé, abordadas em momento anterior,
foram decisivas no âmbito da referida disputa entre ambos os terreiros assinalados. Isso porque o Ilê
Axé do Babalorixá Djair, ao denominar-se ketu, trouxe a tona a já reiterada valorização desta tradição
como uma versão mais “pura” de candomblé. Este fato contribuiu para a atração de novos adeptos e de
novos clientes. Por outro lado, o Ilê Axé do Babalorixá João de Abuque utiliza-se do título de
“candomblé pioneiro” para firmar seus espaços de poder e reafirmar sua identidade. Na atualidade,
após o transcorrer de disputas não apenas simbólicas como também efetivamente traduzidas em
ameaças e coações, o relacionamento entre ambas as tradições parece ser de afastamento, em um
esforço de transparecer certa indiferença em relação ao Outro.
Finalmente, ao se reconhecer o caráter elementar do presente trabalho, haja vista a
complexidade do tema e a necessidade de maior aprofundamento, há aqui o desejo em lançar
considerações finais que apontem as possibilidades abertas pelas discussões até aqui apresentadas. A
começar pela possibilidade de se pensar o candomblé em uma cidade relativamente nova e
historicamente marcada pela presença das religiões cristãs, o que resguarda certas especificidades
importantes para a compreensão do candomblé de maneira mais ampla. E, ainda, a possibilidade de se
pensar o fenômeno da etnicidade em sua moderna configuração, em consonância com aquilo que
Agier (2001) chamou de “grandes empreendimentos identitários”. Encerramos, portanto, com uma
citação deste autor, que afirma que

Assistimos então a atitudes que se dão ao ar de retornos (‘retorno à


etnia’) ou de recolhimento (‘recolhimento sobre si’, recolhimento identitário’,
‘busca de ‘raízes’) quando, ao decodificar os processos e resultados de sua
busca, descobrimos antes inovações, invenções, mestiçagens e uma grande
abertura para o mundo presente. (AGIER, 2001, p. 10-11)

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WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz
Tadeu da (Org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

......................................................

Religião e Política no Candomblé em São Paulo:


Debates sobre uma problemática histórica e um discurso político.

Irinéia Maria Franco dos Santos5


irineiafranco@usp.br

Resumo: O objetivo deste artigo é introduzir a discussão sobre a problemática da relação


religião/política enfrentada pelos terreiros de Candomblé na cidade de São Paulo. A partir da análise do
discurso de encerramento de um xirê, proferido pelo Babalorixá Sidney de Xangô em Osasco, quer-se
apontar: (a) o enfrentamento histórico entre a hierarquia dos terreiros e a ação policial e político-
repressiva dos governos municipais e; (b) o desdobramento deste embate nas ações alternativas
(afirmativas) desenvolvidas pelos líderes nas comunidades-terreiro atualmente. Com isso, espera-se
auxiliar no desenvolvimento de fontes para o estudo das transformações históricas sofridas pela
religião em São Paulo.
Palavras-chave: Candomblé em São Paulo; Religião; Política.

Introdução

5
Mestre e Doutoranda em História Social pela FFLCH-USP. Pesquisadora do Núcleo de Estudos de África,
Colonialidade e Cultura Política (NEACP) do Departamento de História da USP. Membro da equipe editorial da
SANKOFA: Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana.
A discussão sobre a relação entre as religiões afro-brasileiras e as políticas públicas voltadas
para a população negra no Brasil têm alcançado maior atenção nos últimos anos. Ao se completar os
120 anos da Abolição “comemorado” em 2008, muitos se pronunciaram sobre a necessidade de se
assegurar e reafirmar o lugar da cultura e das religiões afro-brasileiras no espaço público. Como
também lutar para estabelecer juridicamente o respeito, a proteção e o direito de culto destas,
assegurando-lhes a categorização de religiões e não a de seitas, “folclore” ou reminiscências
(sobrevivências) de um passado, desligadas de qualquer relação com a dinâmica atual da vida social e
cultural do país. Nesse sentido, este artigo procura apresentar alguns elementos dessa problemática
através de dados colhidos em pesquisa de campo realizada em outubro de 2008, durante um xirê (festa
pública) no Ilê Alaketo Axé Xangô em Osasco, São Paulo.6
Sabe-se que a perseguição às religiões afro-brasileiras foi constante no período escravista
entre os séculos XVI e XIX. No entanto, no pós-abolição fortificou-se durante a tentativa de formulação
da identidade nacional brasileira com caráter de uma república moderna e industrial. As elites urbanas
pensavam que só seria possível alcançar tal objetivo através de políticas voltadas para o
branqueamento da nação através do incentivo à imigração européia, e da eliminação de traços de
comportamento e cultura tradicionais que remetessem ainda ao passado escravista e rural. Ou seja, o
velho problema “o negro” no Brasil tornar-se-ia questão essencial ao se dar à população negra o status
de cidadã sem sua real concretização em bases socioeconômicas e jurídicas. São conhecidos os
diferentes mecanismos de jurisprudência criados para limitar o acesso à terra aos ex-escravos (Leis de
Terra), além da criminalização de suas práticas culturais religiosas, ou a destruição de seus locais de
cultos e socialização na cidade de São Paulo, por exemplo. Por trás de tais regulamentações
encontrava-se o racismo histórico, reafirmado na regra e encoberto, posteriormente, pela ideologia da
democracia racial. Segundo Petrônio Domingues ao se discutir a estruturação das práticas de racismo
na sociedade paulista encontrava-se, por exemplo, a exclusão do negro no período de formação do
mercado de trabalho, inclusive em cargos públicos, a perseguição policial e discriminação no acesso à
educação (DOMINGUES, 2003: 102). A literatura sobre as religiões afro-brasileiras também apresentou
graus de interpretação racistas. Antes de Nina Rodrigues apareciam poucos comentários sobre elas
sempre em páginas de jornais e nas crônicas policiais em processos criminais. O Código Penal de
1890 punia aqueles que “praticavam a magia e seus sortilégios para despertar sentimentos de ódio ou
amor ou subjugar a credulidade pública”. (MAGGIE; FRY, 2006: 10) A necessidade de regular tais
práticas permitiu, como se sabe, a violência contra os terreiros e casas de culto e a perseguição aos

6
Os dados colhidos são parte da pesquisa de doutorado A Comunidade dos Deuses: Transformações no
Candomblé paulista: 1970-2000, em andamento no Departamento de História da FFLCH-USP sob orientação do
Prof. Dr. Wilson do Nascimento Barbosa.
seus sacerdotes e sacerdotisas. Mesmo com alterações na legislação, no que diz respeito às religiões
afro-brasileiras, sabe-se que a violência policial contra os terreiros ainda existe.
Entende-se assim que a discussão sobre a relação estabelecida entre as religiões afro-
brasileiras e os órgãos públicos no país é mediada pelo racismo. A representação racista através de
estereótipos sobre o negro e sua cultura impede uma relação justa (impessoal) entre as partes, ou seja,
o estabelecimento de relações imparciais diante da lei e no que diz respeito aos direitos. Os direitos de
cidadania da população negra não são respeitados pois se assumem pressupostos de valoração “não
oficiais” de sua cultura mas que se sobrepõem e interferem no cotidiano das relações de poder.
Entender e discutir este processo é essencial, como afirma Wilson do Nascimento Barbosa,
A história brasileira é uma história de silêncios, de mentiras à sombra, de
omissões. Dentro desse contexto, a história do negro é de um silêncio absoluto
[...] A importância da discussão dos tabus da sociedade é uma das tarefas dos
intelectuais. Entretanto [...] a maioria não gosta de discutir assuntos polêmicos.
Servem ao status quo. Praticam as normas do silêncio racial. Se o racismo é
uma fera, de nada adianta manter o silêncio. Ele despertará com fome, após o
sono digestivo. Nosso, é enfrentá-lo sempre. Não mantê-lo adormecido.
(DOMINGUES, 2003: 83).

Análise de um discurso político

Uma das maneiras de se abordar o tema proposto é verificar como o racismo é identificado,
discutido e combatido pelo povo-de-santo e suas lideranças. O enfrentamento se dá no cotidiano, nas
relações estabelecidas entre o terreiro e a vizinhança. Por isso, é importante identificar na fala dos
líderes do Candomblé e da Umbanda suas leituras do problema e respostas a ele. Para isso, o discurso
proferido pelo Babalorixá Sidney de Xangô serve como referência para análise. É um discurso político
na sua acepção geral, pois politiza os problemas enfrentados em seu terreiro e procura enxergá-los
dentro de um contexto político-social mais amplo. Foi gravado e transcrito como segue abaixo; optou-
se por corrigir a fala em texto formal, mas sem alterar o sentido ou a estrutura das frases. A divisão foi
feita de forma a destacar o tema central em cada trecho de fala criando, assim, blocos de sentido.
Importa, por fim, antes da análise apresentar um pequeno contexto do xirê em que este discurso foi
proferido e das condições em que a observação foi feita. Para isso, transcrevo abaixo parte do meu
diário de campo. Fui convidada pelo Babalorixá Alexandre Teixeira Ramos para visitar o terreiro de
Sidney de Xangô no dia 26 de outubro de 2008. Neste dia ocorreu no terreiro, segundo seu calendário,
a festa das Iabás e a obrigação de 7 anos da iaô Kátia de Oxalá.
“Chegamos ao Xirê às 20:15hs. O terreiro Ilê Alaketu Aşe Şango de Pai Sidney
de Xangô fica em um bairro periférico de Osasco. A entrada é pequena. Havia
enfeite de palhas na porta de entrada. À esquerda fica a entrada da casa por
uma pequena sala; à frente uma escadaria para baixo leva a um espaço em
que há uma porta à direita para a cozinha, um banheiro ao lado e à frente mais
uma escadaria subindo para o barracão. Todo o espaço foi construído e
planejado por pai Sidney. Ele comenta sobre as mudanças e arrumações que
precisou fazer por causa da prefeitura. Brinca que o “pedreiro não era bom”.
Alexandre nos apresenta formalmente. Diná e eu lhe pedimos permissão para
fotografar e gravar. Ele diz que sim, mas que não podemos colocar na legenda
que “é coisa do diabo”. Ele nos apresenta o resto da casa. Em cima subindo
pelo barracão há uma porta à direita que leva ao andar de cima da casa. Há
um banheiro, uma sala de jantar, uma sala de estar com outra escadaria que
leva para os quartos em cima da família. Saindo pela sala ele nos mostra o
quarto de Exu e pede que este não fotografemos. O quarto é pintado com tinta
preta, há pétalas de rosas vermelhas e amarelas ao chão, uma vasilha de
barro com velas vermelhas e amarelas acesas, no canto esquerdo, perto da
porta uma imagem de Exu africano de mais ou menos 60 cm em cima de um
banco de madeira. A imagem está toda coberto de penas de galinha preta,
com um toco de cigarro em cada narina. Ali se vê ao seu lado um alguidar com
a galinha sacrificada.
Voltamos para o barracão, os tocadores já se posicionavam e
começavam alguns toques; coxinhas e refrigerante eram distribuídos aos
presentes. Havia muitas pessoas, em torno de 30, muitos jovens e crianças. O
barracão tinha ao centro seu mastro enfeitado com flores, uma mesa coberta
com um pano branco, em cima uma bacia com ovos cozidos dentro de um
líquido claro e em tons amarelos (pensei ser um fio de azeite de dendê). Dois
emblemas de Oxalá recostados e duas cadeiras cobertas com tecido branco.
Encostada a parede do lado direito de quem entra no barracão uma mesa com
um grande bolo para Oxum confeitado com florzinhas cor de rosa, haviam
docinhos enfeitando a mesa (quindim e beijinhos), uma garrafa de Ballantines.
Acima na parede quadros de orixás e um especial com o nome de Xangô e um
desenho a mão deste orixá. Ao lado da mesa ao chão, um baú grande com
frutas, flores, espelhos e um quadro de Mãe Menininha (sua foto mais famosa
em que ela se olha através de um espelho que segura na mão). Próxima à
entrada para a sala de jantar outra mesa com mais um grande bolo, esse todo
em branco e prata, para Iemanjá com uma travessa de brigadeiros, beijinhos e
flores.
Ao começar o toque, o Pai Pequeno (Babakekerê) da casa pegou um
pote de barro pequeno e cumprido que estava tampado com um pano branco
aos pés das cadeiras do centro e o levou para fora pela porta de entrada do
terreiro. Começa então a entrar as rodantes, surpreendeu-me ver crianças e
jovens na sua maioria. Muitas pessoas chegam e fica bem cheio o barracão.
Começo a sentir muito calor e mais ainda aqueles que dançam. Após três
toques entra a jovem iaô Kátia de Oxalá que estava dando obrigação na casa,
indicada pela Mãe de Santo Zefinha (mãe-de-santo de Sidney). É colocada
uma esteira no chão para que ela se ajoelhe e prostre-se em frente ao centro,
depois em frente à porta de entrada, aos atabaques, ao Pai de Santo, em
direção de sua cadeira, e depois para a hierarquia do terreiro. O toque é para
Oxalá Velho (Oxalufã), todos dançam devagar, meio recurvados, ela senta-se
na cadeira maior do centro e o toque prossegue. [...] Há umas quinze rodantes,
entre elas duas meninas de 8 a 10 anos, uma Oxum e uma Oxaguiã; uma
pequenina de uns 4 anos; as jovens entre 14 e 18 anos; 3 mais velhas de 25 a
40 anos; uma delas é a Ialorixá da casa, esposa de Sidney; a de 25 é de
Iemanjá e a de 40 Oxum. Entre as jovens, 1 Oxóssi, 2 Oxuns, 1 Euá e 1 Obá.
Há também uma jovem iaô de Oxum, uma equede de Oxum, e um rapaz de
Ossãe. Além de Alexandre que é de Oxalá Jovem (Oxaguiã).
Em um momento todas as mulheres se ajoelham em direção ao baú de
Oxum, Pai Sidney fica em pé puxando o canto, a Ialorixá fica em pé atrás das
mulheres – algumas jovens que estão na platéia são chamadas para se curvar.
O toque é intensificado para o transe, com o barulho de chocalho, as
ajoelhadas demonstram o transe, olhos e semblantes fechados, – as equedes
começam a ajudar-lhes, elas se levantam e recomeça-se a roda. Um jovem ao
nosso lado entra em transe e vai para a roda também depois de lhe colocarem
um pano branco enrolado a cintura. A Ialorixá entra carregando um cesto
enfeitado com flores e panos brilhantes amarelos, não se vê o que há dentro, é
pesado e ela entrega para Pai Sidney. Soube depois que era o axé preparado
pelo Babalorixá Alexandre, nele continha um pouco da comida que seria
servida depois da festa e outros elementos não revelados por ele. Esse cesto
foi posto na cabeça de cada uma das mulheres da roda que dançam 1 ou 2
vezes com ele em torno do centro; algumas jovens que não estão em transe
também o levam, algumas ao receber o peso, bolam (entram em transe).
Sempre duas pessoas ajudavam a segurar o cesto na cabeça que é posto com
um apoio feito de folhas verdes, como se fosse uma pequena coroa. Depois
deste toque, começa um para Oxalá – ao seu lado já está sentada a menina de
Oxaguiã (Oxalá Jovem), em transe. A iaô Kátia recebe também o cesto na
cabeça e entra em transe. Oxalufã então quer dançar, segura o seu bastão
enfeitado de caracóis brancos, bate no chão em ritmo com os atabaques e se
levanta com a ajuda das equedes e da pequena Oxaguiã. Colocam-lhe um
pano branco cobrindo seu rosto, pendurado com ajuda do bastão. Todos que
estão na roda lhe acompanham o passo, devagar e encurvado, seguram-lhe a
roupa atrás seguindo quase em fila indiana. Dança-se em torno do centro duas
vezes e saem em fila atrás de Oxalá para serem vestidos. É uma cena muito
bonita ver as jovens em transe seguindo o velho orixá. Na verdade era uma
corrente de orixás ligados pelo mito e tradição.
Tem-se, então, um intervalo [...] Não se espera muito o toque
recomeça entrando primeiro a jovem de Oxóssi vestida com belos panos;
enfeitados de fitas azuis e douradas. Ela dança muito; em seguida entra
Ossãe, muito bonito com seu cetro de folhas, sua dança é contagiante com
muitos galopes e saltos. Entram, então, as Oxuns e Iemanjá – a Oxum mais
velha está toda paramentada, com o rosto coberto, as pequenas estão com
panos coloridos cobrindo a cabeça, Euá e Obá também dançam juntas. A
cada mudança de toque os Orixás ficam a um canto do salão com as mãos
para trás, se movimentando, alguns se cumprimentam entre si, se abraçando.
Entra, por fim, Oxalufã e Oxaguiã paramentados, o toque fica mais lento. Eles
passam a frente na roda – todos lhes seguem. Sentam-se. Recomeça-se o
toque para cada um dos orixás presentes. O último toque é para Oxaguiã. A
menina dança com muita animação, ela tem uma varinha que vai batendo a
sua frente, enquanto pula com uma perna, tem braceletes de prata nos pulsos.
É filha de sangue de Pai Sidney e sua esposa. Toca-se, finalmente, para
Oxalufã – todos os orixás o seguem, novamente, dançando devagar, seu rosto
está coberto. Dessa vez dança-se mais com o “velho orixá”, mas vai-se
encaminhando para a saída. Durante essa última parte, três jovens na platéia
entraram em transe e foram colocados na roda também. Quando o toque
terminou, todos bateram as palmas ritmadas marcando o fim. Pai Sidney então
começa um discurso para os presentes”.

Não foi possível identificar no momento da observação se o discurso proferido era corriqueiro
nas festas públicas deste terreiro. Ficou claro, no entanto, que muito da fala do Pai Sidney devia-se a
presença das “visitas de fora”, os amigos pesquisadores de Pai Alexandre. Muito do que foi dito era
para que “os de fora” percebessem a realidade do terreiro e entendessem mais sobre a religião
Candomblé. Apesar da riqueza de temas possíveis a serem discutidos na observação do ritual descrita
acima, aqui privilegiar-se-á o discurso. Ei-lo:
1. Queremos agradecer em nome da Kátia que está tomando obrigação de
sete anos e em nome da nossa casa também, às pessoas que
colaboraram e ajudaram aqui. Também na obra, em arrumar quarto de
santo, colaboraram com pouco, com a mão-de-obra. Quem não tinha
dinheiro para colaborar, mas veio passar um pano no chão. Tem gente que
está aqui há quinze dias, correndo, arrumando, dormindo três, quatro
horas da manhã, ajudando.

Sabe-se que os terreiros de candomblé formam-se em torno de uma família de sangue, no


geral, a família do pai ou da mãe-de-santo, estabelecendo-se vínculos entre com os filhos-de-santo,
iniciados por aqueles, o que vai constituir por fim, a família-de-santo. Esta família alargada estrutura em
termos religiosos as tarefas do cotidiano para manutenção do terreiro fortificando relações de ajuda
mútua importantes nos ambientes de periferia. Este aspecto marca muito a fala de Pai Sidney, pois ele
estabelece nessa relação entre os filhos de santo, amigos e parentes a identidade positiva da religião.
2. Porque o Candomblé é uma religião de negro, que é ainda perseguida pelos
evangélicos e cristãos que falam besteira da nossa religião, que a gente mata
criança, que a gente estupra, que a gente rouba. E vocês estão participando
do Candomblé e estão vendo que não é nada disso. Que as pessoas que
estão aqui presentes, que participam do dia-a-dia vêem que é uma família,
uma comunidade.

A auto-identificação é importante. Principalmente quando a existência de uma imagem negativa


é bastante apregoada fora do terreiro. A identidade negra do Candomblé é claramente afirmada e posta
como uma marca de distinção. A perseguição sofrida aparentemente advém daí. Os cristãos e em
especial, os “evangélicos” teriam, segundo a fala do pai-de-santo, o discurso contrário ao Candomblé,
portanto, deveriam ser desmentidos. E isso poderia ser feito no conhecimento do cotidiano e das
relações pessoais estabelecidas através da religião. A legitimação do Candomblé somente seria
possível, nesse sentido, se for incluído e investido, social e economicamente, em igualdade com as
outras religiões. A educação é percebida por Pai Sidney como o meio de ascensão social do membro
do Candomblé.
3. Nós precisamos de ajuda, viu Silas [empresário levado à festa por
Alexandre], das pessoas que tem uma ligação com o governo com os escalões
maiores, mostrar que o Candomblé é uma comunidade que precisa de
computador, que precisa de escolaridade. Nós temos aqui advogado que saiu
daqui, o Andrezinho, é doutor hoje, Dr. André; se formou, lutou (...) temos
muitas outras pessoas que estão estudando. Mas o Candomblé não tem o
apoio que as outras religiões têm porque nós somos uma religião de negros,
exclusivamente de negros.

A falta de apoio e reconhecimento do Candomblé como religião é apresentada no discurso


como um problema étnico. A exclusividade da religião do negro pode ser considerada fundamental para
o entendimento dos problemas enfrentados por ela. Sabe-se da presença de não-negros (brancos,
mestiços) no Candomblé desde o século XVI. A discussão posta, por exemplo, pela sociologia e
antropologia a respeito da transformação do Candomblé nos últimos tempos, principalmente, nos
grandes centros, de uma religião étnica para uma religião universal – tal como discutido por Reginaldo
Prandi e outros – é dado que se observa na realidade dos terreiros, na etnia de muitos chefes e nos
filhos e filhas de santo. No entanto, pensa-se estar, no discurso de Sidney, a percepção da origem
étnica da religião e de suas raízes africanas. Também no fato de que, apesar do aumento da
participação e presença de brancos nos terreiros, ela ainda se dá mais pelo estabelecimento de uma
clientela (em busca de serviços mágico-religiosos) do que por “conversão” e adesão à religião. Tal
exclusividade aparente, seria, assim reinterpretada no contexto social atual mas, afirmada ainda como
questão étnica, como se percebe na seqüência do discurso. Pai Sidney procura explicar melhor sua
posição. O Candomblé expressaria muito do ser negro e vice-versa. Surge então, certa dicotomia no
discurso entre a escolha livre e o verdadeiro lugar de pertença do negro.
4. O negro que vai para outra religião está na religião errada. Todo mundo tem
direito de escolher qualquer religião, mas a religião do negro é o Orixá. Os
Orixás são todas as cores, as cores que tem em outras religiões. E deixar bem
claro que o Candomblé, para quem não conhece, é um encontro. Como todas
as facções tem gente errada, tem picareta, tem ladrão, como tem no
evangélico, no católico, tem em toda religião, tem no japonês. Então, vocês
que estão no Candomblé que são homossexuais assumidos, que é a única
religião que aceita vocês como são, que são heterossexuais do jeito que são;
que são de todo jeito, ladrão, advogado, dentista. Candomblé não está aqui
para julgar ninguém. (...) O cara pode ser de qualquer religião e parar de fumar
maconha, parar de roubar carro. Isso não é do crente ou do católico. E fazendo
isso, ele vai economizar, vai comprar carro, casa e vai ter uma vida social
melhor. Ele vai deixar de ser uma pessoa errada na sociedade e vai ser uma
pessoa mais correta.

A diversidade de tipos sociais e a abertura para aqueles que não são bem recebidos ou
discriminados em outras religiões, segundo o pai-de-santo, traria outro elemento interessante para esta
análise. O discurso político de Pai Sidney procura igualar o Candomblé a qualquer outra crença, é uma
religião que pode trazer mudanças na vida dos fiéis; por outro lado, destaca a existência de uma
aceitação maior das diferenças ou de papéis sociais discriminados. Interessante a associação feita por
ele entre ladrão – advogado – dentista. Talvez seja uma indicação da visão popular destas profissões
(ou trabalhos) que costumam ganhar muito dinheiro às custas de outras pessoas. Afirmar a igualdade e
estabelecer as diferenças entre o Candomblé e outras religiões é compreensível num ambiente de
competição religiosa (Bourdieu). Também poderia ser um caminho para se acabar com as dificuldades
enfrentadas pelos terreiros na cidade. A representação política tem sido muito discutida entre o povo-
de-santo, inclusive como demanda, nos diferentes movimentos negros. Serviria como estratégia
necessária para a preservação de espaços nos ambientes urbanos, especiais para o culto
(preservação de áreas verdes, matas, regulamentação dos terrenos dos terreiros mais antigos etc)
manutenção material dos terreiros e proteção policial. No entanto, manter-se-iam as dificuldades para a
articulação eleitoral como uma demanda única.
5. Recentemente nós tivemos aqui o Renatinho que foi candidato a vereador,
nosso amigo, pai-de-santo. Teve a votação, a gente se esforçando para ele ser
eleito, para o Candomblé ter um representante. Não conseguimos ter essa
votação, porque o próprio povo de Candomblé não apoiou. As pessoas do
Candomblé não lembram que nós temos que montar a casa, que tem que fazer
a estrutura, ter limpeza, que as pessoas ajudam e tem que colaborar, com luz,
água, banheiro, tudo. E quando as pessoas aqui falarem, nossa, a casa
[desarrumada]... mas é porque a própria sociedade não dá condições para o
Orixá manter a casa de Candomblé. É por isso que nós estamos lutando, com
deputado, com vereadores. [...] Por isso, quando o Renato me disse que ia sair
candidato, nós o apoiamos de corpo e alma, fizemos um trabalho com ele. Nós
tínhamos a noção e ele também dentro dele, que era impossível concorrer com
essas feras que estão aí. Esses bandidos que estão aí. Ele é um homem
trabalhador e esses bandidos chamam a polícia, e prometem, mas não dão
nada. E quando o Renato lançou essa idéia, nós falamos, é duro, mas nós
vamos tentar. Sem ter apoio, sem ter uma verba de gasolina, sem nada. Ele
gastava a gasolina dele, eu gastava a minha.

A candidatura do pai-de-santo Renato foi um fato importante para esta comunidade-terreiro. A


vitória política é entendida como o espaço para conseguir garantias de proteção e ajuda ao terreiro.
Para isso começa-se a reforçar um discurso de articulação da participação eleitoral engajada do povo-
de-santo. Sem assumir a própria identidade e religião não seriam possíveis tais conquistas. Para Pai
Sidney a disputa pode ser muito desigual entre o homem simples, trabalhador e os políticos
profissionais, “bandidos”. O reforço no discurso sobre a necessidade de apoio para articulação de
educação e assistência ao povo-de-santo está relacionada ao lugar que o Candomblé possui na
estrutura social por conta da sua origem étnica e das condições sócio-econômicas dos seus membros.
A visão social do Candomblé, de marginalização, como característica daqueles que o freqüentam,
deveria ser enfrentada via educação formal e técnica. Ou seja, para o Candomblé deixar de ser
considerado marginal – uma vez que abrigaria “marginais” – é preciso que seus membros “mostrem”
para a “sociedade maior” (elites) que têm valor como cultura e religião. A luta para vencer a
discriminação bate de frente com a ideologia racista vigente.
6. Estamos abrindo agora um centro cultural, lutando com o Alexandre,
tentando mostrar para a sociedade que o Candomblé não é só para preto, puta
e pobre, como eu ouvi uma pessoa falar para mim (...) todas as pessoas que
freqüentam o Candomblé, são difíceis assumirem e dizer “eu sou do
Candomblé”, ele diz que é católico, evangélico. Aqui vem muito evangélico
jogar búzios. Mas eles não querem que ninguém saiba. Então a gente está
assumindo a nossa negritude, está assumindo a nossa religião. E tem mais,
nós vamos conseguir colocar a nossa marca na sociedade maior que é o
candomblé, a religião dos negros. E lá no centro cultural haverá três
inaugurações, para as camadas da sociedade entenderem o que é o
Candomblé. Vai ter uma inauguração para uma camada [povo-de-santo], uma
inauguração para a sociedade ver e uma inauguração para as crianças. Todas
elas que quiserem ir lá, fazer bagunça, rolar, correr lá dentro e tudo o mais. A
gente vai mostrar coisas de negro da Nigéria para a gente ver, vai ter projeto
social, projeto médico. Se a gente conseguir o apoio que estamos precisando,
vamos colocar um sistema para ligar essa casa aqui com a outra casa lá, curso
de computador. E investir na sociedade negra, nos filhos de santo gay, nas
filhas de santo lésbicas, nas filhas que são putas. Nós temos isso tudo, não
somos como as outras religiões que diz, ah não tem bicha, não tem lésbica,
não tem prostituta. Aqui tem de tudo e o Candomblé aceita a pessoa como ela
é. É claro dentro do parâmetro que a pessoa tem respeito (...) é uma luta de
três ou quatro anos que nós estamos lutando para ter isso. (...) Ela tem lugar
com uma luta com a comunidade. Eu fui tentar na prefeitura ganhar trinta
cestas-básicas para doar para as filhas de santo daqui e um assistente do
prefeito disse para mim que Candomblé não era religião, era um grupo negro
que fazia batucada e que incomodava os vizinhos.

A discriminação racista explícita sofrida por Pai Sidney demonstra uma situação complexa e
ampla. Herança ainda do passado escravista e reforçada na imiseração dos afro-descendentes no
país. A repressão direta e indireta sofrida pelos terreiros em São Paulo tem um efeito sofre o culto e as
práticas religiosas. O espaço físico dos terreiros tem se limitado cada vez mais, e a lei de silêncio após
às 22hs altera também o tempo dos toques. O não reconhecimento do Candomblé como religião
submete seus membros e hierarquia a tratamentos no mínimo desrespeitosos. A unidade do povo-de-
santo cada vez mais reforçada no discurso de Pai Sidney transparece as dificuldades e conflitos
vivenciados no cotidiano. Prisões, denúncias anônimas e preconceitos seriam freqüentes. Ao encerrar
sua fala, coloca claramente a busca (e espera da chegada) do “direito” de ser como se é, negro, com
sua religião própria, reconhecida pela sociedade.
7. Agora o importante é que vocês [povo-de-santo] se unam. Estou dizendo
isso há anos, vamos eleger um representante [...] porque é duro, mas nós
precisamos de um representante na política, para que a gente possa colocar o
Candomblé com evidência, como uma religião que ajuda as pessoas na
sociedade. Que o Renato aqui e o pessoal da comunidade ajudam as pessoas,
dá moradia, assistência médica, não como médico, mas de levar a pessoa [ao
hospital]. Tem gente que está parindo a gente leva para o hospital. Às vezes a
gente coloca a mão na cumbuca que é um vespeiro porque a gente não tem
por trás um apoio. Se não é um filho de santo, a gente vai preso. Toda semana
o pai de santo vai preso, toda semana eu sou preso. Toda semana tem
denúncia anônima, aparece alguém dizendo que a gente não pode. Outra
semana tinha um carro parado aqui na frente que vieram assaltar e já disseram
que era um carro roubado que estava aqui no portão. Então sempre a
comunidade do candomblé – o carro era dele [de um filho-de-santo] – é
considerada errada. Então, eu estava dizendo para vocês, nós temos que nos
unir como religião. Para que, quando chegar o direito, como a gente tem, para
não ficarmos nessa obscuridade de ser marginal (...) para a sociedade
compreender que o Candomblé é uma religião. E isso nós só vamos fazer se a
gente se unir. Queria agradecer a presença de todos vocês.

Considerações finais
Como visto no discurso a marginalização do Candomblé expressa o processo de repressão
sofrido pelos afro-descendentes e pobres no país. A “obscuridade de ser marginal” (“considerado
sempre errado”) e o não reconhecimento da legitimidade de sua prática religiosa marcam o cotidiano
de muitos terreiros no Brasil. Atualmente, em São Paulo, ao se pesquisar sobre as transformações
ocorridas no Candomblé nos últimas décadas ouve-se muito sobre o aumento das dificuldades de se
manter os terreiros nos centros urbanos. A intolerância religiosa é também outro ponto destacado, já
que muitas igrejas evangélicas trabalham sistematicamente no “combate” aos terreiros de Candomblé e
Umbanda. A divulgação de informações nos meios de comunicação de massa começa a ser utilizado
pelas associações e federações de Candomblé e Umbanda. Na onda do consumo de bens mágico-
religiosos nas grandes cidades, algumas publicações foram organizadas e saem periodicamente nas
bancas, como por exemplo, a Revista Orixás (Editora Minuano) que existe há dois anos; com
circulação nacional e internacional. Na edição nº 15 de março deste ano tem-se, por exemplo,
entrevista e matéria com Mãe Jaciara do terreiro Axé Abassá de Ogun, da Bahia. Nelas a Ialorixá faz
defesa da religião: “se não houver quem se preocupe em preservar o sagrado, vai virar mico-leão-
dourado” (REVISTA ORIXÁS, 2009: 30). A existência dessas revistas especializadas, voltadas para o
povo-de-santo são bons exemplos da material de divulgação e fontes para pesquisa sobre
transformações nas religiões afro-brasileiras. Servem no mais para auxiliar na aceitação pública das
práticas dessas religiões. Muitos pais e mães de santo em São Paulo insistem na necessidade de
informar a população no geral sobre o Candomblé, para limitar ao máximo as más interpretações e o
preconceito. No embate entre o poder das mídias das igrejas neo-pentecostais e, a pouca divulgação e
espaço nos meios de comunicação que as religiões afro-brasileiras possuem, vê-se o esforço para
reverter o quadro de diminuição dos participantes nos terreiros.
Claramente também, como visto no discurso de Pai Sidney, faz-se necessário que o povo-de-
santo “se una” e consiga articular uma base política para conseguir representantes nos governos
municipais, estaduais e nas câmeras de vereadores e assembléias. A existência da “bancada
evangélica” deixaria bem claro para a hierarquia dos terreiros a necessidade de se ter a sua “bancada”.
A repressão policial é outro aspecto desta problemática. Em São Paulo e outros estados pais e mães
de santo sofrem da perseguição policial, muitas vezes feita por policiais evangélicos. Por conta disso,
procura-se organizar petições às associações de policiais para garantirem a segurança dos terreiros.
Essas demandas carecem assim, da articulação de discursos políticos que superem as diferenças
entre as diversas casas de Umbanda e Terreiros de Candomblé.
A auto-identificação do povo-de-santo é outro aspecto apresentado no discurso de Pai Sidney.
Não assumir-se como membro da religião por vergonha social ou medo de represália é um problema
vivenciado pelo povo-de-santo. Em pesquisa de campo registrou-se muitos comentários a esse
respeito em diferentes níveis. Desde a repressão direta sofrida por crianças nas escolas que, por
serem filhas de membros dos terreiros ou já iniciadas são chamadas de “macumbeiras” pelas
professoras e colegas, até os jovens que possuem diferentes perfis nas redes sociais da internet
(Orkut), um para os “amigos comuns” e outro para os “amigos do Candomblé”. Andar com suas guias,
com a cabeça coberta ou raspada em tempos de iniciação também é citado como problema por conta
dos ambientes de trabalho. Por isso, há alterações nos ritos ou necessidade de modificação de parte
dos tabus no processo de iniciação. Esse aspecto, já apontado por outros pesquisadores (Vagner
Gonçalves da Silva, Reginaldo Prandi, e outros), interferiria no Axé empregado, enfraquecendo muito,
na percepção dos sacerdotes, o poder mágico-religioso dos ritos. A perda dos espaços naturais na
cidade, a dificuldade no acesso às “folhas sagradas” também é mencionado freqüentemente.
De fato, tais problemas são enfrentados pelas religiões afro-brasileiras ao longo da história. A
ponto de importantes pesquisadores afirmarem estarem elas condenadas ao desaparecimento no
mundo urbano industrial (Roger Bastide). Importa, no entanto, perceber que a história dessas religiões
expressa diferentes maneiras como a cultura afro-brasileira foi continuamente sendo restringida em
suas manifestações públicas deixando de ser vista para ser escondida ou celebrada em poucos dias
como “folclore”. Haveria muito mais “liberdade”, em termos de presença e utilização dos espaços
públicos, no período colonial do que nos períodos da pós-abolição e atual. O que teria ocasionado essa
modificação? O que mudou foi o fim da escravidão com o controle jurídico e repressor que isso
representava. A dinâmica própria da cultura negra no Brasil criou vários mecanismos de ressignificação
em diferentes ambientes (rural ou urbano) que permitiram o seu prolongamento no tempo e
permanência. Sendo, pois, a cultura brasileira, intrinsecamente negra, possuiria os elementos
necessários para se articular e recriar-se nesses ambientes desfavoráveis (ginga). As elites brasileiras
com seu modelo europeu não poderiam permitir isso. Toda uma literatura discute esse tema. A
identidade nacional forjada na início do século XX iria subordinar toda a cultura negro-brasileira e
renegar sua força criadora de “civilização” (BARBOSA; SANTOS, 1999). O controle e se possível
eliminação dela seria, portanto, necessário.
O racismo que perpassa essas questões não poderia ser disfarçado. No que diz respeito às
religiões afro-brasileiras e em especial, o Candomblé, é um assunto “complexo”, para não se dizer
evitado. Diferentes discursos são ouvidos nesse sentido nos terreiros. Como na sociedade de maneira
geral há os que afirmam ser o “preconceito” um problema “criado” pelo próprio negro – que “não se
valoriza” – e os que dizem ser a causa das perseguições o racismo disfarçado ou direto. Assim, no
discurso de Pai Sidney, o reforço dado por ele à identificação do Candomblé como “religião de negro”
marca um posicionamento nesse debate. “Ser negro” ou ser o Candomblé “religião de negro” não é
motivo de desvalorização. Ao contrário, é o que difere e o que dá a especificidade do culto e da relação
com o sagrado (Orixás). Essa origem específica envolve aceitação, entendimento e auto-valorização.

Bibliografia:
1. BARBOSA, Wilson do Nascimento. “O N´Ganga: A Origem e o Poder do Pai de Santo”. In:
BARBOSA, W. O Caminho do Negro no Brasil. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 1999.

2. BARBOSA, Wilson do Nascimento; SANTOS, Joel Rufino. Atrás do Muro da Noite: Dinâmica
das Culturas Afro-brasileiras. Biblioteca Palmares, volume 1. Brasília: Ministério da Cultura,
Fundação Palmares, 1994.

3. DOMINGUES, Petrônio. Uma História não Contada: negro, racismo e branqueamento em São
Paulo no pós-abolição. São Paulo: Editora SENAC, 2003.

4. KOGURUMA, Paulo. Conflitos do Imaginário: A Reelaboração das Práticas e Crenças Afro-


brasileiras na “metrópole do café”: 1890-1920. São Paulo: FAPESP, Annablume, 2001.

5. MAGGIE, Yvone; FRY, Peter. “Apresentação” In: RODRIGUES, Nina. O Animismo Fetichista
dos Negros Baianos. Ed. fac-símile. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / Editora
UFRJ, 2006.

6. PRANDI, Reginaldo. “Sacerdócio, poder e política no Candomblé”. In: PRANDI, R.; PIERUCCI,
F. Realidade Social das Religiões no Brasil: Religião, Sociedade e Política. São Paulo: Hucitec,
1996.

Fontes:
1. BALALORIXÁ Sidney de Xangô. Discurso de encerramento de xirê. Ilê Alaketo Axé Xangô,
Osasco, 26/10/2008.
2. REVISTA ORIXÁS. “A Guerreira Mãe Jaciara, preocupação e luta pela religião para não virar
mico-leão-dourado”. Ano II, nº 15, p. 30-36. São Paulo: Editoria Minuano, 2009.

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Interpretando o ethos sagrado do Maracatu Rural Cruzeiro do Forte- Recife /PE

José Roberto Feitosa de Sena7


joseroberosena@hotmail.com

Antecedentes históricos e antropológicos do Maracatu Rural

Ao estudar o Maracatu de Baque Solto encontramos uma série de dificuldades: a bibliografia é


pouca e recente, menor ainda quando se procura um aprofundamento sobre sua origem e as práticas
religiosas que o acompanham em suas apresentações. Esta pesquisa é de caráter bibliográfico e
semiparticipante, escolhemos para este trabalho fazer um estudo de caso dos rituais litúrgicos de
preparação e proteção para o carnaval, tendo como objeto de pesquisa o Maracatu de Baque Solto
Cruzeiro do Forte localizado no Subúrbio da Região Metropolitana do Recife. Para compreendermos o
tema estudado é necessário situarmos o Maracatu de Baque Solto. Algumas hipóteses nos parecem
bem convincentes e convergem em admitir sua origem ao hibridismo afro-indigena.
A partir de 1888, com a promulgação da lei Áurea, a mão-de-obra escrava é substituída pelo
trabalho livre. No entanto, a abolição do sistema escravista não deu aos negros condições de ascensão
social, continuando a viver à margem de uma sociedade aristocrática. Só que agora, não é mais o
negro recém chegado da África, e sim, o afro-brasileiro, processo de uma miscigenação, com brancos
e índios.
Por volta do final do século XIX e início do século XX os trabalhadores canavieiros se reuniam
nos períodos de folga para brincar e festejar mais um final de semana após o árduo trabalho na cana
de açúcar. Segundo Katarina Real (VICENTE, 2005) aos poucos esses homens foram improvisando
ritmos com os instrumentos de trabalho e difundindo elementos dos vários folguedos da região da Zona
da Mata Norte de Pernambuco como o Côco, o Cavalo Marinho, Reisado, Folia (ou rancho) de Reis,
7
Graduando em História pela Universidade Católica de Pernambuco e pesquisador voluntário do Programa de
Iniciação Cientifica da UNICAP – PIBIC-UNICAP.
Pastoril, Bumba-Meu-Boi, Caboclinho, chegança e etc. Incorporando, também, toadas dos Maracatus-
nação e “aruêndas”. Assim, surge o Maracatu de Baque Solto. Em seu livro Folclore no carnaval do
Recife, a autora converge com a tese de outro pesquisador do tema, Olimpio Bonald, que é citado por
Severino Vicente:
“O maracatu rural, em resumo, seria um produto do sincretismo afro-índio
gerado pela criatividade do povo rural canavieiro da Zona da Mata-Norte, ao
ser incorporado e reciclado no caldeirão cultural do grande Recife”. (BONALD
apud VICENTE, 2005, p.31).

O pesquisador Roberto Benjamin (BRINCANTES, 1998) atribui a origem do Maracatu de


Baque Solto as Cambindas, que eram “brincantes masculinos vestidos de mulher”. A palavra vem de
Cabinda, região ao norte da Angola, acima do rio Congo (MEDEIROS, 2005). Há ainda hoje grupos de
Cambindas, informa Benjamin, na Paraíba e em Pernambuco nos municípios de Ribeirão, Pesqueira,
São Bento do Una, Triunfo, Bonito e Bezerros. A hipótese do pesquisador (VICENTE, 2005) é que o
Maracatu de Baque Solto tenha surgido de uma evolução das Cambindas em contato com os demais
folguedos da região. Inclusive, os dois Maracatus deste baque mais antigos de Pernambuco são:
Cambindinha do Araçoiaba (1914) e Cambinda brasileira (1918), o mesmo autor salienta que o termo
“Maracatu” tenha sido uma imposição dos folcloristas da época, já que as Cambindas do interior eram
“feias e rudes”, ao contrário dos Maracatus Nação que já eram atrações do carnaval recifense.
Guerra-Peixe em sua obra Maracatus do Recife, que estuda, em especial, os aspectos
musicais, afirma que os maracatus-de-orquestra se originam da fusão dos folguedos da Zona da Mata
e de variações dos Maracatus tradicionais cita ainda, Gonçalves Fernandes e Mário de Andrade como
pesquisadores do termo “Maracatu”. Segundo ele, o primeiro atribui a palavra a uma variação
lingüística do norte de Angola, maracatucá que significa “vamos debandar”, termo utilizado pelos
escravos no momento que a manifestação era reprimida pelas forças oficiais e o segundo se refere a
maracá (instrumento indígena) e a palavra catu (bonito) (GUERRA-PEIXE, 1980). Já Mariana Mesquita
Nascimento coloca ainda que o termo Maracatu venha da Angola onde ainda hoje é dançada pela tribo
dos Bombos, ao norte de Luanda. (NASCIMENTO, 2005)
Conceitos e definições à parte, esse termo acabou sendo aplicado a essa “exótica” dança
camponesa por possuir semelhanças evidentes ao Maracatu urbano. Já a denominação “Maracatu
Rural” só foi dada na década de 60 pela antropóloga norte-americana Katarina Real, quando tentava
distinguir os dois tipos de Maracatus, principalmente pelos instrumentos de sopro (trompete, trombone
e clarinete), inexistentes no Maracatu de Baque Virado.
Segundo ela (REAL, 1967), nessa mesma década, o Maracatu estudado também era
conhecido como “maracatu-de-orquestra”, “maracatu-de-trombone”, “maracatu ligeiro”, “maracatu de
caboclo”, “maracatu de baque singelo” e “samba de matuto”, entre folgazões. Neste período os grupos
sofriam forte preconceito por parte da imprensa, que os denominavam, pejorativamente, de Maracatu
descaracterizado ou distorcido.

O Maracatu Rural no Grande Recife: mudanças e permanências na diáspora

A partir da década de 30, a crise que antecede a II Guerra Mundial, levam os trabalhadores
rurais a deslocarem-se do campo para a Região Metropolitana do Recife, onde passam a adaptar-se a
vida na grande cidade, na sua grande maioria, como vendedores informais, operários, pedreiros e
biscateiros, uma nova realidade social ocupada nos bairros da periferia. (VICENTE, 2005)
Casa Amarela, Bongi, Cidade Tabajara, Timbi, Águas Compridas, Bomba do Hemetério,
Torrões, Cordeiro e Bultrins são alguns dos subúrbios que abrigaram o maior número de maracatus
procedentes do interior do Estado. A dor e o sofrimento de terem que abandonar sua terra, para
conseguir a sobrevivência na capital, esta intimamente ligada às intenções de preservar as tradições da
Zona da Mata.
O Maracatu de Orquestra ou Maracatu de Trombone, como também é chamado por esses
migrantes, foi uma das maneiras utilizadas para matar a saudade e reafirmar os laços daquela
comunidade. (VICENTE, 2005). Desta maneira surge o Maracatu; Cruzeiro do Forte, principal objeto de
pesquisa deste trabalho. Uma reinvenção do rural no urbano.

A interferência da Federação Carnavalesca de Pernambuco

A Federação Carnavalesca de Pernambuco foi criada em 1935 por intelectuais folcloristas,


dentre eles o jornalista Mário Melo, durante o governo de Carlos de Lima Cavalcanti, interventor
nomeado por Getúlio Vargas no regime do Estado Novo, passando a ser responsável pela organização
do carnaval e dos desfiles das agremiações. A Federação, meses antes da folia de momo, recebia
verbas da Prefeitura e do Governo do Estado, porém, o real interesse desta elite intelectual era
controlar e fiscalizar tal manifestação folclórica que, até então, pouco se conhecia, pois a palavra
“Maracatu” se referia apenas aos Maracatus Nação. (NASCIMENTO, 2005)
A fim de pôr ordem na apresentação das agremiações carnavalescas, a FCP atuava em
conjunto com a Secretaria de Segurança Pública, o Serviço de Censura de Diversão Público, Delegacia
de Ordem Social e o COC (Comissão de Organização do Carnaval). Esses órgãos agiam na intenção
de adaptar os grupos de Maracatu Rural e outros folguedos, provenientes do interior e das zonas
suburbanas, ao carnaval tradicional do Recife, pressionando as lideranças a adaptarem o seu grupo
aos padrões carnavalescos da época. . (MEDEIROS, 2005).
Muitos foram os Maracatus que, sob pressão ou cooptação, mudaram de baque, passando a
se apresentar como Maracatu Nação, enquanto outros, que embora tenham mantido o baque,
assimilaram personagens do Baque Virado. É o caso da existência da côrte real no Maracatu de Baque
Solto, pois a representação do rei, da rainha e das demais figuras ligadas ao cortejo real é
originalmente dos Maracatus de Baque Virado.

4. Maracatu Cruzeiro do Forte: uma reinvenção da tradição rural no meio urbano

No dia 7 de setembro de 1929, durante a limpeza de uma cacimba no bairro dos Torrões, um
grupo de trabalhadores recém chegados do interior do estado, após uma brincadeira durante o serviço,
resolvem criar um Maracatu para relembrar os tempos de vida na Mata Norte de Pernambuco.

No ano seguinte o Maracatu Cruzeiro do Forte, nome em alusão a um famoso monumento


histórico 8 do bairro do cordeiro, passa a desfilar pelas comunidades próximas: Afogados, Engenho do
Meio, Monsenhor Fabrício, Torrões e outros. (ASSIS, 1996)
Durante a pesquisa de campo ouvimos de Maria da Conceição, “Dona Ceça”, atual Presidente
do Cruzeiro do Forte, como teria surgido o Maracatu de Baque Solto mais antigo do Recife:
“Na praça ai na avenida do forte, onde tinha um oitizeiro, ai tinha uma
cacimba, próximo, ai vamo fazer uma limpa da cacimba, ai se ajuntaro um
grupo de amigos, pra prepara a limpa dessa cacimba, ai da limpa dessa
cacimba surgiu o Maracatu Cruzeiro do Forte, eles disseram vamo formar um
Maracatu, ai com pá, enxada, lata formaro um maracatu e deu certo”.

Nos anos seguintes o Maracatu cresceu e passou a ser admirado pela comunidade e ganhado
adeptos da mesma.
Em 1936, um conflito entre diretores do Maracatu, dividiu o grupo em dois, um continuou
Cruzeiro do Forte o outro passou a se chamar Almirante do Forte, mudando para Baque Virado, ou
seja, passando a ser Maracatu Nação.
Ao longo destes anos o Maracatu Cruzeiro do Forte passou por diversos administradores até
que no ano 2000 a então presidente dona Netinha encarrega sua filha Maria da Conceição de manter
viva a tradição, nos últimos oito anos este Maracatu de Baque Solto tem conquistado todos os títulos

8
Este monumento que dá nome ao Maracatu Cruzeiro do Forte foi construído para Homenagear os combatentes
da Batalha dos Guararapes, durante a Insurreição Pernambucana, movimento este que expulsou os holandeses do
nordeste brasileiro, no local funcionava uma base Militar Luso-brasileira que se chamava Arraial do Forte do
Novo Bom Jesus.
de campeão do carnaval do Recife, tal sucesso é atribuído por dona Netinha, Rainha do Maracatu e
mãe de Santo, aos preparos litúrgicos que antecedem a saída do Maracatu ao carnaval.

A Dimensão Religiosa do Maracatu Cruzeiro do Forte nas celebrações litúrgicas para saída no carnaval

No Maracatu Rural, assim como no Maracatu Nação, existe uma forte ligação com a religião,
sendo ela, entre outras coisas, o seu meio de proteção, que os livrara de qualquer perigo durante o
período em que estão nas ruas, no período do carnaval. A religiosidade que o Maracatu de Baque
Solto tem forte relação é com o culto da Umbanda, que tiveram maior contato e abertura para com os
grupos que tiveram que fazer um êxodo para cidade grande. O culto á Jurema, que os migrantes
trouxeram na sua experiência cultural e memória, para os grandes centros urbanos foi integrada, na
maioria das vezes pelos adeptos da Umbanda, religião que na sua formação é profundamente aberta a
inovações sincréticas. (NASCIMENTO, 2005:101)
Sobre tal ligação religiosa dos Maracatus, assinala Guerra-Peixe:
“É oportuno realçar o que nos esclareceram os informantes de vários grupos:
a gente do Maracatu tradicional – ‘nagô’, como dizem, no sentido de africano
– é constituída, maioria, por iniciados nos Xangôs; a que prefere o Maracatu-
de-orquestra, tende para o Catimbó, culto popular de características
eminentemente nacionais. Ao que parece há procedência nas informações,
pois nos cânticos do Maracatu-de-orquestra é constante o aparecimento de
vocábulos como ’aldeia’, ‘caboclo’, ‘jurema’ e outros – todos refletindo
identificações que acusam a preferência religiosa dos participantes.”
(GUERRA-PEIXE, 1980, p. 23).

Dentro do Maracatu Rural existem os participantes que o “sustenta”, espiritualmente, durante


sua apresentação. Antes das suas apresentações públicas é vivenciada, internamente, uma
experiência religiosa, um contato de alguns integrantes com o mundo sagrado, em que as entidades
protetoras são invocadas, em rituais de proteção, contra os “espíritos malfeitores”, para que propiciem
aos folgazões sucesso e tranqüilidade em suas andanças e apresentações. Estes personagens que
necessitam de proteção são: o Caboclo de Lança, a Dama-do-Paço com a Calunga e o Arreimá
também chamado de Tuxáua ou Caboclo de Pena. Cada membro, a partir do momento em que desfila
pela primeira vez, tem que repetir a sua apresentação, obrigatoriamente, por, no mínimo, sete anos.
Inclusive os objetos, quase sempre são em números impares, segundo informações, para não dá azar.
Sobre a religiosidade dos Maracatus de Baque Solto, Katarina Real argumenta:
“Tudo sobre os Maracatus Rurais me dá a impressão de se tratar de uma
sociedade secreta masculina. Que há muita influência do ‘catimbó’, ‘Xangô
de Caboclo’, e ‘dos mestres do além’ entre os associados não há dúvida, e é
assunto que vale estudo mais detalhado. Também há indicações duma
influência do Toré, dança guerreira indígena (e culto secreto) que existe nos
subúrbios do Recife e pelo interior de Pernambuco e Alagoas. Eis outro fator
que dificultou minha pesquisa – a grande desconfiança dos homens em
responder a qualquer pergunta com referência a religião” (REAL, 1967, p.
81).

No Maracatu Cruzeiro do Forte, meses antes da sua apresentação, se iniciam os trabalhos


litúrgicos de preparação, limpeza e proteção para o carnaval. Esses rituais, embora não sejam
praticados por todos integrantes, têm uma forte significação simbólica para boa parte dos seus
membros, mesmos os que não são adeptos, crêem que, sem as oferendas, dificilmente teriam tanto
sucesso.
A partir do mês de agosto, de quinze a quinze dias, às tardes de domingo, são realizados os
ensaios, onde se reúnem familiares e vizinhos para “sambar Maracatu”. Os homens se divertem,
revezando os instrumentos, enquanto o mestre e o contramestre puxam as loas, que serão repetidas
em coro pelas baianas e toda criançada que se aglomera em frente a sede, no bairro de Torrões.
A Rainha do maracatu, dona Neta, muito entusiasmada, muitas vezes toma o lugar do mestre
para cantar algumas “cantigas de macumba” a pedido dos integrantes mais velhos As letras fazem
referência ao passado do Maracatu, entre dificuldades e glórias, além de se mencionar, quase sempre,
os mestres, caboclos, preto velhos e demais entidades.
Ao terminar dos ensaios, os homens guardam os instrumentos e algumas roupas que pegaram
para a “brincadeira”, passam mais um tempo conversando antes de ir embora, até porque muitos no dia
seguinte irão cedo ao trabalho, as mulheres, muitas delas terão que cuidar das crianças já “enfadadas”
e com sono. Dona Neta também se recolhe levando consigo filhos, netos e bisnetos, é visível a alegria
de mais um ensaio e a cada semana aumentam as expectativas para os dias de carnaval.
Para garantir que no próximo ano tenham o mesmo desempenho dos últimos anos, são feitas
“negociações” com o sagrado, afim de que os “espíritos ruins” não possam atrapalhá-los. Muitos
integrantes, a pedido de dona Neta, fazem seus banhos de limpeza, a base de sete ervas, e, quando
estiverem a quinze dias antes do carnaval, devem abster-se das relações sexuais. As mulheres que
estiverem no ciclo menstrual não deverão desfilar no Maracatu. Descumpridas essas orientações é
provável que o Maracatu não tenha sucesso, pois seus integrantes estarão de “corpo aberto”, ou seja,
propícios aos males e a desordem de Exu que, segundo dona Neta, fica a rondar, esperando encontrar
alguém de “boca aberta”.
Portanto, na visão mítico-simbólica de dona Neta, e de alguns integrantes, é necessário “fechar
o corpo” de maneira que, protegidos, possam ser mais uma vez campeões do desfile das agremiações.
Para isso não basta apenas que individualmente os Maracatuzeiros pratiquem suas obrigações, é
preciso que o grupo tenha fé nos trabalhos espirituais desenvolvidos pela rainha, que se iniciam já
semanas antes do desfile.
São feitas oferendas para o “Homem da Rua” (Exu) e para as “moças” (Pomba-gira), dessa
forma, satisfeitos com comidas apimentadas, aguardente, fumo etc, tudo de acordo com um cardápio
ritual previamente estabelecido, não incomodarão o Maracatu durante as suas apresentações. Sobre
os rituais de preparação que antecedem aos desfiles, dona Neta, Rainha do Cruzeiro do Forte relata
que:
“Primeiro do que tudo, agente pra sair no Maracatu tem que tomar um banho
de limpeza, arreia as obrigações. E, eu que sou Rainha do Maracatu e sou
espírita, tenho que arriar a farofa pra Exu, pra Pomba-Gira, pra Malunguinho,
é cerveja, é champanhe. Pro homem da rua eu tenho que arriar uma farofa,
com bastante pimenta malagueta. Se tiver fígado verde eu tenho que cortar
bem cortadinho, passar com azeite no fogo. Pras moças é também uma
farofa com pimenta. Pra Malunguinho a farofa também pra ele, ai bota o que?
Cerveja pras moça ou champanhe, pro homem da rua tem que deixar uma
garrafa de Pitú, pra Malunguinho também tem que botar Pitú pra ele, e
depois a gente dexa ali tudo pronto, e se quiser arriar também um prato de
fruta pras moça também. Tudo isso são os preparo espiritual. [...]” Eu
trabalho com caboclo, com mestre, com os caboclos tapuia, tudo isso eu sei
trabalhar. Tem as Preta Véia também, que é Preta Velha africana mermo, da
Bahia, que gosta da Macumba mermo e do cachimbo e do azeite, e do
dendê. Ta entendendo? Eu mermo trabalho com ela. Quando dá doze hora
em ponto, no domingo, agente sobe lá naquele cruzeiro, ai solta fogo e leva
todos os trabalhos pra lá.”

Chegado o domingo de Momo, aumenta a ansiedade: os Caboclos de Lança, já chacoalham os


Surrões, o Terno dá as ultimas aquecidas e as Baianas preparam o coral. Dona Neta, à frente,
comanda o cortejo até o monumento histórico “Cruzeiro do Forte”, nas proximidades do local onde os
fundadores do Maracatu tiveram a idéia de criá-lo. Visivelmente emocionada, ela canta as “Macumbas”;
reza o Pai Nosso, defuma os integrantes e suas fantasias, faz um circulo no chão com a aguardente,
chama à frente a Dama do Paço, que muito embelezada carrega no alto a Calunga, para que ela seja
reverenciada. Em seguida autoriza que um dos jovens acione os fogos de artifícios e, aos gritos de
“viva o Cruzeiro!”, o Terno começa a tocar freneticamente enquanto todos dançam, formando,
inicialmente, um círculo, que em saída formará um belo e volumoso cortejo.
Nas laterais seguem os Caboclos de Lança em rápidas evoluções, chegando a ficar
irreconhecíveis. Cobertos pelo colorido da cabeleira, fazem movimentos antihorários e jamais entram
no meio do cortejo, pois, se mantendo ao lado em círculo, protegem as baianas, a calunga, e a côrte
real.
Sua força e agilidade impressionam, até porque, irão manter o ritmo durante os três dias de
carnaval. Muitos terminam com marcas no corpo devido, ao peso da vestimenta. É visível o cansaço.
No entanto, junto à felicidade e à sensação de obrigação comprida, segundo informações obtidas.
“O caboclo de lança ele tem que sair com um cravo na boca tem que tomar
seus banhos também, nem tem nada a ver com mulher, por que isso é um
lado muito religioso também, por isso que você vê que eles são tudo
azougado, os caboclo de lança quando sai num sai de boca aberta não, são
tudo azougado, quando bota o Maracatu na rua já viu,é azougado mermo
porque cada cá faz seus perparo,ta entendendo? Eles são uns caboclo
agitado, tem muitos que tomam azougue.”

A Dama do Paço é uma mulher que deve estar “pura” e ser iniciada na jurema, pois é
responsável pelos cuidados com a Calunga e só ela tem acesso à boneca, durante os períodos de
apresentação. Também conhecida como dama de boneca ela é encarregada de desfilar e apresentar a
boneca de cera, que concentra o poder espiritual do grupo. Ela impede as malquerenças e maus olhos.
Nos meses prévios, inicia-se um trabalho de preparação, onde são oferecidos “trabalhos” aos espíritos
e a calunga recebe todas as energias, passando a ser o elemento central da simbologia ritualística do
Maracatu. Estas obrigações, também preparadas por dona Neta, são colocadas, previamente, no Peji e
a boneca é “calçada”, absorvendo os “bons fluidos”.
Além dos personagens já citados, o Arreiamá também chamado de Tuxáua e Caboclo de
Pena, é um personagem do Maracatu com grande simbolismo e que também se prepara para o
carnaval, simboliza o índio que protege sua tribo, pois “arreia” todo mal, traz consigo arco e flecha e
simula uma batalha indígena. É dentre os personagens o que mais evidência a influência indígena,
pedindo proteção aos espíritos do “mato” e aos mestres da Jurema, carrega também um machado
aludindo ao guerreiro, que luta na resistência as opressões dos invasores. (VICENTE, 2005)
Com todos estes personagens sagrados em movimento e após as preces de dona Neta, inicia-
se uma jornada de apresentações, muitas vezes até em cidades distantes, mas, com certeza, a
apresentação mais aguardada é o desfile oficial das agremiações carnavalescas, onde o ônibus lotado
segue ao centro da cidade do Recife, e lá os participantes preparam-se para entrar na avenida. Muito
experiente dona Neta faz, em voz baixa, seus últimos pedidos, enquanto a torcida, formada por
moradores do bairro, amigos e admiradores, já gritam pelo Cruzeiro do Forte.
O exuberante cortejo toma as ruas do Recife, e na semana seguinte retorna para o desfile das
campeãs, tem sido assim nos últimos oito anos. Dona Neta não pensa duas vezes em atribuir tanto
sucesso ao seu “santo forte” e aos seus maracatuzeiros de “Corpo Fechado”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRINCANTES. [Recife]: Jornal do Commercio, 1998.
MEDEIROS, Roseana Borges de. Maracatu rural: luta de classes ou espetáculo?. Recife: Fundação de
Cultura Cidade do Recife, 2005.
GUERRA-PEIXE, César. Maracatus do Recife. São Paulo: Irmãos vitale; Recife: Fundação de Cultura
Cidade do Recife, 1980.
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D'ARCE, Maria Luiza Camelo. Folclore da zona canavieira. Recife, 1973.
ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. 2. ed. Belo horizonte: INL, 1982.
VASCONCELOS, Maria Eduarda. Maracatu. Recife, 1979.
VICENTE, Ana Valéria. Maracatu Rural: o espetáculo como espaço social. Recife: associação reviva,
2005.
REAL, Katarina. Folclore no carnaval do Recife. Recife: FUNDAJ. 1967.
BEJAMIM, Roberto. AMORIM, Maria Alice. Carnaval: cortejos e improvisos. Recife, Fundação de
cultura do Recife, 2002. Coleção Malungo. Vol. 5.
NASCIMENTO, Mariana Mesquita. João, Manoel, Maciel Salustiano: Três gerações de artistas
populares, recriando os folguedos de Pernambuco. Recife: associação reviva, 2005.
ASSIS, Maria Elizabeth Arruda de. Cruzeiro do forte: A brincadeira e jogo de identidade em um
Maracatu Rural. Recife, 1996. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós - Graduação em Antropologia,
UFPE.
SILVA, Severino Vicente da. Festa de caboclo. Recife: Associação Reviva, 2005.

...............................................

ORIGENS DA UMBANDA EM GOIÂNIA (1948-1968)

Léo Carrer Nogueira (UEG)9


leocarrer@yahoo.com.br

Pisa no toco, pisa no galho


Segura na Umbanda se não tu cai10

9
Mestre em História, professor da UEG.
A Umbanda tem seu momento de expansão a partir da década de cinquenta, e com seu
crescimento passamos a observá-la também em outras partes de nosso país. A cidade de Goiânia é
uma delas. Com o crescimento da religião e da cidade, logo vem a necessidade por parte de seus
adeptos de unificar o movimento umbandista nesta capital, surgindo assim a Federação de Umbanda
do Estado de Goiás, que só depois incorporou o Candomblé em seus quadros.
Passaremos agora, portanto, a contar um pouco desta história. Estabelecer as origens da
religião em Goiânia não é tarefa fácil, principalmente devido à escassez de fontes. Porém, fizemos um
esforço para identificar os grupos que fundaram os primeiros terreiros na capital goiana, poucos anos
após sua fundação, até chegarmos ao surgimento da Federação de Umbanda, que a partir de seu
surgimento tentaria exercer o controle e a unificação da religião umbandista em Goiás. Antes, porém,
convém traçarmos um breve histórico, tanto da religião umbandista em Goiânia, quanto desta cidade.

Breve Histórico da Cidade de Goiânia

A história de Goiânia começa com a Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas chega ao
poder em nosso país. A capital de Goiás à época ficava localizada na região norte do estado, na
Cidade de Goiás, construída em 1725, no auge do período minerador. A partir do advento da
República, o Brasil passa a viver o período das grandes oligarquias rurais, e em Goiás não era
diferente, com o poder estando concentrado nas mãos da família Caiado, “por meio da direção de Totó
Caiado, que entre 1912 e 1930, comandou o Partido Democrata, fundado em 1909, como grande
dirigente de sua comissão executiva” (RIBEIRO, 1998, p. 230).
A oposição era comandada, surpreendentemente, por outro Caiado: Mário Alencastro Caiado,
que vinha de outro tronco familiar diferente do de Totó Caiado, tronco familiar que havia se unido à
família Alencastro, dando origem à família Alencastro Caiado, que não eram considerados plenamente
Caiados (RIBEIRO, 1998, p. 231). A partir de 1927, os conflitos entre os dois grupos familiares se
acirram, com o rompimento definitivo entre Mário e Totó Caiado, e com a fundação pelo primeiro do
jornal Voz do Povo, em torno do qual se aglutinavam os oposicionistas, entre eles o médico Pedro
Ludovico Teixeira.
Com a revolução de 1930 e a ascensão ao poder de Getúlio Vargas, organizou-se a Aliança
Liberal em Goiás, composta por Pedro Ludovico Teixeira, Mário Alencastro Caiado e Emílio Póvoa, que
derrotaram Totó Caiado e assumiram o poder em Goiás, sendo Pedro Ludovico nomeado pelo

10
Ponto Cantado de Umbanda colhido em trabalho de campo realizado no Centro Espírita Raio de Luz, em
Julho/2008.
presidente como interventor federal no estado ainda naquele ano. Pedro Ludovico sabia que mesmo
derrotados, os Caiado tinham grande influência política em Goiás, principalmente no interior. Entre
1930 e 1933, o então interventor iniciou uma campanha para construir uma nova capital no estado.
O discurso da Marcha para o Oeste, “movimento desenvolvimentista, liderado pelo Presidente
Getúlio Vargas, que buscava conquistar e incorporar regiões brasileiras distantes dos grandes centros
urbanos, as chamadas regiões fronteiriças” (SILVA, 2006, p. 18), foi incorporado por Pedro Ludovico na
defesa da construção de uma nova capital para o Estado nos debates políticos entre mudancistas e
antimudancistas. Entre os motivos apontados para a mudança, antigas críticas à Cidade de Goiás
foram resgatadas, considerada como uma cidade estancada no tempo:
Sem o crescimento dos serviços urbanos citados, sem uma mentalidade que
seguisse as transformações pelas quais passava o país, sem dar mostras de
que o progresso de todo o Estado era uma preocupação e a modernidade uma
meta. A capital de Goiás estava, enfim, distante do capital (CHAUL, 2001, p.
16911 apud SILVA, 2006, p. 19).

À Cidade de Goiás, portanto, foram associados e reforçados os conceitos de atraso e


arcaísmo. Várias administrações anteriores a 1930 já haviam alegado que haviam outras cidades no
estado em melhores condições de abrigar o poder político:

Em virtude do homem que abrigava, das condições topográficas, do clima, da


escassez de recursos naturais, em especial a água, Vila Boa não poderia
oferecer, para os novos grupos políticos em ascensão, condições favoráveis
para continuar a sediar a capital de um estado em vias de desenvolvimento
(SILVA, 2006, p. 20).

No fundo os reais motivos da transferência diziam respeito às disputas políticas entre Pedro
Ludovico e o grupo dos Caiado, que tinham grande poder político na antiga capital, mesmo porque,
apesar de todos os discursos, o local escolhido para a construção da nova capital não apresentava tão
melhores condições em relação à Cidade de Goiás. A principal meta do interventor era afastar o poder
da então capital, onde os Caiado ainda exerciam uma forte influência política, e centralizá-lo em uma
nova capital a ser construída, objetivos que são atingidos com o início da construção de Goiânia em
1933. O local escolhido para sua construção fora as imediações da cidade de Campinas. Localizada no
centro-sul do estado, a pequena cidade gozava de fama de “lugar saudável, quase bucólico, de clima
bom” (OLIVEIRA, 1999, p. 35).

11
CHAUL, N. N. F. Goiás: Identidade, Paisagem e Tradição. 1 ed. V. 1.500. Goiânia: UCG, 2001. (268 p.).
Assim, de 1933 até 1937 ocorreu a construção da nova capital, Goiânia, cidade planejada para
50 mil habitantes. Em 1937 foi realizada a transferência definitiva da capital, da Cidade de Goiás para a
cidade recém-construída. A nova cidade cresceu rápido,

em 1940, a população urbana da cidade era de 18.889 habitantes; destes mais


de 60% residiam no Bairro de Campinas. Em 1950, a população urbana da
cidade era de 40.333 habitantes; em 1955, era de 74.781. Já em 1960, a
população urbana elevou-se para 133.462 habitantes (OLIVEIRA, 1999, p. 48).

Goiânia era uma cidade que aglutinava em torno de si o imaginário de cidade moderna.
Enquanto a Cidade de Goiás representava o atraso e o arcaísmo, Goiânia era caracterizada como
símbolo do progresso e do desenvolvimento, principalmente econômico, como atestam os próprios
relatórios enviados por Pedro Ludovico a Getúlio Vargas nesta época, que se referia à cidade como
“progressista”, “projetada e edificada sob a mais rigorosa e atenta assistência técnica, dotada de todos
os benefícios que a moderna ciência urbanista proporciona”12.
Por ser uma cidade planejada, a população de Goiânia foi formada maciçamente por
imigrantes do interior de Goiás e de outros estados, principalmente Minas Gerais, Bahia e São Paulo
(OLIVEIRA, 1999, p. 75). “Atraídos pelas promessas de enriquecimento e doação de lotes, sem uma
formação profissional definida, mudaram-se para o descampado goiano” (SILVA, 2006, p. 26),
formando assim as primeiras invasões. Portanto, Goiânia era uma cidade que crescia a passos largos,
e já começava a sofrer os problemas das grandes cidades: inchaço populacional, que levava às
invasões e à falta de infra-estrutura nestes novos aglomerados urbanos que surgiam.

O Espiritismo em Goiânia

Segundo o primeiro plano diretor de Goiânia, elaborado por Atílio Correia Lima e Armando
Godoy entre os anos de 1933 e 1935, dentre os espaços religiosos só havia lugares destinados a
templos católicos, sendo a principal delas a Igreja Nossa Senhora Auxiliadora, na então cidade de
Campinas. Não havia qualquer outra menção a templos de religiões não-católicas, porém isto não
significa que elas não existiam.
O Espiritismo é um exemplo. A religião, que havia chegado ao Brasil no ano de 1865 no Rio de
Janeiro, já era conhecida da camada média brasileira e já contava com grandes expoentes como o
médico e político Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, e o professor Eurípedes Barsanulfo. Em 1881 foi

12
Pedro Ludovico Teixeira, 1939 p. 28. In: SILVA, 2006, p. 22.
realizado o I Congresso Espírita Brasileiro, e em 1884 surgiu a FEB, Federação Espírita Brasileira,
fatos que vieram consolidar a nova religião em nosso país.
Em Goiás a chegada do Espiritismo se deu ainda em meados do século XIX,

com um grupo de senhoras da antiga capital que se reuniam junto a um Frei


dominicano, D. Raimundo Maimoré, para as primeiras sessões experimentais
em suas casas (GUILLARDUCCI, 2003). Já a primeira entidade espírita
juridicamente regulamentada data de 1924, chamando-se Centro Espírita
“Amigo dos Sofredores”, ainda em Goiás, a antiga capital do Estado, casa que
enfrentou por diversas vezes a hostilidade da sociedade vilaboense e outros
segmentos religiosos da cidade (CASTRO, 199513 apud BRUZADELLI, 2008,
p. 136).

Ao mesmo tempo era fundado no interior do Estado de Goiás, numa região rural, o Centro
Espírita “Luz da Verdade”, que daria origem à cidade de Palmelo, sendo considerado como o primeiro
município espírita do mundo (BRUZADELLI, 2008, p. 136). Vê-se assim que havia já na Cidade de
Goiás e em outros lugares do estado a presença da doutrina espírita de base kardecista. Também a
cidade de Goiânia receberia adeptos desta religião, e não tardou para que o primeiro centro espírita
fosse inaugurado na cidade. Em 1938 foi fundado na nova capital o Centro Espírita Estudantes do
Evangelho, casa que se preocupava “em colocar em prática os estudos das bases ‘científicas,
filosóficas e religiosas’ do espiritismo e, principalmente, a prática da caridade, um dos ideais espíritas
para a salvação” (BRUZADELLI, 2008, p. 136).
A partir da década de quarenta, dois importantes veículos de divulgação da doutrina espírita
surgiram em Goiânia. Em 1943 foi fundada a Agremiação Espírita Dr. Adolfo Bezerra de Menezes.
Logo depois surge o primeiro jornal espírita de Goiás, o Goyaz Espírita. Esse jornal que, entre outras
coisas, divulgava “reuniões espíritas e textos referentes à doutrina para a defesa das acusações de
práticas de ‘macumba’ (num texto repetido em várias edições, em que se afirma que no ‘espiritismo não
há velas’ e não ‘se pratica o mal’)” e atacava “diversas vezes outras religiões, especialmente a católica
que era acusada de ser ‘aliada do estado’” (BRUZADELLI, 2008, p. 137).
Percebe-se assim que, desde o início, uma característica do espiritismo goianiense era a sua
preocupação em diferenciar-se das práticas consideradas “não-recomendadas”14, a que eles se
referiam pelo termo genérico de macumba. Tais idéias se coadunavam com a visão e preocupação que
os espíritas brasileiros tinham, em outras capitais onde esta religião já se estabelecera a mais tempo,
de se diferenciarem e até mesmo combaterem as práticas afro-brasileiras.

13
CASTRO, Silvia Alessandri M. Irradiação Espírita Cristã – Memórias. Goiânia: Ed. Kelps, 1995.
14
Termo utilizado pelo Sr. Air Gomes, em entrevista concedida a mim no dia 29/03/08.
Como vimos no capítulo anterior, na década de quarenta a Umbanda já havia se estabelecido
no país, contando já com federações no Rio de Janeiro, e tendo realizado seu primeiro congresso
nacional em 1941, portanto, já era religião conhecida dos brasileiros. Daí a preocupação dos
goianienses em se diferenciar de tais práticas, o que demonstra, aliás, que se o citado jornal se
preocupava em denunciar as práticas de “macumba”, provavelmente era porque na nova capital já
começavam a aparecer os primeiros representantes deste tipo de práticas.
As duas casas espíritas já citadas, juntamente com outras recém fundadas,
como “Paz em Jesus”, “Amor, Caridade e Luz”, “Grupo Ismael”, “Amor e
Caridade”, “Centro Santo Agostinho” e a “Escola Caibar Schutel” organizam a
Primeira Semana Espírita de Goiânia, nos dias 21 a 27 de dezembro de 1947.
(...) Da necessidade de aglutinação de ideais surge, no dia 3 de outubro de
1950, a “União Espírita Goiana”, na já citada Agremiação “Dr. Adolfo Bezerra
de Menezes”, que buscava exercer no Estado as mesmas atribuições da FEB
no que tange o país inteiro (BRUZADELLI, 2008, p. 137).

Esta União Espírita Goiana mais tarde deu origem à Federação Espírita do Estado de Goiás
(FEEGO), que em 1992 se constitui em sua sede própria, localizada no Setor Sul. É interessante notar
como, apesar de combater o que chamava vulgarmente de “macumbaria”, o movimento espírita que
deu origem à União Espírita Goiana recebeu a participação de um grupo de umbandistas, que nossas
fontes apontam como os pioneiros da religião em Goiânia, e que haviam fundado aqui o Centro Eclético
Espiritualista Tenda do Caminho, conforme veremos a seguir.

Surgimento da Umbanda em Goiânia

As origens da Umbanda em Goiânia remontam ao final da década de quarenta, e têm como


personagens principais alguns membros da classe média goianiense. Entre eles destacam-se a Sra.
Maria Antonieta Alessandri, o Dr. Colombino Augusto de Bastos, o Sr. Francisco Ribeiro Scartezini, Sr.
Glauco Baiochi, Sr. Algenor Cupertino e Sra. Nostalgia de Moraes, entre outros. Este grupo costumava
fazer reuniões semanais, revezando ora na casa de um, ora na casa de outro.
Sobre este período a Srª Maria Antonieta Alessandri conta que havia acabado de se mudar de
Minas Gerais para Goiânia com seu marido, o médico Dr. Clóvis Figueiredo, quando conheceu o Dr.
Colombino e seu grupo. Dª Antonieta, como é mais conhecida, já era de família espírita, tendo sua
família sido responsável, inclusive, pela fundação de importantes instituições espíritas em sua cidade
natal, Monte Alegre, segundo relato da própria Dª Antonieta.
Ela se casou em 1945 com o Dr. Clóvis, e no ano seguinte se mudaram para Goiânia, fixando
residência na rua sete, no bairro central da capital, como conta a própria Dª Antonieta:
Quando nós mudamos aqui pra casa, morávamos na rua sete, fiquei
conhecendo o engenheiro Dr. Colombino e outras pessoas também, outro
engenheiro, outro médico, que reuniam-se sozinhos eles pra estudar. Aí eu fui
pra lá “ó, eu também sou espírita, quero fazer parte”. Ia na casa dum, na casa
doutro, eu falei “ó gente, já que tá desse jeito, vamos fundar uma casa de
reunião”. Aí não tinha dinheiro pra comprar, porque tava começando. O Clóvis,
meu marido, tinha me dado de presente um lote, lá na Vila Nova, aí eu falei pro
Clóvis – a melhor pessoa do mundo que eu conheci foi meu marido – falei
“Clóvis, eu posso dar o lote que você me deu pra fazer o centro espírita?” ele
falou “ó, o lote é seu, você faz o que você quiser”. Aí eu dei o lote lá da
Irradiação, que hoje é aquela casinha né15.

Tal lote ficava localizado na Rua 201, que hoje se chama Av. Colombino de Bastos, n° 232,
Setor Vila Nova. Assim, em 1953 foi construída a sede definitiva do Centro, que recebeu o nome de
Centro Eclético Espiritualista Tenda do Caminho. Apesar da forte orientação kardecista, o centro
realizava trabalhos dentro da Umbanda, inclusive com a realização de curas. O primeiro presidente da
instituição foi o Dr. Colombino, que permaneceu à frente do Centro até sua morte em 1958, quando a
Dª Antonieta assumiu a presidência da casa.
Mas que tipo de Umbanda era praticado neste primeiro centro fundado na capital goiana?
Como vimos nos capítulos anteriores a Umbanda é uma religião bastante diversificada, apresentando
características diferentes que variam de centro para centro. Segundo os relatos de Dª Antonieta, a
Tenda do Caminho praticava o que ela chama de “Umbanda Branca”. Este termo é bastante utilizado
para se referir a uma Umbanda com forte influência kardecista e na qual a presença da doutrina
espírita condiciona o trabalho espiritual. Segundo palavras da própria Dª Antonieta,
era uma Umbanda assim, trabalhava para despertar a pessoa para o estudo
do evangelho, tinha uma outra formação. Então nós tínhamos casos de curas
impressionantes, que a Umbanda é capaz de fazer e Centro Espírita não sei se
faz. Mas como o objetivo era divulgar o evangelho, a gente já tinha estudado o
evangelho lá, aos poucos foi mudando, mudando, e quando eu dei meu lote
pra fazer aqui, o centro de Umbanda foi prum lado e a Irradiação foi pro outro.
(...) A Umbanda trabalhava com uma equipe de espíritos mais ligados à
Umbanda, por exemplo, entre os índios, tem curadores... eles então atuavam
lá. Eu vi muita cura também viu. Agora não é só curar a pessoa, é despertar
para a realidade da vida. Essa é a coisa mais importante que tem16.

Percebe-se pelo depoimento da fundadora o forte papel que desempenha o estudo do


evangelho para ela. Este é um dos princípios do Espiritismo de orientação kardecista: o estudo
constante para que a pessoa possa evoluir, tanto intelectualmente quanto espiritualmente. Portanto,
podemos ver que havia já neste primeiro grupo que funda a Umbanda em nossa cidade uma

15
Entrevista com Dª Antonieta realizada por mim em 12/11/08.
16
Entrevista com Dª Antonieta realizada por mim em 12/11/08.
preocupação constante com a divulgação do evangelho e da doutrina espírita, que os levará a adotar
definitivamente a religião espírita, como veremos adiante.
Ao mesmo tempo há a questão da cura, que estava bastante presente nos primeiros trabalhos
do grupo, característica também que é constante tanto em terreiros de Umbanda quanto em Centros
Espíritas. Aliás, esta é uma das principais características que levam muitas pessoas a recorrer a estas
religiões, a busca de aliviar males de saúde, como demonstram vários estudos já realizados sobre o
tema17.
A Tenda do Caminho durou até o ano de 1962, quando resolve deixar a Umbanda de lado e
dedicar-se apenas ao estudo e divulgação da doutrina kardecista, além de fazer inúmeras obras
sociais. Houve, inclusive, a mudança no nome da instituição para Irradiação Espírita Cristã, nome que
segundo Dª Antonieta foi sugerido pelo próprio Chico Xavier, o mais importante médium espírita que
tivemos em terras brasileiras.
Mas nem todos os membros da Tenda do Caminho foram de acordo com a mudança. Um
grupo liderado pela médium conhecida como Dª Didi não concordou com a retirada dos trabalhos de
Umbanda da instituição, e descontente resolveu se mudar e fundar um centro em outro ponto da
capital. Assim surgiu o Centro Espiritualista Irmãos do Caminho, que manteve os trabalhos de
Umbanda, mas sem deixar de lado a forte orientação kardecista, como nos explica o atual presidente
da casa, Sr. Air Gomes:
porque houve na realidade uma cisão dentro do processo, e um grupo de
médiuns saíram de lá [da Tenda do Caminho] e fundou um centro para
atividade da Umbanda, que ela foi naquela época praticamente excluída do
processo lá das atividades da Tenda do Caminho, então eles resolveram
desligar uma coisa da outra e fundou-se o centro Irmãos do Caminho, e a
Tenda do Caminho passou a se chamar Irradiação Espírita Cristã, lá com a
Dona Antonieta Alessandri18.

O trabalho no centro Irmãos do Caminho manteve os moldes da antiga Tenda do Caminho, ou


seja, um trabalho que mesclava as curas da Umbanda com a divulgação da doutrina kardecista, como
já descrevemos no primeiro capítulo deste trabalho. Pela história da Tenda do Caminho podemos
perceber como os adeptos desta religião transitavam dentro daquilo que convencionamos chamar de
“Rizoma Umbandista”, conforme seus interesses. A forte influência do Kardec ismo está sempre
presente, e não é raro que Centros Espíritas se transformem em Terreiros de Umbanda e vice-versa,

17
Cf. maiores detalhes em: CAMARGO, 1961; MACHADO, 2003; NOGUEIRA, 2005.
18
Entrevista com Sr. Air Gomes, realizada por mim em 29/03/08.
contribuindo para isto apenas as vivências e experiências de cada membro do centro ou terreiro em
questão19.
No caso aqui analisado, por exemplo, vê-se claramente que a prioridade do grupo fundador da
Tenda do Caminho não era a parte de curas, mas sim a parte doutrinária da religião, conforme
podemos perceber pelo depoimento de uma de suas fundadoras. Outro ponto forte desta instituição,
que posteriormente veio a se constituir como a Irradiação Espírita Cristã são as obras sociais. Ao longo
de seus anos de existência, a instituição construiu várias creches, uma escola, um abrigo para cuidar
de pessoas idosas, entre outras instituições, que hoje são mantidas e administradas pela própria
Irradiação, constituindo-se em um vasto trabalho social.
Assim, em nome de uma divulgação da doutrina espírita e da realização do trabalho social, o
grupo em questão optou por deixar a Umbanda, enquanto que outro grupo que preferia manter as
características iniciais dos trabalhos se desligou, fundando um novo centro para a execução de seus
trabalhos espirituais, onde continuaram a praticar a Umbanda.
A partir da década de sessenta, inúmeras casas de Umbanda começaram a surgir na capital
goiana. Em 1965 foi fundado o Centro Espírita São Sebastião, de Dª Geraldina Barbosa, no Setor
Pedro Ludovico. Segundo estudo realizado por Raquel F. Ricardo,
o Centro Espírita São Sebastião de Dona Geraldina Barbosa foi fundado em
1965, tendo 43 anos de existência [até 2007], e é o templo mais antigo
localizado até o momento [na região sul de Goiânia]. O Centro é denominado
como Umbanda Branca Esotérica da Comunhão do Pensamento, da linha de
Oxalá do Caboclo Pajé de Flexeiro, o guia que orienta a casa. Dona Geraldina
passou por inúmeras dificuldades antes de conseguir uma casa própria.
Morava de aluguel no Setor Ferroviário até saber que no Setor Pedro Ludovico
vendiam-se lotes invadidos por preços irrisórios. Comprou o seu e logo depois
houve uma intervenção da prefeitura para regularizar as invasões, foi quando
deslocaram os moradores para o chamado “baixo Pedro Ludovico”, a parte do
setor que se aproxima mais das margens do córrego Botafogo e do Jardim
Botânico (RICARDO, 2007, p. 12).

Apesar de adotar a denominação de Centro Espírita, o trabalho no São Sebastião é na verdade


de Umbanda. Os trabalhos apresentam como principais características a dança, os cantos (pontos
cantados), os símbolos (pontos riscados), a farta decoração (utilização de estátuas e quadros que
representam os Orixás e Guias – entidades da Umbanda), a utilização por parte das entidades de
certos elementos dentro do ritual, como bebidas alcoólicas, charutos, cigarros, velas, folhas de plantas
consideradas sagradas (arruda, guiné, etc.), entre outros.

19
Cf. CAMARGO, 1961.
Dois anos depois surgiu outra importante casa de Umbanda na cidade, o Centro Espírita Anjo
Ismael, fundado pelo Sr. Luís Fernandes Salles e que se localizava no Setor Ferroviário. É o próprio Sr.
Luís quem nos conta como foi a fundação do centro:

Em sessenta eu comecei a ter contato, né, aos catorze anos, com a Umbanda,
e tinha uma senhora aqui que tinha um terreiro praticamente costa a costa
comigo, que era o Centro Espírita Mãe Iemanjá, da senhora Marília, que é uma
das fundadoras da federação também. (...) Bom, nesse período de sessenta
até sessenta e sete eu prevaleci nesse centro e em 1967 nós resolvemos
fundar o centro que hoje que eu dirijo que é o Centro Espírita Anjo Ismael. (...)
Em sessenta e sete, é, a cinco de janeiro de mil novecentos e sessenta e
sete20.

O próprio Sr. Luís nos dá informação que na ocasião da fundação de seu Centro, ele
freqüentava outra casa de Umbanda, chamada Centro Espírita Mãe Iemanjá, provavelmente, fundada
na década de sessenta. Em outro trecho da entrevista o Sr. Luís nos dá maiores detalhes de seu
envolvimento com este terreiro:

No espaço do meu envolvimento com a Umbanda foi através da minha mãe,


porque minha mãe era “kardequiana”, (...) quando eu cheguei de Anápolis, que
eu falei da senhora que estava perto de nós, em sessenta, que tinha o Centro
Espírita Mãe Iemanjá e (...) eu chegava a noite da escola e ia buscar a chave
né, chegava lá eles estavam em sessão e aquilo me trouxe assim uma recusa,
né, porque (...) eu e minha mãe, nós tínhamos o Kardec, hoje é o Centro
Espírita Luz e Vida que fica ali na avenida Contorno, onde era de seu Romeu.
[Eu falei:] “Uai, mãe, mas é diferente, né, onde a senhora tá praticando é
diferente, é uma coisa muito diferente”. E comecei a questionar e comecei a
impor ali uns seis meses. (...) Eu me aproximei ali, fui tentando me aproximar.
E começava a ficar ali sentado, aí eu passei a cambonear, né, a função é
cambonear, que é o assistente das entidades, Caboclo, Preto Velho, levar um
cachimbo, levar um charuto, aquele que é o confidencial das entidades, né,
aquele que a entidade conversa, explica o que deve ser feito. E naquele
período eu fui me adaptando com a Umbanda, né, fui me envolvendo com ela,
fui passando um período. (...) Eu estava com dezessete anos quando o mentor
espiritual da Casa, que era o pai Emmanuel, me chamou e me coroou, né, na
Umbanda “eu quero que você assuma a responsabilidade”. Então, eu com
dezessete anos e servia a incumbência de dirigir a Casa dele. (...) Então foi
quando em sessenta e sete há um problema no Mãe Iemanjá, lá entre eles
mesmo. Aí eles pararam o templo e foi quando nós saímos do templo e fomos
fundar o Anjo Ismael21.

20
Entrevista com Sr. Luís Fernandes Salles e Elmo Rocha, realizada em 16/11/06 por Eliesse Scaramal.
21
Entrevista com Sr. Luís Fernandes Salles e Elmo Rocha, realizada em 16/11/06 por Eliesse Scaramal.
A descrição do envolvimento de Sr. Luís com a Umbanda demonstra uma transição comum
entre adeptos ou simpatizantes do Espiritismo de base kardecista e da Umbanda, demonstrando que
há um fluxo entre as duas religiões, que ao longo da história tiveram uma forte ligação, como vimos no
segundo capítulo. A influência do Kardecismo para a fundação da Umbanda, e o caráter relativamente
aberto de ambas, muitas vezes não exigindo que o freqüentador-leigo se torne necessariamente um
adepto da religião, facilita este trânsito.
Em estudo anterior realizado em 2005 na cidade de Goiânia (NOGUEIRA, 2005), constatamos
que era bastante comum na Umbanda freqüentadores que se diziam católicos, mas que procuravam a
Umbanda em busca de solução para algum mal-estar físico ou psicológico, conforme concluímos neste
estudo:
A Umbanda, portanto, apresenta uma diferença em relação a outras religiões,
e até mesmo em relação ao Candomblé. Tal diferença se constitui na não
obrigatoriedade de que o freqüentador estabeleça um vínculo mais profundo
com a religião. (...) A pessoa pode ir ao centro de Umbanda, conversar com as
entidades, pedir auxílio a elas, sem que seja necessário qualquer ritual
iniciático [na maioria dos casos], e voltar pra casa sem a obrigatoriedade de
retornar ao centro. Se retorna é apenas porque se identifica com o culto ou vê
na Umbanda uma ligação maior com o mundo sobrenatural através do contato
com as entidades. Mas em nenhum momento lhe é exigido que abandone sua
prática religiosa original para freqüentar a Umbanda (NOGUEIRA, 2005, p. 67).

Tal característica pode ser observada também nos centros kardecistas, o que faz com que o
trânsito religioso entre estas duas religiões, tanto de fiéis quanto de centros, como foi o caso da Tenda
do Caminho, se faça constante. Este é o caso também do Sr. Luís, que vindo de uma filiação
kardecista por parte de sua mãe, muda para a Umbanda após conhecer um centro que trabalhava com
esta religião. A mudança, no entanto, não se dá de forma fácil, o que percebemos quando ele afirma
que no início os trabalhos no novo centro lhe trouxeram uma “recusa”, em decorrência de sua formação
kardecista. Somente depois de algum tempo de adaptação que ele pôde se dedicar aos trabalhos
nesta casa, inclusive fazendo parte da corrente, executando a função de Cambono, cargo de quem não
incorpora, ou seja, não recebe entidades para atender às pessoas, mas sim ajuda as entidades
incorporadas levando os instrumentos que elas possam necessitar como charutos, velas, bebidas etc.
Após sete anos trabalhando neste centro, ele resolveu abrir seu próprio terreiro, em virtude de
desentendimentos na antiga casa, que parou de funcionar por um tempo. Assim surgiu o Centro
Espírita Anjo Ismael, localizado inicialmente no Setor Ferroviário, e mudando depois, na década de
setenta, para o Jardim Goiás, onde se encontra atualmente. A fundação e a escolha do nome foram
descritas pelo Sr. Luís da seguinte forma:
Quando nós estávamos formando o grupo, ele [o Caboclo Ubirajara, guia-chefe
do grupo] sentiu que não era um Caboclo de grupo, quer dizer, [de] trabalhos
que nós chamamos trabalhos de quintal, trabalhos só de família, né. Então ele
falou: “ou vocês dissolvem o grupo ou vocês me levam para uma casa maior
para que eu possa praticar a nossa caridade”. Bom, aí nós reunimos no dia
dezenove de Janeiro, num domingo, as dezessete horas, né, a maior parte do
grupo pra escolher [o nome da nova casa]. E nós tínhamos um senhor, já
falecido, o Sr. Sinval, no momento da abertura ele falou: “olha, eu vejo a
imagem de um aspecto de um ‘ectoplasma’ espiritual de um arcanjo, tá aqui”.
Mas nós não tínhamos contato com anjo, né, e aí, bom, aí veio aquela idéia:
anjo? Aí, na democracia, fomos para a votação de qual o nome que ia
prevalecer na nossa Casa. E eu fui o único que votei o nome Centro Espírita
Caboclo Ubirajara, o restante, todos votaram no Arcanjo Ismael, foi o que
prevaleceu, o nome Anjo Ismael na nossa Casa22.

Assim surgia o Centro Espírita Anjo Ismael, fundado por um grupo liderado pelo Sr. Luís
Fernandes Salles. Neste período surgiram várias outras casas de Umbanda na capital goiana, e o Sr.
Luís resolveu convidar vários representantes e presidentes destas casas para discutirem a fundação de
uma instituição que defendesse os interesses dos Umbandistas. Desse modo, no dia 15 de dezembro
de 1968 aconteceu a I Reunião dos Presidentes de Centros Umbandistas da Capital, como foi descrita
na ata desta reunião, que aconteceu no Salão Nobre da Agremiação Espírita Dr. Adolfo Bezerra de
Menezes, sito à rua Contorno, n° 93, Bairro Popular, em Goiânia. Nesse mesmo local, dezessete anos
antes, havia surgido o núcleo da União Espírita Goiana, que mais tarde se transformaria na Federação
Espírita do Estado de Goiás (FEEGO).
Participaram desta primeira reunião os representantes de nove casas de Umbanda, sendo
elas: Centro Espírita Anjo Ismael, Agremiação Espírita Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, Centro Espírita
Mãe Iemanjá, Tenda Espírita Três Poderes, Tenda Humilde Camírio Castelo Branco, Tenda Espírita
Pai Xangô, Sociedade Evangélica de Umbanda, Centro Espírita Ogum Iemanjá e Centro Espírita Ogum
Beira-Mar. Na ocasião foi eleita uma diretoria provisória para a instituição que viria a ser a Federação
de Umbanda do Estado de Goiás, cujo presidente ficou sendo o próprio Sr. Luís.
A segunda reunião foi realizada no dia 26 de dezembro do mesmo ano, e foi apresentado pelo
Sr. Luís um estatuto para a nascente federação. Entre outras coisas, havia uma preocupação geral,
expressa pela declaração do Sr. Francisco Ferraz de Lima, presidente da Agremiação Dr. Adolfo
Bezerra de Menezes, com os Centros “que não agem dentro do ritual, tendo alguns que cobram por
intermédio de fichas, o passe recebido, e que uma atitude benéfica da federação consistirá justamente
em evitar estas faltas”23. A Federação, portanto, já nascia com uma incumbência fiscalizadora, que era

22
Entrevista com Sr. Luís Fernandes Salles e Elmo Rocha, realizada em 16/11/06 por Eliesse Scaramal.
23
Ata Extraordinária de Reuniões dos Presidentes de Centros Umbandistas da Capital de 26/12/68. In: 1º Livro
de Atas da Federação Umbandista do Estado de Goiás, Goiânia, 15/12/68.
de regular a conduta dos centros e terreiros da capital em relação àquilo que era considerado como
“excessos”, como a cobrança pelos serviços espirituais prestados.
Tais preocupações condiziam com uma tendência do movimento federativo em todo o país.
Por ser uma religião que não apresenta um código doutrinário e ritualístico rígido e fixo, os presidentes
de centros e chefes de terreiros acabam tendo bastante liberdade para “criar” seu ritual da maneira que
achar melhor. Claro que na maioria das vezes os rituais são realizados tendo como modelos outros
rituais já existentes. Mas não é raro, por exemplo, vermos a incorporação de outros elementos a este
ritual, como é o caso das religiões da Nova Era, já analisados em nosso primeiro capítulo.
Assim, há uma gama enorme de práticas ritualísticas singulares dentro do universo
umbandista. E é exatamente com um sentimento de unificação desta religião, entre outras coisas, que
surgem as federações em todo o país. Inúmeras tentativas de criar uma doutrina e uma ritualística
única para a religião umbandista foram feitas, como demonstram os congressos de Umbanda
realizados em São Paulo e Rio de Janeiro.
Em 1976 [por exemplo], realizou-se o II Seminário Paulista de Umbanda, desta
vez com uma ambição maior, a de padronizar as chamadas “sete linhas da
Umbanda”. (...) Ela não prevaleceu nos terreiros, que continuaram a adotar as
linhas segundo as concepções particulares de seus pais-de-santo. O mesmo
que ocorreu, aliás, com a padronização das aberturas e encerramentos das
giras propostas no I Seminário (NEGRÃO, 1996, p. 114).

Tais tentativas de padronização da ritualística umbandista, no entanto, nunca vingaram dentro


dos terreiros, que continuavam realizando seus rituais dentro do que os líderes de terreiros e pais-de-
santo consideravam como sendo o correto. Por vezes estas tentativas de padronização atendiam a
necessidade de moralizar os rituais umbandistas realizados, nos quais eram comuns, por exemplo, a
cobrança dos serviços espirituais prestados, ou a utilização da religião “para a obtenção de vantagens
pessoais” (NEGRÃO, 1996, p. 118). Essas atitudes eram vistas pela maioria das Federações como
sendo contrárias à verdadeira religião Umbandista, a qual é regida pelo princípio da caridade, influência
esta, aliás, que vinha do cristianismo e da própria doutrina kardecista.
No I Congresso Paulista de Umbanda, por exemplo, realizado em dezembro de 1961, foi
assinada uma resolução que dizia ser a Umbanda “cristã, espírita-kardecista, ecumênica e moralizada”.
Assim, “com sua cristianização e moralização, não mais representaria a Umbanda qualquer perigo,
devendo, portanto, serem removidas as restrições legais à sua prática” (NEGRÃO, 1996, p. 94). Tais
preocupações tinham como principal objetivo afastar da Umbanda toda e qualquer prática considerada
“perigosa” para a sociedade da época, e assim conseguir a aceitação social que ela tanto almejava.
A declaração da Umbanda como cristã e espírita-kardecista procurava vinculá-la às maiores
religiões da época, e que gozavam de uma maior aceitação social. Além disto, declaravam-na como
ecumênica, movimento que parte da Igreja Católica e que visa a boa convivência entre as diversas
religiões cristãs; e o principal: moralizada, o que queria dizer que na verdadeira Umbanda não se
encontravam práticas consideradas amorais, como a realização de trabalhos espirituais que visassem
prejudicar outras pessoas. Concluía o documento que a Umbanda não representava nenhum “perigo” à
sociedade e, portanto, não tinha porque haver restrições à sua prática, já que nesta década a
Umbanda continuava sendo perseguida, principalmente pela imprensa, como o jornal O Estado de S.
Paulo, e pelo catolicismo.
Como vimos no segundo capítulo, estas iniciativas levaram, por exemplo, ao fortalecimento do
mito fundador da Umbanda, e de sua história mítica vinculada às religiões da lendária Atlântida e da
Lemúria, idéias que se inseriam no ideal civilizador do Estado Novo, o qual procurava fundar a nova
nação brasileira desvinculada de tudo o que considerava “atrasado” e “bárbaro”. Não seria diferente
com a Federação em Goiás, que ao longo de toda sua existência demonstrava de forma clara sua
preocupação com a realização, por parte dos terreiros, de práticas consideradas condenáveis, e assim
exercia uma fiscalização constante destes terreiros para coibir tais práticas, como veremos adiante.

Outra preocupação expressa nestas primeiras reuniões dos presidentes de Centros de Goiás
foi com a existência de uma Federação na cidade de Anápolis, chamada Federação Espiritualista de
Umbanda Sete Luas Indú Cerami, que segundo informações fornecidas pelo próprio Sr. Luís F. Salles,
atuava naquela cidade desde a década de cinquenta. Infelizmente não conseguimos maiores detalhes
sobre esta Federação, que fora fundada e administrada pelo Sr. Benício Alves dos Anjos. O Sr. Luiz
afirmou que tal federação não se prontificou a “colaborar com nossos trabalhos”, e que foi considerada
não tendo os “requisitos suficientes”24.
Na reunião seguinte, realizada já em 1969, aos cinco dias do mês de janeiro, na sede do
Centro Espírita Anjo Ismael, no Setor Ferroviário, foi feita a fundação oficial da instituição, com a leitura
do estatuto elaborado pelo Sr. Luís Fernandes Salles, eleito na ocasião primeiro presidente do órgão.
Nascia ali a Federação Umbandista do Estado de Goiás (FUEGO), ainda sem sede própria.
Compareceram à reunião presidentes de dezenove Centros Espíritas, Tendas e Terreiros de Umbanda
da capital e do interior do estado. A diretoria da Federação era composta de presidente e vice,
secretários, tesoureiros e um conselho deliberativo e outro fiscal. Ficou decidido ainda que fosse
cobrada uma taxa mensal de cada terreiro filiado, no valor de cinco cruzeiros novos.
A partir deste momento, portanto, esta Federação que surgia assumirá a função de controlar e
ao mesmo tempo proteger os terreiros de Umbanda existentes. Durante toda sua existência, a atuação

24
Ata Extraordinária de Reuniões dos Presidentes de Centros Umbandistas da Capital de 26/12/68. In: 1º Livro
de Atas da Federação Umbandista do Estado de Goiás, Goiânia, 15/12/68.
da Federação será marcada por estas características, sendo grande causa de conflitos e tensões entre
ela e os seus terreiros afiliados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRUZADELLI, Victor Creti. O surgimento de Goiânia e o estabelecimento do Espiritismo Kardecista


como uma religiosidade moderna. In: Revista Chrônidas. Ano 01, n. 1. Goiânia: UFG, 2008. (p. 131-
140). Disponível em:
http://www.revistachronidas.com.br/edatual.html. Acessada em 23/09/2008.

CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda – Uma interpretação sociológica.
São Paulo: Pioneira, 1961.

MACHADO, Sandra Maria Chaves. Umbanda: reencantamento na pós-modernidade? Dissertação


(Mestrado em Ciências da Religião). Goiânia: UCG, 2003.

NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada: formação do campo umbandista em São
Paulo. São Paulo: Edusp, 1996.

NOGUEIRA, Léo Carrer. Umbanda em Goiânia – limites entre religião e magia. Monografia (Graduação
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OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. Imagens e mudança cultural em Goiânia. Dissertação (Mestrado em
História), Goiânia: UFG, 1999.

RIBEIRO, Miriam Bianca Amaral. Memória, família e poder. História de uma permanência política – os
Caiado em Goiás. In: CHAUL, Nars Fayad (Org.). Coronelismo em Goiás: estudos de casos e famílias.
Goiânia: UFG, 1998. (p. 209-290).

RICARDO, Raquel Pinto Fabeni. Entre caminhos, fluxos e interdições – Mapeando o campo religioso
negro na região sul de Goiânia. TCC (Bacharelado em Ciências Sociais), UFG, Goiânia, 2007.

SILVA, Karine Machado. Álbuns da Cidade de Goiânia: visualidade documental (1933-40). Dissertação
(Mestrado em História). Goiânia; UFG, 2006.

............................................

Mulheres que seguem a Virgem Maria na Renovação Carismática Católica e Mulheres que incorporam
a entidade Pomba-gira nos rituais de Quimbanda.
Letícia Aparecida Ferreira Lopes Rocha25.
lleticia81@yahoo.com.br

Historicamente, o homem sempre procurou associar sua existência a algo fora de si,
enigmático, sagrado, misterioso. Parece haver no recôndito de seu ser o desejo de encontrar o
Transcendente, desejo de infinito como coloca Kant, -“o destino do homem é o infinito”. Talvez, seja
este desejo a causa de muitos pensarem que a função da religião é mediar, ligar o homem ao
Transcendente, numa possível relação imanente e transcendente, que envolve as seguintes
dimensões: psíquica, intelectual, física, afetiva e religiosa. Esta relação imanente (dentro) e
transcendente (fora), ao nosso ver compõe e caracteriza o comportamento religioso do ser humano. É
esta realidade que torna possível ao homem viver uma experiência mística religiosa no âmbito das
religiões.
Neste sentido, o homem, desde tempos imemoriais, coloca a responsabilidade da sua própria
existência num ser maior, isto é, que o transcende bem como transcende o mundo. Em algumas
religiões, faz parte desta relação relacionar-se com personagens do imaginário religioso, ou seja,
homens e mulheres que em vida experimentaram a realidade humana na terra, como qualquer outro
ser, mas que acreditam os adeptos, após morrerem, se encontram no “céu” (para o cristianismo) ou
mesmo em processo de evolução experimentam reencarnações (religiões mediúnicas como as afro-
brasileiras e o Kardecismo).
Neste texto vamos ater a atenção a duas personagens populares deste mundo sagrado, a
Virgem Maria (no movimento católico, denominado Renovação Carismática Católica e a entidade
Pomba-gira (nos rituais de Quimbanda). Percebemos que ambas são bastante cultuadas no meio
popular. Para entender esta devoção apresentaremos dois segmentos religiosos para contextualizar a
ação das duas personalidades: A Renovação Carismática Católica e a Umbanda.
A Renovação Carismática Católica (R.C.C) tem início na década de 1960 nos Estados Unidos
e logo é trazida para o Brasil. É um movimento de cunho conservador, que valoriza o milagre,
escatologia (céu e inferno), curas divinas, práticas piedosas, curas e libertação da pessoa (traumas de
nível psíquico, afetivo-sexual, espiritual), entre outros. É fortemente combatido por alas mais
progressistas do meio eclesial (Teologia da Libertação), que defende uma igreja comprometida com os
pobres. Em contrapartida, encontra boa aceitação entre a população pobre, carente afetivamente e
economicamente, e a classe média que busca alívio para as tensões do dia-a-dia.

25
Acadêmica do 3º período do curso Ciências da Religião- UNIMONTES. Bolsista de iniciação científica
PROBIC-Programa Institucional de bolsas de iniciação científica -UNIMONTES/ FAPEMIG-Fundação de
Amparo a pesquisa de Minas Gerais.
Os Carismáticos (termo utilizado para chamar os adeptos), são marcados pela conversão de
vida, para eles há uma renovação do próprio ser a partir do momento em que aderem ao movimento.
Segundo eles, são renovados pelo Espírito Santo para ser um novo homem e uma nova mulher.
Neste movimento a figura da virgem Maria é um ícone a ser seguido pelas mulheres,
ressaltando que em todo o cristianismo católico ela é importante. Segundo relato bíblico (Lc. 1,26:38),
Maria é uma jovem, pobre, virgem, que estava prometida em casamento a José. Disse sim aos
desígnios de seu Deus e tornou-se a mãe de seu Filho, por obra do Espírito Santo. Mostrou-se forte,
corajosa e fiel (na tradição judaica o adultério era severamente punido, a pessoa que cometesse
poderia ser condenada a morte em praça pública), ao trazer em seu ventre aquele que seria o
Salvador. Foi uma mulher tipicamente de seu tempo, passiva, paciente, mãe, zeladora do lar,
submetida à estrutura patriarcal vigente, onde a mulher era mera reprodutora e objeto de prazer.
Acreditamos que todas estas funções impostas à mulher judaica perpetuaram bem como configuraram
um estilo feminino cristão de ser e atuar na religião (em especial na Renovação Carismática Católica) e
na sociedade, o que possivelmente deixou marcas na personalidade a ponto de comprometer a
sexualidade feminina.
Nesta perspectiva bíblica, a filósofa Marilena Chauí (1984) critica a sexualidade abordada a
partir da ótica cristã católica ao chamar atenção para questões como “bulas e encíclicas papais
proibindo os anticoncepcionais, condenando o aborto, o adultério, a homossexualidade e o divórcio”.
Percebemos que esta visão rigorosa da sexualidade na Igreja e mais acentuada na R.C.C, procede
dessa vivência considerada pura, signo da virgem Maria que viveu num contexto estritamente
patriarcal, sem jamais romper com a estrutura dominante. Na cultura judaica era permissível ao homem
exercer a supremacia em relação à mulher, pois ele era um ser considerado superior, portanto, cabia a
condição feminina ser submissa.
O sexo masculino na R.C.C tem um papel que evidencia e ratifica o seu domínio, fruto desta
cultura judaico-cristã: viver racionalmente exercendo o poder, cumprindo o dever de ser chefe de casa,
contribuindo na procriação. É chamado assim como a mulher, a viver a castidade (abstinência sexual),
esta prática é o símbolo da R.C.C.. Viver casto é a lei imposta a toda pessoa adepta. Para eles, a
relação sexual só deve acontecer no casamento, com a finalidade de procriar, jamais ela deve ser
usada para o prazer. A pessoa que pratica o ato sexual comete um grave pecado, perante Deus e a
Igreja.
Todavia, o homem, por questões culturais vive com mais liberdade a sua sexualidade, ao passo que a
mulher é reprimida. Para Freud (1905), a mulher foi vítima de uma atrofia cultural, que possivelmente a
levou a repressão, segundo ele, “a mulher em parte por causa da atrofia cultural, também por sua
discrição e insinceridade convencionais, permanece envolta numa obscuridade impenetrável”.
Contrapondo a teoria freudiana, a intelectual e feminista Rose Marie Muraro critica a sexualidade
masculina e eleva a feminina por ser mais complexa. De acordo com ela:
“sexualidade masculina e a feminina, a masculina como sexualidade
dominante e a feminina com distinta daquela com elementos muito mais
complexos em termos anátomos-fisiológicos, mas que talvez, por isso mesmo,
foi também mascarada e obscurecida pela cultura e a sexualidade dominante,
mas que em si, detém o controle último sobre os destinos da reprodução da
espécie e, portanto do próprio sistema dominante.”(Muraro, 1996, p.21).

Enfim, as mulheres desse movimento são a reprodução de uma sociedade marcada pelo
machismo e que busca na figura da virgem Maria, modelo máximo de castidade e pureza, a força e o
consolo para lidar com os infortúnios gerados por esta sociedade.
Entretanto, não são todas as religiões que possuem uma visão tão rigorosa da sexualidade
feminina. Em oposição a R.C.C, temos as religiões de matriz afro-brasileira, neste texto a umbanda,
onde a sexualidade e outras dimensões do ser humano são voltadas para a realização da pessoa,
portanto, são religiões que em certa medida possibilitam a liberação dos desejos humanos.
Explicitaremos a Umbanda para contextualizar a atuação de Pomba-gira nos ritos e, por conseguinte,
na vida de mulheres que a incorporam.
A umbanda é uma religião puramente brasileira em sua formação, consolidação e
desenvolvimento. Constitui-se de vários elementos das religiões já existentes no Brasil. De acordo com
Assunção (2006), “as mudanças sócio-econômicas ocorridas na sociedade brasileira a partir da década
de 1920, ou seja, período de transição da sociedade agrária, tradicional, para a sociedade moderna,
urbana e industrial”.
Todos esses fatores foram decisivos para a criação da umbanda. Desta forma, ela se
desenvolve com seus ritos e práticas próprias, dando ênfase e respaldo a grupos culturais regionais
(cablocos, preto-velho, baiano, marinheiros) que foram marginalizados em nossa sociedade.
De acordo com Reginaldo Prandi a umbanda se divide em duas linhas distintas, bem e mal.
Sobre esta divisão, cita Prandi (1996):
“a umbanda se divide numa linha de direita, voltada para a prática do
‘bem’ e que trata com entidades ‘desenvolvidas’, e numa linha de ‘esquerda’ a
parte que pode trabalhar para o ‘mal’, também chamada quimbanda, e cujas
divindades, ‘atrasadas’ ou demoníacas, sincretizam-se com aquelas do inferno
católico.”

É desse universo de esquerda que a entidade Pomba-gira se faz presente com suas características e
preferências que difere de região para região.
Sendo assim, é preciso contextualizar a umbanda considerando a região. No sertão norte-
mineiro, por exemplo, há peculiaridades nos rituais de umbanda e sua linha, a quimbanda que pode
ser, inclusive, considerada independente, isto é, uma outra religião. Desta forma, inferimos que na
região a quimbanda torna-se dissidência da umbanda, na medida em que esta é trabalhada nos
terreiros ganhando forma e um estilo propriamente sertanejo, o que é possível visualizar uma nova
religião.
Esta especificidade sertaneja foi amplamente discutida por Ângela Cristina Borges em sua
dissertação de mestrado, sobre a Umbanda Sertaneja. De acordo com ela:
“A tríade, umbanda, quimbanda e candomblé acena para institucionalização de
uma nova religião. Foi detectado no imaginário religioso dos adeptos onde a
tríade é uma realidade, um deslocamento metafísico de caráter espiritual, ou
seja, uma nova visão de espiritualidade emergiu da coexistência destas religiões
que passaram a ser vistas como energias” (Borges, 2007, p.16).

Desta forma, encontramos em vários terreiros o toque das três energias, possibilitando-nos a
percepção de um novo que está surgindo no espaço sertanejo. E é neste espaço que a entidade
Pomba-gira se manifesta e vem trabalhar para aqueles, sobretudo, aquelas que se entregam aos seus
cuidados.
A personalidade Pomba-gira tem uma história que remonta o século XVIII. Prandi (1996)
pontua que, “Pomba-gira é o espírito de uma mulher (e não orixá) que em vida teria sido uma prostituta
ou cortesã, mulher de baixos princípios morais, capaz de dominar os homens por suas proezas
sexuais, amante do luxo, do dinheiro e de toda sorte de prazeres.”
Neste sentido, Pomba-gira é o símbolo da sensualidade, do prazer, e da alegria extravagante.
É uma figura popular na crença e devoção do povo, e muito requisitada para resolver assuntos
amorosos e sexuais. A verdade é que ela está ligada aos prazeres almejados pelos seres humanos
(poder/ dinheiro), para ela não há limites para os desejos da pessoa, tudo é possível. Por isso, as
mulheres que a incorporam, são mulheres intrépidas, audaciosas, vivazes, amantes. Na personalidade
Pomba-gira, não há unidade, e sim diversidade. Sobre isso, ainda cita Prandi (1996): “Pomba-gira é
singular, mas é também plural”. Portanto, elas são muitas para acolher e atender as solicitações das
pessoas que recorrem a elas.
Entendemos que tanto o catolicismo quanto a Umbanda possuem um modelo feminino ideal a
ser seguido pelas adeptas. No catolicismo (Renovação Carismática Católica), Maria que é sinônimo de
bondade, ingenuidade e pureza, torna-se o modelo e fonte para as mulheres, que buscam em sua
conduta de vida o modo certo de agradar seu Deus e possuir assim o reino do céu. Em conversas com
mulheres da R.C.C, podemos perceber o que representa seguir a virgem Maria e o que decorre desta
adesão em termos de afetividade e sexualidade. Descrevemos alguns relatos:
“Eu sou escrava de Jesus pelas mãos de Maria”. E ao perguntar por que se considera escrava, ela me
responde: “escravo não pergunta, só obedece, essa é minha atitude todo dia”.
Outra disse: “Com Maria chego mais rápido a Deus... Sem ela teria que fazer muitas
mortificações.”[...]
Esta outra disse: [...] procuro ser como ela, no jeito de ser, andar, falar, comportar, vestir... Diálogo
com ela todo dia e ela me fala, eu acredito, ela me fala”
Uma outra ainda cita: “Tento está fora do mundo, para me livrar das tentações.” E ao perguntar quais
as tentações, responde: “da masturbação, fornicação, de todo mau pensamento e ação.
Concone (2001), ao relacionar a versão feminina de Exu (Pombagira) com a subalternidade da
mulher, pensa num “resgate enquanto mulher, ou seja, possível dimensão simbólica como responsável
pela sua própria sexualidade”. Diante do exposto, Pomba-gira é o modelo digno de mulher que a
umbanda estabelece para suas adeptas seguirem e deixarem-se conduzir, para isso, ela vem libertar a
mulher de suas amarras e, sobretudo, daquelas que a impede de viver plenamente a sua sexualidade.
Conversamos com mulheres nos rituais, que estavam sob a manifestação da entidade Pomba-
gira, e depois conversamos com as mesmas em seu estado normal de consciência. Ao receberem
espíritos de Pomba-gira, essas mulheres mostram sensualidade, desejo, coragem, dizem o que
pensam (às vezes até de forma vulgar), dançam, gritam, cantam, bebem, fumam. Há uma transgressão
e liberação da sexualidade nesses rituais.
Após esse ápice sagrado, conversamos com algumas:
“A moça Maria Molambo me ajuda nos momentos difíceis de minha vida, só tenho a agradecer.”
“Ofereço o que tenho de melhor para minha Pombagira ela merece, to bem no trabalho e no amor, e
isto porque tenho a proteção dela.”
“Meu marido me deixou e eu sofri bastante [...], graças a Maria, ela me deu força e superei. Hoje estou
morando com outro homem.”
Aludimos enfim que a ação que a personalidade Pomba-gira exerce sobre as mulheres que a
incorporam, imprime uma marca indelével em suas vidas e, em especial, na sua sexualidade.
Nos rituais observados de ambos os segmentos, notamos um número considerável de
mulheres, de todas as idades e níveis sociais. A maior procura é para resolver problemas na área
sentimental e financeira. Neste sentido, as mulheres confiam suas vidas a proteção dessas
personalidades. Diante da entrega que fazem, procuram identificar-se com as mesmas.
De fato, há muitas diferenças entre essas mulheres, no tocante a vivência da sexualidade e
outros aspectos não menos importantes. Enfim, todas essas mulheres são frutos de uma mesma
sociedade patriarcal, que não as privilegiaram em termos de igualdade e poder, cabendo a elas o papel
de “sexo frágil”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:
É interessante observar a relação afetiva (confiança, amizade, reciprocidade, respeito, zelo...)
que se estabelece entre tais mulheres e as respectivas personagens sagradas. Uma vez que essa
relação ultrapassa o plano das idéias, podendo ser uma experiência indizível.
Esta proximidade ao nosso ver, possibilita mudanças subjetivas, particulares e singulares, que
trazem como conseqüência, alterações no comportamento social, moral e religioso. As mudanças de
comportamento são sentidas pelas adeptas como algo importante e valioso para suas vidas. Estas
alterações e identificações (com as personagens expostas) são vistas pelas mulheres como algo
positivo, nem o rigor excessivo da Renovação Carismática nem a liberdade que oferece a umbanda é
motivo de questionamentos. Para elas, o que importa é estar em harmonia e ser protegida por estas
figuras.
Destacamos deste estudo que as mulheres de ambos os segmentos buscam, acima de outros
fatores, encontrar-se consigo mesmas. Em certa medida, estes locais tornam-se refúgio para as muitas
mulheres de nossa sociedade, vítimas do peso do machismo.
Muraro(1996), ao contestar o machismo dominante em nossa cultura, aponta caminhos e luzes
ao dizer que, “a sexualidade feminina carrega em si e detém o controle da reprodução humana.” Mas
não restringe a sua afirmação a mera reprodução, e sim ao que representa na atualidade o papel da
mulher, em termos de atividades profissionais e econômicas, envolvimentos em funções que antes
cabia a sexualidade dominante, e toda sua desenvoltura política, social, cultural e também religiosa.
Desta forma, as religiões deveriam abrir espaço para um diálogo eficaz ao que concerne à vida
afetivo-sexual feminina, que não tenha ares de proibição. Assim como detectou e criticou Chauí (1984),
alguns assuntos abordados pela Igreja Católica. Há reducionismos que não expressam e não
explicitam essas questões, deixando abertos espaços para que grupos com uma visão conservadora
imponham sua “lei”. Neste caso, a Renovação Carismática Católica, que de um certo modo, silencia
sobre estas questões, ou se fecha debaixo do manto sagrado da virgem Maria. Enquanto que a
umbanda, em função do transe induzido, conduz as mulheres a estes momentos considerados mágicos
e fonte de libertação da sexualidade feminina.

Referência

ASSUNÇÃO, Luiz Carvalho de. Reino dos mestres: a tradição da Jurema na Umbanda nordestina. Rio
de Janeiro: Pallas, 2006.

BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo. Edições Paulinas, 2001.


BORGES, Ângela Cristina. Umbanda Sertaneja. Cultura e religiosidade no sertão norte mineiro.
Dissertação de (Mestrado em Ciências da Religião). PUC. São Paulo, 2007.

CHAUÍ, Marilena. Repressão Sexual: essa nossa des conhecida. São Paulo; Brasiliense, 1984.

CONCONE, Maria Vilas Boas. Cablocos e Pretos-Velhos da Umbanda. In: PRANDI, Reginaldo (org).
Encantaria brasileira: o livro dos mestres, cablocos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2002.

MURARO, Rose Marie. Sexualidade da mulher brasileira: corpo e classe social no Brasil- Colaboração
de Manuel Barros da Mota...[et.al.]- 5ª Ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1996.

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REALE, Giovanni, Dario Antiseri. História da Filosofia: Do Humanismo a Kant. São Paulo: Paulus,
1990. – (Coleção filosofia).

Da evangelização das almas à evangelização das culturas - o projeto de inculturação da fé e o


Catolicismo Popular em Valença.

Maria da Consolação Lucinda26


lucindamc@oi.com.br

O Conselho Pontifício da Cultura (1999) afirma, nas linhas de ações “para uma pastoral da
cultura”, que “o processo de encontro e comparação com as culturas é uma experiência que a Igreja
viveu desde os começos da pregação do Evangelho (Fides et Radio, n. 70)”. Adverte, porém, que a
mensagem deve ser direcionada no sentido de evangelizar as culturas. De acordo com o mesmo
documento, a evangelização das culturas “é a mesma das mentalidades, dos costumes, dos
comportamentos.27” Tomando estas afirmações como inspiração e ponto de partida, o propósito do
presente trabalho é apresentar descritiva e interpretativamente alguns aspectos da experiência de
inculturação da fé católica e evangelização das culturas na diocese de Valença, estado do Rio de
Janeiro.

26
Doutoranda no PPGAS/Museu Nacional/UFRJ; Bolsista IFP-Fundação Ford
27
Segundo o documento “se as culturas são, na sua totalidade, compostas de elementos heterogêneos, instáveis e
passageiros, a primazia de Cristo e a universalidade da sua mensagem são, entretanto, fonte inesgotável de vida e
de comunhão.”
A experiência em questão se desenvolve fundamentalmente através da “pastoral do negro”28 e
praticantes do “catolicismo popular” 29, notadamente aqueles com algum tipo de interação com terreiros
de Umbanda da cidade. O inventário dos aspectos a serem abordados resulta da observação-
participante levada a efeito ao longo de seis meses – primeira fase da minha pesquisa de campo na
cidade. Ainda, será computado como material de apoio a elaboração da descrição publicações de
caráter informativo veiculadas localmente e aquelas de cunho teológico-doutrinário, baseada e
inspirada nos documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II30.
Visando alcançar tal propósito, destacarei alguns fatos relativos ao processo de fundação da
cidade, salientando o destacado papel que a Igreja Católica desempenhou ao longo do mesmo31. A
instituição, representada por um padre designado como missionário, foi convocada a reunir em
aldeamentos os agrupamentos de índios que habitavam a região, sendo convertidos na primeira
população alvo da catequese católica.
Também, buscarei apontar elementos relativos ao papel da instituição na contemporaneidade,
assinalando, no plano das ações e do discurso, continuidades em relação ao que tratarei como modelo
tradicional, na perspectiva da duração, não obstante as mudanças ocorridas ao longo do tempo
expressas nas posturas, nas atitudes e nos comportamentos de parte significativa dos agentes que
atuam em nome da instituição.
As idéias de mudança em relação ao projeto evangelizador, consideradas no discurso
institucional, têm como principal suporte os documentos elaborados a partir das recomendações do
Concílio Vaticano II (1963) – um marco de mudança no interior do Catolicismo, principalmente nas
recomendações sobre liturgia, com enfoque no conceito teológico de inculturação e na noção de

28
Ao longo do texto empregarei tanto esta forma – conforme descrita no site da Diocese de Valença – quanto
àquela utilizada pelos agentes que a integram, a saber “pastoral afro”. Em vários documentos e quadros dispostos
no Memorial Afrovalenciano Miguel Tomaz, a forma encontrada é Pastoral Afro-descendente Miguel Tomaz.
Na página da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) encontramos também a expressão “pastoral
afro”.
29
A noção de catolicismo popular está empregada no sentido de uma religiosidade que envolve elementos
referidos ao universo do Catolicismo, embora não “oficialmente regulamentada” pela Igreja.
30
“O Concílio Vaticano II, edição da Assembléia Católica realizada para fins doutrinários e disciplinares,
reunindo bispos, prelados e outros religiosos – realizado entre outubro de 1965, propôs alterações profundas na
doutrina e na disciplina da Igreja Católica. O Concílio teve índole eminentemente pastoral visando à vida cristã
em vez de se voltar para definições de fé ou de moral.
Renovou a liturgia, que ganhou estilo mais comunitário e acessível(a clebração passava a ser na língua nativa e
não mais em latin, e o sacerdote passaria a se posicionar de frente para os demais fiéis); reafirmou a Igreja como
sacramento; abriu para os demais cristãos (protestantes ortodoxos e outros) que não se achavam em plena
comunhão com a Igreja; reconheceu os elementos positivos das religiões não cristãos; defendeu a liberdade
religiosa que significa o direito inerente a todo homem, de formar livremente sua consciência diante de Deus e
da fé; divulgou a tomada de posição da Igreja frente às diversas facetas do mundo: família, política, economia,
paz e guerra.” (Texto que consta da exposição permanente no Museu de Arte Sacra, Catedral de Nossa Senhora
da Glória).
31
Os aspectos apresentados foram selecionados de forma parcial e de modo interessado, não resumem, portanto
o processo histórico de fundação da cidade e a importância da instituição no mesmo.
evangelização das culturas32. Os pontos destacados serão aqueles relativos a importância do concílio,
a título de ilustração da mudança na forma da igreja pensar e desenvolver seu projeto evangelizador no
presente século, podendo significar uma ruptura em relação ao passado33.
O modo de lidar com as manifestações de religiosidade popular - manifestações estas que, de
certo modo, configuram uma das características significativas da forma como a religião se constituiu no
contexto do município – consiste, em termos da concretização da proposta, a nova prática institucional.
Embora o fenômeno eclesiástico não esteja no centro de interesses deste trabalho, seguirei
RUFINO (2002:24) no que concerne ao tema da “duração” na perspectiva do Catolicismo. Conforme
suas palavras, é preciso que se procure “um sutil equilíbrio entre um sentido de continuidade e diálogo
entre processos da Igreja – de hoje e de ontem – e um sentido de ruptura, que nos permita perceber a
‘novidade’ de certos eventos”.34
A orientação à pastoral do negro, feita por um pároco da cidade, constitui um fato marcante na
dinâmica das relações entre a igreja católica e a “comunidade” e se mostra fundamental para o
processo de elaboração das propostas de ação e organização de atividades e uma força em termos
institucionais.35 A celebração de missas inculturadas ou missas afro, representa um momento
significativo dessa dinâmica pois atualiza a proposta de evangelização das culturas e permite a
sobreposição de elementos relativos ao repertório cultural afro-brasileiro “de acordo com as normas da
igreja36” e é o lugar da catequese por excelência.

1. O catolicismo em Valença ontem

32
Contemporaneamente, o documento final da V Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e do
Caribe, também denominado Documento de Aparecida (2007) tem se convertido em importante referência para
uma leitura atualizada das recomendações conciliares.
33
As principais referências sobre o termo inculturação foram TEIXEIRA (2006), RUFINO (2002) e MIRANDA
(2001)
34
Em uma nota de pé de página o autor cita GEREMACK (1988:163, apud RUFINO, 2002) assinalando sobre o
tema: “(...) Referindo-nos a esta longa trama temporal, não encontramos uma série de mudanças na
continuidade, mas uma pluralidade descontinua de fenômenos, de processos, de modelos. Igreja primitiva e
Igreja tridentina, Igreja opulenta, Igreja inserida na ordem dominante, a Igreja revoltada ou contestatória, a da
aliança entre o trono e o altar e a da luta contra a opressão”. A proposição do autor faz lembrar de certo modo as
observações de DELEUZE e GUATTARI de que “(...) quando a religião se constitui em máquina de guerra,
mobiliza e libera uma formidável carga de nomadismo ou de desterritorialização absoluta, (...); enfim, volta
contra a forma-Estado seu sonho de um Estado absoluto.” Platô “Tratado de nomadologia – a máquina de
guerra” a respeitos das linhas
35
O destaque ao apoio deste padre decorre principalmente do fato dele ter incentivado à formação da pastoral na
cidade, pelo vínculo afetivo que mantém com aquele que “sonhou e articulou a pastoral do negro em Três Rios”
a quem chama carinhosamente “pai espiritual”, pois foi seu coroinha quando criança. Mas, este tratamento
especial dispensado ao sacerdote negro, ancião, desencadeia afinidades e lealdade por parte de alguns agentes
que, poder-se-ia dizer, capitalizam politicamente a relação.
36
Conforme o boletim Catedral – informativo da Paróquia Nossa Senhora da Glória, Out/Dez. 2006, Ano V, Nº
19
O enquadramento temporal das idéias, questões e situações a serem apresentadas será feito
de modo diacrônico e sincrônico, simultaneamente. Antes de apresentar os pontos que servirão de
apoio para as considerações dos aspectos sobre o papel do Catolicismo, no que concerne sua tarefa
evangelizadora, um ponto a se ter em consideração é a configuração da população em meio à qual a
Igreja atua.
No século XIX, principalmente em virtude da preocupação da administração colonial com o
território em que uma população indígena habitava na região do Vale do Paraíba, Sul Fluminense, um
projeto missionário foi implementado visando pacificar os índios e exercer controle sobre a área37.
No século XX, nos primeiros anos da década de 1980 surge o embrião da primeira “pastoral do
negro” ou “pastoral afro” na Diocese de Valença.38 A pastoral do negro só surge na cidade de Valença,
de fato – no distrito sede –, no início da presente década39. Em meio ao laicato, que no Brasil tem
significativa importância, a pastoral se estabelece, de certo modo, lembrando que na história do
Catolicismo no Brasil não podemos deixar de mencionar o papel exercido pelos integrantes de
irmandades e confrarias. As irmandades, muitas delas ainda preservadas em algumas regiões, como
nas cidades do Rio de Janeiro e Salvador, por exemplo, funcionaram como espaços importantes de
sociabilidade para representantes do segmento negro da população, mesmo depois da abolição da
escravatura40. A pastoral do negro, tal como as irmandades e as confrarias, foi constituída com o aval
institucional, e consta, inclusive, no organograma da instituição em nível nacional. Neste sentido, pode
ser pensada como uma variação contemporânea da forma como a instituição se atualiza e procura
incorporar temas e situações de seu tempo.

1.1 A catequese dos Coroados

A história da fundação de Valença teve início entre o final do século XVIII e o princípio do
século XIX e é profundamente marcada pela atuação da igreja católica. O Catolicismo desempenhou

37
Conforme sintetizado em IÓRIO (2007[1933]) “à Aldeia da Freguezia de Valença estavam destinadas para
Vila dos Índios Coroados por ordem régia de 25 de agôsto de 1801, conforme se enuncia no decreto de 26 de
março de 1819. (...), de proceder à civilização dos índios da Aldeia de Valença, promovendo o seu povoamento”.
(Dados referidos a Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil). A respeito da ocupação do território e
da formação da paisagem social de Valença, ver também SILVA (2008).
38
Um pequeno número de católicos, em Três Rios, orientados pelo atual capelão da Igreja Rosário, começou a
organizar atividades para debater a problemática da discriminação racial na cidade, assessorados por um padre
jesuíta, identificado como negro pelo referido capelão, professor da Pontifícia Católica do Rio de Janeiro.
Também teriam participado em eventos formativos realizados em São Paulo, então, o centro das principais
discussões e atuações em torno da questão da presença do segmento negro na Igreja Católica. Não obstante tudo
isto, a pastoral – em termos da atuação contínua - com mais longevidade na diocese é a de Sapucaia que este ano
comemorou 25 anos de organização. Ainda a respeito desse tema, ver DAMASCENO (1990).
39
Os municípios que integram a Diocese de Valença são: Valença, Vassouras, Rio das Flores, Miguel Pereira,
Paty do Alferes, Três Rios, Levy Gasparian, Sapucaia e Paraíba do Sul.
40
Conforme BRANDÃO, 1992::46-47
destacado papel na construção da cidade que, a partir do aldeamento dos grupos indígenas
denominados genericamente “Coroados” – participantes ativos na edificação das primeiras capelas do
povoado, do cemitério e outras obras de abrigos e habitações. O aldeamento de certo modo consistiu
em uma das estratégias empregada pela administração colonial empregou visando o controle e a
“civilização” dos índios cuja convivência com os habitantes das sesmarias da região “ia se tornando
insuportável. (...). Os Coroados invadiam lavouras, principalmente de milho, trazendo grande prejuízo
aos fazendeiros”41, conforme a história local.
Juntamente com a catequização se deu a construção das capelas, que correspondem a atual
Catedral de Nossa Senhora da Glória e a Igreja de Santo Antônio do Rio Bonito, a primeira localizada
no distrito sede do município e a outra, em Conservatória, Paróquia do distrito. As obras foram
executadas também “com a ajuda de mão de obra de escravos”42, mas, as referências mais
recorrentes são sobre os índios. Por exemplo, no Museu de Arte Sacra, mantido nas dependências da
Catedral, encontra-se em exposição a primeira pia batismal da então “capela dos índios” e que foi
utilizada no rito sacramental dos primeiros índios catequizados43. A atuação da Igreja se constituiu um
dos traços definidores do processo disciplinador pretendido pela administração colonial.
A partir do desenvolvimento desse projeto, destinado inicialmente aos Coroados e
posteriormente estendido aos pretos - escravos e forros introduzidos na região ao longo das fases
subseqüentes de seu povoamento - deu-se o processo de crescimento da cidade44.

1.2. A igreja dos homens pretos

Registros, informações e fontes sobre o projeto de evangelização dos denominados homens de


cor ou homens pretos45, se existiram ou existem em Valença, estão fora de alcance para a realização
de pesquisas. Não obstante o silenciamento, é possível encontrar indícios, nos fragmentos das marcas
do passado, inscritas em suportes materiais da memória, mostrando a subordinação moral e espiritual

41
IÓRIO (2007[1953])
42
Idem
43
Conforme DAMASCENO (1978, apud IÓRIO) o primeiro livro de registro de batizados tem data de 1809 e
nele se constata que 59 pessoas foram batizadas, dentre as quais 42 índios. O autor ressalta que o assentamento
de batismo do cacique Tanguará, chefe dos índios Coroados, o qual recebera, na pia batismal, o nome de —
Hipólito se encontra no mesmo livro.
44
A expansão e o crescimento da cidade foram decorrentes principalmente do fato de ter se constituído uma rota
de escoamento “das riquezas que vinham de Minas Gerais para o Rio de Janeiro e também de abastecimento
mútuo entre as mesmas (...)”. (LYRA, 2006:10)
45
Aqui também tratados por escravos e ex-escravos, seguindo designação corrente e empregada em função da
posição dessa categoria na estrutura ocupacional da sociedade, de regime econômico fundado no trabalho
escravos.
desse segmento à instituição. Os livros de batismo da Catedral são exemplos de que os pretos livres e
ou escravizados recebiam ao menos um dos sacramentos da Igreja46.
Com o tempo, o segmento negro da população passou a constituir o público-alvo do projeto
evangelizador da Igreja. O controle deixou de ser sobre a alma e a cultura tornou-se o lugar
privilegiado da atenção”. A ruptura em relação ao passado se caracteriza, na perspectiva institucional,
pela substituição do “proselitismo religioso” pela idéia de inculturar a fé. Tal mudança responde aos
processos endêmicos e históricos que afetaram a imagem e a estrutura da instituição. O credo
católico, mesmo como dimensão majoritária na vida cultural da cidade, nunca escapou da influências
de outras tradições.
As práticas religiosas de matriz afro-brasileira fazem parte do repertório cultural da cidade
desde a formação dos primeiros núcleos de população negra. Analisando o engendramento das
comunidades de senzalas em torno das “raízes” da insurreição quilombola de Vassouras, na década de
30, no século da fundação de Valença, GOMES (2006, 213) assinala a existência de aspectos
religiosos e significados culturais reinventados envolvendo feiticeiros na gestação e na organização de
uma revolta e fuga coletiva rumo a um quilombo. A proximidade geográfica entre Valença e Vassouras
permite que se formule a hipótese de um possível impacto dos levantes e fugas de escravos de
vassouras sobre a escravaria em Valença. Permite também a suposição da existência das mesmas
práticas mágicas na cidade.
A linguagem utilizada para designar a influência de formas não católicas de práticas religiosas
na dinâmica da sociedade valenciana, no século XIX, aponta para a presença de manifestações de
uma religiosidade popular simultânea ao catolicismo na cidade. A literatura local sobre eventos tais
como a construção da Igreja do Rosário assinala, por exemplo, a existência de Congadas e Marujadas
fazendo parte de eventos festivos, conforme lembrado por IÓRIO (2006 [1953]):
“Marujadas e congadas eram festas populares, inspiradas em costumes
africanos. Nos dias da festa de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito
eram o complemento que atraía a atenção da sociedade valenciana”.

Essas duas expressões culturais, bem como o Caxambu – também conhecido como jongo -
são portadoras de fundamento religioso e, não apenas católico. Caberia indagar sobre as repercussões
dessas manifestações populares correntes na cidade. A marujada, por exemplo, foi recuperada por
uma integrante da pastoral do negro e introduzida, parcialmente, nas celebrações das missas
inculturadas.

46
A pesquisa de campo não prescindiu da pesquisa em arquivos como condição para a obtenção de dados e
informações a este respeito.
Em outro sentido, a construção da capela dedicada à Virgem do Rosário, em Valença, tem
conexões com a devoção na situação de diáspora, mas não seria específica das relações sociais
engendradas pela colonização. No entanto, ao iluminar este acontecimento, em seus diferentes
momentos, encontramos os componentes que destacam importantes aspectos relacionados com as
práticas sociais de escravos e ex-escravos, e como o culto à Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos se apresenta como uma peça de mosaico que ajudaria na constituição, ainda que parcial, do
esboço da imagem do que teria sido o conjunto dessas práticas.
A tradição de constituir irmandades foi introduzida em terras coloniais tanto quanto o culto à
Nossa Senhora do Rosário, por missionários. A penetração da devoção à Virgem no Brasil colonial
teria sido decorrente de dois fatores importantes: o primeiro concerne ao fato do culto ter sido
introduzido em algumas sociedades africanas antes do processo de colonização portuguesa na
América47; o segundo diz respeito ao aspecto social e “previdenciário” das irmandades como a
possibilidade de garantir enterros dignos, dar assistência aos necessitados, organizar pecúlios e vários
outros tipos de auxílios mútuos, cuja realização demandava vínculo com a única instituição que tinha
respaldo político e social para tal empreendimento: a Igreja.
É possível que tenha existido uma irmandade de negros, ao menos uma proposta de formação
de uma, em Valença. No entanto, não existem fontes, registros ou documentação disponíveis e de fácil
acesso que permita qualquer consideração a este respeito.
A pesquisa nos arquivos da Catedral com a finalidade de encontrar referências sobre a obra da
Capela do Rosário, concluída em torno de 1848, mostrou-se infrutífera. Quanto a existência de uma
irmandade dos homens pretos o que se tem é o mais completo silenciamento. Esta falta de indícios foi
também notada por Silva (2008) que ao investigar o arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro -
onde estariam, supostamente, registros, documentos e materiais da Igreja de Valença, conforme dito
pelo atual bispo da cidade - com a finalidade de encontrar registros a respeito de uma hipotética
irmandade dos homens pretos na cidade, não encontrou referências, inclusive, sobre a construção da
capela. As lápides da capela são o único registro de época que se pode acessar.

2. Simultaneidades e agência sincrética

Em se tratando da “transformação atualizadora do universo religioso no Brasil”, a religião


católica se mostraria aberta à “capacidade de ajustamento aos novos tempos”, embora seja a que

47
Outras civilizações, como a indiana, também fazem uso de objetos com o sentido igualmente de auxílio em
orações e rezas. Na África, o Rosário é parecido com o Masbahan (objeto usado para auxiliar na contagem das
vezes que uma oração de louvar à Alah é proferida, na devoção islâmica)
“mais perde fiéis para as outras’’. A convivência atual de vários estilos de ‘ser católico’ e a subsistência
de modalidades de tendências, consideradas de difícil integração no corpus de doutrina, gestos e ritos
de uma mesma religião, de uma mesma igreja seriam também aspectos característicos dessa religião.
O catolicismo popular, neste sentido, possui “tantos matizes quantas são as culturas em que vivem as
suas pessoas reais”.48
É certo que essas afirmações fazem sentido, mas no que concerne especificamente a igreja de
Valença, a caracterização poderia sofrer alguma modulação. Concordando ou não que essa é a
instituição, a população da cidade é majoritariamente católica. A idéia de “múltipla presença nas
culturas e comunidades locais onde se encontra estabelecida” se caracteriza pela possibilidade de
“variação de opções, escolhas e atribuições diversas de sentido religioso” faz sentido em termos da
análise sociológica da religião49. Tratando a questão da inculturação na ótica da pastoral indígena,
RUFINO (2002: 16-17) ao se referir a categoria afirma seu valor operativo em termos da comunicação
interna da Igreja porque propõe uma forma de evangelização que interaja com a diversidade cultural,
expressando-se por meio dos códigos simbólicos das sociedades e povos “em evangelização”
Mas, no plano relações concretas, algumas situações dão indicações de que as opções, as
escolhas e as atribuições diversas de sentido religioso se referem à conformação da “igreja universal”.
São fatos em que a forma de evangelizar parece ficar comprometida em termos da abertura aos
sujeitos que atuam no interior ou no entorno da instituição. As narrativas sobre a organização e a
realização da Procissão e da Festa de São Jorge e dos Cavaleiros, em Valença, trazem elementos da
dinâmica dessas relações que mostram a lógica operativa da proposta de inculturação da fé e
evangelização das culturas, mas dando relevo à forma50.

2.1. O Catolicismo popular hoje

As festas em Valença são eventos sociais com forte apelo popular, principalmente as
celebradas em louvor aos Santos. Os festejos e procissões em honra a padroeira, por exemplo,
envolvem a participação de vários segmentos sociais, atraí a atenção de visitantes e prestadores de
serviços de municípios vizinhos e se convertem em momentos importantes da convivialidade na cidade.
As comemorações em louvor a São Jorge têm tanto ou mais apelo popular que as festas de
santos e santas padroeiros/as de paróquias e capelas da cidade. Mesmo assim, a cidade não tem uma
capela dedicada a este santo. Uma das festividades em louvor ao santo se realiza há cinqüenta e três

48
BRANDÃO, 2004, pp.268, 282
49
BRANDÃO, 1992, pp. 47-49
50
Narrativas relativas apenas a festa da tenda espírita.
anos em uma Paróquia no distrito Barão de Juparanã e a padroeira da igreja é Nossa Senhora do
Patrocínio. A outra é organizada há aproximadamente vinte e cinco anos, sendo que nos últimos vinte e
três anos tem sido organizada a partir de uma tenda espírita localizado em um bairro da região próxima
ao centro da cidade. Esta última é tão conhecida quanto a mais antiga e capaz de atrair um público
participante numericamente igual ou maior que aquela.
Além dessas procissões com a imagem do santo e as festas que as acompanham, que atraem
centenas de devotos, acontecem giras e toques nos centros de umbanda em celebrações com
dimensões religiosa e secular em honra ao orixá Ogun, com festas onde são servidas comida e bebida
referidas ao orixá . Estas festas mobilizam a cidade e seus moradores de forma distinta51.
No que dos respeito à posição da Igreja sobre as religiões de matriz afro-brasileira, um trecho
da fala do celebrante da missa inculturada celebrada na Semana da Consciência Negra, ano passado,
assinala a maneira como a questão da evangelização da cultura é veiculada. Diante de um público que
contava com a presença de yalorixás e babalorixás – da umbanda e do candomblé – foi dito que
“o povo negro, como Zumbi [dos Palmares], continua inculturando sua fé,
continua inculturando sua palavra [o evangelho]. O que não consegue fazer
aqui dentro da igreja vão fazer lá nos terreiros, no barracão. Não vão lá
protestar contra a fé. Agora, pela primeira vez, os Bispos da América Latina,
junto com o Papa, em Aparecida disseram isso, que as pessoas estão indo
para os terreiros e outras comunidades religiosas não porque estão em crise
de fé, porque deixaram de crer em Jesus e na proposta do evangelho. Não! É
porque ‘nós muitas vezes aqui dentro somos frios, não sabemos acolher, o
nosso rito é muito frio, muito falado, pouco dançado, pouco colorido, pouca
indumentária. Nós precisamos aprender. Eu acho que esta festa de Zumbi é
mais uma vez para nós um apelo.(...)52.”

Considerando ou não os limites do que pode ser definido como cristão na procissão de São
Jorge e dos Cavaleiros, aquela organizada pela tenda espírita, no dia em que ela acontece uma
enorme quantidade de pessoas se aglutina em várias áreas dos bairros próximos ao trajeto dos
devotos. As casas e as ruas são decoradas com imagens do santo, dispostas de diversas maneiras,
em altares montados na frente de suas portas; toalhas e balões de sopro nas cores vermelha e branca
são dispostos nas janelas; pessoas se postam nas calçadas, sentadas ou não, “esperando a procissão
passar”. A procissão e a festa são conhecidas dentro e fora da cidade e consta no seu calendário
turístico. Vendedores ambulantes e comerciantes montam barracas para vender comidas, bebidas e
brinquedos durante os três dias de comemoração. Dentre as atrações estão os grupos e as bandas
musicais, exposição de telão com shows de rodeio, dentre as mais recorrentes.

51
A intenção inicial era apresentar algumas questões em torno do conceito de sincretismo, tendo em vista o
emprego da noção “agência sincrética”. O propósito era seguir ROBBINS (2002), que trabalha a noção a partir
do conceito de englobamento, segundo a proposição dumontiana.
52
Notas de campo, a partir de registro em vídeo.
Três dimensões articulam e envolvem os segmentos sociais que atuam na organização e na
realização do evento: uma dimensão territorial, uma política e outra religiosa. A observação das
situações ocorridas em torno da procissão permite a identificação destas dimensões, sendo que aquela
relativa ao território atravessa as duas outras. Em resumo, essas dimensões não podem ser pensadas
e abordadas sem que sejam relacionadas com o tipo de formação histórica da cidade.
A dimensão territorial seria aquela relacionada aos problemas enfrentados pela organização da
festividade que teve início como forma de externalizada da devoção de um devoto de São Jorge. A
primeira procissão organizada por ele foi realizada em uma igreja próxima ao bairro onde atualmente
acontece a festa. Naqueles idos dos anos de 1980 ele obteve o apoio do pároco e conseguiu fazer
algumas procissões. Tendo acontecido o falecimento desse padre e com a chegada do substituto ele
solicitou a permanência da procissão e da festa na igreja mas o novo padre não aceitou a proposta
alegando que “os devotos de São Jorge eram de centro de macumba”. O grupo que o apoiava na
organização dos festejos tentou persuadir o padre a mudar de opinião. Não tendo conseguido demover
o sacerdote a idéia foi solicitar o apoio da chefe de um terreiro de umbanda. Sabendo da recusa
reiterada do padre em disponibilizar o local, foi feito contato com a zeladora da tenda que permitiu que
ofereceu o espaço para guardar a imagem do santo. A partir de então a tenda tornou-se o local de
referência da festa.
A dimensão religiosa do acontecimento se traduz no fato da procissão ser organizada e
preparada em uma tenda espírita de matriz afro-brasileira e resultar da agência da zeladora desta casa
religiosa – atualmente é uma filha biológica daquela que primeiramente concedeu o espaço para
guardar a imagem do santo - e ter este local como ponto de partida e de chegada. A agência se
caracteriza pelo empenho em acompanhar o processo do ponto de vista religioso e atuar em caso de
necessidade para que obstáculos, dificuldades e problemas sejam superados, resolvidos e
solucionados. Para isto, quando necessário, são feitos trabalhos envolvendo oferendas aos orixás e
aos guias protetores e que “cuidam” da tenda. No espaço sagrado em que são cultuados e
reverenciados santos católicos, tais como São Jorge, orixás, tais como Ogun e antepassados, também
se reverencia a fundadora da tenda espírita – mãe biológica da atual zeladora da tenda – que em vida
se dedicou à prática religiosa e é reconhecida como uma das grandes mães de santo que a cidade já
teve.

3. Continuidades e rupturas no projeto de evangelização católico

No Fórum Diocesano Histórico-Cultural, realizado no mês de maio de 2008, em Valença, foi


divulgado que 80% da população da cidade se auto-declara católica mas que apenas 13% dos auto-
declarantes se enquadraria no perfil do que seja uma pessoa católica oficialmente. Esta informação é
útil para pensar o Catolicismo hoje, não obstante o fato do fenômeno não se circunscrever apenas à
Valença. O fato pode ser interpretado como uma certa conveniência social já que a auto-declaração é
relativa a religião hegemônica.
A queda no número de católicos no Brasil nos últimos anos tem sido um fenômeno discutido
dentro e fora da igreja já que o país “é a maior nação católica do mundo e abriga metade dos fiéis da
América Latina” 53. Considerando esta questão, além da suposta conveniência social, os dados podem
ser lidos como um sinal de que as pessoas estão experimentando uma prática religiosa e uma
“participação comunitária” distinta do padrão estabelecido pela instituição.
Os participantes do fórum diocesano, supostamente aqueles católicos envolvidos com a vida
comunitária “foram enviados” para suas cidades e comunidades para serem “beija-flores” em suas
comunidades: “pequenino, frágil; mas ágil, trabalhador, constante, comprometido com a vida”54. A
Igreja em Valença enfrenta o desafio de uma evangelização que privilegie uma linguagem que atinja a
maioria dos seus fiéis. Apesar das recomendações conciliares e, do Documento de Aparecida
sugerirem novos elementos e formas de evangelização, os desafios de inculturar a fé, no contexto
atual, são significativos.
A necessidade de voltar às origens, no sentido da fundação da religião, em Valença pode se
confundir com o sentido da fundação da cidade. Este movimento pode ser compreendido a partir do
modo como a Igreja lida com o tempo. Se “ontem” a tarefa evangelizadora foi ou não realizada
plenamente não assegura que “hoje” se alcançará os resultados esperados. Para seguir as
recomendações foi necessário pensar estratégias novas para a continuidade a missão da religião.
A principal estratégia de aproximação às camadas populares são as pastorais sociais e a
pastoral do negro se constitui importante vetor e dispositivo em relação ao cumprimento da “exigência
da evangelização das culturas e da inculturação da mensagem da fé”.
O retorno do fundador da pastoral na diocese à cidade, no ano de 2006, teve por finalidade o
acompanhamento da “evangelização inculturada do povo afro-brasileiro” na região55. Como primeiro
resultado se destaca a realização da 3ª Semana da Consciência Negra na cidade. Dentre as questões
debatidas e temas trabalhados durante o período, dois pontos merecem destaque: 1. A fala de uma
integrante da pastoral “a partir do Concílio Vaticano II” abordando “a evangelização inculturada e a
missão da Pastoral Afro Brasileira a partir dos documentos da CNBB” e; 2. A “explanação sobre a
Missa Inculturada Afro” feita pelo pároco da Catedral “mostrando que ela está de pleno acordo com as

53
A este respeito ver:Jacob, C.R. Atlas da Filiação Religiosa e Indicadores Sociais no Brasil, São Paulo, Loyola,
2003.
54
Segundo o informativo Vida Diocesana, 2008.
55
Jornal Catedral, 2006.
normas da Igreja para a celebração da Missa e que são celebrações que envolvem a alegria de se
celebrar o Mistério Pascal de Cristo”. No empenho de realizar esse projeto de evangelização a pastoral
do negro56 é descrita como representando
“(...) leigos preocupados com uma evangelização inculturada e o resgate dos
valores culturais afro-valencianos, por entender que a verdadeira libertação
dos afrodescendentes – sem a qual ninguém será verdadeiramente livre no
país – passa pela afirmação de sua rica cultura” (...).

Afirmações feitas durante as celebrações em comemoração à Semana da Consciência Negra,


tais como “o evangelho só é evangelho quando inculturado”; Zumbi “encarnou, assumiu sobre ele a
vida, a cultura, o jeito do seu povo viver” e; a Festa de Zumbi dos Palmares “celebrada na fé ‘nos
resgata’ que nós somos uma família cristã”, ilustram significativamente a tentativa de uma ruptura. No
passado colonial e escravocrata a população negra era submetida e oprimida com a conveniência da
instituição, no presente, “não por falta de fé” o “povo negro” procura os caminhos que lhe parece
melhor e, por isto a necessidade de inculturar sua fé e, no futuro, de fato a constituição da verdadeira
“família cristã”.
Mas, a ruptura não se dá no tempo nem na maneira esperados. O preconceito racial que tem
dimensão institucional representa apenas um dos aspectos da questão. O significado da umbanda, por
exemplo, em que Jesus Cristo não apenas está no centro como também na posição superior da
hierarquia religiosa não recebe a atenção quando se trata de “evangelizar a cultura” negra. Daí, ao se
falar de evangelizar a cultura negra, fica no ar a idéia de uma necessária conversão.
Se a maioria dos valencianos se auto-declara católica e se aqueles que não são católicos
podem ser evangélicos, o que pode significar que já conheçam o evangelho, o problema neste caso,
pode se imaginar, é o sincretismo. A respeito do sincretismo, o Decreto Ad Gentes, que segundo
MIRANDA (2001:26) trata da atividade missionária da igreja, “alerta contra toda espécie de
sincretismo”. Ainda conforme este autor, em outro documento, a Constituição Pastoral Gaudium et
Spes, o Concílio “enumera os efeitos benéficos do Evangelho nas culturas, renovando, corrigindo,
purificando, completando e fecundando de dentro as riquezas culturais dos povos”. Isto se sintetizaria
posteriormente na expressão “evangelização das culturais”.
A compreensão do sentido de evangelizar as culturas dos capoeiristas, adeptos da umbanda e
do candomblé e dos agentes da pastoral do negro tem sido marcada por disputas simbólicas e
momentos de tensão. O entendimento da noção de cultura é um ponto importante a este respeito. O
emprego do termo cultura, especialmente quando acompanhado da qualificação “negra”, no contexto

56
Em homenagem ao preto forro Miguel Tomaz, que mobilizou um grupo de devotos “pretos” em torno da
construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos em torno de 1846, o nome da pastoral é
Pastoral Afrovalenciana Migue Tomaz. (Conforme IÓRIO, 2007[1953])
das trocas e relações sociais da cidade e das recomendações do Concílio, oscila entre as noções de
valor e de mercadoria. Para essas pessoas, a religião está presente e é um dos sustentáculos da
proposta mas, o modo como lidam com a questão difere bastante daquele esperado pela instituição. A
expectativa é de que a igreja seja o centro das atividades e que isto se manifeste através da
participação dessas lideranças e da mobilização do público para o qual desenvolvem suas atividades
“culturais”

Considerações Finais

As idéias e as práticas que fundamentaram a execução do projeto de ocupação do território da


cidade de Valença mostram a intenção civilizatória da administração colonial, com propósito explicito
de controlar a região e o lugar da religião em tal empreendimento. Tentei traçar pontos de conexão
entre a fundação da cidade, cuja conformação se deu a partir do aldeamento dos índios e a
importância da participação da igreja católica, instituição com legitimidade social e política para
desempenhar essa tarefa.
A proposta contemporânea de inculturação da fé e evangelização das culturas se destaca
como um elemento caracterizador do modo como o Catolicismo mudou e continua o mesmo ao longo
da sua história na cidade. As noções de continuidade e ruptura, embora não acionadas na descrição,
foram importantes sinalizadores para a textualização das idéias e questões trabalhadas.
O catolicismo popular, ou seja, a forma como leigos que atuam de forma distinta da oficial,
entenda-se, romanizada, da religião, vivenciam sua religiosidade, foi e permanece sendo um modo
bastante presente de expressão religiosa em Valença. Desde o período colonial o catolicismo
doméstico dos primeiros colonos, dos chefes de família, e aquele mais romanizado, mais universalista,
das ordens religiosas, estiveram sempre presentes e muitas vezes em oposição.
A abordagem do Catolicismo admite enfoques vários e a intenção neste trabalho foi destacar
alguns aspectos sobre o modo como a religião, mais que cumprir o mandato de sua existência
temporal, nas atribuições institucionais, no contexto colonial configurou “uma peça do aparelho de
Estado”. Entretanto, a Igreja em Valença através de ações vinculadas ou reconhecidas pela estrutura
eclesiástica foi e continua atuando de acordo com sua forma-Estado. Apesar da tentativa
contemporânea de encontrar elementos identificados com a considerada postura “profética” do padre
ao qual coube iniciar o projeto de evangelizar os índios que ocupavam o território que constitui o
município, o que se pode constatar concretamente é que os índios não subsistiram ao contato e
tampouco deixaram descendentes para negar ou confirmar esta versão57. O caráter revolucionário que
estaria na base da postura profética parece não ter influenciado a prática evangelizadora dos
missionários subseqüentes.
O Catolicismo continua sendo a religião hegemônica na cidade, com propostas e projetos de
intervenção na dinâmica da sociedade bastante explícitos como mostrado neste trabalho58. Apesar dos
critérios excludentes a respeito do que seja de direito e de fato uma pessoa católica, a paisagem social
da cidade é marcada por imagens suficientemente eloqüentes sobre a força da instituição na vida do
conjunto da população.

Referência Bibliográfica

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para uma correta aplicação da constituição conciliar sobre a liturgia 133. São Paulo: Paulinas, 3ª
Edição.

57
Para o pároco da Catedral, “desde a primeira evangelização houve uma relação humanizadora da igreja para
com os grupos oprimidos, marginalizados.”
58
O uso do conceito de hegemonia está conforme AUSTIN-BROOS (1997) que: 1) estabelece uma distinção
entre este e o conceito de ideologia; 2) assinala a intenção de ir além da noção, buscando superar o enfoque da
análise de classe e a idéia que classes são as principais coletividades da sociedade e; 3) destacar a opção pelo uso
da expressão “políticas de ordem moral” em vez de “batalha cultura”.
59
Em uma nota de pé de página o autor cita Geremack (1988:163) assinalando sobre o tema: “(...) Referindo-
nos a esta longa trama temporal, não encontramos uma série de mudanças na continuidade, mas uma pluralidade
descontinua de fenômenos, de processos, de modelos. Igreja primitiva e Igreja tridentina, Igreja opulenta, Igreja
inserida na ordem dominante, a Igreja revoltada ou contestatória, a da aliança entre o trono e o altar e a da luta
contra a opressão”. A proposição do autor faz lembrar de certo modo as observações de DELEUZE e
GUATTARI de que “(...) quando a religião se constitui em máquina de guerra, mobiliza e libera uma formidável
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cópia disponibilizada pela Biblioteca da Câmara Municipal de Valença está sem referência de cidade e
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......................................................

O CORPO DO NEGRO COMO SUPORTE DA ESTÉTICA RELIGIOSA DE MATRIZ AFRICANA NO BRASIL COLONIAL

Michele Aparecida dos Santos Carneiro60


michelepalascarneiro@yahoo.com.br

A temática do atual trabalho diz respeito ao corpo do negro como suporte para os signos
estéticos religiosos no período colonial brasileiro. A partir disso, se tem a necessidade de
problematizar a funcionalidade do corpo do escravo não somente como artefato mercantil, mas também
como suporte para os signos religiosos. A proposta possibilita a compreensão da funcionalidade deste
corpo e o lugar que reserva para os signos religiosos os quais implicam na caracterização da estrutura
social e identitária brasileira. Assim, é sugerido, neste texto, compreender e interpretar os símbolos
religiosos que configuram ou delimitam o corpo do negro. Espera-se associar os significados dessas
marcas do rito religioso ao corpo social e individual, a partir da vivência religiosa de matriz africana
ioruba ou maometana. A partir dessa dimensão, pretende-se interpretar a configuração estética e
simbólica de caráter religioso do corpo negro nessa contextualização histórica, a fim de ressaltar a
adequação das matrizes africanas como uma das formas de resistência ao formato cultural europeu.
Na historiografia religiosa o foco será discutido a partir da vertente História
religiosa. Será realizada a leitura dos signos religiosos (adereços, vestuária,
ornamentos) com o intuito de compreender o contexto social e cultural do
Brasil colonial e o papel do negro o qual denota esses símbolos, como agente
histórico.

No caso do objeto que se compreende pelos signos religiosos, o estudo historiográfico requer
um especial cuidado, visto que há indiretamente ou diretamente o envolvimento com crenças e valores
metafísicos. A compreensão do foco deste trabalho, ou das fontes, a partir de termos de ordem
puramente objetiva e racional constitui um aparato metodológico arriscado, assim como também são
problemáticas a perspectiva exótica e a folclórica dos signos religiosos de matriz africana. Sobre isso
afirma Certau: “Através de uma mística sempre ameaçada (segundo Bremond) ou de um folklore (para
Van Genep), o religioso assume a imagem do marginal e do atemporal, nele, uma natureza profunda,

60
Graduanda em História na Universidade Federal de Ouro Preto
estranha à história, se combina com aquilo que uma sociedade rejeita para suas fronteiras.”
(CERTEAU: 2008, p.35)
A interdisciplinaridade, nesse âmbito, é de suma importância para a avaliação do foco temático.
A História Cultural, por exemplo, articula-se em determinados pontos com a História Religiosa. Assim, é
possível proferir leituras, desde que esteja clara a distinção das duas vertentes historiográficas e suas
associações com o assunto discutido.
Gostaria de assinalar que há uma Nova História religiosa que tende
preferencialmente para a distribuição clara, articulando, não obstante, a
História religiosa com a História cultural. Articulação, não diluição.” (GOMES:
2002, p.19).

Salientado no título, o período colonial brasileiro indica o recorte no qual está situado o objeto
em questão, o corpo do escravo como suporte de signos religiosos.
A discussão baseia-se na pesquisa e no estudo da bibliografia existente sobre os aspectos ou
signos religiosos afro-brasileiros, sendo o foco deste trabalho fundamentado, a priori, nos discursos de
Gilberto Freyre no ensaio Casa Grande e Senzala, especificando os capítulos IV e V; O escravo negro
na vida sexual e da família do brasileiro. A obra incorpora elementos característicos da configuração
das propriedades fundiárias no Brasil colônia. A família patriarcal é um dos focos de discussão de
Freyre e sua relação com outros agentes, como os escravos. Há, evidente na obra, uma crítica e ao
mesmo tempo uma tentativa de desconstrução da noção da determinação racial na formação social
entre os elementos que comporão a identidade brasileira. O recorte da fonte em questão não se
associa a data de publicação da obra, 1933, 1ª edição, mas sim ao tempo do discurso, contexto da
colónia portuguesa na América no século XIX, no qual o objeto é pensado e analisado por Gilberto
Freyre e Nina Rodrigues na obra Os africanos no Brasil.
A teoria das raças, notável como parâmetro historiográfico na obra de Nina Rodrigues, é uma
linha contestada por Freyre, por exemplo. O autor refuta a idéia da existência de uma raça inferior no
Brasil devido a miscigenação. Na década de 1930 observa-se um notável movimento de produções
ensaísticas no Brasil. Na obra de Nina Rodrigues notam-se referências do movimento positivista
correlacionado com o advento das ciências sociais no Brasil colonial, assim como a recepção de idéias
italianas entre os juristas de todas as áreas no Brasil oitocentista. Pelo contrário, no discurso de Freyre
observam-se traços inovadores para o seu contexto de produção historiográfica. Novas abordagens
dos fenômenos históricos, sociológicos, educacionais e étnicos contradizem algumas vertentes
interpretativas, em voga. Freyre elabora um discurso fundamentado na pesquisa do cotidiano, das
particularidades das tradições religiosas, alimentares e estéticas. Atualmente, autores e críticos notam
aspectos salientados na corrente da “Nova História”, em sua obra. Portanto, considerando as possíveis
linhas interpretativas do objeto religioso, “Dentro da História religiosa se apresentam, basicamente,
duas vertentes quanto aos enfoques: 1) viés cultural: ideológico e literário, sistema de pensamentos; 2)
viés sociológico: práticas, enfoque antropológico.” (BUARQUE, 2008). A partir disso, o objeto em em
foco compreende-se através do estudo ou da análise dos discursos que o representam.

Corpo negro no século XIX: de artefato comercial para suporte de signos religiosos
Pensar o corpo do negro, sendo escravo ou não, no período colonial brasileiro, possibilita a
compreensão da sua funcionalidade não somente como artefato mercantil, mas também como suporte
para os signos religiosos. Gilberto Freyre reconstituiu a representação do negro no Brasil colonial e de
seus parâmetros culturais e sociais, em relação a conotação que este possuía em outros trabalhos
historiográficos. O autor critica, por exemplo, a análise por correntes evolucionistas e deterministas –
teoria das raças, em uma escala biológica reducionista do corpo negro apenas como elemento de força
física. No Brasil colonial o negro não era interpretado como um agente histórico, devido à sua condição
de escravo, ou seja, era compreendido como um índice quantitativo no tráfico negreiro. Portanto, não
se observava o reconhecimento do nós para os africanos e afros-descendentes, no Brasil colonial,
notava-se apenas o corpo negro no estatuto de artefato mercantil.
Contudo, mesmo recebendo essa interpretação historiográfica, de viés econômico, todo corpo
é socialmente concebido, pois torna-se evidente a permanência de aspectos morais e valores culturais
de matriz africana. A adaptação de práticas religiosas por exemplo, e sua respectiva configuração
estética no contexto colonial, indicam uma forma de resistência cultural africana no Brasil. A
experiência religiosa, portanto, permite e motiva a permanência de configurações particulares psíquicas
e sociais que caracterizam o afro-descendente, mesmo na sua condição em certo ângulo submissa a
outros parâmetros culturais. “[...] as religiões são também lugares relevantes dos conflitos sociais.
Assim sendo, o campo religioso é simultaneamente lugar, produto e fator ativo daqueles conflitos, e
parece-me, pois, legítimo considerar a História religiosa como uma disciplina específica.” (GOMES:
2002, p.17). Assim, nota-se que o crer e sua vivência psíquica e física podem contínuos independente
das modificações estruturais e conjunturais. Experiências e signos podem permanecer, principalmente
no imaginário dos agentes, mesmo com as variações ideológicas e culturais.

Referências religiosas africanas

O contato entre povos africanos de origem e práticas religiosas tradicionais distintas


impossibilitou a manutenção legítima dos hábitos religiosos africanos, no âmbito colonial brasileiro.
Ocorreu, então uma série de sincretismos religiosos entre as práticas tradicionais africanas. Assim,
percebe-se, conforme as fontes, o sincretismo com a religião católica e com as crenças indígenas.
Contudo, apesar disso evidenciam-se permanências quase intactas de matriz africana nos micro-
espaços de vivência religiosa dos negros.
Os autores em questão, Nina Rodrigues e Gilberto Freyre indicam a proeminência das
seguintes matrizes religiosas de povos africanos no Brasil: negros bantos, oriundos da África Central
atuais Angola, Congo e Moçambique, os de matriz religiosa e lingüística ioruba proeminentes da atual
Nigéria e os sudaneses e maometanos, da África Central. (RODRIGUES, 2008)
A mitologia dos orixás, de cunho ioruba, deixou manifestas reminiscências no Brasil. Esses
aspectos são notados no cotidiano dos negros no contexto colonial brasileiro. Isso é exemplificado pela
dança, pela música, culinária, arquitetura e cerimônias religiosas. A partir destas, se evidenciam as
indumentárias: “os panos vistosos, as saias rodadas, os xales da Costa, os braceletes, os argolões das
mulheres têm procedência nigeriana.” (RAMOS, 1979) Além das permanências referentes ao plano
religioso de matriz ioruba, nota-se também o código moemetano no Brasil, como através do uso da
rodilha ou turbante, angola-congolenses, como miçangas e balangandãs. (RAMOS, 1979)

A estética religiosa

Observa-se no Brasil, a projeção do conhecimento técnico africano em relação à confecção de


instrumentos e objetos em ferro, bronze fundido, além do conhecimento de trabalhos com barro,
madeira e outros metais. Fora do espaço de trabalho, tem-se essa prática artesanal com confecções
relacionadas ao momento religioso. Notam-se nas vestimentas da negra baiana adereços oriundos da
Nigéria e a realização de trabalhos artesanais pelos negros em função dos cargos litúrgicos. Gilberto
Freyre em sua obra Casa Grande e Senzala, descreve o uso de acessórios: “Ainda hoje se encontram
pelas ruas da Bahia negras de doce com os seus compridos xales de pano-da-costa. [...] Figas.
Pulseiras. Rodilha ou turbante muçulmano. [...] Estrelas marinhas de prata. Braceletes de ouro.”(
FREYRE, 2006 p . 395)
Além disso, Freyre indica outros objetos de cunho religioso importados pelos negros, a fim da
realização das práticas conforme as matrizes africanas. É interessante ressaltar a procedência desses
objetos, componentes religiosos da África sub-saariana, região do Golfo de Benin e Ifé onde se
destacam povos de matriz lingüística ioruba.
Importaram-se até pouco tempo da África para o Brasil “ tecebas” ou
rosários; artigos sagrados como o “heré” ou “chéchéré” – chocalho de cobre
que nos xangôs ou toques alvoroça as filhas-de-santo; ervas sagradas e para
fins afrodisíacos ou de puro prazer. Os Nagô, por exemplo, do reino Ioruba,
deram-se ao luxo de importar, tanto quanto os maometanos, objetos de culto
religioso e de uso pessoal. Noz-de-cola, cauris, pano e sabão-da-costa,
azeite-de-dendê.( FREYRE, 2006 p . 395)

A proibição da execução dos saberes dos mestres africanos no Brasil colônia foi executada
com rigor, a fim de controlar o arranjo dos ofícios. Um destes foi a tecelagem e a fiação, arte já
aprimorada em África. As contas ou miçangas, permanentes na idumentária religiosa, já eram
produzidas em Ifé e comercializadas com outros Reinos, como Benin.
Desde muito cedo, desenvolvera-se em Ifé, além de imortante indústria de
ferro, a de contas de pedra e de vidro. As pedras mais empregadas eram a
cornalina, a ágata e o jaspe, que possivelmente vinham do norte. As contas
de vidro, manufaturadas em enorme quantidade, constituíam, ao que tudo
indica, o principal artigo de exportação.(SILVA, 1992 p. 441)

É válido ressaltar que a procedência desses artefatos não é somente da África Ocidental de cultura
ioruba, como também da região de cultura religiosa islâmica. Por exemplo: os turbantes e o pano-da-
costa que possui função similar a do pano de alacá, em África, tecido africano feito em tear artesana.
Na indumentária, os panos vistosos, os xales da costa, os braceletes,
argolões etc.; usados pelos negros da Bahia, tem procedência nigeriana.
Outras influências do Sudão muçulmano, como a rodilha ou turbante e
miçangas e balangandãs, originadas de Angola e do Congo, vêm completar a
figura típica da baiana. (LODY, 2001 p. 42)

Nesse contexto, há a tentativa de homogeneização da vestimenta européia ou de manter essa


visualidade. Nota-se o resultado dessa política na esfera privada, ou através das vestes dos escravos
que trabalhavam nas Casas Grandes. Apesar disso, um dos aspectos da manutenção cultural de
matriz africana no Brasil colonial é a estética ou a indumentária. Qualidades dessa resistência no plano
material e espiritual contribuem para a constituição da memória de matriz africana no Brasil.
Nina Rodrigues ressalta a atribuição desses signos, ou seja, o valor da assimilação dos
aspectos de matriz religiosa em África, na população brasileira salientando a permanência desses
índices culturais africanos.
Os negros crioulos, particulamente as mulheres, adotaram e mantiveram
vestes de origem africana. As operárias pretas usam saias de cores vivas,
bem rodadas. O tronco coberto da camisa é envolvido no “pano da Costa”,
espécie de xale longo quadrado, de tecido grosso de algodão, importado da
África. (RODRIGUES, 2008 p.110)
Fica claro, a partir da leitura dos autores, que, até certo momento do contexto histórico colonial,
observam-se os objetos importados da África, artigos culinários e religiosos, sendo estes de uso
pessoal dos negros. Além disso, esse aspecto indica um índice particular no estudo das rotas e
respectivos produtos transportados no percurso Atlântico. Portanto, não evidencia-se somente o
comércio de corpos e mão de obra negra, como também de artefatos que sustentam aspectos
culturais, neste caso salientando os religiosos, inerentes a psique dos africanos enviados a colônia
portuguesa na América.

Adornar e Significar

A associação objeto - mágico ao corpo proporciona uma leitura histórica e


etnográfica mais clara dos adornos e seus significados ritualístico-religiosos. No período
colonial brasileiro, o verbo adornar( LODY, 2001), por exemplo, correspondia com mais
agnação à mentalidade do colonizador, ou seja, o senhor adornava sua escrava com a
intenção de exibí-la ou de denotar sua opulência.
As negras ricas na Bahia carregam a vestimenta à baiana de
ricos adornos. Os braços são cobertos de vistosos braceletes de ouro
até o meio ou quase todo; pende da cinta um volumoso molho de
berloques variados, com a imprescindível e grande figa. A saia é de
seda fina, a camisa é de linho alvo, o pano da Costa é de rico tecido
e lavores custosos. (RODRIGUES, 2008 p.110)

Já, na mentalidade da negra, ter objetos ao corpo integrava-se mais ao verbo


significar, visto que a partir de suas referências sócio-culturais concebe uma relação
estética com caráter simbólico religioso. Os fios de contas em diferentes materiais e
diferentes cores, utilizados no cotidiano ou em situações especiais, indicavam funções
sociais e ou religiosas diversas. Há uma série de outros apetrechos com simbologias
específicas, como: a figa, o patuá, as medalhas, dentes, búzios, brincos, argolões ou
argolas.
A configuração estética da mulher negra nesse contexto, muitas vezes é um indicador de sua
referência religiosa. Objetos, de cunho sagrado, ultilizados junto ao corpo pressupõem um aspecto
indissociável do universo feminino. Os balangandãs exemplificam esse signo. Este agrupamento de
acessórios cuja função é sócio-religiosa configura-se um constituinte indispensável na estética corporal
feminina no candomblé. Tanto na matriz da religião tradicional africana como na cristã ressaltam-se
objetos sagrados “colecionados junto ao corpo” (LODY, 2001). Tem-se uma semelhança, por exemplo,
segundo o autor, dos bentinhos de outras localidades no Nordeste com os patuás afro-baianos.
No vestuário trivial, conforme os indícios apontados por Freyre, Ramos e Nina Rodrigues,
observar-se o uso de tornezeleiras e braçadeiras em latão, cobre ou ferro. Estes apetrechos compõem
os trajes dos deuses africanos, segundo a mitologia dos orixás. Assim, são claros os signos religiosos
de matriz africana os quais adornam o corpo do negro brasileiro e lhe atribuindo, dessa forma, uma
dimensão histórica que ultrapassa a proposta do corpo mercantil.

Considerações finais

Transitar de um corpo mercantil para um corpo com valoração estética, a partir de sentidos
religiosos, constitui uma transição que possibilita novas abordagens e interpretações a respeito da
identidade brasileira. O corpo, já dizia Foucault, é a última fronteira, para além do discurso. É possível
erradicar um corpo de seu espaço natural, contudo não se retira as marcas de sua vivência espiritual e
religiosa. Não há vias para silenciar o corpo, pois ele é condiçâo da vida. Torná-lo submisso ao
capital,ao material, ou seja, reificá-lo, é uma das maiores e em muitos momentos não admitidas
perversôes. Portanto, é um percurso árduo atribuir-lhe novamente o mistério e trababalhar suas
ressignificações.
No Brasil, onde a cidadania é geralmente, mutilada, o caso dos negros é
emblemático. Os interesses são cristalizados, que produziram convicções
escravocratas arraigadas, mantém os estereótipos, que não ficam no limite do
simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais. Na esfera
pública, o corpo acaba por ter um peso maior do que o espírito na formação
da sociedade e da sociabilidade. [...]
Sem dúvida, o homem é o seu corpo, a sua consciência, a sua sociabilidade, o
que inclui sua cidadania. Mas a conquista, por cada um, da consciência não
suprime a realidade social de seu corpo nem lhe amplia a efetividade da
cidadania. Talvez seja essa uma das razões pelas quais, no Brasil, o debate
sobre os negros é prisioneiro de uma ética enviesada. (SANTOS, 2002 p.160)

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de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
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MATTOS, Regiane de Augusto. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2007.
MOTTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura Brasileira: 1933-1974. Pontos de partida para uma
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PRANDI, Reginaldo. Segredos Guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das
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RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Madras, 2008.
SANTOS, Milton. Ser negro no Brasil hoje In.: O país distorcido:O Brasil, a globalização e a cidadania.
São Paulo: Publifolha, 2002
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: A África antes dos portugueses. São Paulo: Editora
Nova Fronteira – EDUSP,1992.

.............................

Breves reflexões sobre o Ebó, uma oferenda ritual.

Mirian Aparecida Tesserolli61;


m.tesserolli@uol.com.br.

61
Professora do curso de História do Campus de Porto Nacional da Universidade Federal do Tocantins;
Doutoranda em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia pela Universidade Federal do Pará.
Introdução

Desde que entramos na escola nos dizem que a cultura brasileira é formada por três “raças”:
branca, indígena e negra. No entanto, em todos os nossos anos escolares, até mesmo na
universidade, temos estudado a história e a cultura de matriz européia. Raras exceções para uma
optativa aqui sobre os povos indígenas, outra ali sobre os africanos, outra acolá sobre os asiáticos.
Ainda assim, de forma muito superficial. Nos últimos anos, sim, começamos a nos debruçar sobre a
história da África, falando especificamente da África, não com uma visão externa a esse continente,
tornando-a um objeto e sem trabalhos de pesquisa de campo in loco; mas com uma visão interna,
buscando a África como sujeito de sua própria história. Dizem que é mais difícil escrever a história da
África, pois não possui escrita, mas sabemos que a ausência da escrita não torna impossível a tecitura
da história. Mas, de qualquer forma, isso não é verdade: os egípcios não possuíam escrita? Os
meroítas? E ainda muitos povos do litoral atlântico a possuíam. Mesmo que não possuíssem escritas, a
ausência da palavra escrita não significa analfabetismo numa visão da África como sujeito, pois como
nos diz Fábio Leite, esse conceito é “estrangeiro às sociedades da África profunda onde o
conhecimento é elemento estruturador da realidade, construído a partir de valores próprios: na
verdade, nessas sociedades [negro africanas] a escrita é considerada um fator externo à pessoa e por
essa razão impacta negativamente os processos de comunicação.” (Leite, 2004: 36).
É que a palavra tem outro valor para as sociedades negro-africanas. Ela, a palavra, tem uma
relação profunda com a força vital, o axé. O ser humano está em interação dinâmica permanente com
os elementos vitais através da palavra.
Junto com os africanos que para cá vieram, escravizados, também vieram as suas culturas.
Viviam, em África, sob a forma de cidades-estado. Isso, lá pelos idos dos séculos XVI, XVII. Seu modo
de vida era agrário, cultuavam, em cada cidade, um orixá. Mas cada família também podia cultuar um
orixá que fosse diferente do que protegia a cidade. Esse culto era e é mediado pelo ebó: um
agradecimento caracterizado por formas de preparar e oferecer materiais, dando conteúdos
diferenciados a cada ato ritual e votivo. Ebó pode, então, ser conceituado enquanto um oferecimento,
uma relação entre o homem e o orixá, vodum, ínkices ou até mesmo, o antepassado, como diz Muniz
Sodré: o preceito cósmico.

Ebó
Oxalá foi visitar um de seus filhos, Xangô. Ao chegar ao seu reino foi confundido com um
mendigo e a guarda o prendeu. Ficou durante muito tempo preso até que Xangô, ao consultar um
Sacerdote de Ifá, lhe avisou que havia alguém muito importante nas suas prisões. Descobriu que era
seu pai. Mandou buscar-lhe, banhá-lo com ervas cheirosas, deu a ele roupas limpas. Quando libertado,
ao chegar ao palácio de um de seus filhos, serviram-lhe ebó.
Ebó, termo de origem iorubana, é uma comida africana que foi trazida para o Brasil pelos
negros africanos escravizados. Faz-se com farinha de milho branco, sal ou misturada com feijão-
fradinho torrado. Leva-se ao fogo e, quando estiver fervendo, se junta azeite de dendê. Aqui chegando,
toma outras formas conceituais. Torna-se uma oferenda aos orixás.
Vou tratar mais especificamente das religiões de matriz africana onde cada ritual é mediado
pelo o que é oferecido à divindade. Para cada relação, há uma troca diferente que é definida pelo jogo
de búzios. Os ebós são definidos pelos orixás: o Ebó-akoso - para os primeiros frutos; ebó-alafia - para
a paz, entre outros. Popularmente, torna-se o feitiço, a muamba, a coisa-feita, o despacho. Muitas
vezes, basta uma pequena quantidade de pipocas, embrulhos com farinha e azeite-de-dendê ou outros
objetos, para se fazer um despacho. Ebós são feitos para conseguir saúde ou um emprego,
prosperidade ou cura de traumas. Às vezes, o orixá, através do jogo de búzios, pede algum elemento
especial: canjica, pombo ou acarajé. Às vezes, o ebó é colocado ao ar livre, por exemplo, no
assentamento de um orixá em uma árvore.
Enfim, são oferendas para os orixás, para eguns62, para os odús63 com diversas finalidades:
organizar, repor ou trocar energias. Exatamente por isso não são apenas as representações do
material utilizado que fará com que o ebó se concretize. Ele é acompanhado de cantos, danças,
instrumentos musicais que, no ritual, se simbolizam e organizam de forma a alcançar o desejado.
Todas as ações de um terreiro são mediadas pelos ebós: desde o assentamento de um orixá até a
harmonia individual de cada um dos praticantes. Os rituais nos quais os ebós são realizados podem ou
não ser públicos, dependendo do grau de participação, pessoas de fora do terreiro podem assistir;
outros, somente membros.
As religiões de matriz africana têm uma característica essencial: o coletivo. A solidariedade e
os rituais coletivos são marcas fundamentais que os africanos trouxeram e que representaram aqui,
sob a forma da família extensa de ‘santo’: “o símbolo ritual transforma-se em um fator de ação social,
62
Segundo Cacciatore (1988: 108), Egun ou Egungun são “espíritos, almas dos mortos ancestrais que voltam à
Terra em determinadas cerimônias rituais. Há na África (na Nigéria e no Benin) sociedades secretas para cultuá-
los. No Brasil, só existe candomblé de Egungun na Ilha de Itaparica, perto de Salvador, Bahia. Chama-se Ilê
Agboulá [...] Num sentido mais atual, nos cultos mistos, espírito atrasado, alma não purificada (egun)”.
63
Odu: “resultado de uma jogada, feita no jogo da adivinhação com o opelé, ou de um conjunto de oito jogadas
com cocos de dendê ou búzios, conforme o número de coquinhos ou búzios caídos em determinada posição [...]
os odus principais são 16. Sua combinação pode dar mais 16 a eles subordinados cuja combinação totaliza 256.
[...] cada odu, tem um nome especial e é ligado a determinada divindade” (Cacciatore, 1988: 185).
em uma força positiva num campo de atividade” (Turner, 2005: 49), mas, como bem anuncia Victor
Turner, “cada pessoa que participa do ritual o encara de seu ângulo particular de observação” (: 57).

Representação do Ebó

Em comum, têm a troca de energias: é “uma oferenda... [...], é [uma] prática ritual de reposição
de energias para equilibrar as forças cósmicas. Seu objetivo é sempre o de restituir a harmonia entre a
natureza, os seres humanos, e o mundo das divindades, os ancestrais e os não nascidos”
(Nascimento, 1994: 18). O ebó é uma prática de religiões de matriz africana no Brasil e, também, das
afro-brasileiras. É no candomblé que o termo ebó é mais utilizado, pois esta é a religião que se formou
a partir dos cultos de orixás e ancestrais que mais guarda semelhança com essa prática religiosa
africana.
A harmonia entre o orun, mundo espiritual, e o aiyé, mundo terrestre, fundamenta o culto de
voduns, orixás e ínkices, pois que está sempre em busca de repor as energias cósmicas num
constante fluxo de força vital, o axé, pois é ele que permite a possibilidade do existir desabrochar; é a
força dinâmica da realização; é o elemento mais importante para a existência. Força vital esta que não
se encontra tão somente nos seres humanos, mas em toda a natureza. É uma das forças de Olorum,
que só é possibilitada em conjunto com as outras duas: iwá, que é a força ou princípio capaz de fazer
existir, está principalmente na atmosfera e se faz presente na respiração; e abá, que acompanha o axé
dando dinâmica à vida (Berkenbrock, 1997: 187). Por isso, baseia-se “no equilíbrio harmônico da
distribuição do axé entre os seres humanos vivos, a natureza; e os ancestrais, os não nascidos, os
orixás – enfim, entre o orun e o aiyé” (Nascimento, 1994: 17). Quando há desequilíbrio, o ebó,
potencializado pela palavra que é carregada de axé, vem para harmonizar.
Os orixás são representações das forças da natureza. No candomblé, pedras, árvores, grutas,
fontes, animais, ar, terra, fogo, enfim, tudo que é natureza, é sagrado. E o ebó é a oferenda que faz as
energias desses elementos circularem, através do ritual, entre tudo que faz parte da natureza.
A cosmovisão iorubana faz parte dos fundamentos da nossa cultura, pois que o nosso dia a dia
está repleto de pequenos movimentos que nos remetem à cultura negro-africana. Por exemplo, quem
nunca bateu três vezes na madeira para espantar os maus espíritos?

Referências Bibliográficas

BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos Orixás. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.


CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de Cultos afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1988.

LEITE, Fábio. A questão da palavra em sociedades negro-africanas. In: Thot. N° 80. Abril 2004.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. Reflexões sobre afro-americanos, meio ambiente e desenvolvimento. In:
NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). Dunia Ossaim: os afro-americanos e o meio ambiente. Rio de
Janeiro: SEAFRO, 1994.

TURNER, Victor. Floresta de símbolos. Niterói: EdUFF, 2005.

Identidade e resistência em um terreiro de mina de São Luís (MA): a Casa de Nagô

Mundicarno Ferretti64
mundi@prof.elo.com.br

INTRODUÇÃO
A preservação das culturas de matrizes africanas no Brasil deve muito às casas de culto de
diversas denominações. O Tambor de Mina, denominação típica do Maranhão, foi profundamente
influenciado por dois terreiros fundados em São Luís por africanas: a Casa das Minas (jeje) e a Casa
de Nagô. Apesar de influenciados pela primeira, os terreiros de mina reproduzem principalmente o
modelo da Casa de Nagô. Embora a Casa de Nagô conserve muitas tradições africanas, apresenta
numerosas diferenças dos terreiros nagô de outras denominações afro-brasileiras. Nesse trabalho,
após uma visão geral sobre a Casa e sua trajetória, pretendemos analisar as características da
identidade nagô, examinar as ameaças de continuidade enfrentadas pela Casa e o impacto de
medidas governamentais em sua trajetória.

1. A casa de nagô e sua importancia no tambor de mina

Tambor de mina é uma religião de matriz africana organizada no Maranhão na primeira


metade do século XIX. Equipara-se ao candomblé de Salvador (BA), ao Xangô de Recife (PE), ao
batuque de Porto Alegre (RS) e a outras denominações religiosas afro-brasileiras tradicionais. Como

64
GPMINA/UFMA; Dra. Antropologia
aquelas, apresenta variações que são identificadas pela “nação” de suas fundadoras africanas ou que
foi adotada por seus fundadores, que identificam os terreiros.
As “nações” da mina maranhense mais conhecidas são: jeje, nagô, tapa, cambinda, Caxias
(Caxeu?) ou mata, ligada à cambinda, considerada hegemônica no interior do Estado e fanti-ashanti.
Embora o Maranhão seja mais conhecido nos meios afro-brasileiros como terra de mina-jeje, a Casa
de Nagô é tão antiga quanto aquela e dela saiu a maioria dos terreiros de mina de segunda geração,
já desaparecidos. Apesar da importância da Casa de Nagô para o tambor de mina não existe uma
bibliografia aprofundada sobre ela e as informações localizadas disponíveis sobre ela são às vezes
contraditórias.

1.1 Visão geral sobre a Casa de Nagô

A Casa de Nagô foi aberta por duas africanas: Josefa (Zefa de Nagô), que teria vindo de
Angola e recebia Xangô e por Maria Joana Travassos, que ´carregava´ Badé (SANTOS, 2001, p. 26 e
87) ajudadas pela chefe da Casa das Minas que, para a maioria, foi aberta antes dela (idem p.26;
OLIVEIRA, J., 1989, p. 32).
É possível que alguma das vodunsis mais antigas da Casa fosse de Abeokutá”, pois Nina
Rodrigues encontrou em São Luís, em 1896, residindo nas proximidades de São Pantaleão, onde está
localizada a Casa de Nagô, uma africana nagô de Abeokutá (RODRIGUES, 1977, p. 107). A relação
da Casa com Angola foi afirmada indiretamente por Nunes Pereira (PEREIRA, 1979, p.34) e depois
por Pai Jorge (OLIVEIRA, J., 1989, p. 32) quando informaram que uma das línguas da Casa de Nagô
é o “agrôno” (ou aglono) – “termo banto “fongbeizado” usado no Brasil pelos escravos jeje com o
significado de gente de Angola” (CASTRO, 2002, p. 69 e 71).
Da sua fundação até 2008, quando faleceu dona Lúcia, com 103 anos, a Casa de Nagô teve
oito ou nove chefes (MEMORIA, 1997, p.168). A chefia na Casa é exercida por mulheres e só elas
dançam na guma (barracão) em transe, mas os tambores (abatas) e a cabaça grande são tocados
apenas por homens e sem a participação deles não há toque. Os demais instrumentos musicais (um
agogô e algumas cabaças pequenas) são tocados por mulheres que também atuam na cozinha de
vodum.
Na Casa de Nagô são cultuadas ou recebidas em transe mediúnico: entidades africanas
(orixás e voduns); gentis (nobres europeus associados a orixás, também considerados nagô);
entidades taipa (tapa?); cambinda; e Caxias (Caxeu?), associada a cambinda (caboclos da mata). A
enumeração das entidades cultuadas na Casa é tarefa, mesmo das nagô e das jeje, pois só algumas
delas são conhecidas com o mesmo nome entre os orixás do candomblé ou entre os voduns da mina-
jeje. Apesar de, há muito, a maioria das dançantes da Casa receber caboclo, nos toques os cânticos
em português são poucos e “puxados” apenas no final do ritual.
Fala-se que na Casa a primeira iniciação da vodunsi exigia oito dias de reclusão e começava
logo que sua entidade espiritual se manifestava e era reconhecida pela Mãe do terreiro ou por outra
vodunsis competente (CARDOSO JUNIOR, 2001, p. 48-49). Mas a iniciação completa era rara e
deixou de ser realizada há muitos anos (em torno de 1914).
Na Casa de Nagô as obrigações para com as entidades espirituais são cercadas de tabus e
de segredos e poucas filhas têm acesso ao vandecó (peji). Fala-se que na mina-nagô quase não há
matança de animais e se há distribuição de comidas de obrigação ocorre geralmente longe dos olhos
da assistência (BARBOSA, 1997, p. 84).
A Casa de Nagô realiza anualmente vários toques de mina em homenagem a santos e
encantados a eles associados (como São Sebastião e Xapanã). Realiza também uma vez por ano: o
Mocambo, quando as entidades presenteiam os tocadores e auxiliares do culto e distribuem moedas
aos presentes; e a Bancada, na 4ª feira de cinzas, quando oferecem aos presentes alguns alimentos
torrados, frutas, doces, refrigerantes e licores.
Tal como na Casa das Minas, na Casa de Nagô são realizados rituais do catolicismo popular,
há muito, integrados ao tambor de mina como: a Festa do Divino; a Queimação de Palhinhas do
presépio; e as Ladainhas em louvor aos santos do altar. A Casa também realiza ou realizava até bem
pouco tempo brincadeiras folclóricas vinculadas direta ou indiretamente ao culto como: Carimbo de
Velha, após o encerramento da Festa do Espírito Santo; Bumba-meu-boi para o encantado Preto
Velho; e vem batizando com amansi (banho de ervas), a cada dois anos, na abertura do Carnaval, o
bloco afro Akomabu.
O toque de mina na Casa de Nagô é iniciado com um canto para Exu, o Ibarabô, mas não se
coloca oferenda para ele no barracão. As ´doutrinas´ são cantadas em língua africana, apenas
pequeno número das entoadas ao final do toque são em português e em homenagem a caboclos da
mata, mas o transe com essas entidades pode ocorrer enquanto se canta para as de outras
categorias.
O transe na mina-nagô é discreto e poucos observadores conseguem identificar quem
recebeu orixá ou vodum, gentil ou caboclo. Algumas entidades espirituais são solenes, mas todas
costumam cumprimentar pessoas da assistência e algumas vezes dirigir-lhes algumas palavras e,
depois do ritual, uma entidade pode ser vista benzendo pessoa que tem relação com ela, o que ocorre
raramente. Na Casa de Nagô não se costuma dançar com a cabeça coberta e nem usar paramento ao
receber orixá.
A Casa de Nagô é muito ligada à Casa das Minas. Essa ligação aparece claramente quando
há visita dos voduns da Casa das Minas à Casa de Nagô, na festa de São Sebastião e eles dançam e
se confraternizam com seus acovilés (co-irmãos). Fica também clara quando há “tambor de choro” no
terreiro jeje e este reserva um lugar especial às nagoenses, que permanecem na casa até o seu
encerramento, e quando, no 7º dia, a Casa das Minas manda para a sua co-irmã um tabuleiro com as
comidas de obrigação. Segundo Dona Deni, atual chefe da Casa das Minas, os jeje visitam os nagô na
festa de São Sebastião porque naquela festa se homenageia os voduns da família de Acossi e Azile
foi para a Casa de Nagô, onde é denominado Xapanã, e foi acompanhado por Boça, para que não
ficasse só. Outra explicação para a ligação dos dois terreiros pode ser encontrada no “mito de origem”
da Casa de Nagô segundo o qual suas fundadoras africanas receberam ajuda da fundadora da Casa
das Minas (SANTOS e SANTOS NETO, 1989, p. 49), e as duas casas se comprometeram a, em caso
de extinção, uma receber as filhas da outra (FERREIRA, 1997, p. 125).
A influência da Casa de Nagô em São Luís pode ser constatada no uso generalizado em
terreiros de mina, e mesmo de umbanda, da capital maranhense dos tambores nagô, denominados
“abatá”, que só não são encontrados na Casa das Minas (jeje). Mas, embora as fundadoras de vários
terreiros antigos tenham saído da Casa de Nagô, segundo dona Lucia, a abertura de novas casas não
era incentivada pelas velhas africanas e estas não queriam passar os fundamentos da mina-nagô às
crioulas porque elas não sabiam guardar segredo.
Na Casa de Nagô e na das Minas não se realiza cura/pajelança (muito perseguida no passado
pela polícia) e nem “trabalhos mágicos” solicitados por clientes, vistos por muitos com desconfiança,
principalmente quando pagos ou realizados com Exu (entidade freqüentemente confundida com o
demônio). Na Casa não se costuma também jogar búzio ou dar consulta durante ou fora dos toques, o
que não impede que vodunsis realizem serviços religiosos em outro local. Mas, apesar de não realizar
rituais de cura/pajelança e “trabalhos”, tanto ela, como a Casa das Minas, teve seus toques suspensos
por algum tempo durante o “Estado Novo” (1937-1945), quando os terreiros de mina mais centrais
foram proibidos de tocar tambor ou obrigados a se transferirem para locais mais afastados, “para não
perturbarem o sossego dos moradores”, pois costumavam ir ate de manhã. Como a chefe da Casa
das Minas na época descendia de escravos da família do interventor federal, ela conseguiu que a
Casa das Minas e a de Nagô, por serem ligadas uma a outra, continuassem onde estavam (Celeste
Santos In: MEMORIA..., 1997, p. 94).
A Casa de Nagô e o culto por ela realizado são mantidos pela vodunsis com a ajuda de alguns
devotos, mas, como outros terreiros de São Luís, tem recebido anualmente ajuda do governo para a
Festa do Divino, a mais dispendiosa, e, às vezes também para a Bancada (na Quarta-Feira de
Cinzas). Despesas maiores, com a manutenção da casa (conserto do telhado etc.) têm sido realizadas
com o apoio do governo, geralmente com a mediação de amigas do terreiro.
A mina-nagô difere bastante da tradição nagô de outras denominações religiosas afro-
brasileiras, daí porque pessoas nelas iniciadas nem sempre conseguem identificar num toque da Casa
de Nagô o vodum ou orixá para quem se está cantando ou que está sendo recebido em transe. Uma
das diferenças marcantes da mina-nago para o candomblé, além da falta de longos períodos de
iniciação, da pequena ênfase no sacrifício de animais, a falta do inicio dos toques do presente para
Exu, é a inexistência de paramentação dos orixás e de destaque para as pessoas de nível hierárquico
ou iniciático mais alto.
Como a Casa de Nagô tem atualmente poucas vodunsis e estas, apesar de já não serem
jovens, não são muito antigas na Casa, corre sério risco de desaparecimento dentro de poucos anos
ou de perda de identidade cultural se for revitalizada pela substituição de suas tradições por outras
estranhas à mina-nagô (como as do candomblé e da umbanda). Mas, como a Casa das Minas está
também com o grupo muito reduzido, constituído por pessoas idosas, e também corre risco de
desaparecimento, é possível que as duas venham a estreitar ainda mais sua ligação e possam se
ajudar sem perderem suas identidades, tal como ocorreu no surgimento da Casa de Nagô, quando se
diz que a fundadora foi ajudada pela da Casa das Minas. E, nesse particular, vale a pena lembrar que
Mãe Andresa, chefe da casa das Minas falecida em 1954, interpretando um sonho de Dudu, filha e
futura chefe da Casa de Nagô, exclamou: “Os ´brancos´ (voduns) estão querendo ligar as nossas
casas”... (SANTOS, 2001, p.74).

2. Identidade e sobrevivência da Casa de Nagô

As informações sobre a Casa de Nagô repassadas anteriormente mostram que a Casa possui
uma identidade forte, afirmada e reiterada por dona Lúcia e por outras nagoenses, quando enumeram
suas características (o que ela é) e quando afirmam o que ela não é. Essa identidade é construída ou
afirmada tomando como referencia o catolicismo, outras tradições religiosas afro-brasileiras e,
principalmente, outras casas de culto maranhenses. Dona Lúcia explicou a diferença entre a Casa de
Nagô e a das Minas do seguinte modo:
Não tem várias Nações de Estado? É o que acontece entre Jeje com Nagô. A
nação delas, de Jeje, naturalmente é uma. Tinha a tal de Angola, tem uma tal
de Cabinda, tem Gentil e outras. Mina jeje, que é elas. Agora, tem uma parte
de Jeje que nos pertence, é uma parte que eles dão o nome Queviossô,
pertence aqui pra nós. Agora, outra entidade deles não. Eles que sabem
fazer, dizer, dirigir e tal, assim, nós não; pertencemos ao Gentio e temos a
linha da Mata, parte de Cabinda... (MEMORIA... 1997, p.169).
E, explicando os fundamentos de sua religião (seita) e a diferença entre a Casa de Nagô e outros
terreiros, falou:
Uma coisa que eu tenho certeza dentro da minha seita (...). Mas pra dizer que
a Casa, meu bom amigo, veio de livro, é mentira, é mentira. Deram algumas
instruções para algumas delas, que já foram, não, e por aí a gente pegou
alguma coisa e o ritmozinho da casa é muito importante, muito simples, mas
de muita fé, que nós temos lá. Às vezes, gente, aquelas senhoras dizem que
vai lá pra casar, é mentira. Lá não casa ninguém, não cura ninguém, é
mentira quando lhe disser; lá só reza pra santo. Diga que eu disse que é
mentira, lá só faz é rezar e rezar pra santo (MEMORIA... 1997, p.188).

Dona Lucia definia a Casa de Nagô como nagô-gentil (diferente do nagô de outros terreiros
fundados por africanos) com linha da mata/cambinda (e não como nagô puro); como casa de culto aos
santos, deixando subtendida a sua aceitação do sincretismo com o catolicismo e, ao usar a palavra
seita, sua distinção do catolicismo oficial, e também o não envolvimento da Casa com Exu (não
representado como santo). Definiu também a Casa de Nagô como um terreiro muito simples, mas de
muita fé, cujo fundamento vem sendo repassado oralmente desde suas fundadoras (africanas), onde
não se faz cura e nem se ´trabalha´, no que se distingue da maioria dos terreiros maranhenses que
costumam ter mina e linha de cura/pajelança (ou dar consulta), ou que faz ´trabalho´ (para casar etc.).
A Casa foi também apresentada por dona Lucia como ligada à das Minas (que participou de
sua fundação, como afirmado por ela e por outras nagoenses em outros depoimentos) e que tem uma
linha nagô – os voduns da família de Queviosô. Assim sendo, uma é parte da outra ou tem elementos
da outra. É interessante notar que, apesar da Casa ter linha da mata/cambinda e dessa “nação”
aparecer no discurso de dona Lucia como atual e não do passado, como a Angola, parece não se
identificar com nenhum terreiro dessa última, o que reforça a hipótese de que essa “nação” pertence a
ela desde a sua fundação e talvez a Casa não se defina como nagô-Angola porque é consagrada a
Xangô (orixá nagô), recebido pela primeira Mãe do terreiro.
Segundo Mãe Dudu, antecessora de dona Lúcia e sucessora de Nhá Cristina, esta, para por
ordem na Casa dizia: “Nagô é nagô, não pode ter mistura enquanto eu pestanejar aqui” (SANTOS,
2001, p. 27), o que sendo desdobrado em “A Casa de Nagô não é como esses outros terreiros”,
sugere que ela era percebida não apenas como diferente, mas também como superior a outros
terreiros, daí não querer se “misturar” com eles. Esse componente etnocêntrico da identidade nagô,
que aparece também no discurso de pessoas da Casa das Minas quando classificam os terreiros
maranhenses em: jeje, nagô e ´beta´ - da mata (cambinda?) - ou de caboclo e consideram os
pertencentes a essa terceira categoria como inferiores às Casas das Minas e de Nagô, é destacado
por Roberto Cardoso em seus trabalhos sobre identidade étnica (CARDOSO, 1996, p. 45), quando
observa:
“a especificidade da identidade étnica, particularmente em suas manifestações mais
´primitivas´ está no conteúdo etnocêntrico inerente à negação da ´outra´ identidade
em contraste. O que nos remete a uma concepção ´nativa´ de sí, eivada de valores e
de atributos devidamente articulados, tendentes a reconstruir no plano do imaginário a
experiência vivida do contato interétnico” (OLIVEIRA, R., 1996, p. 45).

Embora aquelas duas casas sejam muito prestigiadas e tenham sobrevivido por tantos anos, o
crescimento do tambor de mina se deu a partir de casas mais discriminadas, algumas vezes acusadas
de curandeirismo ou charlatanismo e perseguidas pela policia.
Como a Casa de Nagô está muito reduzida e já não conta com vodunsis que conheceram as
Mães africanas ou crioulas (como a que recebeu Dudu e Lucia) e nem com chefes com mais de cem
anos de idade, existe uma grande preocupação não só com a continuidade da Casa e do apoio
governamental recebido, como também com a manutenção da identidade mina-nagô.
Em relação ao apoio governamental e o impacto de políticas públicas na Casa de Nagô, a
Casa sofreu medidas restritivas no Estado Novo (1937-1945), ficando algum tempo sem tocar tambor,
e, apesar do tratamento especial recebido depois, por ser ligada a Casa das Minas e esta estar sob o
comando de descendente de escravos da família do interventor federal (Paulo Ramos), deve ter
passado a encerrar seus toques mais cedo, adequando-se a exigências do crescimento urbano de
São Luís. Na década de 1966, ficou novamente sem tocar, por algum tempo, devido à estrutura física
do terreiro encontrar-se bastante deteriorada, mas, com a ajuda de dona Zelinda Lima conseguiu que
o governo realizasse a reforma necessária, o que permitiu o retorno de suas atividades (CARDOSO
JUNIOR, 2001, p 41; OLIVEIRA, 1989, p. 20). Em 1985, contando também com o apoio de dona
Zelinda, a Casa foi tombada Patrimônio Histórico a nível estadual, ratificando o seu reconhecimento
público. E, em anos posteriores, recebeu ajuda especial do Governo, através do Centro de Cultura
Popular e da Superintendência de Cultura Popular, na gestão de Michol Carvalho, para a realização
da Festa do Espírito Santo e do ritual da Bancada. No ano de 1999, foi também apoiada pela
Prefeitura de São Luís, que realizou novo trabalho de reparação no seu prédio (CARDOSO JUNIOR,
2001, p 41).
O apoio governamental à Casa de Nagô foi motivado pela política adotada pelos diversos
governantes em relação à cultura popular e, em especial, afro-brasileira do Estado, pela amizade da
Casa com agentes do Governo e pelo prestígio pessoal de suas dirigentes. Como as políticas
governamentais mudam e a chefia da Casa, após o falecimento de dona Lúcia, deve ser exercida por
pessoas mais jovens e menos relacionadas com aqueles agentes do governo, a preocupação com o
futuro da Casa é mais do que justificável.
CONCLUSÃO

Apesar da importância da Casa de Nagô para o tambor de mina e para a cultura afro-brasileira
do Maranhão, os trabalhos publicados sobre ela são pouco abrangentes e pouco numerosos. A Casa
de Nagô tem assumido ao logo dos anos uma identidade aberta ou múltipla que garante autonomia,
sem perda de prestígio, do modelo “pureza nagô”, do movimento de anti-sincretismo e de suas
estratégias de reafricanização, que tem ameaçado a diversidade das religiões afro-brasileiras e tende
a estabelecer novas hegemonias naquele campo religioso.
Embora a Casa tenha enfrentado discriminações e preconceitos, foi tombada em 1985 pelo
Patrimônio Histórico estadual, o que demonstra o seu reconhecimento pelo Estado, e, desde a década
de 1960, tem recebido apoio de órgãos públicos, graças, principalmente, às relações de suas Mães
com dirigentes de órgãos de cultura e de turismo do Estado. Esse apoio, apesar de facilitado por
aquelas relações pessoais, foi possibilitado pelo avanço de políticas públicas no país e no Maranhão
voltadas para a cultura popular e para as população afro-descendentes, estimuladas pelo movimento
negro. O apoio obtido do governo pela a Casa de Nagô para a recuperação do seu espaço físico
permitiu que ela continuasse funcionando e realizando seus rituais públicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Silvia Helena Bezerra. A Casa de Nagô. Estudo sobre um terreiro de São. Luis.
MONOGRAFIA. São Luís: Curso de Ciências Sociais/UFMA, 1997,128p.
CARDOSO JÚNIOR, Sebastião. Nagon Abioton: um estudo sobre a Casa de Nagô. Monografia. São
Luís: Curso de Ciências Sociais/UFMA, 2001, 156p).
CASTRO, Yeda Pessoa de. A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século
XVIII. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Secretaria de Estado da Cultura, 2002, 236p.
FERREIRA, Euclides M. Tambor de Mina em Conserva. São Luís: Ed. Estações Produções. 1997.
MEMORIA de Velhos: Uma contribuição à memória oral da cultura popular maranhense – volume 1.
São Luís: CMF/SECMA, 1997.
OLIVEIRA, Jorge Itaci. Orixás e voduns nos terreiros de Mina. São Luís: VCR Produções e
Publicidades, 1989.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira, 1976.
PEREIRA, Manoel Nunes. A Casa das Minas: contribuição ao estudo das sobrevivências do culto dos
voduns, do panteão Daomeano, no Estado do Maranhão-Brasil. 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1979.
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 5 ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1977.
SANTOS, Maria do Rosário C. O caminho das matriarcas jeje-nagô: Uma contribuição para a História
da Religião Afro no Maranhão. São Luís: FUNC, 2001.
SANTOS, Maria do Rosário C. e SANTOS NETO, Manoel dos. Boboromina: Terreiros de São Luís,
uma interpretação sócio-cultural. São Luís: SECMA/SIOGE, 1989.

.....................................

Taieiras: religiosidade e sociabilidade na festa de Nossa Senhora do Rosário, em Monte do Carmo


(TO).
Noeci Carvalho Messias65
noecicarvalho@yahoo.com.br

Realizando atualmente uma pesquisa de doutoramento focalizo o meu olhar para os festejos
religiosos de uma pequena cidade tocantinense, Monte do Carmo. Atualmente a cidade de Monte do
Carmo tem cerca de 6 mil habitantes, dos quais a maior parte é negra66.
A cidade de Monte do Carmo apresenta variadas peculiaridades no contexto da história da
região do estado do Tocantins. Fora vagamente conhecida ao longo do período histórico que pertencia
ao território de Goiás, aparecendo na literatura historiográfica como sendo um dos arraiais que
produziu abundante ouro, no século XVIII. Naquele contexto além dos indígenas que há tempos ali
habitavam, a região foi frequentada por bandeirantes empenhados na exploração de minérios. Também
afluíram para aquele arraial escravos africanos para trabalharem nas minas de ouro como instrumentos
facilitadores para a exploração dessa riqueza.
No cenário atual desta pequena cidade, a população cultiva anualmente diversas celebrações,
festas e folguedos que simbolizam espiritualmente a vivência do trabalho, da religiosidade e
sociabilidade da vida cotidiana. Tais manifestações cotidianas guardam fortes traços de referências
africanas e portuguesas. Esse é um aspecto que nos chamou a atenção para essas celebrações, uma
vez que estas não se perderam totalmente no exercício da diáspora, mas foram ressignificadas nas
experiências locais.

65
Doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás. Professora no curso de Serviço Social
(Modalidade EaD) na Fundação Universidade do Tocantins – UNITINS.
66
A maioria da população de Monte do Carmo reside na área rural. Segundo senso do IBGE de 2000, a
população consistia em 5.982 habitantes, sendo 2.201, na área urbana, e 3.781, na área rural.
Todos os anos, no período de 7 a 18 de julho, pessoas de várias cidades da região do estado
do Tocantins e também de outros Estados, acompanham uma diversificada programação, que mobiliza
a população residente na área rural com destino a cidade. Durante os dias de festejos, o cenário da
cidade se transforma em um espetáculo teatral em que o giro da folia, cortejos de rei, rainha,
imperador e imperatriz, cavaleiros, caçadeiras, congos, alferes, foliões e taieiras, com vestimentas
coloridas, dançam, cantam e percorrem ruas e praças da cidade, numa mescla de cultura popular e
religiosidade, que homenageia os santos e santas protetores da cidade.
O objetivo deste texto é mostrar67 a invenção ritualística das taieiras que acontece dentro das
celebrações que homenageia Nossa Senhora do Rosário. O foco desse olhar sobre a manifestação das
taieiras nos remete ao pensamento de Hobsbawm; Ranger (1997, p. 9) uma vez que no entender
desses autores “tradição inventada” consiste em práticas de natureza rituais e simbólicas que inculcam
certos valores e normas através da repetição e que estabelecem continuidade com um passado
histórico apropriado.
O ritual das taieiras na cidade de Monte do Carmo é realizado duas vezes durante o ano: no
mês de julho e outubro, uma vez que curiosamente Nossa Senhora do Rosário é celebrada duas vezes
durante o ano pela comunidade carmelitana68.
A explicação para este fato está associada às particularidades locais. Os moradores nos
informam que no passado, não se sabe precisar a data, Monte do Carmo ficou desassistida
religiosamente por parte dos líderes religiosos, isto é não tinha a presença de padres de forma
permanente. Os padres só podiam cumprir com os trabalhos de acompanhar os festejos religiosos nos
meses de férias, ou seja, dezembro, janeiro, fevereiro e julho. Por isso, passou-se a festejar Nossa
Senhora do Carmo, Divino Espírito Santo e Nossa Senhora do Rosário no mesmo período, isto é, no
mês de julho. Segundo os depoentes outro motivo que veio associar a este diz respeito às dificuldades
dos moradores do sertão para deslocarem várias vezes durante o ano para participarem das festas,
posto que fossem realizadas em épocas distintas. Muitos não poderiam deixar suas plantações e
criações. Neste sentido, a junção das festas favoreceu também aos moradores residentes na área
rural na medida em que possibilitou maior comodidade de locomoção dos festeiros e festeiras
garantindo a participação de maior número de pessoas e ao mesmo tempo estes puderam permanecer
por mais tempo em suas casas, na área rural, cuidando dos seus pertences.
Durante a festa que celebra Nossa Senhora do Rosário uma gama de rituais, brincadeiras,
danças, cantorias são representadas no espaço urbano da cidade. O contexto destas cerimônias

67
Este texto contém resultados parciais de uma pesquisa mais longa que pretendo problematizá-los na tese de
doutoramento.
68
A população residente na cidade e na região e/ou pertencente a este se denomina carmelitanos (as).
denota diversificados elementos repletos de sentidos e que favorecem a população construir laços e
estabelecer diversificadas formas de sociabilidades naquele universo. Uma das mais significativas
práticas recém enraizada no seio da comunidade carmelitana são as manifestações das taieiras (foto
1).
As taieiras formam um grupo de mulheres que acompanham o cortejo da rainha e do rei de
Nossa Senhora do Rosário. Na ocasião percorrem as ruas da cidade em direção a igreja sempre
dançando e cantando. Essas mulheres usam saias rodadas e coloridas, bem como colares de várias
cores e na cabeça usam um turbante branco com uma rosa pendurada. Além de muitas pessoas que
reverenciam o rei e a rainha, o cortejo é também seguido por congos, tocadores, rezadeiras e
tambozeiros. No trajeto os dois grupos, congos e taieiras, se apresentam juntos. (fotos 2, 3, 4 e 6).
Arthur Ramos (2007, p. 68) ao estudar o folclore brasileiro pondera que

São congos e as taieiras, evidentemente fragmentações do antigo auto dos


congos-cucumbis. Havia, na procissão, três negras vestidas de rainha, com
seus mantos e coroas douradas, ladeadas de duas alas de congos, vestidos
de branco e armados de espadas. De tempos em tempos, a procissão parava
e as duas filas de negros congos se degladiavam, terçando espadas e
disputando coroa da rainha principal, a quem chamava Rainha Perpétua.
Andores e irmandades completavam o séquito, destacando-se o andor de
Nossa Senhora do Rosário, guardado pelas taieiras, grupo de mulatas
graciosamente vestidas à baiana.

Em dezembro de 197869 a escolha para rainha de Nossa Senhora do Rosário fugiu aos
padrões estabelecidos pela tradição. A professora Sônia foi escolhida para ser a rainha de Nossa
Senhora do Rosário, devido ao fato de nenhuma candidata ter-se apresentado para aquele ano70. Ela
narra com detalhes esse episódio, que trouxe uma nova performance para o cortejo da rainha e do rei
de Nossa Senhora do Rosário. Afirma ela que sua escolha foi uma surpresa, pois estava passando o
final de semana com a família, próximo a cidade de Monte do Carmo, quando chegaram várias
pessoas com sanfonas e foguetes dizendo-lhe que ela foi escolhida para ser a rainha de Nossa
Senhora do Rosário e ela não teve como dizer não. A formação religiosa fez com que a depoente visse
nessa escolha uma graça divina, um recado de Deus, uma vez que nunca tinha pensado em ser rainha.
Naquele momento não tinha sequer condições de pleitear algo nesse sentido, pois estava grávida de
sete meses; a depoente relata sua escolha:

69
- A festa realizou-se em julho de 1979.
70
- Tradicionalmente no dia 18 de julho, dia da homenagem a Nossa Senhora do Rosário, era anunciado
publicamente à rainha do ano seguinte. No entanto, naquele ano nenhuma rainha se candidatou e tendo em vista
que se aproximava o período da festa à comunidade preocupada com tal situação nomeou a professora Sônia
para ser a rainha.
Em 1979 eu fui escolhida para ser rainha porque este ano estava sem rainha.
Quando foi no mês de dezembro a comunidade me elegeu para tomar a festa
da rainha. Ai junto com meu esposo, o Lulu Pereira, a nossa família que nos
ajudaram muito então nós abraçamos esta causa. Com isso eu comecei a
fazer pesquisa para saber como que era a festa. Conversei com as pessoas
mais velhas aqui da cidade. Nestas pesquisas o pessoal mais velho me falou
das taieiras então eu fui atrás para saber mais sobre as taieiras, fui até Porto
Nacional atrás de pessoas que moravam aqui antes para me orientar sobre
como eram as taieiras, como eram as vestes, os cantos, as danças e a
comunidade daqui [de Monte do Carmo] me ajudou muito a ensinar as danças.
Inclusive as taieiras que participaram da minha festa foram aquelas mulheres
idosas que conheciam mesmo a festa que foram nos ensinar como treinar,
como fazer a roupa. Que foi a tia Júlia, a Aurora que já partiram não está mais
aqui com a gente e muitas pessoas aqui da comunidade que não irei citar
nomes para não correr o risco de deixar de falar nomes de pessoas
importantes que nos ajudaram muito naquela época.

Em sua narrativa fica evidente a devoção por Nossa Senhora do Rosário. Ela ressalta que não
é fácil fazer a festa, porém a festa acontece e não falta nada, pelo contrário é muita fartura de tudo, de
comida, bolos, de bebidas. Ela argumenta que são as bênçãos divinas que estão sobre o festeiro e que
a finalidade da festa consiste em aumentar e renovar a fé das pessoas. A depoente assim resume:
Eu acho que foi uma graça muito grande que eu recebi. Tanto é que eu já
tinha devoção a Nossa Senhora do Carmo, a Nossa Senhora do Rosário, mas
depois de ser rainha passei a ter mais devoção. Nós mudamos daqui da
cidade de Monte do Carmo, mas todos os anos nós retornamos aqui durante
os festejos reforçando nossa fé, pedindo a nossa Senhora para nos cobrir com
seu manto. Nós recebemos uma graça tão grande, nós criamos nossos sete
filhos estão todos formados, estão bem, com saúde. [...]

A depoente ressalta a importância da solidariedade da comunidade carmelitana, uma vez que


pelo fato de não ter nenhuma indicação de rainha, a comunidade abraçou essa causa porque não
queria deixar sem rainha, sem fazer a festa para Nossa Senhora do Rosário. Sempre dizem “não
podemos deixar a festa acabar”; por sua vez, as taieiras significaram a volta de uma manifestação
antiga, que muita gente não conhecia mais. Ela não sabe precisar o período que ficou sem o ritual das
taieiras, embora suponha que foram muitos anos, pois as senhoras informantes na época disseram que
se lembravam das taieiras quando eram jovens71. As taieiras não eram de conhecimento para muitas
pessoas mais jovens da comunidade. “Tinha somente os congos, mas as taieiras não”, diz ela.
A partir daquele momento, todos os anos as taieiras se apresentam durante os festejos de
Nossa Senhora do Rosário que acontece no mês de julho e no de outubro. Ela observa que continua
praticamente do mesmo jeito, com pouca alteração: as roupas coloridas, saias rodadas (foto), os
cânticos mudaram um pouco, o jeito de dançar também continua como antes.

71
Sônia afirma que suas informantes tinham na época [em 1979] aproximadamente 70 anos.
Outros depoentes que direta ou indiretamente participam dos festejos também confirmam o
fato de que foi após a festa feita pela rainha Sônia que as taieiras voltaram ao cenário dos festejos de
Nossa Senhora do Rosário. Isto é, que foi a partir de 1979 a reintrodução da representação da dança
dessas mulheres.
Para afiançar o ineditismo da festa sob patrocínio da rainha Sônia e a novidade que a mesma
teria reintroduzido, o depoente Aristeu72 afirma que começou a dançar congo com aproximadamente
vinte anos e conta que quando começou a dançar não tinha taieiras e só após a festa da rainha Sônia
essa tradição foi inventada:
Quando eu comecei a dançar congo eu não conhecia negócio de taieiras. Eu
não conhecia. Ai teve um festejo aqui de rainha de Sônia de Lulu Pereira. Aí é
que veio taieiras. Eu não conhecia. Nessa época nós não tinha taieiras. Nem
jovenzinho eu não conheci taieira. Não tinha não. Só depois que Sônia foi
rainha é que começou taieiras.
Segundo relatos orais colhidos em Monte do Carmo, ser taieira é uma forma singular de
expressar devoção a Nossa Senhora do Rosário.

Foto 1 - Taieiras – julho / 2008

72
O depoente Aristeu tem atualmente 64 anos de idade.
Na ocasião do cortejo da rainha e do rei, a frente do quadrado onde estes se posicionam, além
da presença das taieiras, doze homens, os congos, em pares e em filas dançam e cantam em
homenagem a rainha. Vestem roupas coloridas com detalhes contratantes. Na cabeça levam adornos,
uma espécie de coroa ornamentada com papel coloridos e penas de aves. Utilizam instrumentos de
percussão como pandeiro, caixa, reco-reco fabricados por eles próprios. Constantemente cantando
cânticos que se repetem e dançando ritmadamente, com evoluções das filas e passos laterais para
frente e para trás manifestam a sua fé.
Todos os anos nos meses de julho e outubro o mesmo ritual se repete. No dia da homenagem
a Nossa Senhora do Rosário, nas primeiras horas da manhã, os congos juntamente com as taieiras
buscam a rainha na “Casa da Festa”, com o objetivo de levá-la até a igreja. (foto 4). Como todas as
demais etapas nas comemorações, esta também é revestida de um ritual seguido a risca pelos
participantes. Antes de se dirigirem à Igreja, os congos e as taieiras tomam café, juntamente com a
rainha. Após o café o rei dos congos que se posiciona na ala da frente canta chamando a rainha para ir
para a igreja, com o seguinte refrão:
São Benedito marinheiro sai pra fora que eu quero ver.
São Benedito marinheiro sai pra fora que eu quero ver. (bis)
Hei Rainha de grande valor (bis)

E os outros congos que se posicionam na ala de trás respondem:


Direto pra igreja visitar Nosso Senhor (bis)

Foto 2 - Cortejo da rainha - Outubro / 2008


No trajeto de ida à igreja as taieiras não cantam, somente dançam acompanhando os congos.
Como bem expressa uma depoente, taieira: “[...] nós vamos caladas, só dançando mesmo, vai lá vem
cá até chegar à igreja [...] e os congos vão dançando e cantando”
As taieiras cantam inicialmente quando a rainha e o rei saem da igreja73 antes de descerem às
escadarias como podemos verificar no trecho a seguir:
Alô, alô quem nos chamou
Rei e a rainha quem convidou
Vamo meu rei e minha rainha
Coroa de prata de Portugal
Vamo meu rei e minha rainha
Coroa de prata de Portugal
Vamo passear na rua festejar Senhora do Rosário
Vamo passear na rua festejar Senhora do Rosário

Posteriormente, no trajeto de volta para a casa da rainha ou Casa da Festa taieiras e congos
revezam durante a cantoria, isto é cada grupo canta separadamente. Formam-se duas alas em que,
como diz uma depoente, duas taieiras puxam na frente cantando e as outras respondem cantando
atrás. Veja trecho a seguir:
Alô, alô quem nos chamou
Rei e rainha quem convidou
Lá no céu tem sete estrelas mais clara do que a lua
Nossa Senhora do Rosário está passeando na rua
Seu rei de congo não pode falar
Vendeu a rainha de Portugal [...]

73
- Após o término da celebração religiosa, na igreja.
Foto 6 - Congos e taieiras – julho / 2008

A cada dia a manifestação das taieiras se populariza e passa a fazer apresentações além do
espaço urbano local. Em 2001 as taieiras e os congos participaram do XXV Encontro Nacional de
Folguedos em Teresina, Piauí. Em setembro de 2002 se apresentaram no I Encontro Folclórico do
Norte e Nordeste, no Tocantins, que foi realizado na capital do Estado, Palmas. Veja no texto a seguir:
Os congos e taieiras de Monte do Carmo vieram com 40 integrantes, para
mostrar a união da súcia com o tambor e os ritos das festas do Carmo. Após
apresentar a rainha e o rei no palco, os congos e taieiras passearam entre o
público, dançando, cantando e saudando os presentes. Em meio ao povo, o
grupo mostrou o melhor da súcia e dos tambores carmelitanos. O ato
relembrou as paradas que o grupo costumeiramente faz nas casas de amigos
durante as festas de Nossa Senhora do Rosário. (ALMANQUE CULTURAL
DO TOCANTINS, 2002, p. 13).
Foto 3 - Cortejo da rainha - Outubro / 2008

Foto 4 - Taieiras – julho / 2008

Câmara Cascudo (2001, p. 289) em leitura de Silvio Romero nos dá notícia que em Lagarto,
em Sergipe, no século XIX, no dia de Reis “celebra-se a festa de São Benedito e apreciam-se então ali
dois folguedos especiais, o dos congos, que é próprio dos negros, e o das taieiras, feito pelas mulatas”.

É razoavelmente unânime entre alguns autores a tese de que as taieiras se acabaram.


Observa-se uma nostalgia quando Edson Carneiro (2008, p. 20) salienta que “as taieiras são simples
recordações”. Esta também é a posição de Alceu Maynard Araújo (2004, p. 83) ao assinalar que “há
um processo evolutivo, dinâmico, transformando as manifestações coletivas do lazer popular. As
danças tradicionais estão desaparecendo; de algumas, como as taieiras, só nos resta o nome”.

Observa-se que Raul Lody (2006, p. 14) induz a uma possível diferenciação particularmente
esclarecedora com relação ao processo de ressignificação do ritual das taieiras. Ao refletir sobre
religiões afro o mesmo autor destaca que as taieiras consiste numa entre outras manifestações que
vivem momentos de diferenciados revivalismo por ações de intelectuais e de organizações
comunitárias que apóiam a construção de identificações e identidades afro.
Esse é um aspecto que nos faz deduzir que o ritual das taieiras, na cidade de Monte do Carmo,
não se perdeu totalmente na experiência da transculturalidade, mas foi ressignificado nas experiências
locais. As taieiras é, assim, o resultado contemporâneo de ritmos e sons que foram misturados e
reconstruída ao longo do percurso histórico, configurando uma identidade entre os participantes e os
apreciadores, como bem argumenta Hall (2000, p. 108)
Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas
são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que
elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de
discurso, praticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As
identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando
constantemente em processo de mudança e transformação.

Para além deste texto, ao observar o significado social da manifestação das taieiras penso que
é possível perceber que, junto às analises historiográficas sobre a construção das identidades negras,
é necessário também construir interpretações e problematizações que nos ajudem a entender as
estratégias individuais desenvolvidas pelos negros e pelas negras na construção e reconstrução do
seu processo identitário.

Foto 5 - Casa da Festa – outubro / 2008

Sem dúvida, o ritual das taieiras pode ser pensado como uma expressão de reconhecimento
das raízes africanas, uma vez que o processo de formação da cidade de Monte do Carmo
desencadeou o contato entre diferentes identidades, especialmente indígenas, africanos e
portugueses. Esse é um desafio para os historiadores dos tempos atuais. Como já mencionei
anteriormente a reflexão desses desafios não comportam nos limites deste texto. Por conseguinte, o
registro do ritual das taieiras abrem novas possibilidades de pesquisas que nos instigam em buscar
compreender historicamente as manifestações culturais construídas por diversos atores sociais.

REFERÊNCIAS

Almanaque Tocantins de Cultura, Ano 4 nº 30, Maio de 2002.

ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore nacional II: danças, recreação e música. 3 ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2004.

CARNEIRO, Edison. Dinâmica do folclore. 3ª Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.

CASCUDO, Câmara Luis da. Antologia do folclore brasileiro. 5ª Ed. São Paulo: Global, 2001.

HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA,Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p. 103-133.

HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

LODY, Raul. O povo do santo. 2ª Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.

RAMOS, Arthur. O folclore negro do Brasil. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

...............................

REDESCOBRINDO O LUGAR NO ENCONTRO DOS ESTRANHOS:


Interação e Sociabilidade

Rogéria Karla Borges do Nascimento74


karlab@secrel.com.br ou jcn@oi.com.br

RESUMO
Esta comunicação versa sobre a sociabilidade desenvolvida entre as famílias
assentadas no Núcleo Barragem que faz parte do Assentamento Santa
Bárbara II, localizado no município de Jaguaretama, Estado do Ceará, e o
Pólo de Divulgação Espírita Dr. Bezerra de Menezes (PODEBEM). O estudo
buscou conhecer os motivos da interação entre assentados e espíritas tendo
como finalidade a identificação da sociabilidade que se desenvolvia entre
“estranhos”, ou seja, os Assentados e os Espíritas, e as transformações que

74
Bacharel em Ciências Sociais; Universidade de Fortaleza
se apresentam na ideologia de vida dos assentados na convivência com os
espíritas. Para além dos motivos, fatos outros vieram somar aos caminhos da
construção do conhecimento a cerca da sociabilidade, desta forma voltei às
origens do lugar que em si apresentava-se impregnado de lembranças, pelo
conteúdo da vivencia singular do Dr. Bezerra de Menezes conhecido como, o
Kardec Brasileiro, que marcará a história do lugar.

Palavras-chave: Sociabilidade, assentamento agrário e lugar.

UM PRIMEIRO OLHAR

No dia 24 de setembro de 2005 às 6:00 horas da manhã, saí de Fortaleza com destino à
cidade de Jaguaretama, enquanto pensamentos mil povoavam minha mente. O que encontrarei lá?
Será que terei alojamento? E as pessoas, me receberão? Como será verdadeiramente uma vila
agrária? Neste clima cheguei à cidade de Jaguaretama. Perguntei onde ficava o Pólo de Divulgação
Espírita Bezerra de Menezes (PODEBEM) e logo me ensinaram como chegar. Percebi que era bem
vinda. Mais adiante uma placa indicava o caminho. Segui 10 Km em estrada de barro rodeei uma
barragem que havia se rompido com as chuvas de 2004.
Com muita dificuldade cheguei às portas do Assentamento Santa Bárbara II, mais
especificamente no Núcleo Barragem, mais adiante avistei as portas do Pólo de Divulgação Espírita
Bezerra de Menezes. Havia lá intensa movimentação, alguns jovens e crianças decoravam o local para
a festa que aconteceria logo mais à noite.
Estes foram o primeiro olha, o primeiro encontro e as primeiras impressões. Neste momento,
iniciei uma admiração profunda por aquele lugar e fui tomada de muita curiosidade. Desejava saber
tantas coisas e o tempo era tão curto, um fim de semana. Então não tinha muito tempo a perder.
Passei logo a me inteira sobre a “Festa” comemorativa do aniversário do Dr. Bezerra, que aconteceria
logo mais a noite e confirmei que eu e meu marido éramos umas das poucas pessoas de Fortaleza
convidadas a participar daquela comemoração, que se tornaria uma referência no meu processo de
descobrimento daquele lugar.
Podemos entender o lugar como sendo algo concreto, produzido pelo homem num processo
em que nos apoderamos e, ao mesmo tempo, transformamos a natureza num espaço que está
intimamente ligado às transformações sociais ao longo do tempo. O que pretendo dizer, ao trazer este
conceito sobre lugar, é refletir sobre a importância e para além da importância a influência da história e
de toda a transformação de que aquele lugar específico - o Pólo de Divulgação Espírita Bezerra de
Menezes - está investido.
Vamos então conhecer um pouco do que chamei de “O Lugar Redescoberto” onde apresento a
história do “Lugar” e que tomo como ponto inicial o ano de 1831.
O LUGAR REDESCOBERTO

Na antiga Freguesia do Riacho do Sangue – hoje Município de nome Jaguaretama, nasceu em


29 de agosto de 1831, com o nome de Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcante, o quarto filho do casal
Antônio Bezerra de Menezes e D. Fabiana de Jesus Maria.
Bezerra, desde pequeno, demonstrou que seu caráter tinha, como linha de conduta, o respeito
e o cuidado com o próximo. Ainda na escola da Vila do Frade – um dos nomes do atual Município de
Jaguaretama - certa feita, seu professor, por motivos maiores, necessitou ausentar-se, de modo que
Bezerra, que contava apenas 11 anos, substituiu seu mestre nas aulas de latim, para que seus colegas
de classe na se atrasassem na matéria.
Constam que, certa feita, uma senhora, com sua filha pequena doente, recorrem ao Dr.
Bezerra e ele as atende, diligentemente. Ao término da consulta, a mãe se desculpa por não ter como
pagar-lhe, e muito menos dispor do dinheiro para comprar o remédio receitado. Foi quando Dr.
Bezerra, compadecido da situação de penúria em que se encontrava aquela senhora, retira do dedo
seu anel de formatura, único bem de valor que possuía, e dá para ela comprar os remédios de que sua
filha necessitava. Esta e outras histórias fazem parte da biografia do homem que, por seu acendrado
amor e dedicação, tornou-se conhecido como o “Médico dos Pobres”.
Adolfo Bezerra faleceu no dia 11 de abril de 1900, no Rio de Janeiro, onde morava desde a
época em que cursou Medicina e cidade pela qual foi eleito vereador e deputado desempenhando o
cargo político para o qual foi eleito com muita dignidade. Depois de sua morte, as histórias a respeito
de sua ajuda aos mais necessitados continuaram a surgir. Os espíritas e não espíritas que pedem
ajuda, através da prece, ao “Médico dos Pobres”, principalmente em assuntos de saúde, dizem que
têm sempre os pedidos atendidos. São muitas as histórias a respeito do Dr. Bezerra, histórias que
aconteceram antes da sua morte e após sua morte.
Com o passar dos anos, o lugar exato de nascimento do Dr. Bezerra tornou-se desconhecido,
sabendo-se apenas que nascera no Riacho do Sangue - um dos nomes que recebeu o lugar até passar
a se chamar, definitivamente, de Jaguaretama.
Em 1973, um jornalista que estava hospedado na Fazenda Santa Bárbara, hoje Assentamento
Santa Bárbara II, em conversa com o Sr. Juarez Olimpio, dono da fazenda, é informado que naquelas
terras nascera, há muito tempo, um espírito de luz. No dia seguinte, o jornalista resolveu ir conhecer o
lugar, encontrando a ruína da casa onde Dr. Bezerra nascera, sendo assim, redescoberto o lugar.
A notícia da descoberta chega à CAPEMI – Caixa de Pecúlio, Pensões e Montepio –
Beneficente, criada em 1960, sem fins lucrativos, tendo como finalidade maior manter as obras sociais
do Lar Fabiano de Cristo, o qual, por sua vez, desenvolve atividades de inclusão social e filantropia,
sendo esta última, uma instituição nascida nas fileiras da Doutrina dos Espíritos
A CAPEMI através de orientação recebida da “espiritualidade”, constrói um hospital e
maternidade, na cidade de Jaguaretama, o qual recebe o nome do Dr. Bezerra e, embora com o passar
dos anos e com algumas limitações continua em funcionamento até a presente data. Com a finalidade
de marcar o local de nascimento do ilustre filho da terra a CAPEMI ergue um monumento, no local
exato das ruínas da casa.
A palavra Monumento, do latim Monumentu, é uma obra ou construção que se destina a
transmitir à posterioridade a memória de fato ou pessoa famosa, segundo o Dicionário Aurélio. O
monumento erguido pela CAPEMI evoca o desejo de que a figura do Dr. Bezerra seja guardada na
lembrança de todos.
Passam-se os anos e o lugar, de difícil acesso, em meio à caatinga, rodeado apenas de
arbustos, além de se encontrar em terra particular, colabora para que, mesmo com a edificação do
monumento, permanecesse esquecido por aproximadamente 22 anos.
Em 1997, o Sr. Benvindo1, na época Presidente da Federação Espírita do Estado do Ceará
(FEEC), convida para conhecer o lugar onde nascera o Dr. Bezerra, o Sr. Antônio Alfredo Monteiro,
então Presidente do Grupo Espírita Paulo e Estevão (GEPE), instituição fundada há mais de cinqüenta
anos, tendo como local de origem, a sede localizada na Rua Pe

1Benvindo da Costa Melo, fundador e primeiro presidente da Federação Espírita do Estado do Ceará,
estando à frente da mesma no período de outubro de 1990, com mais dois mandatos: 1995 a 1996 e
1997 a 1998. Considerado o principal líder da família espírita no Ceará

Antonio, 452, bairro de Piedade, em Fortaleza, a qual, em todos estes anos de atividade profícua, tem
atendido a diversas pessoas nos seus processos de reforma íntima, bem como, no exercício de
atividades humanitárias, usando como ferramentas, o ESDE – Estudo Sistematizado da Doutrina
Espírita; o T.E. – Tratamento Espiritual; o GEM – Grupo de Estudos Mediúnicos; e o CAD – Centro de
Atendimento à Desobsessão, com a efetiva participação de voluntários. Realiza, também, varias
atividades de ação social com crianças, adolescentes e idosos.
O Sr. Benvido, por ocasião da visita, junto com o Sr. Monteiro, busca entendimento com o
proprietário das terras, Sr. Juarez Olimpio, onde se encontram as ruínas da casa do Dr. Bezerra, para
comprar alguns hectares de terra, objetivando reconstruir a casa do “Médico dos Pobres”, de modo a
torná-la um museu. O fazendeiro, no entanto, não se mostra interessado na proposta e trata com certo
desdém, tanto a visita de ambos, quanto sua proposta.
O Sr. Monteiro, que se mantinha calado, apenas observando o diálogo entre o fazendeiro e o
Sr. Benvindo, é indagado pelo fazendeiro Juarez sobre sua origem. É assim que se descobrem, por
terem nascido no mesmo local e serem de famílias conhecidas, fato este que muda radicalmente o
tratamento até então dispensado aos dois visitantes.
O homem do sertão valoriza a família e as tradições e, quando identifica outro, pela origem
familiar, ajuda-o, mesmo não o conhecendo efetivamente, porém, só o fato de pertencer à família X ou
Y é suficiente para dar-se o acolhimento e haver a reciprocidade. Assim, por terem a mesma origem e
serem de famílias conhecidas, o Sr. Juarez não aceitou a proposta de compra, pois não lhe
interessava, mas, mandou um trabalhador seu acompanhar os novos amigos e marcar, na extensão
desejada, o tanto de terra que quisessem, pois a mesma seria doada à Federação Espírita do Estado
do Ceará.
O Sr. Benvindo, sabedor da formação de Engenheiro Militar do Sr. Monteiro, encomenda-lhe o
projeto de construção da “Cidade Nova Era”, a cidade que imaginava, através de sua visão espiritual. O
Sr. Monteiro, por sua vez, não vê possibilidades de realizar tal construção, por dois motivos: as
condições naturais do ambiente de caatinga e as condições financeiras que não existiam, mas, mesmo
assim, desenvolve o projeto e o entrega ao Sr. Benvindo, que permanece na certeza da concretização
de sua visão espiritual.
A intenção do Sr. Benvido não era só de construir o museu dedicado ao “Médico dos Pobres”
mas concretizar o que via através de sua visão espiritual, uma cidade que seria construída naquele
lugar com muitas famílias morando, muitas crianças, muito verde e pássaros e tinha a certeza que a
cidade em breve seria construída, por este motivo pensou ele que deveria compra as terras e construir
as casas.
De modo que, enquanto presidente da FEEC, o Sr. Benvindo reconstrói no mesmo lugar da
antiga morada, um novo prédio, que passou a abrigar o museu, em memória do Dr. Bezerra. A
inauguração se deu em 9 de março de 1997 e, desde aquele momento, iniciaram-se as visitas de
caravanas, formadas de pessoas vindas de Fortaleza, da própria região e de outros Estados.
Neste sentido, o “lugar redescoberto” abriga em si o desejo de pessoas ligadas a Doutrina dos
Espíritos de que, o exemplo de homem, que foi o Dr. Bezerra e que nascera naquele lugar, pudesse
concretizar o sonho, enquanto idealização de uma nova sociedade.
Após a reconstrução da casa do “Médico dos Pobres”, e decorridos quase três anos, dá-se
inicio à construção do Pólo de Divulgação Espírita Bezerra de Menezes (PODEBEM), com o auxílio
financeiro do Lar Fabiano de Cristo (CAPEMI), da Federação Espírita do Estado do Ceará (FEEC), do
Grupo Espírita Paulo e Estevão (GEPE) e de muitos espíritas que acreditaram na visão espiritual do Sr.
Benvido.
DO LUGAR REDESCOBERTO AO RECONSTRUIDO

O Projeto de Assentamento (PA) 2 Santa Bárbara II tem como ponto inicial a tomada de
responsabilidade, por parte do INCRA, de adquirir imóveis com a finalidade de reassentar algumas
famílias, atingidas pelo processo de construção do Açude Castanhão, e outras famílias, que se
encontravam há mais de um ano em luta pelo direito à terra.
Em dezembro de 1998, com a autorização da superintendência do INCRA, um pequeno grupo
de 50 famílias, previamente selecionadas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais, adentra-se às
terras do Sr. Juarez Olimpio, que estavam em processo final de desapropriação. A criação oficial do PA
ocorreu em janeiro de 1999 e o grupo dos 50 assumiu a responsabilidade pela seleção das 178
famílias que comporiam os três núcleos (Núcleo Alegre, Núcleo Campina e Núcleo Barragem) do
Assentamento Santa Bárbara II, sendo que 80 vagas seriam reservadas para os atingidos do
Castanhão.
O nome do PA permaneceu o mesmo da fazenda, acrescido do indicativo II por já existir no
Ceará, no Município de Caucaia, outro assentamento com o mesmo nome Santa Bárbara. O Núcleo
barragem recebeu este nome por se localiza junto à barragem, construída pelo antigo proprietário da
fazenda e recebeu 50 famílias, vindas de Jaguaretama, Banabui, Solonópole e outras localidades.

2 PA – Projeto de Assentamento - sigla utilizada pelo INCRA para se referir a um assentamento agrário,
neste estudo utilizarei a mesma sigla
Dentre as famílias que compõem o assentamento algumas têm a agricultura como atividade
de origem, mas, são trabalhadores que tiveram uma existência pautada, até aquele momento, no
trabalho em terra que não lhes pertencia, sob o regime de arrendamento, ou como empregado.
Algumas dessas famílias já moraram em outros estados brasileiros, como por exemplo, São Paulo, e
retornaram ao lugar de origem.
Segundo a fala do Sr. Xiquexique “– Só vai pra frente quem tem muita fé e força de vontade,
porque senão, desiste antes de começar!”. O “começar”, de que fala o Sr. Xiquexique, é o processo
inicial, quando se entra nas terras, mesmo com a autorização de abrir a porteira e não se tem nada
para “começar”, a não ser um belo projeto, que se apresenta como solução dos problemas, os quais
não se restringem ao econômico, estendendo-se ao ambiente natural. O assentamento situa-se no
Município de Jaguaretama, no sertão do Ceará, a área natural é de caatinga, caracterizada por baixos
índices de chuva, temperatura média de 25ºC e 29ºC e o solo é arenoso e pedregoso.
A beleza do projeto fica no papel por mais de um ano, período em que as famílias se vêem
abandonadas, sem condição de suprir suas necessidades básicas. Após este período, é liberado o
Crédito de Implantação, que se subdivide em três modalidades: Crédito Habitação, para construção
das moradias; Crédito de Fomento, para início da plantação, e, por último, o Crédito Alimentação, que
se destina a assegurar a alimentação, enquanto não é produzida efetivamente no assentamento.
Mesmo com a liberação dos créditos, acima citados, as dificuldades permaneciam, pois nem
todos conseguiam cultivar o roçado e o que se colhia, em muitos casos, não supria as necessidades
das famílias; a distância entre o Núcleo e a sede do município de 10 km torna-se muito maior, quando
têm que caminhar sob o sol causticante do sertão, em busca de trabalho, este, por sua vez, quando
conseguem, é só um “bico”; o que não lhes garante o sustento durante longo período.
Para além das dificuldades, que os colocam à margem dos direitos, alguns acontecimentos
colaboram para que a esperança não se extinga, como por exemplo, o fato de a associação criada no
Núcleo - por obrigatoriedade do próprio INCRA, dada à impossibilidade de ordem administrativa de se
tratar com cada individuo; ser procurada pelo Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), e aí a
esperança se fortalece, encontrando um parceiro na sustentação do Núcleo, através de crédito, a fundo
perdido, para criação de galinha, outro para trabalhar nas áreas de sequeiro e, por último, projeto que
visa à disseminação da plantação de cajueiros, para fins comerciais, sendo que este último,
infelizmente, até o presente momento, não foi liberado.
ANDRADE (2000, p.214) afirma que o sentimento de territorialidade, subjetivado pelas
pessoas, provoca a consciência de confraternização e participação. Estes sentimentos; podemos
supor, foram instigados e despertados gradativamente nos assentados de forma inconsciente, podendo
ser considerado como ponto inicial, o momento da união em regime de mutirão para construção das
moradias, que receberiam suas famílias, e consubstanciados nas junções dos esforços de todos, na
modificação do espaço. O espaço, nesse sentido, é concreto e simbólico, lócus das relações dos atores
sociais
Ao modificarem o espaço, no movimento necessário de transformação do ambiente natural, se
adéquam aos novos aspectos, que passam a fazer parte da comunidade, na dimensão cultural e
política que se instalaria, com a convivência dos “estranhos”, formando-se o ambiente propício ao
surgimento de uma sociabilidade, que tem, inicialmente, como caráter gerador, a carência vivida pela
comunidade.
Na necessidade do Pólo 3, ou seja, de obtenção de mão-de-obra para construção das
edificações, que comporiam o espaço, e dos assentados, em obter trabalho e renda, realiza-se a
construção do espaço em um território que agrega em si, um sentido abstrato de território, onde o
sagrado se manifesta através da pessoa do Dr. Bezerra de Menezes.
Os assentados se vêem no contato com a “ética espírita” 4 da valorização do outro, da
educação com o outro, no respeito às diferenças, na busca de práticas de valorização da vida, num
contexto não dogmático; estabelecendo uma socialização e sociabilidade entre “estranhos”, que
mesmo tendo fins práticos, como requisito do primeiro termo, compraz-se no estabelecimento de laços,
que têm em si a razão, e são fundamentados no segundo termo, ou seja, na sociabilidade.
Utilizo os dois conceitos, socialização e sociabilidade, tomando para o primeiro a compreensão
do processo de aprendizado da vida social, com caráter intrínseco coercitivo, na medida em que visa à
transmissão de conteúdos e a reprodução social de regras de comportamento, enquanto a
sociabilidade dá-se na valorização do contato, da comunicação e da interação.
A sociabilidade pode ser mais facilmente compreendida, se a tomarmos na dimensão do tempo
livre, onde a característica predominante é o prazer de se estar com o outro, sem compromissos. Desta
maneira, podemos apreender o conceito de sociabilidade como processo

3 Pólo é o nome utilizado pelos assentados e espíritas pra referir-se ao Pólo de Divulgação Espírita
Bezerra de Menezes (PODEBEM) e é o termo que utilizarei neste trabalho.
4 Allan Kardec, codificador do Espiritismo, deixou claro que não tinha inventado nada. Apenas

organizou, coordenou, baseado no método teórico-experimental e secundado pelos Espíritos de luz, os


conhecimentos que estavam espalhados pelo mundo. Nesse sentido, o Espiritismo não tem dogmas,
não faz proselitismo e tampouco prescreve ações padronizadas para os seus seguidores. Aponta,
simplesmente os problemas enfrentados pelos seres humanos e lança uma luz sobre eles.

inclusivo. A sociabilidade e a socialização contemplam aspectos diferentes, mas não se anulam, antes
se desenvolvem no mesmo espaço.
A reprodução da “ética espírita”, pelos assentados, vai sendo assimilada, não na totalidade dos
atores sociais, mas, se torna o fio condutor do estabelecimento da convivência entre os “estranhos”,
fator este verificado no decorrer dos três anos de observação participante, através da qual pude
dialogar com assentados, que se intitulam espíritas e os que apenas interagem com o Pólo, por alguns
motivos, os quais se vinculam com a educação, a cultura, o econômico, político etc.

A CONVIVÊNCIA ENTRE “ESTRANHOS”

Mesmo tendo origens semelhantes, nem todos os assentados têm como formação o trabalho
na agricultura, pois uns eram pescadores, outros trabalhadores no Município, há também os que
trabalhavam junto com o pai, em pequenos roçados de propriedade da família, e, ao casarem, viram-se
na obrigação de buscar seu lugar. Para além da questão de suas origens, porém, todos têm em comum
a esperança de melhoria da qualidade de vida para suas famílias.
Ocorre, porém que na junção de pessoas, que não desempenhavam as mesmas atividades
econômicas ou se desempenhavam a realizavam-na com bases diferentes, apresenta-se, como fator
de dificuldade a necessidade de aprender a viver numa comunidade, que tem, como atividades em
comum, o trabalho na roça e o cuidado com os animais, num espaço limitado, em que as condições
naturais são adversas, além da necessidade de as decisões serem compartilhadas por todos.

O mais difícil que a gente enfrenta é que vem o que morava na roça, vem o
vaqueiro.... quer dizer, era o relacionamento.
Eu venho de uma região, a propriedade era pequena mas era do meu pai,
então o meu relacionamento é um, o pescador é outro, aquele que vivia de
aluguel é outro. Então a nossa convivência torna-se difícil, por a gente ter
pensamento diferente, não ter o costume de se relacionar com grupos de
pessoas [...]. (Sr. Palma em 29/ 09/2007)

Observa-se que, as dificuldades vividas nos primeiros anos de implantação do assentamento,


não se limitam à carência ao nível da economia. Vai além e passa pela dificuldade de se relacionar em
grupo, fator de suma importância, haja vista que qualquer melhoria tem que ser pensada, a nível de
comunidade.
Segundo LEVINAS apud Lígia Aguiar (2003) “o nascimento latente do mundo se dá a partir da
morada” lugar onde se desenvolvem os laços de família, de parentesco, de vizinhança, de
reconhecimento e pertencimento, onde os cuidados com a morada propiciam a existência do lugar.
Assim, a vida no assentamento apresenta como realidade, o nascimento de um novo mundo,
onde as moradas são planejadas pelo INCRA, seguindo os moldes de um conjunto habitacional
urbano, consistindo de casinhas com três quartos, sala, cozinha, banheiro, varanda e um pequeno
quintal; as ruas são largas, o local de plantar, longe de casa, em lotes sorteados, colocando juntas,
pessoas que detêm aptidões diferentes e pensam diferente, mas que necessitam aprender a se
relacionar para alcançar a realização do sonho de permanência no PA, o que para muitos significa ter
uma morada, em outras palavras, o sonho da casa própria, que pode ser interpretado como o desejo
de consolidação da vontade de se estabelecer em um lugar, deixando de ser um sertanejo errante,
vivendo ora nas terras de um, ora em outras terras, sem destino, sem lugar onde possa criar raízes.
É o que pode ser percebido na exteriorização do sentimento de alegria da Sra. Flor de Pinhão
“Minha vida no assentamento passou a ser bem melhor, porque antes morava com patrões, hoje moro
em casa própria”.
O mesmo se repete no sentimento do Sr. Imbuzeiro “Uma das maiores alegrias são a boa
moradia e da água em abundância”. O sentimento compartilhado com a noção de cidadania é o que
expressa o Sr. Mandacaru “(...) um cidadão feliz em ser contemplado com trabalho e habitação”.
A referência ao sentimento de alegria, pela conquista da moradia, mistura-se com as
lembranças da dificuldade, do que é ser assentado e não ter um emprego e renda. A dificuldade por
não ter renda propiciada por um emprego apresenta-se nas lembranças dos assentados, em caráter
superior à das dificuldades de iniciar o plantio do roçado. O que seria esperado em tal contexto é
exatamente o contrário, enfim, são pessoas assentadas no ambiente rural, em uma vila agrícola e que
de uma forma ou de outra têm suas raízes culturais atreladas à agricultura.
A pouca lembrança da dificuldade de manter um roçado, para suprir as necessidades das
famílias, denuncia o grau de aproximação das expectativas, que poderiam ser percebidas, junto ao
homem que vive no meio urbano. Esta aproximação da percepção - assentado e preocupação com
trabalho remunerado - justifica-se pelo fato de muitos deles terem vivenciado, por longo período de
tempo, a vida na sede do Município, desenvolvendo ocupações, como servente, pedreiro etc.
Segundo Oliveira Dollfus (1972, p.77) “A sociedade que ocupa espaço rural é muito menos
diferenciada, do ponto de vista profissional, que a sociedade urbana.” A diferenciação, a qual Dollfus se
refere, está intimamente ligada à atividade que é central no meio rural, ou seja, o trabalho agrícola e de
cuidado com os animais, já que, no meio urbano, a divisão social do trabalho se dá numa
especificidade, que busca atender uma necessidade, criada pelo homem, cada vez maior, dessa forma,
o mesmo não deveria acontecer no meio rural.
Neste contexto de desafios é que se dá a interação com o “estranho”, ou seja, com o Pólo,
quando da busca de uma fonte de renda que supra as necessidades básicas. Os assentados, no
entanto, encontram um parceiro que os auxilia na obtenção de renda e no enfrentamento do desafio,
de se entenderem, enquanto grupo, na construção de uma nova realidade.

Foi através do Pólo, que a gente aprendeu a se reunir e a trabalhar em grupo.


Aprendeu. Agora eu faço que nem o outro, que aprendeu a ver as pessoas de
uma forma diferente. Então esse é o mais difícil. (Sr. Palma 29/09/2007)

Segundo Jung Mo Sung e Josué Cândido da Silva (1995), a cultura é uma criação social e é
onde se têm as respostas criativas geradas pelos indivíduos e grupo social frente aos desafios. Estes
desafios podem ser gerados pelas mudanças técnicas e não implicar em contradição com os valores
estabelecidos socialmente.
Outro tipo de desafio é o que vem, em decorrência da mudança de paradigmas, mudanças
essas que alteram a visão de mundo do grupo social, mudanças essas que entram em conflito com
modelos em funcionamento, ou seja, conflito com valores, princípios...
Ainda segundo nossos autores, a cultura é uma criação humana, que funciona como uma
“segunda natureza” e temos dificuldade em percebê-la como tal, pois “parece que é a realidade, e não
uma realidade possível” (SUNG; SILVA, 1995, p. 30), assim sendo, o Pólo, enquanto o “estranho”,
buscou auxiliar os assentados, nas respostas às questões que se apresentavam na dificuldade
econômica, mas, que, em realidade, se fundamentavam na construção dos vínculos sociais entre
assentados.
O Pólo tornou-se, desta maneira, o lugar de referência para a comunidade e freqüentadores; e
é onde se têm os vínculos desenvolvidos no cotidiano, onde se dá o reconhecimento e o pertencimento
entre “estranhos”, permeado por valores desenvolvidos através da alteridade
A alteridade, no que se refere à relação de educação com o outro, ou seja, ao se colocar na
relação interpessoal, no lugar do outro, na valorização, na identificação com o outro e dialogando com
o outro, como a etimologia da palavra em latim expressa, no significado do prefixo alter, a alteridade
assim compreendida é a base das interações entre Pólo e assentados.
A interação entre Pólo e assentados pode ser compreendida, também, como o pano de fundo
no processo educativo, de construção e reconstrução da tomada da cidadania e da percepção da
necessidade de redefinição da “ideologia” de vida, que se concretiza na espacialidade social, de forma
implícita e que não é formulada, mas sentida, como esclarece Durkheim ao afirmar que

Na verdade, porém, cada sociedade, considerada em momento determinado


de seu desenvolvimento, possui um sistema de educação, que se impõe aos
indivíduos e de modo geral irresistível. (DURKHEIM. 1978, p. 36)

Desta maneira, verifica-se que a interação Pólo-assentado, que aparentemente se dá como


resultante da busca de suprir as necessidades básicas, tendo como meio, o trabalho na construção da
Escola Fabiano de Cristo e que viria a desempenhar, como função maior, o processo educativo das
crianças e jovens do assentamento, toma como aparência de identificação não imediata, a construção
da nova realidade social, na qual os elos vão sendo criados interligando uma teia sócio-espacial .

A FESTA: INTERAÇÃO E SOCIABILIDADE

A cultura da região, explicitada por ocasião das comemorações relativas ao aniversário de Dr.
Bezerra, apresenta-se com algumas características; dentre as quais, uma delas é de se revelar como
momento de festa, compreendida como,

[...] divertimento, liberação, relaxamento das tensões sociais, provocadas pela


lutas por poder, ou mesmo uma transgressão simbólica da ordem, que
permitiria a pacificação das pressões sociais liberadas por meio de rituais
(Pinheiro; Freire, 2005 apud Brandão,1989)

Ou seja, é um momento de diversão, no qual se deixa a alegria invadir o ser e o ambiente.


Uma segunda característica, trata-se do momento de ligação com o Divino, similar aos festejos
religiosos, nos quais o profano e o divino se entrelaçam. Uma terceira característica que se apresenta,
com importância para compreensão da sociabilidade desenvolvida é o fato de ser a ocasião de maior
interação entre assentados e espíritas (Pólo).
Simmel (2006) discorre sobre a sociabilidade e apresenta o impulso sociável, como a
substância da sociabilidade. No entendimento do autor, a sociabilidade tem como princípio
proporcionar aos indivíduos, valores sociáveis - entendidos como liberdade, alegria, vivacidade – de
maneira recíproca e em “quantidades” máximas.
Refletindo sobre a substância constituinte da sociabilidade, temos o momento festivo do mês
de agosto, no qual se pode constatar o impulso sociável descrito por Simmel, de maneira a concretizar
o êxito deste impulso, que é, enfim, o principio da sociabilidade formulada por nosso autor.
Georg Simmel parte do pressuposto de que a sociabilidade tem a sua estrutura, fundada em
bases democráticas e num mesmo estrato social, dada a igualdade entre indivíduos. Nesta concepção,
a sociabilidade se apresenta quase como algo “natural”, pois os indivíduos não necessitam se despir do
que é material e do que é pessoal, haja vista as diferenças serem mínimas, em decorrência da
igualdade social.
Para além deste entendimento, Simmel não descarta a formação da sociabilidade, entre
indivíduos de estratos sociais diferentes, apenas acrescenta a esta o fato de ser constrangedor e poder
causar contradições. Ora, aí se encontra o fator diferencial da sociabilidade desenvolvida entre
assentados e Pólo. Entre os assentados, temos a sociabilidade, que se desenvolve entre indivíduos do
mesmo estrato social, e que, democraticamente, partilham a sociabilidade com o Pólo (espíritas), que,
em grande maioria, são pessoas de estrato social distinto.
A construção da sociabilidade entre assentados e Pólo e que toma o caráter descrito por
SIMMEL, “A sociabilidade cria, caso se queira, um mundo sociologicamente ideal: nela, a alegria do
individuo está totalmente ligada à felicidade dos outros.” (2006, p. 69), a alteridade apresenta-se
enquanto processo facilitador da construção e desconstrução da idéia que os homens fazem de si,
permitindo o êxito do impulso social, em que cada indivíduo garante os valores sociais, em quantidade
compatível com o recebido.

A FESTA EM 2005

A primeira festa, em comemoração ao aniversário de nascimento do Dr. Bezerra de Menezes,


aconteceu em agosto de 2005. Sua singularidade reside no fato de a organização ter como
centralidade, os assentados. Foi uma festa feita por eles e para eles, porque, neste ano, a seca na
região castigou por demais os assentados, em especial os do Núcleo Barragem, que viram a barragem
Santa Bárbara romper e as águas levarem todo o equipamento de irrigação, junto com a plantação.
Foram momentos de desespero para as famílias, ao anoitecer, a tristeza, semelhante às águas
que invadem todos os cantos, invadiu o Núcleo, tomando as famílias de profunda tristeza. Como
conseqüência do acontecido naquela noite, não teve luz, tudo ficou escuro; as pessoas chorando nos
alpendres das moradas, pensando no que seria delas agora.
No dia seguinte, não se tinha água e luz e não havia como passar para o outro lado, em
direção ao Município de Jaguaretama. Ninguém ia e ninguém vinha, era gente vindo de toda a
redondeza para olhar à distância, as águas indo embora e levando todas as esperanças dos
assentados.
Muitas famílias pensaram em ir embora, umas foram, outras ficaram e tiveram que enfrentar as
dificuldades,como, por exemplo, verem os animais a passarem sede, porque não tinha água nem para
as pessoas, muito menos para os animais. Como solução, tinha que andar léguas e léguas, até a
localidade de Timbaúba, para que os animais não morressem por falta de água.
No entanto, o sertanejo, que segundo o dito popular, “é forte”, conseguiu transformar toda a
dificuldade, vivenciada ao longo de 2005, em uma linda festa, da qual pude participar, momento em
que pôde ser percebido o processo de mudança que acontecia nos indivíduos, expressando a idéia do
homem bravo que tinham de si mesmos. O pátio externo da escola Fabiano de Cristo que se localiza
no Pólo, foi tomado de cadeiras, postas em fileira, para que a platéia pudesse assistir às apresentações
artísticas; uma cortina foi improvisada com retalhos, em fitas, e fixaram-se duas cartolinas, onde se
viam desenhos feitos por uma jovem assentada, retratando o Dr. Bezerra e a paisagem do Pólo.
A Festa inicia-se com a apresentação de uma peça teatral, encenada, escrita e dirigida pelos
agricultores. A peça falava do homem que tinha sido o Dr. Bezerra. Aconteceram algumas outras
apresentações artísticas, que envolveram toda a platéia. À medida que o tempo passava e as
apresentações aconteciam, mais pessoas da comunidade chegavam e se envolviam com o clima, que
é quebrado, apenas, quando adentram no recinto o Prefeito do Município de Jaguaretama e sua
comitiva, que tomam seus lugares junto aos assentados para participar da festa que comemora o
aniversário do Dr. Bezerra de Menezes, filho ilustre da cidade, e coincidentemente a data do
nascimento do “Médico dos Pobres” é a mesma do aniversário do Município de Jaguaretama, ou seja,
29 de agosto.
Ao começar a apresentação mais esperada da noite, todos se movimentam, principalmente a
meninada, pois é hora do Boi dos Mascarados, que chega e contagia a todos com a ‘Dança da
Banana’. Em seguida, acontece a apresentação de dois repentistas da região, que fazem uma
homenagem ao Dr. Bezerra e engrandecem, por palavras, o apoio do Pólo à comunidade.
Participa da festa uma média de 120 pessoas, entre adultos, jovens e crianças e todos
compartilham de um jantar preparado por senhoras da comunidade.
Nos anos de 2006 e 2007, as condições climáticas e a reconstrução da barragem permitem
que caravanas vindas de Fortaleza possam participar da Festa, que seguem os moldes de 2006, ou
seja, a organização, as apresentações e o jantar, tudo feito pelos assentados.
Assentados e espíritas vindos de Fortaleza sentam-se juntos, interagindo. Divertem-se, jantam
e participam da Festa, demonstrando a sociabilidade desenvolvida ao longo dos anos.
A socialização impõe-nos regras e normas de conduta social, que por seu caráter coercitivo
apresenta-se, em dado momento, como o divisor de estrato social, ou melhor, como discriminatório. A
sociabilidade apresenta-se como propiciador do alívio das tensões sociais, sem, contudo, desprender
os atores da realidade. Apresenta-se também como mecanismo de inclusão social sem contudo
desconsiderar a existência dos conflitos, naturais da convivência social.

Á GUISA DE REFLEXÃO

Um lugar que guarda em si uma memória, que já não é sua, mas de muitos, um lugar que
influência e é influenciado, um lugar dos iguais, que se estranham e de estranhos que buscam se
igualarem, esta foi a percepção que tomou a observação, e que possibilitou a identificação da
sociabilidade, que se desenvolveu entre “estranhos e estranhos”.
Mas que sociabilidade é esta? Sim, pois há vários tipos de sociabilidade. Temos a que se
desenvolve entre os índios Kaxinauá, descrita por Cecília Mccallum (1988) temos os exemplos dados
por Georg Simmel em sua obra Questões Fundamentais de Sociologia (2006), e muitas outras
descritas por vários outros pesquisadores e estudiosos.
No entanto, a sociabilidade desenvolvida entre assentados e Pólo é a resultante de um
processo de reconhecimento, em vários níveis, que vão do econômico ao subjetivo individual e coletivo,
passando de um ao outro, sem ter contudo, uma linha rígida a seguir.
Podemos, também, aferir que a sociabilidade surge em decorrência do processo de
socialização e este é o ponto inicial da transformação, pelo qual, as pessoas estão a passar, cada um
em seu tempo, uns mais rápidos, outros um pouco mais lentos.
Um fator importante, que compõe os vieses da construção da sociabilidade analisada, é o
processo de construção do conhecimento, através da alteridade, no respeito e aprendizado com o
outro.
O que transpareceu, com muita propriedade, nas observações, foi a busca do respeito e
reconhecimento de si e do outro e, para além da alteridade, o processo de reeducação, ou, dizendo de
outra forma, de mudança de “ideologia” que se fundamenta na educação, a qual se apresenta em
todos os níveis da construção cultural dos assentados, e que se mostra como motivadora da Doutrina
dos Espíritos, representada pelo Pólo e exemplificada na figura do Dr. Bezerra de Menezes.
Um exemplo claro do que denomino de “ideologia” é o entendimento do homem do sertão que
toma para si o atributo de que ser forte seja sinônimo de apresentar-se de modo rude, pois isto é ser
homem, de não levar desaforo para casa, como um senhor relatou que antes tudo se resolvia na ponta
da peixeira; sentar e conversar os problemas ou apenas ouvir o desabafo do outro que está irado não é
coisa de homem.
Ao afirmar que a educação é o ponto central da Doutrina, não implica em aferir que a
pretensão do Pólo é transformar a todos em espíritas, e esta afirmação fundamenta-se na própria
centralidade, que é a educação, processo pelo qual o homem torna-se, através da razão, senhor de si
mesmo. Neste processo, a educação toma, em primeiro momento difundir valores que facilitem a
socialização dos atores sociais, e num segundo momento o processo concreto de educação não no
sentido da educação escolar, mas o que permite a tomada de cidadania com seus deveres e direitos.
A sociabilidade, então, desenvolvida entre assentados e Pólo, busca, em realidade, ser o
momento de interação, em que a alegria e o entusiasmo são os geradores dos impulsos sociáveis, que
independem do estrato social a que se pertence.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Lígia Brochado. O LUGAR E O MAPA. CAD. CEDES, Campinas, v, 23, n. 60,2003.
Disponível em: http:// scielo.br/hph?script=sci_arttex&pid=s0101-32622003000200002. Acessado em
27 de setembro de 2007.

ANDRADE, Manuel Correia. TERRITÓRIO: Globalização e Fragmentação. (Org) Milton Santos, Maria
Adélia A. de Souza e Maria Laura Silveira. 5ª ed. São Paulo: HUCITEC. 2002.

DOLLFUS, Oliver. O ESPAÇO GEOGRÁFICO. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo:
Difusão Européia de Livros, 1972.

DURKHEIM, Émile. EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA. 11ª. São Paulo: Melhoramento [Rio de Janeiro]
Fundação Nacional de material Escolar, 1978.

McCALLUM, Cecília. ALTERIDADE E SOCIABILIDADE KAXINAUÁ: Perspectiva de uma antropologia


da vida diária. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1998, vol. 13, n. 38.

SIMMEL. Georg, QUESTÕES FUNDAMENTAIS DA SOCIOLOGIA. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

SUN. Jung Mo; SILVA. Josué Candido da. CONVERSANDO SOBRE SOCIEDADE E ÉTICA. 2ª ,
Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

...............................
A Presença Espírita no Maranhão na Década de 1930

Tayssa Lília Conceição Costa75.


tayssalilia@yahoo.com.br.

Resumo

O presente trabalho refere-se ao estudo histórico do Espiritismo no Maranhão


no século XX. Trata-se dos resultados parciais da pesquisa em andamento
sobre o campo religioso maranhense, no contexto social da década de 1930.
São analisados a criação, e o desenvolvimento da Escola Espírita Maranhense
denominada Vianna de Carvalho. Verificamos as formas de adaptação,
resistências, estratégias, práticas e discursos voltados à propagação da
crença espírita no contexto maranhense, bem como as visões de mundo
articuladas. A pesquisa situa-se nos campos da História Cultural e da História
das Religiões.

Palavras-chave: Espiritismo, Maranhão, Campo Religioso, História Cultural,


História das Religiões.

O seguinte trabalho é referente a um projeto de pesquisa, no qual meu objeto de estudo é o


espiritismo no Maranhão no século XX. Este trabalho em específico trata do contexto social em que se
enquadra a religião espírita na década de 30, dando-se ênfase aos acontecimentos relevantes,
anteriores e posteriores da década. Assim o trabalho expressa a situação da religião da terceira
revelação no sentido de como à sociedade não espírita era vista e suas formas de resistências para a
propagação de sua fé. Como destaque apresento a criação da escola espírita do Maranhão, Vianna de
Carvalho, e seu desenvolvimento.
No quinto congresso internacional de Espiritismo (Barcelona, 1934) reconheceu-se oficialmente
a cisão nos meios espíritas internacionais. Mesmo essas ramificações tendo por base o estudo ou as
manifestações dos espíritos, seu objeto de estudo será especificado segundo a região e a forma a
serem empregados. No Maranhão adotar-se-á o espiritismo Kardesista, que nasceu na França e teve
como precursor da religião Leão Hipólito Denizart que adotou o pseudônimo de Allan Kardec. Tal
ramificação da religião espírita se baseava na revelação dos espíritos.
No Maranhão os espíritas viam a religião como um idioma divino, caritativo e universal, pois
era facilmente entendido por todos os homens, crenças e raças. Essa visão de doutrina da caridade era

75
UFMA - DEHIS/GPHR; Orientação: Prof. Dr. Lyndon de Araújo Santos
bem nítida, pois era identificada como doutrina do bem, não que as outras também não expressassem
o mesmo, mas é que apesar de ser muito criticada, principalmente pelos católicos da época, os
espíritas se posicionavam mais no intuito de se defender do que de atacar. É como se a doutrina
espírita possuísse uma autoconfiança considerável, que bastava para que se seguisse tal fé, ou
apenas por constituir um grupo menor diante dos católicos, sem muitas dimensões influentes.
Os espíritas baseavam-se nos ensinamentos de Allan Kardec, que lhes informava “da
importância de se permanecer do lado do bem, dos espíritos, tornando-se invencíveis, benevolentes
afim de que pudessem quebrar as armas da maldade preparando-se para o futuro que com certeza
lhes pertenceria.”1
O jornal a “Época” da cidade de Viana, no Maranhão, no ano de 1929 publica uma nota
detalhando o contexto em que se encontravam todos aqueles que simpatizavam ou faziam parte da
religião conhecida como terceira revelação. No inicio da nota o jornal conta a história de uma senhora
que residia na cidade de Petrópolis no Rio de Janeiro e mantinha sessões espíritas em sua residência,
sem que seu esposo soubesse. Passados alguns meses ela dizia ouvir vozes, barulhos, ou seja,
perceber a presença dos espíritos. Quando seu esposo soube a internou em um hospício, mas antes
lhe arrancou um dos olhos e furou o outro, pois segundo ele, ela não precisaria dos olhos para se
comunicar.
Apesar de não se localizar no Maranhão, tal fato expressa a visão que principalmente a Igreja
Católica tinha dos espíritas independente da região. Dessa forma estes eram tidos como causadores
de males, além de loucos e pecadores. Este fato que relaciona uma mulher lembra as primeiras visões
que deram origem ao movimento espírita com as irmãs Katherine e Margaret Fox. Os acontecimentos
aconteceram em Hydesville, Rochester, Estados Unidos, mas em decorrência da caracterização de
mentirosas ou mesmo de bruxas o fato foi mais considerado como oportunismo, o que minimiza a
validade do acontecimento.
A influência da Igreja era de tamanha dimensão que causava reflexos na justiça civil, pois o art.
157 do código penal brasileiro da época considerava as práticas espíritas e qualquer ação que se
assemelhasse como ilícita, sendo aplicadas ao infrator penas que poderiam durar de um a seis meses
de prisão ou multa de 100 a 500$000.
O primeiro código penal republicano (1890), entre os crimes contra a
saúde publica o Art. 157 condenava sua prática, bem como a da “magia de
seus sortilégios” e o uso de “talismãs e cartomancias”, para despertar
sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou
incuráveis enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública”. Ao lado dele
dois artigos intimadamente associados: o artigo 156 punia a prática da
medicina por indivíduos desprovidos de título acadêmico e o artigo 158 punia
o exercício do “oficio assim denominado de curandeiro” (GIUMBELLI,
Emerson _Heresia, doença, crime ou religião: o Espiritismo no discurso de
médicos e cientistas sociais pág.39)

O Pe Dionysio J. Algarvia, no seu livro “O Espiritismo Nada tem de Espiritismo” com o intuito de
enfatizar os males da prática espírita discorre à cerca do mesmo apontando fatores vistos como
negativos, pois vão de encontro com as bases espíritas: anti-moral, materialista, anti-evangélico... Cita
também práticas ilícitas: o curandeirismo e o charlatanismo, ou seja, o falso médium, como ele destaca
em uma nota do jornal o “Lábaro”2 que conta a história de Estanislau Jacob Arantes, condenado em
São Paulo a um ano e nove meses de prisão por ter se passado por médium, que se aproveitou
durante o apagar das luzes na sessão para roubar do seu cliente a quantia 1:500$000. Assim conclui o
Pe a nota: “ainda é muito que não disse, ou que o outro não acreditou, terem sido os espíritos que
aiaram os cobres, mas isto é o espiritismo_ exploração e roubo.”3
Pierre Bourdieu em sua obra “O Poder Simbólico” define o que venha a ser este: “É, com
efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem
saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. 4 Essa era a relação existente entre Igreja
Católica e a sociedade. Seu discurso era tido como legítimo assim esse poder estruturante, que
construiu a sua própria realidade, não permitia que a sociedade vivenciasse ou apenas pudesse se
aprofundar no conhecimento de outras doutrinas.
A sociedade mantinha uma posição de conformismo, no sentido de submissão, com os
espíritas a situação não foi muito diferente, o jornal “O Semeador” diz o espiritismo ser uma
continuação do cristianismo, no sentido de se possuir um propagador da fé, que tinha como missão a
renovação dos votos da doutrina, no caso do Cristianismo Jesus Cristo e o Espiritismo Allan Kardec,
além da semelhança nos conceitos como: demônios, alma, crença em um Deus...

Foi entretanto Allan Kardec o escolhido, o designado, o aceito, para vir


a terra, codificar essa gigantesca obra, essa transcendente e singela filosofia,
essa sã moral, essa luminosa ciência dos espíritos. E ele soube cumprir sua
missão, tomando palavras, que foram uma realidade em sua passagem entre
nós _ trabalho_ solidariedade e tolerância _ Pelo trabalho ele produziu os
frutos que hoje saboreamos; _ Pela solidariedade ele reuniu-nos em torno de
seus ensinamentos e pela tolerância ele reunirá toda a humanidade, todas as
religiões, todas as crenças, todos os credos em um só. (O Semeador, 1° de
julho de 1933).

Essa semelhança atribuída ao cristianismo, também pode ser vista como uma ação para
contornar as repressões sobre a religião espírita, possibilitando uma coexistência. Segundo Bourdieu:

A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante


(assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e
distinguindo-os das outras classes...). Este efeito ideológico produto da cultura
dominante dissimulando a função de divisão na função de comunicação: a
cultura que une (intermediário de comunicação) é também a cultura que
separa (instrumento de distinção e que legitima as distinções compelindo
todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem-se peã sua
distancia em relação à cultura dominante). (BOURDIEU, Pierre. O poder
simbólico pág.10)

Esta cultura dominante identifica-se com a Igreja católica que reunia um grande número de
fiéis e mesmo sendo considerada como predominante não conseguiu barrar as fragmentações, que
geram hierarquias dentro e fora da mesma, havendo a exclusão daqueles que não compartilhavam
com as mesmas idéias. Esse pensamento atribui uma característica positivista a Igreja, pela forma
como seu discurso é imposto, ou seja, como verdade absoluta. Para além o espiritismo resistiu com
jornais de cunho propagador da fé espírita como o Semeador e Pharol, além de uma escola espírita
(Vianna de Carvalho), que tinha também por objetivo educar as crianças segundo as regras da doutrina
de forma a conservar livrando-as dos espíritos maus e as preparando para uma suposta nova geração
que seria marcada pela tendência moral, intuitiva e de caráter inerente à pessoa. Tanto para escola
quanto os jornais o foco nas crianças e jovens previa a propagação da mensagem de que:

(...) a religião do sentimento, a religião em fim da caridade, em que se ama


verdadeiramente a Deus em que fraternalmente solidários e igualitários nos
irmanamos entre todos aqueles que livremente amam e crêem no amor do seu
próximo retribuindo com afeto, com gratidão, com reconhecimento. (O
Semeador 1° de junho de 1933, diretor _ João da Silva Santos)

Podemos pensar também no viés de que a doutrina espírita possui várias formas de
compreensão, pois além de movimento religioso pode ser considerada uma filosofia, ou ciência quando
partimos do pressuposto de que os fenômenos espíritas são comprováveis.
O espiritismo, enquanto ciência estuda e pesquisa os fenômenos espíritas como fatos naturais
e universais perfeitamente observáveis, e prova ou tenta provar que os espíritos existem e são imortais,
sendo eterna a vida. No campo científico faz a prova da sobrevivência da alma.
Enquanto filosofia compreende todas as conseqüências morais que emanam da interpretação
dos fatos naturais e universais, permitindo ao homem chegar, pela reflexão e pela razão, à verdade a
respeito de si mesmo, da vida, do mundo e de Deus. Como filosofia vem trazer luz sobre problemas
como a existência de Deus, da alma, da reencarnação, do livre-arbítrio e do determinismo, das causas
e objetivos desta existência na terra.
O espiritismo como religião compreende os deveres do homem para com Deus, não admite
liturgia ou culto exterior, prega a fé racionada e repousa sobre as bases fundamentais da crença
religiosa: Deus, a alma e a vida futura. Como religião orienta o homem no sentido de ensino moral do
Evangelho de Cristo, e é a revivescência do cristianismo na pureza e na simplicidade dos tempos de
Jesus e da época apostólica.
O livro psicografado pelo médio Chico Xavier “O Consolador” exemplifica de forma bastante
nítida essas compreensões, mas não de forma separada como foram detalhadas, mas interligadas
visando o bem humano.

A religião é o sentimento divino, cujas exteriorizações são sempre o Amor, nas


expressões mais sublimes. Enquanto a Ciência e a Filosofia operam o trabalho
da experimentação e do raciocínio, a Religião edifica e ilumina os sentimentos.
As primeiras se irmanam na sabedoria, a segunda personifica o Amor, as duas
asas divinas com que a alma humana penetrará, um dia, nos pórticos
sagrados da espiritualidade. (Revista o Reformador, Novembro de 2005)

Seguindo a perspectiva vista no trabalho percebemos a rejeição de toda e qualquer


manifestação espírita, o que não foi um empecilho, para a sociedade espírita (no caso a maranhense),
diante da fé que estes expressavam assim a religião conseguiu resistir aos obstáculos e propagar os
lemas de caridade, igualdade e fraternidade se solidificando e anos depois conquistando seu espaço.
No ano de 1931 o Jornal “O Pharol” trás a idéia de se fundar uma escola espírita maranhense,
a fim de livrar as crianças desprotegidas da vadiagem e do maior mal a ignorância. Mas o grupo
espírita não possuía verba, então imprimiam circulares com o nome de “Jesus amigo das criancinhas”,
e em nome de “Vicente de Paulo”, espírito da caridade, solicitavam um auxilio aos que além do
necessário tinham o supérfluo. Assim a escola foi criada recebendo o nome de “Vianna de Carvalho”
em homenagem ao major de engenharia do exército, foi atribuída devido à contribuição no ensino e
propagação da fé espírita.
O Centro Espírita Maranhense em decorrência principalmente dessa escola foi insultado,
conjurado e caluniado pelos denominados inimigos da luz, que não foram bastante para barrar o
desenvolvimento da escola que teve sua primeira turma formada em 15 de novembro de 1931.
Em primeiro de Março de 1932, Placido Camões fundava na Escola “Vianna de Carvalho”, um
curso primário gratuito para meninas pobres designando-o: “Curso feminino Maria O’ Neil, assim como
o major Vianna de Carvalho a escritora lusitana também recebeu essa homenagem em decorrência de
sua contribuição à fé espírita, percorrendo quase todo o Brasil com o intuito de propagar a fé”.
Dessa forma pressupõe-se que a escola no início era composta de meninos e somente depois
de meninas, que não possuíam recursos próprios para estudar, o que nos remete ao lema da doutrina
espírita de caridade.
A gratidão mede o nível moral duma alma, ser grato não significa dar o mesmo
que recebemos, mas sim em demonstrar que o que com dignidade e lealdade,
sem jamais o desmentirmos com nossos atos. (O Semeador)

Há dados referentes nos três anos que se segue ao desenvolvimento da escola. Sendo que há
registros de matriculas de 137 meninos nos anos de 1927-1929, surgindo uma dúvida se antes da
publicação oficial da escola, a mesma já existia ou seu projeto já estava sendo desenvolvido.

Dados da freqüência de meninos e meninas com bom aproveitamento:


Ano N° de alunos
1927 1.117
1928 2.960
1929 4.387
1930 8.838
1931 13.657
1932 15.658

Como podemos notar houve um aumento considerável nos anos que se sucederam o que
demonstra uma boa administração de Placido Camões e da “aceitação pela sociedade”, pois mesmo
com os obstáculos houve o desenvolvimento da escola, sendo um dos principais motivos o aumento da
freqüência dos alunos.
Depois de um certo tempo mais especificadamente no ano de 1932 Placido Camões renuncia
a presidência do Centro Espírita Maranhense em decorrência de problemas de saúde, sendo
substituído pelo vice-presidente Abdigar Brasil Correia, as informações sobre as condições financeiras
do Centro Espírita demonstram que seu saldo era satisfatório o que indicava a possibilidade de
continuação da escola, dois balancetes são apresentados, identificando o saldo da livraria.

Livraria
De diversos por venda de livros...................................112$900
Valor de 224 volumes para venda.................................559$800
672$700

(O Semeador, 31 de dezembro de 1932)

Livraria
Valor de 216 volumes para venda...............................605$600
Receber por livros vendidos.........................................246$500
A receber de livros vendidos.......................................43$500
895$600
(O Semeador, 28 de fevereiro de 1933).

Com a saída de Camões muitos desacreditam que a mesma fé e o bom andamento do centro
espírita e conseqüentemente da escola ira continuar, começa aqui uma crise que pode ter sido um dos
motivos que culminaram com o fim da escola, mas devemos lembrar que o momento histórico indica a
aproximação do período da ditadura já possibilitando impactos.
Com a fundação dessa escola e o bom trabalho de Placido Camões no Centro Espírita
Maranhense outros centros, escolas e assim outros estados foram contagiados pela vontade e energia
espírita resultando na criação de escolas primarias para o ensino e jornais gratuitos, conhecimentos
doutrinários e científicos foram espalhados por toda parte.
A educação dos jovens e das crianças dessa forma era de fundamental importância para a
propagação da nova revelação e assim da era nova que se daria pelo afastamento do mal, pois como
dizia os próprios jornais da época é necessário que se povoem espíritos bons, tanto encarnados quanto
desencarnados.
As informações sobre a escola espírita “Vianna de Carvalho”, divulgada nos jornais, não
deixam bem claro o conteúdo a ser desenvolvido, pois de forma mais geral sabe-se que tentavam
preservar e propagar a fé espírita, mas não há detalhes de material ou metodologia. Quanto ao público
sabe-se apenas que se direcionava a jovens, mas não sabemos se praticavam antes o espiritismo se
ingressaram por necessidade (os desfavoráveis financeiramente) ou ainda se haviam pessoas de
outras religiões (o que seria pouco provável diante do preconceito).
Com relação à própria escola há lacunas como o local de funcionamento assim como o
período. Essa dúvida talvez seja explicada no caso de a escola ter funcionado secretamente, o que vai
de encontro com as informações divulgadas nos jornais espíritas. Quanto a sua data de fundação nos
resta outra dúvida, pois o número de alunos divulgado no ano de 1927 poderia determinar tal data,
sabe-se também que a primeira turma formou-se em 15 de novembro de 1931, o jornal o Pharol trás
essa noticia como uma vitória diante das calunias e dificuldades. Detalha-se na manchete o discurso do
aluno José Ribamar Lopes, que expressa grande felicidade e dirige vários agradecimentos.
Eurípedes Barsanulfo nasceu em na pequena cidade de Sacramento, Estado de Minas Gerais
em 1o. de abril de 1907, e desencarnou na mesma cidade, aos 38 anos de idade, em 1° de novembro
de 1918. Através de informações prestadas por um dos seus tios, tomou conhecimento da existência
dos fenômenos espíritas e das obras da Codificação feitas por Allan Kardec. Diante dos fatos voltou
totalmente suas atividades para a nova Doutrina, pesquisando por todos os meios e maneiras, até
desfazer totalmente suas dúvidas, começou sua longa jornada de propagação da fé espírita com a
fundação do o "Grupo Espírita Esperança e Caridade", no ano de 1905. E em 1° de abril de 1907
conseguiu um grande feito fundando a primeira escola espírita brasileira o Colégio Allan Kardec que
funcionou com bom aproveitamento até o dia 18 de outubro, quando foi obrigado a cerrar suas portas
por algum tempo, devido à grande epidemia de gripe espanhola que assolou nosso país.
As duas escolas sofreram obstáculos parecidos como a forte perseguição da igreja o que não
representou um entrave definitivo para os seus precursores que são tidos como guerreiros diante dos
projetos que fizeram e alcançaram, representando muito para a doutrina espírita, ou seja, símbolos de
que a fé espírita estava se propagando e mais ainda se solidificando.
Na atualidade a educação espírita ainda permanece com os mesmos objetivos de propagação
da fé e solidificação das idéias de fraternidade, caridade... Construindo suas bases cientificas e
filosóficas.
Ney Lobo foi um oficial reformado do Exército no posto de coronel, licenciado em Filosofia pela
Universidade Federal do Paraná. Possui grande carga bibliográfica que segue desde livros didáticos a
artigos sobre a doutrina espírita um de seus mais esperados trabalhos trata da "Prática da Escola
Espírita: A Escola que Educa", livro que explora um amplo campo da educação espírita sua principais
discussões são:
• Tem suas diretrizes alicerçadas numa Filosofia Espírita da Educação;
• Operacionaliza a educação espírita;
• Estabelece a primazia da educação sobre a instrução;
• Promove a fusão da escola com o lar;
• Propicia a emersão das perfeições potenciais;
• Viabiliza o regime escolar de tempo integral;
• Institui o método de ensino em três dimensões (atividade, cooperação e
individualização), o currículo centrado na educação do espírito e instaura a
disciplina sustentada pela reparação das faltas cometidas;
• Mantêm, permanente e efetivamente, nos educadores, os fins da Educação
Espírita (o desenvolvimento da espiritualidade na ordem individual, o mundo
futuro de regeneração na ordem social, o puro espírito na ordem individual final e
Deus na ordem absoluta e suprema);
• Estabelece o princípio administrativo da direção colegiada em todos os níveis; e
implanta o princípio da heteroavaliação do processo de autosuperação dos
educandos.

Diante destes fundamentos apresentados por Ney Lobo e os próprios argumentos sugeridos
pelo trabalho percebemos que a educação espírita não permanece apenas como uma doutrina
religiosa mais em uma amplificação na família cercando também a sociedade orientando moralmente
atentando para a disciplina e promovendo uma interligação entre os espaços habitados pelo ser como
e principalmente a família e a escola bases que guardam os princípios filosóficos muito explanados
pela pedagogia espírita.
Sendo importante destacar o conceito de espiritismo para melhor entender a relação entre
mundo real e mundo espiritual, Allan Kardec assim o define: “O espiritismo é uma ciência que trata da
natureza, da origem e da destinação dos Espíritos, e das suas relações com o mundo corporal”. 5
Esta forma de se ver o espiritismo, ou seja, como fato natural, também se aplica a sua forma
de instrução como afirma Kardec:
Àquele que deseja se instruir, direi: Não se pode fazer um curso de
Espiritismo experimental como se faz um curso de física ou química, já que
não se é jamais senhor para produzir os fenômenos à vontade, e que as
inteligências que lhes são agentes, frustram freqüentemente todas as nossas
previsões. (KARDEC, Allan; O Que é o Espiritismo_ pág. 22).

Assim fica nítida a interligação entre as formas de compreensão espírita, filosófica, cientifica ou
religiosa que seguem pressupostos naturais, a educação assim faz parte de um contexto que é
dinâmico, mas que no caso da instrução espírita tenta conservar os lemas de igualdade, fraternidade e
caridade, bases que visam à propagação da fé espírita.

Notas:
1_ O Semeador 1° de junho de 1933, diretor _João da Silva Santos.
2_Jornal publicado em São Paulo, de número 20-10-922.
3_ ALGARVIA, Pe Dionysio J. ; O Espiritismo Nada tem de Espiritismo _ pág. 134. _ BOURDIEU,
Pierre; O Poder Simbólico_ pág. 7 e 8.
5_ KARDEC, Allan; O Que é o Espiritismo_ pág.10.

Bibliografia:
Jornal o Semeador; 1933.
Jornal o Pharol; 1931-1933.
Jornal a Época; 1929.
BOURDIEU, Pierre; O Poder Simbólico_ editora: DIFEL_1989.
KARDEC, Allan; O Que é o Espiritismo_ Impresso pela MARPRINT S.A: São Paulo _ 1974.
ALGARVIA, Pe Dionysio J. ; O Espiritismo Nada tem de Espiritismo _ Tipografia Teixeira: MA _1923.
Revista o Reformador; 2001-2003-2005.
Rev. Antropol. vol.40 n.2 São Paulo 1997 _ GIUMBELLI, Emerson; Heresia, doença, crime ou religião:
o Espiritismo no discurso de médicos e cientistas sociais.
http://www.mundoespirita.com.br
http://www.espiritismogi.com.br/

...................................

A História e a construção da identidade religiosa afro-brasileira

Thiago Lima dos Santos*


thiagolima.santos@yahoo.com.br

1. Introdução
Ao se pensar a contribuição do conhecimento histórico para os estudos afro-brasileiros e, ainda
mais, para a definição de uma identidade religiosa, nos deparamos com um campo de pesquisa cujos
resultados são obtidos tanto nos estudos históricos quanto antropológicos. Neste campo – estudo
histórico das religiões afro-brasileiras – o historiador se aventura por caminhos nos quais as lacunas
parecem aumentar conforme se recua no tempo.
Pensar Antropologia e História enquanto ciências distintas, ao ponto de possuírem objetos
também distintos e resultados de pesquisa que competem somente à ciência que os gerou é um
engano. Essas duas áreas do conhecimento possuem uma relação profícua, quando próximas
possibilitam a construção de um conhecimento mais profundo acerca das sociedades.
Buscar a contribuição da História é, antes de tudo, discuti-la enquanto contributo, pois a idéia
não é buscar determinado objeto e identificá-lo como pertencente à pesquisa do historiador. O sentido
não é partir do fim para o início, ou seja, identificar o elemento constitutivo da identidade religiosa e

*
Pesquisador Voluntário CNPq (PIVIC), Bolsista Iniciação Científica FAPEMA. Graduando, curso de História
Universidade Federal do Maranhão
ligá-lo à área da História. Pelo contrário, a idéia é partir das pesquisas históricas a respeito do negro e
somente depois observar como estas podem contribuir na vivência destes grupos religiosos.
Como dito anteriormente o intuito não é requisitar as posses da História. Esta pretensão
poderia até ser considerada redundante se partimos do princípio de que a identidade afro-brasileira –
seja ela étnico-racial, religiosa ou mesmo ambas – possui suas bases históricas como grande parte das
identidades elaboradas no mundo. Fazer uso da História na configuração de uma identidade, seja ela
qual for, é utilizar todo um simbolismo presente na tradição. Esta confere caráter axiomático,
credibilidade dentro do meio em que é forjada e, em certos casos, até mesmo sacralidade.76
O conhecimento histórico é capaz de estabelecer, ou no mínimo indicar as bases constitutivas
de grupos sociais, como os africanos transplantados para o Brasil durante os períodos Colonial e
Imperial. Mesmo que essa tarefa seja difícil, a História através de seus métodos pode ao menos
indicar, ou aproximar-se daquilo que se considera o passado de um povo.

2. A cultura afro-brasileira em questão.


Comumente a idéia da cultura afro-brasileira é tratada como uma mistura de elementos da
cultura africana com a brasileira. Essa explicação, no entanto, merece ser questionada para ser tornar
mais complexa. A cultura brasileira, em seu caráter uno, é alvo de sérios questionamentos baseados
no multiculturalismo que marca a formação social do país. Darcy Ribeiro apresenta o Brasil formado
por três matrizes étnicas, que atravessaram intensa miscigenação, nos mais diversos graus em todas
as regiões do país.
A homogeneização da cultura brasileira, – figura utilizada na mídia política
– falha muito criticada por estudiosos das mais diversas áreas também está presente na
caracterização do continente africano. Leila Hernandez trata essa característica como “o equívoco no
tratamento referencial que diz respeito ao continente africano” em conseqüência “das lacunas do
conhecimento quando não do próprio desconhecimento sobre o referido continente”. (HERNANDEZ,
2005, p.16).
Para a autora é bem claro que a designação África atende a outros interesses.
Os ideais de conhecimento, cientificismo, racionalidade, os quais a Europa se arrogava o título
de depositária, estavam em pauta quando este continente pôs em prática suas pretensões coloniais e

76
No meio religioso afro-brasileiro, em grupos que baseiam sua organização em uma cultura de caráter
tradicional, caracterizado principalmente pela oralidade, e mesmo entre os mais velhos as expressões “sempre foi
assim”, “isso vem dos antigos”, “é assim desde muito tempo”, entre outras tantas, são depositárias dessa intenção
de passar o caráter duradouro e estabelecido de algo, do qual não se deve duvidar. Não sendo um mero aspecto
sócio-lingüístico essas expressões carregam um aspecto simbólico de culturas e identidades que se firmam na
tradição.
neocoloniais. Mesmo com toda a justificativa para tais processos é no plano discursivo que estas
perspectivas se encerram. A autora considera que:
“Os africanos são identificados com designações apresentadas como
inerentes às características fisiológicas baseadas em certa noção de raça
negra. Assim sendo, o termo africano ganha um significado preciso: negro, ao
qual se atribui um amplo espectro de significações negativas tais como frouxo,
fleumático, indolente e incapaz, todas elas convergindo para uma imagem de
inferioridade e primitivismo”. (HERNANDEZ, 2005, p.18)

Este negro estereotipado foi a imagem genérica utilizada pelos colonizadores para firmar seu
domínio e assegurar a colonização cultural. O individuo de qualquer localidade do continente África
acaba sendo caracterizado como africano, excluindo-se por completo a possibilidade de entendimento
de diversidades culturais e de uma sociedade heterogênea.
De posse dessas informações podemos entender que cultura afro-brasileira é, antes de tudo,
um termo de aplicação genérica levando-se em consideração que não existe uma única cultura
africana, tampouco uma brasileira. A tentativa de ser coerente com a realidade nos levaria à expressão
“afros-brasileirismos”, em referência a multiplicidade cultural antes descrita. Como não é intenção criar
neologismo ou romper com as estruturas de pensamento já consolidadas, as análises aqui feitas
partirão da expressão já estabelecida, mas sempre levando em consideração a heterogeneidade das
culturas referenciadas.

3. O Manifesto da Ialorixás e a identidade religiosa.


A identidade afro-brasileira foi construída ao longo do tempo, mas também é fruto de uma
tomada de posição por parte dos indivíduos ligados a tais manifestações religiosas. Esse
posicionamento crítico pode ser visto na década de 1980, ou mais precisamente, em 1983 quando
ialorixás de grandes terreiros da Bahia decidiram definir sua religião através da ruptura com o
sincretismo buscando uma forma própria de se caracterizar.
Esse acontecimento não deve ser encarado de maneira isolada. A Bahia, considerada “Roma
Negra”, é expoente maior e ponto difusor da cultura afro-brasileira, sendo esta resignificada conforme a
região.
Porém devemos entender que a década de 80 não é tão somente um ponto de partida, mas
também um ponto de chegada. No início deste tópico, informo que a identidade é fruto de uma tomada
de posição e esta é feita levando em consideração momentos passados, que contribuem para uma
definição identitária seja ela qual for. Os anos 80 são o fim de um período conturbado na História do
Brasil, marcada por agitações nos mais variados setores da sociedade. Durante a Ditadura Militar,
situações ficaram em evidencia, a repressão e a resistência de alguns setores foram algumas delas.
A tentativa de silenciar vozes dissonantes aos poucos forçaram a sociedade a defender sua
opinião cada vez mais, isso não somente na esfera do político. A repressão e a resistência também
criaram os locais de fala e contestação.
O manifesto das ialorixás é reflexo desse cenário, dando mais robustez aos processos que já
vinham acontecendo desde a década de 60 que se convencionou chamar de africanização ou
reafricanização. Reginaldo Prandi observa que:
“Durante os anos 1960, algo surpreendente começou a acontecer. Com a
larga migração do Nordeste em busca das grandes cidades industrializadas
no Sudeste, o candomblé começou a penetrar o bem estabelecido território
da umbanda, e velhos umbandistas começaram a iniciar-se no candomblé,
muitos deles abandonando os ritos da umbanda para se estabelecer como
pais e mães-de-santo das modalidades mais tradicionais de culto aos orixás”
(PRANDI, 2006, p. 101)

Enquanto ponto de chegada, o manifesto, sintetiza processos que vinham valorizando a cultura
afro-brasileira dita mais ligada às raízes. A umbanda, nesse sentido, passa a ser desvalorizada por ter
se distanciado de sua matriz africana, não cabendo aqui a discussão se esta entrou ou não em
declínio.
O fato de uma cultura que por longo tempo foi transformada buscando ser aceita pela
sociedade, como foi a umbanda, passou a ser desvalorizada frente ao candomblé, considerado inferior
demonstra uma mudança sensível. O candomblé antes de buscar ser aceito pela sociedade buscava
impor aquilo que realmente era, longe da intenção de embranquecimento.
Como ponto de partida o manifesto, tanto o primeiro como o segundo77, pretende, sobretudo,
mostrar e buscar impor à sociedade a cultura religiosa afro-brasileira a partir do ponto de vista do povo
de santo. Nesse cenário a identidade religiosa afro-brasileira toma um sentido mais direto, ou seja,
definindo aquilo que realmente é através da explicação do que não é.
Muito se discutiu a respeito desses manifestos, suas conseqüências, os motivos, de sua
elaboração entre outros aspectos. Tais discussões, conduzidas em sua maioria por antropólogos,
acabaram propiciando, ao meu ver, um olhar voltado para as suas pesquisas, de maneira a vê-las
influenciando na vivencia do povo-de-santo. Daí entender a participação de intelectuais dentro dos
terreiros, assim como a busca de um esclarecimento maior por parte dos sacerdotes e sacerdotisas
das religiões de matriz africana. Esse duplo movimento, de intelectuais para o terreiro e “dos terreiros”
para a academia, simboliza a importância que os estudos acerca do tema afro-brasileirismo possuem
para os grupos que se encaixam sobre essas determinações.

77
Os manifestos foram publicados no mesmo ano. O primeiro, do qual não disponho foi publicado em 29 de
julho de 1983, o segundo é de 12 de agosto do mesmo ano. O segundo tem a intenção de dirimir os erros do
primeiro, possuindo um discurso voltado para explicar as razões da intenção africanizadora.
Ordep Serra discute essa influência no que tange a participação de personalidades,
autoridades e intelectuais nos terreiros e a proteção que estes recebiam ao não serem perseguidos
pela polícia. Sobre esta influencia Sérgio Ferretti diz:
“Durante muito tempo a pesquisa nos terreiros estava demasiadamente
preocupada com a preocupada com a procura de uma ‘pureza africana’,
tentando identificar casas antigas, que permanecessem mais fiéis às
tradições originais. Como reflexo desta atitude, os próprios líderes religiosos
se preocuparam até hoje em reencontrar ou descobrir uma ortodoxia perdida,
uma pureza clássica original. Constata-se todavia que as religiões afro-
brasileiras são tão brasileiras quanto africanas e que a pureza perdida é mais
um mito”(FERRETTI, 1992, p. 11).

Este reflexo da pesquisa liga-se ao manifesto das ialorixás baianas, aos processos de
(re)africanização, levados à cabo em terreiros de todo o Brasil e, principalmente, na busca de uma
identidade baseada em aspectos próprios do povo afro-brasileiro, excluindo-se as características
sincréticas e deturpadas, buscando raízes puras presentes em um passado a conhecer.

4. História e a identidade religiosa afro-brasileira.


Nenhuma identidade histórica pode ser construída sem o conhecimento a fundo do passado.
Embora a História, enquanto disciplina, seja muito mais que o simples desvendar do passado, sua
principal função ainda está relacionada com o conhecimento ampliado e relacional do que foram as
sociedades.
Os estudos sobre escravidão mostram como as etnias estiveram convivendo durante o período
que vigorou este modelo de trabalho, configurando uma sociedade extremamente plural. Este
panorama heterogêneo será encontrado pelos pesquisadores da área de história que buscarem as
raízes de um povo que fora escravizado e trazido para o Brasil.
Nesse ponto reside uma das características da identidade, qual seja a alteridade. É a partir da
diferenciação em relação ao outro que um indivíduo pode perceber e fortificar a percepção daquilo que
é e também do que não é.
Romper com o sincretismo foi uma atitude baseada na alteridade, ou seja, na situação de
diferença e de negação do outro. Ao perceberem modificações pela influência da Igreja Católica, foi
possível às ialorixás baianas entenderem que antes (no passado) sua religiosidade fora muito diferente
da realidade católica e que, com o passar do tempo, a pureza foi se perdendo, prejudicando a
construção da identidade.
Dessincretizar ou reafricanizar é partir do pressuposto de que a influência católica tornou as
religiões de matriz africana distantes de suas raízes. A resposta, ou o objetivo de romper com o
sincretismo está na África, pois segundo Prandi:
“O tecido social do negro escravo nada tinha a ver com família, grupos e
estratos sociais dos africanos nas origens. [...] A parte ritual da religião original
mais importante para a vida cotidiana, constituída no culto aos antepassados
familiares e da aldeia, pouco se refez, pois, na escravidão, a família se perdeu,
a tribo se perdeu.” (PRANDI, 2006, p. 96)

E continua:
“Quando as estruturas sociais foram dissolvidas pela escravidão, os
antepassados perderam seu lugar privilegiado no culto, sobrevivendo
marginalmente no novo contexto social e ritual. As divindades mais
diretamente ligadas às forças da natureza, mais diretamente envolvidas na
manipulação mágica do mundo, mais presentes na construção da identidade
da pessoa, os orixás divindades de culto genérico, essas sim vieram a ocupar
o centro da nova religião negra em território brasileiro.” (PRANDI, 2006, p. 96)

As novas relações sociais estruturadas durante a escravidão são, portanto, pontos de partida
das religiões afro-brasileiras. O sincretismo foi inerente ao regime escravista, não somente no aspecto
religioso. Era antes uma estratégia de sobrevivência do que uma questão adaptativa, como pode ser
vista atualmente, entre um candomblé que se pretende puro e a umbanda de aspecto híbrido.
Na busca da pureza, a África seria a única depositária desta. Uma vez que, no Brasil, as
matrizes não são estanques, como podemos observar. Se em algum momento a cultura religiosa de
alguma etnia se fez puro este seria na África e para lá chegar novamente a História se faz presente
analisando os quadros sociais dos indivíduos cativos a fim de identificar os grupos étnicos, sua
organização enquanto escravos, seu translado e também a possibilidade de definição de suas origens
africanas.
Trabalhos como o de Octávio da Costa Eduardo, “O negro no nordeste do Brasil”78, possuem
aspectos cruciais para identificação dos grupos que chegaram aqui como escravos. No capítulo em que
analisa duas comunidades de negros no Maranhão, o autor traz informações, tais quais o número e a
etnia dos escravos, contidas em inventário dos séculos XIX. Essa mesma documentação é rica em
dados desse tipo e, a partir delas, pode-se chegar à localização dos grupos étnicos nas províncias, às
relações comerciais e finalmente à proveniência desses escravos em África79.
Para determinar a origem de determinado grupo, depois de feita toda uma genealogia histórica,
o olhar deve então se voltar para a História do continente Africano buscando as rotas de tráfico interno
e os pontos em que os indivíduos eram escravizados.

78
Da publicação original, “The Negro in Northern Brazil, a study in Acculturation, sem tradução para o
português.
79
Esses dados de proveniência são inexatos, enquanto localidade específica, em território africano. Várias etnias
eram escravizadas no interior do continente e depois transportadas para os portos, onde recebiam a denominação
genérica referente ao local de embarque.
Feito este longo e penoso processo, a pureza dos rituais esbarraria em outros problemas,
como o hibridismo cultural presente em solo africano e a grande influência que a Igreja Católica na
conversão dos escravos ainda em solo africano. Tais considerações são baseadas no estudo da
cultura e da história da África. Alberto da Costa e Silva, embora não sendo historiador faz em “A
Enxada e a Lança”, um apanhado histórico do continente, trazendo importantes informações acerca do
deslocamento dos povos e a sua formação cultural. A estrutura do panteão religioso, estudado por
antropólogos, também evidencia isso, pois diversas divindades foram incorporadas em contatos
culturais como cita Sérgio Ferretti.
“Formada desde o início dos tempos dos tempos modernos por migrações
dos Ajá, cuja capital era Tadô no atual Togo, o reino do Daomé [...] possuía
organização religiosa e política extremamente complexas, tendo dominado
diversos reinos vizinhos e incorporados inúmeras divindades, chamadas
voduns [...] as constantes entradas de deuses no reino decorriam dos
casamentos dos reis com mulheres de outras regiões, que traziam seus
cultos” (FERRETTI, 2004, p. 199).

Entre contatos culturais e hibridismo, evidenciado pelas pesquisas, antropológicas e históricas,


formaram-se os grupos que vieram para o Brasil e que se estruturaram em torno de uma nova cultura,
atravessada por uma série de aspectos que modificaram profundamente aquilo que era vivido em solo
africano. A cultura religiosa afro-brasileira sobreviveu a custa de muitas perdas, atualmente os
processos que buscam eliminar os traços sincréticos podem ser entendidas como uma resposta à toda
as modificações, buscando se fortificar e conhecer a si mesma do que tentar reproduzir características
que não lhe são próprias portanto não verdadeiras para o povo de santo.

5. Conclusão
Mito ou não, a pureza religiosa do candomblé é um artifício utilizado para auto determinação.
Para o povo de santo esta é a solução que determina um dos pontos em que se baseia a crença. Essa
estratégia foca em um aspecto histórico, a identidade, que para se manter viva, negando o sincretismo,
precisa também manter a crença na pureza que pode ser mística e mítica, não no sentido de
inexistência.
Como um mito fundador, a pureza do candomblé, cada vez mais distante do
embranquecimento ritual, voltado para suas raízes em África, estabelece um ponto para o qual
convergem as intenções – processo de africanização – e do qual emana a crença.
Os aspectos históricos são, portanto, fundamentais na busca e construção dessa identidade,
na medida em que africanizar é voltar ao passado para apreender deste as características ontológicas
do que seria o candomblé em seu aspecto primeiro. Os estudos históricos são peças chaves no
entendimento desse passado e prerrogativas para aqueles que buscam um conhecimento mais
completo acerca do tema.

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