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NAM MIOHO RENGUE KIO NAM MIOHO RENGUE KIO NAM MIOHO RENGUE KIO
1. Braz MS, Franco MHP. Profissionais Paliativistas e suas Contribuições na Prevenção de Luto Complicado. psicologia: Ciência e Profissão, v.37
n.1, Jan/Mar: 90-105. 2017.
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Artigos:
1- Profissionais Paliativistas
7- Ambiente médico: o impacto da má notícia em pacientes e médicos – em direção a um modelo de comunicação mais efetivo
NAM MIOHO RENGUE KIO NAM MIOHO RENGUE KIO Nam mioho rengue kio
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1- Profissionais Paliativistas e
suas Contribuições na
Prevenção de Luto Complicado
Resumo
Os cuidados paliativos buscam qualidade de vida baseada principalmente na prevenção e alívio do sofrimento
de pacientes que possuem doenças ameaçadoras de vida, englobando as esferas de ordem física, psicossocial
e espiritual. Além disso, estende-se ao pós-morte do paciente, oferecendo suporte à família no processo de luto.
Esta pesquisa qualitativa teve como objetivo compreender e analisar a formação dos profissionais em relação
ao processo de morrer do paciente e as percepções daqueles em relação às suas contribuições para a
prevenção de luto complicado da unidade de cuidado. A Teoria do Apego fundamentou teoricamente este
estudo. Participaram voluntariamente profissionais de saúde que integram formalmente equipes de cuidados
paliativos. Foi utilizado um questionário autoaplicativo para obtenção de dados acadêmicos, profissionais e de
cursos realizados, e uma entrevista semiestruturada. A análise das informações colhidas nas entrevistas foi
realizada através de transcrição e categorização das mesmas, seguida de análise de conteúdo. Os resultados
confirmaram que a formação dos profissionais em relação ao processo de morrer é escassa. Ademais,
observou-se que os profissionais de saúde que trabalham em cuidados paliativos possuem comportamentos de
apego, os quais são identificados como naturais nesse contexto, o que acaba por dificultar a percepção de que
são importantes contribuições para a prevenção de luto complicado da unidade de cuidado. Diante desses
resultados, a presente pesquisa trouxe a relevância sobre a necessidade da inserção das temáticas morte e
morrer na educação dos profissionais de saúde, o que pode contribuir para melhor assistência à unidade de
cuidado nos seus processos de luto.
Introdução
O despreparo dos profissionais de saúde e as dificuldades pessoais diante da morte e do processo de morrer
retiram o direito do paciente e da família de expressar nesse momento pensamentos, sentimentos, preferências,
pendências que, por sua vez, estão diretamente relacionados com o processo de luto, seja ele antecipatório ou
pós-óbito do paciente. Sabe-se que a educação para morte direcionada aos profissionais de saúde e, no caso,
aos membros de equipes multidisciplinares de cuidados paliativos, ocorre raramente. Dessa forma, é relevante
e importante ter um olhar crítico em relação à formação desses profissionais, através de treinamentos e
educação continuada, a fim de que possam estar mais bem preparados para vivenciar e lidar com as demandas
naturais e inerentes do contexto de adoecimento, morte e luto (Liberato, 2015). Isso pode contribuir para uma
melhor assistência ao paciente e à sua família no processo de morrer, corroborando para a prevenção de lutos
complicados. Nesse sentido, a presente pesquisa pretendeu investigar se há uma associação entre a formação
dos profissionais paliativistas acerca dos processos de morte e morrer com a percepção deles sobre seus
comportamentos e atuações, e o quanto reconhecem que estes podem ter uma influência e colaboração no
desenvolvimento de processos de luto adaptativos da unidade de cuidado (paciente e família).
Cuidados paliativos
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A World Health Organization –WHO (2004), em 2000, definiu os cuidados paliativos, enfocando uma qualidade
de vida baseada principalmente na prevenção e no alívio do sofrimento de pacientes que têm doenças
ameaçadoras da vida e englobando as esferas de ordem física, psicossocial e espiritual. A definição da WHO
para cuidados paliativos, focados no alívio e na prevenção de dor para uma boa qualidade de vida para o
paciente e sua família, enfatiza a também a necessidade de cuidados paliativos logo na detecção da doença,
juntamente com o tratamento curativo (modificador da doença), e não apenas no final de vida ( Lanken et al.,
2008; Matsumoto, 2012; Melo, & Caponero, 2009).
Utilizar cuidados paliativos desde o início do tratamento curativo possibilita, para o paciente e sua família,
contato com a equipe de profissionais responsáveis e, à medida que a doença crônica progressiva evolui e o
tratamento curativo perde sua eficácia em controlá-la ou modificá-la, os cuidados paliativos se tornam mais
necessários, até figurarem como exclusivos em virtude do quadro de incurabilidade ( Lanken et al., 2008; Maciel,
2008). Esse funcionamento propicia a construção de um vínculo de confiança entre a tríade paciente-família-
equipe, o que facilita e contribui para a articulação e o desenvolvimento de planos estratégicos de assistência
integral e contínua.
Neste estudo, levamos em consideração o caráter didático de funcionamento dos cuidados paliativos. No dia a
dia, observa-se que isso não é possível em razão de questões econômicas e da escassez de mão de obra
especializada, o que impede que uma equipe de cuidados paliativos acompanhe todos os pacientes com
doença crônica progressiva, ameaçadora e limitante da vida. Ocorre que, em sua maioria, as equipes de
cuidados paliativos entram no cenário quando já não há uma proposta de modificação ou estabilização da
doença, ou seja, quando o tratamento será conduzido em uma linha de um cuidado paliativo mais exclusivo, no
sentido de priorização de medidas de conforto. Nessa perspectiva, serão discutidos e recomendados objetivos
de tratamento que visem o conforto e as limitações terapêuticas para o paciente. Esta pesquisa, mais
especificamente, tratou de discussões de cuidados paliativos e limitações terapêuticas, buscando elucidar o
caráter fútil ou de baixo ou nenhum resultado que determinadas condutas podem ter frente aos objetivos
propostos, como será discutido mais adiante.
Em cuidados paliativos, mais especificamente, muitos estudos têm sugerido que as conferências familiares,
também conhecidas como relação deliberativa, são a melhor forma de abordar e conversar com a família sobre
objetivos de tratamento e limitações terapêuticas, pois promovem um compartilhamento da carga de decisão e
suporte à família (Carlet et al., 2004), buscando-se sempre um consenso entre familiares e equipe. Tais
conferências configuram-se como um espaço aberto para escuta da família, sendo possível conhecer e
compreender seus pensamentos, sentimentos, medos, angústias e, a partir disso, responder a tais
necessidades, além de ajudar a promover o enfrentamento da situação – o que reverbera em segurança da
rede familiar em relação aos cuidados com o paciente e com a equipe.
ofereçam potencial subjetivo para segurança física e/ou psicológica ( Sperling, & Berman, 1994) –
diferentemente do apego de infância, esse tipo de apego envolve maior reciprocidade.
Além disso, pode-se pensar que tais pessoas terão uma tendência a serem mais empáticas e abertas às
discussões com a equipe sobre a melhor conduta a ser seguida em relação ao paciente, podendo inclusive
construir uma relação na qual sentem-se seguros com a assistência dos profissionais. Nesse sentido, a equipe
pode significar uma base segura para os familiares, na medida em que responde às necessidades emocionais
(escuta, acolhimento, validação dos sentimentos e pensamentos) e às dúvidas que podem aparecer ao longo do
processo. No caso de pessoas com o apego inseguro ambivalente, ou seja, aquelas com um padrão de apego
inseguro, caracterizado por situações em que suas necessidades foram atendidas em alguns momentos, mas
em outros não, o que pode ter provocado falta de confiança em relação aos cuidadores, cuidados,
disponibilidade e responsividade (Ainsworth, 1991), pode-se pensar em uma tendência à ambivalência em
relação às discussões com a equipe quanto aos cuidados paliativos. Em outras palavras, essas pessoas
apresentam-se mais desorganizadas, oscilando em relação à confiança na equipe, procurando-a e escutando-a
em alguns momentos, mas em outros afastando-se. Já para aqueles com um padrão de apego inseguro
evitativo, os quais não tiveram suas necessidades atendidas na infância, tornando-se, muitas vezes, adultos
autossuficientes (Ainsworth, 1991), pode-se pensar em uma tendência a uma relação mais distante com a
equipe. Esses não estão claramente abertos às discussões sobre condutas, preferindo resolver por si mesmos
as questões em pauta.
Por fim, para os indivíduos que têm apego desorganizado, os quais tiveram experiências negativas durante o
seu desenvolvimento na infância (fatores de risco, como abuso ou maus-tratos, entre outros) ( Ainsworth, 1991)
e que, na vida adulta, em situações de estresse vivenciam um conflito sem conseguir manter a estratégia
adequada para lidar com a situação que os assusta (Main, 2001), pode-se pensar que eles têm um alto grau de
desorganização, incompatível com a situação de tomada de decisão, havendo uma tendência a se mostrarem
perdidos e sem referências da melhor conduta a ser tomada em relação ao paciente. Com experiência em
equipes de saúde e a vinculação que as mesmas possibilitam, Araujo e Negromonte (2010) apontam para a
importância do vínculo entre equipe e unidade de cuidado, mesmo que sua visão parta da posição oposta à do
paciente, o que ressalta ainda mais a importância de o profissional de saúde se ver como protagonista de
destaque na vinculação com o paciente.
Por conseguinte, tal processo constitui-se como uma experiência subjetiva, ou seja, dotada de significado,
inserida em uma cultura e multideterminada (Franco, 2010). Falar em múltiplos fatores que constituem o
desenvolvimento desse processo e contribuem para que ele ocorra é identificar o significado e ou função de
determinada pessoa, animal ou coisa; o tipo de relação e vínculo estabelecido; em caso de morte, a idade e o
tipo de morte (naturais ou esperadas, acidentais ou inesperadas e suicídios), se existe o corpo e se foi possível
realizar os rituais funerários significativos para a família; crises vitais do enlutado; como foi a vivência durante o
processo de rompimento, em caso de morte, separações conjugais ou conflitos familiares, por exemplo; se
recebeu apoio efetivo e afetivo e se existe algum recurso espiritual ( Barbosa, 2010 Franco, 2002). Enfim, são
variáveis que podem influenciar na forma como esse luto será vivido e administrado e, por consequência,
contribuir tanto para o desenvolvimento do luto normal ou complicado.
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O luto normal, segundo Barbosa (2010), Franco (2010) e Ruschel (2006), é o processo pelo qual o indivíduo
compreende e aceita a perda do ente querido, adaptando-se à condição de viver sem aquela pessoa.
Evidentemente, esse tipo de luto permite que o enlutado fique triste, chore, sinta saudades. A questão não é
não sentir a perda, mas como é ela é sentida e administrada.
De acordo com Franco (2010), o luto complicado caracteriza-se quando a pessoa experimenta uma
desorganização prolongada que a impede de não retomar suas atividades com a qualidade anterior a
perda. Worden (2013) destaca manifestações que podem estar presentes no processo do luto complicado:
expressão de sentimentos intensos que persistem mesmo muito tempo após a perda; somatizações frequentes;
mudanças radicais no estilo de vida que tendem ao isolamento; episódios depressivos, baixa autoestima e
impulso autodestrutivo. Nesse sentido, vale questionar quais seriam os fatores de proteção e de risco para o
desenvolvimento do luto complicado, pontuando que os primeiros não isentam e não blindam o indivíduo de
viver e sentir a morte de um ente querido, porém podem auxiliar no sentido de tornar essa vivência um processo
razoável e saudável. Ressalta-se que os fatores de risco e proteção devem estar alinhados e compreendidos a
partir do contexto, da cultura, personalidade, função e do significado que o indivíduo narra para si mesmo sobre
tal acontecimento. Logo, eles podem variar de acordo com as variáveis citadas, ou seja, um mesmo fator pode
ser considerado de risco ou de proteção. Além disso, mesmo que seja identificado um fator de risco ou proteção
não significa que ele necessariamente vai ter efeito no processo de luto, e sim que há uma possibilidade de ser
protetor ou complicador.
A relevância de tal indagação tem como base não só a prevenção do luto complicado, mas também de
transtornos psicológicos, alterações endócrinas e neuroendócrinas e alterações psicofisiológicas (sono, apetite,
nível de cortisol, mudanças comportamentais em relação ao padrão anterior) que podem ser decorrentes
daquele. No Quadro 1 estão elencados os fatores de proteção que podem auxiliar na prevenção do luto
complicado; no Quadro 2 estão relacionados os fatores de risco que podem ser complicadores e contribuir para
o desenvolvimento do luto complicado – tais proposições sugerem padrões, não certezas.
Apego seguro Pessoas demonstram maior organização e capacidade para integrar as (novas) informações; tendem a ativar a resiliência.
Qualidade do Uma relação sem conflitos e sem pendências tem um potencial complicador menor.
vínculo
Tipo de apoio Adequado, necessário, suficiente (Franco, 2002) e comunicação entre membros satisfatória. Configura-se como um apoio saudável e
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Realização de Importante para o processo de separação e despedida; auxilia no fechamento do ciclo (Franco, 2002).
rituais
Luto antecipatório Permite despedidas, resolução de pendências, início da construção de novos significados, identidades, relações (Franco, 2014; Gillies &
Neimeyer, 2006).
Tipo de morte Morte por doença crônica, sem sofrimento, por exemplo, situação na qual as pessoas tiveram tempo de se despedir do ente querido, de
resolver questões e pendências.
Luto reconhecido Valoriza a própria dor e a dor do outro, é empático. Importante decodificar o significado do luto para cada um, ou seja, tornar um código
pelo enlutado e comum entre o enlutado e quem o rodeia, para que possa ter seu luto reconhecido. Permite que a pessoa viva o processo de luto, ora
pela sociedade orientada pela perda, ora para a reparação (modelo do processo dual) (Stroebe, & Schut, 1999) e a manutenção de um vínculo saudável
(Klass, & Walter, 2001) sem necessariamente haver um rompimento definitivo.
Resiliência Não só como uma expressão de ação após a morte de um ente querido, mas antes disso. Nesse sentido, é importante contextualizar a
situação, as pessoas envolvidas, utilizando a resiliência como uma estratégia: capacidade de se perceber, a partir das habilidades, a fim de
criar alternativas possíveis – depende da personalidade do enlutado, do seu senso de competência e se foi desenvolvido um apego seguro. A
flexibilidade e a criatividade são características importantes na resiliência.
Quadro 2 Fatores de risco que podem ser complicadores e contribuir para o desenvolvimento do luto
complicado.
Fator Por quê?
Apego inseguro Pessoas mais desorganizadas e com contradições, sem encorajamento para avaliar as situações e identificar que estratégia deve
ser ativada. Como consequência, acabam por repetir padrões comportamentais fracassados.
Qualidade do vínculo Relação com conflitos e pendências ou relação de dependência entre o enlutado e o ente querido (Bromberg, 2000) tem potencial
complicador maior.
Tipo de apoio (como é Inadequado, abusivo, insuficiente (Bromberg, 2000; Worden, 1998); comunicação entre membros comprometida.
percebido pelo enlutado;
avaliação subjetiva)
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Tipo de morte Morte repentina (Bromberg, 2000; Franco, 2002; Parkes, 1998); violenta (Franco, 2002; Parkes, 1998); doença aguda, suicídio
(Bromberg, 2000; Parkes, 1998). Não permite despedidas, ajustes na relação. Muitas vezes pensa-se no sofrimento da pessoa.
Pode variar de acordo com significado, por exemplo, o homicídio de um menino de 18 anos que morava em um bairro violento e
perigoso: caracteriza-se por uma morte repentina e violenta, porém coerente com algo que podia acontecer nessa realidade (isso
relativiza o repentino).
Não localização do corpo Não há a possibilidade de realizar rituais que gostaria; dificulta a aceitação da morte do ente querido.
Manutenção do vínculo de Enlutado mantém vinculação com quem morreu com idolatria. Não vive o processo dual de perda e reparação. Pode haver
forma idolatrada dificuldade para retomar atividades anteriores com a mesma qualidade, de construir novos significados a partir da nova
configuração.
Condições prévias da Rígido, dificuldade de adaptação a condições novas, transtorno psiquiátrico (depressão, por exemplo) podem ser fatores
personalidade e saúde complicadores.
mental do enlutado
História de vida Enlutado que tem na sua história de vida perdas múltiplas e sucessivas (Bromberg, 2000; Worden, 1998).
Luto antecipatório Afastamento do ente querido com possibilidade de morte iminente, não permitindo expressar sentimentos, resolver pendências;
pode gerar culpa no enlutado após a morte da pessoa.
Pessoa que morreu e Morte do cônjuge (Bromberg, 2000). De acordo com Holmes e Rahe (1967), em cujo estudo pontuaram eventos considerados
respectivo significado estressores (considerando as mudanças que ocorrem e os respectivos reajustes sociais), a morte do cônjuge está em primeiro lugar
como um evento estressor (100 pontos). A morte de um ente próximo está em quinto lugar (63 pontos). Isso significa que tais
rompimentos de vínculo podem ser fatores complicadores.
Luto não reconhecido ou Não há valorização da própria dor ou da dor do outro, havendo uma quebra de empatia. Não permite que a pessoa viva o seu
não franqueado pelo processo de luto. Quando o enlutado é quem não reconhece o seu luto, ele está se defendendo disso. A questão de gênero
enlutado e pela sociedade também entra nesse aspecto quando, por exemplo, existe a convenção social de que o homem não pode chorar, o que impede
uma maior expressão de sentimentos por parte dele.
Ressalta-se que esses fatores podem variar de acordo com cultura, contexto, personalidade e significado que o
enlutado confere ao acontecimento. Especificamente no contexto dos cuidados paliativos, essa avaliação pode
ser realizada uma vez que, em sua maioria, os familiares vivem processos de luto antecipatório. Nesse sentido,
a equipe pode reconhecer a presença destes fatores e se o significado dado pode funcionar como protetor ou
complicador do luto. Além disso, uma observação crítica dasTabelas 1 e 2 permite vislumbrar uma
sistematização dos fatores (complicadores ou protetores) que se mostra como de grande valia para o
desenvolvimento da avaliação e discussão psicológica não só quando há o rompimento de um vínculo
significativo, mas também na sua iminência, pensando mais uma vez no caráter preventivo do fenômeno do luto
complicado.
que a pessoa viva e experimente a perda sem ela ter ocorrido efetivamente. Logo, permite as despedidas, a
resolução de pendências, o início da construção de novos significados, identidades e relações ( Franco,
2014; Gillies, & Neimeyer, 2006).
A forma como cada indivíduo vai vivenciar esse cenário está relacionada ao significado que este credita à
relação com o familiar doente e à situação de perda, além da maneira como percebe o mundo e como se
percebe no mesmo– modelo operativo interno (Sperling, & Berman, 1994). Franco (2014), diante deste contexto,
destaca o quão importante os cuidados paliativos são para a prevenção de luto complicado, uma vez que o luto
antecipatório pode ser trabalhado, respeitando e considerando o papel fundamental da família no processo de
adoecimento e do luto. Conforme salientam Hudson et al. (2012), há uma exigência atual de diretrizes
relacionadas ao luto e suporte psicossocial nessa área em relação a orientação e educação sobre o luto para a
unidade de cuidado. Ainda de acordo com este autor, garantir que as necessidades dos familiares sejam
devidamente avaliadas está entre os dez marcadores de qualidade de fim de vida.
No que tange à formação dos profissionais de saúde em relação ao processo de morrer, Kovács (2003) pontua
que, principalmente na área médica e da enfermagem, há uma maior valorização do saber técnico em relação à
formação humanista, o que afasta o tema da morte como foco de aprendizado. Outros estudos confirmaram
isso. Pesquisa realizada no curso de Enfermagem da Universidade Federal do Maranhão ( Gurgel, Mochel, &
Miranda, 2010) realizou um monitoramento da formação acadêmica do aluno. Constatou-se que existe uma
formação voltada para o tema da morte, porém é considerada insuficiente, sendo necessário um
aperfeiçoamento na prática profissional. Tal pesquisa apresentou um argumento interessante: o afastamento
acadêmico da tanatologia pode ser reforçador de práticas supersticiosas e obstinadas. Essa análise pode ser
associada ao que Forte (2011) traz quando verifica que a variabilidade de condutas em final de vida em relação
a suporte avançado de vida está relacionada à educação em cuidados paliativos. Essa visão elucida a
importância de se ter conhecimento sobre futilidade terapêutica e práticas obstinadas.
Em relação aos cuidados paliativos, mais especificamente, são escassos os estudos sobre educação para
morte direcionados aos profissionais que compõem a equipe. Kovács (2003) afirmou que, em relação aos
trabalhos na área de Psicologia, ocorre o mesmo. Faz-se importante pontuar que uma equipe preparada para o
processo de morrer do paciente constitui-se como um fator de proteção para um luto complicado da unidade de
cuidado na medida em que pode representar uma base segura através de comportamento de continência
emocional, acolhimento, escuta, responsividade às necessidades de ordem espiritual, social.
Este estudo pretendeu: a) Compreender e analisar a formação dos profissionais que integram equipes
multidisciplinares de cuidados paliativos acerca do processo de morrer do paciente; b) Compreender as
percepções dos profissionais de saúde acerca de suas contribuições para prevenção de luto complicado da
unidade de cuidado; c) Investigar se há uma associação entre a formação dos profissionais paliativistas em
relação aos processos de morte e morrer com a percepção de que seus comportamentos podem contribuir para
prevenção de luto complicado da unidade de cuidado.
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Método
Para compreender a complexidade da construção dos significados e as percepções dos profissionais de saúde,
as relações com o contexto no qual se produzem, valores e crenças, foi utilizado o método qualitativo nesta
pesquisa.
Participantes
A amostra por conveniência foi utilizada para a escolha dos participantes da pesquisa e foi constituída por
profissionais da área de saúde que integram formalmente equipes multidisciplinares de cuidados paliativos. Ao
todo foram entrevistados sete profissionais, das seguintes especialidades: uma médica, uma psicóloga, uma
enfermeira, uma farmacêutica clínica, uma musicoterapeuta, uma assistente social e uma fonoaudióloga.
Pertencem a equipes diferentes, trabalham em instituições públicas e privadas e algumas são docentes em
cursos de cuidados paliativos. A maioria teve sua formação inicial da década de 1990.
O critério de exclusão foi o profissional não integrar formalmente equipes multidisciplinares de cuidados
paliativos. Elucida-se que encontrar pessoas que integrem equipes de cuidados paliativos não é uma tarefa
fácil, visto que tais equipes ainda são escassas e muitas vezes não são formalmente constituídas, ou seja,
muitos profissionais não são exclusivos das equipes e acabam por atuar como equipe de apoio. Disso decorreu
a dificuldade de entrevistar profissionais de certas especialidades. O intuito de entrevistar apenas pessoas que
integrassem formalmente equipes de cuidados paliativos teve o objetivo de observar e perceber a
particularidade de quem trabalha e vivencia esse dia a dia.
O acesso aos entrevistados foi feito por meio da rede de contatos profissionais das autoras. Vale ressaltar,
contudo, que não foram entrevistados profissionais que estivessem trabalhando na equipe de uma das autoras
desta pesquisa, em atenção ao cuidado de não enviesar o estudo.
Foi utilizada a análise de conteúdo, que se constitui como “[...] um conjunto de técnicas de análise das
comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens”
10
(Bardin, 2002, p. 38). Tais procedimentos permitiram conhecer o significado das palavras dos profissionais de
saúde e extrair os significados presentes na comunicação. A partir disso, foi feita uma verificação do que era
comum e diferente às respostas dos profissionais em relação a cada categoria temática e como isso se
articulava, incluindo os estudos da literatura.
Resultados e Discussão
Nesta seção são apresentados e discutidos os aspectos temáticos derivados da categorização utilizada,
buscando relacionar umas com as outras, no sentido de ser coerente com a complexidade do objetivo do estudo
proposto.
Todos os profissionais iniciaram suas atividades em unidade gerais e o contato com pacientes graves e em fase
de final de vida foi o que acabou conduzindo-os para os cuidados paliativos. Essa questão ilustra o que foi
discutido na introdução, quando se argumentou sobre a prática dos cuidados paliativos no Brasil: na maioria das
vezes iniciado em um processo de final de vida do paciente e não concomitante ao diagnóstico e no curso na
doença. Isso também é demonstrado e confirmado por Azoulay et al. (2012), os quais destacaram que na
Europa os cuidados paliativos são realizados em sua maioria na UTI, ou seja, com pacientes graves e em risco
de vida, visto que não há muitos especialistas que praticam cuidados paliativos (dentro e fora da UTI).
As descrições das atuações de trabalho demonstraram, pois, uma preocupação com a pessoa que está doente,
e não apenas com a doença. Há uma valorização da rede de apoio, valores, desejos e biografia. Percebe-se
claramente que os profissionais extrapolam para além de sua técnica de trabalho, estando atentos para o todo
do paciente. As autoras observaram que tais comportamentos são caracterizados como de apego seguro, pois
acabam por gerar acolhimento, consistência e continência às necessidades da unidade de cuidado.
Sobre as formas de atuação narradas pelos profissionais no que tange a sair da zona de conforto do seu
conhecimento tecnicista, observou-se que os argumentos revelaram a existência de um trabalho multidisciplinar,
e quem sabe interdisciplinar, na medida em que o médico, por exemplo, se preocupa com a ansiedade do
paciente por falta de informação. Assim, constatou-se que os entrevistados se percebem como membros
inseridos em uma equipe multidisciplinar. Falam de si sempre inseridos em uma equipe. Verificou-se, portanto,
que o trabalho em equipe possui significados e funções, como promover trocas, tanto de informações para
respaldo de atuação técnica, como de sentimentos e sensações em momentos difíceis. Ademais, os
entrevistados demonstraram que existe um trabalho em conjunto, seja para controle de sintomas, seja para a
estruturação e desenvolvimento do serviço. Essas vivências revelaram que a própria equipe representa uma
base segura para os membros que a compõe.
[...] esse trabalho do psicólogo na [...] fase final de vida e luto [...] a equipe... junto com o psicólogo... tem que tá
alinhada na comunicação e na boa assistência [...] às vezes você tem que... emprestar a sua voz pro paciente
que não tá conseguindo falar [...] porque no fim de vida... [...] as pendências têm que ser resolvidas [...] o
sofrimento faz parte... eh... o que a gente conseguir diminuir melhor... né... mas exterminar o sofrimento do
outro ninguém consegue (P., psicóloga).
A psicóloga, assim como a fonoaudióloga, destacou a possibilidade de dar voz ao paciente na fase final da vida,
isto é, auxiliá-lo para que possa se comunicar no que concerne aos seus desejos, medos e fantasias, incluindo-
o nesse processo quando for seu desejo. A musicoterapeuta, da mesma forma, trouxe a preocupação em
escutar o paciente, assim como favorecer a expressão de seus pensamentos e sentimentos por meio da
música, o que pode ser caracterizado como um trabalho de elaboração de luto antecipatório da unidade de
cuidado (Franco, 2014; Gillies, & Neimeyer, 2006), como pode ser observado na seguinte transcrição:
[...] a grande estratégia é ouvir com cuidado [...]. com perguntas que sejam mais... é... relativas a processo de
final de vida [...] encorajar o paciente a resgatar a história dele com essa família [...] vem como um recurso (a
música)... que às vezes é fundamental... pra pacientes que não conseguem falar [...] e aí na dedicatória dessas
canções... eles falam tudo que não conseguem falar [...] mas fica aquela coisa do registro do afeto... do amor...
e isso acaba sendo muito importante... pra as famílias (MU., musicoterapeuta).
Verificou-se que, assim como a psicóloga, a enfermeira trouxe em seu discurso, além de outras considerações,
a presença do sofrimento da família como algo que é natural e presente no momento de perda de um ente
querido. A assistente social também trouxe a sua percepção, que, analisada juntamente com as demais
apresentadas anteriormente, demonstrou que na fase final de vida do paciente o esforço e as atividades em
equipe para manter o conforto e para assistir à unidade de cuidado, da mesma forma, configuram-se como
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comportamentos de apego seguro que acabam por contribuir para o desenvolvimento de uma base segura para
paciente, família e equipe.
Não é um luto sem dor... evidentemente... NE... acho que dor sempre estará presente quando acontece a
perda... mas eu entendo que depois de um momento... de um sofrimento mais intenso... a família consegue
continuar a sua trajetória... retoma suas atividades e guarda dentro do coração a saudade pelo que partiu... mas
ela consegue continuar vivendo (AS., assistente social).
Com base na análise dos discursos, pôde-se observar que os profissionais compreendem o luto normal como
decorrente da ruptura de um vínculo e muitas vezes acompanhado do sentimento de tristeza, que é entendido
como algo natural e adequado ao contexto. Além disso, surgiu a questão da necessidade e possibilidade de
reconstrução da vida. Tais conclusões podem ser entendidas à luz do modelo do processo dual, que permite a
compreensão de que ao mesmo tempo que não há uma linearidade no processo de luto há a possibilidade de
construções de significados no processo de oscilação entre as tarefas voltadas pela perda e aquelas voltadas
para a restauração (Stroebe, & Schut, 1999).
[...] mas eu não fico mais... né ...indo lá ...nem buscando mais coisas... que é uma forma de me proteger [...] é
muito envolvimento... não é que eu não me envolva agora... lógico... a gente se emociona... abraça... chora […]
mas tem que ter uma coisa que não te desgaste tanto... né ...assim... preencher também a vida lá fora com
coisas boas... fazer outras atividades (ME., médica).
Outros comportamentos citados pelos demais profissionais também podem ser caracterizados como estratégias
que auxiliam no enfrentamento na fase final de vida do paciente: o próprio trabalho em equipe e a valorização
do trabalho pelo outro (colega); ter empatia pela situação da unidade de cuidado, que acaba por auxiliar na
aceitação da situação de perda; valores de família em relação à finitude; conhecimento e estudos; psicoterapia;
realização de atividade física e religião.
sintomas ou resolução de alguma pendência), que, por sua vez, podem contribuir para a construção de uma
base segura. Esse aspecto também pôde ser observado e identificado nas entrevistas com a musicoterapeuta,
psicóloga e médica.
Ao explorar o que foi apresentado anteriormente, a autora destaca a comunicação (conferências familiares,
escuta, favorecimento de expressão de sentimentos, acolhimento) mais uma vez presente como uma questão
relevante. Ou seja, pode ser considerada como um fator de proteção para o luto complicado, quando se
apresenta clara, coesa, coerente e responsiva às necessidades da unidade de cuidado, isso porque resulta em
uma sensação de obtenção de senso de controle para a unidade de cuidado ( Franco, 2014). Além disso, foi
destacado por alguns entrevistados (fonoaudióloga, médica e farmacêutica clínica) o respeito à diversidade
cultural, às crenças e aos valores e como esses aspectos também guiam as atuações dos profissionais, assim
como influem no processo de luto. Tal constatação vai ao encontro do que foi abordado na Introdução, no
sentido de observar e perceber os fatores de risco e proteção para o luto complicado de acordo com o contexto,
cultura e significado que é dado.
Tomando como base o que foi discutido sobre as percepções dos profissionais a respeito das suas
contribuições para o processo de luto da unidade de cuidado, as autoras constataram que a atuação e os
comportamentos dos profissionais não têm como atenção primária o luto, ou seja, o trabalho não é guiado
visando à prevenção do luto complicado. As autoras compreenderam que a atenção e o trabalho do luto da
unidade de cuidado é uma parte dos cuidados paliativos, que fica mais evidente na fase final de vida do
paciente – apesar de o luto antecipatório não necessariamente estar presente apenas nessa fase. Os valores e
pressupostos dos cuidados paliativos determinam comportamentos e formas de atuação (apoio, escuta,
disponibilidade, orientação, entre outros) que inevitavelmente acabam por ser compreendidos como fatores de
proteção para o luto complicado. O fato de serem atuações e posturas rotineiras, não apenas em fase final de
vida do paciente, pode dificultar a percepção da dimensão e importância que esses comportamentos podem
promover para um processo de luto normal e adaptativo para além da esfera hospitalar. Essa questão também
pode ser entendida pele viés da formação dos profissionais, uma vez que se constata que estes tiveram pouca
ou nenhuma base nas suas graduações sobre os processos de morte e morrer. Tal fato, por conseguinte,
corrobora para que os membros de equipes de cuidados paliativos não saibam, não identifiquem e não
reconheçam que seus comportamentos podem auxiliar na prevenção de luto complicado. Liberato (2015), diante
desse contexto, pontua a necessidade de se pensar na formação dos profissionais de saúde, através de um
processo educativo e contínuo, para que os mesmos se sintam habilitados e competentes no cuidado com
àqueles que sofrem.
Considerações finais
A realização desta pesquisa permitiu concluir e evidenciar que as formações dos profissionais de saúde ainda
são calcadas em um saber técnico e que há muito pouco ou nada sobre como lidar com o processo de morrer
de quem se cuida. Não obstante, observou-se que os profissionais que trabalham em cuidados paliativos,
devido aos pressupostos do mesmo e de uma vivência de fazer cuidados paliativos em final de vida, foram
buscar aprender, por necessidade de aprofundamento, sobre como cuidar da unidade de cuidado integralmente,
estando atentos às necessidades de cada um, o que acaba por perpassar o saber técnico. Disso florescem
comportamentos que são caracterizados como de apego, que resultam no desenvolvimento de uma base
segura e que podem ser compreendidos como fatores de proteção para um luto complicado da unidade de
cuidado. Estes comportamentos, frutos da prática dos cuidados paliativos, são identificados e percebidos como
de rotina e naturais neste contexto, o que pode dificultar a percepção dos profissionais sobre a dimensão e
influência positiva e adaptativa destes para a prevenção de luto complicado. Isto pode ser entendido pela falta
de conhecimento sobre o processo de morrer e processo de luto, por isso a importância da educação dos
profissionais em relação a estes assuntos. As autoras compreendem que a percepção dos membros da equipe
sobre a influência de suas ações no processo de luto pode contribuir para a busca de aprimoramento e
qualificação diante do processo de morrer do paciente.
Ressalta-se que os participantes foram questionados sobre experiências pessoais em cuidados paliativos,
porém estas informações não foram utilizadas com o cuidado de que os objetivos do estudo não fossem
desviados. Este fato foi considerado uma limitação. Ademais, uma outra limitação da pesquisa foi o não acesso
aos profissionais das áreas de fisioterapia e nutrição, os quais em sua maioria fazem parte do corpo de
colaboradores dos hospitais, porém não têm a inserção formal nas equipes de cuidados paliativos.
14
Por fim, o presente estudo permitiu que as autoras pudessem pensar em investigar a questão do
acompanhamento pós-óbito como fator de proteção para luto complicado, na medida em que pode ser utilizado
como ferramenta de identificação de fatores de risco e proteção para luto complicado. Além disso, tal
acompanhamento pode acabar por evidenciar o quanto os profissionais de saúde, através de seus
comportamentos de apego, podem ser considerados fatores de proteção para luto complicado.
Psicologia hospitalar; Psicologia da saúde; Formação profissional; Mercado de trabalho; Realidade social
brasileira
O questionamento sobre Psicologia Hospitalar x Psicologia da Saúde começou com a experiência do doutorado
no exterior, onde descobrimos, surpreendidas, que a tão difundida especialização na Psicologia, denominada no
Brasil de Hospitalar, é inexistente em outros países. A aproximação ao que seria no Brasil a Psicologia
Hospitalar é denominada Psicologia da Saúde em outros países. Entretanto, esses dois conceitos não são
equivalentes, em primeiro lugar, pelo próprio significado de tais termos – saúde e hospital. Enquanto saúde se
refere a um conceito complexo relativo às funções orgânicas, físicas e mentais (WHO, 2003), hospital diz
respeito a uma instituição concreta onde se tratam doentes, internados ou não. Assim, o próprio significado da
palavra saúde leva-nos a refletir sobre a prática profissional centrada na intervenção primária, secundária e
terciária1 . Já quando nos referimos ao hospital, automaticamente, pensamos em algum tipo de doença já
instalada, só sendo possível a intervenção secundária e terciária para prevenir seus efeitos adversos, sejam
eles físicos, emocionais ou sociais.
Essas diferenças fizeram-nos refletir sobre a nossa própria formação e prática profissional, o que fez surgir
algumas perguntas:
• A formação básica universitária e a pós-graduação preparam o psicólogo para a atuação nessas áreas?
A partir dessas perguntas, no decorrer do trabalho, buscamos aporte teórico como base para refletir sobre cada
questionamento proposto .
A Psicologia da Saúde tem como objetivo compreender como os fatores biológicos, comportamentais e sociais
influenciam na saúde e na doença (APA, 2003). Na pesquisa contemporânea e no ambiente médico, os
psicólogos da saúde trabalham com diferentes profissionais sanitários, realizando pesquisas e promovendo a
intervenção clínica. Complementar a essa definição, o Colégio Oficial de Psicólogos da Espanha (COP, 2003)
conceitua a Psicologia da Saúde como a disciplina ou o campo de especialização da Psicologia que aplica seus
princípios, técnicas e conhecimentos científicos para avaliar, diagnosticar, tratar, modificar e prevenir os
problemas físicos, mentais ou qualquer outro relevante para os processos de saúde e doença. Esse trabalho
pode ser realizado em distintos e variados contextos, como: hospitais, centros de saúde comunitários,
organizações não-governamentais e nas próprias casas dos indivíduos. A Psicologia da Saúde também poderia
ser compreendida como a aplicação da Psicologia Clínica no âmbito médico.
A Psicologia da Saúde já é uma área consolidada internacionalmente, e, no Brasil, está conquistando cada vez
mais seu espaço. Historicamente, a American Psychological Association (APA, 2003) foi a primeira associação
de psicólogos a criar um grupo de trabalho na área da saúde em 1970. Em 1979, foi criada a divisão 38,
chamada Health Psychology, cujos objetivos básicos são avançar no estudo da Psicologia como disciplina que
compreende a saúde e a doença através da pesquisa e encorajar a integração da informação biomédica com o
conhecimento psicológico, fomentando e difundindo a área. A APA publica, desde 1982, a revista Health
Psychology, a primeira oficial da área. Seguindo a tendência, em 1986, formou-se, na Europa, a
European Health Psychology Society (EHPS, 2003), uma organização profissional que visa a promover a
pesquisa teórica e empírica e suas aplicações para a Psicologia da Saúde européia. Cada país-membro possui,
ainda, sua associação de Psicologia da Saúde, que realiza atividades como congressos, simpósios, pesquisas
etc. Foram criadas várias revistas especializadas: British Journal of Health Psychology (Reino Unido), Revista
de Psicologia de la Salud (Espanha), Psicologia della Salutte (Itália), <i>Gedrag & Gezondheid</I> (Bélgica),
entre outras.
16
Na América Latina, a Psicologia da Saúde também está desenvolvendo-se em alguns países. O primeiro
encontro de profissionais da área da saúde ocorreu em 1984, em Cuba, reuniu cerca de 1000 psicólogos
interessados e foi um marco propulsor para o avanço e o reconhecimento da área (Remor, 1999). A partir
desses encontros, constitui-se a ALAPSA, (2003), uma associação que reúne diversos países latino-
americanos. Os congressos promovidos pela ALAPSA são recentes, sendo que o primeiro deles ocorreu em
2001, no México, e o segundo, em 2003, na Colômbia (Flórez-Alarcon, 2003). Vinculados à ALAPSA, alguns
países latino-americanos possuem também sua própria associação de Psicologia da Saúde, como, por
exemplo, Colômbia, Cuba, México, Venezuela e Brasil (ALAPSA, 2003). A Psicologia da Saúde na América
Latina teve um rápido crescimento em recursos humanos, mas uma insuficiente incorporação dos psicólogos
nos setores de saúde. Apesar disso, essa área é a que mais absorveu psicólogos nos últimos 15 anos, no Brasil
e em outros países latino-americanos, principalmente na Argentina, mas a produção científica continua escassa.
Em nível mundial, as pesquisas em Psicologia da Saúde estão sendo incrementadas, e 90% delas
correspondem aos países europeus, Estados Unidos, Japão e Austrália. Já na América Latina, percebe-se uma
insuficiência de estudos que possibilitem intervenções rápidas para os problemas de saúde de cada região,
respeitando suas especificidades e contextos socioeconômicos. Além disso, a formação profissional do
psicólogo latino-americano é limitada em nível de pós-graduação (Sebastiani, 2000). Várias situações existentes
na América Latina refletem também a posição brasileira da Psicologia da Saúde.
A confusão entre o que seria a área clínica, a área da saúde e também a Psicologia Hospitalar não é somente
de ordem semântica, mas também de ordem estrutural, ou seja, estão em jogo os diferentes marcos teóricos ou
concepções de base acerca do fazer psicológico e sua inserção social. Justamente dessas diferenças, e/ou
antagonismos teórico-ideológicos, surge uma Psicologia da Saúde (Yanamoto & Cunha, 1998). Considerando
essas possíveis confusões, é importante esclarecer, também, o conceito de Psicologia Clínica.
O especialista em Psicologia Clínica (CRP, 2003) também atua na área da saúde em diferentes contextos, além
do consultório particular, inclusive em hospitais, unidades psiquiátricas, programas de atenção primária, postos
de saúde etc., prevenindo doenças no âmbito primário, secundário e terciário. Como se pode observar, esse
conceito, de fato, está intimamente associado ao que é Psicologia da Saúde. Furtado (1997), nesse sentido,
argumenta que os limites da Psicologia Clínica também são tênues, e o próprio ensino universitário é
diversificado em seu planejamento. A autora chegou a essa conclusão a partir de um estudo que analisou o
plano das disciplinas em 10 universidades do Rio Grande do Sul. Apesar das imprecisões entre essas duas
áreas, é importante diferenciá-las. A Psicologia Clínica centra sua atuação em diversos contextos e
problemáticas em saúde mental, enquanto a Psicologia da Saúde dá ênfase, principalmente, aos aspectos
físicos da saúde e da doença (Kerbauy, 2002).
Enfim, a Psicologia da Saúde, com base no modelo biopsicosossocial, utiliza os conhecimentos das ciências
biomédicas, da Psicologia Clínica e da Psicologia Social-comunitária (Remor, 1999). Por isso, o trabalho com
outros profissionais é imprescindível dentro dessa abordagem. Essa área fundamenta seu trabalho
principalmente na promoção e na educação para a saúde, que objetiva intervir com a população em sua vida
cotidiana antes que haja riscos ou se instale algum problema de âmbito sanitário. O trabalho é multiplicador,
uma vez que capacita a própria comunidade para ser agente de transformação da realidade, pois aprende a
lidar, controlar e melhorar sua qualidade de vida. Dessa maneira, torna-se evidente que a Psicologia da Saúde
dá ênfase às intervenções no âmbito social e inclui aspectos que vão além do trabalho no hospital, como é o
caso da Psicologia Comunitária (Besteiro & Barreto, 2003; Gonzalez-Rey, 1997).
De acordo com a definição do órgão que rege o exercício profissional do psicólogo no Brasil, o CFP (2003a), o
psicólogo especialista em Psicologia Hospitalar tem sua função centrada nos âmbitos secundário e terciário de
atenção à saúde, atuando em instituições de saúde e realizando atividades como: atendimento
psicoterapêutico; grupos psicoterapêuticos; grupos de psicoprofilaxia; atendimentos em ambulatório e unidade
de terapia intensiva; pronto atendimento; enfermarias em geral; psicomotricidade no contexto hospitalar;
avaliação diagnóstica; psicodiagnóstico; consultoria e interconsultoria.
17
Para que possamos entender o surgimento e a consolidação do termo Psicologia Hospitalar em nosso país, é
importante ressaltar que as políticas de saúde no Brasil são centradas no hospital desde a década de 40, em
um modelo que prioriza as ações de saúde via atenção secundária (modelo clínico/assistencialista), e deixa em
segundo plano as ações ligadas à saúde coletiva (modelo sanitarista). Nessa época, o hospital passa a ser o
símbolo máximo de atendimento em saúde, idéia que, de alguma maneira, persiste até hoje. Muito
provavelmente, essa é a razão pela qual, no Brasil, o trabalho da Psicologia no campo da saúde é denominado
Psicologia Hospitalar, e, não, Psicologia da Saúde (Sebastiani, 2003).
É importante ressaltar que nós nos deparamos com dificuldades para encontrar material teórico e pesquisas na
literatura científica internacional sobre a Psicologia Hospitalar como campo específico. Uma das razões seria
que essa denominação é inexistente em outros países além do Brasil (Sebastiani, 2003; Yanamoto, Trindade &
Oliveira, 2002). Yanamoto, Trindade e Oliveira (2002) e Chiattone (2000), inclusive, explicam que o termo
Psicologia Hospitalar é inadequado porque pertence à lógica que toma como referência o local para determinar
as áreas de atuação, e não prioritariamente às atividades desenvolvidas. Se já existe fragmentação das práticas
e dispersão teórica da Psicologia, a adoção do termo Psicologia Hospitalar caminha no sentido oposto à busca
de uma identidade para o psicólogo como profissional da saúde que atua em hospitais (Yanamoto, Trindade &
Oliveira, 2002).
Diferente do Brasil, em alguns outros países, a identidade do psicólogo especialista está associada à sua
prática e não ao local em que atua. A APA (2003) e o COP (2003), por exemplo, demarcam o trabalho do
psicólogo em hospitais como um dos possíveis locais em que atua o psicólogo da saúde. Especificamente na
Espanha, Rodríguez-Marín (2003) e Besteiro e Barreto (2003) definem que o marco conceitual da Psicologia da
Saúde é o que deve servir de base para a Psicologia Hospitalar. Entretanto, definição parecida a essa é a da
brasileira Chiattone (2000), que diz que a Psicologia Hospitalar é apenas uma estratégia de atuação em
Psicologia da Saúde, e que, portanto, deveria ser denominada “Psicologia no contexto hospitalar”. Rodríguez-
Marín (2003) esclarece que a Psicologia Hospitalar é, então, o conjunto de contribuições científicas, educativas
e profissionais que as diferentes disciplinas psicológicas fornecem para dar melhor assistência aos pacientes no
hospital. O psicólogo hospitalar seria aquele que reúne esses conhecimentos e técnicas para aplicá-los de
maneira coordenada e sistemática, visando à melhora da assistência integral do paciente hospitalizado, sem se
limitar, por isso, ao tempo específico da hospitalização. Portanto, seu trabalho é especializado no que se refere,
fundamentalmente, ao restabelecimento do estado de saúde do doente ou, ao menos, ao controle dos sintomas
que prejudicam seu bem-estar.
Rodriguez-Marín (2003) sintetiza as seis tarefas básicas do psicólogo que trabalha em hospital:
Chiattone (2000) ressalta, contudo, que, muitas vezes, o próprio psicólogo não tem consciência de quais sejam
suas tarefas e papel dentro da instituição, ao mesmo tempo em que o hospital também tem dúvidas quanto ao
que esperar desse profissional. Se o psicólogo simplesmente transpõe o modelo clínico tradicional para o
hospital e verifica que este não funciona como o esperado (situação bastante freqüente), isso pode gerar
dúvidas quanto à cientificidade e efetividade de seu papel. Desse modo, segundo a autora, o distanciamento da
realidade institucional e a inadequação da assistência mascarada por um falso saber pode gerar experiências
malsucedidas em Psicologia Hospitalar.
A partir das definições expostas de Psicologia da Saúde, que pode se confundir com a Psicologia Clínica e com
a Psicologia Hospitalar, encontramos semelhanças no que tange às formas de atuação prática dos especialistas
dessas distintas áreas. A psicoterapia individual ou grupal, por exemplo, é uma tarefa que pode ser
desenvolvida dentro dos três campos citados. Contudo, percebemos também particularidades fundamentais. A
Psicologia Clínica propõe um trabalho amplo de saúde mental nos três níveis de atuação – primário, secundário
e terciário - e a Psicologia da Saúde também propõe um trabalho abrangente nesses mesmos níveis, mas
aplicada ao âmbito sanitário, enfatizando as implicações psicológicas, sociais e físicas da saúde e da doença.
No que diz respeito à Psicologia Hospitalar, sua atuação poderia ser incluída nos preceitos da Psicologia da
18
Para que o psicólogo esteja capacitado a trabalhar em saúde, é imprescindível refletir se sua formação lhe dá
as bases necessárias para essa prática. A aprendizagem não deve ser só teórica e técnica, pois o psicólogo
tem que ser comprometido socialmente, estar preparado para lidar com os problemas de saúde de sua região e
ter condições de atuar em equipe com outros profissionais.
Segundo Sebastiani, Pelicioni e Chiattone (2002), a formação do psicólogo na América Latina e no Brasil está
vinculada basicamente ao tratamento individual baseado no modelo clínico, que é a base de sua identidade
profissional. Entretanto, devido à grande demanda de trabalho existente no âmbito sanitário, muitas vezes
profissionais mal- preparados seguem trabalhando no antigo modelo clínico individual e atuam na área da
saúde sem ter conhecimento das ferramentas necessárias para uma atuação coletiva de prevenção e
intervenção.
No Brasil, a formação em Psicologia é deficitária no que se refere aos conhecimentos da realidade sanitária do
País, à participação em pesquisas e em políticas de saúde, indispensáveis para a determinação da sua prática
e para o aprimoramento da especialidade (Dimenstein, 2000; Sebastiani, 2003). Essa formação elitista distancia
o aluno e o profissional das demandas sociais existentes, não os habilitando para lidar com o sofrimento físico
sobreposto ao sofrimento psíquico, a injustiça social, a fome, a violência e a miséria (Chiattone, 2000). Em
conseqüência, enquanto as classes privilegiadas têm acesso ao tratamento psicológico, as classes menos
favorecidas ficam desassistidas, pois o tratamento clínico gratuito em instituições públicas e clínicas-escola não
abarca as necessidades de grande parte da população. Muitas vezes, são ensinadas teorias incompatíveis com
a demanda e a realidade social, promovendo uma concepção de sujeito desvinculada do seu contexto
sociopolítico e cultural. Obviamente, essas incongruências na formação de base geram dúvidas quanto à
cientificidade da tarefa do psicólogo em alguns casos onde a realidade é a da extrema pobreza, já que a
graduação em Psicologia dá ênfase ao modelo psicodinâmico e suas implicações clínicas, voltadas para a
população mais privilegiada. Em síntese, a formação em Psicologia deixa praticamente de lado temáticas
relacionadas às questões macrossociais relativas à saúde, contribuindo para a manutenção das estruturas
sociais e das relações de poder sem utilizar todo o seu potencial questionador e transformador (Almeida, 2000;
Dimenstein, 2000).
A falta de pesquisas na área também não privilegia ações de prevenção de saúde e, sim, ações emergenciais.
Tal situação distorce o trabalho profissional, provoca o afastamento entre acadêmicos e profissionais e não
contribui para a ampliação da prática e para a incorporação de psicólogos recém-formados que querem
trabalhar na área. Com a necessidade crescente de demonstração das evidências dos resultados das
intervenções psicológicas – o que se chama prática baseada em provas – o desenvolvimento da pesquisa
básica e aplicada é imprescindível (Ulla & Remor, 2003). As evidências dos bons resultados das intervenções
psicológicas, além de propiciarem avanços no atendimento direto às pessoas, também abrem campo de
trabalho ao psicólogo. Um exemplo seria o caso de alguns governos de países europeus que decidiram custear
o tratamento psicológico através da saúde pública sempre que se cumpram critérios de eficácia, efetividade e
eficiência.
Então, qual seria a formação indicada para os psicólogos que desejam trabalhar no âmbito da saúde? Besteiro
e Barreto (2003) afirmam que a formação do psicólogo da saúde deve contemplar conhecimentos sobre: bases
biológicas, sociais e psicológicas da saúde e da doença; avaliação, assessoramento e intervenção em saúde,
políticas e organização de saúde e colaboração interdisciplinar; temas profissionais, éticos e legais e
conhecimentos de metodologia e pesquisa em saúde. Com relação ao psicólogo da saúde que atua
especificamente em hospitais, é indispensável um bom treinamento em três áreas básicas: clínica, pesquisa e
programação. Com relação à a área clínica, o psicólogo deve ser capaz de realizar avaliações e intervenções
psicológicas. Na área de pesquisa e comunicação, é necessário saber conduzir pesquisas e comunicar
informações de cunho psicológico a outros profissionais. Por fim, quanto à área de programação, o profissional
deve desenvolver habilidades para organizar e administrar programas de saúde. Com essa formação integrada,
é possível melhorar a qualidade da atenção prestada, garantir que as intervenções implantadas sejam as mais
eficazes para cada caso, diminuir custos e aumentar os conhecimentos sobre o comportamento humano e suas
relações com a saúde e a doença (Ulla & Remor, 2003).
19
Neste momento em que somos incitados a refletir sobre nossa profissão para aperfeiçoar nossos modelos de
atuação profissional, como ocorre com a Psicologia da Saúde, é importante considerar sempre o aspecto social
em que estamos inseridos, compreendendo a realidade do nosso país. O Brasil é o país das contradições, ao
mesmo tempo em que é a décima primeira economia mundial, portanto, um país rico, ao passo que 1/3 de sua
população é pobre, melhor dito, miserável (WHO, 2003). Um terço de aproximadamente 170 milhões de
pessoas significa que 55 milhões vivem abaixo da linha da pobreza. Para termos uma dimensão ainda mais
clara dessa dura realidade, podemos pensar que é como se toda a população dos nossos vizinhos Argentina,
Chile e Uruguai fossem miseráveis, isto é, aqueles que não possuem as condições mínimas de moradia,
alimentação, educação e saúde. O Brasil também é o país das contradições em si mesmo, ou seja, são também
gigantescas as diferenças econômicas e educacionais da Região Sul/Sudeste e da Norte/Nordeste/Centro-
Oeste. Enfim, é uma nação rica com muitos pobres, como ilustra a tabela:
Como podemos observar a partir desses dados, a situação do nosso país é alarmante devido principalmente às
desigualdades existentes. Isso exige de nós, como profissionais e cidadãos brasileiros, em primeiro lugar, um
conhecimento profundo dessa triste realidade. Conhecendo a situação que se apresenta, a consolidação de um
trabalho de promoção da saúde pode tornar-se efetivo. Entretanto, nós, enquanto profissionais da saúde,
estamos preparados para essa realidade? Acreditamos que, em muitos aspectos, não. Parece-nos, às vezes,
que os profissionais da Psicologia são um “retrato” da desigualdade da sociedade brasileira, com suas práticas
elitistas que beneficiam uma pequena parcela da população. Um exemplo seria a utilização indiscriminada da
prática da psicoterapia individual, em contextos em que a população ou tem outras necessidades mais básicas,
ou até não chega à instituição por falta de recursos. Confirma essa idéia a recente pesquisa realizada sobre o
perfil do psicólogo brasileiro (CFP, 2003b), mostrando que 54,9% dos psicólogos que exercem a profissão
trabalham na clínica em consultório particular, enquanto apenas 12,4% dos profissionais atuam em Psicologia
da Saúde e 0,6% são pesquisadores.
Queremos esclarecer que consideramos a prática psicoterápica individual fundamental, e, sem dúvida, um dos
pilares da Psicologia. Entretanto, é indispensável que sua indicação seja correta. O que questionamos neste
trabalho é o uso indiscriminado de tal modalidade de intervenção em determinados setores ou contextos em
que existem outros tipos de intervenção mais condizentes com as necessidades dos indivíduos. Como exemplo,
pensamos em duas situações em que a indicação de psicoterapia individual é questionável: a primeira, no
contexto hospitalar, e a segunda, na comunidade. Situação 1: num determinado hospital, digamos que exista
grande demanda para o setor da Psicologia com pacientes internados e se privilegie o trabalho individual.
Tendo em vista a dificuldade de atender todos os pacientes, o setor decidiria, de acordo com seus próprios
critérios, atender apenas alguns pacientes, enquanto outros ficariam excluídos desse tipo de ajuda. Situação 2:
digamos que, num posto de saúde, exista, na sala de espera do ginecologista, várias mulheres infectadas pelo
HIV. O setor da Psicologia decide, por sua vez, oferecer inscrição na lista de espera para atendimento individual
psicoterápico. No entanto, essas pessoas seriam chamadas para atendimento, na melhor das hipóteses, dentro
de um mês. A partir desses exemplos hipotéticos, mas que podem ocorrer na realidade, é provável que seja
mais produtivo realizar trabalhos grupais (em suas distintas modalidades) enfocando a problemática comum nos
dois casos.
20
Nesse sentido, Moura (2003), refletindo sobre “a psicologia que temos e a psicologia que queremos”, analisa
essa prática tradicionalmente empreendida pelos psicólogos. Com a diminuição da procura de clientes para os
seus consultórios particulares devido ao empobrecimento da população, os psicólogos foram obrigados a
trabalhar com pessoas cada vez mais carentes. Isso gerou o que a autora denominou uma “crise na Psicologia”,
a partir da discrepância entre as propostas terapêuticas e a realidade do Brasil. A prática profissional passou a
ser questionada no que tange à eficácia e adequação da Psicologia frente às questões de ordem social.
Dimenstein (2000) afirma, ainda, que muitos dos problemas dos quais o psicólogo passou a deparar-se
escapam do domínio da clínica, pois referem-se às condições de vida da população. Tais dificuldades passaram
a ser um entrave para as atividades de assistência pública à saúde tendo em vista a falta de preparo nessa
área.
Para mostrar tais discrepâncias, dois estudos empíricos relatam a prática de psicólogos no contexto hospitalar.
No primeiro estudo (Yanamoto & Cunha, 1998), foram entrevistadas cinco psicólogas, no segundo (Yanamoto,
Trindade &Oliveira, 2002), participaram 25, todos atuando em hospitais no Rio Grande do Norte. Foram
analisados os seguintes aspectos: formação acadêmica, trajetória profissional, caracterização das atividades
realizadas e avaliação do trabalho realizado nos hospitais. Dentre os resultados principais, aparece uma
formação universitária deficitária e não condizente com a prática profissional, condições adversas de trabalho e
práticas que, muitas vezes, não se distinguem do fazer clínico tradicional em consultório privado. Observa-se
que todos os profissionais que trabalham diretamente com os pacientes desenvolvem atividades psicoterápicas
em suas diversas modalidades: breve, de apoio, individual ou grupal .
Levando em conta a realidade de nosso país e de nossa profissão, perguntamo-nos: onde poderia se inserir o
psicólogo para abrir novas frentes de mercado de trabalho de acordo com as necessidades da população?
Um dos primeiros passos seria a inserção do psicólogo em equipes de saúde interdisciplinares. A interlocução
entre os diversos saberes seria a maneira de oferecer um cuidado mais completo, eficaz e de acordo com as
necessidades da população (Almeida, 2000; Kerbauy, 2002). Além da utilização de suas práticas e técnicas
usuais, o psicólogo também poderia participar politicamente das decisões sanitárias. Relacionado a isso,
algumas mudanças já se percebem. Por exemplo, nos últimos anos, o Conselho Federal de Psicologia vem
trabalhando para transformar essa situação, tentando sensibilizar a categoria profissional para o
desenvolvimento de ações sociais em distintas áreas da Psicologia (Conselho Federal de Psicologia, 1994).
Assim, estudos sobre a prática profissional do psicólogo, no Brasil, têm apontado para dois movimentos
contrários: por um lado, a supremacia de atividades classificadas como pertencentes ao âmbito da clínica; por
outro, a emergência de movimentos buscando novas formas de inserção profissional.
O relato de Miyazaki et al. (2002) esclarece como pode ocorrer um processo de mudança permitindo maior
inserção profissional de acordo com a realidade do País. Descrevendo o desenvolvimento e estágio atual do
serviço de Psicologia de um hospital em São José do Rio Preto, os autores explicam a evolução de uma equipe
de psicologia eminentemente clínica individual para um trabalho dentro dos moldes do que seria a Psicologia da
Saúde. A intervenção individual não dava conta da demanda, e então foi instalado um programa denominado
Aprimoramento em Psicologia da Saúde. Este possuía duração de dois anos e combinava a prática à pesquisa
em Psicologia da Saúde. Segundo o relato, a atuação foi realizada em equipes interdisciplinares, abrangendo
os níveis primário, secundário e terciário de atendimento. As intervenções se davam no ambulatório, no
hospital, em centro de saúde-escola e na comunidade, sempre combinadas com pesquisas que justificassem
suas ações. O hospital, na atualidade (2002), possuía 40 psicólogos (docentes, contratados e aprimorandos).
A partir dessas idéias, evidencia-se o quanto urgem revisões e atualizações, tanto ao nível de formação
profissional quanto de estratégias de inserção dos psicólogos. É preciso romper com a “prática do silêncio”, que
compreende o indivíduo isolado da sociedade (Moura, 2003), e elaborar um modelo profissional que considere a
ação histórica dos homens. A Psicologia é uma ciência jovem, e sua participação histórica nos programas de
saúde tende a ser tímida. Queremos destacar a importância de podermos discutir, compreender e assumir a
função e o papel que nos cabe para transformar a realidade sanitária no País. O próprio psicólogo necessita
dessas reflexões para que, efetivamente, torne seu trabalho vetor nos programas de saúde e abra espaço para
a atuação de novos profissionais nessas equipes.
Em última análise, acreditamos que, se o indivíduo não pode vir até o psicólogo, o psicólogo pode ir até ele.
Isso significa entrar em contato com a dura realidade do nosso país. Conhecendo a população brasileira, os
psicólogos podem utilizar seus conhecimentos para chegar a todos, independentemente de seus recursos: os
que têm condições e desejam um tratamento particular, e também aqueles que nem sequer sabem o quanto
poderiam ser ajudados por profissionais dessa área.
21
Considerações Finais
Como se verifica na tabela, a Psicologia da Saúde amplia a atuação do psicólogo hospitalar. Contudo, é
possível que, em muitos hospitais do Brasil, os psicólogos realizem seus trabalhos em distintos setores de
acordo com a definição da Psicologia da Saúde. No Brasil, entretanto, oficialmente, essa definição não existe
como especialização oficial definida pelo CRP, ao contrário da Psicologia Hospitalar, que é uma especialidade.
Nós nos perguntamos: essa definição exclusivamente brasileira de “Psicologia Hospitalar” é adequada?
Pensamos que, como essa denominação já está consolidada na linguagem dos psicólogos e de outros
profissionais da saúde brasileiros, parece óbvio que permaneça. No entanto, estamos de acordo com Chiattone
(2000), Yanamoto e Cunha (1998) e Yanamoto, Trindade e Oliveira (2002) quando declaram que seria mais
adequado referir-nos à Psicologia no contexto hospitalar como um trabalho que faz parte da Psicologia da
Saúde. Além disso, consideramos importante ressaltar que essa denominação pode ser inadequada se
tratarmos a Psicologia da Saúde como sinônimo de Psicologia Hospitalar, pois intervenções em saúde que
necessitariam ser realizadas fora do hospital poderiam não ser supridas, principalmente aquelas relativas à
prevenção primária. Todas essas questões estão diretamente associadas às reais necessidades e demandas
da população brasileira.
A polêmica sobre a existência de uma área única abrangente ou de duas áreas distintas, Psicologia Clínica ou
Psicologia da Saúde, é tema de debate internacional (Yanamoto, Trindade & Oliveira, 2002), e claro, deve ser
prioritariamente nacional. Nossa inquietude frente às mencionadas contradições das áreas de especialização e
ainda da existência de uma Psicologia Hospitalar brasileira foi a mola propulsora para a presente reflexão.
Estando fora do Brasil, vimos “de longe”, e assim, de maneira distinta, nossa realidade, tanto de país quanto de
profissão. Justamente por acreditarmos no desenvolvimento do Brasil e da Psicologia propomos este
questionamento. Mais que respostas, temos perguntas. Mais que certezas, temos inquietações. Mais que
conformismo, temos a esperança neste país, dito em desenvolvimento, em que existem realidades de primeiro e
terceiro mundo que se chocam constantemente. /// Recebido em 27/03/02. Aprovado em 08/08/04
O Cuidado Paliativo surge como uma filosofia humanitária de cuidar de pacientes em estado terminal, aliviando
a sua dor e o sofrimento. Estes cuidados prevêem a ação de uma equipe interdisciplinar, onde cada profissional
reconhecendo o limite da sua atuação contribuirá para que o paciente, em estado terminal, tenha dignidade na
sua morte. Este artigo trata a questão da morte e do morrer, tanto na visão tradicional como na
contemporaneidade, e como o cuidado paliativo tem sido tratado nas categorias de trabalho de medicina,
serviço social, psicologia e enfermagem. A metodologia deste trabalho consiste na revisão bibliográfica de
artigos localizados na base de dados Scielo, revistas eletrônicas e livros técnicos relacionados com o tema. A
análise dos artigos apontou para uma carência de disciplinas que tratem da temática da morte nos currículos
profissionais, para poucos serviços de cuidados paliativos na sociedade brasileira e para barreiras que se
colocam a esse novo olhar ao paciente terminal. Esta pesquisa visa ampliar a discussão dos cuidados paliativos
na saúde pública, e fornecer subsídios a futuros estudos que tratarão da temática.
Introdução
O termo "cuidados paliativos" é utilizado para designar a ação de uma equipe multiprofissional à pacientes fora
de possibilidades terapêuticas de cura. A palavra "paliativa" é originada do latim palliun que significa manto,
proteção, ou seja, proteger aqueles em que a medicina curativa já não mais acolhe. Segundo o Manual dos
Cuidados Paliativos1, a origem do mesmo se confunde historicamente com o termo "hospice" - abrigos que
tinham a função de cuidar dos viajantes e peregrinos doentes. Essas instituições eram mantidas por religiosos
cristãos dentro de uma perspectiva caridosa.
O movimento hospice contemporâneo foi introduzido pela inglesa Cicely Saunders em 1967, com a fundação do
Saint Christopher Hospice, no Reino Unido. Essa instituição prestava assistência integral ao paciente desde o
controle dos sintomas até alívio da dor e sofrimento psicológico. A partir de então surge uma nova filosofia no
cuidar dos pacientes terminais.
Os Cuidados Paliativos foram definidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1990, e redefinidos em
2002, como sendo uma abordagem que aprimora a qualidade de vida, dos pacientes e famílias que enfrentam
problemas associados com doenças, através da prevenção e alívio do sofrimento, por meio de identificação
precoce, avaliação correta e tratamento da dor, e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual 1.
Seus princípios incluem: reafirmar a importância da vida, considerando a morte como um processo natural;
estabelecer um cuidado que não acelere a chegada da morte, nem a prolongue com medidas desproporcionais
(obstinação terapêutica); propiciar alívio da dor e de outros sintomas penosos; integrar os aspectos psicológicos
e espirituais na estratégia do cuidado; oferecer um sistema de apoio à família para que ela possa enfrentar a
doença do paciente e sobreviver ao período de luto².
Devem reunir as habilidades de uma equipe interdisciplinar para ajudar o paciente a adaptar-se às mudanças
de vida impostas pela doença, pela dor, e promover a reflexão necessária para o enfrentamento desta condição
de ameaça à vida para pacientes e familiares¹.
O processo de viver se prolongou de uma forma exponencial nas últimas décadas, devido às inovações
tecnológicas que impactaram no aumento da sobrevida, e isto nos faz perceber que a morte, na maioria das
vezes, já não é um episódio e sim um processo, às vezes até prolongado, demorando anos e até mesmo
décadas dependendo da enfermidade³.
Estudos do IBGE4 mostram que entre 1901 e 2000, a população brasileira passou de 17,4 para 169,6 milhões
de pessoas, e a expectativa de vida de um homem brasileiro subiu dos 33,4 anos em 1910 para os 64,8 anos
em 2000. Entretanto, junto com o prolongamento da vida, os profissionais de saúde começaram a perceber que
mesmo não havendo cura, há uma possibilidade de atendimento, com ênfase na qualidade de vida e cuidados
aos pacientes, por meio de assistência interdisciplinar, e da abordagem aos familiares que compartilham deste
processo e do momento final da vida - os cuidados paliativos.
Assim, ao mesmo tempo em que os cuidados paliativos são recentes no país, e desconhecidos por um grande
contingente de profissionais que trabalham com pacientes em fase terminal, algumas questões se colocam:
como as categorias profissionais de medicina, enfermagem, psicologia e serviço social estão pensando o
cuidado paliativo? Quais os aspectos que estão sendo abordados? Quais as ações desenvolvidas por cada
categoria profissional sobre o termo? Há convergência entre os profissionais em relação à utilização do
conceito?
23
Este artigo tem como objetivo analisar como as categorias profissionais descritas acima, estão abordando os
cuidados paliativos. Para isso foi realizada a revisão da literatura de artigos científicos, extraídos nas bases de
dados Scielo (Scientific Eletronic Library Online), no período compreendido entre 2000 e 2011. Os descritores
utilizados foram: cuidados paliativos; cuidados paliativos e equipe interdisciplinar (médico, assistente social,
psicólogo, enfermeiro). Os artigos foram selecionados após analise de título, do resumo e do conteúdo, e
classificados em quatro grupos, correspondendo às categorias profissionais escolhidas para a análise, como
mostra o Quadro 1.
24
A escolha das categorias profissionais se justifica por serem as mais próximas à abordagem dos cuidados
paliativos, uma vez que estão em contato direto com os pacientes e seus familiares.
Muitos artigos encontrados no levantamento bibliográfico foram descartados, por não conterem as informações
necessárias para responder as questões propostas neste trabalho, mesmo tendo os mesmos descritores
propostos pela pesquisa.
Falar sobre a morte sempre foi um tema incômodo para muitas pessoas, tendo em vista os mistérios e tabus
que envolvem o assunto. Porém "o morrer" vem se transformando com o decorrer do tempo. Com as
tecnologias cada vez mais avançadas é possível retardar, atenuar, diminuir a dor do indivíduo terminal. Ou seja,
a morte tem deixado de ser um episódio para se tornar um processo3. De acordo com Ariès24 a morte na idade
média era vista como natural e justa. O doente era o protagonista da cena e, nos momentos que precediam a
sua morte, era de fundamental importância que os amigos e familiares, incluindo crianças, estivessem
presentes. Dessa forma, poderia pedir perdão aqueles que o rodeava e assim considerava-se preparado para
morrer.
Para Ariès24 durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a morte foi caracterizada de maneira diferente. O homem
começa a pensar mais na morte do outro, em virtude das transformações que ocorrem na concepção de família,
a qual passa a ser mais fundada no afeto. A morte passa a ser encarada como inimiga, como uma violação que
arranca o indivíduo do seu seio familiar.
Ariès24, em seus estudos sobre a morte no ocidente, afirma que há uma mudança na forma de encarar esse
fenômeno. No século XIX a morte era vista como transgressão ao afeto e à união, ao tirar o homem de sua vida
cotidiana, o que gerava sentimento de melancolia nos familiares. Já no século XX a morte deve ser escondida a
qualquer custo. O luto neste período é cada vez mais discreto, e as formalidades para enterrar o corpo são
cumpridas rapidamente, como se houvesse uma ânsia por fazer desaparecer e esquecer tudo o que pode restar
do corpo. O indivíduo que antes morria junto aos seus familiares, passa a morrer em centros médicos,
compreendidos como os locais mais apropriados.
Se antes o indivíduo morria rodeado de amigos e familiares - um episódio público - agora morre só, internado,
em unidades de terapia intensiva, invadido por tubos, cercado por aparelhos. Esse modelo de morte, como
afirma Menezes25 é denominado morte moderna, que vem acompanhado de um profundo processo de
despersonalização dos internados em hospitais, o crescente poder médico e a desumanização dos pacientes.
Menezes25 considera que o processo de medicalização social teria surgido no século XIX, e se desenvolvido no
século XX, onde foram criados vários recursos para manutenção da vida. Entre eles estão: os pulmões de aço,
respiradores artificiais, desfibriladores, monitores de funções corporais, aparelhos de diálise, afora as estruturas
institucionais e arquiteturas hospitalares que passavam por mudanças, com a criação das Unidades de Terapia
Intensivas, centro de tratamento para queimados, aparelhagem moderna e equipes altamente especializadas.
Com isso, o homem moderno vive como se jamais fosse morrer, e a morte se torna algo distante. Isto acontece
devido ao avanço das tecnologias, dos estudos genéticos, da biomedicina, o ideário de culto ao corpo, excesso
de atividades físicas, a juventude sendo buscada a qualquer custo, que traz a percepção de que a vida se
prolonga e a morte se distancia3.
Enquanto no modelo da morte moderna, "a morte é, tanto para o médico como para o hospital, antes de tudo,
um fracasso"25, no modelo contemporâneo da boa morte, a equipe de saúde a compreende de modo distinto e,
consequentemente, busca posicionar-se de nova forma. A proposta dos profissionais consiste em assistir o
paciente até seus últimos momentos, buscando minimizar, tanto quanto possível, sua dor e desconforto, e dar
suporte emocional e espiritual a seus familiares 25.
Para Floriani e Schramm26, o conceito de boa morte tem sido empregado em cenários que requerem certas
características, como a morte sem dor, de acordo com os desejos do paciente, no ambiente familiar, sem
sofrimentos e em um ambiente de harmonia. Os autores mencionam que essa pode ser uma situação difícil
quando há, por parte da equipe que acompanha o paciente, uma postura mais rígida quanto aos conhecimentos
teóricos que baseiam as ações em cuidados paliativos. Para eles, a alta tecnologia e os cuidados paliativos não
deveriam ser vistos como práticas contraditórias.
25
A filosofia da morte contemporânea é marcada pelo empenho dos profissionais em tornar o fim da vida do
paciente em um momento digno, em assisti-lo até seu último suspiro, dar voz ao mesmo, permitir escolhas,
principalmente do lugar onde deseja morrer.
Menezes25 aponta que a morte contemporânea deve acontecer da maneira mais natural possível. Da mesma
forma que o parto, onde a parturiente se prepara para dar à luz e existem exercícios para diminuir a ansiedade,
assim também deve ser o paciente diante da morte, e nesses casos a família é de real importância. Quando o
indivíduo decide morrer no seu próprio lar, os profissionais de saúde consideram os familiares como membros
da equipe de cuidados paliativos, pois os mesmos auxiliarão a equipe nos cuidados com o paciente.
A filosofia da morte contemporânea ainda é recente, e será necessário um bom tempo para se estruturar, não
somente na sociedade brasileira, mas no mundo como um todo, tendo em vista a dificuldade para o ser humano
lidar com um assunto que, mais cedo ou mais tarde, passará também por ele. Em contrapartida, percebe-se
também que já existe uma preocupação do estudo do assunto na sociedade brasileira e no mundo visto que há
um envelhecimento da população, assim como um aumento da prevalência do câncer e outras doenças
crônicas.
A história dos cuidados paliativos no Brasil é recente, tendo se iniciado na década de 1980. Conforme
Peixoto27 o primeiro serviço de cuidados paliativos no Brasil surgiu no Rio Grande do Sul em 1983, seguidos da
Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, em 1986, e logo após em Santa Catarina e Paraná. Um dos serviços
que merece destaque é o Instituto Nacional do Câncer - INCA, do Ministério da Saúde, que inaugurou em 1998
o hospital Unidade IV, exclusivamente dedicado aos Cuidados Paliativos.
Em 1997, foi criada a Associação Brasileira de Cuidados Paliativos (ABCP), composta por um grupo de
profissionais interessados no assunto, que propunham prática de divulgação da filosofia dos cuidados paliativos
no Brasil.
Em 2000, surge o Programa do Hospital do Servidor Estadual de São Paulo que a principio tratou de pacientes
com câncer metastático, e posteriormente em 2003, criou uma enfermaria de cuidados paliativos.
Em fevereiro de 2005 foi criada a Academia Nacional de Cuidados paliativos (ANCP). A importância da mesma
para o Brasil transcende os benefícios para a medicina brasileira. Para os "paliativistas" a fundação da
academia é um marco não só para os cuidados paliativos no Brasil como para a medicina que é praticada no
país. A academia foi fundada com o objetivo de contribuir para o ensino, pesquisa e otimização dos cuidados
paliativos no Brasil1.
Cabe destacar outras experiências de cuidados paliativos no Brasil, tais como: O Projeto Casa Vida, vinculado
ao Hospital do Câncer de Fortaleza, no Ceará; o grupo de Cuidados Paliativos em AIDS do Hospital Emílio
Ribas de São Paulo, que se tornou referência para o Brasil; o trabalho da equipe de Londrina no Programa de
Internação Domiciliar da Prefeitura, assim como vários núcleos ligados à assistência domiciliar em prefeituras
no Paraná e de várias cidades do Nordeste. Existem grupos atuantes nos Hospitais de Câncer de Salvador,
Barretos, Goiânia, Belém, Manaus e São Paulo, ambulatórios em Hospitais Universitários como o ambulatório
da UNIFESP, capitaneado pelo Prof. Marco Túlio de Assis Figueiredo, um nome emblemático na luta pelo
ensino dos Cuidados Paliativos no Brasil, as escolas de Botucatu e Caxias do Sul; o trabalho do Hospital de
Base de Brasília e do Programa de Cuidados Paliativos do Governo do Distrito Federal 28.
De acordo com Figueiredo17, ainda que de forma lenta, há um crescimento expressivo dos cuidados paliativos
no Brasil. De acordo com o mesmo autor, universidades, cursos de graduação e de pós-graduação deveriam ter
em suas grades disciplinas que tratem a temática dos cuidados paliativos. No entanto, isso não acontece, e na
maioria das vezes a experiência se dará apenas na prática, o que dificulta o trabalho das equipes de uma
maneira geral. Muitos médicos ainda se sentem receosos ao tratar do assunto, tendo em vista que podem ser
mal interpretados, ou confundidos com praticantes de eutanásia.
26
Dessa forma, é fundamental ampliar a discussão e a formação sobre os cuidados paliativos, aprimorando o
currículo dos cursos de graduação, com disciplinas que tratem da morte e dos cuidados, e na conscientização
da própria população que pouco discute a temática.
Ainda não há no Brasil uma Política Nacional de Cuidados Paliativos. O Ministério da Saúde vem consolidando
formalmente os cuidados paliativos no âmbito do sistema de saúde do país, por meio de portarias e
documentos, emitidos pela Agência Nacional de vigilância Sanitária e pelo próprio Ministério da Saúde. De
acordo com Rabello e Rodrigues29 há apenas um instrumento legal (Portaria GM/MS nº 2.439/2005) que inclui
os cuidados paliativos na Política Nacional de Atenção Oncológica. Dessa forma, exclui as demais doenças e
pacientes que também necessitam desses cuidados, em uma linha que contemple todos os níveis de atenção.
As principais dificuldades apresentadas para o trabalho de cuidados paliativos no Brasil, conforme notícia
veiculada pela Fundação do Câncer em 2010, são: a inclusão dos Cuidados Paliativos na atenção básica; o
atestado de óbito em domicílio; a "cesta básica" de medicamentos, que é muito cara; e, o armazenamento, a
distribuição e o descarte de remédios opiáceos que aliviam a dor 30.
O Reino Unido fica com o primeiro lugar em qualidade de morte, e é um exemplo da importância de se
reconhecer os Cuidados Paliativos na medicina. Lá, desde 1987, a medicina paliativa é considerada uma
especialidade médica. No Brasil, somente em agosto de 2011 é que a medicina paliativa veio se tornar uma
área de atuação médica, segundo resolução 1973/2011 do Conselho Federal de Medicina 31.
Os cuidados paliativos pressupõem a ação de uma equipe multiprofissional, já que a proposta consiste em
cuidar do indivíduo em todos os aspectos: físico, mental, espiritual e social. O paciente em estado terminal deve
ser assistido integralmente, e isto requer complementação de saberes, partilha de responsabilidades, onde
demandas diferenciadas se resolvem em conjunto.
A compreensão multideterminada do adoecimento proporciona à equipe uma atuação ampla e diversificada que
se dá através da observação, análise, orientação, visando identificar os aspectos positivos e negativos,
relevantes para a evolução de cada caso32. Além disso, os saberes são inacabados, limitados, sempre
precisando ser complementados. O paciente não é só biológico ou social, ele é também espiritual, psicológico,
devendo ser cuidado em todas as esferas, e quando uma funciona mal, todas as outras são afetadas.
É de fundamental importância para o paciente fora de possibilidades terapêuticas de cura que a equipe esteja
bastante familiarizada com o seu problema, podendo assim ajudá-lo e contribuir para uma melhora.
Serão descritas, a seguir, as abordagens que as categorias profissionais de serviço social, psicologia,
enfermagem e medicina trazem sobre o cuidado paliativo nos vinte artigos selecionados para esta pesquisa,
apontando para três situações: principais aspectos abordados; despreparo profissional e ações desenvolvidas.
Serviço Social
O assistente social desempenha dois papéis importantes em cuidados paliativos: o primeiro é o de informar a
equipe, quem é o paciente do ponto de vista biográfico: onde ele vive, em que condições o paciente se encontra
pra receber o atendimento da equipe, que, com as informações dos demais profissionais poderá ser planejado
como vai ser o tratamento do paciente. O segundo papel consiste no elo que este profissional faz entre o
paciente-família e a equipe33.
O acolhimento e a escuta são características do trabalho deste profissional, que quando se depara com
paciente em processo de morte, deve saber colher as informações no tempo certo, dar voz ao individuo e seus
familiares, deixando-os extravasar suas tristezas e insatisfações com o problema. Conhecer a situação
socioeconômica do paciente, os serviços disponíveis, as redes de suporte e canais para atender a demanda
dos usuários, são outras atribuições do assistente social.
Os artigos selecionados mostram uma insatisfação dos profissionais de serviço social quanto ao próprio
currículo, que não abrange essa temática.
Os temas mais abordados nos artigos que tratam do serviço social e cuidados paliativos foram: o trabalho do
serviço social com as famílias dos pacientes terminais, a importância de uma equipe multiprofissional no
cuidado a este paciente, e a comunicação do óbito aos familiares. Embora esta seja responsabilidade do
27
médico, há a necessidade do assistente social ficar em alerta neste evento, pois precisará oferecer suporte e
orientações quanto ao sepultamento, principalmente aos familiares que não têm condições de provê-lo. O
conceito de cuidado paliativo utilizado pelos assistentes sociais nos artigos é o formulado pela Organização
Mundial da Saúde.
Os assistentes sociais em cuidados paliativos contribuem para o fortalecimento das relações entre os pacientes
e seus entes queridos, providenciam os recursos necessários aos cuidados básicos dos indivíduos para que o
mesmo tenha uma morte digna.
Psicologia
O psicólogo diante da terminalidade humana, busca a qualidade de vida do paciente, amenizando o sofrimento,
ansiedade e depressão do mesmo diante da morte. A atuação do psicólogo é importante tanto no nível de
prevenção, quanto nas diversas etapas do tratamento.
Pode ajudar os familiares e os pacientes a quebrarem o silêncio e falarem sobre a doença, fornecendo aos
mesmos as informações necessárias ao tratamento, que muitas vezes é negado pela própria família, pois
consideram melhor manter o paciente sem a informação. Esse posicionamento da família é denominado em
cuidados paliativos como a conspiração do silêncio. Assim o psicólogo contribui para que os doentes e
familiares falem sobre o problema, favorecendo a elaboração de um processo de trabalho que ajudará o
paciente a enfrentar a doença, construindo experiências de adoecimento, processo de morte e luto 34.
O trabalho do psicólogo em cuidados paliativos consiste em atuar nas desordens psíquicas que geram estresse,
depressão, sofrimento, fornecendo um suporte emocional à família, que permita a ela conhecer e compreender
o processo da doença nas suas diferentes fases, além de buscar a todo tempo, maneiras do paciente ter sua
autonomia respeitada.
Ferreira et al.9 aponta que o psicólogo deve ter a percepção do fundamento religioso que envolve o paciente,
como alternativa para reforçar o suporte emocional, proporcionando ao mesmo, entender o sentido da sua vida,
do seu sofrimento e do seu adoecimento, o que é considerado por alguns autores como a psicologia da
religião .
A escuta e o acolhimento são instrumentos indispensáveis ao trabalho do psicólogo para conhecer a real
demanda do paciente, além de ter que possuir uma boa comunicação interpessoal seja em linguagem verbal ou
não, firmando assim uma relação de confiança com o paciente.
Os temas mais comentados nos artigos referentes à psicologia foram: a apresentação da morte no tempo e no
espaço, a importância da equipe multiprofissional no trabalho em cuidados paliativos, bioética, ansiedade,
depressão, eutanásia, mistanásia, ortotanásia e distanásia. O conceito de cuidados paliativos utilizado também
é o formulado pela OMS.
Da mesma forma, é necessária uma proposta de mudança curricular, que atenda a carência dos alunos em
relação à tanatologia (estudo da morte) oportunizando aos mesmos uma atuação profissional mais completa,
tornando-os mais eficientes na atuação para cumprir um dos principais objetivos do atendimento psicológico aos
pacientes terminais, que é passar aos mesmos que o momento crítico da doença pode ser compartilhado,
estimulando e buscando recursos internos para assim atenuar sentimentos de derrota e solidão, favorecendo a
ressignificação desta experiência de adoecer 9.
Enfermagem
A enfermagem é uma das categorias desta pesquisa que mais publicam sobre o cuidado paliativo. Segundo
Matos e Moraes35 a enfermagem pode ser definida como a arte e a ciência de se assistir o doente nas suas
necessidades básicas e, em se tratando de cuidados paliativos, pode-se acrescentar que busca contribuir para
uma sobrevida mais digna e uma morte tranquila.
Nos artigos de enfermagem selecionados para esta pesquisa, os enfermeiros relatam que o currículo
profissional da categoria carece de disciplinas voltadas para a finitude humana, e que se sentem despreparados
para lidar com os pacientes que estão à morte. Fogem, por vezes, da discussão, dando desculpas e promessas
de recuperação ao paciente, quando a morte é praticamente inevitável.
28
Há convergências das outras categorias profissionais com a enfermagem no trato ao cuidado paliativo. Os
artigos de enfermagem selecionados para elaboração deste trabalho utilizam o mesmo conceito da OMS, para
definir os cuidados paliativos, e unem a temática a uma proposta de cuidado mais humanizada, não como uma
obrigação, mas sim como um ato de respeito e solidariedade22.
Segundo Matos e Moraes35 os requisitos básicos para atuação da enfermagem paliativa consiste no
conhecimento da fisiopatologia das doenças malignas degenerativas, anatomia e fisiologia humana,
farmacologia dos medicamentos utilizados no controle dos sintomas, técnicas de conforto bem como a
capacidade de estabelecer boa comunicação.
O enfermeiro que atua em cuidados paliativos do paciente com câncer, precisa saber orientar tanto o paciente
quanto a família nos cuidados a serem realizados, esclarecendo a medicação, e os procedimentos a serem
realizados. Portanto, o enfermeiro deve saber educar em saúde de maneira clara e objetiva, sendo prático em
suas ações, visando sempre o bem estar dos seus pacientes.
A enfermagem é uma das categorias que mais se desgastam emocionalmente devido à constante interação
com os pacientes enfermos, as constantes internações, muitas vezes acompanhando o sofrimento, como a dor,
a doença e a morte do ser cuidado.
Em busca do bem estar do paciente terminal, o enfermeiro busca realizar ações de confortar o mesmo, além
dos cuidados básicos e fisiopatológicos que o paciente necessitar, realizando quando possível seus anseios,
desejos e vontades.
Assim, o profissional de enfermagem é fundamental para equipe de cuidados paliativos, pela essência de sua
formação que se baseia na arte do cuidar. A importância da categoria a esses cuidados ficou evidente desde os
primórdios da ideologia, partindo do principio que essa maneira de cuidar do paciente oferecendo qualidade de
vida nos seus últimos dias partiu do conhecimento de uma enfermeira, Cicely Saunders, que depois cursou
medicina e serviço social.
Medicina
O médico tem a sua formação voltada para o tratamento e o diagnóstico das doenças. No entanto, em cuidado
paliativo, o foco não é a doença e sim o doente, tendo o médico que rever os seus conceitos, conhecer o limite
do seu fazer e saber trabalhar em equipe, pois as demandas do paciente estão para além do aparato físico
devendo, também, ser trabalhado o lado psicológico, social e espiritual.
Segundo o Manual dos Cuidados Paliativos 1, as equipes de saúde trabalham de maneira hierarquizada, onde
cada profissional tem seu papel reconhecido socialmente de forma diferente, dentro da equipe. O médico tem o
papel determinante dentro do grupo, e se ele não aceitar determinada situação todo o trabalho da equipe pode
se perder. O Manual também aponta a principal atuação do médico em cuidados paliativos, que seria o de
coordenar a comunicação entre os profissionais envolvidos, o paciente e a família, que esperam ouvir do
médico informações do diagnóstico e prognóstico da doença. É de extrema relevância que o médico tenha uma
boa comunicação com a equipe, para que todos tenham a mesma postura.
Apesar do Manual dos Cuidados Paliativos tratar a categoria de medicina como determinante e de liderança
dentro da equipe de cuidados paliativos, considero que este argumento deve ser debatido, tendo em vista que a
filosofia preconiza a ação de uma equipe multidisciplinar, onde cada um tem a sua importância. Haverá
momentos do trabalho em que uma categoria pode sobressair, mas isso não significa que esta categoria tenha
um papel determinante dentro do grupo.
O médico deve atuar em conjunto com o paciente, orientando sem coagir, mostrando-lhe os benefícios e as
desvantagens de cada tratamento, de forma inteligível a seu entendimento. Agindo assim o médico se torna um
facilitador para toda a equipe trabalhando de maneira a ajudar os familiares e o paciente terminal a exercer sua
autonomia18.
Como as demais categorias em debate, o médico também passa por dificuldades ao tratar o paciente terminal,
pois são aqueles que desafiam a capacidade e os limites destes profissionais, carecendo de apoio físico e
emocional.
Quando a morte é inevitável a sensação que aparece é o de fragilidade deste "poder de curar", causando em
muitos profissionais a sensação de fracasso profissional.
29
Diante desta dificuldade em lidar com a finitude humana, muitos médicos se distanciam do moribundo e até
mesmo o tratam não como uma pessoa, mas como um objeto que necessita da sua intervenção.
A partir desta afirmação podemos perceber que cada médico formará a sua própria percepção de morte
baseado em suas vivências e experiências anteriores. No entanto, a morte desencadeia sentimentos que não
somente marcam a pessoa que está morrendo, mas também médicos e profissionais de saúde e, como aponta
Salgado et al.16, o posicionamento ideal do médico deve ser compreender o que o paciente sente, identificar-se
parcialmente com ele, mas não sofrer como se fosse ele, atitude difícil de se manter, como menciona o autor.
A partir da leitura dos artigos selecionados para a realização desta pesquisa, percebe-se que os médicos estão
lutando para fazer a filosofia dos cuidados paliativos ser mais conhecida e difundida no Brasil. A medicina
paliativa tornou-se uma área de atuação médica no país em agosto de 2011. Os médicos que ingressarem em
programas de residências de clínica médica, cancerologia, geriatria e gerontologia, medicina de família e
comunidade, pediatria e anestesiologia, podem receber treinamento adicional especifico na área de medicina
paliativa. Segundo resolução 1973/2011 do Conselho Federal de Medicina (CFM), os médicos interessados
devem cursar mais um ano para receber o título de paliativista que será oferecido pela Associação Médica
Brasileira (AMB)31.
Os artigos de medicina selecionados para elaboração desta pesquisa se baseiam no conceito da OMS para os
cuidados paliativos. A visão dos médicos sobre a ideologia e em relação ao conceito é a mesma das demais
categorias estudadas. Os médicos valorizam a qualidade de vida, o principio da beneficência, não maleficência
e da justiça aos pacientes terminais.
O currículo do médico, como os dos demais profissionais de saúde, também carece de disciplinas que tratem
mais de tanatologia. Conforme sinalizam Souza e Lemônica 14 a universidade é pouco preocupada com a
formação humana de seus alunos, primando pela informação técnica, ou seja, o futuro profissional sairá da
academia prejudicado, pois se sentirá despreparado para assumir e resolver situações que estão para além da
técnica, e o trato aos pacientes terminais é um desses casos.
Segundo a ANCP1, ainda hoje, no Brasil, a graduação em medicina não ensina ao médico como lidar com o
paciente em fase terminal, como reconhecer os sintomas e como administrar esta situação de maneira
humanizada e ativa. No entanto, o médico nos cuidados paliativos é um profissional importante. Ele contribuirá
para fornecer esclarecimentos sobre diagnósticos e prognósticos para o paciente cuja morte é inevitável,
orientando a equipe, mantendo sempre uma boa comunicação com os demais profissionais, para que o
paciente tenha dignidade nos últimos de sua vida. Portando quando não se pode mais curar, ainda se pode
cuidar e se ter uma boa relação entre médicos e pacientes.
Considerações finais
Os artigos selecionados mostram que as categorias trabalhadas utilizam o conceito da OMS acerca dos
cuidados paliativos. Trazem em predominância experiências de pacientes com câncer em estágio terminal.
Apenas um artigo vem tratando de cuidados paliativos em portadores do HIV. O que pode explicar tal fato é que
os cuidados paliativos na sua origem eram direcionados aos pacientes com câncer, e só depois agregados a
outras comorbidades.
No processo de revisão da literatura para a elaboração deste artigo, constatou-se que a categoria que mais
publica na temática é a enfermagem, devido à própria essência da formação baseada na arte do cuidar. A
categoria com menor número de publicações é o serviço social, embora tenha um papel importante dentro da
equipe, e representação nas maiores instituições que tratam de cuidado paliativo no Brasil.
A morte é um tabu a ser desconstruído por todas as categorias. Alguns artigos mencionam a mesma como um
fracasso para o profissional, ao invés de um episódio que faz parte da vida. A dificuldade em lidar com a morte
é mencionada nos textos, o que faz com que muitos profissionais encontrem alternativas para não se deparar
com a situação: mascaram a morte, fogem dos pacientes terminais, não falam com o paciente sobre o assunto,
não criam vínculos e dispensam um tratamento pouco individualizado.
Outro ponto que merece destaque na pesquisa é a carência de disciplinas que envolvam os cuidados paliativos
e o tema da morte na academia. Em todos os artigos aparece a insatisfação dos profissionais quanto à
problemática. É necessária a reformulação dos currículos que permita ao profissional realizar ações mais
eficazes, quando acionados a tratar de pacientes que estão à morte. Vale ressaltar que a academia não vai
preparar o profissional para a atuação no campo, mas pode contribuir promovendo o debate. Assim, o
30
profissional encontrará maior segurança quando se deparar com a temática da morte e no trato a pacientes fora
de possibilidades de cura.
De acordo com o Quadro 2, os aspectos mais comuns levantados pelas categorias em cuidados paliativos
foram: humanização do atendimento, despreparo profissional em relação à morte, eutanásia, distanásia,
ortotanásia, mistanásia, currículos que carecem de disciplinas voltadas para a tanatologia.
A medicina paliativa busca o seu espaço, para que não somente o paciente com possibilidades de cura seja
atendido, mas os que sofrem com doenças em que a morte é inevitável também, pois a medicina científica não
deve ser antagônica da medicina paliativa, mas devem ser simbióticas 17. A morte digna é de grande significado
para o doente e também para o profissional que é compreensivo e solidário.
Assim, muito se tem a caminhar quando se trata de cuidados paliativos, E os profissionais de saúde em geral
precisam conhecer e explorar essa temática que é tão rica, porém pouco discutida.
Colaboradores
HR Hermes foi a responsável pela concepção do artigo e revisão bibliográfica, participando da elaboração dos
conceitos. ICA Lamarca participou da elaboração dos conceitos e fez a revisão do texto.
Aprovado em 22/05/2013
1. Retratos da morte no século XXI: morte interdita, morte escancarada e algumas formas de morte
indignas presentes na atualidade;
2. Necessidades do paciente no final da vida e como o conceito de paciente terminal torna genéricas as
formas de cuidado;
Retratos da morte no século XXI: morte interdita, morte escancarada, morte reumanizada
O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha
vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo: solidão, ninguém tem coragem
ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre minha morte, medo que a passagem seja demorada. Bom seria
se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que
se ama, em meio a visões de beleza 1 . A interdição da morte está relacionada ao avanço da tecnologia médica,
fascinando pacientes, familiares e profissionais de saúde. Há o deslocamento do lugar da morte: das casas para os
hospitais. Atualmente, o erro médico vincula-se à perda de limites, ao prolongar o processo de morrer com
sofrimento. A morte se tornou distante, asséptica, silenciosa e solitária. Se a morte é vista como fracasso ou
indignidade, o profissional se vê perdendo batalhas e derrotado. O paciente que sobrevive é guerreiro, mas quando
piora é visto como perdedor. A morte pode se tornar evento solitário, sem espaço para a expressão do sofrimento e
para rituais. A caricatura que a representa é o paciente que não consegue morrer, com tubos em orifícios do corpo,
tendo por companhia ponteiros e ruídos de máquinas, expropriado de sua morte. O silêncio impera, tornando
penosa a atividade dos profissionais com pacientes gravemente enfermos. O prolongamento da vida e da doença
amplia o convívio entre pacientes, familiares e equipe de cuidados, com estresse e risco de colapso. Não conseguir
evitar, adiar a morte ou aliviar sofrimento pode trazer ao profissional a vivência de seus limites, impotência e finitude
2 . Médicos devem tomar decisões sobre tratamentos e, com frequência, sentem-se sozinhos e com dificuldade para
abordar familiares que indagam sobre a evolução do paciente. São frequentes os sentimentos de fracasso e
frustração, ao verem a morte como adversária 3 . Com o avanço da tecnologia médica, profissionais se preocupam
com a manutenção da vida, tendo que cuidar de ponteiros e luzes que monitoram as funções vitais dos pacientes.
Conversar, ouvir sentimentos e emoções não são prioridades ante a batalha contra a morte 4 . Profissionais são
bombardeados com inovações tecnológicas que dificultam decisões a serem tomadas sobre tratamentos. Médicos e
enfermeiros, sobrecarregados, realizam procedimentos com os quais nem sempre concordam. Embora as mortes
ocorram nos hospitais, é também aí que se percebe sua interdição 5 . O desenvolvimento técnico na área da saúde
cria ambiente desumano, deixando a dignidade em segundo plano. Houve desapropriação da morte na era moderna,
afastando pessoas do seu processo de morrer, numa flagrante perda de autonomia e consciência 6 . Prolongar a
vida, não considerando os limites de tratamentos, pode levar ao temor e ao sofrimento, suportado na unidade de
terapia intensiva (UTI) na companhia de máquinas e sem a presença da família e amigos 7 . Há alterações
significativas nas razões de morte, principalmente no que concerne à duração do processo, devido à predominância
de doenças crônicas, cardiopatias, câncer, enfermidades neurológicas e aids. O medo é a não atenção a certos
sintomas como a dor e a inclusão de procedimentos invasivos, que prolongam a morte – o que pode ser motivo para
debates sobre eutanásia e suicídio assistido 5 . Nos Estados Unidos da América (EUA), cuidados médicos no final da
vida são caros: 25% dos custos envolvem pacientes com doença avançada. Os tratamentos são sofisticados e de
difícil interrupção. As UTI estão ocupadas por idosos com mais de 80 anos padecendo de doenças crônicas
irreversíveis por longo tempo, sob tratamentos invasivos e onerosos. Familiares pedem a manutenção desses
tratamentos por falta de esclarecimento, promovendo má qualidade de morte 8 . No Brasil, observam-se situações
parecidas, com altos custos hospitalares para idosos com doenças crônicas e degenerativas 9 . Embora não seja tema
específico deste artigo, a morte escancarada invade a vida das pessoas com violência, de forma inesperada,
dificultando a elaboração do luto. Cria situações de vulnerabilidade sem proteção ou cuidado. Ocorre a banalização
da morte na TV, inundando domicílios com imagens de mortes, quer nos noticiários, novelas ou filmes 4 . É o retrato
da morte indigna no século XXI. Entre mortes escancaradas indignas incluímos: assassinato, suicídio e acidentes. São
mortes coletivas, anônimas e com corpos mutilados, dificultando o processo de despedida. A morte humanizada é
abordada por KüblerRoss e Saunders, que escreveram sobre cuidados aos pacientes e familiares na aproximação da
morte, acolhendo o sofrimento. O paciente volta a ser centro da ação, resgatando seu processo de morrer 10,11. O
desenvolvimento da tanatologia, como área de estudos proposta por Kübler-Ross, aborda a morte como significante
da existência, por isso tratada com respeito, humildade, sem banimento ou banalização. A morte é conselheira e o
profissional, seu aprendiz. Esta autora também ficou muito conhecida pela descrição dos cinco estágios pelos quais
passa o paciente quando recebe o diagnóstico de doença de prognóstico reservado: negação, raiva, barganha,
depressão e aceitação. Esses não são modelo de enfrentamento, mas podem ajudar o profissional a sintonizar com a
experiência vivida pelo paciente 11. Saunders – que se formou em enfermagem, medicina e serviço social e em 1967
fundou o St. Christopher’s Hospice, referência na área de cuidados paliativos 4 – propõe o estudo científico
33
envolvendo alívio e controle de sintomas, presentes em programas de cuidados paliativos, nos quais a preocupação
não é a cura, mas sim o paciente e suas necessidades, sendo oferecido tratamento multidisciplinar.
Os pacientes graves passam pelos estágios de consciência e percepção da morte; ajustamento social e preparação
pessoal; informação às pessoas sobre a situação da doença; delegação de responsabilidades a familiares, amigos,
profissionais e despedidas 13. A dependência frente às atividades cotidianas assusta mais do que a morte. A
demência é difícil de ser cuidada, impede a compreensão da doença e tratamentos, requerendo explicações
simplificadas. O processo de adoecimento envolve problemas somáticos, isolamento, sensação de abandono, falta
de sentido, dependência para atividades cotidianas. São situações de angústia para pacientes e familiares. Os idosos
se sentem “desinvestidos” pelas pessoas próximas, consideram que já viveram e que cuidados destinam-se aos
jovens, que têm a existência pela frente. O cuidado especializado para idosos enfermos com doenças mentais
também tem altos custos no Brasil 9 . No limite, pode-se falar em “eutanásia econômica”: é bem cuidado quem tem
possibilidades financeiras. Poucos hospitais estão aparelhados para cuidar de pacientes com doenças crônicas. Para
idosos, a hospitalização envolve separação de ambientes familiares, local estranho, que não respeita hábitos antigos.
As UTI recebem idosos com prognóstico reservado, oferecendo tratamentos que, muitas vezes, não proporcionam
qualidade de vida 5 . Pacientes em fase agônica necessitam principalmente de conforto, e não de tratamentos
invasivos. Os sinais da agonia são, entre outros múltiplos sintomas, confusão, agitação, extremidades frias, ruído
respiratório, visão borrada e desfocada, diminuição de diurese, alucinações, debilidade intensa. Quando esses sinais
estão presentes é fundamental manter a medicação, principalmente para o conforto e alívio de sintomas, e
suspender tratamentos com efeitos colaterais, que aumentam o sofrimento. É preciso garantir essas medidas no
domicílio e acesso aberto para ligação 24 horas em programas de cuidados paliativos ou hospitalares 14. Eutanásia,
distanásia, ortotanásia, suicídio assistido – questões bioéticas A tecnologia médica está presente nos diagnósticos e
tratamentos, permitindo progressos significativos na cura de doenças e na extensão da vida. Entretanto, é preciso se
considerar possíveis prejuízos do prolongamento da vida de pessoas enfermas. Nesse contexto, a bioética combina o
caminho do conhecimento técnico-científico das ciências da saú de e o conhecimento filosófico 15. Há diálogos
possíveis entre clínica e ética com reflexão e deliberação, ouvindo-se vários pontos de vista. Hellegers, do Centro
Joseph e Rose Kennedy for the Human Reproduction and Bioethics, em Washington, criou grupos de discussão com
médicos, filósofos e teólogos de vários credos para debater problemas advindos do progresso da medicina. A
bioética clínica tem como objetivo discussões éticas aplicadas aos cuidados a pessoas doentes, refletindo sobre
dilemas que envolvem diagnóstico e tratamento. Busca-se respeito à dignidade do ser humano e seus valores
pessoais 16, expressos no exercício da autonomia. Schramm considera que a primeira formulação sistemática sobre
autonomia foi postulada por Kant. O conceito existencialista de liberdade compreendido por Sartre conduz à
responsabilidade, responder à situação sem subterfúgios. Foucault denuncia a submissão de pessoas em instituições
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nessa condição. Deve ser esclarecido que esta unidade pode não ser a melhor opção nesses casos e que o paciente
poderia ser melhor atendido em programas de cuidados paliativos. Ortotanásia Opondo-se à distanásia, ortotanásia
não é eutanásia, embora por vezes possa ser erroneamente entendida como apressamento da morte. A diferença
entre elas, entretanto, é significativa: se o principal objetivo da eutanásia é levar à morte para abreviar a dor e o da
distanásia é impedir a morte a qualquer custo, a ortotanásia busca a morte com dignidade no momento correto, com
controle da dor e sintomas físicos, psíquicos, bem como questões relativas às dimensões sociais e espirituais. Po seu
caráter multidisciplinar busca oferecer apoio à família na elaboração do luto antecipatório e no pós-óbito. A
ortotanásia é, portanto, atitude de profundo respeito à dignidade do paciente. É fundamental o esclarecimento de
termos e atitudes eticamente corretas como a ortotanásia e incorretas como a distanásia. Além da confusão entre
ortotanásia e eutanásia, há debates se esta última deve ou não ser legalizada. Aqueles que a condenam temem que
seja utilizada sem parâmetros, provocando a morte fútil da mesma maneira que se aceitam procedimentos fúteis
para manter a existência a qualquer custo. Nesse quadro o que falta é discussão aprofundada sobre procedimentos
distanásicos, que ocorrem a título de preservar a vida, causando morte disfuncional, com sofrimento e indignidade
20. A UTI, quando não indicada para pacientes com doença avançada, sem possibilidade de melhora, pode tornar a
morte um processo indigno e solitário; pode se transformar em crueldade ao privar o sujeito de sua própria morte.
Estatísticas nos EUA mostram que 63% dos médicos superestimam o tempo de vida de pacientes e 40% sugerem
tratamentos que não recomendariam para si 8 . Adicionalmente, o prolongamento artificial da vida leva à
hipermedicalização da morte 26. A sedação paliativa é opção de tratamento quando outros procedimentos não são
eficazes, ou causam tantos efeitos colaterais que não devem ser utilizados. Seu objetivo deve ser informado e
esclarecido ao paciente e família: diminuir a consciência do paciente e, assim, trazer alívio a sintomas refratários. A
maioria das sedações ocorre em hospitais e aproximadamente 52% dos pacientes agônicos a necessitam. O tempo
de sobrevivência de pacientes agônicos que se submetem à sedação não é menor quando comparados a pacientes
que continuam com o tratamento que vinham recebendo 27. É também fundamental observar a diferença entre
eutanásia, suicídio assistido e sedação paliativa. A filosofia de Edmund Pellegrino, citado por Rocha 28, indica que a
eutanásia e o suicídio assistido nunca são considerados como beneficência, mesmo quando há pedido de morte pelo
paciente, relacionado com sofrimento não cuidado. Há invariantes morais relacionadas à sacralidade da vida que
nunca poderão ser negociadas. Defende a confiança estabelecida na relação médico-paciente em programas de
cuidados paliativos. Os cuidados podem ser excessivos ou insuficientes e, por isso, devem sempre ser remodelados
em favor da vida. Se pedidos para morrer se relacionam com depressão, esta deve ser tratada cuidadosamente.
A sedação também tem o caráter de beneficência e a eutanásia, de maleficência, esta última porque a morte é vista
como proposta de alívio de sofrimento. A sedação leva à sonolência, diminuição de consciência e do sofrimento.
Encerra-se a vida de consciência e não a vida biológica e o objetivo maior é sempre o bem-estar do paciente, o alívio
do sofrimento, evitando a sensação de que não se fez o melhor 27. A sedação não deve ser vista como situação
genérica, seu caráter é de excepcionalidade. Impedir a obstinação terapêutica, assegurar conforto e minimizar o
sofrimento, mesmo sem eliminá-lo completamente, é tarefa fundamental dos cuidados no final da vida. Testamento
vital, diretivas antecipadas de vontade: documentos para ortotanásia O chamado testamento vital teve sua origem
nos EUA em 1969, estabelecido como documento de direito de recusa de tratamento médico com o objetivo de
prolongar a vida nos casos de diagnóstico de terminalidade ou estágio vegetativo persistente 29. Trata-se de
declaração escrita, que deve ser entregue ao médico, familiares ou representantes legais. Relaciona-se à recusa de
tratamentos percebidos como obstinação terapêutica. Os casos de Karen Ann Quinley, Nancy Cruzan e Eluana
Englaro despertaram a discussão sobre até quando prolongar a vida, envolvendo várias batalhas judiciais. Nos EUA, o
Patient Self Determination Act foi votado em 1990, propondo a determinação do paciente para recusa ou aceite de
tratamentos, a partir do registro – por escrito – de sua vontade. No Brasil, optou-se pelas diretivas antecipadas de
vontade (DAV), que embora ainda não sejam lei têm o respaldo da Resolução 1.995/12 do Conselho Federal de
Medicina (CFM), reconhecendo o direito de o paciente manifestar sua vontade sobre tratamentos médicos e
designar representante para tal fim, e o dever do médico em cumpri-la. Neste documento consta previsão para que
se detalhe, por escrito, os desejos e valores que devem fundamentar as decisões médicas sobre os tratamentos do
paciente 29. No Brasil, o Código de Ética Médica de 1988 registra que o médico não deve jamais abandonar seus
pacientes. A eutanásia, em qualquer caso, é proibida. Em 2006, o CFM lançou a Resolução CFM 1.805, que permite
36
ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal,
de enfermidade grave e incurável,
respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. O doente continuará a receber todos os cuidados
necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico,
psíquico, social e espiritual 30. Em 2009 há ratificação implícita da ortotanásia como morte digna, sem dor e
sofrimento (...) nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos
diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos
apropriados 31. O Código de Ética Médica de 2010 veta a eutanásia como perspectiva para a morte com dignidade
32. Propõe a ortotanásia em situações clínicas irreversíveis vinculadas à qualidade dos cuidados paliativos oferecidos,
apresentando itens sobre terminalidade da vida e cuidados paliativos, ressaltando a importância da relação médico-
paciente. O Código também se manifesta contra a distanásia: Nos casos de doença incurável e terminal, deve o
médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis
ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu
representante legal. (Art. 41, Parágrafo único) As DAV consideram que o paciente deverá participar ativamente na
interrupção de tratamentos aos quais não deseja ser submetido. O que ainda suscita discussão é se o paciente tem
competência para tomar essas decisões. Em São Paulo, a lei estadual 10.241, de 17 de março de 1999, mais
conhecida como “Lei Covas”, regulamenta o direito de o usuário recusar tratamentos dolorosos e que só oferecem
prolongamento precário e penoso da vida 33. Não se trata de suicídio, omissão de socorro ou eutanásia, mas sim de
respeito à autonomia e possibilidade de escolha do paciente. Contudo, esta lei ainda não é de conhecimento da
população em geral e deveria ser divulgada em várias instâncias. Em 31 de agosto de 2012 foi publicada no Diário
Oficial da União a Resolução CFM 1.995 32, definindo as DAV sobre cuidados e tratamentos que o paciente quer ou
não receber quando estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. É a possibilidade de
registrar antecipadamente seu desejo por escrito, entregando este documento a seu médico de confiança ou
designando um representante de suas relações, familiar ou não. As DAV são realizadas quando a pessoa está
consciente e conversa ou delega à família ou pessoa de confiança sua decisão. As diretivas são antecipa das, pois há
dúvidas se pacientes com doença avançada têm possibilidade de decidir sobre suas vidas. Daí a importância de que
esse tema seja ventilado entre pacientes, familiares e equipe de cuidados. O objetivo precípuo é enfatizar a
autonomia do paciente, o respeito a valores e escolhas da pessoa. O documento também respalda a conduta médica
em situação de conflito, protegendo profissionais da acusação de omissão de socorro ou eutanásia, devendo-se
registrar no prontuário o procedimento realizado segundo os ditames éticos da profissão. Decisões no final da vida
são complexas, muitas vezes tomadas quando a capacidade de raciocínio do paciente está prejudicada ou
impossibilitada. Na aproximação da morte podem ocorrer dois caminhos: medidas para prolongar a vida –
combatendo futilmente a morte – ou medidas que permitam o processo de morrer com o mínimo de sofrimento 34.
Os desejos do paciente podem, num primeiro momento, envolver cura ou sobrevivência. Com o agravamento da
doença, este pode buscar a manutenção da funcionalidade, qualidade de vida e independência. O conforto torna-se
prioridade. Na proximidade da morte ocorre o agravamento de sintomas, déficits cognitivos, doenças metabólicas –
aprofundando a situação de vulnerabilidade. No entanto, a negação familiar da morte não altera essa situação 3 . Por
isso, o testamento vital e as diretivas antecipadas de vontade buscam incrementar a comunicação entre médicos,
pacientes e familiares. Essas medidas são propostas para evitar que familiares decidam contrariamente à vontade do
paciente, haja vista que podem não estar preparados para tomar decisões sobre o tratamento ou sua interrupção.
Ao se buscar a aproximação ou intimidade com a morte devem ser consideradas as diferenças entre trajetórias de
doenças. Neoplasias têm certa previsibilidade quando ocorre seu agravamento. Doenças crônicas podem se
complicar, levando a óbito, inesperadamente. Quando ocorre déficit cognitivo com demência ou confusão mental,
decisões sobre o final da vida tornam-se difíceis 27. A preocupação se transfere da morte para o processo de morrer,
que apesar do avanço tecnológico, ou por causa dele, pode ocorrer com sofrimento. Privar o ser de sua humanidade
em favor da técnica não é o melhor caminho para dignificar a existência humana 4,35. A morte é parte fundamental
da existência, podendo ser planejada e autodeterminada – ponto polêmico que ainda demanda discussão. Pessoas
têm desejos e expectativas diferentes: alguns preferem a proximidade de familiares e amigos; outros necessitam
estar sós, dormindo ou despertos, alimentando-se ou não. Defendemos a necessidade de se falar sobre a própria
37
morte, informar pessoas próximas sobre desejos, levando a um planejamento final da existência 4 . Os princípios dos
programas de cuidados paliativos, publicados pela Organização Mundial da Saúde em 1986 e reafirmados em 2002,
são: a) promover o alívio da dor e outros sintomas incapacitantes; b) reafirmar a vida e ver a morte como processo
normal; c) não apressar ou postergar a morte; d) integrar aspectos psicossociais e espirituais aos cuidados; e)
oferecer suporte ao paciente para que possa viver tão ativamente quanto possível até a morte; f) oferecer suporte
aos familiares durante toda a trajetória da doença. Devem ser iniciados precocemente, em conjunto com outros
procedimentos, promovendo melhor compreensão e manejo dos sintomas 36. Em julho de 2010, acerca da
qualidade de morte, a revista The Economist publicou artigo cujo título traduzimos como Qualidade de morte.
Escalonando os cuidados no fim da vida ao redor do mundo 12. O artigo apresenta estudo realizado em 40 países,
incluindo o Brasil. Foram considerados tópicos relacionados com cuidados ao final da vida e a inserção de programas
de cuidados paliativos para pessoas gravemente enfermas. Pioneiro e referência nesta área, o Reino Unido encabeça
a lista por ter médicos que comunicam de forma honesta o prognóstico, realizam analgesia eficaz e priorizam
cuidados paliativos no final da vida. O Brasil está na 38. posição, o que disparou discussões sobre o tema em nosso
meio.
Os itens considerados no estudo foram: 1) relevância dos programas de cuidados paliativos para a qualidade de
morte; 2) capacitação de profissionais de saúde para o alívio e controle de sintomas e para superar o tabu em torno
da morte, possibilitando não priorizar tratamentos curativos inócuos e o prolongamento da vida a todo custo. O
estudo demonstra ser fundamental a busca de nova visão dos cuidados paliativos como tratamentos ativos e não
como desistência ou procedimentos de segunda linha 12. Debates públicos sobre a eutanásia e o suicídio assistido,
sendo que neste último o paciente realiza o ato final, aumentam a consciência sobre mortes e, indiretamente, abrem
discussão sobre os cuidados paliativos. A disponibilidade de opiáceos é fundamental para lidar com a dor, o que sem
dúvida influi sobre a qualidade no momento da morte. É preciso mudar a mentalidade sobre os cuidados paliativos,
associados à morte e desistência e não à qualidade de vida. Mesmo entre profissionais há aqueles que ainda
relacionam, de maneira errônea, cuidados paliativos com eutanásia ou suicídio assistido. A sedação paliativa não é
procedimento eutanásico, pois o objetivo principal é o alívio do sofrimento, refratário a outras medidas. As DAV e a
ortotanásia são medidas de mortes com dignidade. Segundo o estudo acima referido, dinheiro público é destinado a
cuidados no final da vida apenas em poucos países. O financiamento para programas de cuidados paliativos, na
maior parte dos países estudados, provém de fontes como doações ou filantropia. Cuidados paliativos, como
prioridade, precisam ser integrados em políticas públicas de saúde e profissionais devem ter especialização na área.
Dos 40 países estudados, apenas sete possuem políticas públicas para cuidados paliativos: Austrália, México, Nova
Zelândia, Polônia, Suíça, Turquia e Reino Unido. Áustria, Canadá, Irlanda e Itália estão se instrumentalizando para o
desenvolvimento dessas políticas. Os demais não têm políticas públicas, embora possuam programas de cuidados
paliativos. O Brasil não está incluído nos países com bom índice de qualidade de morte. Os limites acerca de
tratamentos devem ser informados e esclarecidos para evitar processos distanásicos. Cabe ressaltar que há limite
para tratamentos e não para cuidados nas várias dimensões do sofrimento humano. Não há solução para a morte,
mas se pode ajudar a morrer bem, com dignidade. Cuidados no final da vida envolvem solidariedade, compromisso e
compaixão e não posições autoritárias e paternalistas. O grande desafio é permitir que se viva com qualidade a
própria morte. Os pacientes que puderam falar com seus médicos sobre o final de vida tiveram maior probabilidade
de morrer em paz e ter controle da situação. Seus familiares também conseguiram elaborar melhor o luto. Para se
ter dignidade é fundamental: ter conhecimento da aproximação da morte, controle; intimidade e privacidade;
conforto para sintomas incapacitantes; escolha do local da morte; ter informação, esclarecimento, apoio emocional e
espiritual; acesso a cuidados paliativos; pessoas com quem compartilhar; acesso às DAV, poder decisório e poder se
despedir; partir sem impedimentos 37. É a possibilidade de recuperar aspectos da morte domada como evento
natural e com pessoas significativas 10. Cuidados paliativos resgatam a morte com dignidade, um dos objetivos dos
profissionais paliativistas. São importantes os seguintes pontos para o bem morrer 3 : com conforto respiratório; sem
dor; na presença de familiares; com os desejos realizados; com suporte emocional e espiritual; sem sofrimento
hospitalar (evitando-se, como anteriormente dito, os processos distanásicos). É fundamental constituir uma equipe
multidisciplinar afinada, sintonizada e harmônica, tendo como trabalho o cuidado integral da pessoa com escuta e
38
acolhimento das histórias, sentimentos, utilizando os sentidos, o olhar e o toque. Pessoas expressam seus desejos
finais que devem ser atendidos, o que é importante para proporcionar conforto e dignidade – mas os que não
puderem expressar-se também precisam ser ouvidos e acolhidos. No Brasil, Menezes escreve sobre a boa morte
envolvendo quatro condições: reduzir o conflito interno com a morte; estar em sintonia com o ego; reparar ou
preservar relações significativas; atender os desejos da pessoa 14. Morrer com dignidade promove discussões
importantes para os dias atuais. Qualidade de vida no processo de morrer não deveria significar incompatibilidade,
mas sim complementaridade com a manutenção da vida. Os melhores cuidados devem também envolver o parar
dentro do limite do razoável. Muitas pessoas pedem que se executem os tratamentos possíveis, pois o temor, ao
interrompê-los, é que se abandonem os cuidados. É importante definir prioridades, cuidar de sintomas, se a cura não
for possível, evitando cirurgias ou tratamentos invasivos que não tragam benefícios. Os objetivos dos cuidados
paliativos são qualidade de vida, alívio da dor e outros sintomas, manutenção da consciência e dignidade no final da
vida, compondo a ars moriendi contemporânea 4 .
O cuidado envolve particularização, compreensão do significado e sentidos pessoais 38. Dor e sofrimento têm
conotações individuais e culturais. Vivemos numa sociedade que não suporta ver e lidar com o sofrimento, que
precisa ser imediatamente eliminado, mesmo que seja necessário dopar o paciente. Cuidar não é só eliminar
sintomas, mas sim promover alívio, conforto e bem-estar 5 . A dor e o sofrimento podem se tornar intoleráveis
quando há medo, incompreensão ou depressão. A arte é encontrar um canal para sua expressão. O sofrimento deve
despertar no profissional o desejo do cuidado, a empatia e compaixão; se levar ao distanciamento, indiferença ou
tecnicismo, algo está errado 39. Para cuidar é preciso se deixar tocar, abrir as antenas da sensibilidade para captar os
sinais emitidos por aqueles sob seus cuidados. É necessário realizar o diagnóstico diferencial da depressão, que não
deve ser associada naturalmente com o processo de morrer. Dying role 34, que traduzimos como viver o processo de
morrer, inclui cargas físicas e psíquicas que precisam ser cuidadas – por vezes, ignoradas pelo médico e pela
sociedade. Por isso, é proposta uma terapia relacionada com a dignidade, incluindo tarefas (tasks, segundo os
autores) para esta fase: oferecer benção às pessoas queridas, passar sabedoria de vida, rever e reatar
relacionamentos significativos, lembrar e compartilhar narrativas de vida e memórias. É uma intimidade com a
morte, como propõe Hennezel no seu livro Morte íntima 39. Algumas pessoas nunca entrarão neste papel, numa
cultura que nega a morte. Não se trata de apressar a morte, mas sim respeitá-la. Impedi-la por meio de tratamentos
invasivos pode ser considerado como sério efeito colateral da abordagem médica. Pessoas com maturidade
existencial podem alcançar a paz e morrer com tranquilidade, possivelmente em programas de cuidados paliativos,
num processo de aceitação da finitude. Os que não a aceitam pedem a continuidade dos tratamentos invasivos que
prolongam a vida, gerando sofrimento para si e familiares. O respeito à dignidade humana, todavia, implica em
entender e atender as necessidades de cada um. Mais do que ciência ou lei, as discussões sobre o morrer buscam
compreender o que é dignidade humana. Uma vida conduzida por princípios e valores deve terminar com eles. O
bom cuidado é sempre vinculado a uma equipe multidisciplinar afinada, sintonizada e harmônica da qual o psicólogo
é parte integrante. A institucionalização da boa morte está nos programas de cuidados paliativos, contraponto a uma
medicina excessivamente técnica ou do abandono do “nada a fazer”. A morte com dignidade é objetivo de
programas de cuidados paliativos. Busca-se facilitar a autonomia do paciente na tomada de decisões sobre sua vida.
Retoma-se o conceito de boa morte, sem dor, com respeito aos desejos do paciente, estabelecendo canais de
comunicação com a família e profissionais de saúde. A kalotanásia está relacionada com a boa morte nos programas
de cuidados paliativos, enfatizando aspectos estéticos e ritualísticos. Segundo Floriani 13, a ortotanásia é a morte
certa, correta e no tempo certo, a kalotanásia agrega aspectos culturais e estéticos à morte correta, haja vista
enfatizar a participação ativa de quem está morrendo, com a distribuição dos bens, presença dos familiares no
momento da morte, cenas de despedida, entre outros valores importantes para garantir uma boa morte na
concepção do paciente. O termo kalós refere-se à beleza, estética e dignidade na jornada de final de vida com
nobreza, virtude e significado. A kalotanásia é apelo contra a distanásia, na qual o médico decide, não informa ou
esclarece e os pacientes vivem solidão, negação e raiva, uma morte feia. Tolstoi antecipa essa discussão em A morte
de Ivan Ilitch, em que mostra as mentiras e segredos em volta da doença, antecipando no final do século XIX o que
alguns doentes vivem atualmente 40. É fundamental se estabelecer protocolos de morte com dignidade para
pacientes gravemente enfermos e formas de proteção à distanásia. É grave infração ética manter pacientes em UTI
39
por razões econômicas. Essa atitude nunca será declarada abertamente, mas em alguns casos é o que transparece
quando se observa o prolongamento de permanência nessas unidades de pessoas que estão praticamente mortas ou
com morte encefálica, lembrando que quando esta ocorre o paciente já tem o óbito confirmado. É fundamental
esclarecer os familiares a respeito dessa situação. Debates com a população e esclarecimentos a familiares podem
ajudar na desintoxicação da morte, como possibilidade de preservação da dignidade e qualidade no final da vida. Há
atitudes ainda bastante arraigadas de negação da morte. A relutância de falar sobre a morte tem consequências
graves quando se deve tomar decisões sobre tratamentos ou sua interrupção. É fundamental incluir reflexões
filosóficas na formação de profissionais de saúde. Rubem Alves propõe nova especialidade médica, a
“morienterapia”, envolvendo o cuidado com os que estão mor rendo, já oferecido em programas de cuidados
paliativos no final da vida, com especificidades para as últimas horas de vida 41. Longe de esgotar o tema, as ideias
discutidas neste texto pretendem abrir espaço para a reflexão e práticas sobre a morte com dignidade no Brasil,
principalmente no tocante ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de programas de cuidados paliativos, para que a
qualidade de vida e morte sejam práticas consistentes em nosso meio. Referências
A família, estrutura constituída como um todo organizado, sofre mudanças importantes e impacto
emocional relevante, durante a hospitalização de um de seus membros. As angústias, medos ,
sofrimentos e dúvidas aí estarão presentes, assim como as incertezas do tratamento e prognóstico. O
contato com a equipe de saúde se torna relevante e o trabalho da Psicologia Hospitalar tem
fundamental papel junto a este grupo.
Da mesma forma, o entendimento de que o núcleo familiar compõe um todo, e , como um todo
organizado distribui papéis a seus participantes, tendo estes relações profundas entre si, auxilia
também na avaliação do momento do adoecimento de um dos seres da família
40
Antropologicamente se reconhece que todas as culturas atribuem papéis diferentes para Gênero e
Idade de seus componentes, desenhando de formas distintas, as diferentes composições familiares nas
diversas culturas humanas.
O adoecer, por sua vez, constitui-se em um fenômeno subjetivo , vivido de maneiras variadas, com
significante influência cultural e ambiental, atribuindo formatações distintas, para cada pessoa. Cada
cultura influencia na maneira de perceber, reagir e comunicar a doença, que se constitui em um
fenômeno complexo, multideterminado, multifatorial e raramente previsto. Além destes importantes
aspectos, a doença representa um ataque à estrutura da personalidade e à estrutura familiar, além de
determinar uma crise acidental na existência do ser humano.
Todas as pessoas, de forma consciente ou não, percebem indicadores de seu funcionamento orgânico,
que num dado momento lhes faz interpretar, que algo não está bem em seu organismo.
As crises costumam ser divididas em : 1. evolutiva ou vital, que se caracteriza por ser natural,
esperada, e que acontece desde o nascimento até a senectude, e está sempre associada às mudanças
existenciais; 2. acidental, quando inevitáveis, abruptas, onde ocorrem mudanças inesperadas no curso
vital, e onde a perda do equilíbrio interno é comum. Desta forma, a doença representa uma crise
acidental, onde a estrutura de personalidade do indivíduo que adoece, assim como sua família ,
precisam lidar com todos estes elementos descritos.
A doença que leva a uma internação, conta com todos estes aspectos e mais o da internação ,
sobrepondo ainda elementos característicos do ambiente hospitalar. Quando a internação acontece,
ocorre ao mesmo tempo, uma desestruturação do desenho familiar costumeiro, além da
desorganização do todo conhecido, instigados pela angústia de morte que costuma aparecer nestes
momentos.
Assim como o paciente, a família também se depara com dificuldades no enfrentamento da situação de
adoecimento de um de seus membros. A situação da família se constitui de estresse permanente,
sofrimento interno, elevação de ansiedade, medos do desconhecido, e apreensão quanto às decisões a
tomar, e situações a enfrentar.
Neste contato com a nova situação , a internação, a família pode se defrontar com diversas
dificuldades, como:
1. Falta de informações adequadas sobre o estado de seu ente querido: nem sempre a equipe de
saúde sabe o que informar à família, sobre o estado do paciente, ou mesmo tem disponibilidade interna
e/ou externa para tal;
2. Ritmo de vida incompatível com horários hospitalares: na vida atual, apressada, agitada e cada vez
mais complexa, é comum que não se tenha tempo disponível, durante o dia , para visitas e
acompanhamento de pacientes em internação hospitalar. A família se vê frente a desafios na hora de
eleger o(s) membro (s) que acompanharão o paciente em sua estada no hospital. Tarefa sempre difícil,
além de se considerar, que , na maioria dos hospitais, horários de visita não são sempre compatíveis
com a vida dos membros da família que tem seus empregos, afazeres, tarefas, etc;
41
3. Papel do paciente na dinâmica familiar: em alguns casos, o paciente desempenha fundamental papel
de apoio financeiro e/ou emocional da família, ficando esta sem com ele poder contar. Pode ser que
seja o membro a quem cabe decisões em momentos importantes, e neste, alguém preciso substituí-lo:
4. A família, nem sempre tem contato fácil com o médico responsável pelo caso, dado o estilo de
sobrecarga de trabalho da categoria médica em nosso país. Com esta dificuldade, à família faltam,
além de importantes informações, apoio deste profissional, que em muito poderia auxiliar no
enfrentamento de situação tão crítica quanto esta, na vida de uma família.
5. Responsabilidade frente a decisões difíceis: não raro, a família se vê frente a exigências de tomadas
de decisões angustiantes (amputações, medicamentos, procedimentos invasivos, internação em CTI,
etc), enfrentando situações com intenso nível de ansiedade e dúvidas.
É frente a esta situação de desestruturação, que a família necessita lançar mão de defesas egóicas,
nem sempre adequadas. Quando isto ocorre, aumento de fragilidade, regressão, aumento de
dependência, infantilização, sentimentos de culpas e remorsos podem ser comumente apresentados.
É neste momento que a família precisa de ajuda! É aí que ela se sente insegura, desabando, ansiando
por um apoio efetivo, por uma compreensão profunda de sua situação, de um ambiente que lhe possa
devolver o equilíbrio,a segurança, a força, enfim, a estabilidade.
Aqui, a presença do Psicólogo Hospitalar se torna fundamental, e pode funcionar como o diferencial
deste momento existencial familiar. Este profissional traz , com sua compreensão teórica e habilidade
técnica, a possibilidade de auxílio na reorganização egóica do todo familiar, frente ao sofrimento atual.
Facilita a elaboração de fantasias, medos e angústias próprios de um momento como este. Pode dar
suporte ao enfrentamento da dor , sofrimento e medo da perda do paciente.
Tarefa fundamental deste profissional é a detecção de focos de ansiedade e de dúvidas entre o grupo
familiar, levando à sua extinção ou diminuição. Além destas tarefas, ao Psicólogo Hospitalar deve
também caber a aproximação do grupo familiar à equipe de saúde, facilitando a comunicação entre
eles , para que contribuam para o tratamento do membro necessitado.
Enfim, cabe ainda ressaltar a importância da Psicologia Hospitalar neste momento, no sentido de
detecção e reforço de defesas egóicas adaptativas a este momento de crise familiar, com intuito de
facilitar o enfrentamento de todos a este difícil momento vivido.
Este profissional também se faz necessário no apoio à reestruturação da estrutura familiar, que neste
momento pode ter sido fortemente abalada, e conseqüentemente, comprometer o enfretamento de
toda esta situação de crise.
Como o Psicólogo Hospitalar funciona aqui como ponto de referência entre Saúde e Doença, sua
presença se faz de importante valia para o apoio psicológico necessário aos parentes do enfermo
internado, assim como importante agente psicoprofilático com perspectiva de situações futuras ,
continuação desta atual, ou novas situações de doença a serem enfrentadas por esta mesma família.
Apesar de o adoecer ser parte integrante da vida do humano, não é sempre que se inclui na vida de
cada ser . A surpresa com o defrontar-se com um parente próximo com necessidade de atendimento
médico, deixa claro esta cisão entre saúde e doença, binômio inseparável quando se fala de vida.
Grande parte da população não está preparada para o não funcionamento orgânico adequado, e a
estrutura psicológica, em muitos casos, se abala frente a esta experiência existencial: o adoecer.
A importância da presença da Psicologia dentro do Hospital não carece de maiores discussões , e sua
atuação não se cansa de demonstrar utilidades diversas neste âmbito. Entretanto, ainda é comum
ouvirem-se relatos de parentes e pacientes que, durante internação hospitalar, denunciam a ausência
de um profissional desta área, expondo, não raro, a falta sentida deste apoio num momento
angustiante como este.
42
A pergunta permanece não respondida: então porque, há instituições hospitalares sem profissionais
desta área, ou com estruturas tão gigantescas, ainda assistidas por números insuficientes de
psicólogos especializados neste tipo de atendimento? Resposta difícil , hipóteses plausíveis, mas
assistência ainda deficiente, e não por falta de material humano, e necessidades humanas.
Um profissional que se predispõe a esta difícil tarefa, precisa se questionar de seu real preparo para tal
desempenho profissional. Sua formação teórica e suas horas de prática o auxiliarão a lidar com
situações sempre inéditas de sofrimento e angústias humanas . Porém , a supervisão e a psicoterapia
deste profissional o auxiliarão na difícil tarefa de controle de contratransferências tão comuns na
prática psicológica no hospital. A consciência e atitude ética , capacitarão melhor este profissional ao
desempenho de tarefa profissional tão árdua: acolhimento a parentes de pacientes internados na
instituição hospitalar.
BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA
Romano, B.W. (1999): Princípios para a Prática da Psicologia Clínica em Hospitais. São Paulo: Ed. Casa
do Psicólogo [ Links ]
De Marco, M.A. (Org) (2003): A face humana da medicina. São Paulo: Casa do Psicólogo [ Links ]
Diante de uma saúde cada vez mais sucateada em nosso país o Acolhimento se torna um tema importante,
urgente e está cada vez em alta. Aos amigos das redes sociais posto novamente este artigo publicado a
alguns anos atrás. Boa leitura.
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Foi publicado em 2014 pela Editora FEAD no livro “Fenomenologia e Psicoterapia” em conjunto
com colegas da pós-graduação e organizado pelo Prof,º Giovanetti, que dispensa comentários, um
dos fundadores do curso de graduação de psicologia da FEAD e coordenador da Pós-graduação em
Psicoterapia Existencial e Getáltica que já está na 11.ª turma.
Em função das limitações deste blog e principalmente deste que lhes escreve, o artigo
que, em sua versão original, atende às normas…
Foi publicado em 2014 pela Editora FEAD no livro “Fenomenologia e Psicoterapia” em conjunto
com colegas da pós-graduação e organizado pelo Prof,º Giovanetti, que dispensa comentários, um
dos fundadores do curso de graduação de psicologia da FEAD e coordenador da Pós-graduação em
Psicoterapia Existencial e Getáltica que já está na 11.ª turma.
Em função das limitações deste blog e principalmente deste que lhes escreve, o artigo que, em sua
versão original, atende às normas acadêmicas de publicação, aqui não apresenta todo o rigor
exigido. O objetivo é suscitar reflexões, fomentar o debate sobre um tema tão importante não só na
área da saúde.
Porém, algumas questões se colocam no caminho que devem ser pensadas e refletidas. Mas, afinal
o que é acolhimento? É uma política do SUS? Uma técnica ou procedimento? Uma estratégia ou
uma função? Quem deve praticar o acolhimento? É um imperativo para todos ou somente para
certas categorias de profissionais da saúde? Em que consiste? Como exercê-lo? E quanto ao
acolhimento psicológico com suas especificidades? Este texto busca refletir sobre estas questões,
sem pretender trazer respostas prontas, mas sim, dar uma contribuição a esta discussão que diria
ser de suma importância não só para o serviço público de saúde, mas também para a iniciativa
privada e para todos aqueles que lidam e cuidam de pessoas.
De forma que, no primeiro capítulo vamos definir acolhimento, partindo de um sentido mais geral.
No segundo capítulo vamos pensar o acolhimento em termos clínicos, ou seja, como uma função ao
mesmo tempo relacional e técnica. No terceiro capítulo vamos definir o acolhimento psicológico e
fazer considerações sobre sua práxis no ambulatório de um hospital de urgências e emergências,
lembrando que aqui não temos a pretensão de descrever ou relatar alguma experiência de
implantação do acolhimento, mas sim, pensar o acolhimento psicológico em termos de função, de
técnica, numa perspectiva clínica. Este texto pretende ser mais conceitual, ainda que sem esquecer
a prática.
Na busca de definição para o termo, esbarramos em um obstáculo imprevisto e que nos causou
estranhesa. O termo acolhimento não foi encontrado em nenhum dicionário técnico de
psicologia[4], nem mesmo o dicionário da APA tem este verbete. Consultamos também os grandes
manuais de psicologia no índice remissivo e a palavra acolhimento praticamente não aparece e nas
poucas vezes em que aparece não é definida, é como se seu significado estivesse subentendido
sendo usada de forma genérica. Por outro lado os artigos citados acima em sua maioria se limitam
a definir acolhimento de acordo com a cartilha do Ministério da Saúde (2006), ou seja, ressaltando
seu aspecto institucional ou político estratégico.
O dicionário de português assim define acolhimento: “s.m. Ação ou efeito de acolher; acolhida.
Modo de receber ou maneira de ser recebido; consideração. Boa acolhida; hospitalidade. Lugar em
que há segurança; abrigo. (Etm. acolher – e + i + mento)” (Dicionário de português on line )[5].
Já no site Humaniza SUS do Ministério da saúde acolhimento designa:
“Recepção do usuário, desde sua chegada, responsabilizando-se integralmente por ele, ouvindo sua
queixa, permitindo que ele expresse suas preocupações, angústias, e ao mesmo tempo, colocando
os limites necessários, garantindo atenção resolutiva e a articulação com os outros serviços de
saúde para a continuidade da assistência quando necessário” (Rede Humaniza SUS).[6]
A Cartilha “Acolhimento nas práticas de produção de saúde” amplia este significado:
“Acolher é dar acolhida, admitir, aceitar, dar ouvidos, dar crédito a, agasalhar, receber, atender,
admitir (FERREIRA, 1975). O acolhimento como ato ou efeito de acolher expressa, em suas várias
definições, uma ação de aproximação, um “estar-com” e um “estar perto de”, ou seja, uma atitude
de inclusão. Essa atitude implica, por sua vez, estar em relação com algo ou alguém. É exatamente
nesse sentido, de ação de “estar com” ou “estar perto de”, que queremos afirmar o acolhimento
como uma das diretrizes de maior relevância ética/estética/política da Política Nacional de
Humanização do SUS” (Ministério da Saúde, 2006)
A cartilha completa explicando que como ética se refere ao ato de acolher o sujeito em suas
diferenças, dores, e necessidades; estética fala da invenção de estratégias que contribuam para a
dignificação da vida e do viver e, assim, para a construção de nossa própria humanidade; política
porque implica o compromisso coletivo de envolver-se neste “estar com”, potencializando
protagonismos e vida nos diferentes encontros.
Malta (1998) fala do acolhimento como uma relação “usuário-centrada”. Teixeira (2005) o
denomina “tecnologias de conversas” (apud Solla, 2005, p.499). Para Solla (2005) “acolhimento,
além de compreender uma postura do profissional de saúde frente ao usuário, significa também
uma ação gerencial de reorganização do processo de trabalho e uma diretriz para as políticas de
saúde (Solla, 2005, p. 501).
Tradicionalmente, a noção de acolhimento no campo da saúde tem sido identificada ora como uma
dimensão espacial, que se traduz em recepção administrativa e ambiente confortável; ora como
uma ação de triagem administrativa e repasse de encaminhamentos para serviços especializados
(Solla, ibdem). O autor, numa perspectiva política diz que o acolhimento deve “garantir a
resolubilidade que é o objetivo final do trabalho em saúde” (Solla, 2005, p. 495). Franco et al diz
que todo serviço deve ser organizado de forma a “atender a todas as pessoas que procuram os
serviços de saúde, garantindo acessibilidade universal” (apud Solla, ibdem)
Silva Junior e Mascarenhas elencam quatro dimensões ou características do acolhimento:
A função de acolhimento
Falamos de acolhimento no sentido de dar acolhida, admitir, aceitar, dar ouvidos, agasalhar,
receber, atender, um estar-com, em suma, uma atitude de inclusão. Importante ressaltar que o
acolhimento como função clínica deve ser praticado não só na porta de entrada de um serviço ou
na triagem, mas também e principalmente ao longo de todo o tratamento e de todo processo de
produção de saúde.
Sem dúvida que se conseguíssemos fazer com que todos os profissionais da saúde, de todas as
categorias entendessem e exercessem sua função com acolhimento isto viria a se constituir numa
grande mudança paradigmática e numa das diretrizes de maior relevância da Política Nacional de
Humanização do SUS.
No entanto, o núcleo ou célula onde o acolhimento ocorre – ou deveria ocorrer – está na micro-
relação entre profissional e paciente, ou seja na dimensão clínica. E não importa qual categoria,
todas fazem clínica. Mas em essência, em que consiste o acolhimento? Quando falamos de função
não se trata de uma tarefa objetiva a ser cumprida, algo estático ou pontual que ora fazemos ora
não fazemos. O acolhimento enquanto função é antes de tudo uma atitude ou postura permanente
ante o outro, que deve ser exercida na mesma medida da demanda do cliente, sujeito ou pessoa, ou
mesmo família e equipe. Portanto, não se trata só da construção de um vínculo ou relação, mas
implica também uma técnica ou manejo técnico.
Relação e técnica
A função de acolhimento, portanto tem um aspecto ligado a relação e outro à técnica. É o que
denomino “técnica relacional” (Portela, 2013), termo paradoxal que trás em seu bojo uma
contradição. Neste contexto relação está ligada a idéia de espontaneidade e autenticidade,
enquanto a técnica é seu oposto, se refere a algo instrumental, repetitivo, generalizante. Mas, ao
utilizar uma técnica ou manejo técnico, isto em si, já se constitui num tipo de vínculo, ou seja, um
vínculo instrumental, mediado por uma técnica, vínculo este que Buber (1960) chamaria eu/isso e
Binswanger (apud Giovanette, 1990) relação plural.
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A relação eu/isso se caracteriza por um vínculo utilitário, de uso, de objeto. Aqui as relações são
mediadas por papéis e máscaras. No setting terapêutico o fenômeno da transferência é um
exemplo de relação eu/isso. A relação eu/tu é um momento mais espontâneo, de encontro e
sinergia, mais autêntico, criativo e telemático, em que ambos (terapeuta e cliente) se despem da
estereotipia dos papéis, relaxam suas defesas, tiram suas máscaras e permitem expressar seu ser de
forma mais espontânea e plena, trata-se da ralação dual de Binswanger.
De forma que são dois os tipos de vínculos possíveis na relação profissional/cliente, um telemático
e outro instrumental. Ambos ocorrem simultaneamente no aqui e agora e em via de mão dupla, do
cliente para o profissional e vice-versa. Este não é o espaço para desenvolver esta temática com
profundidade, mas apenas o suficiente para compreendermos a função do acolhimento. Apesar de
a relação ser a base do processo terapêutico, não se pode prescindir da técnica. Na práxis clinica
temos basicamente dois tipos de técnica, as que denomino direcionais e as relacionais.
Importante observar que, quando se ressalta que a relação deve predominar sobre a técnica,
estamos dizendo da relação autêntica, ou seja, o processo deve estar fundamentado numa relação
de confiança, de segurança, autêntica e espontânea, ou na sua busca. As técnicas são como as
ferramentas de um carpinteiro. Este deve conhecer bem seu ofício, mas sem as ferramentas não
conseguiria executá-lo. Na terapia, a relação sustenta o processo e as técnicas servem como
instrumentos para amenizar as defesas e resistências, incrementar, facilitar e agilizar.
As técnicas relacionais recebem este nome devido se constituir num manejo que se encontra na
fronteira da relação e da técnica ou de uma relação espontânea e de uma instrumental. Isto
possibilita ao terapeuta ser ele mesmo, pessoa, autêntico, congruente, empático e ao mesmo tempo
manejar algum aspecto do processo terapêutico. O método não diretivo de Rogers é um exemplo de
técnica relacional. Interessante observar que, ao contrário das técnicas direcionais[7], as técnicas
relacionais são sutis em sua aplicação e o próprio cliente muitas vezes não percebe que estamos
fazendo algum manejo.
Na práxis clínica, dentre tantas, elencamos três técnicas relacionais ou manejos importantes de se
fazer para o sucesso do processo terapêutico, a saber: ativação do aqui-agora, “principal fonte de
poder terapêutico… o melhor amigo do terapeuta” (Yalom, 2006, p. 54); relação entre
transparência e transferência (Yalom, 2006), isto é, até que ponto o terapeuta se vela ou se revela
ao cliente, manejando os momentos transferências (instrumentais, eu/isso) e telemáticos
(autênticos, eu/tu) respectivamente; e a função continente (Zimermam, 2000), que é “uma das
mais importantes do processo terapêutico, é fundamental para o terapeuta, pois através dela é que
este irá regular o nível de angústia que circula em uma sessão de psicoterapia” (Portela, 2013, p.
172).
O conceito de função continente foi criado por Bion e alude à relação mãe/bebe que deve ser
continente o suficiente para envolver a criança em uma atmosfera de segurança, ajudando-a a
desenvolver sua própria capacidade de continência. Bion transpõe este conceito para a relação
terapêuta/cliente e neste caso, se refere à capacidade de o terapeuta lidar com as angústias e
demandas nele depositadas pelo cliente. Ser continente consiste em estar inteiro com o cliente ou
paciente, acolhendo sua dor expressa em sua queixa, dar um significado e devolve-la desintoxicada
48
Aqui chegamos ao ponto essencial do acolhimento como função, um ponto comum para todas as
categorias profissionais, mas a partir do qual cada disciplina vai diferir na sua leitura,
interpretação e intervenção. Trata-se da angústia. Em essência o objeto do acolhimento é a
angústia, de perda, de vazio, de dor, de morte, devidamente ancorada em um trauma ou doença
física ou psíquica e expressa através de demandas e necessidades endereçadas ao profissional e à
instituição.
1. Certo nível de angústia, em geral mais elevado que o normal considerando o contexto;
2. Ancorada num trauma ou problema de saúde ou social.
Portanto, o termo técnica relacional apresenta uma contradição apenas aparente, pois se trata,
como dito acima, de um manejo que se encontra na fronteira entre técnica (relação instrumental) e
relação (relação autêntica) e que possibilita ao terapeuta ser espontâneo e congruente no mesmo
instante em que maneja a angústia de forma a mantê-la num nível que o cliente seja capaz de
tolerar, processar e elaborar.
Exercer a função de acolhimento significa lidar com esta carga de angústia que será nele
depositada de forma a gerar no paciente um sentimento de segurança e confiança. Ao mesmo
tempo avaliar a queixa concreta ou sintoma e dar os devidos encaminhamentos para uma maior
eficácia e resolubilidade. O nível de angústia vai variar de acordo com a intensidade e importância
do trauma ou perda. Quanto maior a angústia mais capacidade de acolhimento e resolubilidade
deve ter o profissional.
O Acolhimento Psicológico
Durante todo este percurso falamos do lugar do psicólogo e não poderia ser diferente, porém, o que
foi exposto sobre a questão do acolhimento até aqui, de certa forma, vale também para outras
categorias profissionais. Vamos definir agora especificamente o acolhimento psicológico, mesmo
por que, como vimos acima, não encontramos o verbete em nenhum dicionário técnico da
profissão, apesar da função de acolhimento se constituir numa tarefa básica do psicólogo clínico ou
psicoterapeuta. Vamos olhar o acolhimento também da ótica do psicólogo hospitalar. É a clínica
ampliada e aplicada, de forma que vamos depois considerar o acolhimento psicológico no
ambulatório de um hospital de urgência e emergência.
Trata-se de uma função fundamental do terapeuta, um manejo técnico através do qual este regula
ou maneja o nível de angústia que circula no setting terapêutico. Sabe-se que a angústia é o motor
da terapia, mas ela deve estar num nível que seja assimilado pelo sujeito, que este tenha recursos
para lidar e que lhe permita uma elaboração. Um nível muito alto de angústia estanca a palavra,
bem como um nível muito baixo torna o processo terapêutico improdutivo.
Através da função do acolhimento o terapeuta maneja a angústia para que se mantenha num nível
adequado e produtivo para o processo terapêutico. Quanto maior a angústia, mais continente (Bion
apud Zimermam, 2000), deve ser o terapeuta, permitindo a expressão de dor, o pranto a comoção
e sendo mais diretivo, com orientações e/ou sugestões. Quanto menos angústia, menos continente,
menos diretivo e por outro lado mais analítico e reflexivo de forma a levar à elaboração,
resignificação e superação do trauma.
Acolhimento, estratégia ou função? Podemos dizer que o acolhimento como função é uma
excelente estratégia, e como estratégia depende da função, ou seja o acolhimento como estratégia é
uma política do Ministério da Saúde que busca a humanização dos serviços. Mas para que tenha
sucesso é preciso que faça parte da cultura da instituição. É de admirar que uma atitude que
deveria ser espontânea e natural tenha que ser imposta. Nem todos têm a função de acolhimento
desenvolvida, mas é uma habilidade que pode ser aprendida. Todos que lidam com o público, com
pessoas, devem exercê-lo. Acolhimento não deve se restringir à porta de entrada, à triagem, mas
estar presente em cada etapa do processo de produção de saúde. Cada profissional deve, além de
exercer sua missão específica, de acordo com sua categoria, fazê-lo com acolhimento e
resolubilidade de acordo com as necessidades e demandas de cada paciente. Acolhimento e
resolubilidade são dois lados da mesma moeda, ambos têm que caminhar juntos.
Nos causou estranhesa também o fato de não encontrarmos nos dicionários técnicos de psicologia
o termo acolhimento. Consideramos um termo ou conceito importante posto que retrata uma
atitude ou postura fundamental do psicoterapeuta ou profissional da saúde para o sucesso do
processo terapêutico ou tratamento. Procuramos demonstrar que a função de acolhimento é uma
técnica relacional, se constitui antes de tudo em um manejo técnico que permite a construção de
uma relação de confiança ao mesmo tempo que regula o nível de angústia.
Maio 2014
Bibliografia
7 A psicologia médica se dedica a compreender o ser humano enquanto paciente e suas relações com a
equipe assistencial no processo do adoecimento. Para Schneider, um dos grandes expoentes dessa área,
ela apresenta como função “preparar psicologicamente o médico com o objetivo de que possa melhor
compreender o paciente”
o conteúdo do livro é abrangente. Está dividido em sete partes, cada qual composta por vários capítulos,
percorrendo os seguintes blocos temáticos:
- Parte V: o ciclo de vida e morte, fases e dinâmicas, crises, desadaptações, psicopatologias, e aspectos
inerentes à relação médico-paciente;
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O livro começa nos conduzindo a uma viagem no tempo. O trabalho investigativo do autor na história de
práticas em medicina e de médicos nos coloca em contato com sucessivas épocas e personagens que vão
tecendo a história viva de um campo de conhecimento e prática nunca neutro, nunca anônimo, tampouco
periférico ao momento histórico e seus determinantes sociais e culturais. A construção da trajetória da medicina
por meio de seus personagens-expoentes tem também como efeito nos colocar diante de questões com as
quais nós, médicos, ao longo de nossas vidas, temos de nos haver... Quanto essa profissão não pede (ou, às
vezes, subtrai) um tanto significativo de nossas vidas?
Lendo, mais uma vez, o juramento de Hipócrates e as adaptações que a ele se fizeram, criando-se outros
juramentos mais adequados às mudanças das épocas (ainda que mantendo, essencialmente, seus princípios
originais), reforça-se tal questão. A medicina demanda um juramento de fidelidade à sua arte e sacralidade por
parte daqueles que nela pretendem atuar. E, ao longo do livro, fica bem claro o porquê.
Ao final dessa viagem inicial, os autores apresentam-nos o fio condutor que percorre as demais partes do livro,
ou seja, a Psicologia Médica, seu objeto e método, e os principais movimentos de sua inserção nos currículos
das escolas médicas.
O debate em torno do ensino de humanidades médicas (Rios, 2010) e, particularmente, de psicologia para
estudantes de medicina adquire consistência nos tempos atuais ante as críticas ao reducionismo do modelo
biomédico. Por outro lado, a delimitação do seu campo apresenta contornos intencionalmente esmaecidos.
Caberia à Psicologia Médica abordar os fenômenos psíquicos presentes na relação médico-paciente e os
aspectos comunicacionais relativos a esta e às várias interações do médico no mundo do seu trabalho e fora
dele – na mídia, por exemplo. Também estaria dentro do campo da Psicologia Médica a tarefa de estimular o
desenvolvimento de percepção mais refinada das expressões subjetivas das pessoas e sensibilidade para com
o outro, por meio de recursos vindos das artes.
Trata-se de uma proposta bastante ampla, que teria a disciplina de Psicologia Médica como ponto de irradiação
e meio condutor para o desenvolvimento de atenção, compreensão e cuidado sobre fenômenos relacionais
latentes ou manifestos, mas que se realizaria no campo de atuação de outras disciplinas médicas, em uma
perspectiva interdisciplinar, desde a formação dos alunos até o exercício profissional propriamente dito. Nesse
sentido, a tarefa da disciplina de Psicologia Médica no currículo da graduação em Medicina seria a de
desenvolver competências (conhecimentos, habilidades e atitudes) nos diversos cenários de ensino-
aprendizagem interdisciplinar, muitas vezes atuando como catalisador dessa temática no contexto de práticas
específicas.
Nas partes subsequentes desse livro, quando vamos nos apropriando mais da metodologia didático-pedagógica
praticada pelos autores, no acúmulo dos anos de experiência no ensino, fica mais claro, ao leitor, o modo como
o campo da psicologia vai se imiscuindo nos campos da medicina, deixando de ser uma parte circunscrita
dentro do ensino médico, para ser parte do corpo de saberes médicos, cujos limites não são tão precisos, nem
deveriam ser dentro de uma proposta interdisciplinar.
Um tema que ilustra bem o que acabo de lhes dizer refere-se à comunicação na prática médica, tópico
recorrentemente evocado e historicamente marcado de importância na contemporaneidade. Vivemos tempos
em que a comunicação adquire centralidade também no campo da Saúde e, em particular, na formação médica
(Rider, Keefer, 2006). Há algum tempo que as escolas médicas conscientes de tal necessidade incluíram, em
seus currículos, disciplinas para desenvolvimento de habilidades comunicacionais. Nesse sentido, há vários
modelos comunicacionais e métodos de ensino-aprendizagem adotados segundo propostas distintas para o
cuidado e a educação em Saúde. Vão desde perspectivas mais estritamente instrumentais, que buscam
desenvolver habilidades técnicas específicas para situações clínicas mais ou menos padrão (por exemplo,
comunicação de más notícias, pacientes-problema, termo de consentimento, situações de conflito), até
perspectivas que trabalham, inclusive, com tais tópicos específicos, em um modelo de construção de
intersubjetividade. É nesta segunda proposta que o autor localiza mais fortemente a interface do ensino de
comunicação e psicologia médica.
compreensiva encontra na Psicologia Médica um terreno fértil, posto ser uma área mergulhada na temática da
constituição de sujeitos e subjetividades tanto do ponto de vista conceitual quanto metodológico.
A tarefa educacional de "habilitar" para a comunicação, quando tratada de forma reducionista, como um
protocolo de ações sequenciais dentro de um encontro clínico, não seduz os autores, que não caem no lugar
comum das check-lists. Ao contrário, expõem, com exemplos e depoimentos dos alunos, como tal redução é
precária e não dá conta do desenvolvimento da competência relacional. Mais ainda, como pode ser angustiante
para o aluno uma abordagem que desconsidera as manifestações psíquicas de pacientes e médicos nesse
contexto de encontro.
Não quero, com isso, dizer que, para o encontro clínico, não precisamos de metodologia. Ao contrário,
organização e sistematização são aspectos fundamentais para uma boa abordagem do paciente, como
detalhadamente proposto nos capítulos que tratam da entrevista clínica. Como receber o paciente, iniciar a
entrevista, o que perguntar e como; como estimular o paciente a falar ou o contrário, quando ele fala demais; o
bom uso da linguagem não verbal; os aspectos intimistas presentes no exame físico; o próprio exame psíquico
na abordagem geral do paciente; e, por fim, as etapas de informação e condução de acordos terapêuticos são
abordados de forma clara, esquemática e objetiva o bastante para que o aluno se sinta instrumentalizado.
As técnicas descritas em roteiros são, por assim dizer, um primeiro nível comunicacional. Em um segundo nível,
outros recursos se tornam necessários para ampliar a percepção subjetiva dos fenômenos relacionais mais
latentes. Esses recursos envolvem desenvolvimento de empatia, percepção, sensibilidade, e compreensão da
existência humana.
Capítulos posteriores aprofundam conceitos sobre a constituição do psiquismo e da subjetividade, com forte
acento psicanalítico e com uma linguagem que prima pela clareza e desejo de comunicar-se com o leitor –
qualidade apreciável, mas nem sempre presente em textos dessa área. A articulação de conceitos um tanto
abstratos com casos clínicos ou literários e depoimentos de profissionais e alunos é um poderoso recurso de
compreensão presente em todo o livro, de forma tão francamente clara que chega a ser generosa. Mais que
isso: apresenta-se como possibilidade de estimular uma espécie de cumplicidade entre autores e leitores. Esses
excertos de manifestação de subjetividade ou de intersubjetividade tornam o livro uma escrita que se entrega ao
leitor e que nele produz reflexões sobre sua própria experiência.
Várias experiências educacionais têm mostrado a potência transformadora da arte (Pereira, 2002) sobre o
comportamento das pessoas por meio de um maior contato do sujeito com sua superfície psíquica sensível, do
desvelamento de seus próprios desejos e, assim, uma compreensão profunda de si mesmo, que, entre outros
efeitos, amplia possibilidades comunicacionais com o outro.
Construída a base compreensiva que define o campo da Psicologia Médica na concepção adotada, ou seja, os
aspectos comunicacionais e psíquicos constituintes do encontro clínico, nos capítulos seguintes, os autores vão
aprofundar e particularizar tais aspectos por referência a ciclos da vida e situações específicas. Nesses
capítulos fica claro que a Psicologia Médica é tema transversal, e qualquer proposta de atenção à saúde que
pense o cuidado integral terá importantes interfaces com ela. Nessa forma de empreender o cuidado, os
aspectos psicológicos são também médicos. A prática comum de tão logo se identificar alguma tonalidade
psicológica em uma situação clínica, prontamente mandar para algum profissional "psi", fica totalmente sem
sustentação. Ao mesmo tempo, aponta-se a necessidade de os médicos serem mais bem preparados para a
53
especificidade dos conhecimentos ancorados nesse campo. É preciso que o médico tenha conhecimentos e
comprometimento com o campo, uma vez que, para sua atuação nele, não basta bom senso, experiência
pessoal, ou, mesmo, senso comum, de que muitos ainda se utilizam para preencher suas lacunas de saber.
Gestação, parto e puerpério, infância e as fases do desenvolvimento, adolescência, idade adulta, velhice, morte
são passagens do viver humano cuja complexidade existencial é assinalada pelos autores.
Na última parte do livro, os autores nos falam sobre manifestações psíquicas relativas ao processo do adoecer
e do cuidar, abordando conflitos, situações difíceis, dilemas éticos, comunicações dolorosas, enfim, temas que
nunca se esgotam, seja conceitualmente, seja tecnicamente, seja como for. Temas que sabiamente ficaram
para o último capítulo, pois demandam um longo percurso de estudo e experiência clínica para seu
enfrentamento. E, mesmo assim, sabemos que todo esse preparo facilita lidar com certas situações, mas não
elimina a dor essencialmente humana e inevitável de todos nós diante da força bruta de certos acontecimentos
em nossas vidas.
Ao longo de todo o livro, é evidente a preocupação dos autores em não naturalizar tais acontecimentos, ao
contrário, dar-lhes a devida dimensão trágica, mas, também, fazer despontar, em nós e nossos pacientes, uma
grande potência reparadora. Força que talvez tenha sido bem mais decisiva do que imaginamos quando da
nossa escolha profissional pela medicina, e que nos sustenta nela mesmo diante dessas circunstâncias (ou, até
mesmo, por essas circunstâncias) em que nos tornamos a pessoa certa no lugar necessário.
Recebido em 20/07/12.
Aprovado em 08/04/12.
7 Ambiente médico: o impacto da má notícia em pacientes e médicos – em direção a um modelo de comunicação mais efetivo
Palavras-chave:
RESUMO
As más notícias fazem parte da rotina dos médicos, no entanto, seu impacto em ambos os médicos e paciente, não é
bem conhecido. Com esse conhecimento, os médicos seriam capazes de transmitir estas notícias de forma mais
eficaz. O objetivo deste estudo é revisar o impacto fisiológico e psicológico das más notícias em ambos, médico e
paciente, e estratégias para melhorar as habilidades de comunicação e minimizar estes efeitos. Ao transmitir uma má
notícia, médicos podem ter um aumento na frequência cardíaca, pressão arterial e débito cardíaco de forma tão
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expressiva que pode ser um fator de risco para hipertensão. Alterações nos níveis de cortisol e as respostas imunes
também estão relacionadas a estas situações. Médicos relataram que dar más notícias envolve um risco de perder o
controle de diferentes maneiras, com relação às emoções, profissionalismo e confiança. Em relação ao impacto nos
pacientes, até o momento, nenhuma pesquisa investigou os efeitos fisiológicos; entretanto, os pacientes reagem
com choro, seus “corpos podem agitar” e eles podem sentir uma “sensação de frio no estômago”. Os pacientes
precisam de tempo para se adaptar a informação dada; eles querem que seus médicos sejam sensíveis e respondam
as suas perguntas no mesmo dia, dando-lhes a sensação de que eles estão sabendo de tudo. Dados mostram desde
os que de estudantes de medicina a médicos experientes sentem desconforto e despreparo em transmitir más
notícias. Isso enfatiza a necessidade de um modelo eficiente para o desenvolvimento de habilidade na revelação.
Questões pessoais, institucionais, de treinamento e linguagem vêm sendo reconhecidas como potenciais barreiras
para a transmissão de más notícias. Estratégias que estão sendo desenvolvidas para melhorar a transmissão de más
notícias incluem o uso de diretrizes como o SPIKES e programas de treinamento intensivo. Tais estratégias têm sido
comprovadas para minimizar o impacto em ambos, pacientes e médicos. Assim, é necessária a inclusão destas
estratégias na graduação de medicina, residência e programas de treinamento médico.
XVII Plenário
Conselho Federal de Psicologia
A psicologia hospitalar tem construído sua história, passo a passo, considerando que há menos de duas
décadas, a atuação do psicólogo em instituições hospitalares não estava regulamentada como uma
ampla e necessária práxis psicológica. Nos hospitais gerais, a escuta terapêutica com usuários e
familiares é imprescindível. Este estudo pretende mostrar alguns aspectos da inserção do psicólogo nas
equipes de saúde, bem como sua práxis profissional no contexto hospitalar. Para tanto, foram
entrevistadas 6 psicólogas de hospitais gerais de Porto Alegre para se compreender como o trabalho da
psicologia está inserido junto aos de mais profissionais na equipe multidisciplinar de saúde. As
psicólogas destacam diversos aspectos de sua atuação profissional que permearam a construção deste
estudo. Dentre eles, foram salientados no discurso das entrevistadas, principalmente os seguintes
aspectos: as relações de poder entre os profissionais da equipe multidisciplinar, o conceito de saúde e
o discurso de humanização à atenção da saúde. As relações entre os profissionais da saúde das
diversas disciplinas e o trabalho em equipe são fundamentais para um atendimento humanizado aos
usuários de hospitais gerais. Por outro lado, os conceitos de saúde e de humanização da atenção à
saúde se estabelecem de diferentes formas e estão quase sempre atrelados à área disciplinar do
profissional. As equipes de saúde relatam que em alguns casos, somente a ajuda médica não basta
para o tratamento ser bem sucedido: o ser humano é muito mais que um corpo físico, e assim, o
atendimento integral a saúde é indiscutível.
METODOLOGIA
Este estudo foi realizado em seis hospitais gerais públicos e particulares, da cidade de Porto Alegre.
Foram entrevistadas3 seis psicólogas, cada uma de um hospital. Através de uma entrevista semi-
estruturada, procuramos buscar informações sobre o início do trabalho da psicologia nos hospitais, o
desenvolvimento das primeiras atividades, bem como as atuais, e o contexto atual de trabalho nos
hospitais gerais. As psicólogas destacaram diversos aspectos de sua atuação profissional que
permearam a construção deste estudo. Através da emergência de determinados enunciados na fala das
psicólogas, foram situados algumas questões como: a inserção do trabalho da psicologia no hospital, a
psicologia hospitalar e as relações da equipe multidisciplinar de saúde. Os enunciados desses discursos
foram organizados pelos tópicos dessas questões da pesquisa e sobre os quais se fez a discussão dos
resultados. Os resultados dessa pesquisa estão organizados da seguinte forma: primeiro serão
contextualizados, brevemente, alguns aspectos relacionados ao início da psicologia hospitalar 4, para,
em um segundo momento, se discutir a participação do trabalho da psicologia nas equipes
multidisciplinares, abordando principalmente as relações de poder. Nas considerações finais,
questionamos a concepção do conceito de saúde implicada no modo de trabalho das equipes de saúde
e apontamos para aspectos deste conceito que consideramos fazer parte da prática da psicologia nos
hospitais gerais.
estamos desde 1979...”. No entanto, a demanda hospitalar não era unicamente clínica, mesmo
considerando que esta prática tenha sido o marco da afirmação profissional do psicólogo. Portanto,
questões relativas ao funcionamento institucional mereceram a atenção do profissional da psicologia,
proporcionando uma escuta que transcende a clínica, ressaltando a necessidade de se dedicar "a
instituição como um todo, no seu funcionamento para que ela desempenhe da melhor forma possível a
tarefa saúde, no cuidado com a saúde", que pode também ser contemplada nas seguintes
atividades: "Então eu fazia seleção do pessoal, treinamento de funcionários, fazia avaliação do trabalho
junto com as chefias...".
A implementação de uma área nova dentro da psicologia suscitou a utilização de recursos técnicos e
metodológicos de diversas áreas do saber psicológico, não se restringindo apenas a clínica, mas
também a organizacional, social e educacional (Fongaro e Sebastiani,1996). Assim, foram criando um
conhecimento mais específico sobre a área, possibilitando uma maior união entre o psíquico e o
biológico, dentro do contexto hospitalar. Nesse sentido, faz-se necessário comentar a importância de
estar instrumentalizado para realizar um bom trabalho. "Então foi aí que eu comecei, fui buscar
supervisão, fui trabalhar e aí a coisa começou.". Estas falas ilustram a necessidade de se desenvolver
materiais que expliquem e contextualizem o trabalho do psicólogo nesta área e a dinâmica da
instituição hospitalar ( Fongaro e Sebastiani, 1996).
A Psicologia Hospitalar não pertence unicamente a área clinica, pois ela também abrange áreas como a
organizacional, social e educacional, utilizando-se de recursos técnicos, metodológicos e teóricos de
diversos saberes psicológicos. A Psicologia Hospitalar busca comprometer-se com questões ligadas à
qualidade de vida dos usuários bem como dos profissionais da saúde, portanto, não se restringindo ao
atendimento clínico, mesmo este sendo uma prática universal dos psicólogos hospitalares. O
pressuposto que permeia as atividades do psicólogo no hospital geral mostra outra visão de indivíduo,
não fragmentada, mas como um todo, como um ser biopsicossocioespiritual com o direito inalienável à
dignidade e respeito. (Fongaro e Sebastiani, 1996)
A equipe hospitalar é composta por diversos profissionais, incluindo aqueles que não assistem as
pessoas hospitalizadas diretamente, tais como equipe de higienização, radiologista, anestesista, dentre
outros. No entanto, consideraremos aqui a equipe multidisciplinar formada pelos profissionais que
assistem diretamente os indivíduos: médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionista, assistente social,
fisioterapeuta. Cabe salientar que a equipe multidisciplinar tem sua formação centrada nas
necessidades da pessoa, portanto, ela não é pré-organizada. A demanda do enfermo é que fará com
que os profissionais da saúde se integrem, com o propósito de satisfazer as necessidades globais da
pessoa, proporcionando seu bem-estar.
No entanto, serão os médicos os protagonistas do manejo hospitalar, pois são eles que decidem sobre
técnicas, medicações, cura, internações e altas (Angerami-Camon, 1987). Portanto, os demais
profissionais se adequam, primeiramente, a demanda orgânica do indivíduo e às definições do médico,
para posteriormente, integrar sua prática ao atendimento hospitalar. Porém, o aparecimento de
inúmeras especialidades da área da saúde impossibilita que um único profissional englobe todos os
conhecimentos produzidos em sua área de atuação. As múltiplas situações difíceis e inesperadas que
fazem parte da realidade dos usuários dos hospitais gerais refletem no trabalho da equipe
multidisciplinar, o que mostra que uma única especificidade profissional não consegue dar conta dessa
gama de fatores intrínsecos a doença e a hospitalização (Chiattone, 1996). Em relação aos valores
pessoais permeiam as relações profissionais, assim, acredita-se que a neutralidade médica
exemplificada pelo relacionamento padrão estereotipado, estabelecido com os demais profissionais da
saúde, bem como com os beneficiários dos serviços de saúde, implicam alguns questionamentos,
principalmente por parte da equipe, tendo em vista que o saber médico é pouco compartilhado. A
neutralidade médica pode ser explicada, mas não justificada, pela necessidade de esvaziamento dos
conteúdos e representações de vida e morte, já que a relação entre os médicos e a pessoa em
sofrimento é repleta de ansiedades e fantasias (Zaidhaft, 1990). A postura médica é conseqüência da
formação profissional, que pouco enfoca as relações humanas e que tem uma visão de ser humano
como objeto de estudo, não considerando as emoções subjacentes ao manejo médico (Kubler-Ross,
58
1999). Os membros da equipe, especialmente os médicos, que tiverem sua auto-estima atrelada ao
seu desempenho profissional, podem perder a noção realista das condições de recuperação de
determinados casos, sendo a recuperação completa a única alternativa possível (Leão, 1998).
A inserção dos serviços de psicologia é privilegiada em instituições onde há espaço para reuniões entre
os diversos profissionais da equipe multidisciplinar, pois nestas ocasiões, o psicólogo evidenciará a
importância da valorização do conjunto dos aspectos emocionais do indivíduo. A equipe médica de
saúde, então, busca humanizar as condições do indivíduo no seu período de hospitalização. O vínculo
entre o indivíduo e a equipe multidisciplinar tem de ser considerado no manejo psicológico. É
indispensável que o psicólogo saiba detalhadamente das atividades desenvolvidas pelos demais
profissionais, bem como os limites de cada um, possibilitando uma atuação integrada, com manejo
único. A multidisciplinariedade corre o risco de fragmentação entre os setores, e consequentemente, a
fragmentação do paciente. O relacionamento precário entre a pessoa e a equipe de saúde pode
acarretar mais sofrimento do que o esperado para determinados quadros. Entretanto, é a trajetória
hospitalar do indivíduo que definirá o enfoque de seu atendimento psicológico, que poderá ser pré ou
pós-operatório, ambulatorial, ou de enfermaria. É através desta consideração que o trabalho do
psicólogo será delineado e implementado, considerando as necessidades individuais da pessoa
(Angerami-Camon, 1987).
De acordo com Santos e Sebastiani (1996), a discussão sobre as equipes multidisciplinares é de suma
importância, pois mesmo a proposta do atendimento integral ao usuário sendo óbvia, na prática, tal
obviedade não é efetivamente posta em ação. Ainda percebe-se dificuldades de interação entre os
profissionais, disputas de poder (tanto objetivas quanto subliminares), falta de conhecimento sobre a
ajuda que outras especialidades podem dar à equipe e ao indivíduo.
É impossível pensar em qualquer relação humana sem pensar nas relações de poder que permeiam,
induzem, formam saberes e produzem discursos. É o que Foucalt nos ensina em microfísica do poder
(1979/1984). Cabe ressaltar que poder não é um objeto e sim uma relação, e que também não é
sempre negativo, ele é mais que uma instância repressiva, ou seja, o poder pode ser também
positivado pelos sujeitos. Um aspecto importante do poder é sua tendência a ocultar-se, inclusive
negativisar-se, apresentando-se como uma exigência natural ou razão social, de acordo com Martins
(2003). Para que haja a manutenção de um discurso dominante em uma instituição, são necessárias
práticas que o legitimem e operem no sentido de reprimir manifestações contrárias. Desta forma, os
profissionais da área da saúde tornam-se (re)produtores de uma postura médica que não é imposta,
mas sim “indicada” como um padrão a ser seguido, sem crítica alguma. É neste momento que fica claro
o exemplo das relações de poder nas relações estabelecidas nas equipes multidisciplinares. Tal poder
se estabelece no cotidiano através do exercício da medicina, ou de outra disciplina da área da saúde,
ele controla o saber e o fazer médico, normatizando os profissionais. (Martins, 2003) Um exemplo
disso pode ser o fato de o médico versar sobre o seu trabalho com uma linguagem específica e técnica,
pouco acessível aos leigos (inclusive ao psicólogo), demonstrando uma relação de poder, já que
principalmente os usuários ficam inibidos frente à autoridade de um saber médico.
Na prática do psicólogo, as relações de poder são estabelecidas através de seu campo de saber ou
conhecimento. O psicólogo no hospital escuta o usuário, a família do usuário, os outros membros da
equipe e a opinião médica, portanto, é viável que ocorra através da apropriação de um modelo da
psicologia, enquanto uma área de saber científico, o exercício das relações de poder, que de acordo
com Martins (2003) é vivenciado no âmbito mais amplo de trabalho nos hospitais. O poder pode ser
produzido nas instâncias imediatas e cotidianas, como, por exemplo, na relação com a equipe de
saúde. Entretanto, a inserção do psicólogo nos hospitais gerais pode, assim, também contradizer a
ordem estabelecida de normatividade da medicina que vê a cura somente pelo aspecto orgânico, físico
ou biológico.
dados específicos da doença, portanto, a atitude de rejeição do médico perante a pessoa faz com que
ela se remeta a outras relações insatisfatórias que foram estabelecidas em sua vida. O
restabelecimento do enfermo pode, desta forma, ser prejudicado pela hostilidade, muitas vezes
inconscientes, que perpassam as relações médico-paciente. As atitudes da equipe de saúde podem ser
terapêuticas ou não, podendo produzir configurações maléficas ou benéficas no curso do adoecer
(Guedes, 2003).
No dia-a-dia do hospital os psicólogos muitas vezes ocupam o lugar de tradutores entre os médicos e
os usuários, podendo tomar-se o entendimento de que as questões subjetivas são exclusivas do
psicólogo e as orgânicas do médico. Entretanto, o ser humano não é só somático ou psíquico, ou seja,
a fragmentação do atendimento à saúde pode não contemplar a complexidade do ser humano, devido
aos diferentes campos de saberes e poderes envolvidos no atendimento ao usuário. Contudo, a
linguagem técnica da equipe de saúde pode não ser o único empecilho no atendimento. Qualquer
orientação dos profissionais do campo da saúde pode, muitas vezes, ser incompreensível ou
inadequada às condições de vida da pessoa. Por exemplo, uma pessoa que necessita de diversos
medicamentos, em diversos horários e que não é alfabetizada necessitará de uma orientação diferente
de uma pessoa alfabetizada. A própria cura precisa ser contextualizada, pois no momento em que o
médico diz que a pessoa pode levar uma vida “normal”, ele precisa conhecer o dia-a-dia dela. Um
pedreiro, por exemplo, nem sempre poderá carregar peso imediatamente após sua alta.
Assim, a equipe de saúde, pode, nem sempre se mostrar aberta, pelo menos, em um primeiro
momento, ao trabalho do psicólogo: "As equipes aceitam muito bem o trabalho, solicitam bastante,
agora a gente já tem um espaço aqui dentro, não precisa mais pedir "há tem uma criança?”. Devido a
isso, pode-se pensar que, em algumas situações, o atendimento psicológico pode ser visto como algo
desnecessário àqueles usuários que não apresentam comportamentos considerados não prioritários
para o atendimento à saúde, ou ser considerado secundário por se tratar de uma demanda subjetiva.
Porém, a inserção do trabalho do psicólogo no contexto hospitalar pode mudar a dinâmica de
atividades de toda equipe de saúde, uma vez que a dinâmica das relações de poder entre os diferentes
saberes do que é saúde passam a ser estabelecidas de outras formas, alterando o entendimento sobre
atenção à saúde, tanto por parte da equipe médica, como por parte dos usuários. Isto, leva a uma
maior preocupação por parte da equipe multidisciplinar, na clareza e eficácia da comunicação entre os
profissionais da saúde e os usuários, buscando evitar discórdias e desentendimentos entre esses.
Ao analisarmos os temas propostos neste artigo, sentimos emergir, dessas discussões o entendimento
do conceito de saúde pelos profissionais dessa área. Ao inserir o trabalho da psicologia nas equipes
multidisciplinares de saúde, propomos que a psicologia passe a pensar a saúde como um conceito
complexo, que possa se situar em modelos que venham a promover formas de vida e de ser que
englobem a dimensão do sujeito como cidadão na esfera pública e na esfera privada. Ao voltar a
preocupação com o usuário para o auto-conhecimento, para o indivíduo, corremos o risco de situar o
trabalho da psicologia dentro de um enfoque individual, como as atividades dessa área no espaço
privado. A psicologia deve diminuir essa dicotomização entre o público e o privado, a fim de entender e
atender o sofrimento psíquico do ser humano como um todo, e não na sua individualidade, integrando
tal entendimento ao atendimento e às preocupações da equipe multidisciplinar de saúde. (Guareschi,
2003)
Os sentidos que a palavra saúde pode adquirir são muitos, dentre eles, uma face normativa,
prescritiva, que faz referência à uma espécie de conjunto de atributos para uma pessoa ser
considerada saudável. Esse sentido de saúde, o trabalho da psicologia deve evitar. Pensamos que a
psicologia nas suas práticas em hospitais, encarando a saúde como uma perspectiva que o conceito de
saúde interpele, passa contemplar os direitos básicos do cidadão: o direito à moradia, ao trabalho, à
segurança e à saúde, ou seja, o conceito de saúde do SUS. Desta forma, precisamos desnaturalizar a
perspectiva medicalizada que freqüentemente é utilizada pelos profissionais da saúde, como se essa só
contemplasse ausência de doenças.
A psicologia tem como desafio para articular a questão da saúde em suas práticas junto às equipes
multidisciplinares de forma incisiva, perguntar-se, principalmente, que concepção de sujeito e de
sociedade está como pano de fundo para as práticas psicológicas nos hospitais gerais. O trabalho da
psicologia nas equipes multidisciplinares deve ser tomado como algo mais complexo, merecendo uma
discussão também complexa que, no mínimo, consiga ser problematizadora de questões
contemporâneas que envolvem essas práticas psicológicas sobre doença e saúde. Não há exercício
profissional que dispense uma perspectiva de sujeito e de realidade. Em toda prática psicológica existe
a necessidade dessa discussão, e ações que constituam o trabalho da psicologia. Assim, para o
profissional da psicologia, não estão restritas somente as atividades concernentes à saúde mental;
todo o trabalho que seja exercido no campo de trato da coletividade com a finalidade da promoção do
bem-estar e da saúde e que seja possível o trabalho da psicologia serão de interesse, ou seja, o
profissional da saúde também deve estar presente na formulação, organização e desenvolvimento das
políticas públicas e sociais de saúde.
BIBLIOGRAFIA
FONGARO, Maria Lúcia. SEBASTIANI, Ricardo W. (1996). Roteiro de avaliação psicológica aplicada ao
hospital geral. In: ANGERAMI-CAMON, Valdemar (Org.). E a psicologia entrou no hospital. São
Paulo: Pioneira, [ Links ]
GUARESCHI, Neuza. (2003). Interfaces entre psicologia e direitos humanos. In: GUERRA, A. , KIND, L.,
AFONSO, L., PRADO, M. (Orgs.). Psicologia social e direitos humanos. Belo Horizonte: Edições do
campo social [ Links ]
LEÃO, Nilza. O paciente terminal e a equipe interdisciplinar. In: ROMANO, Belkiss W. (1998). A prática
da psicologia nos hospitais. (2 ed.) São Paulo: Pioneira. [ Links ]
9. Schmidt B et al . Saúde mental e intervenções psicológicas diante da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Estud. psicol. (Campinas),
Campinas , v. 37, e200063, 2020
O primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 24 – Sars-
Cov-2) foi reportado na China, no início de dezembro de 2019 (Wang et al., 2020; Xiao, 2020). A rápida escalada
da doença (Coronavirus Disease 2019 – COVID-19), com disseminação em nível global, fez com que a World
Health Organization a considerasse uma pandemia. Em 16 de abril de 2020, o número de casos confirmados
mundialmente superava dois milhões, ao passo que o número de mortes superava 130 mil ( World Health
Organization [WHO], 2020a). Nessa mesma data, o Brasil contava com 30.425 casos confirmados e 1.924
mortes (Ministério da Saúde, 2020a). Entretanto, estima-se que esses números sejam ainda maiores, dado que
não levam em conta atrasos nas notificações ou casos positivos não testados ( Russell et al., 2020). Estatísticas
sugerem que o número de reprodução da COVID-19 (i.e., o número médio de novos casos gerados a partir de
um caso) varia de 1,4 a 3,9 em diferentes localidades (Villela, 2020). Assim, o tempo de duração e os
desdobramentos da pandemia ainda permanecem imprevisíveis (Xiao, 2020).
Até 16 de abril de 2020, quando a redação do presente artigo foi concluída, a COVID-19 já trazia um profundo
impacto global, sendo considerada a síndrome respiratória viral mais severa desde a pandemia de influenza
H1N1, em 1918 (Ferguson et al., 2020). As estimativas são de que essa pandemia, também conhecida como
“gripe espanhola”, levou a óbito entre vinte e cinquenta milhões de pessoas em todo o mundo, há pouco mais
de cem anos (Matos, 2018). Os sintomas físicos da COVID-19 frequentemente envolvem tosse, febre e
dificuldades respiratórias (Carvalho, Moreira, Oliveira, Landim, & Rolim Neto, 2020 ) que podem levar à morte
(Li et al., 2020b). O significativo número de casos que demandam internação hospitalar ( Duan & Zhu, 2020),
incluindo cuidados em unidade de terapia intensiva, bem como a ausência de intervenções farmacológicas
eficazes e seguras, tais como medicamentos ou vacinas, têm gerado preocupações quanto ao colapso do
sistema de saúde em diferentes nações (Ferguson et al., 2020). Com o objetivo de reduzir os impactos da
pandemia, diminuindo o pico de incidência e o número de mortes, alguns países têm adotado medidas tais
quais isolamento de casos suspeitos, fechamento de escolas e universidades, distanciamento social de idosos e
outros grupos de risco, bem como quarentena de toda a população ( Brooks et al., 2020; Ferguson et al., 2020).
Estima-se que essas medidas tendam a “achatar a curva” de infecção, ao favorecer um menor pico de
incidência em um dado período, reduzindo as chances de que a capacidade de leitos hospitalares, respiradores
e outros suprimentos seja insuficiente frente ao aumento repentino da demanda, o que se associaria a uma
maior mortalidade (Ferguson et al., 2020).
Em linhas gerais, na vigência de pandemias, a saúde física das pessoas e o combate ao agente patogênico são
os focos primários de atenção de gestores e profissionais da saúde, de modo que as implicações sobre a saúde
mental tendem a ser negligenciadas ou subestimadas (Ornell, Schuch, Sordi, & Kessler, 2020). Contudo,
medidas adotadas para reduzir as implicações psicológicas da pandemia não podem ser desprezadas neste
momento (Brooks et al., 2020; Xiao, 2020). Se isso ocorre, geram-se lacunas importantes no enfrentamento dos
desdobramentos negativos associados à doença, o que não é desejável, sobretudo porque as implicações
63
psicológicas podem ser mais duradouras e prevalentes que o próprio acometimento pela COVID-19, com
ressonância em diferentes setores da sociedade (Ornell et al., 2020).
Estudos têm sugerido que o medo de ser infectado por um vírus potencialmente fatal, de rápida disseminação,
cujas origens, natureza e curso ainda são pouco conhecidos, acaba por afetar o bem-estar psicológico de
muitas pessoas (Asmundson & Taylor, 2020; Carvalho et al., 2020). Sintomas de depressão, ansiedade e
estresse diante da pandemia têm sido identificados na população geral ( Wang et al., 2020) e, em particular, nos
profissionais da saúde (Zhang et al., 2020a). Ademais, casos de suicídio potencialmente ligados às implicações
psicológicas da COVID-19 também já foram reportados em alguns países como Coreia do Sul ( Jung & Jun,
2020) e Índia (Goyal, Chauhan, Chhikara, Gupta, & Singh, 2020).
Afora as implicações psicológicas diretamente relacionadas à COVID-19, medidas para contenção da pandemia
também podem consistir em fatores de risco à saúde mental. Em revisão de literatura sobre a
quarentena, Brooks et al. (2020) identificaram que os efeitos negativos dessa medida incluem sintomas de
estresse pós-traumático, confusão e raiva. Preocupações com a escassez de suprimentos e as perdas
financeiras também acarretam prejuízos ao bem-estar psicológico (Shojaei & Masoumi, 2020). Nessa
conjuntura, tende ainda a aumentar o estigma social e os comportamentos discriminatórios contra alguns
grupos específicos, como é o caso dos chineses, população primeiramente afetada pela infecção pelo novo
coronavírus (Shimizu, 2020), bem como dos idosos, pois é nessa faixa etária que tem ocorrido o maior número
de óbitos em decorrência da COVID-19 (Ornell et al., 2020).
Analisados em conjunto, todos esses fatores remetem à relevância de intervenções psicológicas alinhadas às
necessidades emergentes no atual contexto de pandemia. Nas últimas semanas, foram publicados estudos
narrando práticas exitosas que vêm sendo adotadas, especialmente no continente asiático ( Duan & Zhu,
2020; Jiang et al., 2020; Xiao, 2020; Zhou, 2020), orientações de associações e conselhos de Psicologia em
diferentes países, como no Brasil (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2020a; 2020b), na Espanha (Consejo
General de la Psicología da España, 2020), nos Estados Unidos (American Psychological Association, 2020),
bem como recomendações para cuidados em saúde mental pela Organização Mundial da Saúde ( WHO, 2020b).
Adicionalmente, em 31 de março de 2020, foi publicada a Portaria nº 639, do Ministério da Saúde, que dispõe
sobre a ação estratégica “O Brasil Conta Comigo – Profissionais da Saúde”, sobre a capacitação e o
cadastramento de profissionais da saúde para o enfrentamento à COVID-19, incluindo psicólogos ( Ministério da
Saúde, 2020b).
Além de descrever as experiências de profissionais da saúde mental em outras sociedades diante da pandemia
do novo coronavírus, buscou-se refletir sobre possíveis aplicações dessas experiências no contexto nacional,
dadas as particularidades da população brasileira. Para tanto, tomou-se como base a experiência dos autores,
tanto no âmbito profissional quanto no de pesquisa desenvolvida nas áreas de Psicologia da Saúde e Psicologia
Clínica em duas universidades de diferentes estados no Brasil – a Universidade Federal do Rio Grande e a
Universidade Federal de Santa Catarina. Os achados dessa revisão narrativa são apresentados por meio de
duas seções: “Implicações na saúde mental em decorrência da pandemia do novo coronavírus” e “Intervenções
psicológicas durante a pandemia: possibilidades e desafios”.