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BREVE ANTOLOGIA DE POEMAS E LETRAS DE CANÇÕES

De Ferreira Gullar, dos livros Toda poesia (p. 437-8) e Muitas vozes (p. 55-6):

Traduzir-se Muitas vozes

Uma parte de mim Meu poema


é todo mundo: é um tumulto:
outra parte é ninguém: a fala
fundo sem fundo. que nele fala
outras vozes
Uma parte de mim arrasta em alarido.
é multidão:
outra parte estranheza (estamos todos nós
e solidão. cheios de vozes
que o mais das vezes
Uma parte de mim mal cabem em nossa voz:
pesa, pondera:
outra parte se dizes pêra,
delira. acende-se um clarão
um rastilho
Uma parte de mim de tardes e açúcares
almoça e janta: ou
outra parte se azul disseres,
se espanta. pode ser que se agite
o Egeu
Uma parte de mim em tuas glândulas)
é permanente:
outra parte A água que ouviste
se sabe de repente. num soneto de Rilke
os ínfimos
Uma parte de mim rumores no capim
é só vertigem: o sabor
outra parte, do hortelã
linguagem. (essa alegria)

Traduzir uma parte a boca fria


na outra parte da moça
– que é uma questão o maruim
de vida ou morte – na poça
será arte? a hemorragia
da manhã

tudo isso em ti
se deposita
e cala.
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esses fósseis à fala.

Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.
2

Ferreira Gullar:

Dois e dois: quatro A fala do gato

Como dois e dois são quatro O gato siamês


sei que a vida vale a pena tem uns vinte miados:
embora o pão seja caro alguns são suaves,
e a liberdade pequena outros exaltados;
há os miados graves
Como teus olhos são claros e há os engasgados.
e a tua pele, morena
É quase um idioma
como é azul o oceano que ainda não entendo
e a lagoa, serena mas o gato sabe
o que está dizendo.
como um tempo de alegria
E até falou comigo
por trás do terror me acena
em linguagem de gente.
Disse: “meu amigo”,
e a noite carrega o dia assim de repente.
no seu colo de açucena
Então eu acordei
- sei que dois e dois são quatro feliz e contente!
sei que a vida vale a pena Era sonho, claro.
Mas, como se sabe,
mesmo que o pão seja caro é no sonho que ocorre
e a liberdade pequena. o que se deseja
e no mundo não cabe.

(Em luta corporal e novos poemas, (Do livro: Um gato chamado


2. ed. RJ: José Álvaro Editor, 1966, Gatinho, com ilustrações de
este poema, que está na pág. 163, Ângela Lago. São Paulo:
vem datado: Rio, 2/9/64.) Salamandra, 2000)
3

Sérgio Capparelli

a morte bate à porta


bicho solto
A morte chegou à cidade,
E na cidade tinha uma rua
E na rua tinha uma casa Sou bicho solto
E na casa tinha um quarto Dentro de mim.
E no quarto tinha um armário
E no armário tinha uma gaveta
De meu nome
E na gaveta tinha uma caixa
E na caixa tinha uma bolsa
Nem eu sei.
E na bolsa tinha um retrato
E no retrato, Você: Marcas de dentes
De lutas recentes
Que iluminava o retrato,
Que iluminava a bolsa, E tenho motivos.
Que iluminava a caixa,
Que iluminava a gaveta,
Sou bicho solto,
Que iluminava o armário,
Que iluminava o quarto, Na jaula de mim.
Que iluminava a casa,
Que iluminava a rua. ________________________________________

Do livro: 111 poemas para crianças. 14ª ed.


E com tamanha claridade
A morte fugiu da cidade. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 54; 74.

ROSEANA MURRAY
– poemas do livro: Receitas de olhar –

Receita de olhar Receita de desamarrar os nós

nas primeiras horas da manhã desamarre os nós do sapato


desamarre o olhar depois desamarre os pés
deixe que se derrame desamarre os laços inúteis
sobre todas as coisas belas os nós do que não serve mais
o mundo é sempre novo desamarre o barco do cais
e a terra dança e acorda os nós das janelas
em acordes de sol e então deixe que o vento...

faça do seu olhar imensa caravela


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Cecília Meireles

A AVÓ DO MENINO A LÍNGUA DE NHEM

A avó Havia uma velhinha


vive só. que andava aborrecida
Na casa da avó pois dava a sua vida
o galo liró para falar com alguém.
faz "cocorocó!"
A avó bate pão-de-ló E estava sempre em casa
E anda um vento-t-o-tó a boa velhinha
Na cortina de filó. resmungando sozinha:
A avó nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
vive só.
O gato que dormia
Mas se o neto meninó
no canto da cozinha
Mas se o neto Ricardó
escutando a velhinha,
Mas se o neto travessó
principiou também
Vai à casa da avó,
Os dois jogam dominó. a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

Depois veio o cachorro


da casa da vizinha,
Colar de Carolina pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,

Com seu colar de coral, e todos aprenderam


Carolina a falar noite e dia
corre por entre as colunas naquela melodia
da colina. nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

De modo que a velhinha


O colar de Carolina que muito padecia
colore o colo de cal, por não ter companhia
torna corada a menina. nem falar com ninguém,

E o sol, vendo aquela cor ficou toda contente,


do colar de Carolina, pois mal a boca abria
põe coroas de coral tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...
nas colunas da colina.
5

Vinícius de Moraes

O relógio A casa

Passa, tempo, tic-tac Era uma casa


Tic-tac, passa, hora Muito engraçada
Chega logo, tic-tac Não tinha teto
Tic-tac, e vai-te embora
Não tinha nada
Passa, tempo
Bem depressa Ninguém podia
Não atrasa Entrar nela não
Não demora Porque na casa
Que já estou Não tinha chão
Muito cansado
Ninguém podia
Já perdi
Toda a alegria Dormir na rede
De fazer Porque na casa
Meu tic-tac Não tinha parede
Dia e noite Ninguém podia
Noite e dia Fazer pipi
Tic-tac
Porque penico
Tic-tac
Tic-tac... Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na Rua dos Bobos
O Pinguim
Número Zero.

Bom-dia, Pinguim
Onde vai assim
Com ar apressado?
Eu não sou malvado
Não fique assustado
Com medo de mim. ___________________________
Eu só gostaria
De dar um tapinha Poemas infantis. In: Vinícius de Moraes,
No seu chapéu jaca Poesia completa e prosa.
Ou bem de levinho RJ: Nova Aguilar, 1985.
Puxar o rabinho
Da sua casaca.
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ALICE RUIZ
– haicais do livro Desorientais –

fim de tarde voltando com amigos


depois do trovão o mesmo caminho
o silêncio é maior é mais curto

dentro do sono flor de estrada


o corpo se descobre um pouco mais de vento
sem dono flor na estrada

passei o dia com teu céu rede ao vento


lá fora choveu se torce de saudade
em mim fez sol sem você dentro

HELENA KOLODY
– haicais e outros poemas do livro: Viagem no espelho –

Ressonância Dom

Bate breve o gongo. Deus dá a todos uma estrela.


Na amplidão do templo ecoa Uns fazem da estrela um sol.
o som lento e longo. Outros nem conseguem vê-la.

Pássaros libertos Poesia mínima

Palavras são pássaros. Pintou estrelas no muro


Voaram! e teve os céu
Não nos pertencem mais. ao alcance das mãos.

Eu comigo Correnteza

Muito briguei comigo, Reflexo n’água corrente,


tive raiva, já não sou mais quem fui ontem.
me insultei. Logo serei diferente.
E, de incontido desgosto, Cada momento acrescenta
em meu próprio ombro chorei. e subtrai o existente.
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ADRIANA CALCANHOTTO - COMPOSIÇÃO: ABDULLAH / CACÁ MORAES

FICO ASSIM SEM VOCÊ

Avião sem asa, fogueira sem brasa


Sou eu assim sem você
Futebol sem bola,
Piu-Piu sem Frajola
Sou eu assim sem você

Por que é que tem que ser assim


Se o meu desejo não tem fim
Eu te quero a todo instante
Nem mil alto-falantes
Vão poder falar por mim

Amor sem beijinho


Buchecha sem Claudinho
Sou eu assim sem você
Circo sem palhaço
Namoro sem abraço
Sou eu assim sem você

Tô louca pra te ver chegar


Tô louca pra te ter nas mãos
Deitar no teu abraço
Retomar o pedaço
Que falta no meu coração

Eu não existo longe de você


E a solidão é o meu pior castigo
Eu conto as horas
Pra poder te ver
Mas o relógio tá de mal comigo

Por quê? Por quê?

Neném sem chupeta


Romeu sem Julieta
Sou eu assim sem você
Carro sem estrada
Queijo sem goiabada
Sou eu assim sem você

Por que é que tem que ser assim


Se o meu desejo não tem fim
Eu te quero a todo instante
Nem mil alto-falantes
vão poder falar por mim

Eu não existo longe de você


E a solidão é o meu pior castigo
Eu conto as horas pra poder te ver
Mas o relógio tá de mal comigo

Por quê?
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Soneto de Camões: Amor é um fogo que arde sem se ver

Amor é um fogo que arde sem se ver,


É ferida que dói, e não se sente,
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer,


É um andar solitário entre a gente,
É nunca contentar-se de contente,
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade


É servir a quem vence o vencedor;
É ter, com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor


nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

__________________________________________

Disponível em: http://blogs.odiario.com/fernandarossi/


2013/06/12/feliz-dia-dos-namorados/amor-e-fogo-que-
arde-sem-se-ver/ Acesso em: 17 out. 2013.

Comentário explicativo
É um dos sonetos mais conhecidos de Camões e, como facilmente se observa, tematiza (com certa
graça e humor) as contradições do Amor. O soneto divide-se em duas grandes partes: a primeira,
formada pelas três estrofes iniciais – em que o sujeito lírico representa variadas situações parado-
xais do Amor; a segunda, composta pelo último terceto, em que ele manifesta sua perplexidade:
como algo assim tão contraditório, como é o Amor, ainda consegue obter a “amizade”, ou seja, ser
atraente aos corações humanos? Nota-se que a primeira parte se compõe de versos que formal-
mente têm a mesma estrutura sintático-semântica (bipolaridade e contradição), começando sempre
com a expressão verbal: “é” – essa repetição inicial constitui um recurso conhecido pelo nome de
anáfora, que estabelece uma forte coesão entre esses versos. No primeiro quarteto há uma descri-
ção de certos efeitos físicos, sensoriais: “fogo que arde, ferida que dói, dor que desatina...”; na
estrofe seguinte, são os aspectos psicoemocionais, sentimentais: “bem querer, andar solitário,
nunca contentar-se...”; e no primeiro terceto são as situações psicomorais: “estar preso por vonta-
de, servir o vencedor, ter lealdade...”. Ou seja, é a totalidade do ser que se encontra envolvido pe-
los paradoxos do Amor. E a tentativa do sujeito lírico em querer definir o que é o Amor esbarra na
sua complexa contradição, tornando-o ao mesmo tempo definível e indefinível...

Prof. Dr. Ubirajara Araujo Moreira – UEPG, 2012-2014.


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DEU NO JORNAL... (?) D(O)EU NO POEMA...

Composição: De Mário Quintana:


De Haroldo Barbosa e Luiz Reis
Pequena crônica policial
Notícia de Jornal
Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Tentou contra a existência
Nem a morte lhe emprestara
Num humilde barracão
A sua grave beleza...
Joana de tal, por causa de um tal João
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
Depois de medicada As fundas marcas da idade,
Retirou-se pro seu lar Das canseiras, das bebidas...
Aí a notícia carece de exatidão Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
O lar não mais existe Vieram uns homens de branco,
Ninguém volta ao que acabou Foi levada ao necrotério.
Joana é mais uma mulata triste que errou E quando abriram, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Errou na dose Que linda e alegre menina
Errou no amor Entrou correndo no Céu?!
Joana errou de João Lá continuou como era
Ninguém notou Antes que o mundo lhe desse
Ninguém morou na dor que era o seu mal A sua maldita sina:
A dor da gente não sai no jornal Sem nada saber da vida,
De vícios e de perigos,
______________________________ Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Léxico: “Tentou contra a existência” = atentou, ou Os seus sonhos de menina,
seja, cometeu um atentado, um crime. “Ninguém Os seus sapatos antigos!
morou” = (gíria) aqui o verbo ‘morou’ tem o sentido
de ninguém percebeu, ninguém entendeu. _________________________________

Fonte: disponível em vários sites, muitas vezes com a Fonte: QUINTANA, Mario. 80 Anos de Poesia.
informação equivocada de que é do Chico Buarque... 3ª edição. São Paulo: Globo, 1994. p. 41-42.

De Manuel Bandeira:

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

(Fonte: BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa.


Organizada pelo autor. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1974. p. 214)
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MÁRIO QUINTANA

O adolescente

A vida é tão bela que chega a dar medo.

Não o medo que paralisa e gela,


estátua súbita,
mas
esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz
o jovem felino seguir para a frente farejando o vento
ao sair, a primeira vez, da gruta.

Medo que ofusca: luz!

Cumplicemente,
as folhas contam-te um segredo
velho como o mundo:

Adolescente, olha! A vida é nova...


A vida é nova e anda nua
- vestida apenas com teu desejo!

Soneto VI Soneto XVIII

Na minha rua há um menininho doente. Esses inquietos ventos andarilhos


Enquanto os outros partem para a escola, Passam e dizem: “Vamos caminhar.
Junto à janela, sonhadoramente, Nós conhecemos misteriosos trilhos,
Ele ouve o sapateiro bater sola. Bosques antigos onde é bom cismar...

Ouve também o carpinteiro, em frente, E há tantas virgens a sonhar idílios!


Que uma canção napolitana engrola. E tu não vieste, sob a paz lunar,
E pouco a pouco, gradativamente, Beijar os seus entrefechados cílios
O sofrimento que ele tem se evola... E as dolorosas bocas a ofegar...”

Mas nesta rua há um operário triste: Os ventos vêm e batem-me à janela:


Não canta nada na manhã sonora “A tua vida: Que fizeste dela?”
E o menino nem sonha que ele existe. E chega a morte: “Anda! Vem dormir...

Ele trabalha silenciosamente... Faz tanto frio... e é tão macia a cama...”


E está compondo este soneto agora, Mas toda a longa noite ainda hei de ouvir
Pra alminha boa do menino doente... A inquieta voz dos ventos que me chama!...

Poeminha do contra Das utopias

Todos esses que aí estão Se as coisas são inatingíveis... ora!


atravancando o meu caminho, Não é motivo para não querê-las...
eles passarão... Que tristes os caminhos, se não fora
eu passarinho! A presença distante das estrelas!
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RENATA PALLOTTINI

Lágrimas na cadeira do dentista

Não, não é o dente que dói.


Não, o motor não incomoda.

Não me doem os dentes


mas quem morde.

Nunca o que dói é o aparente


senão o outro, de outra ordem
o oculto na cárie da vida, o tártaro
dos ossos ,
na intempérie incisiva da dentadura mole.

Nunca o que dói, doutor,


é o que fazem as máquinas,
senão
o humano dessas brocas
os buracos
da alma.

Ponha ouro, doutor,


e seja lá o que possa
morder o dente, ávido de amor,
a conta, ao fim, é nossa.

FLORBELA ESPANCA (Portugal: 1894-1930)

Desejos vãos Silêncio!...

Eu queria ser o Mar de altivo porte No fadário que é meu, neste penar,
Que ri e canta, a vastidão imensa! Noite alta, noite escura, noite morta,
Eu queria ser a Pedra que não pensa, Sou o vento que geme e quer entrar,
A pedra do caminho, rude e forte! Sou o vento que vai bater-te à porta...

Eu queria ser o Sol, a luz intensa, Vivo longe de ti, mas que me importa?
O bem do que é humilde e não tem sorte! Se eu já não vivo em mim! Ando a vaguear
Eu queria ser a Árvore tosca e densa Em roda à tua casa, a procurar
Que ri do mundo vão e até da morte! Beber-te a voz, apaixonada, absorta!

Mas o Mar também chora de tristeza... Estou junto de ti, e não me vês...
As Árvores também, como quem reza, Quantas vezes no livro que tu lês
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente! Meu olhar se pousou e se perdeu!

E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia, Trago-te como um filho nos meus braços!
Tem lágrimas de sangue na agonia! E na tua casa... Escuta!... Uns leves passos...
E as Pedras… essas… pisa-as toda a gente!... Silêncio, meu Amor!... Abre! Sou eu!...
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Poesia Matemática

Millôr Fernandes

Às folhas tantas E enfim resolveram se casar,


do livro matemático constituir um lar,
um Quociente apaixonou-se mais que um lar,
um dia uma perpendicular.
doidamente Convidaram para padrinhos
por uma Incógnita. o Poliedro e a Bissetriz.
Olhou-a com seu olhar inumerável E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
e viu-a, do ápice à base, sonhando com uma felicidade
uma figura ímpar; integral e diferencial.
olhos romboides, boca trapezoide, E se casaram e tiveram uma secante e três cones
corpo octogonal, seios esferoides. muito engraçadinhos.
Fez de sua uma vida E foram felizes
paralela à dela até aquele dia
até que se encontraram em que tudo vira afinal
no infinito. monotonia.
"Quem és tu?", indagou ele Foi então que surgiu
em ânsia radical. o Máximo Divisor Comum
"Sou a soma do quadrado dos catetos. frequentador de círculos concêntricos,
Mas pode me chamar de Hipotenusa." viciosos.
E de falarem descobriram que eram Ofereceu-lhe, a ela,
(o que em aritmética corresponde uma grandeza absoluta
a almas irmãs) e reduziu-a a um denominador comum.
primos entre si. Ele, Quociente, percebeu
E assim se amaram que com ela não formava mais um todo,
ao quadrado da velocidade da luz uma unidade.
numa sexta potenciação Era o triângulo,
traçando tanto chamado amoroso.
ao sabor do momento Desse problema ela era uma fração,
e da paixão a mais ordinária.
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
nos jardins da quarta dimensão. e tudo que era espúrio passou a ser
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas moralidade
e os exegetas do Universo Finito. como, aliás, em qualquer
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas. sociedade.

Extraído do livro Tempo e Contratempo, Edições O Cruzeiro - Rio de Janeiro, 1954, pág. sem número,
publicado com o pseudônimo de Vão Gogo.
Apud: http://www.releituras.com/millor_poesia.asp - Acesso em 17 out. 2013.
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Construção
Chico Buarque

Amou daquela vez como se fosse a última


Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse lógico
E cada filho seu como se fosse o único
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
E atravessou a rua com seu passo tímido
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
Subiu a construção como se fosse máquina
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Deus lhe pague (fragmento)
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
E flutuou no ar como se fosse um pássaro A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
E se acabou no chão feito um pacote flácido Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Agonizou no meio do passeio público Deus lhe pague
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Beijou sua mulher como se fosse a única Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
E cada filho seu como se fosse o pródigo Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair,
E atravessou a rua com seu passo bêbado Deus lhe pague
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
Seus olhos embotados de cimento e tráfego E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo Deus lhe pague
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo ***
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido [Em algumas versões de Construção, Chico Buarque acres-
Agonizou no meio do passeio náufrago centa essas estrofes de Deus lhe pague, também de sua
Morreu na contramão atrapalhando o público autoria, e primeira canção do disco Construção.]

Do disco Construção, Chico Buarque, 1971. Philips.


Letra extraída de BUARQUE, Chico. Letra e Música 1. 2ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, p. 95 e 97.
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JOSÉ PAULO PAES


Convite Letra mágica

Poesia Que pode fazer você


é brincar com palavras para o elefante
como se brinca tão deselegante
com bola, papagaio, pião. ficar elegante?
Ora, troque o f por g!
Só que
bola, papagaio, pião Mas se trocar, no rato,
de tanto brincar o r por g,
se gastam. transforma-o você
(veja que perigo!)
As palavras não: no seu pior inimigo:
quanto mais se brinca O gato.
com elas
mais novas ficam.

Como a água do rio Metamorfose


que é água sempre nova.

Como cada dia Me responda você


que é sempre um novo dia. que parece sabichão:

Vamos brincar de poesia? se lagarta vira borboleta


por que trem não vira avião?

Brinde Madrigal

ano novo: vida Meu amor é simples, Dora,


nova Como a água e o pão.
dívidas novas
dúvidas novas Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.
ab ovo outra
vez: do revés
ao talvez (ou
ao tanto faz como fez)

hora zero: soma Epitáfio para um banqueiro


do velho?
idade do novo? negócio
o nada: um ovo ego
ócio
salve (-se) o ano novo!
cio
0
15

VINÍCIUS DE MORAES

Soneto de Fidelidade A Rosa de Hiroxima

De tudo, ao meu amor serei atento Pensem nas crianças


Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Mudas telepáticas
Que mesmo em face do maior encanto Pensem nas meninas
Dele se encante mais meu pensamento. Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Quero vivê-lo em cada vão momento Rotas alteradas
E em seu louvor hei de espalhar meu canto Pensem nas feridas
E rir meu riso e derramar meu pranto Como rosas cálidas
Ao seu pesar ou seu contentamento. Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
E assim, quando mais tarde me procure Da rosa de Hiroxima
Quem sabe a morte, angústia de quem vive A rosa hereditária
Quem sabe a solidão, fim de quem ama A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
Eu possa me dizer do amor (que tive):
A anti-rosa atômica
Que não seja imortal, posto que é chama
Sem cor sem perfume
Mas que seja infinito enquanto dure.
Sem rosa sem nada.

Soneto de separação Poética (II)

De repente do riso fez-se o pranto Com as lágrimas do tempo


Silencioso e branco como a bruma E a cal do meu dia
E das bocas unidas fez-se a espuma Eu fiz o cimento
E das mãos espalmadas fez-se o espanto. Da minha poesia.

E na perspectiva
De repente da calma fez-se o vento
Da vida futura
Que dos olhos desfez a última chama
Ergui em carne viva
E da paixão fez-se o pressentimento
Sua arquitetura.
E do momento imóvel fez-se o drama.
Não sei bem se é casa
De repente, não mais que de repente
Se é torre ou se é templo:
Fez-se de triste o que se fez amante
(Um templo sem Deus.)
E de sozinho o que se fez contente.
Mas é grande e clara
Fez-se do amigo próximo o distante
Pertence ao seu tempo
Fez-se da vida uma aventura errante
- Entrai, irmãos meus!
De repente, não mais que de repente.
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PAULO LEMINSKI

DESENCONTRÁRIOS A LUA NO CINEMA

Mandei a palavra rimar, A lua foi ao cinema,


ela não me obedeceu. passava um filme engraçado,
Falou em mar, em céu, em rosa, a história de uma estrela
em grego, em silêncio, em prosa. que não tinha namorado.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa. Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
Mandei a frase sonhar, dessas que, quando apagam,
e ela se foi num labirinto. ninguém vai dizer, que pena!
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército, Era uma estrela sozinha,
para conquistar um império extinto. ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste


com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!

RAZÃO DE SER

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso, Amor, então,
preciso porque estou tonto. Também, acaba?
Ninguém tem nada com isso. Não, não que eu saiba.
Escrevo porque amanhece, O que eu sei
e as estrelas lá no céu É que se transforma
lembram letras no papel, Numa matéria-prima
quando o poema me anoitece. Que a vida se encarrega
A aranha tece teias. De transformar em raiva.
O peixe beija e morde o que vê. Ou em rima.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

acabou a farra morreu o periquito

formigas mascam a gaiola vazia

restos de cigarra esconde um grito


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De Gilberto Gil: De Ubirajara Araujo Moreira:


Metáfora A flauta de Fábio

Uma lata existe para conter algo Quem faltava à festa


Mas quando o poeta diz: "Lata" quando Fábio ia?
Pode estar querendo dizer o incontível tocando sua flauta
– que alegria!
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta" Havia feitiço
Pode estar querendo dizer o inatingível na flauta de Fábio!

Por isso, não se meta a exigir do poeta Seu fino lábio


Que determine o conteúdo em sua lata soprava ou sorria?
Na lata do poeta tudonada cabe A melodia furtiva escorria
Pois ao poeta cabe fazer fugindo suave
Com que na lata venha caber vibrando festiva
O incabível por todo o salão!...

Deixe a meta do poeta, não discuta Havia feitiço


Deixe a sua meta fora da disputa na flauta de Fábio!
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora Fim de festa!
Fábio fabricava
melodia triste
de seresta...
e todos iam saindo
– a noite vazia
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se enchia de sons...
GIL, Gilberto. Todas as letras. Organização por .........................................
Carlos Renó. São Paulo: Companhia das Letras,
1996. P. 249. Hoje, não há mais isso!
A flauta de Fábio
perdeu seu feitiço...
– que falta que faz!

De Nicolas Behr: De Ulisses Tavares:

meditação transcendental
nem tudo
que é torto para meditar,
é errado o homus modernus ocidentalis
cruza as pernas
deixa as costas eretas
veja as pernas os braços relaxados
do garrincha concentra a atenção num
e as árvores ponto e assim imóvel
do cerrado em pensamento e ação
liga a televisão
18

PATATIVA DO ASSARÉ (1909/2002)

Caboclo roceiro

Caboclo roceiro, das plagas do Norte,


Que vives sem sorte, sem terra e sem lar,
A tua desdita é tristonho que canto,
Se escuto o teu pranto me ponho a chorar.

Ninguém te oferece um feliz lenitivo,


És rude, cativo, não tens liberdade.
A roça é teu mundo e também tua escola.
Teu braço é a mola que move a cidade.

De noite tu vives na tua palhoça,


De dia, na roça, de enxada na mão,
Julgando que Deus é um pai vingativo,
Não vês o motivo da tua opressão.

Tu pensas, amigo, que a vida que levas,


De dores e trevas debaixo da cruz
E as crises constantes, quais finas espadas,
São penas mandadas por Nosso Jesus.

Tu és, nesta vida, o fiel penitente,


Um pobre inocente no banco do réu.
Caboclo, não guardes contigo esta crença,
A tua sentença não parte do céu.

O Mestre Divino que é Sábio Profundo,


Não fez, neste mundo, o teu fardo infeliz.
As tuas desgraças, com tuas desordens,
Não nascem das ordens do Eterno Juiz.

A Lua te afaga sem ter empecilho,


O Sol o seu brilho jamais te negou,
Porém, os ingratos, com ódio e com guerra,
Tomaram-te a terra que Deus te entregou.

De noite, tu vives na tua palhoça,


De dia na roça, de enxada na mão.
Caboclo roceiro, sem lar, sem abrigo,
Tu és meu amigo, tu és meu irmão.
19

MANUEL BANDEIRA

Poema do beco

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?


– O que eu vejo é o beco.

1933

(Em Estrela da Manhã, 1936)

Satélite

Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e dos enamorados.
Mas tão-somente
Satélite.

Ah Lua deste fim de tarde,


Demissionária de atribuições românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
– Satélite.

(Em Estrela da Tarde, 1960)


20

Cântico negro - José Régio (poeta português, 1901/1969)

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces


Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,


Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós


Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,


Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,


Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

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