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Ossos do ofício Assinaturas

Antonio Prata

https://www.estadao.com.br/blogs/antonio-prata/ossos-do-oficio-1/ 2/3 Estadã o 25


Janeiro 2010 | 03h51

Se o mundo fosse justo, o trocadilho teria seu lugar no panteão das criaçõ es humanas.
Ficaria abaixo dos sonetos e das sinfonias, sem dú vida, mas acima dos provérbios e das
palavras cruzadas. Infelizmente, tido como artifício banal, peixe abundante no vasto lago
do pensamento – espécie de lambari do intelecto – o trocadilho é tratado com desprezo.
Desdenhado pela maioria dos poetas e escritores, sobrevive apenas à sombra das
má quinas de café, na firma, no papo dos donos de churrascaria e – mistério dos mistérios –
nas fachadas de pet shops.

Por alguma razã o, seres humanos que vendem produtos para animais de estimaçã o têm
uma compulsã o por jogos de palavras nos nomes de seus estabelecimentos: AUqueMIA,
AmiCÃO, CÃOgelados, SimpatiCÃO, Oh my dog!, CÃOboy, Pet&gatô, por aí vai.

Diante desses e de outros exemplos – que encontram-se em todo o territó rio nacional,
como provam as fotos no blog http://trocaodilho.tumblr.com – o leitor pode achar que nó s,
apreciadores da “poesia de ocasiã o”, estamos contentes. Muito pelo contrá rio.

O trocadilho com T maiú sculo nã o é uma simples molecagem com sílabas. Ele cria um
terceiro sentido, maior do que a soma de duas palavras. “Wim Wenders e aprendendo”,
por exemplo, retira toda a graça do fato de os filmes do diretor alemã o serem muito
cabeças e, convenhamos, um pouco chatos. “A justiça farda, mas não talha”, escrito
durante a ditadura, por Millô r Fernandes, trazia nas entrelinhas a ideia de que a censura
podia até maquiar as aparências, mas nã o conseguiria evitar que a arte brotasse por aí. Já
“guacamole em predra dura, tanto bate até que fura”, embora possa criar um sorriso
maroto no rosto do infeliz que imagina o Atlâ ntico transformado em pasta de abacate, nã o
significa absolutamente nada. É só uma firula fonética, como Oh my dog ou uma criança
dizendo patapatapata.

De todos os pet shops que já vi, um, no entanto, mereceu meu respeito. Fica na Av. Santo
Amaro e chama-se Amaro’s Bichos. Veja que beleza, a introduçã o de um ú nico apó strofo
antes do S é suficiente para o surgimento de tantos significados. Funciona em inglês, em
português, resume a essência da loja e sua localizaçã o. Deviam criar para o dono da
Amaro’s Bichos um cargo de analista para nomes de estabelecimentos dedicados aos
animais. MaluCÃ O? Licença negada. CÃ O de mel? De jeito nenhum. HomeoPATAS? Talvez,
vamos ver.
E já que entramos no terreno dos trocadilhos bilíngues, gostaria de expor um, de minha
lavra. Surgiu quando eu descobri que jogo de palavras em inglês é pun, e pode ajudar a
todos que, como eu, sã o repreendidos ao soltarem algo como “Wim Wenders e
aprendendo”, numa mesa de bar. Basta encarar seus detratores e dizer, com falso
arrependimento: “desculpa, pessoal, soltei um pun”.

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