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EX-LÍBRIS: O

CARIMBO DA
PROPRIEDADE
Inscrições gráficas que identificam os donos de livros ainda carecem de
catalogação sistemática no Brasil

TEXTO PRISCILLA CAMPOS
01 DE NOVEMBRO DE 2015

IMAGEM REPRODUÇÃO
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No conto A trama celeste, o argentino Adolfo Bioy Casares justifica o
egoísmo do seu personagem, o armênio Carlos Alberto Servian, baseado em um
ex-líbris. Diz o narrador que sua sobrinha havia adquirido o costume de chamá-
lo de egoísta. “Parte da culpa disso eu atribuo”, escreve Servian ou Bioy
Casares, “a meu ex-líbris. Leva triplamente inscrita – em grego, latim e
espanhol – a sentença Conhece-te a ti mesmo (nunca suspeitei até onde me
levaria essa sentença) e me reproduz, contemplando, através de uma lupa,
minha imagem num espelho”. Por remeter, sempre, a uma origem – seja de um
proprietário, seja de uma biblioteca –, todo ex-líbris (essa espécie de carimbo,
etiqueta de propriedade ou cartão de visita da leitura) parece ter um aspecto que
alude ao amor-próprio e ao individualismo, já que atesta, logo de cara, que
aquele livro tem dono.
Jorge de Oliveira, desenhista e um dos nomes fundamentais dessa arte no
Brasil, costumava dizer que, se essas representações gráficas não existissem,
“teriam que ser inventadas; o que o homem fez, num momento de máxima
percepção”. Para o professor e diretor-presidente da Edusp Plínio Martins, o ex-
líbris é a uma espécie de retrato de seu dono, mas também está presente numa
engrenagem simbólica maior. “É ele que dá o caráter e a alma de uma
biblioteca. Ele humaniza e aumenta a carga de significado de qualquer
exemplar, por fazer parte, ao mesmo tempo, da história do livro, do conjunto de
livros com que ele se relaciona e de seu proprietário”, reflete.
Sigmund Freud fixava ex-líbris em seus volumes. 
Imagem: Reprodução
De acordo com a professora Stella Maris de Figueiredo Bertinazzo, uma das
maiores pesquisadoras do assunto do país, autora do importante livro-
documento Ex-líbris – Pequeno objeto de desejo, não existe um inventor oficial
de tais marcas. Alguns historiadores atestam a presença delas no século 15 em
tabuletas egípcias, outros indicam seu surgimento na Mesopotâmia ou ainda nos
preciosos códices medievais. Bertinazzo grafa: “A história do ex-
líbris acompanha a história do livro e a da gravura. Esse cunho artístico acaba
despertando o desejo do colecionismo, transformando essas marcas numa forma
independente de arte, fato contestado por exlibristas ortodoxos. Segundo eles, o
ex-líbris nasceu agregado ao livro e não tem vida própria fora desse abrigo
original”.
Ex-líbris de Joaquim Nabuco. Imagem: Reprodução
No Brasil, esse objeto cultural é difundido com a chegada da corte, em 1808.
Porém, o processo de catalogação das imagens é incerto, apesar dos registros
em publicações essenciais como Ex-líbris e o Barão do Rio Branco (1953) e
dos inventários produzidos ao longo dos anos. O bibliotecário Moreno Barros,
atento admirador das estampas, explica: “Normalmente, os ex-líbris não são
catalogados pelas bibliotecas, apenas o livro é. Em geral, eles servem para
identificar determinadas coleções privadas. Então, na medida em que essas
coleções foram sendo relacionadas ou fundidas em outras, perdemos o rastro. É
possível que muitos deles ainda estejam por ser desvelados no Brasil;
esquecidos nos gigantescos acervos de bibliotecas universitárias e públicas”.
DOCUMENTO ADICIONAL
Moreno lembra que os novos projetos de busca e identificação de ex-líbris
ainda podem contar, hoje, com as redes de colaboração online, o que facilita a
coleta do maior número possível de informações sobre as etiquetas. Seu
interesse pelas ilustrações surgiu quando trabalhou na Biblioteca Nacional, no
Rio de Janeiro. “Percebi que eles são tão ricos quanto a obra em que estão
afixados. É uma espécie de documento adicional. A partir dele, você pode
destrinchar a história da família que representava aquela época, quais outras
publicações possuíam o mesmo símbolo, enfim. O ex-líbris evidencia uma
coleção à parte”, avalia.

O alemão Knabensberg está entre os pioneiros exlibristas. Imagem:


Reprodução
Em seu livro, Bertinazzo explana que exlibristas ortodoxos abominam a
possibilidade de colecionismo dos desenhos, pois, dessa maneira, aconteceria
um desvirtuamento da ação, relacionada sempre com os livros de uma
biblioteca. Ao serem colecionadas, as siglas “perderiam sua função básica,
ficando estéreis desse ponto de vista”. Mas a professora desmonta tal
pensamento, lembrando que a proposta dos “verdadeiros amantes dos livros”
não é a de arrancar as gravuras das páginas. Uma solução apontada por ela seria
a possibilidade de o bibliófilo disponibilizar a reprodução das etiquetas, com as
quais seriam impressas edições extras, destinadas a doações e vendas.

Na pesquisa reunida na publicação, datada do final dos anos 1990/ início dos
2000, a especialista afirma que existia apenas um profissional criador
tradicional de ex-líbris remanescente no Brasil. Mas, na atualidade, podemos
encontrar alguns artistas que se dedicam à feitura de carimbos destinados aos
leitores e bibliófilos modernos.

Um deles é o designer gráfico gaúcho Paulo Pedott. Através de encomendas


feitas pelo seu siteou por e-mail, ele confecciona diversos tipos de ex-líbris
exclusivos. “Notei que, nos empréstimos de livros entre meus colegas
professores, alguns não voltavam, daí tive a ideia de começar a produzir marcas
destinadas aos livros de cada um”, conta. Os carimbos custam R$ 67, além do
valor do frete (entrega para todo o país).
O artista Jorge de Oliveira é nome de destaque no exlibrismo nacional. 
Imagem: Reprodução
DETALHES HISTÓRICOS
Johannes Knabensberg, Giorgis de Podebrady e Hildebrand Brandenburg são
considerados os primeiros exemplos oficiais de ex-líbris, os três por volta do
século 15 e 16. O pioneirismo brasileiro, que tem como base o movimento
exlibrista de Portugal, foi atribuído por alguns pesquisadores a Manuel de
Abreu Guimarães. Esse dado foi contradito pelo bibliófilo Rubens Borba de
Moraes em Livros e bibliotecas no Brasil colonial. Na obra, o paulista defende
que o Padre José Correia da Silva – morador de Sabará, mesma cidade de Abreu
Guimarães – seria o possuidor do ex-líbris brasileiro mais antigo.
Na figura de Jorge de Oliveira, a produção no Brasil encontra uma vertente de
resistência. Nascido em 1936, na cidade de Valença, no Rio de Janeiro, Oliveira
foi aluno de Alberto Lima, prolífico artista do exlibrismo nacional. Além de
executar as etiquetas, o carioca era também colecionador, mas perdeu tudo –
cerca de 15 mil peças de clichês, gravuras originais – numa enchente em São
Paulo, no ano de 1967. Bertinazzo declara que as criações de Oliveira “revelam
uma complexidade do traço como diversidade de temas, incluindo motivos
infantis (…)”. Ela segue: “O artista não só fez ex libris, mas, igualmente,
alguns ex musicis e ex discis. As técnicas usadas por ele variam do clichê à
serigrafia e linoleografia (litogravura)”.
O designer gráfico Paulo Pedott confecciona ex-líbris sob demanda. Foto:
Reprodução
A arte do ex-líbris está em constante movimento no imaginário de muitos
países. Entre 1890 e 1896, irromperam as primeiras sociedades em Paris,
Londres, Berlim e Washington. Em decorrência das guerras, as associações
sofrem um abalo, mas, em 1950 são reestruturadas e podem ser mapeadas em
novos territórios como Áustria, Bélgica, Dinamarca e Itália. De acordo com
Bertinazzo, no Brasil, as que um dia existiram, foram extintas. O intuito dessa
reunião era, sobretudo, facilitar o intercâmbio de material e promover
conferências, congressos, mostras.
Toda a atenção que se possa dedicar à história do ex-líbris não se configura
suficiente. Existe um contrassenso sedutor nessa arte: ao mesmo tempo em que
o desenho tem a capacidade de condensar, naquele fragmento de papel, uma
narrativa, ele também dialoga com outras ciências. Aqui, tomamos liberdade de
juntar, mais uma vez neste mundo da escrita, Borges e Bioy Casares. O ex-líbris
é como um encontro entre o ego inflado de Alberto Servian e o mecanismo de
recordação infinita de Funes, o memorioso. Em suma, é uma arte tão poderosa
em suas diferenças quanto o personagem de um conto argentino. 

PRISCILLA CAMPOS, jornalista cultural com foco em literatura. Escreve


para o site Fuga para Oeste.

fonte: https://revistacontinente.com.br/edicoes/179/ex-libris--o-carimbo-da-propriedade

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