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1. Dos pressupostos
O adjetivo “estranho” apresenta, no dicionário, sete acepções, a saber: que ou o que
se caracteriza pelo caráter extraordinário; excêntrico; que ou o que é de fora, que ou o que
é estrangeiro; que causa espanto ou admiração pela novidade; que, de alguma forma, foge
aos padrões de uso; que desperta sensação incômoda de estranheza; que não pode ser
identificado ou relacionado com; que se esquiva, que foge ao convívio. Cada uma destas
acepções desvela uma nuance da caracterização que se pode utilizar para pessoas, coisas,
situações, etc. Nada disso é novidade. De fato, desejar escrever uma novidade sobre o texto
literário, ou melhor, a partir da leitura de um texto literário, de qualquer texto literário, já
é, de partida... estranho! Ainda assim, este desejo move o sujeito que lê, mesmo ciente de
todas as outras inumeráveis possibilidades de leitura já ensaiadas – e aquelas que há por
vir. É o que acontece aqui nesta exposição emotivos para uma proposta e investigação que
visou – quando de sua realização – a comparar textos diversos a partir de um eixo comum.
Trata-se de uma ideia que me surgiu quando me foi posto no horizonte de expectativas a
possibilidade de escrever uma tese, outra tese, desta vez para alçar o ápice da carreira
docente, chegando ao pináculo denominado “professor titular”. De fato, hoje, o pináculo
foi alcançado. A tese que escrevi para atingi-lo está publicada pela Imprensa da
Universidade de Coimbra (Série “Investigação”, Coimbra, 2018), e tem por título As cartas
não mentem. A ideia foi de escrever a tese desenvolvendo o seguinte argumento: certas
personagens masculinas apresentam características que, lidas hoje, alargam o leque de
possibilidades hermenêuticas mais livres em relação aos cânones crítico-teóricos que os
estudos literários tanto já propugnaram. Tentando escapar destas amarras, digamos,
institucionais, prous-me analisar, ainda uma vez, Sebastião (de O primo Basílio, do Eça de
Queirós), Bentinho (de Dom Casmurro, do Machado de Assis), Martim e Poti (de Iracema,
do José de Alencar), Frederico Paciência (do conto homônimo de Mário de Andrade);
Lúcio e Ricardo (de A confissão de Lúcio, do Mário de Sá-Carneiro); Gonçalves e
Quintanilha (do conto “Pílades e Orestes”, do Machado de Assis), O narrador e Joel (do
conto “O sorvete”, do Carlos Drummond de Andrade), José Matias (do conto homônimo de
Eça de Queirós). A aproximação foi costurada pela linha de raciocínio tecida pelo
argumento da estranheza que pode ser lida, tanto na composição, quanto no desempenho
destas personagens, em suas respectivas narrativas. Neste artigo, especificamente,
detenho-me sobre o conto de Eça de Queirós. Alguns dos demais ficaram adstritos a outros
artigos e outros ainda não mereceram minha atenção mais dedicada. O argumento se
respaldou no campo semântico desenhado pelas acepções do verbete inicialmente
apresentado e se fez operador de leitura dinamizado por um certo olhar, o homoerótico,
que se faz eficiente e eficaz para chegar ao “cqd” da equação aqui montada. Hoje, aqui, vou
apenas esboçar um primeiro e minúsculo avanço ensaiado por algumas especulações
iniciais que partiram da ideia de “estranho”.
Sigmund Freud, na introdução a seu ensaio “O estranho” – não vou entrar no mérito
da tradução de termos operacionais da proposição epistemológica da Psicanálise –,
comentando sobre a pesquisa por ele feita nos meandros da literatura médica, para
posicionar-se em relação a este “sentimento”, refere-se a um sujeito que atende pelo nome
de Jentsch e chega a uma primeira constatação:
Por outro lado, a noção de homoerotismo pode auxiliar dado que, conforme o
pensamento de Jurandir Freire Costa, esse termo tem sido (não equivocadamente)
associado a uma discussão de cunho terminológico. Parto do pressuposto de que
“homoerotismo” é mais eficaz para dizer da interlocução possível com a Literatura e
aponta para a direção semântico-metodológica que adoto, para prosseguir com o
desenvolvimento de minhas hipóteses e reflexões. É pensando nessa perspectiva que
destaco aqui o trabalho de Jurandir Freire Costa, concordando com ele, quando diz:
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