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Atlântico d’aquém e d’além: homens estranhos

José Luiz Foureaux de Souza Júnior

O texto contém nele a força de fugir infinitamente


da palavra gregária (aquela que se agrega), mesmo
quando nele ela procura reconstituir-se; ele empurra
sempre para mais longe (...) ele empurra para outro
lugar, um lugar inclassificado, atópico, por assim dizer,
longe dos topoi da cultura politizada (...); ele soergue, de
modo frágil e transitório, essa chapa e generalidade, de
moralidade, de indiferença (separemos bem o prefixo do
radical), que pesa sobre nosso discurso coletivo.
(Roland Barthes, Aula)

1. Dos pressupostos
O adjetivo “estranho” apresenta, no dicionário, sete acepções, a saber: que ou o que
se caracteriza pelo caráter extraordinário; excêntrico; que ou o que é de fora, que ou o que
é estrangeiro; que causa espanto ou admiração pela novidade; que, de alguma forma, foge
aos padrões de uso; que desperta sensação incômoda de estranheza; que não pode ser
identificado ou relacionado com; que se esquiva, que foge ao convívio. Cada uma destas
acepções desvela uma nuance da caracterização que se pode utilizar para pessoas, coisas,
situações, etc. Nada disso é novidade. De fato, desejar escrever uma novidade sobre o texto
literário, ou melhor, a partir da leitura de um texto literário, de qualquer texto literário, já
é, de partida... estranho! Ainda assim, este desejo move o sujeito que lê, mesmo ciente de
todas as outras inumeráveis possibilidades de leitura já ensaiadas – e aquelas que há por
vir. É o que acontece aqui nesta exposição emotivos para uma proposta e investigação que
visou – quando de sua realização – a comparar textos diversos a partir de um eixo comum.
Trata-se de uma ideia que me surgiu quando me foi posto no horizonte de expectativas a
possibilidade de escrever uma tese, outra tese, desta vez para alçar o ápice da carreira
docente, chegando ao pináculo denominado “professor titular”. De fato, hoje, o pináculo
foi alcançado. A tese que escrevi para atingi-lo está publicada pela Imprensa da
Universidade de Coimbra (Série “Investigação”, Coimbra, 2018), e tem por título As cartas
não mentem. A ideia foi de escrever a tese desenvolvendo o seguinte argumento: certas
personagens masculinas apresentam características que, lidas hoje, alargam o leque de
possibilidades hermenêuticas mais livres em relação aos cânones crítico-teóricos que os
estudos literários tanto já propugnaram. Tentando escapar destas amarras, digamos,
institucionais, prous-me analisar, ainda uma vez, Sebastião (de O primo Basílio, do Eça de
Queirós), Bentinho (de Dom Casmurro, do Machado de Assis), Martim e Poti (de Iracema,
do José de Alencar), Frederico Paciência (do conto homônimo de Mário de Andrade);
Lúcio e Ricardo (de A confissão de Lúcio, do Mário de Sá-Carneiro); Gonçalves e
Quintanilha (do conto “Pílades e Orestes”, do Machado de Assis), O narrador e Joel (do
conto “O sorvete”, do Carlos Drummond de Andrade), José Matias (do conto homônimo de
Eça de Queirós). A aproximação foi costurada pela linha de raciocínio tecida pelo
argumento da estranheza que pode ser lida, tanto na composição, quanto no desempenho
destas personagens, em suas respectivas narrativas. Neste artigo, especificamente,
detenho-me sobre o conto de Eça de Queirós. Alguns dos demais ficaram adstritos a outros
artigos e outros ainda não mereceram minha atenção mais dedicada. O argumento se
respaldou no campo semântico desenhado pelas acepções do verbete inicialmente
apresentado e se fez operador de leitura dinamizado por um certo olhar, o homoerótico,
que se faz eficiente e eficaz para chegar ao “cqd” da equação aqui montada. Hoje, aqui, vou
apenas esboçar um primeiro e minúsculo avanço ensaiado por algumas especulações
iniciais que partiram da ideia de “estranho”.
Sigmund Freud, na introdução a seu ensaio “O estranho” – não vou entrar no mérito
da tradução de termos operacionais da proposição epistemológica da Psicanálise –,
comentando sobre a pesquisa por ele feita nos meandros da literatura médica, para
posicionar-se em relação a este “sentimento”, refere-se a um sujeito que atende pelo nome
de Jentsch e chega a uma primeira constatação:

Podemos descobrir que significado veio a ligar-se à palavra ‘estranho’ no


decorrer da sua história; ou podemos reunir todas aquelas propriedades de
pessoas, coisas, impressões sensórias, experiências e situações que despertam em
nós o sentimento de estranheza, e inferir, então, a natureza desconhecida do
estranho a partir de tudo o que esses exemplos têm em comum. Direi, de imediato,
que ambos os rumos conduzem ao mesmo resultado: o estranho é aquela categoria
do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar. Como
isso é possível, em que circunstâncias o familiar pode tornar-se estranho e
assustador, é o que mostrarei no que se segue. Acrescente-se também que minha
investigação começou realmente ao coligir uma série de casos individuais, e só foi
confirmada mais tarde por um exame do uso linguístico. Na exposição que farei,
contudo, seguirei o curso inverso. (Freud, The “Uncanny”, 1925 C.P., 4, 368-407.
(Trad. de Alix Strachey.)

Deixando de lado, por circunstância, a continuação do raciocínio de Freud, assinalo


que logo de início percebe-se que a constatação, ela mesma, é ambígua, pois coloca como
elemento definidor do conceito aquilo que ele mesmo enuncia: a experiência da
estranheza. Poderia parecer tautológico, mas esta aparente contradição – como soe
acontecer no pensamento de Freud – é suficiente para deixar claro que nada do que se
afirmar pode ser tomado em sentido absoluto e definitivo; o que é, no mínimo, “estranho”!
Pois bem. Essa experiência que faz com que um sujeito perceba como familiar alguma
coisa que na aparência, ou no efeito, seja estranha; e o movimento contrário, a sensação de
incômodo que, diante de, por exemplo, uma situação absolutamente conhecida e familiar,
o sujeito experimenta; esta experiência é que está na base do conceito freudiano e que
proponho como ponto de partida para a especulação do mesmo a partir da leitura dos
textos literários a compor o corpus da investigação desejada, tomando como instrumento
as personagens masculinas.
No caso específico de José Matias, é necessário dizer que a leitura mais tradicional
do texto de Eça leva à conclusão, um tanto equivocada, de que o autor revela certo conceito
negativo do amor. O juízo é inexato dado que, ao invés de desacreditar o amor, Eça
condena a incapacidade do homem de amar completamente, alma e corpo. É, sobretudo,
no conto “José Matias”, que ele trata com maior complexidade e originalidade da
polarização dos aspectos físico e espiritual no homem e das consequências do desequilíbrio
resultante. Para expressar essa dicotomia, Eça elabora uma versão moderna de amor
cortês, utilizando todos os elementos principais da tradição medieval ao narrar o caso
singular de um homem que “foge” da posse física da mulher amada. As aspas se justificam,
pois no contexto medieval, não havia, até prova em contrário, fuga, mas, um tanto mais
acertadamente, abstinência, forçada, até. O conto, entretanto, contém um significado mais
profundo e/ou complexo. Através do ambiente romântico e aparentemente idealista criado
pela adaptação do mito provençal e das explicações subjetivas e contraditórias do
narrador, “José Matias” expõe uma profunda aberração psicológica: sem dever nada a
Sigmund Freud, que só uma década depois do aparecimento do conto português publicará
sobre o mesmo assunto. Eça consegue revelar, com aguda percepção e exatidão, os
diversos aspectos recônditos de uma impotência psíquica que atormenta e finalmente
destrói o seu herói. Este é um dos argumentos possíveis a balizar a leitura aqui proposta.
Outro, igualmente plausível, é o de que poderia haver, ainda que inconscientemente, a
retroalimentação de afetos homoeroticamente articulados na relação que a personagem
estabelece com outras três figuras masculinas ao longo da narrativa curta do autor
português. Este argumento sustenta-se, primeiramente na conceituação de Eve Kosofsky
Sedgwick, quando fala de homossociabilidade. Entende-se por isso, no pensamento da
professora norte-americana, o uso que nele se faz deste conceito, ao lado de outro – o de
desejo homossocial – que reconfigura, de maneira muito produtiva, uma série de questões
relacionadas com a masculinidade, tanto heterossexual quanto homossexual. Já passou da
hora de se pensar a pertinência desses conceitos no âmbito da crítica literária em Língua
Portuguesa.
O conceito de homossociabilidade pretende nomear e articular, num todo coerente,
a extensa rede de práticas sociais, através das quais se regulam os laços de solidariedade e
colaboração, por um lado, ou de rivalidade e competição, por outro, entre aqueles
indivíduos que se identificam como pertencentes ao mesmo sexo; no caso, o masculino. As
relações entre homossociabilidade e homoerotismo são bastante complexas e mudam de
um contexto cultural para outro, além de se diferenciarem nitidamente, consoante se trate
de um ou outro sexo. Na sociedade antiga, havia uma clara continuidade entre a
homossociabilidade masculina, enquanto estrutura a serviço da dominação patriarcal, e o
homoerotismo; ao passo que, na sociedade moderna, se supõe um corte insuperável entre
ambos. A análise de obras literárias, sobretudo de meados do século XVIII até as primeiras
décadas do século XX, mostra que esse corte é muito menos profundo do que parece e, na
verdade, haveria uma continuidade básica entre a homossociabilidade masculina e o
homoerotismo também no mundo moderno, a ponto de se poder falar, coerentemente, em
desejo homossocial, como faz Sedgwick. Segundo ela, essa continuidade seria uma peça
fundamental na estruturação de todo o sistema de gênero. O pensamento desta professora
constitui um momento excepcional de articulação entre crítica literária e teoria da cultura.
O recurso aos conceitos de homossociabilidade e de desejo homossocial pressupõe uma
interpretação bastante sofisticada e complexa da cultura moderna. Segundo esta
interpretação, o homoerotismo masculino deve ser situado no contexto do sistema de
gênero como um todo e em função das estratégias de dominação heteropatriarcal, de que
os vínculos homossociais são elementos nucleares. Estudando o romance inglês no período
compreendido entre meados do século XVIII e meados do século XIX, a autora afirma, na
minha tradução, que:

(...) o padrão emergente de amizade, proteção, designação, rivalidade e hetero e


homossexualidade masculinas estava numa relação íntima e móvel com as classes;
e [...] nenhum elemento daquele padrão pode ser entendido fora de sua relação
com as mulheres e com o sistema de gênero como um todo (Sedgwick, 1985, p. 1).

Por outro lado, a noção de homoerotismo pode auxiliar dado que, conforme o
pensamento de Jurandir Freire Costa, esse termo tem sido (não equivocadamente)
associado a uma discussão de cunho terminológico. Parto do pressuposto de que
“homoerotismo” é mais eficaz para dizer da interlocução possível com a Literatura e
aponta para a direção semântico-metodológica que adoto, para prosseguir com o
desenvolvimento de minhas hipóteses e reflexões. É pensando nessa perspectiva que
destaco aqui o trabalho de Jurandir Freire Costa, concordando com ele, quando diz:

(...) homoerotismo é preferível a “homossexualidade” ou “homossexualismo”


porque tais palavras remetem quem as emprega ao vocabulário do século XIX, que
deu origem à idéia de “homossexual” (...), persistir utilizando tais noções significa
manter costumes morais prisioneiros do sistema de nominação preconceituoso que
qualifica certos sujeitos como moralmente inferiores pelo fato de apresentarem
inclinações eróticas por outros do mesmo sexo biológico. (...) a carga de
preconceito contida no uso de palavras como “homossexualismo” ou
“homossexual” é autônoma em relação à intenção moral de quem as emprega.
(COSTA, 1992, p. 11)

A discussão terminológica faz-se pertinente, enquanto procedimento


dialógico com o recorte da questão identitária, pano de fundo de minha investigação.
Ademais, seus desdobramentos “naturais” far-se-ão sentir por si mesmos, ao longo da
discussão implícita nessa mesma proposta. Vale adiantar que, nesse sentido, o termo
“homoerotismo” pode ser considerado aqui como um operador de leitura a mais, que
ganha consistência, por exemplo, quando da consideração das teorizações acerca da
homossociabilidade. Ressalte-se, mais uma vez, que a utilização desse termo está aqui a
ultrapassar os limites estreitos a ele adstritos, conforme esclarecimento anterior. Estou
(também) partindo da conceituação feita por Eve Kosofsky Sedgwick, em livro aqui já
mencionado. Nele, ao abrir suas reflexões, a autora justifica (de novo, na minha tradução)
o uso do termo:

“Desejo homossocial masculino”: a frase no título deste livro tem a


intenção de registrar discriminações e paradoxos. “Desejo homossocial”, para
começar, é uma espécie de oximoro. ”Homossocial” é uma palavra ocasionalmente
usada pela História e pelas ciências sociais, onde ela descreve os laços sociais entre
pessoas do mesmo sexo; ela é um neologismo, obviamente formado pela analogia
com “homossexual”, e da mesma forma significando o que deve ser deste termo
distinguido. De fato, ela é aplicada para certas atividades como “coisa de macho”
que, em nossa sociedade, pode ser caracterizada por intensa homofobia, medo e
ódio em relação à homossexualidade. (SEDGWICK, 1985, p. 1)

Eve afirma que “o desejo homossocial” é uma espécie de oximoro e afirma


que a expressão explicita marcas de discriminação e paradoxo. Talvez fosse bom pensar
que a homossociabilidade, nesses termos, é um conceito que descreve práticas
profundamente arraigadas na cultura androcêntrica heterossexista, muito cara à
burguesia. Por isso mesmo, conjugado com o conceito de “homoerotismo”, capta um
espectro muito amplo de situações, práticas e desejos, revelando-se um instrumento
analítico muito produtivo. Isso se dá porque, se por um lado, a homossociabilidade
aproxima-se muito da perspectiva patriarcal, tão execrada já há alguns anos e que,
homofobicamente, marginaliza outros tipos de relacionamento que não sejam
heterossexuais – ainda que ficcionais –; por outro, abre caminho para a articulação
discursiva de desejos não nomeados, ou, até mesmo, não reconhecidos, mas capazes de
reconfigurar o próprio imaginário heteropatriarcal.
Retomando o viés freudiano destas especulações, a última condição do amor
descrito por Freud requer que a mulher seja desacreditada sexualmente de alguma
maneira. Pode ser uma prostituta, uma mulher casada ou o tipo frívolo. Este aparente
paradoxo de uma mãe-substituta, que é moralmente impecável e também imaculada,
reflete a descoberta, pela criança, da sexualidade adulta e da cumplicidade da mãe. O
resultado é uma dicotomia na imagem que a criança tem da mãe e que logo perturbará as
relações do homem com outras mulheres. Elisa é, aqui, a figura compósita desta da mãe.
Ela simboliza a “madona virginal”, a inacessível divindade do altar, durante os dez anos de
matrimônio com Matos Miranda. Esta época representa o primeiro conceito da mãe como
a imagem da pureza. Com seu casamento com Torres Nogueira, porém, Elisa comete um
ato de infidelidade que a deixa desacreditada – ou profanada – sexualmente. Depois, ela
confirma sua nova identidade como mulher licenciosa ao aceitar um amante. Esta nova
relação, porém, não atormenta José Matias apesar de que desta vez a ligação é ilícita e,
portanto, de significado mais sensual. É precisamente a existência do aspecto
predominantemente físico que explica a segunda mudança na atitude de José Matias.
Torres Nogueira era igualmente rival e ideal inatingível – a quintessência do homem
integral que José Matias não é. O “Apontador de Obras Públicas” representa o lado
exclusivamente físico do amor. Nem tem nome particular. O amante é, como Matias,
incapaz de cumprir todos os aspectos do papel masculino. Ele representa o recalcado de
José Matias, seu alter ego físico. Os dois não competem, complementam-se. O gesto do
amante no cemitério expressa homenagem, mas também simboliza o encontro e a
integração, por fim, da alma e do corpo polarizados quando, ironicamente, a união já não
pode ter lugar. Creio que este aspecto é o nervo central da intrincada e subliminar trama
homoerótica que envolve as duas personagens, na perspectiva de análise aqui proposta.
No conto de Eça de Queirós, não perdendo a ironia, o narrador, adoça-se: de
impiedoso e duro torna-se compassivo. Neste conto, os discursos não seguem a ordem
cronológica dos eventos, apresentando alterações ao recorrer, quer à analepse, quer ao
regresso a um tempo no qual ou o protagonista pressupostamente narra sua história ou
uma testemunha a enuncia. O narrador se autodenomina filósofo. O leitor identifica-se a
seu interlocutor e, nas primeiras linhas, recebe o convite: “Por que não acompanha o meu
amigo este moço interessante ao Cemitério dos Prazeres?”. “Moço interessante” seria um
eufemismo tático? Um modo hábil de dizer “rapaz singular” sem dizê-lo? Um homem
estranho? Com simpatia e humor, o narrador, constrói um idealista radical. O percurso
que, proposto pelo narrador, se faz pela vida de José Matias, dá-se no tempo do trajeto até
o Cemitério dos Prazeres. A narrativa na primeira pessoa do narrador (um amigo de José
Matias) conversando com outra personagem durante esse trajeto beira, em seu início, o
deboche: “Linda tarde, meu amigo!... Estou esperando o enterro do José Matias – do José
Matias de Albuquerque, sobrinho do Visconde de Gamilde...”. O entrecortado que marca a
introdução do tempo em que, pressupostamente, se contam os eventos, permite que o
leitor se distancie da história e consiga alcançar uma atitude de reflexão perante o
comportamento exageradamente espiritualista de José Matias. Contudo, no final do conto,
o narrador deixa à consideração do leitor o modo de avaliar as relações entre
espiritualismo e materialismo, sugerindo que a Matéria, mesmo sem o compreender,
sempre adorará o Espírito. Na verdade, se Elisa alimenta o amor idealizado e espiritual de
José Matias sem prescindir do amor carnal, quando finalmente José Matias morre, ela
manda “o seu amante carnal acompanhar à cova e cobrir de flores o seu amante
espiritual!”. Assim, contando a história em flash-back, Eça reconstitui logo no início, a vida
de José Matias, “um rapaz airoso” e “duma elegância sóbria e fina”, estudioso dos círculos
literários lisboetas, culto e sofisticado, mas que, segundo o narrador, em seu último
encontro com ele, estava em estado lastimável “porque a derradeira vez que o encontrei,
numa tarde agreste de Janeiro, metido num portal da Rua de S. Bento, tiritava dentro
duma quinzena cor de mel, roída nos cotovelos, e cheirava abominavelmente a
aguardente”. A partir daí, aclaram-se, no corpo da narrativa de Eça, os elementos
necessários para aguçar a curiosidade, pois, afinal, o que levou José Matias a arrastar-se
por uma vida boêmia e errante? O desenrolar do conto dá-se na apresentação e na
descrição de Elisa (a bela musa dos últimos românticos), e o motivo, segundo o narrador,
da derrocada na vida de José Matias, uma vez que “o pobre José Matias, ao regressar da
praia de Ericeira em outubro, no outono, avistou Elisa Miranda, uma noite, no terraço, à
luz da Lua! (...) Alta, esbelta, ondulosa, digna da comparação bíblica da palmeira ao vento.
Cabelos negros, lustrosos e ricos, em bandós ondeados. Uma carnação de camélia muito
fresca. Olhos negros, líqüidos, quebrados, tristes, de longas pestanas...”. Neste fragmento,
é possível visualizar a concisão de informações fornecidas pelo narrador, mantendo o
ritmo da prosa e fornecendo o essencial para prender a atenção de seu interlocutor: uma
das maestrias queirosianas. No discorrer da vida de ambos, Elisa enviúva de Matos de
Miranda e, após aguardar José Matias durante bom tempo, casa-se com Torres Nogueira.
Torna-se viúva novamente e, ainda assim, José Matias a contempla como uma musa
abstrata, numa espécie de amor platônico, deixando-a em pânico. Ainda vale ressaltar, no
conto, o recurso narrativo utilizado por Eça: a voz da personagem não se faz ouvir
explicitamente. Daí que o jogo de diálogos é presumido. As falas da personagem são
conhecidas a partir do próprio narrador: o leitor assume uma das vozes narrativas do
conto, já que acompanha as pausas reflexivas, as mudanças de assunto, dita o ritmo e o
andamento. Talvez esta seja uma estratégia narrativa que acaba por calar a voz que se quer
dizer, aquela que revelaria traços mais profundos e, por que não, mais esclarecedores sobre
a dinâmica dos afetos escondidos da personagem.
Jacinto do Prado Coelho chega a cogitar que, no fim do conto, Eça faria uma espécie
de exaltação do idealismo amoroso, uma vez que parece tê-lo aviltado com uma serenidade
que beira o diabólico. Este não seria outro índice do inconsciente pacto homossocial
estabelecido por José Matias e seus “parceiros” na relação com Elisa? É bom lembrar a
tonalidade soturna da última impressão que é dada de Matias — magro, alcoólico,
esfarrapado, sub-repticiamente a manter sua vigília noturna diante da casa de Elisa,
enquanto o Apontador de Obras Públicas faz sua visita diária “enfiando regaladamente o
portão, bem-vestido, bem calçado, de luvas claras, com aparência de ser infinitamente
mais ditoso naquelas obras particulares do que nas Públicas”. É a relação ilegítima e física
que goza um contentamento sereno. O amante espiritual, ao contrário, leva existência
sórdida e clandestina e sofre morte degradante. Inegável sombra de um maniqueísmo
latente e condenador. De novo a mesma perspectivação maniqueísta...
O tom do conto é ambivalente, como se Eça não estivesse certo de sua própria
atitude para com José Matias. Existem várias ambiguidades que não são resolvidas, apesar
de que o narrador dá a impressão de que a história de José Matias, embora singular, fica
completamente esclarecida por ele: impressão errônea. O primeiro enigma que se destaca
diz respeito à perspectiva empregada por Eça. Falta o ingrediente capital de revelação
confidencial, principalmente porque o narrador não é amigo íntimo de José Matias. Suas
explicações representam interpretações subjetivas de um homem cuja vaidade o obriga a
julgar-se sabedor de tudo, mesmo do que realmente não compreende. Esta voz, concertada
na polifonia da narrativa, ecoa outra: a da própria sociedade da época que, porventura,
condenaria José Matias por dar vazão a seus “afetos”. Cada vez que José Matias faz alguma
coisa inesperada, o narrador fabrica uma nova teoria que ele então considera a única, a
perfeita explicação lógica do caso. A verdade, porém, é que ele não chega a compreender
José Matias. Quando José Matias se recusa a casar com, Elisa depois da morte de Matos
Miranda, o narrador confessa, com rara honestidade, sua confusão total e sua inabilidade
para encontrar explicação. Em breve, porém, vence sua perplexidade e declara que o ato de
José Matias é devido a um excesso de espiritualismo e ao receio das materialidades do
casamento e das realidades fortes da vida. Quando, depois do casamento de Elisa e Torres
Nogueira, Matias não consegue recobrar a sublime felicidade dos primeiros dez anos de
sua paixão, o narrador não vacila em explicar a razão: José Matias vê na mocidade, força e
paixão física de Torres Nogueira, uma ameaça contra seu ideal espiritual, em contraste
com Matos Miranda, figura velha e doente e, portanto, sem força varonil. Se é verdade,
porém, que Torres Nogueira é índice de distúrbio porque introduz elemento erótico na
abstração espiritual que Elisa representa para José Matias, então a situação com o
Apontador de Obras Públicas deveria produzir trauma muito pior. Não obstante, sucede
tudo ao contrário. Em vez de hostilidade, José Matias só parece sentir curiosidade e sim-
patia. De novo, o narrador está pronto com sua explicação: os dois anteriores – Miranda e
Nogueira – tinham entrado na alcova de Elisa publicamente, pela porta da igreja, e para
outros fins humanos além do amor — para possuir um lar, talvez filhos, estabilidade e
quietação na vida. Mas este era meramente o amante, que ela nomeara e mantinha só para
ser amada: e nessa união não aparecia outro motivo racional senão que os dois cor pos se
unissem.
Por que Eça desenha este narrador? Por que, por exemplo, não escreveu como autor
onisciente ou usando o ponto de vista de Nicolau da Barca, amigo íntimo de José Matias,
conhecedor profundo do protagonista? Única conclusão plausível é a de que Eça não quis
oferecer revelação mais penetrante sobre seu protagonista. O narrador serve, em parte,
para afastar o leitor de José Matias. De fato, a viva personalidade do narrador funciona
frequentemente como distração, desviando a atenção do leitor, de maneira que examine
menos cuidadosamente as ações de José Matias e aceite como certas suas conclusões. Em
realidade, porém, essas conclusões contêm contradições que não são resolvidas e provo-
cam perguntas que precisam ser esclarecidas se o conto ceder a todas as riquezas de sua
temática complexa. Considero, então, o que Freud afirma: o instinto do amor é resultado
de desenvolvimento gradual que tem origem na infância. Essa evolução começa quando a
criança se dá conta de que existe um mundo alheio, de outros seres, e focaliza seu carinho
sobre a mãe. E, porque a mãe ama o pai, este se torna não só num ideal que deve ser
imitado, como também num rival que inspira ciúmes e hostilidade. Estas atitudes mudam
devido à educação e a barreiras impostas pela sociedade. Gradualmente, o objeto original
de amor é substituído pela irmã e depois por outras mulheres parecidas com estas, em
certa medida. Com a transferência do afeto a evolução normal fica completa. Quando,
porém, algum estorvo interrompe esta progressão natural, o resultado é uma desordem
erótica que emerge mais tarde, na pessoa já adulta, como poderia ser o caso de José
Matias. Ainda que não seja exatamente esta a circunstância aqui, a dissociação das duas
correntes da emoção erótica — ternura e sexualidade – está presente e age na dinâmica
homossocial de que tratei antes. O afastamento de José Matias pode agenciar a tendência
homoerótica inconsciente, que se manifesta por denegação, cujo objeto – o casamento com
Elisa – e é sempre marginalizado na reação do protagonista. Ressalte-se que a referência às
ideias de Freud não se faz de maneira ingênua. O reconhecimento da posteridade destas
ideias, em relação ao momento de publicação do conto não impede que, hoje, a leitura que
apresento possa se valer de tais argumentações, para equacionar o enigma que cerca o
protagonista em seu desempenho ficcional. Por meio da elaboração de história singular,
Eça consegue expor os diversos aspectos recônditos de uma relação inconsciente que
aproxima, por linhas transversas, o desejo que enovela as personagens na trama de sua
expressão. José Matias é incapaz de reconhecer, realizar e dar expressão ao afeto que o faz
manter-se afastado do que não conhece, pela aproximação do que supõe ser o motivo de
sua experiência. Vive e morre, pode-se dizer, atormentado por um desejo desconhecido.
Dando um terceiro passo, chamo a atenção para outra inflexão de leitura que, se não
resolve o enigma, colabora para enriquecer suas possibilidades de seu equacionamento. Ao
aceitar a proposta que os convivas no banquete de Ágaton levem a cabo o elogio do amor,
Sócrates diz que o amor é a única coisa que ele diz conhecer. Quando chega a sua vez de
falar, o filósofo recorre à invocação das palavras de Diotima, sua antiga iniciadora nos
“mistérios do amor”. A sábia de Mantineia tê-lo-ia feito depositário não só da teoria e das
origens do amor, mas, também, do método a seguir para chegar à sua última etapa – a
contemplação da ideia da beleza pura e simples, totum englobante e imperecível. Quando,
partindo do “correto amor por um rapaz”, o amante acede das coisas belas a essa forma e
“começa a avistá-la, quase tocaria o perfeito segredo”. Tal estado de perfeição espiritual
leva à prática da virtude e, daí, à imortalidade. Coloca-se, portanto, no polo oposto ao
segredo mundano que, de acordo com a dedução do discurso de Pausânias, certos déspotas
imporiam à expressão do amor entre dois homens. É porque o “perfeito segredo” estaria no
horizonte da conduta e das falas de Sócrates, que aparentemente não gratifica nem se faz
gratificar por Alcibíades. Este, por sua vez, considera o filósofo um prodígio incomparável
a qualquer “outro homem do mundo, antigo ou moderno”. A considerar que, nos termos
do banquete, Sócrates toma banho, vai ao lyceum e se jogue na cama, só mesmo um ser de
outro mundo praticaria o amor exclusivamente como forma espiritual, pura e eterna. As
contradições e ambiguidades do texto do Simpósio, engendram um dos fantasmas mais
persistentes no discurso normativo do amor privilegiado na tradição cultural do Ocidente.
No conto “José Matias”, Eça de Queirós não só reatualiza esse fantasma convocando-o
para a paródia do idealismo romântico, como dá conta da ansiedade que o mesmo provoca
ao ser entendido como patologia potencialmente aplicável a certa camada da população
masculina dada ao culto “feminino” do sentimento: herança trovadoresca implícita no
discurso narrativo.
Segundo Michel Foucault, o termo “homossexualidade”, bem como a “espécie” de
anomalia que denomina, nasce como resultado da “vontade de saber” médico-psiquiátrica
do século XIX, que constrói a sexualidade como qualquer coisa geralmente suspeita. A
publicação, em 1870, do artigo de Carl Westphal sobre “as sensações sexuais contrárias”
estabelece a homossexualidade como “inversão do feminino e do masculino no interior de
uma pessoa”, sendo absorvido por este tipo de “androgenia interior” o que antes se
considerava a “aberração” moral da sodomia. A ênfase no tipo particular de sensibilidade,
e não no ato sexual em que se poderia manifestar, faz da homossexualidade o “grande
segredo” e, consequentemente, o fantasma ameaçante da masculinidade a partir das
últimas décadas do século XIX. Para tanto, contribuem os discursos culturais em torno à
degeneração, no contexto dos quais se registra a transferência para o corpo masculino do
imaginário sentimental romântico até então associado com o corpo e o espaço (doméstico)
femininos. Isto dá origem ao que Eve Sedgwick caracteriza como um “pânico”. Típica
manifestação da definição homo/heterossexual, em seu livro Epistemology of the closet.
Dramatizando a falha epistemológica que assalta as identidades sexuais (e não só)
no período finissecular, em “José Matias”, Eça revisita a cena da incógnita já anunciada
por Alicibíades no “divino Platão”, por meio da relação entre o filósofo narrador e o seu
objeto de conhecimento, o protagonista do conto. Da comédia do amor à tragédia das
sexualidades vividas em segredo, chega-se à tragicomédia das identidades sociais do sexo:
o conto pode ser lido como demonstração do problema de conhecer, de definir o que é um
homem com relação à sua sexualidade. Daí que o relato conclua evocando, de modo
elíptico, o assombro de Alcibíades nas palavras desse outro sedutor de finais do século
XIX, que, perante o seu “inexplicado José Matias”, não poderá asseverar se este é “muito
mais que um homem – ou talvez ainda menos que um homem”. Não se trata, nem no
Simpósio, nem muito menos no comentário irônico semi-hegeliano levado a cabo por Eça
em “José Matias”, de definir o homem enquanto abstração filosófica em termos
apriorísticos e absolutos, mas, sim, como fenômeno físico de conhecimento empírico. A
partir do primeiro parágrafo, esse conhecimento é apresentado em sua contingência
originada da experiência e da consciência do “eu” narrativo, anônimo professor de
filosofia, vis-à-vis o outro que é o corpo chamado José Matias. O fenômeno desse corpo
faz-se representar por uma série de imagens físicas de teor evocativo que o narrador
apresenta a um estranho que passa, compelido a “amigo”: nada mais erótico se evocarmos
a sombra de Foucault.
O processo de rememoração que estrutura a exposição narrativa chama a atenção
para a inextricabilidade entre a aparência cambiante desse objeto de conhecimento e os
interesses voluntaristas do “eu” que o interpreta. As suas deduções, sobre a interioridade
afetiva e espiritual do “homem que nós vamos enterrar”, são “autorizadas” pelo sofisma da
razão comunitária de Hegel – o “nós” referido como signo de uma suposta razão
consensual. Por outras palavras: o narrador limita e reduz, de modo deliberado e
egocêntrico, o conhecimento de José Matias ao relato do seu (suposto) amor pela “divina
Elisa”; relato este elaborado pela “razão” heterossexista da cultura, naturalizada entre os
membros da comunidade social – o “nós” – e hipostasiada nas figurações típicas da
literatura romântica. É como se o corpo a caminho do cemitério não tivesse outra
serventia, como se não tivesse outro significado que aquele ditado pela vontade, ou pelas
inseguranças do professor de filosofia. A atribuição de um objeto de desejo feminino e,
portanto, de uma história de amor de tipo normativo a José Matias, é repetida de forma
ritualística ao longo da narrativa, delineando circularidade temporal sem saída, que
redunda no sacrifício e morte do personagem. A sua história começa e acaba no espaço
assinalado entre pinceladas sucessivamente contrastantes de hipóteses amorosas
codificadas em topoi românticos. Para combater certa indiferença e evitar a dissolução
“daquele moço tão macio, tão louro e tão ligeiro” alcunhado “José Matias, coração de
esquilo”, o narrador reporta-se subsequentemente a “versos gastos, mas imortais” para
determinar a hipotética paixão de José Matias pela imagem de Elisa numa noite de
Outono. A partir deste ponto, o personagem é literal e literariamente feito fetiche
romântico, gozando “nesse amor transcendentemente desmaterializado um encanto sobre-
humano”. O acaso não explica o reinício, o “segundo capítulo” da história de José Matias
que começa num “dia de Janeiro ou Fevereiro de 1871”, após a morte do marido de Elisa.
Esse “terremoto de incomparável espanto para José Matias” abre-lhe, por certo, a pos-
sibilidade de esquivar-se do script amoroso que lhe é imposto em Lisboa, recolhendo-se no
Hotel Francfort, no Porto. O nome do hotel, parenteticamente, remete ao fato de que os
primeiros movimentos para a emancipação dos homossexuais surgem na Alemanha, entre
as décadas de setenta e oitenta do século XIX. No entanto, tal como ocorre ao começo da
sua história, José Matias é eventualmente reconduzido à linha de ficção amorosa
convencional – não apesar do seu terror seguido da recusa de se casar com Elisa, mas
precisamente devido a isso. Só insistindo na lealdade do amor puro e desinteressado de
José Matias, é que o narrador pode censurar e, simultânea e contraditoriamente, defender
a sua rejeição do casamento, da constituição de família, enfim, a sua aversão “às realidades
fortes da vida”. Só assim poderá elevá-lo, no que será o terceiro capítulo da sua história: o
símbolo de expiação da materialidade do amor físico – salvaguardados os parâmetros da
lição platônica.
José Matias, após a morte de Torres Nogueira – um “macho”, que teria revelado a
Elisa “o que é um homem” –, tenta “sumir”, “evaporar-se”. O narrador, porém, acaba de
novo por agarrar a sua presa, agora pintando o ultrarromântico José Matias nas cores
naturalistas de um pobre bêbado, desgraçado pela sua ideia fixa. Isto, obviamente para
desarmar a explicação que o próprio José Matias lhe dá pelo seu abandono físico e moral
num portal de S. Bento: “Por aqui, à espera de um sujeito” (p.218). Sintomático... Se isso
não é obsessão, não sei que nome dar... A chancela desta dúvida é dada pela morte de José
Matias numa noite de fevereiro. A ambiguidade do janeiro-fevereiro indicaria outra
direção, e o fevereiro que o castiga é abjecção trágica na economia da narrativa. José
Matias não só morre entalado entre um mês e o outro. Morre também entalado entre a
expectativa social e cultural de que ame – ainda que inconscientemente – alguém do sexo
oposto e a renovada proscrição que surpreende todos aqueles suspeitos de “androgenia
interior”. É evidente que o “mistério” que tanto tem intrigado os leitores do conto não se
pode dissociar do caso patológico construído, interpretado e controlado pelos interesses,
desejos e temores do sujeito de enunciação. Segundo Alexander Coleman, José Matias
seria “vítima de uma proibição interior, um tabu pervasivo”, que o impede de levar “a sua
amada para a cama e, muito simplesmente, de ‘fazer’ amor algum (1980, p. 241). Claro que
nada poder-se-á saber do objeto do amor e, muito menos, da atividade sexual de quem
recalca, desloca ou atualiza, em segredo, um desejo considerado “tabu”. É justamente isso
que o narrador acaba por sugerir ao repetir frases de sentido ambíguo de modo insistente.
Na versão original do conto, Elisa teria recebido o nome de Elvira – nome bem mais carnal
e, por que não mundano! O relato da história de amor espiritual atribuída a José Matias
com relação a Elisa funciona como estratégia de dupla negação e, simultaneamente, de
espetacularização desse desejo proibido que a todos envolve e no centro do qual se coloca,
na agonia do réu-acusador o “eu” narrativo. Sem receber um “nome”, o “tabu evasivo” se
faz presente de modo inabalável, em pequenos detalhes figurativos do sentimento tecido
em torno ao corpo de José Matias. Para além disso, o nome da única figura feminina
estacada no conto, sugere a ideia de lisura, impecabilidade. Daí a pensar em candura,
pureza e castidade é um passo. No entanto, não é bem isso o que transparece no
desempenho da protagonista. Esta digressão, poderia – em outra ocasião, dado que o
recorte aqui. é cirúrgico –, quem sabe, expandir o leque de possibilidade interpretativas
para o imbróglio que se configura na construção da personagem que nomeia a narrativa,
Tecido entre a negação e a exibição perversas do “tabu” inominável, “José Matias”
manifesta a inquietação homofóbica típica do período imediatamente posterior ao
Romantismo. Como atesta Jonathan Dollimore, a ideia aqui é a de estar em posição
oposta. Isto significaria, na economia da leitura aqui proposta, o mesmo que estar contíguo
(pegado a, próximo de) ou, em outras palavras. Em outras palavras sentir-se ameaçado
por. Seria como uma espécie de experiência metonímica existencial. Num momento em
que se esfumam certezas lógico-racionais relativas à equivalência “natural” entre corpo
físico/sexo biológico, características de gênero sexual e sexualidade, a verdade do sujeito –
se é que ela existe, ou mesmo, existiu um dia – há de ser articulada na interioridade ou na
“sensibilidade”/sentimento de cada um. O que implica que cada um não é mais nem menos
do que um segredo, mas sempre vizinho e, portanto, interligado ao segredo que habita ao
lado. Daí a dinâmica de “perversão, proximidade, paradoxo e desejo”, ainda de acordo com
Dollimore (p. 230). Polos opostos, tal como José Matias e os corpos masculinos que, num
momento ou outro, lhe são convizinhos no novo “mundo do sentimento”, ambos se resol-
vem na síntese configurada na ardilosa tipoia do narrador em que qualquer desconhecido é
potencialmente um conhecido, um “amigo” e, ultimamente, um reconhecedor em pranto
secreto por uma morte de que é talvez culpado e que poderia ser a sua também.
Qual é a medida da humanidade? O que faz um homem? O que é, onde está, o que
faz de um homem “hetero-” ou “homo-”? Na medida em que o texto de Eça se apropria de
elementos estruturais, conceituais e figurativos do Simpósio, para abrir um espaço de
especulação acerca do corpo, do sentimento e das relações masculinas no período
finissecular do dezenove, “José Matias” pode ser tomado como núcleo dinamizador de uma
instância uma crise epistêmica, um “pânico” – para ficar com Sedgwick – de definição, que
deixa escapar hipotética “filosofia do riso”. O fato é que não um, mas, sim vários ‘josé
matias’ são violentados, mortos e enterrados por uma vontade de saber que em nome de
uma razão consensual constrói e produz a “anomalia” de que depende a “normalidade”
heterossexual. No frigir dos ovos, nada se sabe: é nessa estratégia perversamente cíclica
que se resolve toda e qualquer incursão, ou inquisição, no “grande segredo” que Eça
magistralmente desconstrói, como se para provocar o leitor que contempla a melancolia
inerente a toda e qualquer identidade genérico-sexual fundada na recusa de chorar a perda
originária do outro/eu mesmo. Numa espécie de mise-en-abyme actancial, o narrador
reproduz uma visão “moral” da realidade circundante, deixando escapar, entretanto,
alguma nuance que a natureza discursiva dessa mesma visão insiste em recalcar. A
evidência se dá por pequenos “chistes” que revelam a medula de uma questão complexa: a
representabilidade dos papeis sociais. A Modernidade coloca em xeque esse afã de
representação: mais que renovadora ou mesmo criadora de valores, a Modernidade inverte
os sentidos de seus valores comportamentais. O espírito paródico impera solene, apesar de
encontrar certos obstáculos, dificultando sua evidência. Trata-se, creio eu, de uma
possibilidade a mais para se pensar questões que vão tocar no que conhece como
problemática da subjetividade o quê, afinal de contas, vai também tocar no campo delicado
das sexualidades. Daí às considerações de tudo o que refere às peculiaridades
homoeróticas é um passo muito curto. Afinal, José Matias é um homem “estranho”.
É mais que necessário começar a prestar mais atenção em outras formas sociais de
sexualidade – outros modos pelos quais relações homoeróticas têm sido organizadas e
compreendidas, diferenciadas, nomeadas e não mencionadas deliberadamente. É
necessário especificar a particularidade de vários modos de comportamento homoerótico e
as relações entre esses modos e as configurações particulares de possíveis identidades
sexuais; ainda que a narrativa em referência não seja o que se pode chamar de
homoerótica, por definição. Esta “ontologia” presumida está longe de ser concretizada no
âmbito do meu projeto. Como eu disse no início, a chave aqui é o discurso do narrador e
sua representatividade “cultural”. O aparecimento de definições novas como a de
homoerotismo leva a ver esse conceito como parte da reestruturação das relações
familiares, sociais, culturais e, mesmo, sexuais, consequências do triunfo da urbanização e
do capitalismo industrial: as mesmas trocas que habilitaram um possível “hetero
erotismo”, como investimento cultural ligado à procriação, também criaram, com ligações
diferentes, condições para o aparecimento do homoerotismo, nos termos em que essas
considerações foram aqui delineadas. Enquanto os narradores afirmam a superioridade
masculina, seus discursos evidenciam a negação de um temor, recalcamento de um desejo
indizível: temor bastante comum. Tudo não seria a mesma coisa então? Além disso, a
insistência num discurso “masculino” possibilita pensar numa outra leitura do texto de
Eça: o discurso da homossociabilidade, como foi aqui aventado. Enquanto pacto
masculino, a moralidade burguesa se descuidou de controlar o discurso que acaba por
revelar outra face desta “irmandade” de interesses. O homem se aproxima de outro por
interesses “morais” que acabam por criar laços “afetivos”. Isso é problemático também e é
para essa direção que esse trabalho aponta como proposta de investigação.
Apesar de “José Matias” exemplificar um caso quase clinicamente perfeito de
impotência psíquica, o desenho da personagem, em si mesmo, nada deve a Freud. Não se
pode falar de nenhuma influência freudiana porque Freud não publicou nada sobre o pro-
blema até duas décadas depois de aparecer o conto português. “José Matias”. A criação de
Eça de Queirós é original e de aguda percepção psicológica. A literatura frequentemente
serve de depósito para motivos e impulsos que o ser humano não quer ou não pode
confrontar abertamente na vida, digamos, real. O que, a meu ver, é outra característica que
faz ser “estranha” qualquer afirmação contrária, seja ou não verdadeira. “José Matias” é,
antes de tudo, obra literária na qual Eça emprega com maestria todos os recursos mais
característicos da narrativa – linguagem viva e espirituosa, acerto nos traços descritivos,
originalidade imaginativa das personagens e da intriga, e fino humor que dá o tom tão
especial à composição. Possui, porém, valores para além dos puramente literários ou
técnicos. Tudo isso assentado na inquestionável competência na/da fabulação de que é
autor. Inescapável o reconhecimento de sua força criativa, no que diz respeito aos
meandros da ficção narrativa. Por meio da elaboração de uma história singular que pode
ser adstrita à circunscrição ao amor cortês, no século XIX, Eça consegue expor os diversos
aspectos recônditos de uma aberração psicológica ainda não reconhecida nem estudada
pelos especialistas médicos da época. “Aberração psicológica” é, aqui, apenas e somente
uma expressão que exerce força discursiva às assertivas apresentadas. Estranho seria
pensar que, ao fim e ao cabo, subscrevo a ideia de que o homoerotismo seja, de fato, uma
“aberração”. José Matias é, de fato, um “doente”, como afirma o narrador, mas sua
enfermidade provém da sua incapacidade de oferecer o amor completo que Elisa lhe ins-
pira. Ele não foge das materialidades do casamento, mas do terrível pecado que a união
física representa para ele. Vive e morre atormentado por uma natureza enfezada e por um
amor desequilibrado. Não é o amor que o destrói, é a falta de amor. Assim, abre-se a porta
para a visada do olhar homoerótico sobre a narrativa que, explicita um exemplo de relato
ficcional da constituição do pacto homossocial.

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