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Unidade 3

A sintaxe da Libras:
topicalização e focalização
Dando continuidade à abordagem da sintaxe da Libras, nesta uni-
dade você vai conhecer outros tipos de estruturação frasal e as varia-
ções do verbo “comer”, uma vez que vamos ver os sinais referentes a
frutas e a outros alimentos.

Construção em tópico e construção com foco


Você já sabe como estruturar uma frase de forma básica em Libras
usando a ordem direta (sujeito, verbo e objeto), certo? Agora, você vai
ver que, na Libras, assim como no português, existem outras formas
de estruturarmos uma frase. Aqui, estudaremos as estruturações em
tópico (topicalização) e com foco (focalização), que são duas formas
muito utilizadas pelos surdos em seus discursos.
Antes, porém, é importante compreendermos a especificidade
neural da Língua de Sinais, pois, ao falarmos em estrutura de frases,
gramática e estudos linguísticos, convém questionarmos se as Línguas
de Sinais, por serem visuais, são desenvolvidas no mesmo hemisfé-
rio cerebral que as línguas orais, já que as funções visoespaciais são
controladas pelo hemisfério direito de nosso cérebro. Acerca disso,
alguns estudiosos (EMMOREY; BELLUGI; KLIMA, 1993) realiza-
ram pesquisa para concluir se o estatuto linguístico das Línguas de

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Sinais seria comparável ao das línguas orais em termos neurológicos.
Veja a que conclusões eles chegaram lendo o texto a seguir.
É importante ressaltarmos que esses estudos enfatizaram a ASL
(American Sign Language – Língua de Sinais Americana), mas se
aplicam às Línguas de Sinais em geral.

A base neural da Língua de Sinais


A Língua de Sinais exibe propriedades para as quais cada um dos
hemisférios cerebrais de pessoas ouvintes mostra funcionamento pre-
dominante diferente. Tem-se demonstrado que o hemisfério esquerdo
subserve funções linguísticas, enquanto o hemisfério direito subserve
muitas funções visoespaciais. (...) a ASL é uma língua natural que
expressa distinções linguísticas dentro de um campo visoespacial.
Dado que as línguas sinalizadas como a ASL expressam funções lin-
guísticas através da manipulação de relações espaciais e que as línguas
sinalizadas devem ser processadas visualmente, como é a organização
do cérebro para esse tipo de sistema linguístico? A língua de sinais é
controlada pelo hemisfério direito junto com outras funções visoespa-
ciais ou o hemisfério esquerdo subserve a língua de sinais como o faz
para a língua falada? Ou a língua de sinais é representada igualmente
em ambos os hemisférios do cérebro?
Uma das principais descobertas do nosso laboratório foi a de que
existe uma separação entre linguagem e funções visoespaciais não lin-
guísticas, mesmo quando a linguagem manipula espaço e é percebida
visualmente. Isto é, apesar da sua modalidade alternativa, existe forte
evidência de que os aspectos mais gramaticais das línguas sinalizadas
são lateralizados para o hemisfério esquerdo. O laboratório estudou
um grande grupo de sinalizadores adultos surdos que sofreram lesão
cerebral, examinando os efeitos de lesões cerebrais nas suas habilida-
des linguísticas e visoespaciais não linguísticas. Esses sujeitos sina-
lizaram durante toda a sua vida e assim tiveram experiência apenas
com uma língua visoespacial, sem ter acesso a sons ou a uma língua
baseada no oral. (...)
Dominância do hemisfério esquerdo
para o processamento da Língua de Sinais
Primeiramente apresentamos os resultados de três pacientes surdos
sinalizadores que sofreram lesão no hemisfério esquerdo e foram
extensivamente estudados no nosso laboratório (ver Poizner, Klima
e Bellugi, 1987). Uma bateria de provas linguísticas e visoespaciais
foi aplicada nos pacientes. Para avaliar a afasia de sinais, o Boston

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Diagnostic Aphasia Exam (Goodglass and Kaplan, 1972) foi ­adaptado
para a ASL. Isso nos permite comparar o padrão de prejuízo encon-
trado em pacientes surdos e ouvintes. Desenvolvemos, também, uma
bateria de medidas linguísticas para avaliar aspectos específicos da
compreensão e produção da ASL. Os três pacientes apresentados aqui
servem como ilustração da pesquisa do laboratório sobre o papel do
hemisfério esquerdo no processamento da língua de sinais. O labora-
tório tem, desde então, estudado muitos outros sinalizadores lesados
à esquerda que exibiam afasia de sinais e fornecem indícios adicionais
sobre a organização cerebral para língua de sinais.

EMMOREY, K.; BELLUGI, U.; KLIMA, E. Organização neural da língua de sinais.


In: MOURA, M. C.; LODI, A. C. B.; PEREIRA, M. C. da C. (Org.). Língua de Sinais
e educação do surdo. v. 3. São Paulo: TecArt, 1993. (Série Neuropsicologia).

Agora que você conhece um pouco mais sobre as questões neu-


rológicas relativas à Língua de Sinais e sabe que as funções cerebrais
associadas ao processamento dessa língua são condizentes com as das
línguas orais e que também nesse aspecto ela tem o mesmo estatuto
das línguas orais, continuemos, então, com nossos estudos.

Topicalização ou construção em tópicos


Sobre esse aspecto, é importante você saber que os primeiros estu-
dos linguísticos em Língua de Sinais foram feitos nos Estados Unidos,
por isso muitos linguistas brasileiros que estudam a linguística da
Libras – como Ronice Muller de Quadros, Lucinda Ferreira Brito e
Tanya Felipe – baseiam-se em algumas dessas pesquisas. Assim, estu-
dos de muitos aspectos da Libras têm como referência a ASL. No
que diz respeito à estruturação de frases em Libras, há pontos em que
a ASL e a Libras se parecem, como é o caso da topicalização. De
acordo com Quadros (1999, p. 13), assim como na ASL, na Libras
a topicalização é o processo mais comum para explicar a estrutura
objeto-sujeito-verbo (O-S-V). Nas duas línguas, essa construção topi-
calizada pode ser percebida não só por sua estrutura, mas, acima de
tudo, pela expressão facial específica, em que a mais comum é a ele-
vação das sobrancelhas, realizada simultaneamente com os elementos
topicalizados.
Antes de prosseguirmos em nossa abordagem, é preciso que você
compreenda melhor o que é tópico em Libras. Para tanto, recorremos
a Quadros (2004, p. 148), que explica:

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O tópico é o tema do discurso que apresenta uma ênfase especial, posicionado no início
da frase e seguido de comentários a respeito desse tema. Esse recurso gramatical é muito
comum na Libras.
A marca do tópico delimita as fronteiras da topicalização na língua de sinais brasileira:
somente tópicos são associados com a marca não manual, ou seja, essa marca não pode se
espalhar sobre a sentença.

Lembre-se de que marca não manual está relacionada à expressão


facial. Assim, há uma expressão facial diferente do restante da frase
para o tópico sinalizado, como se estivéssemos dando ênfase a ele.
Em português, como você sabe, esse tipo de construção também
ocorre, mas em Libras é muito mais comum, pois a topicalização per-
mite situar previamente o interlocutor no assunto a ser abordado, ou
seja, apresentamos o assunto principal (tópico) e, em seguida, discor-
remos sobre ele.
Para você compreender melhor esse processo, veja os exemplos a
seguir.
Obs.: Para destacar o tópico, utilizaremos os símbolos < >. Por
exemplo: <MAÇÃ>


<MAÇÃ> EL@ GOSTAR
(De maçã, ela gosta.)

(tópico)

Como você pôde perceber, topicalizamos o sinal MAÇÃ porque


ele representa o assunto principal, ou seja, o tópico da conversação. E
esse procedimento pode ser aplicado a uma frase negativa, como no
exemplo a seguir.

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<MAÇÃ> EL@ GOSTAR-NÃO!
(De maçã, ela não gosta!)
Essa mesma frase pode vir acompanhada ainda de interrogação.


<MAÇÃ> EL@ GOSTAR-NÃO?
(De maçã, ela não gosta?)
E lembre-se de que a expressão facial é muito importante na sina-
lização, pois ela também é definidora dessas estruturas. Por exemplo:
quando topicalizamos MAÇÃ, podemos dar uma leve inclinada na
cabeça (para frente) para marcar o tópico.
É claro que podemos formular também frases exclamativas com
tópico. Veja:

<FRUTAS>, EU COMER TODO DIA!


(Frutas, eu como todos os dias!)

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Na frase topicalizada, também podemos expressar a condição de
nunca termos feito algo.


<MANGA> EU COMER NUNCA(!)
(Manga, eu nunca como.)
Você percebeu que a estruturação em tópico de uma frase em
Libras consiste em destacar seu tema? Pois bem, vejamos outra forma
de estruturação de frases nessa língua.

Construção com foco


Na construção de frases com foco, um dos itens (sinais/palavras)
que a compõem é duplicado, ou seja, o item que queremos focalizar é
repetido ao final da frase.
Assim como no tópico, o foco também será destacado com os sím-
bolos < >. Por exemplo: <COMPRAR>


VOVÓ COMPRAR FRUTAS MUIT@ <COMPRAR>
(Vovó comprou muitas frutas, comprou.)

Observe, nesse exemplo, a aplicação do que foi exposto na aber-


tura desse item: o sinal COMPRAR se repete, isso porque queremos
enfatizar a ação, como se disséssemos “Comprou, comprou mesmo!”
Observe a seguir outros exemplos.

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QUEM GOSTAR LARANJA <QUEM>
(Quem gosta de laranja, quem?)
Lembre-se de que a expressão facial é de extrema importância na
sinalização para indicar a dúvida, a interrogação.


EU GOSTAR-NÃO MAMÃO COMER <GOSTAR-NÃO>
(Eu não gosto de comer mamão, não gosto.)

Que tal praticar um diálogo utilizando o modo de estruturação de


frases que você aprendeu agora? Para enriquecer sua prática e aprendi-
zado, observe mais estes diferentes tipos de elaboração de frases:


VOCÊ COMER FRUTAS TODOS DIAS <COMER>?
(Você come frutas todos os dias? Come?)

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VOCÊ GOSTAR MAÇÃ?
(Você gosta de maçã?)


MAÇÃ EU GOSTAR!
(De maçã, eu gosto!)


EU GOSTAR-NÃO ABACAXI
(Eu não gosto de abacaxi.)


VOCÊ GOSTAR?
(Você gosta?)

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ABACAXI EU GOSTAR-NÃO!
(De abacaxi, eu não gosto!)


SALADA FRUTAS VOCÊ GOSTAR?
(De salada de frutas, você gosta?)


ÀS VEZES SALADA DE FRUTAS EU COMER GOSTOS@!
(Às vezes eu como salada de frutas. É gostoso!)

Lembre-se de que, se queremos nos referir a “Muito gostoso”, devemos


articular o sinal GOSTOSO com expressão e movimento mais acentuados, que
deem essa intensidade (como vimos no livro Libras 1), ou seja, a intensidade
é marcada pela expressão facial.

Fizemos aqui apenas um apanhado geral dessas construções para que você compreenda
melhor as possibilidades de organização sintática de frases na Libras. Caso você tenha inte-
resse em conhecer outras especificidades estruturais e aprofundar seus estudos linguísti-
cos em Libras, sugerimos o livro Língua de Sinais Brasileira: estudos linguísticos, de Ronice
Muller de Quadros e Lodenir B. Karnopp, publicado pela editora ArtMed. Nele, Quadros e
Karnopp apresentam um estudo linguístico da Libras desenvolvido com base em pesquisas
minuciosas, que une os estudos da linguística geral com as especificidades da Libras.

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Antes de prosseguirmos, é importante que você se lembre de outro
aspecto linguístico da Libras: o das variações regionais. Lembra-se de
que o regionalismo foi abordado no primeiro livro de nosso curso?
Nessa ocasião, você aprendeu a sinalizar a palavra “verde” segundo os
dialetos curitibano, paulista e carioca. Como estamos estudando sobre
as possibilidades de estruturação frasal na Libras, é importante que
você não as tome como um padrão único, mas que considere os dia-
letos sociais e o registro não padrão dessa língua, assim como ocorre
com o português.
Para compreender melhor esse aspecto linguístico, leia um trecho
da obra Surdez e linguagem: aspectos e implicações neurolinguísticas, de
Ana Paula Santana.

(...)
É preciso ainda muito estudo sobre a variedade “não padrão” dessa língua.
Cumpre observar que não estou me referindo ao português sinalizado
– já que os pais ouvintes não fazem sinais para preposições, artigos e
conjunções –, mas às variedades de usos dessa “língua”. Uniformizar a
língua de sinais seria o mesmo que uniformizar a língua portuguesa.
Sabe-se que a diferença de dialetos não se dá apenas entre o português
de Portugal e o do Brasil, mas entre as várias regiões brasileiras. O por-
tuguês do Brasil apresenta, segundo Bagno (2000), alto grau de diver-
sidade e de variabilidade, por causa da extensão territorial e das dife-
renças entre as classes sociais. O mito de que o português é um bloco
coeso, compacto e homogêneo não se sustenta, principalmente quando
há discriminação e imposição da norma culta da língua para todos os
falantes, deixando a maior parte da população marginalizada.
Se não há língua portuguesa “ideal” nem falantes “puros”, por que teríamos
língua de sinais “pura”? Tem-se discutido a língua de sinais como se fosse
uma língua homogênea – “a língua dos surdos”. Entretanto, ela também
tem suas variáveis, que fogem a uma descrição gramatical da língua, como
se tem feito até o momento. Essas variáveis se referem ao aspecto semân-
tico diferenciado (por exemplo, os sinais de MÃE e de PAI no Rio Grande
do Sul e em São Paulo são diferentes), além dos aspectos fonológicos e
sintáticos. Ressalto, quanto a isso, a importância da inclusão de trabalhos
da sociolinguística nos estudos da língua de sinais brasileira, bem como
as abordagens dos aspectos pragmático-discursivos relativos ao funciona-
mento de tal língua, que ainda estão no seu início (...).
SANTANA, A. P. Surdez e linguagem: aspectos e implicações
neurolinguísticas. São Paulo: Plexus, 2007. p. 99-100.

Para Bakhtin, a língua é viva e dialógica. Pois bem, a Libras também


apresenta essas duas propriedades. Cremos que, com a contribuição de
Santana, você pôde refletir novamente sobre elas na Libras, não?

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Sinalizando frutas, alimentos
e algumas ações a eles relacionados
Com o intuito de que você possa praticar ainda mais enunciados
em Libras, apresentamos mais um conjunto de sinais para a construção
de enunciados que se referem a ações relacionadas a frutas.

Frutas


frutas


BANANA MAÇÃ MAMÃO ABACAXI


ABACATE CAJU LARANJA PERA

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GOIABA LIMÃO COCO MANGA


MELANCIA MORANGO


UVA melão maracujá


pêssego frutaria

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Alimentos

ALIMENTOS


MACARRÃO ARROZ CARNE FEIJÃO


DOCE SAL PÃO OVO

Ações relacionadas a frutas e alimentos


COMPRAR VENDER COMER EXPERIMENTAR

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FRITAR ASSAR COZINHAR


DESCASCAR SERVIR

Nesta unidade, você pôde conhecer importantes aspectos linguís-


ticos da Libras, ampliando, assim, seu aprendizado da língua. Na
sequência, apresentamos outras propriedades e elementos da Libras,
repertório que possibilitará a você aperfeiçoar sua comunicação com
o surdo.

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