Você está na página 1de 1794

1

DIANA GABALDON

VÁ DIZER
ÀS VÁ VÁ
VÁ VÁ DIZER
ÀS ABELHAS
QUE EU
PARTI

ROMANCE
2
3

Vá Dizer Às Abelhas Que Eu Parti é uma obra de ficção.


Nomes, personagens, lugares e incidentes são o produto da imaginação da
autora ou são usados de maneira fictícia.
Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou
localidades é inteiramente coincidência.

Copyright (c) 2021de Diana Gabaldon


Copyright (c) do mapa 2021de Jeffrey L. Ward
Árvore Genealógica (Family Tree) de Donna Sinisgalli

Todos os direitos reservados.


4

APRESENTAÇÃO
ESTA TRADUÇÃO NÃO TEM QUALQUER OBJETIVO COMERCIAL.
Quando for lançada, a tradução oficial deve ser adquirida, para mostrar o interesse dos
leitores nas obras de Diana Gabaldon.

Esta tradução foi feita por um grupo de fãs de Outlander que conseguiram ler o livro “Go
Tell The Bees That I’m Gone”, ou simplesmente “Bees” em inglês, para auxiliar os fãs de
Outlander em língua portuguesa que estavam ansiosos para conhecer o que se passava
nesse livro.
Este livro foi traduzido para o português do Brasil, mas acreditamos que todos os
falantes de língua portuguesa possam entender e ter um grande aproveitamento da
leitura.
A pesquisa de palavras, expressões, locais reais e fictícios, personagens reais e fictícios
foi grande. Isso pode ser percebido em notas que visam ampliar o conhecimento dos
detalhes e tornar a obra ainda mais rica para os falantes de língua portuguesa. Diversas
informações se perdem na tradução e fizemos o possível para preservá-las. Não deixe as
notas de lado.
Neste livro, existe, talvez, a maior quantidade de referências a eventos de livros
anteriores, incluindo as obras da série de lorde John e demais obras paralelas. Tentamos
apontar onde esses eventos/lembranças ocorrem, especialmente nos livros de lorde
John, levando em conta que existem fatos marcantes que nem precisam de marcação,
todos sabemos que ocorreram. Como o livro 8 é o mais recente, os acontecimentos
desse último livro talvez sejam os menos marcados durante a leitura.
Como foi explicado, a tradução foi feita por um grupo de pessoas. Em função dessa
diversidade, eventualmente pode ser possível encontrar uma mesma palavra explicada
em mais de uma ocasião, ou palavras com algum erro. Mas se até livros consagrados
apresentam erros e inconsistências... quando mais um livro traduzido por pessoas
amadoras, sem conhecimento técnico, mas motivadas pela vontade de ajudar a
entender a obra de Diana Gabaldon, não é?

Nas notas, usamos uma convenção para citar as obras anteriores. Os títulos estão em
português do Brasil e em português de Portugal, quando houver divergência entre eles .

Livro Principais

Livro 1 - A Viajante do Tempo / Nas Asas do Tempo


Livro 2 - A Libélula no Âmbar / A Libélula Presa no Âmbar
Livro 3 - O Resgate no Mar / A Viajante
Livro 4 - Os Tambores do Outono
Livro 5 - A Cruz de Fogo
5
Livro 6 - Um Sopro de Neve e Cinzas
Livro 7 - Ecos do Futuro / Um Eco do Passado
Livro 8 - Escrito com o Sangue do Meu Coração

Livros da série de lorde John e livros paralelos.

Os títulos assinalados com * fazem parte da coletânea ‘O círculo das Sete Pedras’. As
demais obras não tem tradução oficial em português. Nem todos foram citados.

Clube - LJ e o Clube Hellfire (Lord John and the Hellfire Club)


Assunto – LJ e o Assunto Privado (Lord John and the Private Matter)
Súcubo - LJ e o Súcubo (Lord John and the Succubus)
Irmandade – LJ e a Irmandade da Espada (Lord John and the Brotherhood of the Blade)
Assombrado – LJ e o Soldado Assombrado (Lord John and the Haunted Soldier)
Costume – O Costume Militar*
Prisioneiro - O Prisioneiro Escocês (The Scottish Prisioner)
Zumbis - Uma Praga de Zumbis*
Sitiados – Sitiados*

Virgens – Virgens*
Espaço – O Espaço Intermediário*
Folha - Uma Folha ao Vento de Todos os Santos*
Verde – Um Verde Fugidio*

BOA LEITURA!
6

BOA LEITURA!
7
8
9
Sumário
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 4
Sumário ................................................................................... 9
PRÓLOGO .............................................................................................................................. 19
PARTE UM ............................................................................................................................. 20
Um Enxame de Abelhas na Carcaça de um Leão .................................................................. 20
1 ............................................................................................ 21
OS MACKENZIES ESTÃO AQUI ..................................... 21
2 ............................................................................................ 40
UM DIA DE VINHO AZUL ............................................... 40
3 ............................................................................................ 74
RÚSTICO, RURAL E MUITO ROMÂNTICO ............................ 74
4 ............................................................................................ 84
AS MULHERES VÃO TER UM ATAQUE ...................... 84
5 ............................................................................................ 90
MEDITAÇÕES SOBRE UM HIOIDE.................................. 90
6 .......................................................................................... 103
O CAÇADOR ESTÁ DE VOLTA AO LAR, DE VOLTA DA
COLINA............................................................................... 103
7 .......................................................................................... 117
VIVO OU MORTO ............................................................ 117
8 .......................................................................................... 142
VISITAS ............................................................................. 142
9 .......................................................................................... 195
CONTOS DE NINAR SOBRE ANIMAIS .............................. 195
10 ........................................................................................ 216
SALSA, SÁLVIA, ALECRIM E TOMILHO ............................. 216

PARTE DOIS ........................................................................................................................ 227


Nenhuma Lei A Leste de Pecos ........................................................................................... 227
11 ........................................................................................ 228
RELÂMPAGO ................................................................... 228
12 ........................................................................................ 235
ANTIGOS CAMARADAS Fazenda Monte Josiah, Colônia
Real da Virginia ................................................................. 235
13 ........................................................................................ 253
10
“O QUE NÃO É BOM PARA O ENXAME NÃO É BOM PARA A
ABELHA ............................................................................... 253
14 ........................................................................................ 268
MON CHER PETIT AMI ........................................................ 268
15 ........................................................................................ 296
QUE BRUXA VELHA?...................................................... 296
16 ........................................................................................ 304
CÃO DE CAÇA CELESTIAL .......................................... 304
17 ........................................................................................ 320
LEITURA À LUZ DO FOGO ............................................. 320
18 ........................................................................................ 328
TROVÃO DISTANTE ........................................................ 328
19 ........................................................................................ 350
ASSOMBRAÇÃO À LUZ DO DIA ................................. 350
20 ........................................................................................ 371
APOSTO QUE VOCÊ PENSA QUE ESTA MÚSICA É
SOBRE VOCÊ… ................................................................ 371
21 ........................................................................................ 388
ACENDENDO UM PAVIO ................................................. 388
22 ........................................................................................ 401
CINZAS, CINZAS… ............................................................... 401
23 ........................................................................................ 420
PESCA DE TRUTA NA AMÉRICA, PARTE DOIS ............... 420
24 ........................................................................................ 436
ALARMES À NOITE ........................................................ 436
25 ........................................................................................ 455
VOULEZ-VOUS COUCHER AVEC MOI ............................... 455
26 ........................................................................................ 463
NAS SCUPPERNONGS .................................................... 463
27 ........................................................................................ 472
CUBRA O ROSTO DELA ................................................ 472
28 ........................................................................................ 479
MATH-GHAMHAINN ............................................................. 479
29 ........................................................................................ 500
LEMBRE-SE, HOMEM…..................................................... 500
30 ........................................................................................ 519
11
VOCÊS DEVEM CONHECER… ...................................... 519
PARTE TRÊS........................................................................................................................ 522
A Ferroada De Abelha da Etiqueta e a Picada de Cobra da Ordem Moral ..... 522
31 ........................................................................................ 523
PATER FAMILIAS ................................................................ 523
32 ........................................................................................ 537
LHUDE SING CUCCU .......................................................... 537
33 ........................................................................................ 546
MUITO POR ONDE ESCOLHER ...................................... 546
34 ........................................................................................ 555
O FILHO DO MINISTRO .................................................. 555
35 ........................................................................................ 580
AMBSACE ......................................................................... 580
36 ........................................................................................ 595
O QUE PERMANECE INVISÍVEL ................................... 595
37 ........................................................................................ 614
MANOBRAS COMEÇANDO COM A LETRA V ..................... 614
38 ........................................................................................ 623
CEIFADORA ..................................................................... 623
39 ........................................................................................ 638
EU RETORNEI .................................................................. 638
40 ........................................................................................ 641
BRANDY NEGRO ............................................................ 641
41 ........................................................................................ 648
IMBECIL INCONVENIENTE ........................................... 648
42 ........................................................................................ 660
SASANNAICH CLANN NA GALLADH! ............................. 660
43 ........................................................................................ 675
OS HOMENS COM QUEM VOCÊ SE ASSOCIA ......... 675
44 ........................................................................................ 686
BESOUROS COM PEQUENOS OLHOS VERMELHOS . 686
45 ........................................................................................ 700
NÃO É BEM COMO A LEPRA ........................................ 700
46 ........................................................................................ 707
À PRIMEIRA LUZ DA AURORA ................................... 707
12
47 ........................................................................................ 714
TACE É VELA EM LATIM ................................................ 714
48 ........................................................................................ 720
UM ROSTO NA ÁGUA ..................................................... 720
49 ........................................................................................ 738
SUA AMIGA, SEMPRE ......................................................... 738
50 ........................................................................................ 740
JANTAR DE DOMINGO EM SALEM .............................. 740
51 ........................................................................................ 748
RODAS DENTRO DE RODAS .......................................... 748
52 ........................................................................................ 764
MADURO PARA A COLHEITA ..................................... 764
53 ........................................................................................ 771
O PRIMEIRO PÉ ................................................................. 771
54 ........................................................................................ 789
NASCER DA LUA ............................................................ 789
55 ........................................................................................ 813
O VENENO DO VENTO NORTE .................................... 813
56 ........................................................................................ 822
TU SERIAS UMA BOA AMIGA ..................................... 822
57 ........................................................................................ 828
PRONTO PARA TUDO .................................................... 828
58 ........................................................................................ 834
REZANDO O ROSÁRIO.................................................... 834

PARTE QUATRO ................................................................................................................. 859


Uma Jornada de Mil Passos ............................................................................................... 859
59 ........................................................................................ 860
PEDIDOS ESPECIAIS ........................................................... 860
60 ........................................................................................ 865
APENAS UM PASSO ....................................................... 865
61 ........................................................................................ 870
SE UM CORPO ENCONTRA UM CORPO .................... 870
62 ........................................................................................ 878
O ROSTO DE UM ESTRANHO .......................................... 878
63 ........................................................................................ 893
13
O TERCEIRO ANDAR ..................................................... 893
64 ........................................................................................ 911
DEZ PÃES DE AÇÚCAR, TRÊS BARRIS DE PÓLVORA E DUAS
AGULHAS PARA COSTURAR CARNE ................................... 911
65 ........................................................................................ 922
GREEN GROW THE RUSHES, O! .................................. 922
66 ........................................................................................ 944
DIÁSPORA ......................................................................... 944
67 ........................................................................................ 949
RÉUNION ........................................................................... 949
68 ........................................................................................ 963
METANOIA ....................................................................... 963
69 ........................................................................................ 972
MAIS DIVERTIDO QUE LAVAR ROUPA .................... 972
70 ........................................................................................ 978
UMA ESPADA EM MINHA MÃO .................................. 978
71 ........................................................................................ 984
CABEÇAS ROLANTES ..................................................... 984
72 ........................................................................................ 994
UMA PRECE PARA SÃO DIMAS .................................. 994
73 ...................................................................................... 1004
FIQUE COMIGO .............................................................. 1004
74 ...................................................................................... 1015
A FACE DO MAL ............................................................. 1015
75 ...................................................................................... 1036
NÃO HÁ FUMAÇA SEM FOGO .................................. 1036
76
UM LADRÃO NA NOITE ........................................... 1047
77 ...................................................................................... 1055
CIDADE DO AMOR FRATERNAL .............................. 1055
78 ...................................................................................... 1071
TU CHEIRAS A SANGUE ............................................. 1071
79 ...................................................................................... 1075
MULHERES DEMAIS .................................................... 1075
80 ...................................................................................... 1079
UMA PALAVRA PARA ISSO ....................................... 1079
14
81 ...................................................................................... 1090
AINDA IMINENTE ......................................................... 1090
82 ...................................................................................... 1098
JF SPECIAL ....................................................................... 1098
83 ...................................................................................... 1102
A PENA DIANTEIRA DE UM CORUJÃO-ORELHUDO
.......................................................................................... 1102
84 ...................................................................................... 1117
SARDINHAS FRITAS E MOSTARDA FORTE .............. 1117
85 ...................................................................................... 1131
A MOONLICHT FLICHT ................................................ 1131
86 ...................................................................................... 1139
PROFECIA INDESEJADA ............................................. 1139
87 ...................................................................................... 1146
NO QUAL RACHEL PINTA SEU ROSTO .................... 1146
88 ...................................................................................... 1158
NO QUAL COISAS NÃO SE SOMAM ........................... 1158
89 ...................................................................................... 1168
A FIAÇÃO ....................................................................... 1168
90 ...................................................................................... 1172
A RAPOSA DO PÂNTANO ........................................... 1172
91 ...................................................................................... 1184
SITIADOS ......................................................................... 1184
92 ...................................................................................... 1189
COMO ÁGUA QUE SE ESPALHOU PELA TERRA, QUE
NÃO PODE SER RECOLHIDA NOVAMENTE .......... 1189
93 ...................................................................................... 1203
RETRATO DE UM HOMEM MORTO ......................... 1203
94 ...................................................................................... 1224
BATEDORES ................................................................... 1224
95
POZEGNANIE ............................................................... 1240
96 ...................................................................................... 1247
UMA COISA DE VALOR ................................................ 1247
97 ...................................................................................... 1256
UMA EXCELENTE PERGUNTA ............................................... 1256
15
98 ...................................................................................... 1268
MINERVA JOY .............................................................. 1268
99 ...................................................................................... 1277
ISAÍAS 6:8 ....................................................................... 1277
100 .................................................................................... 1283
O PODER DA CARNE ..................................................... 1283
101 .................................................................................... 1292
NA ESTRADA NOVAMENTE ........................................ 1292
102 .................................................................................... 1294
OS VENTOS DO INVERNO............................................ 1294
103 .................................................................................... 1299
VIRGINIA REEL ............................................................. 1299
104 .................................................................................... 1313
FODIDO GENERAL BLEEKER...................................... 1313
105 .................................................................................... 1327
SEISCENTOS E CINQUENTA QUILÔMETROS PARA
PENSAR ........................................................................... 1327
106 .................................................................................... 1332
O TERRENO ELEVADO ............................................... 1332

PARTE CINCO ................................................................................................................... 1338


Voe para casa....................................................................................................................... 1338
107 .................................................................................... 1339
NUMA MANJEDOURA ................................................. 1339
108
NOITE DA LOJA .......................................................... 1348
109 .................................................................................... 1354
DE PROFUNDIS ............................................................. 1354
110 .................................................................................... 1367
... BARULHOS CONFUSOS E VESTES REVOLVIDAS
EM SANGUE ... ............................................................... 1367
111 .................................................................................... 1372
A MANHÃ CHEGOU ..................................................... 1372
112 .................................................................................... 1378
NÓS NOS ENCONTRAMOS DE CORAÇÃO ABERTO
.......................................................................................... 1378
113 .................................................................................... 1386
16
E NOS DESPEDIMOS COM SINCERIDADE .............. 1386
114 .................................................................................... 1390
NO QUAL A TERRA SE MOVE ................................... 1390
115 .................................................................................... 1401
PEQUENO LOBO ........................................................... 1401
116 .................................................................................... 1406
EM QUE NOVOS AMIGOS SÃO ENCONTRADOS .. 1406
117 .................................................................................... 1412
FUNGOS, CASTORES E AS ESTRELAS BONITAS .. 1412
118 .................................................................................... 1424
A VISCONDESSA .......................................................... 1424
119
ENCÁUSTICA ................................................................. 1434
120
NO QUAL WILLIAM FALA TUDO, PRATICAMENTE
.......................................................................................... 1441
121 .................................................................................... 1446
A QUALIDADE DA MISERICÓRDIA ......................... 1446
122 .................................................................................... 1455
A MILÍCIA SE INICIA ................................................... 1455
123 .................................................................................... 1465
E A BATIDA CONTINUA ... ......................................... 1465
124 .................................................................................... 1471
A PRIMEIRA VEZ QUE VI SEU ROSTO .................... 1471
125 .................................................................................... 1474
UMA MULHER DO SEGUNDO TIPO ......................... 1474
126
QUANDO VOU DORMIR À NOITE, EU MORRO .... 1489
127
MAPANUPUALPAL DOPO VIPIAPAJANPANTEPE
DOPO TEMPEMPOPO,
COMPONSERPERVAPAÇÃOPÃO DEPE MAPASSAPA
.......................................................................................... 1498
128
RENDIÇÃO ..................................................................... 1503
129
BUSCA DA FELICIDADE ............................................ 1511
130
17
HERR WEBER ............................................................... 1518
131
TEMPESTADE EM RIDGE .......................................... 1530
132
MEDICINA DO HOMEM.............................................. 1576
133
UM SENTIMENTO TÃO ESTRANHO ......................... 1592
134
F. COWDEN, LIVREIRO ............................................... 1599
135 .................................................................................... 1612
SÓ PARA TORNAR AS COISAS INTERESSANTES . 1612
136 .................................................................................... 1618
DOIS DIAS ANTES ........................................................ 1618
137 .................................................................................... 1630
ATOS INFAMES E ESCANDALOSOS ........................ 1630
138 .................................................................................... 1636
MAL HERDADO ............................................................ 1636
139 .................................................................................... 1643
SONHOS DE GLÓRIA ................................................... 1643
140 .................................................................................... 1650
TRÊS ROUNDS COM UM RINOCERONTE ............... 1650
141 .................................................................................... 1656
UMA CLAREIRA COM ZUMBIDO ALTO DE ABELHAS
.......................................................................................... 1656
142 .................................................................................... 1661
NÃO É...? ......................................................................... 1661
143 .................................................................................... 1668
POSSO TE DIZER UMA COISA? ................................. 1668
144 .................................................................................... 1678
UM ASSUNTO PENDENTE .......................................... 1678
145
O ESPELHO QUEBROU ................................................ 1686
146
A MALDIÇÃO CAIU SOBRE MIM .............................. 1693
147 .................................................................................... 1700
UM MONTE DE SANGUE ............................................ 1700
148 .................................................................................... 1712
18
NÃO... AINDA... ............................................................. 1712
149
FILHOS DA PUTA BRAVOS, IRASCÍVEIS E DIFÍCEIS
.......................................................................................... 1714
150
E QUANTO A LÁZARO? .............................................. 1722
151 .................................................................................... 1731
UMA MENSAGEM EM UMA GARRAFA................... 1731
152 .................................................................................... 1738
TITUS ANDRONICUS ..................................................... 1738
153 .................................................................................... 1748
ENTREGA ESPECIAL ................................................... 1748
154 .................................................................................... 1760
NUNCA TENHA MEDO DE NEGOCIAR; NUNCA
NEGOCIE POR MEDO ................................................... 1760
155 .................................................................................... 1765
CASAMENTO QUACRE, REVISITADO ..................... 1765
NOTAS DA AUTORA ................................................... 1775
AGRADECIMENTOS ..................................................... 1789
19

PRÓLOGO

VOCÊ SABE QUANDO ALGO está chegando. Alguma coisa – algo


específico, terrível e tenebroso – vai acontecer. Você o imagina, você o
afasta. Isso fica indo e vindo, lenta e inexoravelmente, na sua mente.
Você se prepara como pode. Ou você pensa que se preparou, embora
seus ossos saibam a verdade – não há nenhuma maneira de contornar,
acomodar, diminuir o impacto.
Isso vai chegar e você ficará indefeso diante dele.

Você sabe disso.


E, no entanto, de alguma forma, você nunca acha que será hoje.
20

PARTE UM

Um Enxame de Abelhas na
Carcaça de um Leão1

1
Referência bíblica. Juízes 14
21

OS MACKENZIES ESTÃO AQUI2


Cordilheira dos Fraser, Colônia da Carolina do Norte
17 de junho de 1779

HAVIA UMA PEDRA sob minha nádega direita, mas eu não


queria me mover. O batimento cardíaco minúsculo sob meus
dedos era suave e teimoso, saltos de vida fugaz. O espaço entre
eles era infinito, e era minha conexão com o céu escuro e as
chamas crescentes da fogueira.
"Mova seu traseiro um pouco, Sassenach", disse uma voz em meu
ouvido. "Eu preciso coçar meu nariz e você está sentada na minha
mão." Jamie contraiu os dedos embaixo de mim e eu me movi,
virando-me para ele enquanto me mexia e me realocava,
mantendo Mandy, minha neta de três anos, adormecida e
desossada, em meus braços.
Ele sorriu para mim por cima da cabeça despenteada de Jem e
coçou o nariz. Devia já ter passado da meia-noite, mas o fogo ainda
estava alto, e a luz iluminou os pelos de sua barba por fazer e
brilhou tão suavemente em seus olhos quanto nos cabelos ruivos de
seu neto e nas dobras sombreadas da manta xadrex gasta com que
ele havia enrolado ambos.
Do outro lado do fogo, Brianna riu, da maneira silenciosa como
as pessoas riem no meio da noite com crianças dormindo por
perto. Ela deitou a cabeça no ombro de Roger, os olhos
semicerrados. Ela parecia completamente exausta, seus cabelos
2
Essa é a última frase do livro 4.
22

sujos e emaranhados, a luz do fogo esculpindo profundas


cavidades em seu rosto... mas feliz.
"O que você acha engraçado, a nighean3?" Jamie perguntou,
mudando Jem para uma posição mais confortável.
Jem estava lutando o mais que podia para ficar acordado, mas
estava perdendo a luta. Ele ficou boquiaberto e balançou a
cabeça, piscando como uma coruja atordoada. "O que é
engraçado?" ele repetiu, mas a última palavra sumiu, deixando-
o com a boca entreaberta e um olhar vidrado. Sua mãe deu uma
risadinha, um som adorável de menina, e eu senti o sorriso de
Jamie.
"Acabei de perguntar a papai se ele se lembrava de uma reunião
a que fomos, anos atrás. Os clãs foram todos chamados para uma
grande fogueira e eu entreguei a papai um galho em chamas e
disse a ele para ir até a fogueira e dizer que os MacKenzie
estavam lá."
"Oh." Jem piscou uma vez, depois duas, olhou para o fogo aceso
na nossa frente, e uma ligeira carranca se formou entre suas
sobrancelhas vermelhas e macias. "Onde estamos agora?"
"Em casa", Roger disse com firmeza, e seus olhos encontraram
os meus, depois passaram para Jamie. "Para sempre."
Jamie soltou a mesma respiração que eu estava segurando desde
a tarde, quando aquelas quatro figuras apareceram de repente na
clareira abaixo, e voamos colina abaixo para encontrá-los.
Houve um momento de explosão alegre e sem palavras quando
todos nós nos atiramos um contra os outros, e então a explosão
aumentou quando Amy Higgins saiu4 de sua cabana, convocada
pelo barulho, para ser seguida por Bobby, depois Aidan – que

3
Ó menina. Gaélico
4
No final do livro anterior, Amy, atraída pelo chamado de Roger, abre a porta de sua cabana e responde a
ele. Podemos pensar em um erro de continuidade de DG ou podemos pensar que Amy responde ao
chamado, entra, avisa Bobby e Aidan, e daí todos correm em direção aos Mackenzies. A escolha é sua.
23

havia gritado ao ver Jem e o agarrou, derrubando-o no chão –


com Orrie e o pequeno Rob. Jo Beardsley estivera na floresta
próxima, ouviu o barulho e veio ver ... e no que pareceram
momentos, a clareira estava cheia de gente. Seis famílias
estavam ao alcance da notícia antes do pôr do sol; o resto sem
dúvida saberia disso amanhã.
A demonstração instantânea da hospitalidade das Highlands foi
maravilhosa; mulheres e meninas correram de volta para suas
cabanas e buscaram o que quer que estivesse sendo assado ou
fervendo para o jantar, os homens juntaram lenha e – a pedido
de Jamie – empilharam na crista onde ficava o contorno da Nova
Casa, e demos as boas-vindas ao lar para nossa família em
grande estilo, rodeados de amigos.
Centenas de perguntas foram feitas aos viajantes: De onde eles
vieram? Como foi a jornada? O que eles viram? Ninguém
perguntou se eles estavam felizes por estar de volta; isso era
dado como certo por todos.
Nem Jamie nem eu tínhamos feito perguntas. Haveria tempo
suficiente para isso – e agora que estávamos sozinhos, Roger
acabara de responder a única que realmente importava.
O porquê dessa resposta, entretanto... Eu senti um arrepio nos
cabelos da minha nuca.
"Basta a cada dia o seu próprio mal5", murmurei junto aos
cachos negros de Mandy, e beijei sua minúscula orelha, com ela
surda para o mundo em seu sono. Mais uma vez, meus dedos
sondaram suas roupas – sujas pela viagem, mas muito bem feitas
– e encontraram a cicatriz entre suas costelas, o lembrete da faca
do cirurgião que salvou sua vida há dois anos, em um lugar tão
longe de mim. Ele batia pacificamente, aquele pequeno e
corajoso coração sob a ponta dos meus dedos, e eu pisquei para

5
Referência bíblica. Mateus 6:34
24

conter as lágrimas – não pela primeira vez hoje, e certamente


não pela última.
"Eu estava certo, aye?", Jamie disse, e eu percebi que ele estava
dizendo isso pela segunda vez.
"Certo sobre o quê?"
"Sobre a necessidade de mais espaço", ele respondeu
pacientemente, e se virou para gesticular para o retângulo
invisível da fundação de pedra, o único traço tangível até agora
da Casa Nova. As estruturas da Casa Grande original ainda eram
visíveis como uma marca escura sob a grama da clareira abaixo,
mas quase haviam desaparecido. Talvez quando a Nova Casa
fosse concluída, se tornasse apenas uma memória.
Brianna bocejou como um leão, então empurrou para trás sua
crina emaranhada e piscou sonolenta na escuridão.
"Provavelmente vamos dormir no porão neste inverno", disse
ela, depois riu.
"Ó você, mulher de pouca fé", disse Jamie, nem um pouco
perturbado. "A madeira está serrada, dividida e desbastada.
Teremos paredes, pisos e janelas em grande quantidade antes de
a neve chegar. Talvez nenhum vidro nelas ainda", ele
acrescentou, para ser justo. "Mas isso pode esperar até a
primavera."
"Humm." Brianna piscou novamente e balançou a cabeça, então
se levantou para olhar. "Você tem uma pedra para a lareira?"
"Eu tenho. Um adorável pedacinho de serpentina – a pedra
verde, ken?"
"Eu lembro. E você tem um pedaço de ferro para colocar
embaixo dela?"
Jamie pareceu surpreso. "Não ainda, não. Eu vou encontrar um
quando abençoarmos a lareira, no entanto."
25

"Bem, então." Ela se endireitou e remexeu nas dobras de sua


capa, emergindo com uma grande bolsa de lona, claramente
pesada e cheia de objetos variados. Ela mergulhou a mão dentro
dela por alguns momentos, então tirou algo preto que brilhava à
luz do fogo.
"Use isso, Pa", disse ela, entregando-o a Jamie. Ele olhou para a
coisa por um momento, sorriu e me entregou. "Sim, isso vai
servir", disse ele. "Você trouxe para a lareira?"
A “coisa” era um cinzel de metal preto liso, de quinze
centímetros de comprimento e pesado na minha mão, com a
palavra Craftsman6 gravada no cabo.
"Bem... para uma lareira", disse Bree, sorrindo para ele. Ela
colocou a mão na perna de Roger. "No início, pensei que
poderíamos construir uma casa nós mesmos, quando
pudéssemos. Mas...", ela se virou e olhou através da escuridão
da Cordilheira para a abóbada do céu puro e frio, onde a Ursa
Maior brilhava. "Podemos não conseguir antes do inverno. E já
que imagino que vamos nos impor a vocês..." Ela pousou os
olhos por baixo dos cílios para o pai, que bufou.
"Não seja tola, moça. Se é nossa casa, é sua, e você sabe disso
muito bem." Ele ergueu uma sobrancelha para ela. "E quanto
mais mãos houver para ajudar na sua construção, melhor. Você
quer ver o formato dela?"
Sem esperar por uma resposta, ele desvencilhou Jem de sua
manta, colocou-o no chão ao meu lado e se levantou. Ele puxou
um dos galhos em chamas do fogo e sacudiu a cabeça em um
convite em direção ao retângulo invisível da nova fundação.
Bree ainda estava sonolenta, mas se divertia; ela sorriu para mim
e balançou a cabeça com bom humor, depois curvou a capa

6
Famosa marca de ferramentas e implementos dos Estados Unidos do século XX.
26

sobre os ombros e se levantou.


"Vamos?", ela disse a Roger. Ele sorriu para ela e acenou com a
mão, enxotando-a. "Estou exausto demais para ver direito, amor.
Vou esperar até de manhã."
Bree tocou seu ombro levemente e partiu atrás da luz da tocha
de Jamie, murmurando algo baixinho quando tropeçou em uma
pedra na grama. Eu coloquei uma dobra da minha capa sobre
Jem, que não tinha se mexido.
Roger e eu ficamos sentados em silêncio, ouvindo suas vozes se
afastando no escuro – e depois ficamos em silêncio por mais
alguns momentos, ouvindo o fogo e a noite, e os pensamentos
um do outro. Para eles terem arriscado os perigos da viagem,
sem contar os perigos desta época e deste lugar... o que quer que
tenha acontecido em sua própria época...
Ele olhou nos meus olhos, viu o que eu estava pensando e
suspirou. "Aye, foi ruim. Ruim o bastante", ele disse
calmamente. "Mesmo assim, poderíamos ter voltado para lidar
com isso. Eu queria. Mas tínhamos medo de que não houvesse
ninguém lá que Mandy pudesse sentir com força suficiente."
"Mandy?" Eu olhei para o corpinho sólido, inerte no sono.
"Sentir quem? E o que você quer dizer com voltar? Espere..."
Eu levantei a mão em um pedido de desculpas. "Não, não tente
me dizer agora; você está exausto e há tempo suficiente." Fiz
uma pausa para limpar minha garganta. "E é suficiente que
vocês estejam aqui."
Ele sorriu então, um sorriso verdadeiro, embora com o cansaço
de quilômetros e anos e coisas terríveis por trás dele. "Sim", ele
disse. "Isto é verdade."
Ficamos em silêncio por um tempo, e Roger cabeceou. Eu
pensei que ele estava quase dormindo, e estava juntando minhas
pernas debaixo de mim para me levantar e levar todos para a
27

cama quando ele ergueu a cabeça novamente.


"Uma coisa ..."
"Sim?"
"Você já conheceu um homem – alguma vez – chamado William
Buccleigh MacKenzie? Ou talvez Buck MacKenzie?"
"Eu me lembro do nome", eu disse lentamente. "Mas...7"
Roger esfregou a mão no rosto e lentamente desceu pela
garganta, até a cicatriz branca deixada por uma corda.
"Bem... ele é o homem que me enforcou, para começar. Mas ele
também é meu bisavô quatro vezes. Nenhum de nós sabia8 disso
na época em que ele me enforcou", disse ele, quase se
desculpando.
"Jesus H ... Oh, eu peço desculpas. Você ainda é uma espécie de
ministro?"
Ele sorriu com isso, embora as marcas de exaustão gravassem
riachos em seu rosto. "Eu não acho que isso desapareça", disse
ele. "Mas se você ia dizer Jesus H. Roosevelt Cristo, eu não me
importo. É apropriado para a situação, pode-se dizer."
E em poucas palavras, ele me contou como Buck MacKenzie
terminou na Escócia em 1980, apenas para viajar de volta com
Roger em um esforço para encontrar Jem. "Há muito mais do
que isso", garantiu-me ele. "Mas o fim de tudo – por enquanto –
é que o deixamos na Escócia. Em 1739. Com... hã... sua mãe."
"Com Geillis?" Minha voz aumentou involuntariamente e
Mandy se contraiu e fez pequenos ruídos irritados. Eu dei uns
tapinhas nela rapidamente e a coloquei em uma posição mais
confortável.
"Você a conheceu?"
7
A memória de Claire falhou? Ela mesma apontou para esse nome na árvore genealógica de Roger.
8
Isso foi discutido no livro 5.
28

"Sim. Hã... mulher interessante."


Havia uma caneca no chão ao lado dele, ainda meio cheia de
cerveja; eu podia sentir o cheiro do fermento e do lúpulo
amargo. Ele a pegou e parecia estar se perguntando se devia
beber ou despejar sobre a cabeça, mas de qualquer forma tomou
um gole e a pousou.
"Eu – nós, na verdade, queríamos que ele viesse conosco. Claro
que havia o risco, mas conseguimos encontrar pedras preciosas
suficientes, pensei que poderíamos fazer isso, todos juntos. E...
sua esposa está aqui." Ele acenou vagamente em direção à
floresta distante. "Na América, quero dizer. Agora."
"Eu... vagamente me lembro disso, de sua genealogia." Embora
a experiência tenha me ensinado os limites da crença em
qualquer coisa registrada no papel.
Roger acenou com a cabeça, bebeu mais cerveja e pigarreou com
força. Sua voz estava rouca e rachada de cansaço.
"Acho que você o perdoou por..." Eu podia ver a linha da corda
e a sombra da pequena cicatriz que deixei nele quando fiz a
traqueotomia de emergência com um canivete e o bocal âmbar
de um cachimbo.
"Eu o amava", disse ele simplesmente. Um leve sorriso apareceu
através da barba negra e do véu do cansaço. "Quantas vezes você
tem a chance de amar alguém que deu a você seu sangue, sua
vida, mesmo que esse alguém nunca soubesse quem você
poderia ser, ou mesmo se você existiria?"
"Bem, você tem a chance quando tem filhos", eu disse, e
coloquei a mão suavemente na cabeça de Jem. Estava quente, os
cabelos sujos, mas macios sob meus dedos.
Ele e Mandy cheiravam a cachorrinhos, um doce e espesso
perfume animal, rico em inocência.
29

"Sim", Roger disse suavemente. "Você tem."


O farfalhar da grama e as vozes atrás de nós anunciaram o
retorno dos engenheiros – eles estavam imersos em uma
discussão sobre encanamentos internos.
"Sim, talvez", Jamie estava dizendo, em dúvida. "Mas eu não sei
se podemos conseguir todas as coisas que você precisa antes que
o tempo frio chegue. Eu acabei de começar a cavar uma nova
latrina, no entanto; que vai nos ajudar por enquanto. Então, na
primavera..."
Brianna disse algo em resposta que eu não entendi, e então eles
estavam lá, pegos no halo do fogo, tão parecidos de se olhar com
a luz brilhando em seus rostos de nariz comprido e cabelos
ruivos. Roger se mexeu, colocando os pés sob ele, e eu me
levantei com cuidado, Mandy mole como sua boneca de pano,
Esmeralda.
"É maravilhoso, mamãe", disse Bree, e me abraçou, seu corpo
forte e ereto e suavemente poderoso, envolvendo-me, com
Mandy entre nós.
Ela me segurou com força por um momento, depois abaixou a
cabeça e beijou minha testa. "Eu amo você", ela disse, sua voz
suave e rouca. "Eu também amo você, querida", eu disse com o
nó na garganta e toquei seu rosto, tão cansado e radiante.
Ela deu um passo para trás e pegou Mandy de mim, balançando-
a contra um ombro com facilidade advinda da prática.
"Vamos lá, parceiro", ela disse para Jem, cutucando-o
gentilmente com a ponta da bota. "É hora de dormir."
Ele fez um ruído sonolento e interrogativo, começou a erguer a
cabeça e desabou de novo, profundamente adormecido.
"Dinna fash9, vou pegá-lo." Roger acenou para Jamie se afastar

9
Não se preocupe, não se estresse... Em scots, no original. Frase típica ainda comum nos dias de hoje.
30

e, abaixando-se, rolou Jem em seus braços e se levantou com um


grunhido. "Vocês querem descer também?", ele perguntou.
"Posso voltar e cuidar do fogo, assim que colocar Jem no chão."
Jamie balançou a cabeça, negando, e colocou um braço em volta
de mim. "Não, não se incomode. Talvez possamos nos sentar um
pouco e ver o fogo se extinguir."
Eles desceram lentamente a colina, cambaleando como gado,
com o acompanhamento de barulhos soando da bolsa de
Brianna.
A cabana dos Higgins, onde eles passariam a noite, aparecia
como um pequeno vislumbre no escuro; Amy devia ter acendido
uma lanterna e repuxado a pele que cobria a janela.
Jamie ainda segurava o cinzel na mão; os olhos fixos na filha
que ele recebeu de volta e que desaparecia no caminho. Ele
ergueu o cinzel e o beijou, como uma vez beijou o cabo de sua
adaga diante de mim, e eu sabia que isso também era uma
promessa sagrada. Ele guardou o cinzel em seu sporran10 e me
pegou nos braços, de costas para ele, para que ambos
pudéssemos vê-los está estarem fora de vista. Ele apoiou o
queixo no topo da minha cabeça.
"O que você está pensando, Sassenach?", ele perguntou
suavemente. "Eu vi seus olhos; há nuvens neles."
Eu me acomodei contra ele, sentindo seu calor como um baluarte
nas minhas costas. "As crianças", eu disse, hesitante. "Eles...
quero dizer, é maravilhoso que eles estejam aqui. Pensar que
nunca mais os veríamos e de repente..."
Engoli em seco, engolfada pela alegria estonteante de me
encontrar – nos encontrar –, mais uma vez e de forma
inesperada, como parte daquela coisa notável, uma família. "Ser

10
Uma pequena bolsa usada em volta da cintura para pendurar na frente do kilt como parte do vestuário
masculino das Highlands escocesas.
31

capaz de ver Jem e Mandy crescerem... ter Bree e Roger


novamente... "
"Aye", ele disse, um sorriso em sua voz. "Mas?"
Demorei um pouco para organizar meus pensamentos e colocá-
los em palavras.
"Roger disse que algo ruim havia acontecido, em seu próprio
tempo. E você sabe que deve ter sido algo verdadeiramente
terrível."
"Sim", ele disse, sua voz endurecendo um pouco. "Brianna me
disse o mesmo. Mas, sabe, a nighean, eles já viveram nesta
época antes. Eles sabem, quero dizer, como é, como será."
A guerra em curso, ele quis dizer, e eu apertei suas mãos
envolvendo minha cintura. “
"Eu não acho que eles saibam", eu disse suavemente, olhando
para baixo através da ampla encosta. Eles já haviam
desaparecido na escuridão. "Ninguém sabe se não esteve lá." Na
guerra.
"Aye", ele disse, e me segurou, em silêncio, sua mão
descansando na lateral direita do meu corpo, sobre a cicatriz do
ferimento feito por uma bala de mosquete em Monmouth11.
"Aye", ele disse novamente após um longo momento. "Eu sei do
que você está falando, Sassenach. Achei que meu coração fosse
explodir quando vi Brianna e soube que era realmente ela, e os
filhos... mas por maior que fosse a alegria disso... veja, eu senti
falta deles cruelmente, mas eu poderia me consolar em pensar
que eles estavam seguros. Agora..."
Ele parou e eu senti seu coração batendo contra mim, lento e
constante. Ele respirou fundo e a fogueira estourou de repente,

11
A Batalha de Monmouth (28.06.1778, em Nova Jérsei) foi abordada no livro 8 e nela ocorreu a quase
morte de Claire e a renúncia dramática de Jamie à sua patente para ficar ao lado dela.
32

um bolsão de resina de pinheiro explodindo em faíscas que


desapareceram na noite. Um pequeno lembrete da guerra que
estava crescendo, lentamente, ao nosso redor.
"Eu olho para eles", ele disse, "e meu coração de repente se
enche de..."
"Terror", eu sussurrei, segurando firme nele. "Puro terror."
"Aye", ele disse. "Isso."

-.-.-

PERMANECEMOS MAIS UM POUCO, observando a


escuridão abaixo, deixando a alegria retornar. A janela da
cabana dos Higgins ainda brilhava suavemente do outro lado da
clareira abaixo.
"Nove pessoas naquela cabana", eu disse. Respirei fundo a noite
fria e cheirando a abetos, visualizando o calor úmido e fugaz de
nove corpos adormecidos, ocupando cada centímetro horizontal
do lugar, com um caldeirão e uma chaleira fumegando na lareira.
Na segunda janela floresceu um brilho.
"Quatro deles são nossos", disse Jamie, e riu baixinho. "Espero
que o lugar não queime." Alguém colocara lenha nova no fogo
e fagulhas começavam a dançar acima da chaminé.
"Não vai queimar."
Ele me virou para encará-lo. "Eu quero você, a nighean", disse
ele suavemente. "Você vai se deitar comigo? Pode ser a última
vez que teremos privacidade por algum tempo."
Abri minha boca para dizer: "Claro!" e, em vez disso, bocejei
enormemente. Eu coloquei a mão na minha boca, removendo-a
para dizer: "Oh, querido Senhor. Eu realmente não quis fazer
isso."
33

Ele estava rindo, quase silenciosamente. Sacudindo a cabeça, ele


endireitou a colcha amarrotada em que eu estava sentada,
ajoelhou-se sobre ela e estendeu a mão para mim. "Venha deitar
comigo e observe as estrelas um pouco, Sassenach. Se você
ainda estiver acordada em cinco minutos, vou tirar suas roupas
e tomá-la nua ao luar."
"E se eu dormir em cinco minutos?" Tirei meus sapatos e peguei
sua mão.
"Então, não vou me incomodar em tirar suas roupas."
O fogo estava queimando mais fraco, mas ainda constante; eu
podia sentir sua brisa quente tocar meu rosto e erguer meus
cabelos na altura das têmporas. As estrelas eram grandes e
brilhantes como diamantes derramados em algum roubo
celestial. Eu compartilhei essa observação com Jamie, que fez
um barulho escocês muito depreciativo em resposta, mas depois
se deitou ao meu lado, suspirando de prazer com a vista. "Sim,
elas são bonitas. Conhece Cassiopeia, aquela ali?"
Eu olhei para a parte aproximada do céu indicada por seu aceno,
mas neguei com a cabeça. "Eu sou uma completa ignorante em
constelações. Posso ver a Ursa Maior e geralmente reconheço o
Cinturão de Órion, mas dane-se se o vejo no momento. E as
Plêiades estão lá em algum lugar, não estão?"
"Eles fazem parte de Taurus–ali perto do caçador12." Ele
estendeu um braço, apontando. "E essa é Camelopardalis."
"Oh, não seja bobo. Não existe uma constelação de girafas13, eu
teria ouvido falar disso." "Bem, não está realmente no céu agora,
mas há uma. E, pensando bem, é mais formidável do que o que

12
Constelação de Órion. As “Três Marias”, assim conhecidas no Brasil, as três estrelas alinhadas que
vemos no céu, são o “cinto” do caçador.
13
Embora não seja uma das 48 constelações de Ptolomeu no seu tratado astronômico do século 2, o
Almagesto. Camelopardalis, a Girafa, é uma constelação do hemisfério celestial norte, que foi introduzida
apenas em 1612 ou 1613 por Petrus Plancius.
34

aconteceu hoje?"
"Não", eu disse suavemente. "Não, não é."
Ele colocou um braço em volta de mim e eu rolei para colocar
minha face em seu peito, e observamos as estrelas em silêncio,
ouvindo o vento nas árvores e a batida lenta de nossos corações.
Pareceu muito tempo depois quando Jamie se mexeu e suspirou.
"Eu não acho que já tenha visto essas estrelas, não desde a noite
em que concebemos Faith."
Eu levantei minha cabeça surpresa. Raramente mencionávamos
Faith – a nossa filha natimorta, mas incrustada em nossos
corações – um para o outro, embora cada um de nós conhecesse
os sentimentos do outro.
"Você sabe quando ela foi concebida? Eu não sei."
Ele passou a mão lentamente pelas minhas costas, os dedos
parando para esfregar círculos na parte inferior. Se eu fosse um
gato, teria agitado meu rabo suavemente sob seu nariz. "Sim,
bem, acho que posso estar errado, mas sempre pensei que foi a
noite em que fui para a sua cama na abadia. Havia uma janela
alta no final do corredor e vi as estrelas quando cheguei até você.
Achei que poderia ser um sinal para mim – ver meu caminho
com clareza."
Por um momento, vasculhei minhas memórias. Aquela época,
na Abadia de Ste. Anne, quando ele chegou tão perto de uma
morte autoescolhida, era um tempo que eu raramente revisitava.
Foi uma época terrível. Dias cheios de medo e confusão,
correndo de um para o outro, noites negras de desespero e
desolação. E, no entanto, quando olhei para trás, encontrei um
punhado de imagens vívidas, destacando-se como letras
iluminadas em uma página de latim antigo. O rosto do padre
Anselm, pálido à luz de velas, seus olhos quentes de compaixão
e, em seguida, o brilho crescente de admiração quando ele ouviu
35

minha confissão. As mãos do abade, tocando a testa, os olhos,


os lábios e as palmas de Jamie, delicadas como o toque de um
colibri, ungindo seu sobrinho moribundo com a sagrada benção
da Extrema Unção. O silêncio da capela escura onde eu orei por
sua vida e ouvi minha oração ser respondida.
E entre esses momentos houve a noite em que acordei do meu
sono e o encontrei de pé, um fantasma pálido ao lado da minha
cama, nu e congelando, tão fraco que mal conseguia andar, mas
cheio mais uma vez de vida e uma determinação teimosa que
nunca o deixaria.
"Você se lembra de Faith, então?" Minha mão descansou
levemente no meu estômago, relembrando. Ele nunca a tinha
visto, ou a sentiu mais do que chutes e empurrões aleatórios
dentro de mim.
Ele beijou minha testa brevemente e olhou para mim. "Você
sabe que sim. Você não?"
"Sim. Eu só queria que você me falasse mais."
"Oh, eu pretendia." Ele se apoiou em um cotovelo e me puxou
para que eu pudesse compartilhar sua manta.
"Você se lembra disso também?", eu perguntei, puxando para
baixo a dobra de pano que ele colocou sobre mim.
"Compartilhar sua manta comigo, na noite em que nos
conhecemos?"
"Para evitar que você congelasse? Sim." Ele beijou minha nuca.
"Eu estava congelando, na abadia. Eu me cansei tentando andar,
e você não me deixava comer nada, então eu estava morrendo
de fome e..."
"Oh, você sabe que isso não é verdade! Você..."
"Eu mentiria para você, Sassenach?"
"Sim, seu maldito, você mentiria", eu disse. "Você faz isso o
36

tempo todo. Mas não importa agora. Você estava congelando e


morrendo de fome, e de repente decidiu que, em vez de pedir
ao irmão Paul14 um cobertor ou uma tigela de algo quente,
você deveria cambalear nu por um corredor de pedra escura e ir
para a cama comigo."
"Algumas coisas são mais importantes do que comida,
Sassenach." Sua mão se estabeleceu firmemente na minha
bunda. "E descobrir se eu poderia ir para a cama com você
novamente era mais importante do que qualquer outra coisa
naquele momento. Achei que, se não pudesse, simplesmente
caminharia para a neve e não voltaria."
"Naturalmente, não lhe ocorreu esperar mais algumas semanas
para recuperar as forças."
"Bem, eu tinha quase certeza de que poderia caminhar apoiado
nas paredes e faria o resto deitado, então por que esperar?"
A mão na minha bunda estava acariciando distraidamente agora.
"Você se lembra da ocasião."
"Foi como fazer amor com um bloco de gelo."
Tinha sido mesmo. Isso também apertou meu coração com
ternura e me encheu de uma esperança que eu pensei que nunca
conheceria novamente. "Embora você tenha descongelado
depois de um tempo."
Só um pouco, no começo. Eu apenas o embalei contra mim,
tentando o máximo possível gerar calor corporal. Eu tirei minha
camisola, com pressa para obter o máximo de contato pele a pele
possível. Lembrei-me da curva dura e acentuada de seu osso do
quadril, as saliências de sua coluna e as cicatrizes recentes e
sulcadas sobre elas.
"Você não era muito mais do que pele e ossos." Eu me virei,
14
Vamos supor que havia um irmão Paul, mas esse nome não foi citado entre os irmãos da Abadia no
livro 1.
37

puxei-o para baixo ao meu lado agora e o segurei mais perto,


querendo a garantia de seu calor atual contra o frio da memória.
Ele estava quente. E vivo. Muito vivo.
"Você colocou sua perna sobre mim para me impedir de cair da
cama, eu me lembro disso.", ele disse.
Ele esfregou minha perna lentamente, e eu podia ouvir o sorriso
em sua voz, embora seu rosto estivesse escuro com o fogo atrás
dele, faiscando em seus cabelos.
"Era uma cama pequena." E era mesmo – uma estreita cama
monástica, mal cabendo uma pessoa de tamanho normal. E,
mesmo faminto como estava, ele ocupava muito espaço. "Eu
queria rolar você de costas, Sassenach, mas eu estava com medo
de jogar nós dois no chão, e... bem, eu não tinha certeza se
conseguiria me segurar."
Ele estava tremendo de frio e fraqueza. Mas, eu percebi só agora,
provavelmente com medo também. Peguei a mão que
descansava em meu quadril e levantei-a até minha boca,
beijando os nós dos seus dedos. Eles estavam frios com o ar da
noite e seguraram o calor dos meus.
"Você conseguiu", eu disse suavemente, e rolei de costas,
trazendo-o comigo.
"Apenas o suficiente", ele murmurou, encontrando seu caminho
através das camadas de colcha, manta xadrez, camisa e
combinação15. Ele soltou um longo suspiro, e eu também.
"Oh, Jesus, Sassenach." Ele se moveu, só um pouco. "O que eu
senti, então", ele sussurrou. "Pensar que nunca mais teria você e
então... "
Ele conseguiu, e foi por pouco. "Eu pensei – que faria isso nem
que fosse a última coisa que eu fizesse..."

15
E, afinal, não a teve nua ao luar...
38

"Foi quase, maldito", eu sussurrei de volta, e segurei seu


traseiro, firme e redondo. "Eu realmente pensei que você tinha
morrido, por um momento, até que você começou a se mover."
"Eu pensei que ia morrer", disse ele, com um suspiro de riso.
"Oh, Deus, Claire... "
Ele parou por um momento, abaixou-se e pressionou sua testa
contra a minha. Ele tinha feito isso naquela noite também, com
a pele fria e feroz de desespero, e eu senti que estava soprando
minha própria vida nele então, sua boca tão macia e aberta,
cheirando levemente a cerveja misturada com ovo que era tudo
o que ele podia segurar no estômago.
"Eu queria...", ele sussurrou. "Eu queria você. Tinha que ter
você. Mas uma vez que eu estava dentro de você, eu queria..."
Ele suspirou então, profundamente, e se moveu mais fundo. "Eu
pensei que morreria disso, naquele momento. E eu queria.
Queria ir, enquanto eu estava dentro de você."
Sua voz havia mudado, ainda suave, mas de alguma forma
distante, desligada – e eu sabia que ele havia se afastado do
momento presente, voltado para a escuridão de pedra fria e o
pânico, o medo e a necessidade avassaladora.
"Eu queria me derramar dentro de você e deixar que fosse a
última vez que eu tomasse, mas então comecei, e eu sabia que
não era para ser assim – que eu viveria, mas que me manteria
dentro de você para sempre. Que eu estava lhe dando uma
criança."
Ele havia voltado ao falar, de volta ao agora e a mim. Eu o
segurei forte, grande, sólido e forte em meus braços, mas
tremendo, indefeso enquanto ele se entregava. Senti minhas
próprias lágrimas quentes brotarem e deslizarem frias pelos
meus cabelos.
39

Depois de um tempo, ele se mexeu e rolou de lado. Uma grande


mão ainda descansava levemente na minha barriga.
"Eu consegui, sim?" ele disse, e sorriu um pouco, a luz do fogo
suave em seu rosto.
"Você conseguiu", eu disse, e, puxando a manta de volta sobre
nós, eu me deitei com ele, contente na luz da chama morrendo e
das estrelas eternas.
40

UM DIA DE VINHO AZUL16

A PURA EXAUSTÃO FEZ com que Roger dormisse como um


morto, apesar do fato de que a cama dos MacKenzie consistia
em duas mantas esfarrapadas que Amy Higgins tinha tirado
apressadamente de sua bolsa de trabalho e de que os cobertores
eram as roupas externas dos MacKenzie.
Era uma cama quente, porém, com o calor do fogo abafado de
um lado e o calor dos corpos de duas crianças e uma esposa
aconchegante do outro, e ele caiu no sono como um homem
caindo em um poço, com tempo para não mais do que uma breve
oração – embora profunda – de gratidão.
Conseguimos. Obrigado.
Ele acordou com a escuridão e o cheiro de madeira queimada e
um penico recém-usado, sentindo um frio repentino atrás de si.
Ele tinha se deitado de costas para o fogo, mas rolou durante a
noite, e agora via o brilho sombrio das últimas brasas a alguns
metros de seu rosto, veias vermelhas em um banco de cinzas e
madeira carbonizada. Ele colocou a mão para trás: Brianna não
estava. Havia uma vaga pilha que devia ser Jem e Mandy do
outro lado da colcha; o resto da cabana ainda estava sonolento,
o ar grosso com a respiração pesada.
"Bree?", ele sussurrou, erguendo-se sobre um cotovelo. Ela
estava perto – uma sombra sólida com o traseiro apoiado na
parede perto da lareira, ficando em um pé para puxar uma meia.
Ela abaixou o pé e se agachou ao lado dele, os dedos acariciando

16
Não foi encontrada referência a esse tipo de vinho compatível com o conhecimento da época (nem
mesmo dos anos 1960). Existe um tipo de vinho azul produzido com uma combinação de uvas e
pigmentos, mas só a partir de 2016. Podemos deixar a imaginação então criar esse tipo de azul.
41

seu rosto.
"Eu vou caçar com Pa”, ela sussurrou, inclinando-se para perto.
"Mamãe vai cuidar das crianças se você tiver coisas para fazer
hoje."
"Sim. Onde você conseguiu..." Ele passou a mão pela lateral de
seu quadril; ela vestia uma grossa camisa de caça e calças largas,
muito remendadas; ele podia sentir a aspereza da costura sob a
palma da mão.
"Elas são de Pa", disse ela, e beijou-o, o matiz da luz do fogo
brilhando em seus cabelos. "Volte a dormir. Só vai amanhecer
daqui a uma hora."
Ele a observou caminhar levemente entre os corpos no chão,
botas na mão, e uma corrente de ar frio serpenteou pela sala
quando a porta abriu e fechou silenciosamente atrás dela. Bobby
Higgins disse algo com uma voz arrastada pelo sono, e um dos
meninos se sentou e disse: "O quê?" com uma voz clara e
assustada, e então caiu de volta em sua colcha, adormecido mais
uma vez17.
O ar fresco desapareceu na confortável fumaça e a cabana
adormeceu novamente. Roger não. Ele se deitou de costas,
sentindo paz, alívio, excitação e trepidação em proporções
aproximadamente iguais. Eles realmente conseguiram. Todos
eles. Ele continuou contando sua família, compulsivamente.
Todos os quatro. Aqui e seguros. Memórias e sensações
fragmentadas percorreram sua mente; ele as deixou fluir por ele,
sem tentar detê-las ou pegar mais do que uma imagem aqui e ali:
o peso de uma pequena barra de ouro em sua mão suada, o
estômago embrulhado quando a deixou cair e a viu deslizar para

17
Essa é a primeira cabana que Jamie construiu.Parece que é um único cômodo, mas sabemos que existe
um pequeno quarto extra nos fundos, também construído por Jamie no livro 4. Talvez o quarto extra
seja realmente pequeno e não o utilizam para dormir. Durante o tempo em que Jamie e Claire ficaram
lá após o incêndio, a falta de espaço para todos também era citada.
42

longe no deck inclinado. O vapor quente de mingau com uísque,


uma fortificação contra uma manhã gelada escocesa. Brianna
pulando cuidadosamente um lance de escada com um só pé, o
enfaixado levantado e as palavras My Dame Has A Lame, Tame
Crane 18 surgindo irresistivelmente em sua mente.
O cheiro dos cabelos de Buck, acre e sujo, quando eles se
abraçaram à beira do cais para a despedida final. Dias e noites
frios, intermináveis e indistinguíveis no compartimento de carga
oscilante do Constance a caminho de Charles Town19, os quatro
amontoados em um canto atrás da carga, ensurdecidos pelo
barulho da água contra o casco, enjoados demais para sentir
fome, cansados demais até para ficarem apavorados,
hipnotizados pela água subindo no porão, observando-a subir
centímetro por centímetro, espirrando neles a cada ondulação
repugnante; tentando compartilhar seu parco armazenamento de
calor corporal para manter as crianças vivas...
Ele soltou o ar, que não percebeu que estava segurando, colocou
as mãos no chão de madeira sólida de cada lado, fechou os olhos
e deixou tudo escorrer. Sem olhar para trás. Eles tomaram sua
decisão, e decidiram vir para cá. Para o santuário.
E agora?
Ele morou nesta cabana uma vez, por muito tempo. Agora ele
supôs que construiria uma nova. Jamie disse a ele na noite
anterior que as terras que o governador Tryon lhe dera ainda
eram suas, registradas em seu nome. Uma pequena emoção de
antecipação cresceu em seu coração. O dia estava diante dele; o
começo de uma nova vida. O que ele devia fazer primeiro?

18
Minha Dama Tem uma Garça, Mansa e Manca. Cantinga infantil, originalmente do século XVII,
que se acredita ter sido composta por Matthew Shite. A música cita partes do corpo e quem canta e as
crianças devem fazer uma coreografia acompanhando as falas.
19
Atualmente chamada Charleston, é a segunda maior cidade da Carolina do Sul. Fundada em 1670,
adotou a nova grafia de seu nome em 1783.
43

"Papai!" uma voz com muita saliva sussurrou alto em seu


ouvido. "Papai, eu tenho que ir ao banheiro!"
Ele se sentou sorrindo, empurrando mantos e camisas para fora
do caminho. Mandy estava pulando de um pé para o outro em
agitação,
"Sim, querida", ele sussurrou de volta, e pegou a mão dela,
quente e pegajosa. "Vou levá-la à latrina. Tente não pisar em
ninguém"
-.-.-
MANDY JÁ HAVIA encontrado algumas latrinas antes e não
se incomodou com esta. Quando Roger abriu a porta, porém,
uma enorme aranha caiu repentinamente do lintel e ficou
pendurada, balançando como um prumo, a centímetros de seu
rosto. Ele e Mandy gritaram – bem, ela gritou; seu próprio
esforço não foi mais do que um grasnido, mas um grasnido viril,
pelo menos.
Ainda não havia luz de verdade; a aranha era uma bolha negra
com algo como pernas, mas ainda mais alarmante por isso.
Alarmada por sua vez com seus gritos, a aranha correu de volta
em seu fio para qualquer reentrância invisível que normalmente
ocupava.
"Não vou entrar!", Mandy disse, recuando contra suas pernas.
Roger compartilhava de seus sentimentos, mas levá-la para fora
da trilha para os arbustos no escuro trazia a ameaça não apenas
de outras aranhas (e possivelmente maiores), ou cobras e
morcegos, mas também das coisas que caçavam no crepúsculo.
Panteras, por exemplo...
Aidan McCallum os havia entretido antes com uma estória sobre
o encontro com uma painter20 a caminho da latrina... desta

20
Forma dialetal (escocesa e irlandesa) de escrever ‘panther’ – pantera.
44

latrina.
"Está tudo bem, querida." Ele se abaixou e a pegou. "Ela já se
foi. Ela tem medo de nós, não vai voltar."
"Eu assustei!"
"Eu sei, docinho. Não se preocupe; eu não acho que ela vai
voltar, mas vou matá-la, se voltar."
"Cum uma arma?", ela perguntou esperançosa.
"Sim", disse ele com firmeza, e agarrando-a contra o peito, ele
se abaixou sob o lintel, lembrando-se tarde demais da própria
história de Claire sobre a enorme cascavel empoleirada no
assento de sua privada...
Felizmente, porém, nada desagradável ocorreu, exceto ele quase
perder Mandy no buraco quando ela se soltou dele para tentar
limpar seu traseiro com uma espiga de milho seca. Suando um
pouco, apesar do ar frio da manhã, ele voltou para a cabana e
descobriu que, em sua ausência, os Higgins – e Jem e Germain
– haviam se levantado em massa.
Amy Higgins piscou levemente ao ser informada de que Brianna
tinha saído para caçar, mas quando Roger acrescentou que ela
tinha ido com o pai, o olhar de surpresa se transformou em um
aceno de aceitação que fez Roger sorrir por dentro. Ele estava
feliz em ver que a personalidade de Ele Mesmo21 ainda
dominava a Cordilheira, apesar de sua longa ausência.
Claire dissera a ele na noite passada que eles só voltaram do exílio
no mês anterior.
"Há muitas pessoas novas que vieram se estabelecer desde a
última vez que estivemos aqui?" ele perguntou a Bobby,
sentando-se no banco ao lado de seu anfitrião, uma tigela de

21
Em inglês: Himself, a forma respeitosa como colonos e criados se referem ao Laird, na Escócia, ao
senhor das terras ou chefe do clã – é isso o que Jamie é para seus inquilinos também na América.
45

mingau na mão.
"Um monte deles", Bobby assegurou-lhe. "Vinte famílias, pelo
menos. Um pouco de leite e mel, Pregador?"
Ele empurrou o pote de mel amigavelmente na direção de Roger
– sendo um inglês, Bobby tinha permissão para tais frivolidades
em seu café da manhã, em vez da severa pitada de sal escocesa.
"Oh, desculpe, eu deveria ter perguntado, você ainda é um
Pregador?"
Claire também havia perguntado a ele ontem à noite, mas ainda
assim era uma surpresa.
"Eu sou, sim", ele disse, e estendeu a mão para a jarra de leite.
Na verdade, tanto a pergunta quanto a resposta fizeram seu
coração acelerar. Ele era um ministro. Ele só não tinha certeza
de quão oficial ele era.
É verdade que ele havia batizado, casado e enterrado o povo da
Cordilheira por um ano ou mais, e pregou para eles, bem como
fez os ofícios menores de um ministro, e todos pensavam nele
como tal. Sem dúvida ainda o faziam. Por outro lado, ele não
havia sido formalmente ordenado como ministro presbiteriano.
Não exatamente.
"Talvez eu convoque o novo pessoal", disse ele casualmente.
"Você sabe se eles são católicos ou não?"
Esta foi uma pergunta retórica; todos na Cordilheira conheciam
a natureza das crenças de todos os outros – e não hesitavam em
discuti-las, muitas vezes na sua presença.
Amy pegou uma caneca de café de chicória perto da tigela dele
e sentou-se para seu próprio mingau salgado com um suspiro de
alívio.
"Quinze famílias católicas", disse ela. "Doze presbiterianas e
46

três da Blue Light22 – metodistas, sim? Você vai querer cuidar


desse povo, Pregador. Humm ... oh, e talvez dois anglicanos...
Orrie!"
Ela saltou, bem a tempo de interromper Orrie, de seis anos, que
estava furtivamente, embora de maneira instável, levantando o
penico cheio acima da cabeça com a clara intenção de esvaziá-
lo sobre Jem, que estava sentado de pernas cruzadas perto do
fogo, piscando sonolento para o sapato em sua mão.
Assustado com o grito de sua mãe, Orrie deixou cair o penico –
mais ou menos errando o alvo em Jem, mas despejando seu
conteúdo fétido no fogo recém-avivado – e correu para a porta.
Sua mãe o perseguiu, parando apenas para pegar uma vassoura.
Gritos gaélicos enfurecidos e uivos agudos de terror sumiram na
distância.
Jem, para quem a manhã estava sendo particularmente odiosa,
olhou para as fétidas faíscas ainda cuspindo na lareira, torceu o
nariz e se levantou. Ele cambaleou por um momento, depois
caminhou até a mesa e sentou-se ao lado de Roger, bocejando.
Houve silêncio. Uma tora carbonizada quebrou repentinamente
na lareira e uma rajada de fagulhas voou da confusão, como um
comentário final sobre o estado das coisas.
Roger pigarreou. “O homem, que nasce da mulher, tem tantos
problemas quanto o número de faíscas que voam”23, observou.
Bobby lentamente desviou a cabeça da contemplação da lareira
para olhar para Roger. Seus olhos estavam avermelhados pela
fumaça, e a velha marca de assassino em sua bochecha estava
branca na luz fraca da cabana. "Bem colocado, Pregador”, ele
disse.

22
Ramo do protestantismo, era formado basicamente por oficiais da Marinha. ‘Blue Light. Isso será
explicado mais tarde.
23
Uma modificação do versículo bíblico Jó 5:7
47

"Bem-vindo de volta."
-.-.-
ERA O QUE SUA MÃE chamava de um dia de vinho azul. O
ar e o céu eram uma coisa só e cada respiração era uma
intoxicação. Folhas de castanheiro e carvalho crepitavam a cada
passo, o cheiro forte como o das agulhas de pinheiro lá em cima.
Eles estavam escalando a montanha, armas nas mãos, e Brianna
Fraser MacKenzie estava conectada com o dia.
Seu pai segurou um galho de cicuta para ela, e ela se abaixou
para se juntar a ele.
"Feur-milis", disse ele, apontando para a ampla campina que se
abria diante deles. Você ainda se lembra de alguma coisa do
Gàidhlig, não é, moça? "
"Você disse algo sobre a grama", disse ela, remexendo
apressadamente em seus armários mentais. "Mas eu não sei a
outra palavra."
"Grama doce. É como chamamos esse tipo de pequeno prado.
Bom pasto, mas uma subida muito grande para a maior parte do
rebanho, e você não vai querer deixá-los aqui por dias sem
cuidados, por causa das painters e dos ursos."
Todo o prado ondulou, as pontas verde-prateadas de milhões de
hastes de grama em movimento, pegando o sol da manhã. Aqui
e ali, borboletas brancas e amarelas se cruzavam, e do outro lado
da grama houve um estrondo repentino quando um grande
ungulado24 desapareceu no mato, deixando galhos balançando
em seu rastro.
"Uma certa concorrência também, pelo que vejo", disse ela,
acenando com a cabeça em direção ao local onde o animal havia
desaparecido. Ela ergueu uma sobrancelha, querendo perguntar

24
Animais com casco: cavalos, porcos, etc.
48

se eles não deveriam prosseguir, mas presumiu que seu pai tinha
algum bom motivo para não o fazer, já que ele não fez nenhum
movimento.
"Sim, alguma", disse ele, e virou para a direita, movendo-se ao
longo da borda das árvores que circundavam a campina. "Mas
os cervos não se alimentam da mesma forma que o gado ou as
ovelhas, pelo menos não se o pasto for bom. Era um macho
velho", ele acrescentou displicentemente por cima do ombro.
"Não precisamos matar estes no verão; há carne melhor e
abundante."
Ela ergueu as duas sobrancelhas, mas o seguiu sem fazer
comentários. Ele virou a cabeça e sorriu para ela.
"Onde há um, provavelmente há mais, nesta época do ano. As
corças e os novos filhotes começam a se reunir em pequenos
rebanhos. Ainda não está nem perto do cio, mas o macho está
sempre pensando nisso. Ele sabe muito bem onde elas estão."
Ele acenou com a cabeça na direção do veado desaparecido.
Ela reprimiu um sorriso, relembrando algumas das opiniões não
censuradas de sua mãe sobre os homens e as funções da
testosterona. Ele viu, no entanto, e deu a ela um olhar meio
pesaroso de diversão, sabendo o que ela estava pensando, e o
fato de fazer isso enviou uma pequena pontada doce em seu
coração.
"Sim, bem, sua mãe está certa sobre os homens", disse ele com
um encolher de ombros. "Tenha isso em mente, a nighean", ele
acrescentou, mais sério.
Ele se virou então, erguendo o rosto para a brisa. "Eles estão
perto do prado, mas a favor do vento em relação a nós; não
chegaremos perto, a não ser que escalemos e desçamos sobre
eles do outro lado do cume." Ele acenou com a cabeça em
direção ao oeste, no entanto, através da campina. "Eu pensei que
49

talvez devêssemos parar na casa do Jovem Ian primeiro, se você


não se importar?"
"Me importar? Não!" Ela sentiu uma onda de alegria com a
menção de seu primo. "Alguém perto da fogueira na noite
passada disse que ele está casado agora – com quem ele se
casou?"
Ela estava mais do que curiosa sobre a esposa de Ian. Uns dez
anos atrás, ele a pedira em casamento e, embora tivesse sido um
pedido desesperado – e completamente ridículo, para completar
– ela estava ciente de que a ideia de ir para a cama com ela não
era desagradável para ele. Mais tarde, como dois adultos – ela
casada e ele divorciado de sua esposa índia –, uma sensação de
atração física foi silenciosamente reconhecida entre eles... e tão
silenciosamente foi rejeitada.
Ainda assim, havia ecos de afeto entre eles, e ela esperava gostar
da esposa desconhecida de Ian.
Seu pai riu. "Você vai gostar dela, moça. Rachel Hunter é o
nome dela; ela é uma quacre25."
A visão de uma mulherzinha sem graça com olhos baixos veio a
ela, mas seu pai percebeu o olhar de dúvida em seu rosto e
balançou a cabeça.
"Ela não é o que você pensaria. Ela diz o que pensa. E Ian está
louco de amor por ela – e ela por ele. "
"Oh. Isso é bom!" Ela foi sincera, mas seu pai lançou-lhe um
olhar divertido, com uma sobrancelha levantada. Ele não disse
mais nada, porém, e se virou para abrir caminho através das
ondas ondulantes de grama perfumada.

25
Do inglês quaker: membros de um dos vários grupos religiosos, derivados do movimento protestante
fundado por George Fox (1624-1691), que rejeita os sacramentos eclesiásticos e prega a paz, vendo a luz
divina de Cristo em cada ser humano. Denominam-se a Sociedade dos Amigos ou, simplesmente,
Amigos.
50

-.-.-
A CABANA DE IAN era encantadora. Não que fosse muito
diferente de qualquer outra cabana na montanha que Brianna já
tivesse visto, mas estava situada no meio de um bosque de
álamos, e as folhas agitadas transformavam a luz do sol em uma
rajada de luz e sombra, de modo que a cabana tinha um ar de
magia sobre si – como se pudesse desaparecer nas árvores
completamente se você desviasse o olhar.
Quatro cabras e dois cabritos enfiaram a cabeça por cima do
cercado e começaram a saudar com cordialidade, mas ninguém
saiu para ver quem eram os visitantes.
"Eles foram para algum lugar", comentou Jamie, semicerrando
os olhos para ver a casa. "Isso é um bilhete na porta?"
Era: um pedaço de papel preso à porta com um longo espinho,
com uma linha de escrita incompreensível que Bree finalmente
reconheceu como gaélico.
"A esposa do jovem Ian é escocesa?", ela perguntou, franzindo
a testa com as palavras. Só o que ela conseguiu distinguir foi –
ela pensou – "MacCree" e "cabra".
"Não, é de Jenny", disse seu pai, sacando os óculos e
examinando a nota. "Ela diz que ela e Rachel estão fora para
uma colcha nos MacCree e se Ian voltar para casa antes delas,
ele deve ordenhar as cabras e reservar metade do leite para o
queijo."
Como se tivesse ouvido seus nomes serem chamados, um coro
de méhéhés altos veio do cercado das cabras.
"Evidentemente, Ian ainda não está em casa", observou Brianna.
"Elas precisam ser ordenhadas agora, você acha? Eu
provavelmente me lembro como fazer."
Seu pai sorriu com o pensamento, mas balançou a cabeça. "Não,
51

Jenny deve tê-las ordenhado não mais do que algumas horas


atrás – elas ficarão bem até a noite."
Até aquele momento, ela supôs vagamente que Jenny era o nome
de uma garota contratada – mas ao ouvir o tom em que Jamie o
dissera, ela piscou.
"Jenny. Sua irmã Jenny?", ela disse, incrédula. "Ela está aqui?"
Ele parecia ligeiramente assustado. "Sim, ela está. Sinto muito,
moça, nunca parei para pensar que você não sabia disso. Ela –
espere." Ele ergueu a mão, olhando para ela atentamente. "As
cartas. Nós escrevemos – bem, Claire escreveu, principalmente
– mas..."
"Nós as pegamos." Ela se sentiu sem fôlego, a mesma sensação
que teve quando Roger trouxe de volta a caixa de madeira com
o nome completo de Jemmy gravado na tampa, e eles a abriram
para encontrar as cartas. E a sensação avassaladora de alívio,
alegria e tristeza quando ela abriu a primeira carta para ver as
palavras: "Estamos vivos ..."
O mesmo sentimento passou por ela agora, e as lágrimas a
pegaram inconscientemente, de modo que tudo ao seu redor
tremeluziu e turvou, como se a cabana, seu pai e ela própria
estivessem prestes a desaparecer completamente, dissolvidos na
luz tremeluzente dos álamos. Ela fez um pequeno som sufocado,
e o braço de seu pai a envolveu, segurando-a junto a ele.
"Nunca pensamos que iríamos vê-la novamente", ele sussurrou
em seu com o rosto encostado nos cabelos dela, sua própria voz
embargada. "Nunca, a leannan26. Eu estava com medo – tanto
medo de que você não tivesse alcançado a segurança, que... você
tivesse morrido, todos vocês, perdidos em – naquilo lá. E nunca
saberíamos. "

26
Querida. Gaélico
52

"Não podíamos dizer a vocês." Ela ergueu a cabeça de seu


ombro e enxugou o nariz com as costas da mão. "Mas vocês
poderiam nos dizer. Essas cartas... saber que vocês estavam
vivos. Quero dizer...", ela parou de repente e, piscando para
afastar a última das lágrimas, viu Jamie desviar o olhar, piscando
para empurrar de volta as suas.
"Mas não estávamos", disse ele suavemente. "Estávamos
mortos. Quando você leu essas cartas."
"Não, vocês não estavam", disse ela ferozmente, segurando a
mão dele. "Eu não ia ler as cartas todas de uma vez. Eu as poupei
– porque, enquanto ainda houvesse cartas fechadas... vocês
ainda estariam vivos."
"Nada disso importa, moça", ele disse finalmente, muito
suavemente. Ele ergueu a mão dela e beijou seus nós dos dedos,
seu hálito quente e leve em sua pele. "Você está aqui. Nós
também. Nada mais importa."
-.-.-

BRIANNA ESTAVA CARREGANDO a espingarda da família,


enquanto seu pai carregava seu rifle bom. Ela não atiraria em
pássaros ou pequenos animais, pois haveria uma chance de
assustar veados por perto. Foi uma subida íngreme e ela se
pegou bufando, o suor começando a escorrer atrás de suas
orelhas, apesar do dia frio. Seu pai escalou, como sempre, como
uma cabra da montanha, sem a menor aparência de tensão, mas
– para seu desgosto – percebeu que ela lutava e chamou-a de
lado, para uma pequena saliência.
"Não estamos com pressa, a nighean", disse ele, sorrindo para
ela. "Tem água aqui." Ele estendeu a mão, com uma hesitação
óbvia, e tocou sua bochecha ruborizada, rapidamente retirando
sua mão.
53

"Desculpe, moça", disse ele, e sorriu. "Ainda não estou


acostumado com a ideia de que você é real."
"Eu sei o que você quer dizer", ela disse suavemente. Engolindo
em seco, ela estendeu a mão e tocou seu rosto, quente e bem
barbeado, olhos oblíquos de um azul profundo como os dela.
"Och", ele disse baixinho, e gentilmente a trouxe para seus
braços novamente. Eles ficaram assim, sem falar, ouvindo o
grito dos corvos circulando no alto e o gotejar da água nas
rochas.
"Trobhad agus òl, a nighean. Venha e beba", disse ele, soltando-
se tão suavemente quanto ele a agarrou e virando-a em direção
a uma pequena torrente que descia por uma fenda entre duas
rochas.
A água estava gelada e tinha gosto de granito e o leve cheiro
forte de terebintina de agulhas de pinheiro.
Ela matou sua sede e estava jogando água nas bochechas
vermelhas quando sentiu seu pai fazer um movimento repentino.
Ela congelou imediatamente, olhando para ele. Ele também
ficou congelado, mas ergueu um pouco os olhos e o queixo,
sinalizando para a encosta acima deles.
Ela viu – e ouviu – então, um ruído lento de terra caindo que se
soltou e atingiu a saliência ao lado de seu pé com um pequeno
barulho de seixos. Isso foi seguido por silêncio, exceto pelo
chamado dos corvos. Isso foi mais alto, ela pensou, como se os
pássaros estivessem mais perto. Eles veem alguma coisa, ela
concluiu.
Eles estavam mais perto. Um corvo voou de repente,
relampejando irritantemente perto de sua cabeça, e outro gritou
lá de cima.
Uma explosão repentina do afloramento acima quase a fez
54

perder o equilíbrio, e ela agarrou um punhado de plantinhas que


se projetavam da rocha por reflexo. Bem a tempo, também, pois
houve um baque e um barulho de deslizamento acima. E, no que
pareceu ocorrer no mesmo instante, algo enorme passou em uma
chuva de poeira e cascalho, quicando para fora da borda ao lado
dela em uma explosão de respiração, sangue e impacto antes de
pousar com um estrondo nos arbustos abaixo.
"Abençoado Michael nos defenda", disse seu pai em gaélico,
persignando-se. Ele olhou para baixo, para a moita abaixo –
Jesus, o que quer que fosse, ainda estava vivo – e depois para
cima.
"Weh!" disse uma voz masculina apaixonada lá de cima. Ela não
reconheceu a palavra, mas ela conhecia a voz, e a alegria
explodiu sobre ela.
"Ian!", ela chamou. Houve um silêncio total vindo de cima,
exceto pelos corvos, que estavam cada vez mais preocupados.
"Abençoado Michael, defenda-nos", disse uma voz assustada
em gaélico, e um instante depois seu primo Ian caiu em sua
saliência estreita, onde ele se equilibrou sem dificuldade
aparente.
"É você, ela disse. "Oh, Ian!"
"A charaid27!" Ele a agarrou e apertou com força, rindo sem
acreditar. "Deus, é você!" Ele recuou por um instante para dar
uma boa olhada para confirmar, riu novamente de alegria, a
beijou com vontade e a apertou novamente. Ele cheirava a pele
de gamo, mingau e pólvora, e ela podia sentir o coração dele
batendo forte contra seu próprio peito.
Ela vagamente ouviu um barulho de arranhar e, quando eles se
soltaram, ela percebeu que seu pai havia caído da saliência e

27
Amiga ou amigo, em gaélico
55

estava meio deslizando pela pedra abaixo dela, em direção ao


arbusto onde o cervo – deve ter sido um cervo – caiu.
Ele parou por um momento na borda da vegetação arbustiva –
os arbustos ainda estavam se debatendo, mas os movimentos do
cervo ferido estavam ficando menos violentos – então puxou sua
adaga e, com um comentário murmurado em gaélico, entrou
cautelosamente no mato.
"São só roseiras espinhentas lá embaixo", disse Ian, olhando por
cima do ombro dela. "Mas acho que ele vai chegar a tempo de
cortar a garganta. A Dhia28, foi um tiro ruim e eu estava com
medo de... – mas, que diabos – quero dizer, como é que você
está aqui?"
Ele se afastou um pouco, seus olhos correndo sobre ela, o canto
de sua boca se erguendo ligeiramente quando ele notou suas
calças e sapatos de couro para caminhada, desbotados como os
dele, os olhos voltaram para o rosto dela, agora preocupados. "O
seu homem não está com você? E os bairns29?"
"Sim, eles estão", ela assegurou. "Roger provavelmente está
martelando coisas; Jem estará ajudando e Mandy atrapalhando.
Quanto ao que estamos fazendo aqui... " O dia e a alegria do
reencontro a deixaram ignorar o passado recente, mas a
necessidade final de explicação trouxe a enormidade de tudo de
repente sobre ela.
"Dinna fash, prima", Ian disse rapidamente, vendo seu rosto.
"Eu posso esperar. Você acha que se lembra de como atirar em
um peru? Há um bando deles dançando para lá e para cá como a
dança folclórica Strip the Willow30 em um ceilidh31, a menos de
28
Oh, Deus. Em gaélico
29
Crianças. No dialeto scots, uma das três línguas faladas na Escócia, além do inglês e do gaélico
(gàidhlig).
30
Uma dança country escocesa, um tipo de quadrilha, em que os casais formam filas e vão girando
alternadmente com parceiros de outras duplas, com o objetivo de que o casal na ponta de fila seja
deslocado até o final dela. ..
31
Um evento social em que escoceses ou irlandeses se reúnem para cantar músicas folclóricas, para
56

um quarto de milha daqui. "


"Oh, talvez." Ela havia apoiado a arma contra a face do penhasco
enquanto bebia; a queda do cervo a havia derrubado e ela a
pegou, verificando. A queda tinha derrubado a pederneira e ela
a recolocou. A agitação lá embaixo havia parado, e ela podia
ouvir a voz de seu pai, em fragmentos acima do vento, dizendo
a oração da estripação.
"Mas não seria melhor ajudar Pa com o veado?"
"Ah, não é nada além de um cervo de um ano, ele vai fazer isso
antes que você possa piscar." Ian se inclinou para fora da
saliência, gritando. "Estou levando Bree para atirar em perus, a
bràthair mo mhàthair32!"
Silêncio mortal vindo de baixo, e então um monte de farfalhar e
a cabeça desgrenhada de Jamie apareceu de repente acima das
roseiras. Seus cabelos estavam soltos e emaranhados; seu rosto
estava profundamente vermelho e sangrando em vários lugares,
assim como seus braços e mãos, e ele parecia aborrecido.
"Ian", ele disse, em tons moderados, mas em uma voz alta o
suficiente para ser ouvida facilmente acima dos sons da floresta.
"Mac Ian... mac Ian...!"
"Estaremos de volta para ajudar a carregar a carne!", Ian gritou
de volta. Ele acenou alegremente e, agarrando a arma de caça,
chamou a atenção de Bree e ergueu o queixo. Ela olhou para
baixo, mas seu pai havia desaparecido, deixando os arbustos
balançando em agitação.
Ela havia perdido muito de seu olhar treinado para aquela região
selvagem, ela descobriu; o penhasco parecia intransponível para
ela, mas Ian escalou tão facilmente quanto um babuíno, e depois
de um momento de hesitação, ela o seguiu, muito mais

danças tradicionais e para contar estórias.


32
‘Irmão da minha mãe’, literalmente, em gaélico. Ou, simplesmente, tio.
57

lentamente, escorregando de vez em quando, criando pequenas


chuvas de detritos quando tateava as reentrâncias que seu primo
tinha usado.
"Ian mac Ian mac Ian?", ela perguntou, alcançando o topo e
parando para tirar terra de seus sapatos. Seu coração batia com
uma força desagradável. "É o mesmo que eu chamar Jem de
Jeremiah Alexander Ian Fraser MacKenzie quando estou irritada
com ele?"
"Algo assim", Ian disse, encolhendo os ombros. "Ian, filho de
Ian, filho de Ian... a ideia é apontar que você é uma vergonha
para seus antepassados, ken?" Ele estava vestindo uma camisa
de chita esfarrapada e imunda, mas as mangas tinham sido
rasgadas, e ela viu uma grande cicatriz branca em forma de
estrela de quatro pontas na curva de seu ombro nu e bronzeado.
"O que foi isso?" disse ela, acenando com a cabeça. Ele olhou
para o ombro e fez um gesto de desprezo, virando-se para
conduzi-la através do pequeno cume.
"Ah, não foi nada", disse ele. "Um bastardo abenaki atirou em
mim com uma flecha, em Monmouth. Denny cortou para mim
alguns dias depois... Denny é Denzell Hunter", ele adicionou,
vendo seu olhar de incompreensão. "Irmão de Rachel. Ele é
médico, como sua mãe.
"Rachel!" ela exclamou. "Sua esposa?"
Um enorme sorriso se espalhou por seu rosto.
"Ela é", ele disse simplesmente. "Taing do Dhia. " Então olhou
rapidamente para ela para ver se ela havia entendido.
"Lembro-me de graças a Deus", garantiu ela. "E um pouco mais.
Roger passou a maior parte da viagem desde a Escócia
renovando nosso Gàidhlig. Pa também me disse que Rachel é
uma quacre? Ela fez uma pergunta, esticando-se para pisar nas
58

pedras de um pequeno riacho.


"Sim, ela é." Os olhos de Ian estavam fixos nas pedras, mas ela
achou que ele falava com um pouco menos de alegria e orgulho
do que antes. Ela não questionou; se houvesse um conflito – e
ela não conseguia ver como não haveria, devido ao que sabia
sobre seu primo e o que achava que sabia sobre os quacres – não
era hora de fazer perguntas.
Não que tais considerações impedissem Ian.
"Da Escócia?", ele disse, virando a cabeça para olhar para ela
por cima do ombro. "Quando?" Então seu rosto mudou de
repente, quando ele percebeu a ambiguidade do quando, e fez
um gesto de desculpas, descartando a questão.
"Saímos de Edimburgo em março", disse ela, optando pela
resposta mais simples por enquanto. "Eu conto o resto mais
tarde."
Ele acenou com a cabeça, e por um tempo eles caminharam, às
vezes juntos, às vezes com Ian à frente, encontrando trilhas de
veados ou cortando para cima para contornar um espesso
arbusto. Ela ficou feliz em segui-lo, para que pudesse olhar para
ele sem envergonhá-lo com seu escrutínio.
Ele mudou – não é de se admirar – ainda alto e muito magro,
mas endurecido, um homem totalmente voltado para si mesmo,
os longos músculos de seus braços bem definidos sob a pele.
Seus cabelos castanhos estavam mais escuros, trançados e
amarrados com uma tira de couro e adornados com o que
pareciam ser penas de peru muito frescas amarradas na trança.
Para boa sorte? ela imaginou. Ele pegou o arco e a aljava que
havia deixado no topo do penhasco, e a aljava balançava
suavemente agora contra suas costas.
Mas a expressão de um homem bem-feito não aparece apenas
em seu rosto, ela pensou, entretida. Está em seus membros e
59

articulações, está curiosamente nas articulações de seus pulsos


e quadris, / Em seu andar, na postura do pescoço, no fletir da
cintura e dos joelhos, que as vestes não escondem...33
O poema sempre convocou Roger para ela, mas agora abrangia
Ian e seu pai também, por mais diferentes que os três fossem.
À medida que subiam e o bosque se abria, a brisa aumentou e se
refrescou, e Ian parou, acenando para ela com um pequeno
movimento de seus dedos.
"Você está ouvindo?", ele respirou em seu ouvido.
Ela ouvia, e os pelos ondularam agradavelmente por sua
espinha. Gritos pequenos e ásperos, quase como um cachorro
latindo. E mais longe, uma espécie de ronronar intermitente,
algo entre um grande gato e um pequeno motor.
"Melhor tirar as meias e esfregar as pernas com o barro", Ian
sussurrou, apontando para as meias de lã dela. "Suas mãos e
rosto também."
Ela assentiu, encostou a arma em uma árvore e arrancou as
folhas secas de um pedaço de terra, úmido o suficiente para
esfregar em sua pele. Ian, sua própria pele quase da cor de suas
peles de gamo, não precisava dessa camuflagem. Ele se moveu
silenciosamente enquanto ela estava ungindo as mãos e o rosto,
e quando ela olhou para cima, ela não conseguiu vê-lo por um
momento.
Então houve uma série de sons como a dobradiça de uma porta
enferrujada balançando de um lado para outro, e de repente ela
viu Ian, parado atrás de uma árvore de liquidâmbar a cerca de
quinze metros de distância.
A floresta pareceu morrer por um instante, os arranhões suaves
33
Versos do poema Eu canto o corpo elétrico, de 1855, escrito pelo poeta norte-americano Walt
Whitman (1819 - 1892) e publicado na coletânea Folhas de Relva. Ela já havia citado esse poema no
livro 8, cap 95.
60

e os murmúrios das folhas cessaram. Em seguida, houve um


gorgolejar raivoso e ela virou a cabeça o mais devagar que pôde,
para ver um peru macho adulto cutucar a cabeça azul-claro para
fora da grama e parecer atento, olhando de um lado para o outro,
as barbelas vermelho-brilhantes balançando, procurando pelo
desafiante.
Ela olhou para Ian, as mãos em concha em sua boca, mas ele não
se moveu ou fez nenhum som. Ela prendeu a respiração e olhou
para o peru, que emitiu outro gorgolejar alto – este ecoado por
outro tom à distância. O peru que ela observava olhou para trás
em direção àquele som, ergueu a cabeça e gritou, ouviu por um
momento e depois voltou a mergulhar na grama. Ela olhou para
Ian; ele percebeu o movimento dela e negou com a cabeça
levemente.
Eles esperaram pelo espaço de dezesseis respirações lentas – ela
contou – e então Ian gorgolejou novamente. O macho saltou da
grama e caminhou por um pedaço de chão coberto de folhas,
sangue nos olhos, penas do peito estufadas e cauda aberta e
vibrando. Ele parou por um momento para permitir que o bosque
admirasse sua magnificência, então começou a se pavonear
lentamente de um lado para o outro, emitindo gritos ásperos e
agressivos.
Movendo apenas os globos oculares, ela olhou para frente e para
trás entre o macho empertigado e Ian, que sincronizou seus
movimentos com os do peru, deslizando o arco de seu ombro,
congelando, trazendo uma flecha à mão, congelando e,
finalmente, encaixando a flecha quando o pássaro deu sua volta
final.
Ou o que deveria ter sido sua volta final. Ian dobrou seu arco e,
no mesmo movimento, lançou sua flecha e soltou um grito
assustado e humano demais quando um objeto grande e escuro
caiu da árvore acima dele. Ele recuou e o peru por pouco não
61

caiu em sua cabeça. Ela podia ver agora, uma fêmea, penas
afofadas de medo, correndo com o pescoço estendido pelo
terreno aberto em direção ao macho igualmente assustado, que
murchou com o choque.
Por reflexo, ela agarrou sua espingarda, puxou-a e atirou. Ela
errou e os dois perus desapareceram em um canteiro de
samambaias, fazendo ruídos que pareciam um pequeno martelo
batendo em um bloco de madeira.
Os ecos morreram e as folhas das árvores voltaram ao murmúrio.
Ela olhou para o primo, que olhou para o arco, depois para o
terreno aberto, para onde sua flecha estava absurdamente
espetada entre duas pedras. Ele olhou para ela e os dois caíram
na gargalhada.
“Sim, bem,” ele disse filosoficamente. "Isso é o que ganhamos
por deixar o tio Jamie colher rosas sozinho."
-.-.-
BRIANNA ESFREGOU E LIMPOU o cano e enfiou um pedaço
de estopa em uma nova rodada de chumbo grosso. Foi difícil
impedir que sua mão tremesse.
"Desculpe, eu o perdi", ela disse.
"Por quê?", Ian olhou para ela, surpreso. "Quando você está
caçando, você tem sorte de conseguir um tiro em dez. Você sabe
disso. Além disso, eu também o perdi."
“Só porque um peru caiu na sua cabeça", ela disse, mas riu. "Sua
flecha está arruinada?"
"Sim", disse ele, mostrando a ela a flecha quebrada que ele
recuperou das rochas. "A cabeça serve, no entanto." Ele tirou a
ponta de ferro afiada e colocou-a em seu sporran, jogou a flecha
fora e se levantou. "Não teremos outra chance naquele lote,
mas... o que há de errado, moça?"
62

Ela tentou enfiar a vareta no cano, mas errou e a jogou voando.


"Como eles chamam quando você está muito excitado para
acertar um cervo – febre do cervo macho?" disse ela, fazendo
pouco caso enquanto ia buscar a vara. "Isso foi febre de peru,
suponho."
"Oh, sim", ele disse, e sorriu, mas seus olhos estavam fixos nas
mãos dela. "Há quanto tempo você não dispara uma arma,
prima?"
"Não muito tempo", ela disse laconicamente. Ela não esperava
que tudo fosse voltar. "Talvez seis, sete meses."
"O que você estava caçando então?" ele perguntou, a cabeça
inclinada para o lado.
Ela olhou para ele, tomou uma decisão e, empurrando a vareta
com cuidado para dentro, virou-se para encará-lo.
"Uma gangue de homens que estava se escondendo em minha
casa, esperando para me matar e levar meus filhos", disse ela.
As palavras, secas como eram, soaram ridículas,
melodramáticas.
Ambas as suas sobrancelhas emplumadas subiram.
"Você os pegou?" Seu tom era tão interessado que ela riu, apesar
das lembranças. Ele poderia estar perguntando se ela havia
pescado um peixe grande.
"Não, infelizmente. Eu atirei no pneu do caminhão deles e em
uma das janelas da minha própria casa. Eu não os peguei. Mas
então", ela acrescentou, com afetada casualidade, "eles também
não me pegaram ou as crianças."
Seus joelhos ficaram fracos de repente e ela se sentou com
cuidado em um tronco caído.
Ele acenou com a cabeça, aceitando o que ela disse com uma
naturalidade que a teria surpreendido – fosse qualquer outro
63

homem.
"É por isso que você está aqui, aye?" Ele olhou ao redor, quase
inconscientemente, como se esquadrinhasse a floresta em busca
de possíveis inimigos, e ela se perguntou de repente como seria
viver com Ian, sem saber se você estava falando com o escocês
ou com o moicano – e agora ela estava realmente curiosa sobre
Rachel.
"Principalmente, sim", ela respondeu. Ele pegou seu tom e olhou
bruscamente para ela, mas acenou com a cabeça novamente.
"Você vai voltar, então, para matá-los?" Isso foi dito a sério, e
foi com esforço que ela controlou a raiva que a atingiu quando
pensou em Rob Cameron e seus cúmplices malditos. Não era o
medo ou o flashback que fazia suas mãos tremerem agora; era a
memória do desejo irresistível de matar que a possuiu quando
ela tocou o gatilho.
"Eu gostaria", ela disse brevemente. "Não podemos.
Fisicamente, quero dizer."
Ela balançou a mão, empurrando tudo para longe. "Eu contarei
a você mais tarde; ainda nem falamos com Pa e Mama sobre
isso. Só chegamos ontem à noite." Como se lembrada do longo
e duro caminho para cima através das passagens na montanha,
ela bocejou de repente, enormemente.
Ian riu e ela balançou a cabeça, piscando.
"Eu me lembro de Pa dizendo que você tem um bebê?", ela
perguntou, mudando firmemente de assunto.
O enorme sorriso voltou.
"Sim", disse ele, com o rosto brilhando de tanta alegria que ela
sorriu também. "Eu tenho um filho pequenino. Ele ainda não tem
seu nome verdadeiro, mas o chamamos de Oggy. De
Oglethorpe", explicou ele, vendo o sorriso dela se alargar ao
64

ouvir o nome. "Estávamos em Savannah quando ele começou a


aparecer. Mal posso esperar que você o veja!"
"Nem eu", disse ela, embora a conexão entre Savannah e o nome
Oglethorpe lhe escapasse. "Nós deveríamos..."
Um ruído distante a interrompeu, e Ian ficou de pé
instantaneamente, olhando. "Aquele era Pa?" ela perguntou.
"Eu penso que sim." Ian deu-lhe a mão e a colocou de pé,
pegando seu arco quase no mesmo movimento. "Vem!"
Ela agarrou a arma recém carregada e correu, sem se preocupar
com arbustos, pedras, galhos de árvores, riachos ou qualquer
outra coisa. Ian deslizou pela floresta como uma cobra em
movimento rápido; ela abriu caminho atrás dele, quebrando
galhos e passando a manga em seu rosto para limpar seus olhos.
Duas vezes Ian parou repentinamente, agarrando seu braço
enquanto ela se lançava em direção a ele. Juntos, eles ficaram
ouvindo, tentando ainda parar corações e respirações ofegantes
tempo suficiente para ouvir qualquer coisa acima do sussurro da
floresta.
Na primeira vez, depois do que pareceram minutos agonizantes,
eles pegaram uma espécie de barulho estridente acima do vento,
diminuindo para grunhidos.
"Porco?", ela perguntou, entre haustos de ar. Os porcos
selvagens podem ser grandes e muito perigosos.
Ian balançou a cabeça, engolindo.
"Urso", disse ele, e, respirando fundo, agarrou a mão dela e
puxou-a para uma corrida.
Na segunda vez que pararam para se orientar, não ouviram nada.
"Tio Jamie!", Ian gritou, assim que teve fôlego suficiente para
fazê-lo. Nada, e Brianna gritou: “Pa!” o mais alto que podia –
um som lamentavelmente pequeno e fútil na imensidão da
65

montanha. Eles esperaram, gritaram, esperaram de novo – e


depois do grito final e do silêncio, correram novamente, Ian
liderando o caminho de volta para as roseiras e o cervo morto.
Eles pararam cambaleando no terreno alto acima da depressão,
com o peito lutando para respirar. Brianna agarrou o braço de
Ian.
"Tem alguma coisa lá embaixo!"
Os arbustos tremiam. Não como durante a luta pela morte do
cervo, mas definitivamente tremendo, perturbado pelos
movimentos intermitentes de algo claramente maior do que
Jamie Fraser. Dali, ela podia ouvir claramente um grunhido e a
baba de tendões rasgando, ossos quebrando... e mastigando.
"Oh, Cristo", Ian disse baixinho, mas não longe o suficiente, e o
terror enviou uma onda de tontura negra por seu peito. Apesar
disso, ela engoliu o máximo de ar que pôde e gritou: “Paaaa!”
mais uma vez.
"Och, agora você aparece", disse uma voz escocesa profunda e
irascível de algum lugar abaixo de seus pés. "Espero que você
tenha um peru para a panela, moça, pois não teremos veado esta
noite."
Ela se jogou no chão, a cabeça pendurada na beira do penhasco,
tonta de alívio ao ver seu pai três metros abaixo, de pé na
saliência estreita para a qual ele a havia conduzido antes. Sua
carranca relaxou quando a viu acima.
"Tudo bem, então, moça?", ele perguntou.
"Sim", ela disse, "mas nenhum peru. O que diabos aconteceu
com você?"
Ele estava desgrenhado e arranhado, manchas e filetes de sangue
seco marcando seus braços e rosto, e um grande rasgo em uma
das mangas. Seu pé direito estava descalço e sua canela estava
66

fortemente manchada de sangue. Ele olhou para baixo da


saliência e a carranca voltou.
"Dia gam chuideachadh – Deus me ajude", disse ele, sacudindo
o queixo com a perturbação abaixo. "Eu tinha acabado de tirar a
pele do cervo de Ian quando seu demônio gordo e peludo saiu
dos arbustos e o tirou de mim."
"Cachd34", disse Ian em breve desgosto. Ele estava agachado ao
lado de Brianna, examinando as roseiras. Ela desviou a atenção
do pai por um momento e vislumbrou algo muito grande e preto
entre os arbustos, trabalhando em algo de maneira concentrada;
os arbustos estalaram e estremeceram ao atacar o veado, e ela
avistou uma perna de casco rígida e trêmula entre as folhas.
A visão do urso, por mais rápido que fosse, causou uma descarga
de adrenalina tão visceral que fez seu corpo inteiro se contrair e
sua cabeça ficar leve. Ela respirou o mais fundo que pôde,
sentindo o suor escorrer pelas costas, as mãos molhadas no metal
da arma.
Ela voltou a si a tempo de ouvir Ian perguntando a Jamie o que
havia acontecido com sua perna.
"Eu o chutei na cara", Jamie respondeu secamente, com um
olhar de desgosto para os arbustos. "Ele se ofendeu e tentou
arrancar meu pé, mas só acertou meu sapato."
Ian estremeceu ligeiramente ao lado dela, mas sabiamente não
riu.
"Sim. Você quer uma mãozinha, tio? "
"Eu não," Jamie respondeu laconicamente. "Estou esperando o
mac na galladh35 sair. Está com meu rifle."
"Ah", Ian disse, apreciando apropriadamente a importância

34
Não encontramos o significado.
35
‘Filho da p*ta’ em gaélico
67

disso.
O rifle de seu pai era muito bom, um rifle comprido da
Pensilvânia, ele dissera a ela. Obviamente, ele estava preparado
para esperar o tempo que fosse necessário – e provavelmente era
muito mais teimoso do que o urso, ela pensou, com um pequeno
gorgolejo interior.
"Vocês podem muito bem continuar", Jamie disse, olhando para
eles. "Pode demorar um pouco."
"Eu provavelmente poderia atirar daqui", Bree ofereceu,
avaliando a distância. "Eu não posso matá-lo, mas uma carga de
tiro de pássaro pode fazê-lo ir embora."
Seu pai fez um barulho escocês em resposta a isso, e um violento
gesto de prevenção.
"Não tente", disse ele. "Tudo o que você vai fazer é talvez
enlouquecê-lo – e se eu posso descer essa encosta, aquela besta
certamente pode subir. Agora fora daqui vocês; estou ficando
com cãibra no pescoço falando e olhando para o alto para
vocês."
Bree deu a Ian um olhar de soslaio e ele devolveu o fantasma de
um aceno de cabeça, reconhecendo sua relutância em deixar seu
pai descalço em uma saliência a não mais de seis metros de um
urso faminto.
"Faremos companhia a você por um tempo", anunciou ele – e
antes que Jamie pudesse protestar, Ian agarrou um robusto
rebento de pinheiro e se jogou no penhasco, onde seus dedos
calçados com mocassins imediatamente encontraram um apoio.
Brianna, seguindo seu exemplo, inclinou-se e largou sua
espingarda nas mãos de seu pai antes de encontrar seu próprio
caminho para baixo, mais lentamente.
"Estou surpreso que você não tenha resolvido tudo com seu
68

punhal, tio Jamie", Ian estava dizendo. "Bear-Killer, Matador de


Urso, não é assim que os tuscaroras chamaram você?"
Bree ficou satisfeita ao ver que Jamie havia recuperado a
serenidade e dirigido a Ian apenas um olhar de pena.
"Você conhece um ditado sobre como um homem fica mais
sábio com a idade?", ele perguntou.
"Sim", Ian respondeu, parecendo perplexo.
"Bem, se você não ficar mais sábio, provavelmente não vai
envelhecer", disse Jamie, encostando a arma no penhasco. "E eu
tenho idade suficiente para pensar melhor antes de lutar contra
um urso com uma adaga pela carcaça de um cervo. Você tem
algo para comer, moça?”
Ela tinha esquecido completamente a pequena bolsa sobre seu
ombro, mas agora ela a tirou e tateou dentro, removendo um
pequeno pacote de bannocks36 e queijo fornecido por Amy
Higgins37.
"Sente-se", disse ela, entregando-o ao pai. "Eu quero olhar sua
perna."
"Não está ruim", disse ele, mas ele estava com muita fome para
discutir ou simplesmente condicionado a aceitar o tratamento
médico não solicitado da mãe dela, pois ele se sentou e esticou
a perna ferida.
Não estava ruim, como ele disse, mas havia uma ferida com uma
perfuração profunda na panturrilha dele. com alguns arranhões
longos ao lado dela. Estes presumivelmente foram feitos quando
ele puxou apressadamente o pé da boca do urso, ela pensou,
sentindo-se um pouco tonta com a visão. Ela não tinha nada para

36
Tipo de pão achatado, sem fermentação, típico da Escócia. Tradicionalmente, eram feitos de farinha de
cevada ou de aveia, fritos ou assados em formas de pedra sobre as lareiras. Atualmente, usa-se fermento
em pó e podem ser fritos em frigideira comum no fogão.
37
Nesse mesmo capítulo, Amy demonstra surpresa com a saída cedo de Brianna para caçar. Será que
Amy apenas deixou os bannocks e o queijo na mesa para o caso dos Mackenzies precisarem?
69

usar, exceto um grande lenço, mas ela o encharcou na água


gelada do riacho que descia pela face do penhasco e limpou o
ferimento o melhor que pôde.
Você pode pegar tétano com a mordida de um urso?, ela se
perguntou, esfregando e enxaguando. Ela se certificou de ter
todas as vacinas das crianças em dia – incluindo tétano – antes
de partirem, mas a imunização contra o tétano só servia por
quanto tempo, dez anos? Algo assim.
O ferimento perfurante ainda escorria sangue, mas não jorrava.
Ela torceu o pano e amarrou-o com firmeza, mas não muito
apertado em torno de sua panturrilha.
"Tapadh leat, a gràidh38", disse ele, e sorriu para ela. " Sua mãe
não poderia ter feito melhor. Aqui." Ele havia guardado dois
bannocks e um pouco de queijo para ela, e ela se recostou no
penhasco entre ele e Ian, surpresa ao descobrir que estava com
muita fome, e ainda mais surpresa ao perceber que ela não estava
preocupada com o fato de que eles estavam conversando nas
proximidades de um grande animal carnívoro que sem dúvida
poderia matar todos eles.
"Os ursos são preguiçosos", Ian disse a ela, observando a direção
de seu olhar. "Se ele – é um urso macho, tio? – tem um belo
cervo lá, ele não vai se incomodar em subir até aqui para um
lanche magricela. Falando nisso", ele se inclinou sobre ela para
se dirigir a Jamie, "ele comeu sua sandália?"
"Eu não fiquei para assistir", disse Jamie, seu temperamento
parecia ter se acalmado por causa da comida. "Mas espero que
não. Afinal, com uma pilha perfeitamente boa de tripas
fumegantes de veado bem à mão, por que você se importaria
com um pedaço de couro velho? Ursos não são tolos."
Ian acenou com a cabeça e recostou-se no penhasco, esfregando
38
Muito obrigado, querida. Em gaélico.
70

os ombros suavemente na pedra aquecida pelo sol.


"Então, prima", ele disse para Bree. "Você disse que me contaria
como foi quando voltou para casa. Como provavelmente ainda
temos um pouco de tempo para passar... "
Ele acenou com a cabeça em direção aos ruídos agora rítmicos
de carne dilacerada e mastigação abaixo.
Seu estômago afundou abruptamente, e seu pai, vendo seu rosto,
deu um tapinha em seu joelho.
"Não se preocupe, a leannan. Há tempo suficiente. Talvez você
prefira contar a todos, quando Roger Mac estiver com você."
Ela hesitou por um momento; ela havia visualizado muitas
vezes, contando tudo a seus pais, imaginou-se e Roger contando
a história juntos, revezando-se... mas vendo a intenção nos olhos
de seu pai, percebeu tardiamente que não poderia ter contado sua
parte disso honestamente na frente de Roger – ela nem tinha
contado tudo a ele quando o encontrou novamente, vendo o quão
furioso ele estava com os detalhes que ela havia compartilhado.
"Não", ela disse lentamente. "Eu posso contar a vocês agora.
Pelo menos minha parte nisso." E lavando as últimas migalhas
de bannock com um punhado de água fria, ela começou.
Sim, sua mãe conhecia os homens, ela pensou, vendo o punho
de Ian cerrar em seu joelho, e ouvindo o rosnado baixo e
involuntário que seu pai fazia ao ouvir sobre Rob Cameron
encurralá-la no escritório em Lallybroch. Ela não disse a eles o
que ele disse, as ameaças grosseiras, as ordens – nem o que ela
tinha feito, tirando a calça jeans sob seu comando, em seguida,
cortando-o no rosto com o jeans pesado antes de atacá-lo e
derrubá-lo para o chão. Ela mencionou quebrar a caixa de
madeira com cartas sobre a cabeça dele, e os dois fizeram
pequenos humphs de satisfação.
71

"De onde veio essa caixa?", ela se interrompeu para perguntar


ao pai. "Roger a encontrou na garagem de seu pai adotivo – é
um lugar onde você estaciona um carro, quero dizer",
acrescentou ela quando viu um olhar de confusão tocar o rosto
de Jamie. "Não importa, era uma espécie de galpão de
armazenamento. Mas nós sempre nos perguntamos onde você
colocaria isso?"
"Och, isso?" O rosto de Jamie relaxou um pouco. "Roger Mac
me disse como seu pai era sacerdote e viveu por muitos anos em
sua casa paroquial em Inverness. Fizemos três39 caixas – deu um
bom trabalho copiar todas as cartas, veja – e eu as selei e enviei
a três bancos diferentes em Edimburgo, com instruções de que
em tal e tal ano, cada caixa deveria ser enviada ao reverendo
Wakefield na casa paroquial em Inverness. Esperávamos que
pelo menos uma aparecesse. Coloquei o nome completo de
Jemmy em cada uma delas, pensando que isso significaria algo
para você, e para mais ninguém. Vá em frente – você esmagou
Cameron com a caixa e então...?"
"Não o atordoou completamente, mas passei por ele e fui para o
corredor. Então corri até o cabideiro do corredor – não o mesmo
que seus pais têm", disse ela a Ian, e então se lembrou do que
uma das últimas cartas havia dito. "Oh Deus! Seu pai, Ian ... eu
sinto muito!"
"Oh. Sim", ele disse, olhando para baixo. Ela agarrou seu
antebraço, e ele colocou sua própria mão grande sobre a dela e
apertou levemente. "Dinna fash, a nighean. Eu o sinto comigo,
de vez em quando. E tio Jamie trouxe minha mãe de volta da
Escócia – oh, Jesus." Ele parou, olhando para ela com os olhos
arregalados. "Ela não sabe que você está aqui!"
"Ela vai descobrir em breve", disse Jamie irritado. "Você vai me

39
Fica a dúvida: o que aconteceu com as outras duas caixas?
72

dizer o que diabos aconteceu com esse idiota do Cameron?"


"Não breve o suficiente", disse ela severamente, e terminou a
história, incluindo os conspiradores de Cameron e o tiroteio no
O.K. Curral.
"Então, peguei Jem e Mandy e fui para a Califórnia – do outro
lado da América – para pensar no que fazer e, finalmente, decidi
que não havia escolha; tínhamos que tentar encontrar Roger –
ele havia deixado uma carta que me dizia que estava na Escócia
e quando. E assim fizemos, e..." Ela gesticulou amplamente para
a selva ao redor deles. "Aqui estamos."
Jamie respirou fundo pelo nariz, mas não disse nada. Nem Ian,
embora ele acenasse com a cabeça brevemente, como se para si
mesmo. Brianna se sentiu estranhamente confortada pela
proximidade de seus parentes, aliviada por ter contado a eles a
estória, confidenciado seus temores. Ela se sentia protegida de
uma forma que não sentia há muito tempo.
"Lá vai ele", disse Ian de repente, e ela seguiu a direção de seu
olhar, vendo o repentino balanço selvagem quando as roseiras
deram lugar ao corpo do urso, cambaleando lentamente para
longe. Ian se levantou e ofereceu a mão a Brianna.
Ela se esticou em toda a sua altura e balançou, relaxando seus
membros. Ela se sentiu tão tranquila que mal ouviu o que o pai
disse, levantando-se atrás dela.
"O que é?" disse ela, virando-se para ele.
"Eu disse, tem uma coisa a mais, não é?"
"Mais?" disse ela, com um meio sorriso. "Não é o suficiente?"
Jamie fez um ruído escocês com a garganta, meio desculpas,
meio advertência. "Aquele Robert Cameron", ele disse. "Ele
provavelmente leu nossas cartas, você disse."
Um filete de água gelada começou a rastejar lentamente pela
73

ranhura da coluna de Brianna.


"Sim." A sensação de segurança pacífica havia desaparecido de
repente.
"Então ele sabe sobre o ouro jacobita que mantemos escondido
com o uísque e também sabe onde estamos. Se ele sabe, seus
amigos também sabem. E ele talvez não possa viajar pelas
pedras, mas talvez haja aqueles que podem." Jamie deu a ela um
olhar azul muito direto. "Mais cedo ou mais tarde, alguém virá
procurar."
74

RÚSTICO, RURAL E MUITO ROMÂNTICO

O SOL MAL HAVIA se erguido, mas Jamie já havia ido.


Acordei rapidamente quando ele beijou minha testa, sussurrou
que ia caçar com Brianna, então beijou meus lábios e
desapareceu na escuridão fria. Acordei duas horas depois no
ninho quente de colchas velhas – estas doadas pelos Crombie e
Lindsay – que nos serviam de cama e me sentei, de pernas
cruzadas em minha camisola, penteando folhas e pontas de
grama dos meus cabelos com os dedos e apreciando a rara
sensação de acordar lentamente, em vez da sensação frequente
de ter sido atingida por uma bala de canhão.
Eu supus, com uma pequena emoção agradável, que uma vez
que a casa estivesse habitável – e os MacKenzie, junto com o
filho de Fergus e Marsali, Germain, e Fanny, uma órfã deixada
conosco após a morte horrível de sua irmã, estivessem todos
abrigados lá –, as manhãs mais uma vez se assemelhariam ao
êxodo de morcegos da Caverna Carlsbad40 que eu vira uma vez
em um especial sobre a natureza na Disney. Por enquanto,
porém, o mundo estava brilhante e cheio de paz.
Uma joaninha de um vermelho vivo caiu dos meus cabelos e se
alojou na frente da minha camisola, o que pôs um fim abrupto
às minhas ruminações. Eu pulei e sacudi o besouro na grama alta
perto do Big Log, entrei nos arbustos para um momento privado
e saí com um punhado de hortelã fresca da montanha. Havia
apenas água suficiente no balde para eu tomar uma xícara de
chá, então deixei a hortelã na superfície plana que Jamie tinha
40
Conjunto de 81 cavernas (reconhecidas, podem ser mais de 100) localizadas no Parque Nacional das
Grutas de Carlsbad, no estado do Novo México, nos Estados Unidos. Centenas de milhares de morcegos
as habitam.
75

desbastado em uma das extremidades de um enorme tronco de


choupo caído para servir como mesa de trabalho e espaço de
preparação de alimentos, e fui acender o fogo e colocar a
chaleira dentro do anel de pedras enegrecidas.
Na extremidade da clareira abaixo, uma fina espiral de fumaça
subia da chaminé dos Higgins como uma cobra saindo de uma
cesta encantada; alguém também havia acendido o fogo abafado
da noite anterior.
Quem seria meu primeiro visitante esta manhã? Germain, talvez;
ele dormiu na cabana de Higgins na noite passada com Jemmy
– mas ele não tinha um temperamento de madrugador mais do
que eu. Fanny estava a uma boa distância, com a viúva
Donaldson e sua enorme ninhada; ela viria mais tarde.
Seria Roger, pensei, e senti um aperto no coração. Roger e as
crianças.
O fogo lambia a chaleira de estanho. Eu levantei a tampa e
desfiei um bom punhado de folhas de hortelã na água – primeiro
sacudindo as hastes para desalojar qualquer carona. O resto eu
amarrei com um fio torcido e pendurei entre as outras ervas
suspensas nas vigas de meu consultório improvisado –
consistindo em quatro varas com uma treliça colocada no topo,
coberta com galhos de cicuta para sombra e abrigo. Eu tinha dois
banquinhos – um para mim e outro para o paciente do momento
– e uma pequena mesa de construção tosca para conter todos os
instrumentos de que precisasse facilmente à mão.
Jamie havia colocado um alpendre de lona ao lado do abrigo,
para fornecer privacidade nos casos exigidos, e também como
armazenamento de alimentos ou remédios mantidos em tonéis,
potes ou caixas à prova de guaxinins.
Era rural, rústico e muito romântico. Era uma situação de corrida
de insetos, tornozelos sujos, exposição aos elementos – e uma
76

sensação-rastejante-na-parte-atrás-do-pescoço-indicando-que-
você-estava-sendo-observada-por-algo-pensando-em-comer-
você – mas ainda assim...
Lancei um olhar ansioso para a nova fundação da casa.
A casa teria duas belas chaminés de pedra; uma já tinha sido
construída até a metade e permanecia robusta como um monólito
em meio às vigas de madeira do que em breve – eu esperava –
seria nossa cozinha e espaço para comer. Jamie tinha me
garantido que ele iria levantar as paredes da grande sala e
prender um telhado de lona temporário nas próximas semanas,
para que pudéssemos voltar a dormir e cozinhar dentro de casa.
O resto da casa...
Isso podia depender de quaisquer noções grandiosas que ele e
Brianna conceberam durante a conversa na noite anterior. Eu
parecia me lembrar de observações selvagens sobre concreto e
encanamentos internos, que eu esperava que não criassem
raízes, pelo menos não até que tivéssemos um teto sobre nossas
cabeças e um chão sob nossos pés. Por outro lado…
O som de vozes no caminho abaixo indicava que minha esperada
companhia havia chegado e eu sorri. Por outro lado, teríamos
mais dois pares de mãos experientes e competentes para ajudar
na construção.
A cabeça ruiva desgrenhada de Jem apareceu, e ele abriu um
sorriso enorme ao me ver.
"Vovó!", ele gritou, e brandiu um bolinho de milho ligeiramente
mutilado. "Nós trouxemos o café da manhã!"
-.-.-

ELES ME TROUXERAM um café da manhã, pródigo para os


77

meus padrões atuais: dois bolinhos fritos de milho fresco41,


linguiças grelhadas achatadas como hambúrgueres, enroladas
entre folhas de bardana, um ovo cozido, ainda quente, e meio
centímetro da geleia de amora do ano passado de Amy, no fundo
de seu pote.
"A sra. Higgins disse para enviar de volta o frasco vazio",
Jemmy me informou, entregando-o. Apenas um olho estava na
jarra; o outro estava no Big Log, que havia sido escondido pela
escuridão na noite anterior. "Uau! Que tipo de árvore é essa? "
"Choupo", eu disse, fechando meus olhos em êxtase com a
primeira mordida na linguiça. O Big Log tinha cerca de 18
metros de comprimento. Demorou um bom tempo até que Jamie
tivesse retirado lenha do topo para construir e fazer fogueiras.
"Seu avô disse que provavelmente tinha mais de trinta metros de
altura antes de cair."
Mandy estava tentando subir no tronco; Jem deu-lhe um
empurrão casual, em seguida, inclinou-se para olhar para todo o
comprimento do tronco, principalmente liso e claro, mas com
crostas aqui e ali com restos de casca e estranhas pequenas
florestas de cogumelos e musgo.
"Ele desabou durante uma tempestade?"
"Sim", eu disse. "O topo foi atingido por um raio, mas não sei se
foi a mesma tempestade que o derrubou. Ele pode ter morrido
por causa do raio e então a próxima grande tempestade o
destruiu. Nós o encontramos assim quando voltamos para a
Cordilheira. Mandy, tenha cuidado!"
Ela se levantou com dificuldade e estava caminhando ao longo
do tronco, os braços estendidos como uma ginasta, um pé na
frente do outro. O tronco tinha cerca de um metro e meio de

41
No original, corn dodger, que é o mesmo que journeycake – um bolinho de milho típico dos Sul dos
Estados Unidos.
78

diâmetro naquele ponto; havia muito espaço em cima para ela,


seria difícil que ela caísse.
"Aqui, querida." Roger, que estivera observando o local da casa
com interesse, se aproximou e a arrancou do tronco. "Por que
você e o Jem não vão pegar lenha para a vovó? Você se lembra
como é uma boa lenha? "
"Sim, claro." Jem parecia alto. "Vou mostrar a ela como é."
"Eu sei como!", Mandy disse, carrancuda para ele.
"Você tem que ter cuidado com cobras", ele a informou.
Ela se animou imediatamente, o ressentimento esquecido.
"Quero ver uma cobra!"
"Jem...", Roger começou, mas Jemmy revirou os olhos.
"Eu sei, pai", disse ele. "Se eu encontrar uma cobra pequena, vou
deixá-la tocar, mas não se tiver chocalhos ou se for uma
mocassim d’água42."
"Oh, Jesus", Roger murmurou, vendo-os ir de mãos dadas.
Engoli o último pedaço de milho, lambi a geleia açucarada do
canto da boca e olhei para ele com simpatia.
"Ninguém morreu na última vez que você morou aqui", eu o
lembrei. Ele abriu a boca para responder, mas fechou novamente
e eu me lembrei. Mandy quase morreu da última vez. O que
significava que o que quer que os tenha feito voltar agora ...
"Está tudo bem", disse ele com firmeza, em resposta ao que deve
ter sido um olhar muito apreensivo no meu rosto. Ele sorriu um
pouco e me pegou pelo cotovelo, puxando-me para a sombra do
meu consultório.
"Está tudo bem", disse ele, e pigarreou. "Estamos bem", disse
42
No original, ‘cotton mouth’. É uma das úncas víboras semiaquáticas do mundo e é nativa do sudeste
dos Estados Unidos. Quando adulta, é grande e capaz de dar uma mordida dolorosa e potencialmente
fatal.
79

ele, mais alto. "Estamos todos aqui e seguros. Nada mais


importa agora."
"Tudo bem", eu disse, apenas um pouco tranquilizada. "Eu não
vou perguntar."
Ele riu disso, e a luz manchada fez seu rosto envelhecido jovem
novamente.
"Nós vamos contar a vocês", ele me assegurou. "Mas a maior
parte é realmente a estória de Bree; você deveria ouvir isso dela.
Eu me pergunto o que eles estão caçando, ela e Jamie?"
"Provavelmente um ao outro", eu disse, sorrindo. "Sente-se." Eu
toquei seu braço, virando-o em direção ao banco alto.
"Um ao outro?" Ele se ajustou confortavelmente no banquinho,
os pés dobrados para trás.
"Às vezes é difícil saber o que dizer, como falar um com o outro,
quando você não vê uma pessoa há muito tempo – especialmente
quando é uma pessoa que é importante para você. Demora um
pouco para se sentir confortável novamente; mais fácil se houver
um trabalho em mãos. Deixe-me olhar para a sua garganta, está
bem?"
"Você ainda não se sente confortável falando comigo?" ele
perguntou levemente.
"Oh, sim", eu assegurei a ele. "Os médicos nunca têm
dificuldade em falar com as pessoas. Você começa dizendo a
eles para tirarem a roupa, e isso quebra o gelo. Quando você
termina de cutucá-los e espiar em seus orifícios, a conversa
geralmente é bastante animada, se não necessariamente
relaxada"
Ele riu, mas sua mão agarrou inconscientemente a gola de sua
camisa, puxando o tecido.
"Para falar a verdade", ele disse, tentando parecer sério, "nós só
80

viemos pelo serviço de babá grátis. Não estivemos a mais de um


metro e oitenta de distância das crianças nos últimos quatro
meses." Ele riu, engasgou um pouco e terminou em um pequeno
acesso de tosse.
Eu coloquei minha mão na dele e sorri. Ele sorriu de volta –
embora com menos certeza do que antes, e, puxando a mão para
trás, ele rapidamente desabotoou a camisa e estendeu o pano
para longe do pescoço. Ele pigarreou com força.
"Não se preocupe", eu disse. "Você parece muito melhor do que
da última vez que o vi."
Na verdade, ele estava, e isso me surpreendeu bastante. Sua voz
ainda estava quebrada, áspera e rouca – mas ele falava com
muito menos esforço e não parecia mais que aquele esforço lhe
causava dor constante.
Roger ergueu o queixo e eu estendi a mão com cuidado,
encaixando meus dedos em seu pescoço, logo abaixo de sua
mandíbula. Ele havia se barbeado recentemente; sua pele estava
fria e ligeiramente úmida e senti o cheiro do sabonete de barbear
que fiz para Jamie, com aroma de bagas de zimbro; Jamie deve
ter levado para ele esta manhã. Fiquei comovida com o sentido
de cerimônia naquele pequeno gesto – e comovida muito mais
com a esperança nos olhos de Roger. Esperança que ele tentava
esconder.
"Eu conheci um médico", ele disse rispidamente. "Na Escócia.
Hector McEwan era seu nome. Ele era um de nós."
Meus dedos pararam e também meu coração. "Um viajante,
você quer dizer?"
Ele assentiu. "Eu preciso contar a você sobre ele. Sobre o que
ele fez. Mas isso pode esperar um pouco."
"O que ele fez", eu repeti. "Para você, você quer dizer?"
81

"Sim. Embora tenha sido o que ele fez com Buck, primeiro..."
Eu estava prestes a perguntar o que havia acontecido com Buck
quando ele olhou de repente nos meus olhos, intensamente.
"Você já viu uma luz azul?", ele perguntou. "Quando você toca
alguém de uma forma médica, quero dizer? Para curá-los."
O arrepio percorreu meus braços e pescoço, e tive que tirar meus
dedos de seu pescoço, porque eles estavam tremendo.
"Eu não fiz isso sozinha", disse com cuidado. "Mas eu vi. Uma
vez."
Eu estava vendo de novo, tão vívido em minha mente quanto nas
sombras de minha cama no L'Hôpital des Anges, quando abortei
Faith e estava morrendo de febre puerperal. Quando Mestre
Raymond colocou suas mãos sobre mim e eu vi os ossos do meu
braço brilharem em azul através da minha pele.
Abandonei aquela visão como um prato quente e percebi que
Roger estava segurando minha mão.
"Eu não queria assustar você", disse ele.
"Eu não estou com medo", eu disse, meio sinceramente.
"Apenas chocada. Eu não pensava nisso há anos."
"Isso me assustou pra caralho", disse ele com franqueza, e soltou
minha mão. "Depois do que ele fez o que fez ao coração de
Buck, fiquei com medo de falar com ele, mas sabia que
precisava. E quando eu o toquei – para fazê-lo parar, você sabe;
eu o estava seguindo por um caminho – ele congelou. E então
ele se virou e colocou a mão no meu peito", e sua própria mão
ergueu-se, inconscientemente, e pousou no seu peito, "e disse a
mim a mesma coisa que eu o ouvi dizer a Buck: Cognosco te.
Significa Eu conheço você", ele esclareceu, vendo o olhar vazio
em meu rosto. "Em latim."
"Ele sabia o que você era, apenas tocando em você?" A sensação
82

mais estranha estava ondulando sobre meus ombros e braços.


Não exatamente medo... mas algo como admiração.
"Sim. Eu não poderia dizer sobre ele ", acrescentou
apressadamente. "Não senti nada estranho naquele momento,
mas estava observando de perto, antes, quando ele colocou a
mão no peito de Buck – é que Buck teve algum tipo de ataque
cardíaco quando passamos pelas pedras..."
"Ele veio com você e Bree e..."
Agora Roger fez o mesmo gesto impotente.
"Não, isso foi... antes. De qualquer forma, Buck estava mal e as
pessoas que o acolheram mandaram chamar um médico, este
Hector McEwan. E ele colocou a mão no peito de Buck e... e fez
pequenas coisas – e eu vi – eu realmente vi, Claire, eu vi uma
tênue luz azul que surgiu entre seus dedos e se espalhou sobre
sua mão."
"Jesus H. Roosevelt Cristo."
Ele riu.
"Sim. Exatamente. Ninguém mais podia ver, no entanto", ele
acrescentou, a risada desaparecendo de seu rosto. "Só eu."
Esfreguei as palmas das minhas mãos lentamente, imaginando.
"Buck", eu disse. "Eu suponho que ele sobreviveu? Já que você
perguntou se o tínhamos visto."
O rosto de Roger mudou com isso, uma sombra passando por
trás de seus olhos.
"Ele sobreviveu. Então. Mas nós... nos separamos, depois que
eu encontrei Bree e as crianças... É... "
"Uma longa história", terminei por ele. "Talvez devesse esperar
até que Jamie e Bree voltem de sua caça. Mas sobre este Dr.
McEwan – ele lhe contou algo sobre... a luz azul?"
83

As palavras pareciam estranhas de se dizer, mas ainda assim eu


podia imaginar; minhas palmas formigaram levemente com o
pensamento, e eu olhei para eles involuntariamente. Não, ainda
rosa.
Roger estava balançando a cabeça. "Não muito, não. Não em
palavras. Mas... ele colocou a mão na minha garganta." Sua
própria mão se levantou, tocando a cicatriz irregular deixada
pela corda do carrasco. "E... algo aconteceu", ele disse
suavemente.
84

4
AS MULHERES VÃO TER UM
ATAQUE

"VOCÊ PODE VIR COMIGO para a minha cabana, prima?" Ian


perguntou, parecendo estranhamente tímido. "No caso de
Rachel estar de volta. Eu... gostaria que você a conhecesse."
"Eu adoraria conhecê-la", disse Bree, sorrindo para ele, com
sinceridade. Ela ergueu uma sobrancelha para o pai, mas ele
assentiu.
"Será bom largar tudo isso um pouco", disse ele, passando a
manga do rosto suado. "E se você ordenhou as cabras como sua
mãe pediu esta manhã, Ian, eu também não diria não para um
copo de leite.
Ele e Ian estavam carregando os restos utilizáveis do veado,
amarrados em um pacote pesado dentro da pele quase intacta e
pendurados em uma vara forte que eles carregavam sobre os
ombros. Era um dia quente.
Alguém estava em casa, na cabana do bosque de álamos. A porta
estava aberta, e havia uma pequena roda giratória parada na
varanda da frente em meio às sombras das folhas e uma cadeira
ao lado dela com uma cesta plana cheia de tufos marrons e cinzas
do que Brianna presumiu ser lã limpa penteada.
Não havia sinal roda de fiar, mas as mulheres cantavam dentro
da casa, em gaélico – interrompendo a cada poucos compassos
de riso, com uma voz clara e cantando a linha novamente, e no
segundo depois, tropeçando em uma palavra ocasional, então
rindo novamente.
Jamie sorriu ao ouvir isso.
"Jenny está ensinando o Gàidhlig para a pequenina Rachel",
85

disse ele, desnecessariamente. "Coloque aqui, Ian."


Ele acenou com a cabeça para a poça de sombra sob um tronco
caído. "As mulheres vão ter um ataque se levarmos moscas para
dentro de casa."
Alguém na casa os ouviu, pois a cantoria parou e uma cabeça
apareceu pela porta aberta.
"Ian!"
Uma garota alta e muito bonita de cabelos escuros apareceu e
pulou da varanda, agarrando Ian pela cintura em um abraço
exuberante, retribuído instantaneamente.
"Teus primos chegaram! Tu sabes?43"
"Sim, eu sei", ele disse, beijando sua boca.
"Venha cumprimentar minha prima Brianna, mo ghràidh. Ah...
e tio Jamie também", acrescentou ele, virando-se.
Bree já estava sorrindo, movida pelo amor óbvio entre os jovens
Murray e, olhando para o pai, viu o mesmo sorriso em seu rosto.
Viu que se alargava ao olhar além deles para a porta aberta, de
onde uma mulher pequena tinha saído, com um bebê nos braços,
que vestia nada além de uma tanga.
"Quem...", ela começou, e então seus olhos caíram sobre
Brianna, e seu queixo caiu.
"Santa Brígida Abençoada nos proteja", disse ela suavemente,
mas seus olhos eram calorosos, azuis e oblíquos como os de
Jamie, sorrindo para Brianna.
"Os gigantes chegaram. E seu marido também, dizem, e ele é
ainda mais alto do que você, moça. E vocês também têm filhos,
eles dizem – todos eles brotando como ervas daninhas, eu
43
Rachel, como quacre, tem uma linguagem distinta, que é chamada “discurso simples”. Uma das
características é não usar títulos ao se dirigir às pessoas e usar as formas antigas de thee e thou. Para
marcar esse discurso, estamos usando os pronomes tu, teu, tua e a comunicação com que fala conjugada
na segunda pessoa, na fala de Rachel.
86

acho?"
"Cogumelos", disse Bree, rindo, e se abaixou para abraçar sua
tia diminuta.
Jenny cheirava a cabras, lã fresca, mingau e torrada de pão
fermentado, e um leve cheiro nos cabelos e nas roupas que Bree
havia esquecido há muito tempo, mas reconheceu
imediatamente como o sabonete que Jenny fizera em
Lallybroch, com mel e lavanda e uma erva das Terras Altas que
não tinha nome em inglês.
"É tão bom ver você", disse ela, e sentiu as lágrimas nos olhos,
pois o sabonete trouxe Lallybroch como ela o vira pela primeira
vez – e com aquele fantasma, outro, mais forte atrás dele: o
fantasma de sua própria Lallybroch.
Ela piscou para conter as lágrimas e se endireitou, um sorriso
trêmulo colado em seu rosto. Isso desapareceu imediatamente,
no entanto, conforme ela se lembrava.
"Oh, tia! Eu sinto muito. Sobre o tio Ian, quero dizer."
Uma nova onda de perda passou por ela. Mesmo que Ian
Murray, o mais velho, estivesse morto por toda a vida dela,
exceto por alguns breves anos, e ela o tivesse encontrado apenas
uma vez, a perda parecia recente e chocante agora.
Jenny olhou para baixo, dando tapinhas nas costas do bebê. Ele
tinha uma cabeça felpuda de penugem loiro-castanha, como o
pintinho de uma galinha-d'angola.
"Ach", ela disse suavemente. "Meu Ian ainda está comigo. Eu
posso vê-lo no rosto deste pequenino, claro como o dia."
Ela virou o bebê habilmente para que ele descansasse em seu
quadril, olhando para Brianna com grandes olhos redondos –
olhos do mesmo castanho claro quente de seu primo Ian – e de
seu pai.
87

"Oh", disse Brianna, encantada e consolada ao mesmo tempo.


Ela estendeu a mão hesitante e ofereceu ao bebê um dedo. "E
seu nome é... Oggy?"
Jenny e Rachel riram, uma com diversão honesta e a outra com
tristeza.
"Receio que ainda não tenhamos conseguido encontrar o nome
adequado para ele", disse Rachel, tocando-o suavemente no
ombro. Oggy voltou-se para a voz da mãe e continuou a girar,
inclinando-se lentamente para fora dos braços de Jenny como
uma preguiça atraída inelutavelmente por frutas doces.
Rachel o segurou, tocando suavemente sua bochecha. Ele virou
a cabeça – de novo lentamente – e começou a chupar o nó do
dedo dela.
"Ian diz que as crianças Mohawk encontram seus próprios
nomes quando são mais velhas e têm apenas nomes de berço até
então."
As sobrancelhas pretas bem torneadas de Jenny se ergueram
com isso.
"Você quer me dizer que o bebê vai ser Oggy até... quando?"
"Oh, não", Rachel a assegurou. "Tenho certeza que vou pensar
em algo antes de quando." Ela sorriu para a sogra, que revirou
os olhos e voltou sua atenção para Brianna.
"Estou feliz que você não teve tantos problemas com seus
próprios filhos, a nighean. Jamie disse em suas cartas que eles
se chamam Jeremiah e Amanda, certo?
Brianna tossiu, evitando o olhar de Rachel.
"Humm… Jeremiah Alexander Ian Fraser MacKenzie", ela
disse.
"E Amanda Claire Hope MacKenzie.
88

Jenny assentiu com aprovação, seja pela qualidade ou pela


quantidade dos nomes.
"Jenny!" O pai de Bree apareceu na varanda, suado e
desgrenhado, a camisa manchada de sangue em evidência. "Ian
não consegue encontrar a cerveja."
"Nós bebemos", Jenny gritou de volta, sem se abalar.
"Oh." Ele desapareceu de volta para dentro de casa,
provavelmente em busca de algo mais potável, deixando
pegadas úmidas e ligeiramente ensanguentadas na varanda.
"O que aconteceu com ele?", Jenny exigiu, lançando um olhar
penetrante das pegadas para Brianna, que encolheu os ombros.
"Um urso."
"Oh." Ela pareceu digerir isso por um momento, então balançou
a cabeça. "Suponho que terei que deixá-lo tomar cerveja, então."
Ela desapareceu atrás dos homens, deixando Brianna e Rachel
do lado de fora.
"Acho que nunca conheci um quacre antes", disse Brianna após
uma pausa um pouco estranha. "A propósito, quacre é a palavra
certa? Eu não quero..."
"Dizemos Amiga ou Amigo", disse Rachel, sorrindo de novo.
"Quacre não é ofensivo, no entanto. Mas acho que tu deves ter
conhecido pelo menos um. Tu podes não saber, se o Amigo
optou por não usar a linguagem simples ao falar contigo. A
maioria de nós não tem listras, manchas ou qualquer outra marca
física pela qual tu possas nos discernir."
"A maioria de vocês?"
"Bem, naturalmente não consigo ver minhas próprias costas,
mas tenho certeza de que Ian teria me contado, se houvesse algo
notável..."
89

Brianna riu, sentindo-se ligeiramente tonta de fome, alívio e a


alegria simples e recorrente de estar com sua família novamente.
Uma família encantadora e expandida também, ao que parecia.
"Estou muito feliz em conhecê-la", disse ela a Rachel. "Eu não
conseguia imaginar que tipo de garota se casaria com Ian... me
desculpe, parece errado..."
"Não, tu estás certa", Rachel a assegurou. "Eu também não
poderia imaginar me casar com um homem como ele, mas lá está
ele na minha cama todas as manhãs, no entanto. Eles dizem que
o Senhor age de maneiras misteriosas. Vamos entrar na casa",
acrescentou ela, colocando Oggy em uma nova posição.
"Eu sei onde está o vinho. "
90

MEDITAÇÕES SOBRE UM HIOIDE

"TUDO COMEÇA IN MEDIA RES44 e, se você tiver sorte,


termina assim também." Roger engoliu em seco e senti sua
laringe balançar sob meus dedos. A pele de sua garganta estava
fria e macia onde eu o segurei, embora pudesse sentir uma
pequena pontada de barba por fazer roçar minha junta logo
abaixo de sua mandíbula.
"Foi isso que o Dr. McEwan disse?", eu perguntei, curiosa. "O
que ele quis dizer com isso, eu me pergunto?"
Os olhos de Roger estavam fechados – as pessoas normalmente
fechavam os olhos quando eu os examinava, como se
precisassem preservar o máximo de privacidade possível – mas,
com isso, ele os abriu, um verde intenso e impressionante
iluminado pelo sol da manhã.
"Eu perguntei a ele. Ele disse que nada nunca começa ou para
verdadeiramente, pelo que ele podia ver. Que as pessoas pensam
que a vida de uma criança começa no nascimento, mas
claramente não é assim – você pode vê-los se mover no útero, e
uma criança que chega muito cedo muitas vezes viverá por
pouco tempo, e você verá que ela está viva em todos os seus
sentidos, embora não possa sustentar a vida."
Agora eu fechei meus próprios olhos, não porque achei o olhar
de Roger perturbador, mas para me concentrar nas vibrações de
suas palavras. Mudei meu aperto em sua garganta para um pouco

44
No meio da ação, quando tudo já está acontecendo. É um recurso narrativo comum, que a autora utiliza
bastante, inclusive.
91

mais baixo.
"Bem, ele está certo sobre isso", disse eu, visualizando a
anatomia interna da garganta enquanto falava. "Os bebês já
nascem correndo, por assim dizer. Todos os seus processos –
exceto a respiração – estão funcionando muito antes do
nascimento. Mas isso ainda é uma observação bastante
enigmática."
"Sim, é." Ele engoliu em seco novamente e eu senti sua
respiração, quente em meu antebraço nu. "Eu o cutuquei um
pouco, porque ele obviamente quis dizer isso como explicação
– ou pelo menos o melhor que ele poderia fazer como
explicação. Eu suponho que você não pode descrever o que você
realmente faz quando cura alguém, pode?"
Eu sorri sem abrir meus olhos. "Oh, eu posso tentar. Mas há um
erro implícito aí; eu realmente não curo as pessoas. Elas se
curam por si mesmas. Eu só... as apoio."
Um som que não era bem uma risada fez sua laringe executar
um complicado balançar duplo. Achei que podia sentir uma leve
concavidade sob meu polegar, onde a cartilagem havia sido
parcialmente esmagada pela corda... Coloquei minha outra mão
em volta da minha própria garganta, para comparação.
"Na verdade, foi o que ele disse também – Hector McEwan,
quero dizer. Mas ele curava pessoas. Eu o vi fazer isso."
Minhas mãos se soltaram de nossas gargantas e eu abri meus
olhos.
Ele então me deu um resumo rápido de suas relações com
William Buccleigh, desde o papel de Buck em seu enforcamento
em Alamance, passando pelo reaparecimento de seu ancestral
em Inverness em 1980, e Buck se juntando a ele na busca por
Jem, após o antigo colega de trabalho de Brianna, Rob Cameron,
haver sequestrado o menino.
92

"Foi quando ele se tornou... um pouco mais do que um amigo",


disse Roger. Ele olhou para baixo e pigarreou. "Ele veio comigo
para procurar o Jem. Mas Jem não estava lá, é claro. E, no
entanto, encontramos outro Jeremias. Meu pai", ele disse
abruptamente, sua voz falhando na palavra. Peguei por reflexo
sua mão, mas ele me dispensou, limpando a garganta
novamente.
"Tudo bem. Eu vou – vou contar a vocês sobre isso... mais
tarde." Ele engoliu em seco e se endireitou um pouco,
encontrando meus olhos novamente. "Mas Buck – é assim que
o chamávamos, Buck – quando atravessamos as pedras em
busca de Jem, nós dois fomos... danificados pela passagem.
Você disse, eu acho, que piora, se você fez isso mais de uma
vez?"
"Eu não diria nem que uma vez não é prejudicial", disse eu, com
um pequeno estremecimento interno com a memória daquele
vazio, um caos onde nada parece existir além de ruído. Isso, e
um leve lampejo de pensamento, é tudo o que o mantém unido
entre uma respiração e a próxima. "Mas, sim, fica pior. O que
aconteceu com você?"
"Para mim, não tanto. Fiquei inconsciente por um momento,
acordei estrangulado, lutando para respirar. Sujeira, suor,
desorientação; não consegui manter o equilíbrio por um tempo,
cambaleando. Mas Buck..." Ele franziu a testa, e eu vi seus olhos
mudarem quando ele olhou para dentro novamente, vendo o
topo da colina verde de Craigh na Dun quando ele acordou com
a chuva em seu rosto. Como já havia acordado três vezes. Os
cabelos do meu pescoço se levantaram lentamente.
"Parecia ser seu coração. Ele estava com dor no peito, no braço
esquerdo, e não conseguia respirar bem, disse que era como um
peso no peito e ele não conseguia se levantar. Mas peguei água
para ele e depois de um tempo ele parecia bem. Pelo menos ele
93

conseguia andar e rejeitou qualquer sugestão de que parássemos


e descansássemos."
Eles se separaram então, Buck para procurar a estrada em
direção a Inverness, Roger para ir para Lallybroch e...
"Lallybroch!" Desta vez, agarrei-o pelo braço. "Você foi lá?"
"Eu fui", disse ele, e sorriu. Ele apertou minha mão, que estava
em seu braço. "Eu conheci Brian Fraser."
"Você... mas... Brian?" Eu sacudi minha cabeça para limpá-la.
Isso não fazia sentido.
"Não, não fazia sentido", disse ele, claramente lendo meus
pensamentos em meu rosto e sorrindo com os resultados. "Nós...
não fomos para onde – quero dizer quando – pensávamos que
estávamos indo. Terminamos em 1739."
Eu o encarei por um momento, e ele encolheu os ombros,
impotente.
"Vamos deixar isso para mais tarde", eu disse com firmeza, e
estendi a mão para sua garganta novamente, pensando no "in
medias res". O que diabos McEwan quis dizer com isso?
Eu podia ouvir gritos infantis distantes vindos da direção do
riacho, e o guincho alto e estridente de um falcão no alto tronco
do outro lado de nossa clareira. Eu podia apenas vê-lo – ou ela
– pelo canto do olho: uma grande forma escura como um torpedo
em um galho morto. E eu estava começando a ouvir – ou pensar
que ouvi – o latejar de sangue no pescoço de Roger, um som
fraco, separado do pulsar de seu pulso. E o fato de que eu estava
evidentemente ouvindo através dos meus dedos parecia
chocantemente comum.
"Fale um pouco mais comigo", sugeri, tanto para evitar ouvir o
que pensei ter ouvido, quanto para soltar a laringe. "Sobre
qualquer coisa."
94

Ele cantarolou por um momento, mas isso o fez tossir, e eu


deixei cair minha mão para que ele pudesse virar a cabeça.
"Desculpe", ele disse. "Bobby Higgins estava me dizendo que
Ridge está crescendo – um monte de novas famílias, ouvi
dizer?"
"Como ervas daninhas", eu disse, recolocando minha mão.
"Quando voltamos, descobrimos que pelo menos vinte novas
famílias se estabeleceram, e vieram mais três logo depois que
voltamos de Savannah, onde os ventos da guerra nos sopraram
brevemente."
Ele acenou com a cabeça, uma ligeira carranca em seu rosto, e
me deu um olhar verde de soslaio. "Suponho que nenhum dos
novos colonos seja ministro?"
"Não", eu disse prontamente. "É isso que você ... quero dizer,
você ainda pensa nisso..."
"Eu penso." Ele olhou para mim, um pouco tímido. "Ainda não
estou totalmente ordenado. Eu vou precisar cuidar disso, de
alguma forma. Mas quando decidimos voltar, conversamos –
Bree e eu sobre o que poderíamos fazer. Aqui. E... " Ele ergueu
ambos os ombros, as palmas das mãos nos joelhos. "Isso é o que
eu devo fazer."
"Você foi um ministro aqui antes", eu disse, observando seu
rosto. "Você realmente tem que ser formalmente ordenado para
fazer isso de novo?"
Ele não precisava pensar; ele pensava há muito tempo.
"Sim", disse ele. "Não sinto que foi... errado ... ter enterrado ou
casado pessoas antes, ou as batizado. Alguém tinha que fazer
isso e eu era tudo o que havia. Mas eu quero que esteja tudo
certo." Ele sorriu um pouco. "Talvez seja a diferença entre um
casamento por handfast, apenas o compromisso entre os dois, e
95

se casar da maneira adequada. Entre uma promessa e um voto.


Mesmo se você souber que nunca quebraria a promessa, você
quer..." Ele lutou pelas palavras. "Você quer o peso do voto.
Algo para ficar nas suas costas."
Um voto. Eu fiz alguns desses. E ele estava certo; todos eles -
mesmo aqueles que eu havia quebrado – significavam algo,
tinham peso. E alguns deles ficaram nas minhas costas e ainda
estavam de pé.
"Isso faz diferença", eu disse.
"Sabe, você estava certa", disse ele, parecendo surpreso, e sorriu
para mim. "É fácil falar com uma médica, especialmente aquela
que o pegou pela garganta. Você quer dar uma chance ao método
de McEwan, então? "
Endireitei minhas costas e flexionei minhas mãos, bastante
autoconsciente.
"Não pode doer", eu disse, esperando estar certa. "Você sabe...",
acrescentei hesitante, e senti o pomo de adão de Roger balançar
abaixo da minha mão.
"Eu sei", ele disse rispidamente. "Sem expectativas. Se algo
acontecer... bem, aconteceu. Se não, não ficarei pior."
Eu balancei a cabeça e apalpei suavemente, sondando as pontas
dos dedos. A traqueotomia que fiz para salvar sua vida havia
deixado uma cicatriz menor na cavidade de sua garganta, uma
ligeira depressão de cerca de dois centímetros e meio de
comprimento. Passei meu polegar sobre ela, sentindo os anéis
saudáveis de cartilagem acima e abaixo. A leveza do toque o fez
estremecer de repente, pequenos arrepios pontilhando seu
pescoço, e ele deu o sopro de uma risada.
"Um fantasma caminhando sobre meu túmulo", disse ele.
"Mais como se pisasse na sua garganta", eu disse, sorrindo.
96

"Diga-me novamente o que o Dr. McEwan disse. Tudo que você


pode lembrar."
Eu não tinha tirado minha mão e senti seu pomo de adão sacudir
quando ele limpou a garganta com força.
"Ele cutucou minha garganta – tanto quanto você", acrescentou
ele, sorrindo de volta. "E ele me perguntou se eu sabia o que era
um osso hioide. Ele disse", a mão de Roger subiu
involuntariamente em direção à sua garganta, mas parou alguns
centímetros de tocá-la, "que o meu estava cerca de dois
centímetros mais alto do que o normal, e que se estivesse no
lugar normal, eu estaria morto."
"Sério", eu disse, interessada. Coloquei o polegar logo abaixo de
sua mandíbula e disse: "Engula, por favor."
Ele engoliu, e eu toquei meu próprio pescoço e engoli também,
ainda tocando o dele.
"Maldição!", eu disse. "É um tamanho de amostra pequeno e,
admitindo-se que pode haver diferenças atribuíveis ao gênero...
Mas ele pode estar certo. Talvez você seja um Neandertal."
"O quê?" Ele olhou para mim.
"Só uma piada", eu assegurei a ele. "Mas é verdade que uma das
diferenças entre os neandertais e os humanos modernos é o
hioide. A maioria dos cientistas pensa que os neandertais não
tinham nenhum e, portanto, não podiam falar, mas meu tio Lamb
dizia... Você precisa de um hioide para ter uma fala coerente",
acrescentei, vendo seu olhar de incompreensão. "Ele ancora a
língua. Meu tio não achava que eles deveriam ser mudos, então
o hioide devia estar localizado de forma diferente."
"Que fascinante", Roger disse educadamente.
Limpei minha própria garganta e circulei seu pescoço mais uma
vez.
97

"Certo. E depois de falar sobre seu hioide – o que McEwan fez?


Como, exatamente, ele tocou em você?"
Roger inclinou a cabeça ligeiramente para trás e, estendendo a
mão, ajustou minha pegada, movendo minha mão para baixo e
espalhando suavemente meus dedos.
"Mais ou menos assim", disse ele, e descobri que minha mão
agora estava cobrindo – ou pelo menos tocando – todas as
principais estruturas de sua garganta, da laringe ao hioide.
"E então…?"
Eu estava ouvindo atentamente – não sua voz, mas o sentido de
sua carne. Eu já havia colocado minhas mãos em sua garganta
dezenas de vezes, especialmente durante sua recuperação do
enforcamento, mas com uma coisa e outra, eu não a tinha tocado
há vários anos – até hoje. Eu podia sentir os músculos sólidos de
seu pescoço, firmes sob a pele, e senti seu pulso, forte e regular
– um pouco rápido, e percebi o quão importante isso pode ser
para ele. Senti uma certa incerteza; eu não tinha ideia do que
Hector McEwan poderia ter feito – ou o que Roger pode ter
imaginado que ele fez – e menos ainda a noção de como fazer
qualquer coisa sozinha.
"É que eu sei como uma laringe deve ser, e posso dizer como é
a sua e ... coloco meus dedos lá e imagino como deve ser." Isso
foi o que McEwan disse em resposta às perguntas de Roger. Eu
me perguntei se eu sabia como é a sensação de uma laringe
normal.
"Houve uma sensação de calor." Os olhos de Roger se fecharam
novamente; ele estava se concentrando no meu toque. A
protuberância lisa de sua laringe estava sob a palma da minha
mão, balançando ligeiramente quando ele engolia. "Nada
surpreendente. É a mesma sensação que você tem quando entra
em uma sala onde o fogo está queimando. "
98

"Meu toque está quente para você agora?" Deveria, pensei; sua
pele estava fria.
"Sim", disse ele, sem abrir os olhos. "Mas é do lado de fora.
Estava do lado de dentro quando McEwan... fez o que fez." Suas
sobrancelhas escuras se juntaram em concentração. "É... eu
senti... aqui..." Esticando a mão, ele moveu meu polegar para
descansar logo à direita do centro, diretamente abaixo do hioide.
"E aqui." Seus olhos se abriram de surpresa e ele pressionou dois
dedos na carne acima da clavícula, alguns centímetros à
esquerda da fúrcula esternal. "Que estranho. Eu não tinha me
lembrado disso."
"E ele tocou em você lá também?" Mudei meus dedos inferiores
para baixo e senti a aceleração dos meus sentidos que muitas
vezes acontecia quando eu estava totalmente envolvida com o
corpo de um paciente. Roger sentiu também – seus olhos
brilharam nos meus, assustados.
"O que...?", ele começou, mas antes que qualquer um de nós
pudesse falar mais, houve um uivo agudo vindo da clareira
abaixo. Isso foi imediatamente seguido por uma confusão de
vozes jovens, mais uivos, então uma voz imediatamente
identificável como Mandy apaixonada, gritando: "Você é mau,
você é mau, você é mau e eu te odeio! Você é mau e vai para o
INFERNO!"
Roger pôs-se de pé de um salto.
"Amanda!", ele gritou. "Venha aqui agora mesmo!"
Por cima do ombro dele, vi Amanda, o rosto contorcido de raiva,
tentando agarrar sua boneca, Esmeralda, que Germain estava
pendurada por um braço, logo acima de sua cabeça, dançando
para se manter longe das tentativas concertadas de Amanda para
chutá-lo.
Assustado, Germain ergueu os olhos e Amanda acertou com
99

força sua canela. Ela estava usando botas grossas e o estalo do


impacto foi claramente audível, embora instantaneamente
substituído pelo grito de dor de Germain. Jemmy, parecendo
estarrecido, agarrou Esmeralda, jogou-a nos braços de Amanda
e, com um olhar culpado por cima do ombro, correu para a
floresta, seguido por Germain mancando.
"Jeremiah!", Roger rugiu. "Pare aí mesmo!" Jem congelou como
se tivesse sido atingido por um raio da morte; Germain não o fez
e desapareceu com um farfalhar selvagem nos arbustos.
Eu estava observando os meninos, mas um leve ruído de
engasgo me fez olhar bruscamente para Roger. Ele estava pálido
e estava segurando a garganta com as duas mãos. Eu agarrei seu
braço.
"Você está bem?"
"Eu não sei." Ele falou num sussurro áspero, mas me deu a
sombra de um sorriso triste. "Acho que... posso ter torcido
alguma coisa."
"Papai?", disse uma vozinha ao meu lado. Amanda fungou
dramaticamente, enxugando lágrimas e ranho por todo o rosto.
"Você está com raiva de mim, papai?"
Roger respirou fundo, tossiu e se aproximou, agachando-se para
tomá-la nos braços.
"Não, querida", ele disse suavemente – mas em uma voz
bastante normal, e algo apertado dentro de mim começou a
relaxar. "Eu não estou com raiva. No entanto, você não deve
dizer às pessoas que elas irão para o inferno. Venha aqui, vamos
lavar seu rosto."
Ele se levantou, segurando-a, e se virou em direção à minha
bancada de trabalho, onde havia uma bacia e uma jarra.
"Eu posso fazer isso", disse eu, estendendo a mão para Mandy.
100

"Talvez você queira ir e... hã... falar com o Jem?"


"Mmphm", ele disse, e a entregou. Uma criança naturalmente
aconchegante, Mandy imediatamente agarrou-se afetuosamente
ao meu pescoço e envolveu suas pernas em volta da minha
cintura.
"Podemos lavar o rosto da minha boneca também?" ela
perguntou. "Aqueles meninos maus shujaram ela!"
Escutei atentamente as palavras carinhosas de Mandy para
Esmeralda mescladas com as denúncias a seu irmão e Germain,
mas a maior parte da minha atenção estava focada no que estava
acontecendo na clareira abaixo.
Eu podia ouvir a voz de Jem, alta e argumentativa, e a de Roger,
firme e muito mais baixa, mas não conseguia captar nenhuma
palavra. Roger estava falando, porém, e eu não ouvi nenhum
engasgo ou tosse... Isso era bom.
A lembrança dele gritando com as crianças era ainda melhor. Ele
já tinha feito isso antes – era uma necessidade, crianças e
grandes espaços ao ar livre sendo o que eram – mas eu nunca o
tinha ouvido fazer isso sem sua voz embargada, com um
acompanhamento de tosse e pigarro. McEwan havia dito que era
uma pequena melhora e que demorava para cicatrizar.
Eu realmente fiz alguma coisa para ajudar?
Eu olhei criticamente para a palma da minha mão, mas parecia
muito como de costume: um corte de papel meio curado no dedo
médio, manchas de colheita de amoras e uma bolha estourada no
meu polegar, de arrebatar uma frigideira45 de ferro cheia de
bacon que tinha pegado fogo na lareira, sem um porta-panelas
para proteger minha mão. Nenhum sinal de qualquer luz azul,
certamente.

45
No original, spider, que é uma frigideira de ferro com pés altos, para se encaixar na lareira.
101

"Qué isso, vovó?", Amanda se inclinou por sobre a mesa para


olhar minha mão virada para cima.
"O que é o quê? Essa mancha preta? Eu acho que é tinta; eu
estava escrevendo meu livro de casos ontem. Erupção na pele de
Kirsty Wilson." Eu pensei no início que a erupção era apenas
sumagre venenoso, mas estava persistindo de uma forma
bastante preocupante... Sem febre... talvez fossem urticária? Ou
algum tipo de psoríase atípica?
"Não, issu." Mandy cutucou seu dedo gordinho e úmido na
palma da minha mão. "Essa letra!" Ela girou a cabeça para olhar
mais de perto, cachos pretos fazendo cócegas em meu braço.
"Letra J", ela anunciou triunfantemente. "J de Jemmy! Eu odeio
Jemmy", ela acrescentou, carrancuda.
"Hã... ", eu disse, completamente perplexa. Era a letra J. A
cicatriz havia desvanecido para uma linha branca e fina, mas
ainda estava clara se a luz acertasse bem. A cicatriz que Jamie
me deu, quando eu o deixei em Culloden. Deixei-o para morrer,
atirando-me através das pedras para salvar sua criança
desconhecida e ainda não nascida. Nossa criança. E se eu não
tivesse ido?
Olhei para Mandy, olhos de xerez e cachos pretos e perfeita
como uma minúscula maçã primaveril. Ouvi Jem do lado de
fora, agora rindo com seu pai. Isso nos custou vinte anos
separados – anos de desgosto, dor e perigo. Tinha valido a pena.
"É para o nome do vovô. J de Jamie", eu disse a Amanda, que
acenou com a cabeça como se isso fizesse todo o sentido,
segurando uma Esmeralda encharcada contra o peito. Toquei sua
bochecha brilhante e imaginei por um instante que meus dedos
poderiam estar tingidos de azul, embora não estivessem.
"Mandy", eu disse, por impulso. "Qual é a cor dos meus
cabelos?"
102

"Quando seus cabelos forem brancos, você atingirá todo o seu


poder." Uma velha sábia tuscarora chamada Nayawenne me
dissera isso, anos atrás – junto com muitas outras coisas
perturbadoras.46
Mandy olhou fixamente para mim por um momento, então disse
definitivamente, "Malhado."
"O quê? Onde você aprendeu essa palavra, pelo amor de Deus?"
"Tio Joe. Ele diz que é a cor do Texugo."
"Quem é o Texugo?"
"O cachorrinho da Tia Gail."
"Humm", eu disse. "Ainda não, então. Tudo bem, querida,
vamos pendurar Esmeralda para secar."

46
Livro 4, cap 20
103

6
O CAÇADOR ESTÁ DE VOLTA AO LAR,
DE VOLTA DA COLINA47

JAMIE E BRIANNA VOLTARAM no final da tarde, com dois


pares de esquilos, quatorze pombas e um grande pedaço de lona
manchada e esfarrapada que, desembrulhada, revelou algo que
parecia os resquícios de um assassinato particularmente terrível.
"Jantar?", eu perguntei, cutucando cautelosamente um osso
quebrado saindo da massa de pelo e carne lisa. O cheiro era cru,
de ferro e carnificina, com uma nota rançosa que parecia
familiar, mas a podridão ainda não havia se estabelecido em
qualquer grau perceptível.
"Sim, se você puder, Sassenach."
Jamie veio e olhou para a confusão sangrenta, franzindo um
pouco a testa.
"Eu vou ajeitar isso para você. Preciso de um pouco de uísque
primeiro, no entanto."
Dadas as manchas de sangue em sua camisa e na calça, eu não
tinha notado o trapo igualmente manchado amarrado em sua
perna, mas agora vi que ele estava mancando. Levantando uma
sobrancelha, fui até a grande cesta de comida, pequenas
ferramentas e pequenos suprimentos médicos que eu carregava
até o local da casa todas as manhãs.
"Pelo que sobrou dele, presumo que seja – ou era – um cervo.
Você realmente o rasgou com as próprias mãos?"
"Não, mas o urso sim", disse Bree, o rosto sério. Ela trocou
olhares cúmplices com o pai, que cantarolava baixinho.
47
Uma referência aos versos finais do poema (e epitáfio) Requien, de Robert L. Stevenson: Home is the
sailor, home from sea, And the hunter home from the hill. O mesmo trecho tinha sido citado na íntegra no
livro 2 cap 31.
104

"Urso", eu disse, e respirei fundo. Eu gesticulei para sua camisa.


"Certo. Quanto desse sangue é seu48?"
"Não muito", disse ele tranquilamente, sentando-se no grande
tronco que apelidamos de Big Log. "Uísque?"
Olhei atentamente para Brianna, mas ela parecia estar intacta.
Suja e com excrementos de pássaros cinza-esverdeados
espalhados por sua camisa, mas intacta. Seu rosto brilhava de
sol e felicidade, e eu sorri.
"Há uísque no cantil de lata pendurado ali", eu disse, acenando
com a cabeça em direção ao grande abeto do outro lado da
clareira. "Você quer ir buscá-lo para o seu pai enquanto vejo o
que sobrou da perna dele?"
"Certo. Onde estão Mandy e Jem?"
"Quando vistos pela última vez, eles estavam brincando perto do
riacho com Aidan e seus irmãos. Não se preocupe ", acrescentei,
vendo seu lábio inferior sugando de repente. "É muito raso lá, e
Fanny disse que ficaria de olho em Mandy enquanto ela coleta
sanguessugas. Fanny é muito confiável."
"Hummm-humm." Bree ainda parecia duvidosa, mas eu podia
vê-la lutando contra seu impulso materno de ir tirar Mandy para
fora do riacho imediatamente. "Eu sei que a conheci ontem à
noite, mas não tenho certeza se me lembro de Fanny. Onde ela
mora?"
"Com a gente", disse Jamie com naturalidade. "Ai!"
"Fique quieto", eu mandei, abrindo o ferimento na perna com
dois dedos enquanto eu despejava solução salina nele. "Você
não quer morrer de tétano, quer?"
"E o que você faria se eu dissesse sim, Sassenach?"
"A mesma coisa que estou fazendo agora. Eu não me importo se
48
Essa frase será repetida no cap 147
105

você quer ou não. Eu não vou aceitar."


"Bem, por que você me perguntou, então?"
Ele se apoiou nas palmas das mãos, com as duas pernas
esticadas, e olhou para Bree. "Fanny é uma garotinha órfã. Seu
irmão a tomou sob sua proteção."
O rosto de Bree ficou quase comicamente vazio. "Meu irmão.
Willie?", ela perguntou, hesitante.
"A menos que sua mãe saiba algo em contrário, ele é o único
irmão que você tem", Jamie assegurou-lhe. "Sim, William.
Jesus, Sassenach, você é pior do que o urso!"
Ele fechou os olhos, seja para evitar olhar para o que eu estava
fazendo com sua perna – alargando e desbridando o ferimento
com uma lanceta; o machucado não era sério em si, mas o
ferimento na panturrilha era profundo, e eu, na verdade, não
estava sendo retórica sobre o risco de tétano – ou para dar a Bree
um momento para recuperar o semblante.
Ela olhou para ele, a cabeça inclinada para o lado.
"Então", ela disse lentamente. "Isso significa que... ele sabe que
você é o pai dele?"
Jamie fez uma careta, sem abrir os olhos.
"Ele sabe."
"E não está tão feliz com isso?" Um lado de sua boca se curvou,
mas seus olhos e sua voz eram simpáticos.
"Provavelmente não."
"Ainda", eu murmurei, enxaguando o sangue de sua longa tíbia.
Ele bufou. Bree fez uma versão mais feminina do mesmo
barulho e foi buscar o uísque. Jamie a ouviu sair e abriu os olhos.
"Ainda não terminou, Sassenach?"
Eu vi a leve vibração de seus pulsos e percebi que ele estava se
106

apoiando nas palmas das mãos para esconder o fato de que


estava tremendo de exaustão.
"Estou cansada de machucar você", assegurei a ele. Eu coloquei
minha mão ao lado da dele no tronco quando me levantei,
tocando seus dedos levemente. "Vou colocar um curativo e, em
seguida, você deve se deitar um pouco com o pé apoiado."
"Não adormeça, Pa." A sombra de Brianna caiu sobre ele, e ela
se inclinou para lhe entregar o cantil. "Ian disse que está
trazendo Rachel e sua mãe para jantar conosco." Ela se inclinou
mais e beijou-o na testa.
"Não se preocupe com Willie", disse ela. "Ele vai resolver as
coisas."
"Sim. Espero que ele não espere até eu estar morto." Ele deu um
sorriso torto para indicar que era para ser uma piada e ergueu o
cantil em saudação.
-.-.-

EU INSISTI E acomodei Jamie, sob protestos, na sombra do


meu consultório e o fiz se deitar com meu avental dobrado sob
sua cabeça.
"Você comeu alguma coisa desde o café da manhã?", eu
perguntei, apoiando sua perna machucada sobre um pedaço de
madeira da pilha de sucata.
"Eu comi", disse ele pacientemente. "Amy Higgins mandou
bannocks e queijo com Brianna, e nós comemos enquanto
esperávamos o urso ir embora. Você acha que eu não teria dito
até agora se eu estivesse morrendo de fome? "
"Oh", eu disse, me sentindo um tanto tola. "Bem, sim, eu
imagino que sim. É só... ", afastei os cabelos de sua testa. "É só
que quero fazer você se sentir melhor, e alimentá-lo foi a única
107

coisa que me veio à mente."


Isso o fez rir, e ele se espreguiçou, arqueando as costas e se
reajustando em uma posição mais confortável na grama
pisoteada.
"Bem, esse é um pensamento gentil, Sassenach. Eu poderia
pensar em algumas outras coisas, talvez – depois de descansar
um pouco. E Brianna disse que o grupo de Ian está vindo para o
jantar."
Ele virou a cabeça, lançando um olhar para a montanha distante,
onde o sol descia lentamente através de pequenas nuvens grossas
e dispersas, pintando suas barrigas com ouro macio.
Nós dois suspiramos um pouco com a visão, ele se virou e pegou
minha mão. "O que eu quero que você faça, Sassenach, é sentar
comigo aqui por um momento – e me diga que eu não estou
sonhando. Ela está realmente aqui? Ela e os filhos e Roger
Mac?"
Eu apertei sua mão e senti a mesma alegria borbulhante que pude
ver em seu rosto.
"É real. Eles estão aqui. Bem ali, na verdade."
Eu ri um pouco, porque ainda podia ver Brianna lá embaixo,
indo em direção às árvores que margeavam o riacho, seus
cabelos compridos soltos agora, desbotando para o marrom nas
sombras e se levantando com a brisa da noite enquanto ela
chamava as crianças.
"Eu sei o que você quer dizer, no entanto. Recebi a visita de
Roger esta manhã e pedi a ele que me deixasse examinar sua
garganta. Eu senti a mesma dúvida de Tomé. Foi tão estranho
tê-lo bem ali na minha frente, tocá-lo – e, ao mesmo tempo, não
parecia nada estranho."
Esfreguei as costas de sua mão levemente com meu polegar,
108

sentindo os nós dos dedos e a leve aspereza da cicatriz que descia


de onde seu quarto dedo estivera.
"Eu me sinto assim o tempo todo, Sassenach", ele disse, sua voz
um pouco rouca. Seus dedos se curvaram sobre os meus.
"Quando eu acordo às vezes de manhã cedo, e vejo você ali ao
meu lado. Duvido que você seja real. Até eu tocar você. Ou até
que você peide..."
Eu soltei sua mão e ele rolou para longe e se levantou,
colocando-se sentado, os cotovelos confortavelmente dobrados
sobre os joelhos.
"Então, como está Roger Mac?" ele perguntou, ignorando meu
olhar fixo. "Você acha que ele vai ter sua voz de volta?"
"Não sei", disse eu. "Eu realmente não sei. Mas deixe-me contar
o que ele me disse sobre um homem chamado Hector
McEwan..."
Ele ouviu com grande atenção, mexendo-se apenas para afastar
nuvens errantes de mosquitos.
"Você já viu isso por si mesma, a nighean?", ele perguntou
quando eu terminei. "Luz azul, como ele disse?"
Um pequeno e profundo arrepio passou por mim que não teve
nada a ver com o ar frio. Eu desviei o olhar, para um passado
enterrado. Ou um que eu tentei enterrar.
"Eu... bem, sim", eu disse, e engoli em seco. Mas eu pensei que
estava tendo alucinações na época, e é bem possível que
estivesse. Estou razoavelmente certa de que estava realmente
morrendo, e a morte iminente pode alterar as percepções de
alguém."
"Sim, é verdade", disse ele, um tanto secamente. "Mas isso não
quer dizer que o que você vê em tal estado não seja verdade."
Ele olhou atentamente para o meu rosto, considerando.
109

"Você não precisa me dizer", ele continuou calmamente, e tocou


meu ombro. "Não há necessidade de viver essas coisas
novamente, se eles não voltarem por conta própria."
"Não", eu disse, talvez um pouco rápido demais. Limpei a
garganta e controlei firmemente a mente e a memória. "Eu não
vou. É que eu tive uma infecção grave e... e Mestre Raymond..."
Eu não estava olhando diretamente para ele, mas senti sua
cabeça levantar de repente com o nome. "Ele veio e me curou.
Não tenho ideia de como ele fez isso e não estava pensando em
nada conscientemente. Mas eu vi..."
Eu esfreguei a mão lentamente sobre meu antebraço, vendo de
novo. "Era azul, o osso dentro do meu braço. Não um azul
vívido, não assim..." Fiz um gesto em direção à montanha, onde
o céu noturno acima das nuvens tinha ficado da cor azul
profunda de uma esporinha. "Um azul muito suave e fraco. Mas
aquilo era... Brilho não é a palavra certa, realmente. Estava...
vivo."
Aquilo realmente estava vivo. E eu senti o azul se espalhar para
fora dos meus ossos, passar por mim. E senti a explosão dos
micróbios em meu sistema, morrendo como estrelas. A
lembrança disso arrepiou os pelos de meus braços e pescoço e
me encheu de uma estranha sensação de bem-estar, como mel
quente sendo mexido.
Um grito selvagem vindo da floresta acima quebrou o clima, e
Jamie se virou, sorrindo.
"Och, aí está o pequenino Oggy. Ele parece uma pantera
caçadora."
Eu me levantei, tirando a grama da minha saia. "Acho que ele é
a criança mais barulhenta que já ouvi."
Como se o grito tivesse sido um sinal, ouvi pios vindo do vale
110

abaixo, e uma gangue de crianças irrompeu das árvores perto do


riacho, seguida por Bree e Roger, caminhando lentamente, as
cabeças inclinando-se em direção uma à outra, profundamente
no que parecia ser uma conversa satisfeita.
"Vou precisar de uma casa maior", disse Jamie, pensativo.
Antes que ele pudesse expandir essa noção interessante, no
entanto, os Murray apareceram no caminho que descia do lado
leste da Cordilheira, Rachel carregando Oggy – que berrava por
cima do ombro – e Ian atrás dela com uma grande cesta coberta.
"As crianças?" Rachel disse a Jamie. Jamie se levantou,
sorrindo, então acenou com a cabeça em direção à clareira
abaixo.
"Veja por si mesmo, a nighean."
Jem, Mandy e Germain haviam sido separados de seus
companheiros e agora estavam seguindo Bree e Roger,
empurrando um ao outro amigavelmente.
"Oh", Rachel disse muito suavemente, e eu vi seus olhos
castanhos amolecerem também. "Oh, Jamie. Tua filha se parece
tanto contigo – e o filho dela também!"
"Eu disse a você", Ian disse, sorrindo para ela, e ela colocou a
mão em seu braço, apertando com força.
"Tua mãe..." Rachel balançou a cabeça, incapaz de pensar em
algo suficientemente descritivo do estado emocional de Jenny.
"Bem, eu duvido que ela desmaie", disse Jamie, levantando-se
cautelosamente. "Ela encontrou a moça uma vez antes, mas não
os filhos. Onde ela está, então?" Ele olhou para o caminho que
levava à floresta, como se esperasse que sua irmã se
materializasse enquanto ele falava.
"Ela vai ficar na casa dos MacNeill esta noite", disse Rachel, e
colocou Oggy na grama, onde ele ficou se contorcendo de uma
111

maneira vagarosa. "Ela e Cairistina MacNeill tornaram-se muito


amigas enquanto estávamos fazendo colchas, e Cairistina nos
contou que seu marido foi para Salisbury e ela estava assustada
com a ideia de ficar sozinha à noite, pois a casa deles ficava
muito longe do vizinho mais próximo."
Eu balancei a cabeça para isso. Cairistina era muito jovem,
recém-casada – ela era a terceira esposa de Richard MacNeill –
e viera de Campbelton, perto de Cross Creek. A noite na
montanha era muito escura e cheia de coisas invisíveis.
"Jenny foi muito gentil", eu disse.
Ian deu uma breve bufada de diversão. "Não direi que minha
mãe não é gentil", disse ele. "Mas vou lhe dar boas chances de
que ela foi ficar lá por conta própria tanto quanto a da senhora
MacNeill." Ele acenou com a cabeça para Oggy, que estava
choramingando, uma longa trilha de baba pendurada em seu
lábio inferior. "O rapaz teve cólicas três noites seguidas e é uma
cabana pequena, certo? Eu apostaria três contra um que ela está
esticada como um cadáver na cama da sra. MacNeill agora,
profundamente adormecida."
"Ela caminhou pela estrada com ele metade da noite", Rachel
disse se desculpando para mim. "Eu disse a ela que o levaria,
mas ela disse, Shhhhh, e para que serve uma vovó, então?" Ela
se agachou e pegou Oggy antes que ele pudesse começar a imitar
uma sirene de ataque aéreo. "O que tu achas de Marmaduke,
Claire?"
"De ... oh, como um nome para Oggy, você quer dizer?"
Eu rapidamente reorganizei meu rosto, mas era tarde demais.
Rachel riu.
"Isso é o que Jenny disse. Ainda assim", ela acrescentou,
removendo a ponta de sua trança escura dos dedos agitados de
seu filho, "Marmaduke Stephenson foi um dos mártires de
112

Boston: um Amigo muito poderoso. Seria um bom nome."


"Bem, eu garanto a você, ele não seria facilmente confundido
com outra pessoa, se você o chamasse de Marmaduke", Jamie
disse, tentando ser diplomático. "E ele aprenderia a lutar desde
o início. Mas se você quer que ele seja um quacre..."
"Sim", disse Ian para Rachel. "E não o estamos chamando de
Temor ao Senhor, também, moça. Talvez Fortitude, no entanto;
esse é um nome viril decente."
"Humm", disse ela, avaliando sua prole. "O que tu achas de
Sabedoria? Sabedoria Murray? Sabedoria Ian Murray?"
Ian riu. "Sim, e se o rapaz se revelar um idiota? Buscando
problemas, não é?"
Jamie inclinou a cabeça e semicerrou os olhos para Oggy,
pensando, depois olhou para Ian, depois para Rachel, e balançou
a cabeça.
"Dados os pais dele, não acho que seja provável. Mesmo assim...
você já pensou em homenagear seu pai, Rachel? Qual era o
nome do seu pai?"
"Mordecai", disse ela. "Possivelmente não como um primeiro
nome ...”
Eu olhei para o fogo, uma transparência avermelhada oscilante
à luz do dia. "Ian, você poderia avivar o fogo um pouco? Vou
cozinhar as pombas nas cinzas e então... hummm..."
Olhei para trás, para a colina abaixo, contando as cabeças à
medida que subiam. As crianças Higgins haviam se separado e
ido para sua própria cabana para jantar, então isso nos deixou
com – contei rapidamente nos dedos – sete adultos, quatro
crianças – e eu tinha um grande caldeirão de lentilhas com ervas
e presunto com osso que tinha ficado borbulhando desde o meio-
dia. Bree tirou a pele e limpou os esquilos que trouxe – talvez
113

fosse melhor eu cortá-los e colocá-los na panela. E então...


"Trouxemos para ti um pequeno acréscimo à tua ceia, Claire."
Rachel acenou com a cabeça em direção à cesta em seu braço.
"Não, Oggy, tu não deves puxar os cabelos de tua mãe. Eu posso
ficar assustada e te jogar no fogo, e isso seria uma vergonha
terrível, não é?"
Eu ri dessa ameaça muito quacre, mas Oggy largou o fim da
trança de sua mãe e enfiou o punho na boca em vez disso, me
olhando com um olhar pensativo.
"Vamos", eu disse, estendendo a mão para ele. "Você tem
primos para conhecer, jovem Oglethorpe."
-.-.-
A PERNA DE JAMIE não doía muito, mas estava machucada e
sensível, e ele ficou feliz por se sentar no grande toco perto do
consultório improvisada de Claire e deixar seus ossos
descansarem enquanto observava sua família, ocupada em fazer
o jantar.
Brianna estava lidando com o veado despedaçado, ainda usando
as roupas de caça que ele havia emprestado a ela. Ele observou
sua mão segura com a faca e o poder de seus ombros
trabalhando, orgulhoso dela. Ela tirou essa habilidade dele
mesmo, ele se perguntou – ou de sua mãe? Não eram apenas as
mãos, nem o simples conhecimento de como fazer isso... era
uma firmeza da mente, ele pensou com aprovação. O
reconhecimento de um trabalho a ser feito e a não necessidade
de questioná-lo.
Ele olhou para Roger, que estava rachando lenha, despido da
cintura para cima e suando. Esse rapaz tinha questionamentos e
provavelmente sempre teria. Jamie pensou que talvez sentisse
uma nova determinação nele, entretanto; ele precisaria disso.
114

Claire disse que ele pretendia continuar sendo ministro. Isso era
bom; o povo precisava de alguém para cuidar de suas almas, e
Roger claramente precisava de algo que valesse a pena. Claire
disse que ele contou a ela que havia refletido sobre isso e se
decidido.
Brianna, porém ... qual poderia ser a forma de sua vida aqui,
agora? Ela ensinou um pouco em sua pequena escola, quando
ela esteve aqui antes. Ele não achava que ela realmente gostasse
de ensinar, no entanto; ele achava que ela não sentiria falta. Ela
se levantou enquanto ele observava e se espreguiçou, os braços
alcançando o céu. Cristo, ela é uma moça forte...
Talvez ela tenha mais filhos. Ele estava quase com medo de
pensar assim. Ele não queria que ela se arriscasse. E Jem e
Mandy precisavam dela. Mesmo assim... O pensamento era uma
pequena esperança verde em seu peito e ele sorriu, observando
o nó de crianças trazendo lenha para cima, largando-a no chão e
correndo para se juntar ao jogo do que quer que estivessem
jogando. Esconde-esconde, talvez... lá estava a pequenina
Frances, trazendo um feixe de gravetos e um punhado de flores.
Ela tinha perdido a touca e seus cachos escuros caíram de um
lado, espalhando-se sobre um ombro. Seu rosto estava rosado
com o exercício e ela sorria; ele estava feliz em ver isso.
Algo fez cócegas em sua perna, interrompendo seus
pensamentos. Havia uma coisa verde que parecia uma pequena
pá pousada em seu joelho levantado.
Ele moveu a mão com cautela em direção a ele, mas não tinha
medo dele e não voou ou retaliou tentando entrar em suas
orelhas ou nariz como as moscas faziam. Deixou-o tocar sua
parte traseira, meramente contraindo suas antenas em leve
aborrecimento, mas quando ele tentou acariciar suas costas, ela
saltou de seu joelho, repentinamente como um gafanhoto, e
115

pousou na borda da caixa de remédios de Claire, onde pareceu


parar para fazer um balanço de suas circunstâncias.
"Não faça isso", aconselhou ao inseto, em gaélico. "Você vai
acabar como um tônico ou transformado em pó." Ele não sabia
dizer se estava olhando para ele, mas pareceu considerar, então
deu outro salto surpreendente e desapareceu.
Fanny havia trazido algum tipo de planta para Claire, e Claire
estava revirando as folhas, o rosto brilhando de interesse,
explicando para que ela servia. Fanny brilhava, um pequeno
sorriso de prazer por ser útil em seu rosto.
A visão dela aqueceu seu coração. Ela ficou tão assustada
quando Willie a trouxe até eles – e não era de se espantar, pobre
menininha. Havia um lugar mais frio em seu coração onde sua
irmã, Jane, morava.
Ele fez uma pequena prece pelo repouso da alma de Jane – e,
após um instante de hesitação, outra por Willie. Sempre que
pensava em Jane, ele a via em sua mente, sozinha e abandonada
na noite negra, o rosto totalmente branco, morta à luz de sua
única vela. Morta por suas próprias mãos, e a igreja a condenava
ao inferno por isso, mas ele teimosamente orava por sua alma de
qualquer maneira. Eles não podiam impedi-lo.
Dinna fash, a leannan, ele pensou para ela, ternamente. Eu
manterei Frances a salvo para você, e talvez eu a veja no céu
um dia. Não tenha medo.
Ele esperava que alguém mantivesse William seguro para ele.
Por mais terrível que fosse a memória daquela noite, ele a
guardou, lembrando-se dela deliberadamente. William tinha
vindo a ele em busca de ajuda, e ele valorizava isso. A sensação
dos dois, perseguindo uma causa perdida em uma noite chuvosa
e perigosa, parados juntos na desolação à luz daquela vela, tarde
demais. Era uma memória terrível, mas que ele não queria
116

esquecer.
Mammaidh, ele pensou, sua mãe vindo de repente à mente.
Cuide do meu bonnie lad, sim?
117

VIVO OU MORTO

WILLIAM, NONO CONDE DE Ellesmere, visconde de


Ashness, barão de Derwent, encostou-se a um carvalho, fazendo
um balanço de seus recursos. No momento, estes consistiam em
um cavalo bastante bom – um belo baio escuro com nariz branco
que (William fora informado pelo proprietário anterior do
cavalo) atendia pelo nome de Bartolomeu – junto com um saco
de lona contendo uma quantidade desanimadoramente pequena
de comida e meia garrafa de cerveja velha, uma faca decente e
um mosquete que poderia, em um piscar de olhos, ser usado para
bater em alguém, porque tentar atirar sem dúvida explodiria a
mão, o rosto de William – ou ambos.
Ele tinha três libras, sete xelins, dois pence e um punhado de
pequenas moedas e fragmentos de metal que um dia poderiam
ter sido moedas – um efeito colateral benéfico de um
relacionamento ruim com uma unidade da milícia americana que
ele encontrou em uma taverna à beira da estrada. Eles tinham,
eles disseram, servido com as tropas continentais em Monmouth
e estiveram com o general Washington seis meses antes,
Acampamento Middlebrook – o último lugar conhecido onde
Benjamin, o primo de William, tinha sido visto vivo.
Se Benjamin ainda estava vivo era uma questão de considerável
especulação, mas William estava determinado a prosseguir
nessa suposição a menos que encontrasse prova em contrário.
Seu encontro com os milicianos de Nova Jersey não rendeu
nenhuma informação a esse respeito, mas produziu vários
homens ávidos por jogar cartas, que ficavam mais selvagens em
suas apostas à medida que a noite avançava e a bebida acabava.
118

William esperava encontrar um lugar esta noite onde o dinheiro


que ele ganhou pudesse comprar o jantar e uma cama para ele;
no momento, parecia muito mais provável que ele fosse morto.
Ele descobriu que o amanhecer costuma ser um momento para
arrependimentos e, aparentemente, os americanos compartilham
esse sentimento hoje. Eles acordaram belicosos em vez de
nauseados, porém, e logo depois disso acusaram William de
trapacear nas cartas, fazendo com que ele se despedisse
abruptamente.
Ele espiou com cautela através do dossel inclinado de um
carvalho branco. A estrada corria por mais ou menos um metro
de seu esconderijo e, embora estivesse abençoadamente
desocupada no momento, a trilha lamacenta estava obviamente
bem percorrida, marcada e agitada pela recente passagem de
cavalos.
Ele os ouviu chegando, graças a Deus, a tempo de tirar Bart da
estrada e escondê-lo em um emaranhado de arbustos e vinhas.
Ele se arrastou para perto da estrada bem a tempo de ver alguns
dos homens de quem ganhou dinheiro na noite anterior, agora
meio recuperados de seu sono encharcado e com vontade de
recuperá-lo, a julgar por seus gritos incoerentes conforme eles
passavam.
Ele olhou para a luz verde bruxuleante que descia por entre as
folhas; não passava do meio da manhã. Muito ruim. Ele não
achou sábio voltar para a taverna, onde os outros milicianos
estavam sem dúvida se mexendo, e ele não tinha ideia de quão
longe poderia ser o próximo povoado. Ele mudou seu peso e
suspirou; ele não gostava de ficar matando o tempo debaixo de
uma árvore – que, ele percebeu, era do tamanho e forma
perfeitos para pendurar um homem – até que o grupo que o
perseguia se cansasse e voltasse para o outro lado. Ou até o
anoitecer, o que viesse primeiro.
119

O que veio a seguir foi o som de cavalos, mas menos deles. Três
homens cavalgando devagar.
Cloaca obscaena49. Ele não disse em voz alta, mas as palavras
soaram claras em sua cabeça. Um dos homens era o senhor de
quem ele havia comprado Bart, dois dias antes, e os outros eram
da unidade da milícia.
A outra coisa que ficou clara para ele foi a visão do membro
anterior direito de Bart, no qual faltava um grande pedaço
triangular da ferradura.
Ele não esperou para ver se o ex-proprietário poderia pegar o
rastro de Bart no lamaçal que era a estrada. Ele se esquivou do
carvalho e abriu caminho o mais rápido que pôde através do
mato, que se dane o barulho.
Bart, a quem ele havia deixado fuçando em busca de
comestíveis, estava atento, com a cabeça erguida, orelhas em pé
e narinas dilatadas de interesse.
"Não!", William disse em um sussurro frenético. "Não..."
O cavalo relinchou alto.
William soltou o cavalo e saltou para a sela, juntando as duas
rédeas em uma das mãos e alcançando o mosquete com a outra.
"Vai!", ele gritou, chutando Bart com força, e eles quebraram a
barreira de arbustos e caíram na estrada em uma chuva de folhas
e lama.
Os três cavaleiros se reuniam na beira da estrada, um homem
agachado na lama, olhando para a massa de trilhas sobrepostas.
Todos eles se viraram para olhar boquiabertos para William, que
berrou algo incoerente para eles e brandiu seu mosquete
enquanto virava bruscamente para a esquerda e avançava na
49
Esgoto obsceno, em latim.
120

direção da taverna, curvado sobre o pescoço de seu cavalo.


Ele podia ouvir maldições gritadas atrás dele, mas ele tinha uma
boa vantagem. Ele poderia se safar.
Quanto ao que poderia acontecer se ele conseguisse escapar...
não importava. Não havia mais nada que ele pudesse fazer. Ficar
preso entre dois grupos de cavaleiros hostis não o atraía.
Bart tropeçou. Escorregou na lama e caiu, William atirando-se
por cima de sua cabeça e caindo de costas com um “splat”! que
o deixou sem fôlego e sem o mosquete em sua mão.
Eles estavam sobre ele antes que pudesse se lembrar de como
respirar. Sua cabeça girava e tudo era um borrão de formas em
movimento. Dois dos homens o puxaram para cima e ele ficou
pendurado entre eles, o sangue rugindo em seus ouvidos,
vibrando desamparadamente de fúria e medo, a boca abrindo e
fechando como um peixinho dourado.
Eles não perderam tempo com ameaças. O ex-dono de Bart deu
um soco em seu rosto e os outros o soltaram, jogando-o de volta
na lama. Mãos vasculharam seus bolsos e arrancaram a faca de
seu cinto. Ele ouviu Bart zunindo por perto, agitado enquanto
um dos homens puxava a sela.
"Ei você, deixe isso em paz!", gritou o ex-dono de Bart,
levantando-se. "Esse é meu cavalo e minha sela, malditos sejam
seus olhos!"
"Não, não são", disse uma voz determinada. "Você não pegou
esse patife sem a gente! Eu fico com a sela."
"Deixe isso, Lowell! Deixe-o ficar com seu cavalo, nós
dividiremos o dinheiro." O terceiro homem evidentemente
atingiu Lowell para enfatizar sua opinião, pois houve um estalo
forte e um grito de indignação. William de repente lembrou
como respirar, e a névoa escura se dissipou de sua visão.
121

Ofegando superficialmente, ele rolou e começou a tentar se


colocar de pé.
Um dos homens lançou-lhe um breve olhar, mas claramente não
o considerou uma ameaça. Provavelmente não, ele pensou
confuso, mas ele não estava acostumado a perder lutas e a ideia
de simplesmente fugir como um cachorro chicoteado também
não era aceitável.
Seu mosquete havia caído na espessa grama florida ao longo da
estrada. Ele limpou o sangue de um olho, levantou-se, pegou a
arma e acertou o ex-proprietário de Bart com ela na nuca. O
homem estava montando e seu pé ficou preso no estribo ao cair.
O cavalo recuou e volteou com um relincho estridente de
protesto, e os homens que estavam envolvidos em dividir as
posses de William estremeceram alarmados.
Um saltou para trás e o outro avançou, agarrando o cano do
mosquete, e houve alguns segundos de confusão ofegante,
interrompida pelo som de gritos e cavalos a galope.
Distraído, William olhou ao redor para ver o grupo maior de
jogadores da noite anterior avançando sobre eles, rapidamente.
Ele largou o mosquete e mergulhou para a margem gramada.
Ele teria conseguido escapar se Bart, assustado com a investida
e o peso insensível ainda pendurado em seu estribo, não tivesse
escolhido o mesmo momento e o mesmo objetivo. Quatrocentos
quilos de cavalo em pânico enviaram William voando estrada
abaixo, onde ele caiu de cara no chão. O chão tremeu ao seu
redor e ele não pôde fazer nada mais do que cobrir a cabeça e
orar.
Houve muitos respingos, gritos e impacto. William sofreu um
chute cruzado nas costelas e um golpe violento na nádega
esquerda durante a luta enfurecida, e eles nem tomaram nota da
existência dele.
122

Por que eles estão lutando?, ele pensou vertiginosamente.


Então o tiroteio começou.
Sua posição não poderia ser facilmente melhorada. Ele
continuou deitado na estrada, com os braços cobrindo a cabeça,
enquanto os homens gritavam e praguejavam alarmados, mais
cavalos vinham galopando em sua direção e os disparos de
mosquetes passavam por cima de sua cabeça.
Disparos em sequência, uma manobra do Exército britânico?,
ele pensou de repente. Porque era isso que era, maldição, e ele
rolou e sentou-se surpreso ao ver uma companhia de Infantaria
britânica, alguns cercando com eficiência as pessoas que
tentavam fugir do local, outros recarregando eficientemente seus
mosquetes e dois oficiais a cavalo, examinando o local com uma
atitude de grande interesse.
Ele limpou a lama dos olhos e olhou fixamente para os oficiais.
Razoavelmente certo de que não conhecia nenhum dos dois, ele
relaxou um pouco. Ele não estava ferido, mas o impacto da
colisão de Bart o deixou abalado e machucado. Ele continuou
sentado no meio da estrada, respirando e deixando seu cérebro
começar a restaurar suas relações com seu corpo.
A altercação, afinal, tinha morrido. Os soldados reuniram a
maioria dos homens com quem ele estava jogando e os
cutucaram com baionetas, formando um pequeno grupo, onde
um jovem segundo-tenente prendia com eficiência suas mãos
atrás deles.
"Você", disse uma voz atrás dele, e uma bota o cutucou com
força nas costelas. "Levante-se."
Ele virou a cabeça para ver que estava sendo abordado por um
soldado, um homem mais velho exalando uma boa dose de
arrogância. De repente, ocorreu-lhe que os soldados de
infantaria poderiam supor que ele fosse um participante da briga
123

recente, e não sua vítima. Ele ficou de pé com dificuldade e


olhou para o soldado muito mais baixo, que deu um passo para
trás e ficou vermelho.
"Coloque as mãos para trás!"
Não", disse William brevemente, e, virando as costas para o
homem, deu um passo em direção aos oficiais montados. O
soldado, afrontado, investiu contra ele e o agarrou pelo braço.
"Tire suas mãos de mim", disse William. E, já que o soldado
ignorou seu pedido educado, empurrou o homem para longe e o
fez cambalear.
"Fique parado, maldito seja! Fique parado ou eu atiro!"
William se virou novamente, para encontrar outro soldado, de
rosto quente e suando, apontando um mosquete para ele. O
mosquete foi preparado e carregado – e era o mosquete de
William. Sua boca secou.
"Não... não atire", ele admoestou. "Essa arma não é..."
O primeiro soldado deu um passo atrás dele e deu-lhe um soco
sólido no rim. Suas entranhas se contraíram como se ele tivesse
sido apunhalado no estômago e sua visão ficou branca. Ele
cedeu de joelhos, mas não caiu completamente, ao invés disso
se enrolou em si mesmo como uma folha morta.
"Aquele", disse uma voz inglesa educada, penetrando na névoa
branca e vibrante. "Aquele, aquele, e este, o sujeito alto.
Levante-o."
Mãos agarraram os ombros de William e o puxaram para cima.
Ele mal conseguia respirar, mas fez um ruído estrangulado. Em
meio a uma névoa de lágrimas e lama, ele viu um dos oficiais,
ainda a cavalo, olhando para ele criticamente.
"Sim", disse o oficial. "Enforque esse também."
-.-.-
124

WILLIAM examinou seu lenço criticamente. Não havia sobrado


muito dele; eles tentaram usar o pedaço de pano para amarrar
seus pulsos e ele o rasgou em tiras. Mesmo assim... Ele assoou
o nariz, muito gentilmente. Ainda com sangue, e ele enxugou o
ferimento com cuidado. Passos estavam subindo as escadas da
taverna em direção à sala onde ele estava sentado, guardado por
dois soldados cautelosos.
"Ele disse que é quem?", disse uma voz irritada fora da sala.
Alguém disse algo em resposta, mas se perdeu no raspar da porta
no chão irregular quando ela se abriu. Ele se levantou lentamente
e se ergueu em toda a sua altura, de frente para o oficial – um
major dos dragões50 – que acabara de entrar. O major parou
abruptamente, forçando os dois homens atrás dele a parar
também.
"Ele diz que é a porra do nono conde de Ellesmere", disse
William em um tom rouco e ameaçador, fixando o major com o
olho que ele ainda conseguia abrir.
"Na verdade, ele é", disse uma voz mais leve, soando ao mesmo
tempo divertida – e familiar. William piscou para o homem que
agora entrava na sala, uma figura esguia de cabelos escuros com
uniforme de capitão de Infantaria.
"Capitão lorde Ellesmere, na verdade. Olá, William."
"Eu renunciei à minha patente", disse William categoricamente.
"Olá, Denys."
"Mas não ao seu título." Denys Randall o olhou de cima a baixo,
mas se absteve de comentar sobre sua aparência.
"Renunciou à sua comissão, não é?" O major, um sujeito jovem

50
Os dragões eram soldados que lutavam na Cavalaria Leve no ataque, quando montados, e como um
soldado de Infantaria na defesa, quando desmontados. O termo dragão deriva de sua arma, uma espécie
de carabina ou mosquete curto com esse nome.
125

e atarracado que parecia estar com as calças muito justas, lançou


a William um olhar desagradável. "Para virar seu casaco e se
juntar aos rebeldes, eu aposto."
William respirou, duas vezes, para evitar dizer algo precipitado.
"Não", disse ele com uma voz hostil.
"Naturalmente não", disse Denys, repreendendo gentilmente o
major. Ele se voltou para William. "E, naturalmente, você
estaria viajando com uma companhia da milícia americana
porque...?"
"Eu não estava viajando com eles", disse William, sem
acrescentar "seu idiota" a esta declaração. "Eu encontrei os
cavalheiros em questão ontem à noite em uma taverna, e ganhei
deles uma quantia substancial nas cartas. Saí da taverna esta
manhã e retomei minha jornada, mas eles me seguiram, com a
óbvia intenção de pegar o dinheiro de volta à força."
"Intenção óbvia?", ecoou o major com ceticismo. "Como você
discerniu tal intenção? Senhor", ele acrescentou relutantemente.
"Eu imagino que ser perseguido e espancado até virar pó pode
ter sido uma indicação bastante inequívoca", disse Denys.
"Sente-se, Ellesmere; você está pingando no chão. Eles pegaram
de volta o dinheiro?"
Ele puxou um grande lenço branco como a neve da manga e o
entregou a William.
"Sim. Junto com tudo o mais em meus bolsos. Não sei o que
aconteceu ao meu cavalo."
Ele enxugou o lábio partido com o lenço. Ele podia sentir o
cheiro da colônia de Randall, apesar do nariz inchado – a
verdadeira Eau de Cologne, com cheiro de Itália e sândalo.
Lorde John a usava de vez em quando, e o cheiro o confortava
um pouco.
126

"Então você afirma não saber nada sobre os homens com quem
o encontramos?" disse o outro oficial, este um tenente, um
homem mais ou menos da mesma idade de William, ávido como
um terrier. O major lançou-lhe um olhar de desgosto, indicando
que não achava que precisava de ajuda para questionar William,
mas o tenente não estava prestando atenção.
"Certamente, se você estava jogando cartas com eles, você deve
ter reunido alguma informação?"
"Eu sei alguns de seus nomes", disse William, sentindo-se
repentinamente muito cansado. "Isso é tudo."
Isso realmente não era tudo, nem de longe, mas ele não queria
falar sobre as coisas que sabia – que Abbot era um ferreiro e
tinha um cão inteligente que o ajudava em sua forja, pegando
pequenas ferramentas ou gravetos para o fogo quando
solicitado. Justin Martineau tinha uma nova esposa, para cuja
cama ele desejava retornar. A esposa de Geoffrey Gardener fazia
a melhor cerveja da aldeia, e a de sua filha era quase tão boa,
embora ela tivesse apenas 12 anos. Gardener era um dos homens
que o major escolhera para enforcar. Ele engoliu em seco, a
garganta cheia de poeira e palavras não ditas.
Ele escapou do laço em grande parte por causa de sua habilidade
em praguejar em latim, o que deixou o major desconcertado por
tempo suficiente para que William identificasse a si mesmo, seu
ex-regimento e uma lista de oficiais do exército proeminentes
que responderiam por ele, começando com o general Clinton51
(Deus, onde estava Clinton agora?).
Denys Randall estava murmurando para o major, que ainda
parecia aborrecido, mas havia passado de uma fervura completa

51
General sir Henry Clinton (1730–1795). Um estrategista de campo na Batalha de Bunker Hill (17
de junho de 1775) e segundo em comando do general Howe na Batalha de Nova York (27 de agosto de
1776). Clinton substituiu o general Howe como comandante-chefe após a renúncia de Howe, como
resultado de sua rendição, em Saratoga, ao Exército Continental.
127

para uma fervura descontente. O tenente observava William


atentamente, com os olhos semicerrados, obviamente esperando
que ele pulasse do banco e fugisse. O homem ficava
inconscientemente tocando sua caixa de cartuchos e, em
seguida, sua pistola no coldre, claramente imaginando a
maravilhosa possibilidade de que ele poderia atirar em William
e matá-lo enquanto ele corria para a porta. William bocejou,
enorme e inesperadamente, e ficou piscando, a exaustão
inundando-o como a maré.
Neste momento, ele realmente não se importava com o que
aconteceria a seguir. Seus dedos ensanguentados deixaram
manchas na madeira gasta da mesa e ele olhou para elas
absorvido, sem prestar atenção ao que estava sendo dito – até
que seu ouvido machucado captou "agente de inteligência".
Ele fechou os olhos. Não. Apenas... não. Mas ele estava ouvindo
novamente, apesar de si mesmo.
As vozes aumentaram, se sobrepuseram, se interromperam. Mas
ele estava prestando atenção agora e percebeu que Denys estava
tentando convencer o major de que ele, William, estava
trabalhando como espião, obtendo informações de grupos de
milícias americanas como parte de um esquema para...
sequestrar George Washington?
O major pareceu tão surpreso quanto William ao ouvir isso. As
vozes diminuíram quando o major deu as costas para William,
inclinando-se para Denys e sibilando perguntas. Denys, maldito
seja, não se abalou, mas baixou a voz respeitosamente. Onde
diabos estava George Washington? Ele não poderia estar a
menos de trezentos quilômetros ... poderia? Exceto pela batalha
no Tribunal de Monmouth, a última vez em que William tinha
ouvido falar dos movimentos de Washington52, ele estava
52
General George Washington (1732-1799). Veterano da Guerra entre Franceses e Índios (a parte da
América do Norte da Guerra dos Sete Anos) e um dos Pais Fundadores da nação norte-americana. Quando
128

estacionado nas montanhas de Nova Jersey. O último lugar onde


seu primo Benjamin fora visto.
Ouviam-se ruídos do lado de fora da taverna – bem, havia sons
o tempo todo, mas eram os barulhos incipientes de homens
sendo conduzidos, ordens, pisoteamento, protestos. Agora os
sons assumiram um caráter mais organizado e ele reconheceu os
ruídos da partida. Uma voz elevada de autoridade, dispensando
tropas? Homens se afastando em um movimento conjunto, mas
não como soldados; nada ordenado nesse arrastar de pés e
murmúrios que ele ouvia sob o som mais próximo da discussão
de Denys com o major Sabe-se-lá-quem. Não havia como dizer
o que estava acontecendo, mas não parecia um enforcamento
oficial. Ele compareceu a uma dessas funções três anos antes,
quando um capitão americano chamado Hale53 foi executado
como... espião. Ele não tinha tomado seu café da manhã e sentiu
o gosto de bile quando a palavra caiu como chumbo frio em seu
estômago.
Obrigado, Denys Randall... ele pensou, e engoliu em seco. Ele
uma vez pensou em Denys como um amigo, e embora ele tenha
se desiludido dessa noção três anos atrás pelo abrupto
desaparecimento de Denys de Quebec, deixando William preso
pela neve e sem propósito, ele não tinha pensado que o homem
o usaria abertamente como uma ferramenta. Mas uma
ferramenta para qual propósito?
Denys parecia ter ganhado a discussão. O major se virou e
lançou a William um olhar avaliador de olhos estreitos, então
balançou a cabeça, virou-se e saiu, seguido por seu tenente

o segundo Congresso Continental foi convocado na Filadélfia em 1775, ele foi nomeado comandante-
chefe do Exército Continental, e em 1787 foi eleito como primeiro presidente dos EUA.
53
Nathan Hale (1755 - 1776). Soldado norte-americano e espião do Exército Continental durante a
guerra pela independência norte-americana. Ele se ofereceu para uma missão de coleta de informações
em Nova York, mas foi capturado pelos britânicos e executado. É atribuída a ele,sem fontes
confirmadas, a famosa frase "Só lamento ter apenas uma vida para dar pelo meu país" – "I only regret
that I have but one life to lose for my country." No livro 7 cap 20, William se encontra com Nathan
Hale e testemunha sua morte.
129

relutantemente obediente.
Denys ficou imóvel, ouvindo os passos deles descendo as
escadas. Então ele respirou fundo e visivelmente, endireitou o
casaco e veio sentar-se em frente a William.
"Isso aqui não é uma taverna?", William disse antes que Denys
pudesse falar.
"É sim." Uma sobrancelha escura se ergueu.
"Então me dê algo para beber antes de começar a me dizer o que
diabos você acabou de fazer comigo."
-.-.-
A CERVEJA ESTAVA boa e William sentiu pesar por Geoffrey
Gardener, mas não havia nada que ele pudesse fazer pelo
homem. Ele bebeu com sede, ignorando a ardência do álcool em
seu lábio partido, e começou a se sentir um pouco mais calmo.
Denys estivera se dedicando à sua própria cerveja com igual
intensidade e, pela primeira vez, William conseguiu dispensar
atenção para notar a camada profunda de poeira que manchava
os punhos largos de Denys e a sujeira de camisa. Ele estivera
cavalgando há dias. Ocorreu a William se perguntar se talvez a
aparição oportuna de Denys não tivesse sido inteiramente um
acidente. Mas se não, por quê? E como?
Denys esvaziou sua caneca e a pousou, os olhos fechados e a
boca entreaberta com um contentamento momentâneo. Então ele
suspirou, endireitou-se, abriu os olhos e se ajeitou.
"Ezekiel Richardson", disse ele. "Quando você o viu pela última
vez?"
Não era isso que ele esperava. William enxugou a boca com
cuidado na manga e ergueu uma sobrancelha e sua caneca vazia
para a garçonete que a esperava, que pegou as duas canecas e
desapareceu escada abaixo.
130

"Falando sério?", ele disse. "Uma ou duas semanas antes de


Monmouth... talvez um ano atrás. Eu não iria falar com ele, no
entanto. Por que?"
A menção de Richardson o irritou. O homem tinha – de acordo
com Denys, ele lembrou a si mesmo – deliberadamente o
enviado ao pântano Great Dismal54, com o objetivo de
sequestrá-lo ou fazê-lo ser morto por rebeldes de Dismal Town.
Ele quase morreu no pântano, e a menção ao homem o deixava
mais do que nervoso.55
"Ele virou o casaco", Denys disse sem rodeios. "Já fazia algum
tempo que suspeitava que ele fosse um agente americano, mas
foi só quando ele o mandou para o pântano que comecei a ter
certeza disso. Mas eu não tinha provas, e é perigoso acusar um
oficial de espionagem sem elas."
"E agora você tem provas?"
Denys deu a ele um olhar penetrante.
"Ele deixou o exército – sem a delicadeza de renunciar", devo
acrescentar, "e apareceu em Savannah no inverno, alegando ser
um major do Exército Continental. Acho que isso pode ser
considerado uma prova suficiente?"
"Se for, então o quê? Há algo para comer neste lugar? Eu não
tomei nenhum café da manhã."
Denys olhou atentamente para ele, mas depois se levantou sem
fazer comentários e desceu as escadas, provavelmente em busca
de comida. William estava de fato muito tonto, mas também
queria alguns momentos para chegar a um acordo com essa
revelação.

54
O Great Dismal é um grande pântano localizado na região da planície costeira do sudeste da Virgínia e
nordeste da Carolina do Norte.
55
William conhece Ezekiel Richardson e Denys Randall (filho de Mary Hawkins e Alex Randall, mas
oficialmente seu pai é Jonathan Randall, o conhecido Black Jack Randall) no livro 7. A viagem a Quebec
e os acontecimentos no Great Dismal também ocorrem nesse livro.
131

Seu pai conhecia Richardson ligeiramente – foi assim que


William começou a assumir pequenas missões de inteligência
para ele. Tio Hal tinha – como a maioria dos soldados –
considerado a Inteligência – ou seja, a espionagem – uma
atividade inadequada para um cavalheiro, mas Papa não tinha
mostrado nenhuma reserva sobre isso. Também foi Papa quem
o apresentou a Denys Randall, que na época se chamava
Randall-Isaacs. Ele passou alguns meses com Randall-Isaacs em
Quebec, bisbilhotando a região sem finalidade aparente, antes
que Denys abruptamente partisse em alguma missão não
revelada, deixando William com um guia nativo. Com certeza,
Denys era... Pela primeira vez, a absoluta convicção de que
Denys era um espião e a ideia de que o próprio Papa poderia ter
sido um, flutuaram em sua cabeça. Por reflexo, ele bateu a palma
da mão contra a têmpora em um esforço para desalojar a ideia,
mas isso não deu certo.
Savannah. No inverno. O Exército britânico havia conquistado
a cidade no final de dezembro. Ele esteve lá logo depois, e tinha
bons motivos para se lembrar disso. Sua garganta se fechou.
Jane.
Vozes abaixo e os passos de Denys voltando. William tocou o
nariz; estava sensível e parecia duas vezes maior que o normal,
mas havia parado de sangrar. Denys entrou, sorrindo para
tranquilizá-lo.
"A comida está a caminho! E mais cerveja – a menos que você
precise de algo mais forte?" Ele olhou atentamente para
William, tomou uma decisão e deu meia-volta. "Vou buscar um
pouco de conhaque."
"Isso pode esperar. O que – se é que existe alguma coisa –
Ezequiel Richardson tem a ver com meu pai?", William exigiu
abruptamente.
132

Isso congelou Denys, mas apenas momentaneamente. Ele foi até


a mesa e sentou-se lentamente, os olhos fixos em William com
uma expressão distinta de cálculo.
Cálculos. William realmente podia ver pensamentos passando
pela mente do homem –ele apenas não conseguia dizer o que
qualquer um deles era.
Denys respirou fundo e colocou as duas mãos na mesa, as
palmas para baixo, como se estivesse se preparando.
"O que o faz pensar que ele tem alguma coisa a ver com lorde
John?"
"Ele – lorde John, quero dizer – conhece o sujeito. Richardson
se aproximou dele com a ideia de que eu deveria... ficar de olho
em informações interessantes."
"Entendo", disse Denys, muito secamente. "Bem, se eles fossem
amigos, eu deveria dizer que tal relação não existe mais entre
eles. Richardson foi ouvido proferindo certas ameaças a respeito
de seu pai, embora ele aparentemente não tenha escolhido agir
de acordo com elas. Ainda", ele adicionou delicadamente.
"Que tipo de ameaças?" Uma onda de alarme raivosa disparou
na espinha de William com isso, e o sangue subiu dolorosamente
em seu rosto machucado.
"Tenho certeza de que são infundadas", começou Denys.
William meio que se levantou. "Maldição, me diga, ou eu
arranco seu nariz de merda." Ele estendeu a mão, os nós dos
dedos inchados posicionados para fazer exatamente isso, e
Denys empurrou seu banco para trás com um grito e se levantou,
rápido.
"Vou levar em conta sua condição, Ellesmere", disse ele, dando
a William um olhar firme, do tipo que as pessoas usam com um
cachorro que ameaça morder. "Mas..."
133

William fez um ruído baixo na garganta.


Denys deu um passo involuntário para trás. "Tudo bem!", ele
perdeu a cabeça. "Richardson ameaçou tornar conhecido que
lorde John é um sodomita."
William piscou, congelado por um momento. A palavra nem
mesmo fez sentido imediatamente.
Então de repente fez, mas ele foi impedido de dizer qualquer
coisa pela entrada da garçonete, uma garota rechonchuda, de
aparência atormentada, com um olho semicerrado, carregando
uma enorme bandeja com comida e bebida. O cheiro de carne
assada, vegetais com manteiga e pão fresco machucou as
membranas de seu nariz, mas fez seu estômago se contorcer de
urgência repentina. Não urgente o suficiente para desviar sua
atenção do que Randall acabara de dizer, porém. William se
levantou, fez uma reverência à garota que saía e fechou a porta
da sala com firmeza antes de se voltar para Denys.
"Um o quê? Isso é..."
William fez um gesto amplo, indicando a total incredibilidade
disso. "Ele era casado, pelo amor de Deus!"
"Então, eu entendo. Com a, hum, viúva bem-disposta de um
general rebelde escocês. Isso foi bem recente, não foi?" O canto
da boca de Denys Randall se contraiu um pouco em diversão, o
que enfureceu William.
"Eu não quis dizer isso!", ele perdeu a cabeça. "E ele não estava
... quero dizer, o maldito escocês não está morto, foi algum tipo
de engano. Meu pai foi casado durante anos com minha mãe –
quero dizer, minha madrasta – com uma dama do Lake District."
Ele bufou, zangado, e se sentou. "Richardson não pode nos
causar nenhum dano com esse tipo de fofoca mentirosa."
Denys franziu os lábios e exalou, lentamente. "William", disse
134

ele pacientemente, "a fofoca provavelmente matou mais homens


do que o fogo de um mosquete."
"Bobagem."
Denys sorriu ligeiramente e reconheceu o exagero com um leve
encolher de ombros. "Isso pode ser um pouco demais, mas pense
sobre isso. Você conhece o valor da palavra de um homem, de
seu caráter. Se o major Allbright não tivesse acreditado na minha
palavra agora mesmo, você estaria morto."
Ele apontou um dedo bem cuidado para William. "E se alguém
tivesse dito a ele que eu ganhava a vida trapaceando nas cartas
ou fosse o principal investidor em uma casa obscena popular?
Ele estaria tão inclinado a aceitar meu testemunho quanto à
solidez de seu caráter?"
William olhou para ele com ceticismo, mas havia algo nisso.
"Quem rouba minha bolsa rouba lixo56, esse tipo de coisa?"
O sorriso se alargou.
"… Mas quem do nome honrado me espolia, me priva de algo
que não o enriquece, mas me deixa paupérrimo." Sim, esse tipo
de coisa. Considere que tipo de fofoca que Zeke Richardson tem
em mente poderia fazer à sua família, hein? E enquanto isso,
pare de me olhar carrancudo e coma alguma coisa."
William relutantemente considerou. Seu nariz havia parado de
sangrar, mas havia um gosto de ferro no fundo da garganta. Ele
limpou e cuspiu, tão educadamente quanto possível, nos trapos
de seu lenço, guardando a contribuição mais substancial de
Denys para se limpar.
"Tudo bem. Eu percebo o que você está dizendo", ele disse

56
Referência à Cena III, do Ato 3, de Otelo, de Shakespeare, assim como a frase entre aspas a seguir.
Significa que o roubo de bens materiais é uma ninharia, lixo; mas a espoliação do bom nome tem efeitos
catastróficos.
135

rispidamente.
"Um amigo de seu pai – um major Bates – foi condenado por
sodomia e enforcado, alguns anos atrás", disse Denys. "Seu pai
escolheu estar presente no enforcamento; ele se agarrou às
pernas do major para apressar sua morte57. Eu não acho que ele
teria mencionado esse incidente para você, no entanto."
William fez um pequeno movimento negativo com a cabeça. Ele
ficou momentaneamente muito chocado para dizer qualquer
coisa.
"Existe a morte da alma, assim como a morte do corpo, sabe.
Mesmo se ele não fosse preso, nem julgado e condenado... um
homem assim acusado pode muito bem perder sua vida como
ela existe atualmente."
Isso foi dito baixinho, quase sem cerimônia, e Denys seguiu este
comentário sentando-se ereto, pegando uma colher e colocando
diante de William um prato de peltre58 cheio de fatias de porco
assado, abóbora frita com milho e várias fatias grossas de pão de
milho. Em seguida, despejou uma generosa porção de conhaque
num copo para acompanhar.
"Coma", Denys repetiu com firmeza. "E então", com um olho na
confusão geral de William, "diga-me o que, em nome de Deus,
você tem feito. O que o fez renunciar à sua patente, para
começar?"
"Não é da sua conta", disse William bruscamente. "Quanto ao
que estou fazendo..."
Ele ficou tentado a dizer que isso também não era da conta de
Denys – mas não podia ignorar as possibilidades de Denys como

57
Cena marcante de ‘Lord John and The Brotherhood of the Blade’ A Irmandade da Espada.
58
Peltre é uma liga de metal maleável, tradicionalmente composta de 85-99% de estanho, misturado
com cobre, antimônio, bismuto e às vezes chumbo, embora o uso de chumbo seja menos comum hoje
em dia.
136

fonte de informação. Afinal, era o trabalho de um espião


descobrir as coisas.
"Se você quer saber, estou procurando algum vestígio de meu
primo, Benjamin Grey. Capitão Benjamin Grey", acrescentou.
"Do Trigésimo Quarto da Infantaria59. Você o conhece, por
acaso?"
Denys piscou, sem expressão, e William sentiu uma pequena e
surpreendente sacudida na boca do estômago – a mesma
sensação que sentia quando um peixe mordiscava sua isca. "Eu
o conheci", Randall disse cautelosamente. "Vestígio", você
disse? Ele está... perdido?"

"Você poderia dizer que sim. Ele foi capturado em


Brandywine60 e mantido prisioneiro em um lugar chamado
Acampamento Middlebrook, nas montanhas Watchung.
Meu tio recebeu uma carta oficial do escrivão de sir Henry
Clinton, transmitindo uma nota concisa dos americanos,
lamentando a morte do capitão Benjamin Grey por febre."
"Oh." Denys relaxou um pouco, embora seus olhos ainda
estivessem vigilantes. "Minhas condolências. Quer dizer que
você quer descobrir onde seu primo está enterrado? Para... hum,
mover o corpo para o... hã... lugar de descanso da família?"
"Eu tinha isso em mente", disse William. "Só que eu encontrei
seu túmulo. E ele não estava nele."
Uma breve lembrança daquela noite nas montanhas Watchung
passou por ele de repente, arrepiando os pelos de seus

59
Só registrando que nenhum dos filhos de Hal ingressou no regimento do pai, o 46º. A noção de
nepotismo não parecia algo ruim – John entrou no regimento de Hal, depois levaram Percy para o mesmo
caminho.
60
Batalha de Brandywine, travada em 11 de setembro de 1777, em Chadds Ford Township, Condado de
Delaware, Pensilvânia. O Exército Continental liderado por Washington foi derrotado pelas forças
britânicas lideradas por sir William Howe. Foi uma dura batalha que se estendeu por mais de onze horas.
137

antebraços. O barro frio e úmido agarrado a seus pés e a chuva


encharcando suas roupas, bolhas esponjosas nas palmas das
mãos e o cheiro de morte subindo do solo enquanto sua pá
raspava de repente no osso... Ele virou a cabeça para longe, tanto
de Denys quanto da memória.
"Alguém estava lá, no entanto."
"Querido senhor." Denys estendeu a mão automaticamente para
seu copo e, encontrando-o vazio, sacudiu-se brevemente como
se para desalojar a visão e, em seguida, pegou a garrafa de
conhaque. "Você tem certeza? Quero dizer, quanto tempo...?"
"Ele estava enterrado há algum tempo." William deu um longo
gole do conhaque, para limpar o cheiro da memória. E também
o toque. "Mas não o suficiente para esconder o fato de que o
homem naquele túmulo não tinha orelhas."
O choque evidente de Denys deu-lhe uma satisfação amarga.
"Exatamente", disse ele. "Um ladrão. E não, não foi uma
identificação errada do corpo. O túmulo estava marcado com o
nome Grey e o nome completo de Benjamin estava listado nos
registros do campo de sepultamentos de prisioneiros."
Denys era doze anos mais velho que William, mas de repente
parecia ter mais de trinta e três, seus traços finos acentuados pela
atenção.
"Você acha que foi deliberado, então. Bem, é claro", ele se
interrompeu com impaciência, "naturalmente que foi. Mas por
quem e com que propósito?"
Ele não esperou por uma resposta.
"Se alguém assassinou seu primo e procurou esconder sua
morte, por que não simplesmente enterrá-lo como uma vítima de
febre? Não há necessidade do corpo substituto, quero dizer.
Então, sua primeira suposição é que ele está vivo? Eu acho que
138

é razoável."
William respirou fundo com alívio.
"Eu também", disse ele. "Então, é uma de duas possibilidades:
Ben fingiu sua morte e conseguiu substituir o outro corpo para
escapar sem perseguição. Ou alguém fez isso por ele, sem seu
consentimento, e o levou embora. Eu posso ver a primeira
possibilidade, mas dane-se se consigo pensar em uma razão para
a segunda. Mas não importa muito; se ele estiver vivo, posso
encontrá-lo. E eu irei. A família precisa saber, de uma forma ou
de outra."
Isso era verdade. Ele foi honesto o suficiente para admitir para
si mesmo, entretanto, que o desaparecimento de Ben havia lhe
oferecido um propósito, uma saída do atoleiro de culpa e tristeza
deixado pela morte de Jane.
Denys esfregou a mão no rosto. Já era tarde e sua barba estava
começando a ficar áspera, uma sombra escura sobre sua
mandíbula.
"As palavras agulha e palheiro me vêm à mente", disse ele.
"Mas teoricamente, sim, você poderia encontrá-lo, se ele estiver
vivo."
"Definitivamente sim," William disse com firmeza. "Eu tenho
uma lista", ele tocou o bolso da camisa para ter certeza de que
ainda a tinha, mas sentiu o barulho reconfortante do papel
dobrado, "de homens pertencentes a duas companhias de
milícias que foram colocados na turma de sepultamento no
Acampamento Middlebrook durante um surto de febre. "
"Oh, então é isso que você estava fazendo com..."
"Sim. Infelizmente, as milícias americanas se alistam apenas por
curtos períodos e depois se dispersam para cuidar de suas
fazendas. Uma das companhias era da Carolina do Norte e a
139

outra da Virgínia, mas os homens da noite anterior não eram..."


Ele parou abruptamente, lembrando. "Os homens de ontem à
noite... o major Allbright realmente pretende enforcar alguns
deles?"
Denys encolheu os ombros. "Eu não o conheço bem o suficiente
para dizer. Pode ter sido feito apenas para causar efeito, para
assustar e espalhar o resto. Mas ele levou aqueles três com ele,
de volta ao seu acampamento. Se sua raiva esfriar no momento
em que ele chegar lá, ele provavelmente vai mandar açoitá-los e
deixá-los ir. Ele tem homens suficientes sob seu comando para
que pendurar civis fora do controle se torne uma questão de
registro – não exatamente o que um oficial com um olho na
promoção deseja, se é que ele tem bom senso. Não que Allbright
dê a impressão que ele tem algum", acrescentou ele, pensativo.
"Entendo. Falando em não fazer sentido – que diabos foi era
aquela bobagem inventada sobre eu estar planejando sequestrar
George Washington? "
Randall realmente riu disso, e William sentiu suas orelhas
esquentarem. "Bem, não você, pessoalmente", assegurou a
William. "Só um ruse de guerre61. Mas funcionou, não foi? E eu
tive que pensar em alguma explicação para sua aparência
extravagante; ser um espião era a única coisa meio crível que eu
poderia pensar."
William resmungou e experimentou cautelosamente um bocado
de succotash, uma mistura frita e amanteigada de abóbora em
cubos e milho cortado da espiga. Caiu bem e ele atacou o resto
da refeição com entusiasmo crescente, ignorando o pequeno
desconforto nos lábios ao comer. Denys o observou, sorrindo
um pouco enquanto comia sua própria refeição, mas deixando-

61
Estratagema de guerra, em francês. Normalmente, o termo é usado sem tradução dentro da linguagem
militar.
140

o sossegado.
Quando os pratos ficaram vazios, houve um silêncio
contemplativo entre eles. Não era amigável, mas também não
era hostil.
Denys pegou a garrafa de conhaque e a sacudiu; o pequeno ruído
de algo chacoalhando o tranquilizou e ele despejou o que restava
nos copos, depois pegou um e ergueu para William.
"Uma barganha", disse ele. "Se você tiver qualquer notícia de
Ezekiel Richardson, mande uma mensagem para mim. Se eu
souber de algo relacionado ao seu primo Benjamin, mandarei
uma mensagem para você."
William hesitou por um momento, mas depois encostou seu
copo no de Randall com firmeza.
"Feito."
Denys bebeu e pousou o copo.
"Você pode me mandar um recado aos cuidados do capitão
Blakeney; ele está com as tropas de Clinton em Nova York. E
se eu souber de alguma coisa...? "
William fez uma careta, mas não havia muita escolha.
"Aos cuidados do meu pai. Ele e meu tio estão com a guarnição
em Savannah com Prévost62."
Denys acenou com a cabeça, empurrou o banco para trás e se
levantou.
"Tudo bem. Seu cavalo está lá fora. Com sua faca e mosquete.

62
James Marcus ou Mark Prevost (nascido Jacques-Marc Prévost; 1736-1781) foi um oficial do
exército britânico. Depois de ser comissionado na Europa, ele comandou tropas do Exército Britânico
na América do Norte e nas Índias Ocidentais, inclusive durante a Guerra entre Franceses e Índios, a
frente norte-americana da Guerra dos Sete Anos. Prevost foi chamado de volta ao serviço durante a
Guerra Revolucionária Norte-Americana, quando serviu brevemente como governador colonial da
Província da Geórgia em 1778 após os britânicos ocuparem Savannah, Geórgia.
141

Posso perguntar para onde você vai?"


"Virgínia." Ele não sabia disso com certeza até dizer, mas falar
deu-lhe a certeza. Virgínia. Monte Josiah.63
Denys procurou em um bolso e colocou dois guinéus e um
punhado de moedas menores sobre a mesa. Ele sorriu para
William.
"É um longo caminho até a Virgínia. Considere isso um
empréstimo."

63
Propriedade recebida por William como herança de Isobel Dunsany. É lá que Lord John mora na
América preferencialmente em tempos de paz. É citada pela primeira vez no livro 4.
142

VISITAS
Cordilheira dos Fraser

PELO MEIO DA TARDE, eu já tinha feito um grande progresso


com meus medicamentos, tratado três casos de erupção na pele
causado por hera venenosa, um dedo do pé quebrado (causado
por seu dono chutando uma mula em um acesso de raiva) e uma
mordida de guaxinim (não raivoso; o caçador havia derrubado o
guaxinim de uma árvore, pensou que estava morto e foi buscá-
lo, apenas para descobrir que não estava. O guaxinim estava com
raiva, mas não em qualquer sentido infeccioso).
Jamie, porém, tinha se saído muito melhor. As pessoas tinham
vindo ao local da casa o dia todo, em um fluxo constante de
vizinhança e curiosidade. As mulheres ficaram para conversar
comigo sobre os MacKenzie, e os homens vagaram pelo local
com Jamie, voltando com a promessa de vir e emprestar um dia
de trabalho aqui e ali.
"Se Roger Mac e Ian puderem me ajudar com a madeira amanhã,
os Sinclair virão no dia seguinte e me ajudarão com as vigas do
piso. Vamos colocar a pedra da lareira e abençoá-la na quarta-
feira. Sean McHugh e alguns de seus rapazes colocarão o chão
comigo na sexta-feira, e começaremos o enquadramento no dia
seguinte. Tom MacLeod diz que pode me dispensar meio dia, e
o filho de Hiram Crombie, Joe, diz que ele e seu meio-irmão
também podem ajudar nisso." Ele sorriu para mim. "Se o uísque
for suficiente, você terá um teto sobre sua cabeça em duas
semanas, Sassenach."
Olhei com dúvidas da fundação de pedra para o céu salpicado
de nuvens acima.
143

"Um telhado?"
"Sim, bem, uma folha de lona, provavelmente," ele admitiu.
"Ainda." Ele se levantou e se espreguiçou, fazendo uma leve
careta.
"Por que você não se senta um pouco?" Eu sugeri, olhando sua
perna. Ele estava mancando visivelmente e a perna era uma
colcha de retalhos vívida de vermelho e roxo, demarcada pelos
pontos pretos do meu trabalho de conserto. "Amy nos deixou
uma jarra de cerveja."
"Talvez um pouquinho mais tarde", disse ele. "O que você está
fazendo, Sassenach?"
"Vou preparar um pouco de pomada de gallberry 64 para Lizzie
Beardsley e, em seguida, um pouco de elixir para acalmar as
cólicas para seu pequenino – você sabe se ele já tem um nome?"
"Hubertus."
"O quê?"
"Hubertus", ele repetiu, sorrindo. "Ou foi o que Kezzie me disse
anteontem. É um elogio ao falecido irmão de Monika, diz ele."
"Oh." O pai de Lizzie, Joseph Wemyss, tinha tomado uma gentil
senhora alemã de certa idade como sua segunda esposa, e
Monika, não tendo filhos, tornou-se uma avó robusta para a
ninhada crescente dos Beardsley. "Talvez eles possam chamá-lo
de Bertie, para encurtar."
"Você está sem casca de jesuíta65, Sassenach?" Ele ergueu o
queixo na direção do baú de remédios aberto que eu coloquei no

64
Gallberry (Ilex glabra) Árvore nativa da costa leste da América do Norte, não tem nome corresponde
no Brasil – ‘fruta bile’, que foi usada na tradução oficial, não existe. Por isso, mantivemos o nome em
inglês. Essa planta é da mesma família da erva mate brasileira e suas frutinhas escuras são extremamente
amargas, daí seu nome (gallbladder é vesícula biliar). O mel de suas flores, no entanto, é extremante
valorizado.
65
Casca de Cinchona, árvore nativa da América do Sul, que produz um eficiente remédio contra as febres
da malária que afetam Lizzie, A gallberry ajuda, mas não é tão eficiente.
144

chão perto dele. "Você não usa isso para o tônico de Lizzie?"
"Sim", eu disse, bastante surpresa que ele tivesse notado. "Eu
usei o último bocado três semanas atrás, porém, e não ouvi falar
de ninguém indo para Wilmington ou New Bern que pudesse me
trazer mais."
"Você mencionou isso a Roger Mac?"
"Não. Por que eu diria a ele?", eu perguntei, intrigada.
Jamie recostou-se na pedra angular, com uma daquelas
expressões abertamente pacientes que pretendem indicar que a
pessoa a quem se dirige não está sendo particularmente
brilhante. Eu bufei e joguei uma gallberry nele. Ele o pegou e o
examinou criticamente.
"É comestível?"
"Amy diz que as abelhas gostam das flores dessa árvore", eu
disse em dúvida, despejando um grande punhado de frutas roxas
escuras em meu pilão. "Mas é muito provável que haja uma
razão pela qual elas são chamadas de bagas de fel."
"Ah." Ele jogou de volta para mim e eu me esquivei. "Você
mesmo me disse, Sassenach, que Roger Mac contou a você
ontem que pretendia voltar para o ministério. Então", ele
continuou pacientemente, não vendo nenhum indício de
iluminação em meu rosto, "o que você faria primeiro, se esse
fosse o seu objetivo?"
Peguei uma grande bola amarelo-clara de gordura de urso de seu
pote e coloquei no pilão, parte da minha mente debatendo se
deveria adicionar uma decocção de casca de salgueiro, enquanto
o resto considerava a pergunta de Jamie.
"Ah", eu disse por minha vez, e apontei meu pilão para ele. "Eu
iria até todas as pessoas que fizeram parte da minha
congregação, por assim dizer, e os deixaria saber que Mack the
145

Knife66 está de volta à cidade."


Ele me deu um olhar preocupado, mas então balançou a cabeça,
desalojando qualquer imagem que tivesse dado a ele.
"Sim, faria isso", disse ele. "E talvez se apresentasse ao povo
que veio para cá desde que você partiu."
"E dentro de alguns dias, todos na Cordilheira – e provavelmente
metade do coro dos irmãos em Salem – saberiam sobre isso."
Ele acenou com a cabeça amigavelmente. "Sim. E todos sabendo
que você precisa da casca de jesuíta, provavelmente iria
conseguir dentro de um mês. "
"Você está precisando de casca de jesuíta, vovó?" Germain
emergiu da floresta atrás de mim, com um balde de água em uma
das mãos, um feixe de gravetos agarrados ao peito seguros com
a outra, e o que parecia ser uma cobra morta pendurada em seu
pescoço.
"Sim", eu disse. "Isso é uma..." Mas ele se esqueceu de mim, sua
atenção voltada para a perna macerada de seu avô.
"Formidável!" disse ele, largando a lenha. "Posso ver, grand-
père?"
Jamie fez um gesto cortês de "fique à vontade" em direção à
perna dele e Germain se curvou para olhar, os olhos arregalados.
"Mandy disse que um urso arrancou sua perna com uma
mordida", disse ele, avançando o dedo indicador em direção à
linha de pontos. "Mas eu não acreditei nela. Isso dói?", ele
perguntou, olhando para O rosto de Jamie.
"Och, nem incomoda", disse Jamie, com um aceno de mão
desdenhoso. "Tenho uma fossa de latrina para cavar mais tarde.

66
Uma daquelas referências do século XX que Claire solta de vez em quando. Essa se refere à canção
de Bertold Brecht e Kurt Weill para a peça A ópera dos três vinténs (1928), mas que ficou imortalizada
na voz e trompete de Louis Armstrong, em 1956 – a história é sobre um pequeno ladrão de ruas, com
apenas seu canivete para se defender.
146

Que tipo é a sua pequena cobra, então?"


Germain gentilmente removeu a serpente mole e a entregou a
Jamie, que claramente não esperava o gesto, mas o aceitou com
cautela. Eu sorri e olhei para o meu pilão. Jamie tinha medo de
cobras, mas virilmente disfarçava o fato, segurando-a pelo rabo.
Era uma grande cobra do milho67, com quase um metro de
escamas laranja e amarelas, vívida como um raio de luz.
"Você a matou, Germain?" Eu fiz uma careta para a cobra,
parando na minha trituração. Eu tinha explicado repetidamente
a todas as crianças que elas não deveriam matar nenhuma cobra
não venenosa, pois eram úteis e comiam ratos e camundongos,
mas a maioria dos adultos na Cordilheira considerava que a
única cobra boa era uma cobra morta, e essa era uma batalha
difícil.
"Oh, não, vovó", ele me assegurou. "Estava no seu jardim e
Fanny tentou pegá-la com uma enxada, mas eu a impedi. Mas
então seu pequeno gato passou pela cerca, pulou nela e quebrou
seu... " Ele franziu a testa para a cobra. "Não sei se foi nas costas
ou no pescoço, porque não dá para definir ao certo, mas está
morta, decerto. Pensei em esfolar para Fanny", explicou ele,
olhando por cima do ombro em direção ao jardim. "Para fazer
um cinto para ela, talvez."
"Que ideia adorável", disse eu, perguntando-me se Fanny
pensaria assim.
"Acha que posso comprar uma fivela para ele no mascate?",
Germain perguntou a Jamie, pegando sua cobra de volta e
enrolando-a no pescoço. "Para o cinto, quero dizer. Eu tenho
dois pence e algumas pedras roxas pequeninas para negociar."

67
No original, ‘corn snake’. É uma espécie de cobra encontrada no sudeste dos Estados Unidos. Ela gosta
de ficar perto do milharal ou dos celeiros de milho, onde se alimenta dos ratos e camundongos que se
aproximam desse alimento. Não-venenosa, mata suas presas por constrição. Sua cor e o padrão de suas
escamas também lembram espigas de milho.
147

"Que mascate?" Eu parei de esmagar e olhei para ele.


"Jo Beardsley me disse que conheceu um mascate em Salem há
dois dias, e ele calculou que o homem estaria aqui em algum
momento desta semana", explicou Germain. "Ele disse que o
homem tem um monte de plantas medicinais, então pensei que
se você precisasse de alguma coisa, vovó ..."
Lancei um olhar rápido e ganancioso para minha caixa de
remédios, esgotada por uma estação de plantio repleta de
ferimentos de machados e enxadas, picadas de animais e insetos,
um surto de intoxicação alimentar e uma estranha praga de
doenças respiratórias entre os MacNeill, acompanhada de febre
baixa, tosse e manchas azuladas no tronco.
"Hummm..." Eu dei um tapinha no bolso, me perguntando o que
eu tinha para trocar, pensando bem ...
"Sobraram duas garrafas de vinho de sabugueiro", disse Jamie,
endireitando-se. "Você pode usar isso, Sassenach. E eu tenho
uma boa pele de veado, e meio barril de terebintina."
"Não, eu quero ficar com a terebintina", eu disse, acrescentando
distraidamente: "Ancilóstomos, você sabe."
Jamie e Germain trocaram um olhar cínico. "Ancilóstomos",
disse Jamie, e Germain balançou a cabeça.
Antes que eu pudesse esclarecê-los sobre os ancilóstomos,
porém, um grito veio da direção do riacho, e Duncan Leslie e
seus dois filhos apareceram, um dos filhos com um grande
presunto debaixo do braço.
Jamie se levantou para cumprimentá-los e todos acenaram com
a cabeça educadamente para mim, mas não pareciam esperar que
eu parasse o que estava fazendo para conversar.
"Eu atirei em um porco de bom tamanho na semana passada",
disse Duncan, apontando para o filho com o presunto. "Havia
148

um pouco de sobra, e pensamos que você poderia usá-lo, com


sua família vindo, e tudo."
"Estou muito agradecido, Duncan", disse Jamie. "Se você não se
importa de comer sob o céu, venha e compartilhe conosco...
amanhã?", ele perguntou, virando-se para mim. Eu neguei com
a minha cabeça.
"Depois de amanhã", eu disse. "Tenho de ir aos Beardsley
amanhã e não voltarei a tempo de fazer muito mais do que
sanduíches." Se Amy tivesse feito pão e tivesse um pouco de
sobra, acrescentei silenciosamente a mim mesma.
"Sim, sim", disse Duncan, acenando com a cabeça. "Minha
esposa ficará feliz em vê-la, senhora. Então, Jamie ",
acrescentou ele, inclinando a cabeça em direção à fundação,"
vejo que você tem uma bela casa grande planejada – duas
chaminés, hein? Onde será a cozinha, então?"
Jamie levantou-se suavemente e me deu um breve olhar de "Está
vendo?" por cima do ombro e conduziu os Leslie para um
passeio pela fundação, mancando apenas ligeiramente.
Germain colocou a cobra em minha mesa e disse: "Cuide dela
para mim, sim, vovó?", e correu para se juntar aos homens.
-.-.-
BRIANNA FEZ UMA pausa no início da trilha e enxugou o suor
do rosto e do pescoço. A cabana diante deles era limpa e bem
cuidada – muito bem cuidada. Havia pedras caiadas de branco
ao longo do caminho que levava à porta, e os vidros das janelas
– vidros! – estavam tão polidos que ela podia ver a si mesma e
a Roger neles, pequenas manchas recortadas de cor em meio ao
brilho verde da floresta refletida.
"Quem passa cal as pedras?", disse ela, baixando a voz
instintivamente, como se a cabana pudesse ouvi-la.
149

"Bem, não pode ser alguém com muito tempo disponível", disse
ele, meio baixinho. "Portanto, é um paisagista frustrado ou
alguém com uma necessidade neurótica de controlar seu
ambiente."
"Suponho que não haja razão para que não se encontre maníacos
por controle em qualquer época", disse ela, sacudindo a poeira e
fragmentos de folhas de sua saia. "Olhe para as pessoas que
projetaram labirintos elisabetanos, quero dizer. O que foi que
Amy disse sobre essas pessoas? Cunningham, é esse o nome?"
"Sim. Eles são metodistas. Blue Light'', Roger citou, e
continuou: "tome cuidado com essas pessoas, Pregador."
Com isso, ele endireitou os ombros e pôs os pés no caminho que
conduzia entre as pedras caiadas de branco.
"Luz Azul?" ela disse, e o seguiu, arrumando apressadamente
seu chapéu de palha de aba larga, colocado apressadamente
sobre uma touca. Deus não permita que a esposa do pastor dê
motivos de reprovação aos fiéis...
A porta se abriu antes que Roger pudesse pôr os pés no degrau,
e um homem pequeno e eriçado, com sobrancelhas grisalhas e
desgrenhadas, ficou olhando para eles sem nenhum olhar
especial de boas-vindas. Ele estava vestido com esmero, com
calças e colete feitos em casa, e sua camisa de linho, embora
ligeiramente amarelada pelo tempo, tinha sido passada
recentemente.
"Bom dia para você, senhor." Roger fez uma reverência e
Brianna fez uma breve reverência. "Meu nome é Roger
MacKenzie, e esta é minha esposa, Brianna. Chegamos
recentemente à Cordilheira, e..."
"Eu ouvi." O homem deu-lhes um olhar apertado, mas
aparentemente eles passaram no teste, pois o homem recuou,
gesticulando para que entrassem. "Sou o capitão Charles
150

Cunningham, ex-membro da Marinha de Sua Majestade.


Entrem."
Brianna sentiu Roger respirar fundo. Ela sorriu para o capitão
Cunningham, que piscou e olhou atentamente para Roger para
ver se ele aprovava isso.
"Obrigada, capitão", disse ela, da maneira mais charmosa
possível, e passou por Roger e cruzou a soleira. “Vocês têm uma
casa notável – tão linda!"
"Eu... por que...", o capitão começou, atrapalhado. Antes que ele
pudesse reorganizar seus pensamentos, entretanto, uma presença
sombria se manifestou diante da lareira. Agora foi a vez de
Brianna piscar.
"O pregador, é você?", disse a mulher, olhando além de Bree.
Sim, certamente era uma mulher, embora quase tão alta quanto
a própria Brianna e vestida inteiramente de preto, exceto por
uma touca branca engomada, uma do tipo severo, com lapelas
nas orelhas. Ela era velha, mas não havia como dizer quantos
anos tinha; seu rosto era ossudo e de olhos afiados, e Brianna
pensou imediatamente na loba que havia amamentado Rômulo
e Remo68.
"Eu sou um ministro", disse Roger, fazendo-lhe uma profunda
reverência. "Seu servo, senhora."
"Mmphm. E de que seita você pode ser, senhor?", a mulher
exigiu.
"Sou presbiteriano, senhora", disse Roger, "mas ..."
"E você?", perguntou a mulher, fixando em Bree um olho azul
penetrante. "Você compartilha as crenças de seu marido?"

68
Rômulo e Remo são, segundo a mitologia romana, dois irmãos gêmeos, um dos quais, Rômulo, foi o
fundador da cidade de Roma. Segundo a lenda, eram filhos de Marte e de Reia Sílvia (prometida como
virgem vestal). Como punição pelo abandono dos votos, a mãe é presa num calabouço e os filhos são
jogados no rio Tibre, em um cesto. Mas acabam sendo encontrados e salvos pela loba Luperca, que os
amamenta.
151

"Eu sou católica romana", disse Brianna, o mais suavemente


possível. Não era a primeira vez e não seria a última, mas eles
decidiram desde o início como lidar com essas questões. "Como
meu pai – Jamie Fraser."
Essa resposta normalmente surpreendia o questionador e
fornecia espaço suficiente para Roger assumir o controle. O
respeito dos inquilinos não católicos por seu pai – fosse com
base na estima pessoal ou meramente no fato de ele ser o
proprietário – geralmente os tornava pelo menos receptivos a
uma conversa educada, independentemente de sua opinião geral
sobre os católicos.
A mulher – sra. Cunningham? – bufou e olhou Bree de cima a
baixo de um modo que indicava que ela tinha visto muitas
mulheres de má reputação em sua época e estava comparando
Brianna desfavoravelmente com todas elas.
"Pufft", disse ela. "Papismo! Não temos conexões com essas
coisas nesta casa!"
"Mãe", disse o capitão, movendo-se em sua direção. "Eu penso
que..."
"Senhora", disse Roger, dando um passo à frente de Bree para
interceptar o olho do basilisco69 apontado em sua direção. "Eu
lhe asseguro que não viemos nem para fazer proselitismo nem
para convertê-los. Eu..."
"Presbiteriano, você diz?" Os olhos fixos nele, acusando-o
friamente. "E um ministro? Como é, então, que você não
consegue manter sua própria esposa em ordem? Que tipo de
ministro você pode ser, se permite que sua mulher seja uma
discípula do Papa e vagueie semeando e regando as sementes da
maldade e da desordem entre seus vizinhos?"

69
Descrito em diversos dos bestiários medievais, o basilisco é uma criatura designada como o “rei das
serpentes” e teria habilidades letais, podendo matar alguém com um simples olhar.
152

"Mãe!" O capitão Cunningham disse rispidamente. Ela não


vacilou, mas virou o rosto severo para o filho.
"Você sabe que é verdade", ela o informou. "Esta moça", ela
acenou com a cabeça para Brianna, "diz que Jamie Fraser é seu
pai. Isso significa", ela olhou diretamente para Bree, "que sua
mãe é Claire Fraser, certo?"
Bree inspirou profundamente; a cabana era limpa como um
alfinete, mas muito pequena, e o suprimento de ar parecia estar
diminuindo a cada segundo.
"Ela é", disse Brianna calmamente. "E ela me pediu para
transmitir seus cumprimentos a você e dizer que se algum
membro de sua família ficar doente ou sofrer algum ferimento,
ela ficará feliz em vir atendê-los. Ela é uma curadora e..."
"Pufft!", repetiu a sra. Cunningham. "Sim, ouso dizer que sim,
mas não terá a chance, garanto-lhe, garota. No instante em que
soube da mulher, plantei camomila e azevinho em volta da porta.
Não, nenhuma bruxa vai colocar o pé na nossa casa, eu posso
lhe dizer!"
Bree sentiu a mão de Roger em seu braço e lançou-lhe um olhar
frio. Ela não estava prestes a perder a paciência com esta mulher.
Sua boca se contraiu brevemente e ele a soltou, virando-se não
para a sra. Cunningham, mas para o capitão.
"Como eu disse", ele continuou, agradavelmente, "não vim para
fazer proselitismo. Respeito a crença sincera. Estou curioso,
porém – um de meus vizinhos mencionou o termo Luz Azul em
referência a você e sua família, capitão. Eu me pergunto se você
estaria disposto a me dizer o significado?"
"Ah", disse o capitão, parecendo cautelosamente satisfeito por
ser questionado sobre algo que sua mãe não poderia questionar.
"Bem, senhor, como o senhor pergunta – é o termo pelo qual são
conhecidos os capitães da marinha que promovem a teologia da
153

evangelização em seus navios. Luzes Azuis, eles nos chamam."


Ele falou modestamente, mas sua cabeça estava orgulhosamente
levantada, assim como seu queixo. Seus olhos – uma versão
mais pálida dos de sua mãe – estavam cautelosos, imaginando
como Roger reagiria a isso.
Roger sorriu. "O senhor também é uma espécie de teólogo,
senhor?"
"Oh", disse o capitão, se envaidecendo ligeiramente. "Eu não
colocaria nestas proporções, mas tenho escrito um artigo ou
outro, ocasionalmente – apenas meus próprios pensamentos
sobre o assunto, sabe..."
"Algum deles foi publicado, senhor? Eu estou muito interessado
em ler suas opiniões."
"Oh, bem... duas ou três... apenas pequenas coisas... sem grande
mérito, ouso dizer... foram publicadas pela Bell and Coxham,
em Edimburgo. Receio não ter nenhuma cópia comigo aqui".
Ele olhou para uma mesa pequena e áspera no canto que tinha
uma pequena pilha de papel junto com um tinteiro, um pote de
areia para secar a tinta e um recipiente com penas. "Mas estou
trabalhando em um esforço de escala um pouco maior..."
"Um livro, então?"
Roger parecia honestamente interessado – provavelmente ele
realmente estava, Bree pensou – mas a sra. Cunningham estava
claramente ficando impaciente com essa amabilidade e
pretendia cortar a conversa pela raiz antes que Roger pudesse
seduzir o capitão à blasfêmia ou coisa pior.
"O fato é, capitão, que a sogra deste cavalheiro é muito
conhecida por ser uma bruxa, e provavelmente sua esposa
também o é. Mande-os embora. Não temos interesse em suas
pretensões."
154

Roger se virou para encará-la e se ergueu em toda a sua altura,


o que significava que sua cabeça quase roçou na árvore do
telhado.
"Sra. Cunningham", disse ele, ainda educado, mas deixando
passar um pouco de aço na voz. "Suplico que considere que sou
um ministro de Deus. As crenças da minha esposa – e as dos pais
dela – são tão virtuosas e morais quanto as de qualquer bom
cristão, e eu vou jurar isso com minhas mãos em sua própria
Bíblia, se quiser."
Ele acenou com a cabeça para a minúscula estante sobre a mesa,
onde uma Bíblia ocupava um lugar de destaque em uma fileira
de livros menores.
"Mmphm", disse o capitão com um olhar penetrante para sua
mãe. "Estou de saída para chamar meus dois rapazes do campo,
senhor – tenentes do meu último navio, que escolheram vir
comigo quando eu desembarquei. Eu acompanharei você e sua
senhora até o início do caminho, se vocês não se incomodarem
com a companhia até lá?"
"Obrigada, capitão." Bree aproveitou a chance de conseguir
falar e fez uma reverência profunda para o capitão e novamente
– com o máximo de compostura que conseguiu imprimir no
rosto – para a sra. Cunningham. "Por favor, lembre-se de que
minha mãe virá imediatamente, senhora, se você tiver qualquer
tipo de ... emergência."
A sra. Cunningham parecia se expandir em várias direções ao
mesmo tempo. "Você se atreve a me ameaçar, garota?"
"O quê! Não!"
"Vê o que deixou entrar em casa, capitão?" A sra. Cunningham
ignorou Brianna e olhou carrancuda para seu filho. "A moça
pretende nos desejar mal!"
155

"Na verdade, temos mais algumas visitas para fazer", Roger


interrompeu apressadamente. "Permitirá que eu abençoe sua
casa com uma pequena oração antes de partirmos, senhor?"
"Por que..." O capitão olhou para sua mãe, então endireitou-se,
o queixo tenso. "Sim senhor. Seremos muito gratos a você."
Brianna viu os lábios da sra. Cunningham se formaram para
dizer "Pufft!" de novo, mas Roger apressadamente a impediu,
levantando ligeiramente as mãos e abaixando a cabeça em uma
bênção.

"Que Deus abençoe a habitação;


Cada pedra, e viga e estaca.
Toda comida e bebida e roupas.
Que a saúde dos homens esteja sempre
aqui."70

"Bom dia para você, senhor, senhora", acrescentou ele


rapidamente, e, curvando-se, agarrou a mão de Brianna. Ela não
teve tempo de dizer nada – ainda bem, ela pensou – mas sorriu
e acenou com a cabeça para o basilisco enquanto eles recuavam
para fora da porta.
"Então, agora sabemos o que significa Luz Azul", disse ela,
lançando um olhar ruivo para trás quando chegaram ao fim do
caminho. "Como mamãe diz ... Jesus H. Roosevelt Cristo!"
"Apropriado para as circunstâncias", disse Roger, rindo.
"Aquilo foi uma oração do Hogmanay71?", ela perguntou.
70
Encantamento para o Ano Novo – Hogmanay. A prece pode ser encontrada no volume I, da Carmina
Gadelica, uma coletânea de hinos, encantamentos e bençãos coletadas por Alexander Carmichael e
publicada em 1900.
71
A véspera do Ano Novo, sua comemoração é mais importante até que o Natal na Escócia.
156

"Parecia familiar, mas eu não tinha certeza ..."


"É – e uma bênção para a casa. Você já ouviu seu pai dizer isso
algumas vezes, mas ele o faz em gaélico. Os Cunningham são
educados, mas das Terras Baixas, Lowlanders, pelo que percebi
de seu sotaque. Se eu tivesse tentado a versão gaélica, a sra. C.
poderia muito bem ter pensado que eu estava tentando lançar um
feitiço sobre eles."
"E não estava?" Ela disse isso levemente, mas ele virou a cabeça
para ela, surpreso.
"Bem... de certa forma, acho que sim", disse ele lentamente, mas
depois sorriu. "Os encantos e as orações das Terras Altas muitas
vezes não são distinguíveis entre si. Mas eu acho que se você se
dirigir a Deus diretamente, então provavelmente é uma oração,
em vez de bruxaria. "
Ela olhou por cima do ombro mais uma vez, com a sensação de
que os olhos da sra. Cunningham estavam queimando um buraco
na porta da cabana, observando sua retirada.
"Os presbiterianos acreditam em exorcismo?", ela perguntou.
"Não, não acreditamos", disse ele, embora também olhasse para
trás. "Meu pai – o reverendo, quero dizer – me disse, entretanto,
que quando você for visitar, você nunca deve sair de casa sem
oferecer algum tipo de bênção." Ele segurou um galho de
carvalho para que ela pudesse passar por baixo. "Ele acrescentou
que isso pode impedir que as coisas sigam você até em casa –
mas acho que ele estava brincando."
-.-.-
EU ESTAVA DESCENDO a margem do riacho, recolhendo
sanguessugas, agriões e qualquer coisa que parecesse comestível
ou útil, quando ouvi um som distante de rodas de carroça.
157

Pensando que poderia ser o mascate que Jo Beardsley tinha


mencionado a Germain, eu rapidamente sacudi minhas saias,
coloquei meus pés de volta nas minhas sandálias e corri em
direção à trilha da carroça, onde o barulho das rodas foi
repentinamente substituído por uma boa quantidade de má
linguagem.
Isso provou ser originário de um homem muito grande, que
acusava suas mulas, a carroça e a roda que tinha acabado de
bater em uma pedra e perdido seu aro de ferro. Ele não tinha a
criatividade de Jamie para praguejar, mas estava compensando
em volume.
"Senhor, como posso lhe ajudar?", eu perguntei, aproveitando
um momento quando ele fez uma pausa para respirar.
Ele se virou, surpreso.
"De onde diabos você veio?", ele perguntou.
Fiz um gesto em direção às árvores atrás de mim e repeti: "Você
precisa de ajuda?"
Mais perto da carroça, ficou evidente que ele não era o mascate.
A carroça – puxada por duas mulas muito grandes – continha
uma variedade de coisas, mas não panelas de ferro e fitas de
cabelo. Havia meia dúzia de mosquetes na carroceria, junto com
uma pequena coleção de espadas, foices e bastões. Alguns
pequenos barris que poderiam ser peixes salgados ou carne de
porco – e um que certamente era pólvora, tanto por suas marcas
quanto pelo leve cheiro de carvão tingido de enxofre e urina.
Minhas entranhas se contraíram.
"Aqui é a Cordilheira dos Fraser?", o homem exigiu, olhando
para a floresta ao nosso redor. Estávamos um pouco abaixo da
clareira onde ficava a cabana dos Higgins, e não havia sinal de
habitação além do rastro da carroça, que estava coberto de
158

vegetação.
"É", eu disse, não havia sentido em mentir. "Você tem negócios
aqui?"
Ele olhou atentamente para mim e se concentrou em mim pela
primeira vez.
"Meu negócio é meu", disse ele, embora não rudemente. "Estou
procurando Jamie Fraser."
"Eu sou a sra. Fraser", eu disse, cruzando meus braços. "O
negócio dele é meu também."
Seu rosto corou e ele me olhou furioso, como se achasse que eu
estava apenas sendo desagradável com ele, mas eu dei a ele um
olhar fixo e depois de um momento, ele deu uma espécie de
risada latida e relaxou.
"Você vai buscar seu marido, então, ou irei procurá-lo?"
"Quem devo dizer que está chamando?", eu perguntei, sem me
mover.
"Benjamin Cleveland72", disse ele, inchando-se um pouco com
o senso de sua própria importância. "Ele conhecerá o nome."
-.-.-
JAMIE COLOCOU O último tijolo da fileira e aparou a
argamassa com um pequeno sentimento de satisfação –
mesclado com um leve desânimo ao perceber que o trabalho de
amanhã na chaminé precisaria ser feito com uma escada; a fileira
de hoje chegou ao ponto mais alto que ele conseguia alcançar
sozinho. Seus ombros estavam reclamando; o pensamento de
seus joelhos se juntando ao coro de reclamações amanhã o fez

72
Benjamin Cleveland (1738 - 1806) foi um pioneiro americano e oficial da milícia da Carolina do Norte.
Ele é mais lembrado por seus serviços como coronel no Regimento do Condado de Wilkes da milícia da
Carolina do Norte durante a Guerra da Independência e, em particular, por seu papel na vitória americana
na Batalha de Kings Mountain. Na época da Revolução Norte-Americana, Cleveland foi o cidadão mais
rico e mais proeminente no município. Era um homem grande e corpulento – com cerca de um metro e
oitenta de altura e pesando mais de 136 kg, no seu auge.
159

esticar as costas e suspirar.


Sim, bem, talvez minha bonnie lass73 possa ajudar com isso.
Brianna disse algo a ele na primeira noite em que vieram. Ela o
seguiu pelo canteiro de obras, os dois tropeçando em pedras e
cordas e rindo como se estivessem bêbados, batendo os ombros
e segurando os cotovelos para manter o equilíbrio no escuro.
Cada toque fugaz era uma faísca que o aquecia.
"Posso fazer uma estrutura móvel com uma polia." Foi o que ela
disse, colocando a mão na chaminé semiconstruída. "Nós
podemos içar um balde de tijolos que você possa alcançar na
escada."
"Nós", ele disse suavemente, sorrindo para si mesmo. Então
olhou por cima do ombro, constrangido, para que os homens que
carregavam toras não o ouvissem. Mas eles haviam largado o
último carregamento e pararam para se refrescar – Amy Higgins
e Fanny trouxeram cerveja, e ele jogou a espátula em um balde
d'água e foi se juntar a eles. Pouco antes de chegar à borda da
fundação, porém, seus olhos captaram um lampejo de
movimento no início da estrada de carroças, e no instante
seguinte Claire apareceu, diminuída pelo homem que caminhava
ao lado dela.
"A Naoimh Micheal Àirdaingeal, dìon sinn anns an àm a’
chatha74", disse ele baixinho. Ele não conhecia o homem, mas
havia algo nele, além de seu tamanho, que fez os cabelos do
pescoço de Jamie se arrepiarem.
Ele olhou para seus ajudantes desse dia – sete homens: Bobby
Higgins, três de seus homens de Ardsmuir, e outros inquilinos
que ele ainda não conhecia bem. E Fanny, que havia trazido o
almoço para eles.

73
É muito carinhoso ver Jamie se referir a Brianna como sua bonnie lass, sua moça/menina bonita,
assim como ele pensa em William como seu bonnie lad.
74
São Miguel Arcanjo, protege-nos na hora da batalha. Em gaélico.
160

Nenhum dos homens notou o estranho atravessando a clareira –


mas Fanny sim. Ela franziu a testa e olhou rapidamente para
Jamie. Ele acenou com a cabeça para ela, tranquilizando-a, e seu
rosto relaxou, embora ela continuasse olhando colina abaixo,
mesmo enquanto ela respondia algo que um dos homens disse a
ela.
Jamie passou por cima da fundação. Ele tinha a sensação de que
gostaria de ter conhecido o sujeito enquanto estivesse em sua
própria casa, com homens às suas costas, mas tinha um
sentimento mais forte de que queria ficar entre o homem e
Claire.
Ela estava sorrindo educadamente para o homem enquanto ele
falava, mas ele podia ver a cautela em seu rosto. Ela ergueu os
olhos, porém, e o viu chegando. O alívio floresceu nela, e ele
sentiu um latejar em resposta em seu peito. Ele caminhou em
direção a eles, sem sorrir, mas parecendo agradável, pelo menos.
"General Fraser?", disse o homem, olhando-o de cima a baixo
com interesse.
Sim, bem, isso explicava a cautela de Claire.
"Não mais", disse ele, ainda agradável, e estendeu a mão75.
"Jamie Fraser, seu servo, senhor."
"Atenciosamente, senhor. Benjamin Cleveland." A mão suada
do homem, substancialmente maior do que a sua, agarrou-o e
apertou de uma maneira que indicava que o dono pensava que
poderia machucá-lo, se quisesse.
Jamie o soltou sem resposta e sorriu. Sim, experimente, seu
bastardo.
"Conheço seu nome, senhor. Já ouvi falar de você, de vez em
quando". Pelo canto do olho, ele viu as sobrancelhas de Claire
75
É uma maneira quacre de se apresentar. Apertos de mão eram raros na época, típicos dos quacres,
apenas. Uma ‘aculturação’ de Jamie.
161

se erguerem.
"O sr. Cleveland é um lutador famoso contra os índios, a
nighean", disse ele, sem tirar os olhos do homem. "Ele matou
muitos crees76 e cherokees77, por seu próprio relatório."
"Caughnawagas78 também. Não faço uma contagem", disse
Cleveland, rindo de um jeito que dizia que se lembrava de cada
homem que matara e gostava de suas memórias. "Suponho que
suas relações com os índios sejam um pouco mais amigáveis?"
"Eu tenho amigos nas aldeias cherokee." Nem todos os seus
amigos nas aldeias eram índios, mas Scotchee Cameron79 não
fazia parte dos negócios de Cleveland.
"Esplêndido!" O rosto corado de Cleveland ficou mais
vermelho. "Eu esperava que fosse esse o caso."
Jamie inclinou a cabeça com um ruído evasivo na garganta.
Claire evidentemente percebeu o que ele estava realmente
pensando, pois ela pigarreou e se aproximou dele, tocando seu
braço.
"A carroça do sr. Cleveland quebrou, a cerca de um quilômetro
e meio – uma roda quebrada. Talvez você devesse dar uma
olhada?"
Ele sorriu para ela; ela era transparente como uma garrafa de

76
Cree é um grupo étnico algonquino nativo da América do Norte, que habitava desde as montanhas
Rochosas até o oceano Atlântico, tanto nos Estados Unidos da América quanto no Canadá. Hoje constitui
o maior grupo indígena do Canadá, com uma população superior a 200 mil membros.
77
Os cherokees são um dos povos indígenas das florestas do sudeste dos Estados Unidos. Antes do século
XVIII, eles estavam concentrados em suas terras natais, em cidades ao longo dos vales dos rios do que
hoje é o sudoeste da Carolina do Norte, sudeste do Tennessee , bordas do oeste da Carolina do Sul , norte
da Geórgia e nordeste do Alabama. Atualmene são o maior grupo de nativos remanescente, com mais de
380 mil indivíduos.
78
As referências sobre esse povo são confusas: Os índios caughnawaga (Kahnawake) são os índios
iroqueses que se converteram ao catolicismo romano, removidos da terra natal dos iroqueses no interior
do estado de Nova York, e reassentados no Canadá durante o século XVII. Então, seria difícil que
Cleveland os tenha matado no século XVIII.
79
Alexander "Scotchee" Cameron (circa 1730 - 1781). Agente Indianista para os cherokees. Já apareceu
no livro 6.
162

gim.
"Certamente", disse ele, e, virando-se para Cleveland,
acrescentou: "Espero que sua carga não tenha agitado demais
quando a roda quebrou. Se você tiver algo frágil, talvez..."
"Oh, não", disse Cleveland despreocupadamente. "É só um
punhado de armas e um pouco de pólvora; tudo está bem o
suficiente. " Ele sorriu para Jamie, expondo uma fileira de dentes
fortes e bons, embora houvesse um pedaço de tabaco marrom
escuro úmido preso entre dois deles.
"Falando em armas, no entanto", ele continuou. "Isso é uma
coisa que eu tinha em mente para falar com você. Mas sim,
vamos fazer como sua boa senhora sugere". Ele fez uma
reverência digna de crédito para Claire, então se virou e segurou
o braço de Jamie, obrigando-o a seguir o rastro.
Jamie se desvencilhou sem comentários e, voltando-se para
Claire, disse:
"Mande Bobby e Aaron junto com algumas ferramentas, sim,
Sassenach? E talvez um pouco de cerveja, se tiver sobrado
alguma."
Cleveland estava esperando e virou-se imediatamente em
direção ao rastro da carroça, deixando Jamie ir como quisesse.
Ele o seguiu, os olhos nas costas largas e nas pernas de tronco
de árvore. Um cinto de couro muito usado, mostrando as marcas
da caixa do cartucho e do chifre de pólvora, e atualmente
sustentando uma grande faca em uma bainha igualmente usada
– decorada com espinhos de porco-espinho tingidos em um
padrão indígena.
O homem tinha talvez vinte anos de vantagem sobre ele – e pelo
menos 45 quilos a mais, embora Cleveland fosse um ou dois
centímetros mais baixo. Ele provavelmente sempre foi o maior
em qualquer grupo em que se encontrava. Portanto, ele
163

provavelmente nunca teve que se importar se as pessoas


gostavam dele ou não.
-.-.-

A CARROÇA ESTAVA parada sob a densa sombra verde-


escura de árvores frondosas de abeto balsâmico, cicuta e
pinheiros; e os rastros das rodas se aprofundavam na estrada,
cercada por duas elevações de cada lado. Jamie sentiu alívio
quando a sombra fria tocou seu rosto como um afago, e tomou
uma profunda inspiração de ar limpo cheirando a terebintina e
bagas de ciprestes.
Ele estava contente de ver que a roda a carroça, em si, não
tivesse sido danificada; o ferro do aro externo tinha se soltado,
mas nenhuma peça de madeira estava quebrada. Talvez ele
pudesse colocar esse homem – e suas armas (ele deu uma olhada
no conteúdo da carroça) – de volta ao seu caminho, antes que a
hospitalidade exigisse que os Fraser fornecessem um jantar e
uma cama.
"Você veio me procurar", disse ele sem rodeios, erguendo os
olhos da roda. Eles não falaram durante a caminhada, exceto
algumas breves cortesias. Com as armas à vista, porém, era
claramente hora para negócios.
Cleveland acenou com a cabeça e tirou o chapéu, avaliando
abertamente. Seu estômago esticava o tecido de sua camisa de
caça, mas parecia uma gordura dura, do tipo que protegeria os
órgãos vitais de um homem.
"Eu vim. Ouvi muito sobre você nos últimos dois anos, de uma
forma ou de outra."
"As pessoas que ouvem fofocas não ouvirão nada de bom sobre
si mesmas", disse Jamie, em gaélico.
164

"O quê?", Cleveland ficou surpreso. "O que é isso? Não soou
francês, já ouvi muito."
"É o Gàidhlig", disse Jamie com um encolher de ombros e
repetiu o conteúdo em inglês. Cleveland sorriu em resposta.
"Você está certo, sr. Fraser", disse ele. Curvando-se, ele pegou
a pesada tira de ferro como se fosse feita de penugem de dente-
de-leão e ficou pensativo, girando-a nas mãos.
"Fala-se muito por aí sobre como você acabou perdendo sua
patente no exército."
Apesar de si mesmo, Jamie sentiu o calor subir por seu pescoço.
"Renunciei à minha patente, sr. Cleveland, após a batalha de
Monmouth. Eu havia sido temporariamente nomeado general de
campo para assumir o comando de várias companhias de
milícias independentes. Estas se dispersaram após a batalha.
Não havia mais necessidade de meus serviços."
"Eu ouvi dizer que você desistiu sem aviso prévio, deixando
metade de seus homens sozinhos no campo de batalha, a fim de
cuidar de sua esposa doente."
As sobrancelhas espessas de Cleveland se levantaram
interrogativamente. "Apesar de que, tendo conhecido a sra.
Fraser, certamente posso entender o que você sentiu como
homem."
Jamie se virou para encará-lo por cima da carroça cheia de
mosquetes e pólvora.
"Não preciso me defender, senhor. Se você tem algo a dizer para
mim, diga então. Eu tenho uma latrina para cavar."
Cleveland ergueu uma das mãos, com a palma para fora, e
inclinou a cabeça, conciliador. "Sem intenção de ofender, sr.
Fraser. Eu só quero saber se você está planejando voltar ao
exército. Em qualquer função."
165

"Não", Jamie disse secamente. "Por quê?"


"Porque caso contrário", disse Cleveland, e fixou nele com um
olhar calculista, "você pode se interessar em saber que muitos
de seus vizinhos whigs80 nas montanhas" – ele apontou com o
queixo na direção áspera do Condado de Tennessee –
"proprietários de terras, quero dizer, homens que têm algo a
perder, estão criando milícias privadas para proteger suas
famílias e suas propriedades. Achei que você pudesse estar
considerando algo do tipo."
Jamie sentiu sua antipatia pelo homem se alterar ligeiramente,
deslizando relutantemente em direção à curiosidade.
"E se eu estivesse?", ele disse.
Cleveland encolheu os ombros.
"Seria bom manter contato com outros grupos. Não há como
saber onde os britânicos podem aparecer, mas quando eles
aparecerem – note-me, sr. Fraser, quando eles aparecerem – eu,
pelo menos, gostaria de saber a tempo de agir."
Jamie olhou para dentro da carroça: mosquetes velhos, em sua
maior parte, com coronha seca e rachada e canos arranhados –
mas algumas poucas Besses Brown81 britânicas normais em
melhores condições. Comprou, trocou ou roubou?, ele se
perguntou.
"Agir", ele repetiu cuidadosamente. "E quem são alguns desses
homens de quem você fala?"
"Oh, eles existem", disse Cleveland, respondendo ao
pensamento em vez da pergunta.

80
No espectro político da época, os whigs, liberais, estavam se alinhando aos patriotas, pela independência.
Os torys, eram o oposto, legalistas que queiram continuar como parte do império britânico.
81
Brown Bess é um apelido de origem incerta para o mosquete de pederneira usado na época da expansão
do Império Britânico. Tinha comprimento de 149 cm e peso de 4,8 kg, calibre de 18 mm (balas de
mosquete), com alcance efetivo entre 45 metros e 91 metros.
166

"John Sevier82. Isaac Shelby83. William Campbell 84e Frederick


Hambright85. Muitos outros estão pensando nisso, eu posso lhe
dizer."
Jamie assentiu, mas não disse mais nada.
"Outra coisa que ouvi sobre você, sr. Fraser", disse Cleveland,
pegando um dos mosquetes da carroceria e verificando
distraidamente a pederneira, "é que você era um agente
indianista. Isso é verdade?"
"Sim."
"E um bom, de acordo com os registros." Cleveland sorriu,
repentina e desajeitadamente brincalhão. "Ouvi dizer que há
algumas crianças ruivas nas aldeias Cherokee, hein?"
Jamie teve a sensação de que Cleveland o havia acertado no
rosto com o mosquete. Isso estava realmente sendo dito ou era
alguma tolice com a qual Cleveland esperava envolvê-lo em
algo miserável?
"Desejo-lhe um bom dia, senhor", disse ele rigidamente. "Meus
homens vão descer com ferramentas para consertar sua roda
diretamente."
Ele começou a subir a trilha, mas Cleveland, que se movia
rapidamente apesar de seu tamanho, estava bem ao lado dele.

82
John Sevier (1745-1815) foi um soldado americano, colonizador e político, um dos fundadores e 1º
governador do estado do Tennessee.
83
Isaac Shelby (1750 – 1826) foi um soldado americano, primeiro e quinto governador do estado norte-
americano do Kentucky. Isaac Shelby Ele e John Sevier lideraram expedições pelas Montanhas
Apalaches contra as forças britânicas na Carolina do Norte. Ele desempenhou um papel fundamental na
derrota britânica na Batalha de Kings Mountain.
84
William Campbell (1745 - 1781) foi um fazendeiro, pioneiro e soldado da Virgínia. Um dos treze
signatários da primeira declaração de resistência armada à Coroa Britânica nas Treze Colônias. Durante
a Guerra Revolucionária Norte-Americana , ele era conhecido pelos legalistas como o "maldito tirano
do condado de Washington ", mas pelos patriotas ele era conhecido por sua liderança na Batalha de
Kings Mountain e noBatalha do Tribunal de Guilford.
85
Frederick Hambright (1727 – 1817) foi um oficial militar que lutou tanto na milícia local quanto na
Linha da Carolina do Norte do Exército Continental durante a Guerra Revolucionária. Ele é mais
conhecido por sua participação na Batalha de Kings Mountain em 1780.
167

"Se queremos uma milícia, precisamos de armas", disse


Cleveland. "Isso é lógico, não é?" Vendo que Jamie não estava
disposto a responder a perguntas retóricas, ele tentou outra
abordagem.
"Os índios têm armas", disse ele. "O governo britânico dá aos
cherokee um estoque de bom tamanho de balas e pólvora todos
os anos, para a caça. Era esse o caso quando você era um
agente?"
"Bom dia, sr. Cleveland."
Ele caminhou mais rápido, embora o exercício estivesse fazendo
sua perna ferida latejar. Cleveland agarrou seu braço e puxou-o
para parar.
"Podemos falar sobre armas mais tarde", disse Cleveland. "Há
apenas uma outra coisa que eu tinha em mente para falar com
você."
"Tire sua mão de mim." O tom de sua voz fez Cleveland desistir,
mas ele não recuou.
"Um homem chamado Cunningham", disse ele, seus pequenos
olhos castanhos fixos nos de Jamie. "Ex-capitão da Marinha.
Um conservador. Legalista."
Isso fez um pequeno buraco frio peito de Jamie. O capitão
Cunningham era de fato um legalista – assim como uma dúzia
de outros inquilinos.
"Eu odeio um conservador", disse Cleveland, pensativo. Ele
balançou a cabeça, mas Jamie podia ver o brilho de seus olhos
sob a aba do chapéu. "Pendurei alguns deles, lá nas bandas de
casa. Assustou os outros e eles partiram86."

86
Este é um fato real: Cleveland ficou conhecido como o "Terror dos Conservadores" por seu tratamento
aos legalistas. Em 1779, dois conservadores saquearam a casa de George Wilfong, um patriota e amigo
de Cleveland. Os conservadores usaram o varal de roupas de Wilfong para afugentar seus cavalos. Os
saqueadores foram capturados pelos homens de Cleveland, que os enforcaram usando o varal que haviam
roubado. Como vingança, um grupo de conservadores liderado pelo capitão William Riddle sequestrou
168

Ele limpou a garganta e cuspiu, pousando uma gota de catarro


amarelado perto do pé de Jamie.
"Agora. Este capitão Cunningham escreve cartas. Ensaios nos
jornais. Alguém preocupado com o bem-estar do capitão pode
querer conversar com ele sobre isso. Você não acha?"
-.-.-

QUANDO JAMIE VOLTOU para o local da casa, ele encontrou


o fogo aceso e o cheiro bom de algo cozinhando no caldeirão.
Roger e Ian estavam lá, conversando com Claire enquanto os
gritos das crianças brincando ecoavam entre as árvores perto do
riacho. Isso mesmo; Jenny viria jantar esta noite. Ele quase havia
se esquecido, chateado como ficou com sua conversa com
Cleveland.
"Alguém preocupado com o bem-estar do capitão pode querer
conversar com ele sobre isso. Você não acha?"
Este não era, de fato, um conselho ruim, mas saber disso não
ajudou em nada seu humor. Ele não gostava de ser ameaçado,
não gostava de ser tratado com condescendência e muito menos
não gostava de ser ameaçado por um homem de maior peso do
que ele. Ele também não gostou das notícias de Cleveland, mas
não responsabilizou o homem por isso.
O ar de domesticidade pacífica o envolveu, acalmando-o,
tentando-o a se juntar à família, beber a cerveja gelada que
Fanny tirara do poço, sentar-se e descansar sua perna dolorida.
Mas a conversa com Cleveland ainda estava fervendo sob seu
esterno e ele não queria falar com ninguém sobre isso até que
ele mesmo a tivesse analisado.

Cleveland. Os homens de Cleveland o resgataram e capturaram Riddle e dois outros. Todos os três
foram pendurados na mesma árvore, que ficou conhecida como "Carvalho Tory", e foi durante anos
um marco histórico atrás do antigo tribunal do condado de Wilkes.
169

Ele acenou brevemente para Claire enquanto passava pelo local


onde sua pá estava esperando, enfiada no chão, aguardando o
término da latrina meio escavada. O esforço de cavar o
acalmaria enquanto pensava nas coisas. Ou assim ele esperava.
-.-.-

ROGER VIU JAMIE desaparecer silenciosamente nas sombras


atrás da chaminé semiconstruída e presumiu que ele tivesse ido
mijar. Mas quando ele não reapareceu dentro de alguns minutos,
Roger se separou do grupo de conversa – esta atualmente
centrada nas possibilidades infinitas para o eventual nome real
do pequenino Oglethorpe – e seguiu seu sogro no crepúsculo.
Ele encontrou Jamie parado na beira de um grande buraco
retangular no chão, evidentemente perdido na contemplação de
suas profundezas.
"Nova latrina?" ele perguntou, acenando com a cabeça para o
poço. Jamie ergueu os olhos, sorrindo ao vê-lo, e Roger sentiu
uma onda de calor – por mais de um motivo.
"Sim. Eu pretendia fazer como de costume, sabe, com um único
assento para facilitar." Jamie gesticulou para o buraco, uma
réstia de sol tocando seus cabelos e pele com uma luz dourada.
"Mas com mais quatro – e talvez ainda mais, com o tempo?
Como você diz que pretende ficar, quero dizer." Ele olhou de
soslaio para Roger e o sorriso voltou.
"Então, e tem a gente que vem ver Claire, também. Um dos
meninos Crombie veio na semana passada para buscar um
remédio para um caso de diarréia87, e ele passou tanto tempo a
família toda teve que correr para a floresta, e Amy não ficou
muito satisfeita com o estado da latrina quando ele saiu, posso
garantir.

87
O termo usado no texto original é ‘blazing shits’ – literalmente, merdas ardentes.
170

Roger acenou com a cabeça.


"Então você quer torná-la maior ou fazer duas latrinas?"
"Sim, essa é a questão." Jamie parecia satisfeito por Roger ter
compreendido a essência da situação tão rapidamente. "Veja, a
maioria dos lugares com famílias têm uma casa de necessidades
que acomodará dois de uma vez – os McHughs têm uma latrina
com três buracos, e é uma coisa ótima também. Sean McHugh é
um homem muito capaz com suas ferramentas, o que é bom, já
que tem sete filhos. Mas a coisa é... " Ele franziu a testa um
pouco e se virou para olhar para trás em direção ao fogo,
atualmente escondido atrás da massa escura da chaminé. "As
mulheres, ken?"
"Claire e Brianna, você quer dizer." Roger entendeu
imediatamente o que Jamie queria dizer. "Sim, elas têm noções
de privacidade. Mas uma pequena trava do lado de dentro da
porta...?"
"Sim, eu pensei nisso." Jamie acenou com a mão, dispensando a
ideia. "A dificuldade é mais o que elas pensam sobre ... germes.
" Ele pronunciou a palavra com muito cuidado e olhou
rapidamente para Roger sob as sobrancelhas, como se quisesse
ver se tinha dito certo, ou como se não tivesse certeza de que era
uma palavra real para começar.
"Oh. Não tinha pensado nisso. Você quer dizer os doentes que
vêm... eles podem deixar algo para trás...", e ele acenou com a
mão em direção ao buraco.
"Sim. Você deveria ter visto a atrapalhação quando Claire
insistiu em escaldar a privada de Amy com água fervente e sabão
de soda cáustica e despejar terebintina nela depois que o rapaz
Crombie foi embora." Seus ombros se ergueram em direção às
orelhas em memória. "Se ela fizer isso toda vez que tivermos
doentes em nossa casa, todos estaríamos cagando na floresta
171

também."
Ele riu, porém, e Roger também.
"Ambos, então", disse Roger. "Dois buracos para a família e
uma latrina separada para visitas – ou melhor, para o
consultório. Digamos que é por conveniência. Não quer parecer
pretensioso por não permitir que as pessoas usem o seu próprio
banheiro."
"Não, isso não seria bom de jeito nenhum." Jamie vibrou
brevemente e depois se acalmou, mas ficou por um momento,
olhando para baixo, com um meio sorriso ainda no rosto. Os
cheiros de terra úmida recém-cavada e madeira recém-serrada
aumentaram ao redor deles, misturando-se com o cheiro do fogo,
e Roger quase podia imaginar que sentiu a casa se solidificando
com a fumaça.
Jamie deixou de lado o que estava pensando e virou a cabeça
para olhar para Roger.
"Senti sua falta, Roger Mac", disse ele.
-.-.-
ROGER ABRIU A boca para responder, mas sua garganta se
fechou com tanta força como se ele tivesse engolido uma pedra,
e nada saiu além de um grunhido abafado. Jamie sorriu e tocou
seu braço, incitando-o em direção a uma grande pedra no que
Roger presumiu ser a frente da casa. A fundação de pedra
estendia-se em ângulos de noventa graus a partir da grande
pedra. Seria uma grande casa – talvez até maior do que a Casa
Grande original. "Venha percorrer a fundação comigo, sim?"
Roger balançou a cabeça e seguiu seu sogro até a grande pedra,
e ficou surpreso ao ver que a palavra FRASER havia sido
gravada nela, e abaixo, 1779.
"Minha pedra angular", disse Jamie. "Eu pensei que se a casa
172

fosse pegar fogo de novo, pelo menos as pessoas saberiam que


estivemos aqui, sim?"
"Ah... humm", Roger conseguiu dizer. Ele limpou a garganta
com força, tossiu e encontrou ar suficiente para algumas
palavras. "Lallybroch... s-seu pai ..." Ele apontou para cima,
como se fosse um lintel. "Ele colocou... a data."
O rosto de Jamie iluminou-se. "Sim, ele colocou", disse ele. "O
lugar ainda está de pé, então?"
"Estava, da última vez que eu... vi." Sua garganta afrouxou
quando o aperto de emoção o deixou. "Embora... se eu começar
a pensar..." Ele parou, lembrando-se da última vez em que vira
Lallybroch.
"Eu me perguntei, sabe." Jamie tinha virado as costas e estava
liderando o caminho pelo que seria a lateral da casa. Um cheiro
de carne assada vinha do fogo. "Brianna me contou sobre os
homens que vieram." Ele olhou para trás brevemente para
Roger, seu rosto cuidadoso. "Você tinha ido, então, é claro,
procurando por Jem."
"Sim." E Bree tinha sido forçada a deixar a casa – a casa deles –
abandonada nas mãos de ladrões e sequestradores. Parecia que a
pedra havia caído de sua garganta para o peito. Não adianta
pensar nisso agora, porém, e ele empurrou a visão de pessoas
atirando em sua esposa e filhos para o fundo de seu cérebro –
por enquanto.
"Afinal", disse ele, alcançando Jamie, "a última vez que vi
Lallybroch foi... um pouco antes disso."
Jamie fez uma pausa, uma sobrancelha erguida e Roger
pigarreou. Foi o que veio dizer; não há melhor momento para
fazer isso.
"Quando fui procurar Jem, comecei indo para Lallybroch. Ele a
173

conhecia, era a sua casa – eu pensei, se ele de alguma forma se


afastasse de Cameron, talvez fosse para lá."
Jamie olhou para ele por um momento, depois respirou fundo e
acenou com a cabeça. "A moça disse... 1739?"
“Você teria dezoito anos. Estava fora, na universidade em Paris.
Sua família estava muito orgulhosa de você", Roger acrescentou
suavemente. Jamie desviou bruscamente a cabeça e ficou
imóvel; Roger pôde ouvir sua respiração presa.
"Jenny", ele disse. "Você conheceu Jenny. Então."
"Sim, eu a conheci. Ela tinha talvez vinte anos. Então."
E então, para ele, fazia menos de um ano. E Jenny agora tinha o
quê, sessenta?
"Eu pensei... eu pensei que talvez devesse dizer algo a você,
antes de encontrá-la novamente."
"Caso o choque venha a derrubá-la?"
"Algo parecido."
Jamie se voltou para ele agora, sua expressão oscilando entre um
sorriso e um choque considerável, Roger pensou.
Roger podia sentir isso, a sensação de descrença, desorientação,
sem saber onde pisar. Jamie balançou a cabeça como um touro
tentando desalojar uma mosca. Eu conheço o sentimento,
companheiro ... todos eles.
"Isso é... muito atencioso da sua parte." Jamie engoliu em seco
e ergueu os olhos, o pensamento seguinte penetrando no choque
– e renovando-o. "Meu pai. Você disse – minha família. Ele... "
Sua voz morreu.
"Ele estava lá."
As vozes ao lado do fogo distante haviam se transformado no
zumbido constante de mulheres trabalhando: tinindo,
174

chapinhando e raspando, vozes do outro lado da audição,


pontuadas por pequenas explosões de risadas, uma ocasional
chamada aguda para uma criança errante.
Roger tocou o braço de Jamie e inclinou a cabeça em direção ao
caminho que conduzia à casinha para os laticínios, refrigerada
pela fonte, e ao jardim. "Talvez devêssemos ir a algum lugar e
sentar um pouco", disse ele. "Para que eu possa contar a você
antes que sua irmã chegue. Então você pode lidar com isso sem
testemunhas."
Jamie soltou um suspiro profundo, comprimiu os lábios
brevemente, então acenou com a cabeça e se virou, liderando o
caminho além da grande pedra angular quadrada. Que, Roger
pensou de repente, se pareciam muito com as pedras do clã que
vira no campo de Culloden, grandes pedras cinzentas projetando
longas sombras na luz do entardecer, cada uma com a memória
cinzelada de um nome: McGillivray, Cameron, MacDonald ...
Fraser.
-.-.-
ROGER ESTAVA COM Jamie em uma margem cheia de
musgo acima do riacho, compenetradamente admirando a
pequenina casinhola da fonte88 do outro lado da água corrente.
"Não é muito ainda", disse Jamie modestamente, acenando com
a cabeça para ela. "Mas é o que tive tempo de fazer. Vou precisar
construir uma casa da fonte maior em breve, afinal as chuvas de
verão – talvez até mesmo na primavera – irão inundar esta."
A casinhola da fonte era pouco mais do que uma saliência
rochosa à qual paredes de pedra áspera haviam sido adicionadas
de cada lado, com aberturas ao pé de cada parede para permitir

88
É uma pequena construção, geralmente um único cômodo, construída em cima de uma nascente, uma
fonte de água. Embora fosse inicialmente projetada para proteger a nascente de folhas, galhos e animais
mortos, a água da fonte ajuda a manter a temperatura mais fria dentro da construção, servindo como uma
geladeira primitiva.
175

a passagem da água. Tábuas de madeira corriam entre as


paredes, suspensas alguns metros acima da água clara e marrom
do riacho. No momento, elas sustentavam três baldes de leite,
cada um coberto com um pano pesado para evitar que moscas
ou sapos caíssem, e metade de uma roda encerada com queijo da
Morávia do tamanho da cabeça de Roger.
"Jenny é uma excelente fabricante de queijos", disse Jamie, com
um aceno de cabeça para o último objeto. "Mas ela ainda não
encontrou um bom fermento lácteo, então eu trouxe de Salem."
Abaixo das ripas, um modesto conjunto de potes de cerâmica
rústica estava meio afundado no riacho, estes – disse Jamie –
contendo manteiga, creme azedo, creme de leite e leitelho. Era
um local pacífico aqui, o ar fresco com a brisa que soprava da
água e o riacho falando ativamente consigo mesmo. Na margem
além da protuberância rochosa da casinhola da fonte, uma
espessa vegetação de salgueiros deixava seus galhos delgados
fluírem na água.
"Como mulheres jovens lavando os cabelos, certo?", Roger
disse, gesticulando para eles, e Jamie sorriu um pouco, mas sua
mente claramente não estava em poesia no momento.
"Aqui", disse ele, afastando-se do riacho e empurrando para o
lado os galhos de um jovem carvalho vermelho. Roger o seguiu
por uma pequena encosta até uma plataforma rochosa, onde
mais duas ou três arvorezinhas empreendedoras se
estabeleceram em fendas. Havia espaço suficiente para sentar-
se confortavelmente na beira da tábua, de onde Roger descobriu
que podiam ver a margem oposta e a minúscula casinhola da
fonte, e também uma boa parte da trilha que subia da casa.
"Veremos alguém chegando", disse Jamie, acomodando-se de
pernas cruzadas, com as costas contra um dos jovens troncos.
"Então. Você tem uma ou duas coisas para me dizer."
176

"Então." Roger sentou-se à sombra, tirou os sapatos e as meias


e deixou as pernas balançarem na corrente de ar fresco na borda
da tábua, esperando que isso acalmasse seu coração. Não havia
como começar, exceto começando.
"Como eu disse, fui a Lallybroch em busca de Jem – e é claro
que ele não estava lá. Mas Brian – seu pai..."
"Eu sei o nome dele", disse Jamie secamente.
"Você já o chamou assim?" Roger disse, por impulso.
"Não", disse Jamie, surpreso. "Os homens chamam seus pais
pelos nomes de batismo em sua época?"
"Não." Roger fez um breve movimento de desprezo. "É só – eu
não deveria ter dito isso, é parte da minha estória, não da sua."
Jamie olhou para o céu desbotado.
"Falta um bom tempo para o jantar", disse ele. "Provavelmente
teremos tempo para as duas."
"É uma estória para outro momento", disse Roger, encolhendo
os ombros. "Mas... o ponto principal é que enquanto eu vim em
busca de Jem, eu encontrei – bem, meu pai, em vez disso. O
nome dele também era Jeremiah – as pessoas o chamavam de
Jerry."
Jamie disse algo em gaélico e benzeu-se.
"Sim", Roger disse brevemente. "Como eu disse – outra hora. A
questão é que quando eu o encontrei, ele tinha apenas vinte e
dois anos. Eu tinha a idade que tenho agora. Eu poderia ter sido
seu pai, imagine. Então eu o chamei de Jerry; pensei nele dessa
forma. Ao mesmo tempo, eu sabia quem ele era. Eu não poderia
dizer a ele quem eu era; não havia tempo." Ele sentiu sua
garganta apertar novamente e pigarreou, com esforço.
"Bem então. Mas eu conheci seu pai antes, em Lallybroch.
Quase caí com o choque quando ele abriu a porta e me disse o
177

nome dele."
Ele sorriu um pouco com a lembrança, pesaroso. "Ele tinha mais
ou menos a minha idade, talvez alguns anos mais velho. Nós nos
conhecemos... como homens. Sr. MacKenzie. Sr. Fraser."
Jamie deu um breve aceno de cabeça, seus olhos curiosos.
"E então sua irmã entrou, e eles me deram as boas-vindas, me
alimentaram. Eu disse ao seu pai – bem, não tudo, obviamente –
mas que estava procurando pelo meu menininho, que tinha sido
sequestrado. "
Brian dera uma cama para Roger, depois o levara na manhã
seguinte para todas as cabanas e chalés próximos, perguntando
por Jem e Rob Cameron, sem resultado. Mas no dia seguinte, ele
sugeriu cavalgar até Forte William, para fazer perguntas à
guarnição do exército.
Os olhos de Roger estavam fixos em um pedaço de musgo perto
de seu joelho; que crescia em tufos verdes arredondados sobre
as rochas, parecendo cabeças de brócolis jovens. Ele podia sentir
Jamie ouvindo. Seu sogro não se mexeu, mas Roger sentiu uma
leve tensão nele ao mencionar Forte William. Ou talvez seja
minha... Ele enfiou os dedos no musgo frio e úmido; para se
ancorar, talvez.
"O comandante era um oficial chamado Buncombe. Seu pai o
considerava "um sujeito decente para um Sassenach" – e ele era.
Brian trouxe duas garrafas de uísque – coisa boa – acrescentou
ele, olhando para Jamie e viu o brilho de um sorriso de volta.
"Bebemos com Buncombe, e ele prometeu que seus soldados
investigariam. Isso me fez sentir... esperançoso. Como se eu
realmente tivesse alguma chance de encontrar Jem."
Ele hesitou por um momento, tentando pensar em como dizer o
que queria, mas, afinal, Jamie conhecia o próprio Brian.
178

"Não foi tanto cortesia de Buncombe. Foi Brian Dhu", disse ele,
olhando diretamente para Jamie. "Ele era... gentil, muito gentil,
mas era mais do que isso."
Ele tinha uma memória vívida disso, de Brian cavalgando à sua
frente subindo uma colina, o boné e os ombros largos
escurecidos pela chuva, as costas retas e firmes. "Você sentia –
eu senti – como se... se esse homem estivesse do meu lado, então
tudo ficaria bem."
"Todo mundo se sentia assim com ele", Jamie disse suavemente,
olhando para baixo.
Roger acenou com a cabeça, em silêncio. A cabeça ruiva de
Jamie estava curvada, o olhar fixo nos joelhos – mas Roger viu
aquela cabeça virar uma fração de centímetro e se inclinar como
se em resposta a um toque, e uma pequena ondulação de algo
entre o temor e o simples reconhecimento mexeu com os cabelos
em seu próprio couro cabeludo.
Aí está, ele pensou, ao mesmo tempo surpreso e nem um pouco
surpreso. Ele já tinha visto – ou melhor, sentido – antes, mas
precisou de várias repetições antes que ele percebesse
completamente o que era. A convocação dos mortos, quando
aqueles que os amavam falavam deles. Ele podia sentir Brian
Dhu, aqui ao lado deste riacho na montanha, com a mesma
certeza que o sentira naquele dia horrível nas Terras Altas.
Roger deu um breve aceno de cabeça para o fantasma que estava
com eles, pensou, Perdoe-me, e continuou.
Ele contou sobre William Buccleigh MacKenzie, que uma vez
quase matou Roger, mas agora estava tentando se reconciliar
ajudando a encontrar Jem. Como juntos eles conheceram
Dougal MacKenzie, coletando aluguéis com seus homens...
"Jesus", disse Jamie, embora Roger tenha notado que ele não se
benzeu ao mencionar Dougal. Sua boca se curvou no canto.
179

"Será que Dougal sabia que... que este homem, Buck, era filho
dele?"
"Não", disse Roger secamente. "Porque Buck ainda não tinha
nascido. Buck sabia que Dougal era seu pai, entretanto; isso foi
um pouco chocante para ele." Não só para ele.
"Eu imagino que sim", Jamie murmurou. Um toque de diversão
permaneceu em seu rosto, e Roger se perguntou – não pela
primeira vez – sobre a capacidade dos highlanders de ir e vir
entre este mundo e o próximo. Jamie matou seu tio quando foi
necessário, mas fez as pazes após a morte; ele tinha ouvido
Jamie pedir ajuda a Dougal na batalha – e o viu conseguir
também.
Roger e Buck também conseguiram: Dougal havia emprestado
cavalos para a viagem.
Mas, como Roger disse, não se tratava de sua própria busca por
filho e pai. Era sobre o que ele devia a outro pai e outro filho. À
sombra de Brian Dhu – e a Jamie.
"Eu vou te contar o resto algum dia. Mas, por enquanto,
voltamos para Lallybroch, pois Brian havia mandado avisar que
havia encontrado uma coisa que talvez tivesse a ver com o meu
negócio.
"A coisa era uma espécie de pingente enviado a ele pelo
comandante da guarnição em Forte William. Parecia estranho e
tinha o nome MacKenzie, então tanto o comandante quanto
Brian pensaram que eu deveria ver."
Havia um aperto no peito quando ele viu os discos em sua
mente: papelão prensado, um vermelho e um verde, ambos
impressos com o nome J. W. MacKenzie e uma série de números
enigmáticos – as etiquetas de identificação de um piloto da RAF
e prova positiva de que estavam procurando um Jeremiah
diferente.
180

"Precisávamos descobrir de onde as etiquetas vieram, certo?


Então voltamos para Forte William. E..." Ele teve que parar e
respirar fundo, para conseguir falar. "O Capitão Buncombe
havia partido; o novo comandante da guarnição era um capitão
Randall."
Toda diversão havia desaparecido do rosto de Jamie, que agora
estava impassível como uma lousa.
"Sim", disse Roger, e tossiu um pouco. "Ele." O novo
comandante foi cordial, agradável. "Prestativo", disse Roger.
"Foi... " Ele procurou por uma palavra, então espalhou suas
mãos, impotente para achar isto. "Foi estranho. Quer dizer... eu
sabia... o que ele... "
"Havia feito comigo?" Os olhos de Jamie estavam fixos nos
dele, ilegíveis.
"O que ele faria com você. Claire me disse – para nós. Quando
ela ... ". Ele avistou o rosto de Jamie e se apressou. "Quero dizer,
ela sabia que você estava morto, ou tenho certeza que ela não
teria..."
"Ela lhe contou tudo, então." A expressão de Jamie não mudou
muito, mas seu rosto ficou pálido.
Ah Merda.
"Bem, apenas o... hã... cenário geral." Ele parou. Você nunca
será um ministro decente se não puder ser honesto. Buck havia
dito isso a ele, e ele estava certo. Roger respirou fundo.
"Sim", ele disse simplesmente, e sentiu suas entranhas se
esvaziarem.
Sem dizer uma palavra, Jamie se levantou e, virando-se, deu
vários passos para o mato, parou e vomitou.
Ai, Jesus. Oh, Deus. O que eu estava pensando?!
Roger sentiu como se estivesse prendendo a respiração por uma
181

hora e respirou fundo, depois outra vez. Ele estava pensando


muito à frente – no que precisava dizer a Jamie, explicar e se
desculpar, pedir perdão. Ele precisava fazer isso, se ele e Bree
fossem morar aqui novamente. Mas ele não tinha pensado que
Jamie poderia não perceber que Roger – e Bree, pelo amor de
Deus! – conheciam os detalhes íntimos de seu Getsêmani
pessoal; e os conhecia há anos.
Maldito, maldito, maldito... oh, inferno...
Roger sentou-se com os punhos cerrados, ouvindo Jamie
buscando ar, cuspir e ofegar. Ele manteve os olhos fixos em uma
joaninha vermelha com manchas pretas que iluminava seu
joelho; ela rolava de um lado para outro sobre o tecido
doméstico cinza, curiosas antenas cutucando o tecido. Por fim,
ouviu-se um farfalhar de arbustos e Jamie voltou e sentou-se, as
costas encostadas no jovem tronco novamente. Roger abriu a
boca e Jamie fez um gesto curto para impedi-lo com uma das
mãos.
"Não faça isso", disse ele. Sua camisa estava úmida de suor,
murchando sobre as clavículas. Todos os insetos noturnos
haviam aparecido agora; nuvens de mosquitos flutuavam sobre
suas cabeças e os grilos começaram o seu cri-cri-cri. Um
mosquito choramingou passando pela orelha de Roger, mas ele
não levantou a mão para golpeá-lo.
Jamie suspirou e deu a Roger um olhar muito direto. "Vá em
frente, então", ele disse. "Conte-me o resto." Roger acenou com
a cabeça e encontrou os olhos de Jamie.
"Eu sabia sobre Randall e o que ele era", disse ele sem rodeios.
"E o que aconteceria. Não apenas para você – mas para sua irmã.
E seu pai."
Desta vez Jamie se benzeu, lentamente, e sussurrou algo em
gaélico que Roger não entendeu, mas não pediu para repetir.
182

"Eu disse a Buck, então, apenas sobre o... açoite, não sobre..."
Os dedos da mão mutilada de Jamie piscaram, como se
estivessem prestes a fazer o movimento de corte novamente.
"Sobre o seu pai e o que aconteceu com ele então."
Ele sentiu novamente o horror daquela conversa. Se ele não
fizesse nada para impedir Jack Randall, Brian Dhu Fraser estaria
morto dentro de um ano, morto de uma apoplexia sofrida
enquanto assistia seu filho ser açoitado até a morte (como ele
pensava) pelo capitão Randall. Jamie seria proscrito, ferido de
corpo e alma, carregando a culpa de saber que a morte de seu
pai estava sobre ele, sabendo que havia abandonado sua casa e
inquilinos para sua irmã enlutada e despedaçada. E Jenny,
aquela adorável jovem, foi deixada completamente sozinha, sem
nem mesmo a proteção de um irmão.
Jamie não hesitou ao dizer, mas Roger podia sentir as palavras
entrarem em sua própria carne como dardos. Jenny. Cristo,
como vou encará-la?
Ele respirou fundo. Eles estavam quase lá.
"Buck queria matá-lo – Randall. Imediatamente, sem hesitação."
Houve um leve suspiro de riso na voz de Jamie, embora tenha
vacilado um pouco.
"Ele era filho de Dougal, então."
"Absolutamente sem dúvida", Roger assegurou-lhe. "Você
deveria ter visto os dois juntos."
"Gostaria de ter visto."
Roger esfregou a mão no rosto, balançando a cabeça.
"A questão é – nós poderíamos tê-lo impedido. Matá-lo, quero
dizer. Estávamos armados. Eu já tinha ido vê-lo antes, com seu
Pa. Ele não teria medo de mim. Eu poderia ter entrado em seu
escritório com Buck e feito isso. Ou poderíamos tê-lo seguido
183

até seu alojamento, feito isso lá; teríamos uma boa chance de
escapar."
Jamie se encolheu, apenas uma vez, com a palavra "Pa". Ele
ficou quieto agora, porém, seus olhos eram a única coisa viva
em seu rosto.
"Eu não poderia deixar Buck fazer isso", Roger deixou escapar,
falando para aqueles olhos. "Eu sabia o que iria acontecer – tudo
– e deixei acontecer. Para sua família. Para você."
Jamie olhou para baixo, mas não falou. Roger sentiu o ar fresco
do riacho subir de baixo e sentiu a sombra fria das árvores tocar
seu rosto em chamas.
Por fim, Jamie se mexeu, balançando a cabeça uma vez, depois
duas vezes, decidindo.
"E se você o tivesse matado?", ele disse calmamente. "Se eu não
fosse um fora-da-lei, não estaria perto de Craigh na Dun e
precisando desesperadamente de um curador naquele dia em
que... " Uma sobrancelha se ergueu.
Roger acenou com a cabeça, sem palavras.
"Brianna?", Jamie disse baixinho, seu nome como o som de uma
brisa fresca em Gàidhlig. "Ela teria acontecido? E os bairns?
Você, por falar nisso?"
"Isso... nós... ainda poderia ter acontecido", Roger disse, e
engoliu em seco. "De outra maneira. Mas sim. Eu estava com
medo de que não acontecesse. Mas eu não estou..."
Ele engoliu isso. Jamie sabia que ele não estava dando
desculpas.
"Sim, bem." Jamie se levantou, espalhando uma nuvem de
mosquitos como uma chuva de ouro em pó na luz da noite.
"Dinna fash, então. Não vou deixar Jenny te matar. Venha, ou o
jantar vai queimar."
184

Roger se sentiu como se um tapete tivesse sido puxado debaixo


dele. Ele não sabia o que estava esperando, mas não era uma
aceitação aparentemente calma.
"Você... não...", ele começou hesitante.
"Não." Jamie estendeu a mão e, quando Roger a pegou, colocou-
o de pé, de modo que ficaram cara a cara, as árvores começando
a farfalhar ao redor deles com a brisa da noite.
"Eu passei muito tempo pensando, sabe", Jamie disse em tom de
conversa, inclinando a cabeça em direção ao riacho, "quando
vivi como um fora da lei depois de Culloden. Lá fora, sob o céu,
ouvindo as vozes que você ouve ao vento. E eu olhava para trás,
imaginando as coisas que eu fiz – e não fiz – e pensando e se eu
tivesse feito diferente? Se não tivéssemos escolhido tentar
impedir Charles Stuart... teria sido diferente para nós, pelo
menos, se não fosse para as Highlands. Eu talvez tivesse
mantido Claire comigo. Se eu não tivesse lutado contra Jack
Randall no Bois de Boulogne, eu teria duas filhas agora?" Ele
balançou a cabeça, as linhas em seu rosto profundas e seus olhos
escuros com sombras.
"Nenhum homem é dono da própria vida", disse ele. "Parte de
você está sempre nas mãos de outra pessoa. Tudo o que você
pode fazer é torcer para que esteja nas mãos de Deus." Ele tocou
o ombro de Roger, acenando em direção à trilha. "Nós devemos
ir."
Roger o seguiu, com a mente tranquila, mas incapaz de olhar a
camisa suja e grosseira que cobria as costas de Jamie sem deixar
de ver as cicatrizes por baixo.
"Cuidado", disse Jamie, virando-se para Roger no início da
trilha, "acho que você não deveria contar a Jenny o que acabou
de me contar. Não como a primeira coisa, quero dizer. Deixe-a
se acostumar com você, antes."
185

-.-.-

JAMIE PEGOU OS gravetos de Fanny e Mandy e pediu-lhes


que observassem para ver como você os usava para reavivar uma
fogueira. O fogo esteve queimando o dia todo, mas baixo, já que
não era necessário fazer nada mais do que ferver água e cozinhar
o ensopado que Claire tinha feito: pedaços de gambá assado
temperados, uma massa de batatas jovens com cenouras,
ervilhas, cogumelos selvagens, e cebolas. Ele olhou por cima do
ombro para ter certeza de que ela estava ocupada em outro lugar,
então acenou para as meninas virem, conspirativamente.
"Vamos dar uma cheirada", ele sussurrou, e elas riram,
pressionando-se contra seus ombros enquanto ele estendia a mão
para o levantador de panelas e levantava lentamente a tampa,
deixando escapar um sopro de vapor úmido, cheirando a carne,
vinho e cebolas. As meninas cheiraram o mais forte que
puderam, e ele deixou entrar pelo nariz, até o fundo da garganta.
Seu wame89 retumbou com o cheiro delicioso, e as garotas
começaram a rir novamente com o som, olhando culpadas ao
redor.
"O que diabos você está fazendo, Pa?"
Ele se virou para encontrar sua filha elevando-se sobre ele, um
olhar de desaprovação no rosto. "Mandy, cuidado! Você quase
deixou Esmeralda cair no fogo!"
"Só estou ensinando um pouco de culinária para as garotinhas",
disse ele alegremente e, entregando-lhe o levantador de panelas,
fez uma reverência e saiu, com a música do riso das garotas em
seus ouvidos.
Era uma boa hora para ir; o jantar estaria pronto em breve e a
luz estava caindo. Ele estava pensando em Jenny, pretendendo
89
Estômago, barriga. Do dialeto scots.
186

chamá-la de lado e prepará-la um pouco antes de conhecer


Roger Mac.
Prepará-la, como? ele se perguntou. Diga: "Você se lembra de
um homem que veio a Lallybroch quarenta anos atrás,
procurando por seu filho? Você não sabe? Oh. Bem, ele está
aqui... apenas... "
Talvez ela pudesse se lembrar. Ela era uma moça jovem e Roger
Mac não era feio. E pelo que Roger Mac havia contado, Pa
passou um bom tempo ajudando-o a procurar, então talvez ...
A constatação de que havia pensado em Pa tão casualmente,
pensando que ele ainda estava vivo, o fez sentir como se tivesse
perdido o último degrau e descido cambaleando.
"Hã?" Ele percebeu que Claire havia perguntado algo a ele e
estava esperando por uma resposta. "Desculpe, Sassenach, eu
estava pensando. O que você disse?"
Ela levantou uma sobrancelha para ele, mas sorriu e entregou-
lhe uma garrafa.
"Eu disse, você poderia abrir isso?" Era uma garrafa de vinho
moscatel90, do ano passado que Jimmy Robertson deu a Claire
em agradecimento por ela ter consertado o braço quebrado do
seu filho mais novo.
"Você acha que vai valer a pena beber?" ele perguntou, pegando
a garrafa e examinando-a criticamente. A rolha estava apertada
no gargalo, mas seca e quebradiça; Claire havia evidentemente
tentado puxá-lo e a maior parte se quebrou, desintegrando-se em
sua mão.
"Não", disse ela, "mas desde quando essa consideração impede

90
Sempre há certa confusão entre as uvas e os vinhos. Muscat, que produz o vinho moscatel, é uma uva
típica da Europa, da família Vitis viniferae não nativa das Américas. As uvas nativas, que existiam na
Carolina do Norte, na época, são as muscadíneas Vitis rotundifolia (Muscadine). Mas, deixando a exatidãi
de lado, fica vinho moscatel mesmo, só lembrando, que não é.
187

um escocês de beber alguma coisa?"


"Também não deteve nenhum inglês que conheço. Talvez um
francês fosse mais exigente." Ele segurou a garrafa de vidro
marrom contra a luz, para ver o nível do vinho dentro, então
puxou sua adaga e bateu no gargalo da garrafa com um toque
retumbante da lâmina. O vidro quebrou de forma limpa, embora
em um ângulo, e ele o devolveu. "Não tem cheiro de rolha, pelo
menos."
"Oh, bom. Eu vou... esse é Oggy? Ou um gato da montanha?"
"Parece que um gato com gases presos na barriga, então é
provavelmente Oggy."
Ela riu, o que o deixou momentaneamente feliz. Ele tomou um
gole do vinho, fez uma careta e devolveu a ela.
"Para quem você está planejando servir isso?"
"Ninguém", respondeu ela, cheirando cautelosamente. "Vou
mergulhar um pedaço de alce de aparência muito dura nele
durante a noite com os últimos dos alhos e, em seguida, fervê-lo
com feijão e arroz. Como eles vão chamar aquela criança – e
quando, você acha?"
"Não há pressa, não é? Ninguém vai confundi-lo com qualquer
outro filho da Cordilheira."
Ninguém o faria. O pequenino de Rachel tinha os melhores
pulmões que Jamie já ouvira e raramente parava de usá-los. No
momento, ele não parecia chateado, apenas berrava de diversão.
"Eu vou encontrá-los", disse ele. "Quero falar com Jenny antes
que ela veja Roger Mac."
O rosto de Claire mostrou sua incompreensão por um instante e
então ela virou a cabeça rapidamente em direção às árvores,
onde Jamie viu Brianna e Roger Mac parados em uma conversa
íntima. Ele está dizendo a ela o que ele me disse?, ele se
188

perguntou, com um ressurgimento da sensação de "cair de uma


escada" em seu wame.
"Meu Deus", disse Claire, um olhar de intenso interesse
surgindo em seus olhos como o que ela apresentou quando viu
as verrugas anais do mascate que pareciam um couve-flor
carnuda crescendo em sua bunda. "Eu não tinha pensado nisso."
"Bem, eu não acho que ela vai desmaiar, porque ela nunca
desmaia", disse ele. "Mas você pode ter uma dose de algo
pronto, apenas por precaução."
-.-.-

MAS, POR FIM, sua irmã não estava com Ian e Rachel.
Rachel disse que Jenny tinha parado para comprar um
pouquinho de vinagre da Morag MacAuley, mas viria logo em
seguida. Isso foi um pouco de sorte, e ele agradeceu, parando
para esfregar o topo da cabeça de Oggy energicamente com a
palma da mão, uma atenção que geralmente fazia a criança rir.
Desta vez, também, e ele começou a subir a trilha sentindo-se
um pouquinho mais acomodado em si mesmo.
Ele encontrou Jenny sentada em um toco ao lado da trilha,
sacudindo uma pedra do sapato. Ela ouviu seus passos e,
erguendo os olhos para vê-lo, levantou-se de um salto e atirou-
se em seus braços, ignorando o sapato.
"Jamie, a chuisle91! Sua linda moça! Estou a ponto de explodir
de alegria por você!"
Ela soltou as costelas dele e olhou para cima, os olhos
marejados, e ele sentiu sua própria emoção, embora não pudesse
deixar de rir, a alegria dela lembrando-o da dele.

91
Oh, veia (pulso de sangue) – no sentido carinhoso: sangue do meu coração.
189

"Sim, eu também", ele disse. Ele enxugou os olhos rapidamente


na manga e endireitou a touca para ela.
"Há quanto tempo você conheceu Brianna? Ela disse que tinha
ido para Lallybroch procurando por sua mãe e por mim. E
conheceu você e Ian e todos. E Laoghaire", acrescentou ele,
lembrando-se.
Jenny benzeu-se ao ouvir o nome e riu também.
"Mãe Santíssima, a expressão no rosto de Laoghaire quando viu
a moça! E então aquela lá tentou reivindicar as pérolas de
mamãe e Brianna a calou, fechando-a como se fosse uma
escrivaninha!92 "
"Ela fez isso?" Ele lamentou não ter visto isso, mas depois
deixou para lá, lembrando por que tinha vindo procurar Jenny.
"O homem de Brianna", disse ele para o topo de sua cabeça
enquanto ela se abaixava para calçar o sapato. "Roger
MacKenzie. "
"Sim, que tipo de homem ele é, então? Você disse que gostava
bastante dele, em suas cartas."
"Eu ainda gosto", ele assegurou a ela. "É só... você se lembra
quando Claire e eu fomos para a Escócia para enterrar Simon, o
general em Balnain?"
"Não é provável que eu esqueça", disse ela, com o rosto
escurecendo. Nem poderia; isso tinha sido durante a longa morte
de Ian, uma época terrível para todos eles, mas pior, de longe,
para ela. Ele odiava trazer de volta para ela, mesmo por um
momento, mas não conseguia pensar de outra forma para
começar.
"Vocês vão se lembrar, então, o que Claire disse a todos vocês...

92
A cena descrita por Jenny ocorre no livro 4 cap 34. Uma referência que só pode ser entendida com
relação aos antigos móveis de escrever, que tinham uma tampa retrátil, que se fechava firmemente.
190

sobre... de onde ela veio."


Jenny olhou fixamente para ele, sua mente ainda claramente
sombreada por memórias, mas então ela piscou, franzindo a
testa.
"Sim...”, ela disse cautelosamente. “Alguma invencionice sobre
círculos de pedra e fadas, se bem me lembro."
"Sim, é isso. Agora, você pode, talvez, lançar sua mente um
pouco mais longe, para ... a época em que eu estava em Paris,
pouco antes de Pa morrer?
"Posso", ela disse laconicamente, olhando para ele. "Mas não
quero. Por que você está me atormentando com isso, entre todas
as coisas?"
Ele deu um tapinha no ar com a palma da mão, incitando-a a
ouvi-lo.
"Um homem veio a Lallybroch à procura de seu filho
sequestrado. Um homem de cabelos escuros, chamado Roger
MacKenzie, de Lochalsh, disse ele. Você se lembra dele?"
O sol estava se pondo, mas ainda havia bastante luz para mostrar
a ele o sangue fugindo de seu rosto. Ela engoliu visivelmente e
acenou com a cabeça, uma vez.
"Seu filho se chamava Jeremiah", disse ela. "Eu me lembro,
porque meu pai recebeu um bawbee93 do comandante da
guarnição," Seus lábios se comprimiram e ele percebeu que ela
estava pensando em Jack Randall. "E quando o homem de
cabelos escuros voltou, Pa deu a ele, e eu ouvi o sr. MacKenzie
conversando com seu amigo mais tarde, e dizendo que deve ter
pertencido a seu próprio pai, que se chamava Jeremiah, como...
Jemmy. O nome de seu filho era Jeremiah e eles o chamavam de
Jemmy."

93
Um brinquedo de criança, uma bugiganga, ou uma moeda escocesa de pouco valor. Do dialeto scots.
191

Ela parou de falar e olhou para ele, os olhos arregalados,


redondos como moedas. "Você está me dizendo que seu neto é
aquele Jemmy, e o homem de cabelos escuros é..."
"Eu estou", disse ele, e deixou escapar o fôlego. Ela se sentou
de novo, bem devagar.
Ele a deixou em paz, lembrando-se muito bem da mistura de
incredulidade, perplexidade e medo que sentiu quando Claire,
maltratada e histérica depois que ele a resgatou do julgamento
das bruxas em Cranesmuir, finalmente disse a ele o que ela era.
Ele também se lembrou vividamente do que disse na época.
"Teria sido mais fácil se você fosse apenas uma bruxa." Isso o
fez sorrir, e ele se agachou na frente de sua irmã.
"Sim, eu sei", ele disse a ela. "Mas não é realmente diferente do
que se eles viessem da... Espanha, talvez. Ou Timbuktu,
digamos. "
Ela lançou um olhar penetrante para ele e bufou, mas suas mãos
– cerradas no colo – relaxaram.
"Então, a verdade é que Roger Mac e Brianna estiveram em
Lallybroch –então. Você conheceu Brianna quando ela veio nos
encontrar. Mas você conheceu Roger Mac anos antes,
procurando por seu garotinho. Brianna voltou um pouco mais
tarde com as crianças, procurando Roger. Você não a encontrou
então, mas ela viu Pa."
Ele parou por um momento, esperando. A aparência de Jenny
mudou de repente e ela se endireitou.
"Ela conheceu Pa? Mas ele já estava morto... " Sua voz sumiu
enquanto ela tentava fazer malabarismos em sua cabeça.
"Ela o conheceu", disse ele, e engoliu o nó na garganta. "E Roger
Mac também passou algum tempo com Pa, procurando. Ele...
me contou coisas sobre Pa. Veja... para os dois, não foi há mais
192

de alguns meses que o viram", ele disse suavemente, e pegou a


mão dela, segurando-a apertado.
"Ouvir Roger Mac falar assim dele... Foi como se Pa estivesse
ao meu lado."
Ela deixou escapar um pequeno soluço e apertou a mão dele com
força. As lágrimas estavam em seus olhos novamente, mas ela
não estava com medo, e ela piscou, empurrando-as de volta e
fungando.
"Talvez seja mais fácil se você pensar nisso como um milagre",
disse ele, tentando ser útil. "Quero dizer, é, não é?"
Ela olhou para ele, tirou um lenço e assoou o nariz.
"Fag mi", disse ela. Ah, não me provoque.
"Venha", disse ele, e se levantou, puxando-a para cima. "Você
tem um novo sobrinho para conhecer. Novamente."
-.-.-
ROGER VIU JAMIE primeiro, saindo da sombra da chaminé,
ele mesmo uma sombra, escuridão contra escuridão – e atrás
dele, outra sombra, tão insubstancial que por um momento ele
não teve certeza se ela estava ali. Então ele se viu de pé,
movendo-se para encontrá-la à beira da luz do fogo, o reflexo
das chamas atrás dele brilhando em seus olhos e a linda garota
que ele conhecera brilhando para ele.
"Srta. Fraser94", disse ele suavemente, e pegou a mão dela entre
as suas, a ossatura leve e firme como o pé de um pássaro. "Que
bom vê-la de novo."
Ela soltou uma risada, fazendo surgir rugas em torno de seus
olhos.
"Da última vez que nos encontramos", disse ela, "pensei que
94
Aqui, chamar Jenny de srta. Fraser é uma forma de fazer a ligação com o passado, quando a conheceu
ela era senhorita mesmo..
193

gostaria se você beijasse minha mão, mas você não beijou."


Ele podia ver a batida rápida de sua pulsação ao lado de sua
garganta, mas sua mão estava firme na dele, e ele a ergueu e
beijou com uma ternura que não era nem um pouco falsa.
"Achei que seu pai pudesse entender mal", disse ele, sorrindo.
Uma expressão ligeiramente assustada cruzou seu rosto e sua
mão apertou a dele.
"É verdade", ela sussurrou, olhando para ele. "Você viu Pa, falou
com ele... apenas alguns meses atrás? Sua voz não soa como...
Você não fala como se pensasse que ele está morto." Sua voz
estava cheia de admiração.
Jamie fez um ruído suave, profundo na garganta, e saiu das
sombras, tocando o braço dela.
"Brianna também", disse ele baixinho, e inclinou a cabeça na
direção do fogo, onde Roger viu Bree segurando Oggy,
conversando com as outras crianças, seus longos cabelos ruivos
se erguendo no ar quente que vinha do fogo. Ela estava acenando
com a mãozinha rechonchuda do bebê em gestos majestosos,
falando por ele com uma voz profunda e cômica, e os bairns
estavam todos rindo.
"Ela também viu Pa, embora não tenha conseguido falar com
ele. Estava no cemitério em Lallybroch; ela disse que ele se
ajoelhou ao lado da tumba de Mammaidh95 e trouxe azevinho e
teixo, amarrados com fio vermelho."
"Mammaidh…"
A voz de Jenny ficou presa na garganta com um pequeno clique,
e Roger viu as lágrimas repentinamente em seus olhos. Ele
largou a mão dela enquanto Jamie colocava o braço em volta
dela e a puxava para perto, e irmão e irmã se agarraram um ao

95
Mamãe, mãezinha. Em gaélico
194

outro, os rostos escondidos um no outro, mantendo o amor entre


eles.
Ele ainda estava olhando para eles quando sentiu Claire ao lado
dele. Ela também os estava observando, o rosto suave e o
coração nos olhos. Silenciosamente, ela pegou sua mão.
195

CONTOS DE NINAR SOBRE ANIMAIS 96

LEVOU UM MÊS, em vez de duas semanas, mas quando as


uvas selvagens começaram a amadurecer, Jamie, Roger e Bree
– com cerimônia precária e muitas risadas dos espectadores
abaixo deles – prenderam uma grande folha de lona branca
manchada (feita de pedaços recuperados e costurados da vela
principal danificada de um saveiro da Marinha Real que estava
sendo reformado em Wilmington quando Fergus passeava ao
longo do cais) no esqueleto do teto da nova cozinha da Casa
Nova.
Tínhamos um telhado. O nosso próprio97.
Eu fiquei embaixo da lona, olhando para cima, por um longo
tempo. Apenas sorrindo.
As pessoas entravam e saíam, carregando coisas do alpendre, da
cabana dos Higgins, da casinhola da fonte, do abrigo do Big Log
e do jardim. Isso me lembrou, de repente e sem aviso, de montar
acampamento em uma expedição com meu tio Lamb: a mesma
agitação desordenada de objetos, bom humor, alívio e
felicidade, expectativa.
Jamie largou o armário guarda-comida, colocando-o
suavemente no novo piso de pinho para não amassar ou estragar
as tábuas.
"Esforço desperdiçado”, disse ele, sorrindo enquanto olhava
para mim. "Em uma semana será como se tivéssemos conduzido

96
No original, Animal Nursery Tales, uma referência ao livro infantil do autor e lustrador norte-
americano Richard Scarry (1919 – 1994), de 1975. Seus livros eram populares entre as crianças em todo
o mundo. Mais de 100 milhões de cópias de seus livros foram vendidas e traduzidas para dezenas de
idiomas. Os personagens de Scarry quase sempre eram animais antropomórficos.
97
Essa frase, no original (We had a roof. Of our own), remete ao livro de Virgínia Wolf: A Room of
One's Own.
196

uma manada de porcos sobre elas. Por que você está sorrindo?
A perspectiva a diverte?"
"Não, mas você sim", eu disse, e ele riu. Ele veio e colocou um
braço em volta de mim, e nós dois erguemos os olhos.
A lona brilhava com um branco cintilante e o sol do final da
manhã refulgia em suas bordas. A lona se ergueu um pouco,
sussurrando com a brisa, e várias manchas de água do mar,
sujeira e o que poderia ser sangue de peixes ou homens
formavam sombras que tremeluziam no chão ao redor de nossos
pés, as profundezas de uma nova vida.
"Olha", ele sussurrou em meu ouvido, e cutucou minha
bochecha com seu queixo, direcionando meu olhar.
Fanny estava parada do outro lado da sala, olhando para cima.
Ela estava perdida na luz branca como neve, alheia ao gato
Adso, enroscando-se nos tornozelos na esperança de comida.
Ela estava sorrindo.
-.-.-
JAMIE CAVOU O BURACO. Uma ranhura rasa no solo preto
salpicado de mica sob o leito da chaminé, com cerca de 25
centímetros de comprimento.
Ele, Roger e Ian tinham – bufando, ofegando e xingando em
gaélico, francês, inglês e mowhak – carregado a grande laje de
serpentina destinada a ser a pedra da lareira desde a Fonte Verde
no dia anterior. Ela estava apoiada agora na chaminé, esperando.
O fundo da pedra estava manchado de sujeira e minúsculas
raízes, e vi uma pequena aranha emergir de uma cavidade,
aventurando-se alguns centímetros e congelando de espanto.
"Espere", falei para Jamie, que se sentou sobre os calcanhares e
estendeu a mão na direção de Bree, que esperava com o cinzel
preto na mão. Ele ergueu uma sobrancelha, mas acenou com a
197

cabeça, e as crianças se aglomeraram ao meu redor para ver o


que estava acontecendo. Peguei a ponta do meu avental e tentei
movê-la para debaixo da aranha sem assustá-la. Ela prontamente
correu direto para a pedra, saltou no ar e pousou na camisa de
Jamie. Ele colocou a mão em concha sobre ela, e – ainda com a
sobrancelha erguida – levantou-se com cuidado, caminhou até a
borda externa da sala meio emoldurada e, tirando a mão, segurou
a bainha de sua camisa e agitou-a vigorosamente entre os botões.
"Thalla le Dia!", disse Jemmy.
"O quê?", perguntou Fanny, que assistia a esta peça com a boca
aberta maravilhada.
"Vá com Deus", Jemmy disse razoavelmente. "O que mais você
diria a uma aranha?"
"O que, de fato?", disse Jamie. Dando tapinhas no ombro de
Jem, ele mais uma vez se ajoelhou ao lado da lareira e ergueu a
mão em direção à filha. Para minha surpresa, Bree beijou o
cinzel como se fosse um crucifixo e o colocou suavemente em
sua mão.
Ele também o levou aos lábios e o beijou como se fosse seu
punhal, depois o colocou suavemente em sua toca e limpou-o
com a mão esquerda. Ele sentou-se sobre os calcanhares
novamente e olhou deliberadamente de rosto em rosto. Era
apenas a família presente: nós, Brianna, Roger, Jem e Mandy,
Germain, Fanny, Ian, Rachel e Jenny, segurando um Oggy
adormecido. Ele recitou:
"Abençoe, ó Deus, esta habitação
"E cada um que descansa aqui esta noite;
Abençoe, ó Deus, meus amados
Em todo lugar em que adormeçam;
Na noite que é esta noite,
198

E todas as noites;
No dia que é hoje,
E todos os dias.
Que este ferro sagrado seja testemunha
Ao amor de Deus e à guarda desta casa.98"

A atenção solene da assembleia durou cerca de cinco segundos


de silêncio.
"Agora nós vamos comer!", Mandy disse brilhantemente.
Jamie riu com todos os outros, mas parou e tocou sua bochecha.
"Sim, m’annsachd99. Mas não até que a pedra da lareira seja
colocada. Afaste-se um bocadinho fora do caminho."
Brianna prendeu Mandy e a moveu bem para trás, gesticulando
para que Jem, Fanny e Germain fizessem uma retirada
semelhante, embora relutante.
Os homens flexionaram os ombros e as mãos algumas vezes,
depois ao sinal de Jamie se curvaram e agarraram a pedra.
"Arrrrrgh!", gritaram Jem e Germain, imitando
entusiasticamente os homens, que estavam fazendo barulhos
semelhantes. Oggy acordou de um salto, pronunciou um O
perfeito de horror e Jenny, com um timing perfeito, enfiou o
polegar nele. Ele fechou a boca por reflexo e começou a sugar,
embora ainda com os olhos arregalados de espanto.
Com muitos grunhidos, manobras e murmúrios de instruções de
direções, gritos de alarme quando a pedra escorregou, risos e
tagarelice entre os espectadores, por fim ela foi posicionada e,

98
Esta benção é a Beannachadh Tàimh (Rest Blessing), encontrada no Carmina Gadelica, página 357.
Porém, os dois últimos versos não se encontram na mesma prece. A prece proferida no livro 4 cap 19 é
diferente.
99
Minha benção. Gaélico.
199

com um suspiro final de esforço, a pedra se acomodou e caiu no


lugar.
Jamie estava curvado, as mãos nos joelhos, ofegante. Ele se
endireitou lentamente, com o rosto vermelho, o suor escorrendo
pelo pescoço, e olhou para mim.
"Espero que goste desta casa, Sassenach", disse ele, e respirou
fundo, "porque eu nunca mais vou construir outra para você."
Gradualmente, todos se organizaram e nos reunimos novamente
na beira da nova lareira para a bênção final. Para minha surpresa
– e deles – Jamie acenou para Roger e Ian e os fez ficar um de
cada lado dele, que estava diante da lareira. E ele disse:
"Abençoe-me, ó Deus, a lua que está acima de mim,
Abençoe-me, ó Deus, a terra que está abaixo de mim,
Abençoe-me, ó Deus, minha esposa e meus filhos,
E abençoe, ó Deus, a mim mesmo que cuido deles;

"Abençoe minha esposa e meus filhos,


E abençoa, ó Deus, a mim mesmo que cuido deles.
Abençoe, ó Deus, aquilo em que meus olhos pousam.
Abençoe, ó Deus, aquilo em que repousa minha
esperança,
Abençoe, ó Deus, minha razão e meu propósito.
Abençoa, abençoa-os, ó Deus da vida;
Abençoa, ó Deus, minha razão e meu propósito,
Abençoa, ó abençoa tu, ó Deus da vida.
200

"Abençoe-me a companheira de cama do meu amor.


Abençoe para mim o manuseio de minhas mãos.
Abençoe, ó abençoe Tu para mim, ó Deus, a cerca de
minha defesa.
E abençoe, oh abençoe para mim o anjo do meu
descanso;
Abençoe, ó abençoe Tu para mim, ó Deus, a cerca de
minha defesa.
E abençoe, oh abençoe para mim o anjo do meu
descanso100"

Com um aceno de cabeça, ele indicou que deveríamos nos juntar


a ele, e assim o fizemos. E ele repetiu:

"Abençoe, ó Deus, a habitação,


E cada um que aqui descansa esta noite;
Benditos sejam, ó Deus, meus queridos
Em todo lugar onde eles dormem;
Na noite que é esta noite,
E todas as noites;
No dia que é hoje,
E todos os dias. "
Em meio a instruções murmuradas, todos pegaram um pedaço
de madeira e levaram para a lareira, onde Brianna os posicionou

100
Esta benção é a Beannachadh Tàimh (Rest Benediction) encontrada na Carmina Gadelica, vol. III
(1940), página 339.
201

e cuidadosamente pressionou punhados de gravetos sob a


construção.
Respirei fundo e, pegando a palha torcida que ela me entregou,
coloquei-a na fogueira do meu consultório e com ela em mãos,
ajoelhei-me na nova pedra verde e acendi o fogo.
-.-.-
NÓS COMEMOS UMA ceia fria em nossa nova varanda da
frente, não havendo mesa ou bancos para a cozinha ainda, mas
para marcar a cerimônia, eu tinha feito massa de biscoito de
melaço no início do dia e reservei. Todos entraram e
desenrolaram suas diversas roupas de cama – Jamie e eu
tínhamos uma cama, mas todos os outros dormiriam em paletes,
diante do novo fogo – e se sentaram para assistir com grande
expectativa enquanto eu colocava os biscoitos em minha grelha
e deslizava o círculo de ferro preto no calor brilhante do cubículo
forrado de tijolos que Jamie construiu na lateral da enorme
lareira, para servir como um forno para assar rapidamente.
"Quanto tempo, quanto tempo, quanto tempo, vovó?" Mandy
estava atrás de mim, na ponta dos pés para ver. Eu me virei e a
levantei para que ela pudesse ver a grelha e os biscoitos. O fogo
que acendemos naquela manhã tinha sido alimentado o dia todo,
e os tijolos ao redor irradiavam calor – e assim continuariam, a
noite toda.
"Vê como a massa tem formato de bolas? E você pode sentir
como está quente – nunca coloque a mão no forno – mas o calor
fará com que essas bolas se achatem e fiquem douradas e,
quando isso acontecer, os biscoitos estarão prontos. Leva cerca
de dez minutos", eu adicionei, colocando-a no chão. "É um novo
forno, então vou ter que continuar verificando."
"Bom, bom, bom, bom!" Ela pulou de alegria e se jogou nos
braços de Brianna. "Mamãe! Leia uma história para mim até que
202

os biscoitos terminem?"
As sobrancelhas de Bree se ergueram e ela olhou para Roger,
que sorriu e encolheu os ombros.
"Por que não?", ele disse, e foi remexer na pilha de pertences
diversos empilhados e encostados na parede da cozinha.
"Você trouxe um livro para os bairns? Isso é braw101", ele disse
a Bree. "Onde você conseguiu isso?"
"Eles realmente fazem livros agora para crianças da idade de
Mandy?", eu perguntei, estranhando para ela. Bree disse que ela
já sabia ler um pouco, mas eu nunca tinha visto nada em uma
gráfica do século XVIII que parecesse compreensível – quanto
mais atraente – para uma criança de três anos.
"Bem, mais ou menos", disse Roger, puxando a grande sacola
de lona de Bree da pilha. "Quer dizer, havia – há, quero dizer –
alguns livros destinados a crianças. Embora os únicos títulos que
me vêm à mente no momento sejam Hinos Para a Diversão das
Crianças102, A História do Pequeno Boneco de Dois Sapatos103
e Descrições de Trezentos Animais104".
"Que tipo de animais?", Jamie perguntou, parecendo
interessado.
"Não faço ideia", confessou Roger. "Eu não vi nenhum desses
livros; apenas li os títulos em uma lista."
"Você já imprimiu algum livro para crianças em Edimburgo?",
perguntei a Jamie, que balançou a cabeça, negando. "Bem, e o
que você leu quando estava na escola?"
"Quando eu era um bairn? A Bíblia", disse ele, como se isso
101
Legal, excelente... Em scots.
102
Hymns for the Amusement of Children, de Christopher Smart, de 1771.
103
The History of Little Goody Two-Shoes, publicada por John Newbery em Londres em 1765
104
Descriptions of Three Hundred Animals (1769), com o complemento do título: Viz Beasts, Birds,
Fishes, Serpents, and Insects With a Particular Account of the Manner of Their Catching With
CopperPlates, Whereon Is C 1. Autor anônimo, publicado por Thomas Boreman (provavelmente o
autor, ele mesmo)
203

fosse evidente. "E o almanaque. Depois que aprendi o ABC,


quero dizer. Mais tarde, um pouco de latim."
"Eu quero meu livro", Mandy disse com firmeza. "Me dá, papai.
Por favor?", ela acrescentou, vendo a boca de sua mãe se abrir.
Bree fechou a boca e sorriu, e Roger espiou dentro do saco,
depois retirou um livro laranja105 brilhante que me fez piscar.
"O quê?", disse Jamie, inclinando-se para a frente para espiar.
Ele olhou para mim com as sobrancelhas levantadas. Dei de
ombros; ele descobriria em breve.
"Leia, mamãe!" Mandy se aninhou ao lado da mãe, colocando o
livro nas mãos de Bree.
"Tudo bem", disse Bree, e abriu.
"Você gosta de ovos verdes e presunto? Eu não gosto deles,
Sam-l-Am."
"O quê?", disse Fanny incrédula, e foi espiar por cima do ombro
de Bree, acompanhada de perto por Germain.
"O que é isso?", Germain perguntou, fascinado.
"Sam-I-Am!", Mandy disse de mau-humor, e apontou o dedo na
página. "Ele tem uma placa!"
"Ah, oui. E qual é a próxima coisa, então? Uma de Quem-é-
você?"
Isso fez Fanny, Jemmy e Roger rirem, o que deixou Mandy
incandescente de raiva. Ela podia não ter os cabelos ruivos,
pensei, mas tinha o temperamento Fraser, de sobra.
"Cale a boca, cale a boca, cale a boca!" ela gritou, e lutando para
se levantar foi para cima de Germain com a óbvia intenção de
estripá-lo com as próprias mãos.
"Ôoa" Roger a enlaçou habilmente e a ergueu do chão. "Calma,
105
O livro de Amanda é Green eggs and Ham, de Dr, Seus, primeira edição de 1960. Sam-I-Am é o
personagem que tenta fazer os outros experimentarem presunto com ovos verdes.
204

querida, ele não quis dizer..."


Eu poderia ter dito a ele – mas se ele não tivesse aprendido ao
dividir uma casa com diversos Fraser por anos, não adiantaria
dizer a ele agora – que a última coisa que você deveria dizer para
alguém em plena ebulição era para "se acalmar". É como apagar
um fogo de óleo em seu fogão jogando um copo d'água sobre
ele.
"Ele quis!" Mandy berrou, lutando loucamente para se soltar das
mãos de seu pai. "Eu odeio ele, ele estlagou, está tudo estlagado!
Solta eu, eu também odeio você!"
Ela começou a chutar perigosamente perto da virilha de seu pai,
e ele instintivamente a segurou para longe dele.
Jamie estendeu a mão, passou um braço em volta da cintura dela,
puxou-a para si e colocou a mão grande em sua nuca.
"Shhh, a nighean", ele disse, e ela obedeceu. Ela estava ofegante
como uma pequena locomotiva a vapor, com o rosto vermelho e
chorando, mas parou.
"Vamos sair por um momento, vamos?", ele disse a ela, e acenou
com a cabeça para o resto do grupo reunido. "Ninguém pode
tocar no livro dela enquanto estivermos fora. Estão ouvindo?"
Houve um leve murmúrio de assentimento, seguido por um
silêncio total enquanto Jamie e Mandy desapareciam na noite.
"Os biscoitos!" Sentindo o cheiro forte de queimadura
incipiente, corri para o forno, peguei a forma e rapidamente
joguei os biscoitos no Prato Grande – o único prato de cerâmica
que tínhamos no momento, mas capaz de segurar qualquer coisa
até um peru pequeno.
"Os biscoitos estão bem?", Jem, com um desprezo total pelas
perspectivas imediatas de sua irmã, correu para olhar.
"Sim", eu assegurei a ele. "Um pouco marrom nas bordas, mas
205

perfeitamente bem." Fanny também tinha vindo, mas estava


menos preocupada com a gula.
"O sr. Fraser vai chicoteá-la?", ela sussurrou, parecendo ansiosa.
"Não", Germain assegurou-lhe. "Ela é muito pequena."
"Oh, não, ela não é", Jemmy assegurou-lhe, com um olhar
cauteloso para sua mãe, cujo rosto estava nitidamente vermelho,
se não tão vermelho quanto o de Mandy.
Todas as crianças se aglomeraram ao meu redor, fosse por
interesse em biscoitos ou por auto preservação. Levantei uma
sobrancelha para Roger, que foi se sentar ao lado de Brianna.
Virei as costas, para permitir um pouco de privacidade conjugal,
e mandei Fanny e Jem buscarem a grande jarra de leite,
atualmente pendurada no poço – e eu esperava que nenhum sapo
local tivesse decidido se aproveitar, desafiando o pano com peso
de pedras que havia colocado sobre a boca do jarro.
"Sinto muito, vovó." Germain se aproximou de mim, em voz
baixa. "Eu não pretendia causar um stramash106, de verdade."
"Eu sei, querido. Todo mundo sabe, exceto Mandy. E vovô vai
explicar para ela."
"Oh." Ele relaxou imediatamente, tendo total fé na habilidade de
seu avô de encantar qualquer coisa, desde um cavalo adulto a
um ouriço raivoso.
"Vá buscar as canecas", eu disse a ele. "Todo mundo estará de
volta em breve, "
As canecas de lata foram enxaguadas depois do jantar e deixadas
de cabeça para baixo para secar na varanda; Germain saiu
apressado, cuidadosamente sem olhar para Bree.
Germain pensou que ela estava com raiva dele, mas era evidente

106
Do gaélico: alvoroço, caos, conflito. Uma onomatopeia fantástica que significa “uma situação causada
por agressão escocesa não reprimida”.
206

para mim que ela estava chateada, não com raiva. E não é de
admirar, pensei com simpatia. Ela havia tentado tanto, por tanto
tempo, manter Jem e Mandy seguros – e felizes. Primeiro,
durante a longa e angustiante ausência de Roger e, em seguida,
a busca para encontrá-lo, a viagem pelas pedras e a longa
jornada até aqui. Não era de admirar que seus nervos ainda
estivessem no limite. Felizmente, os instintos de Roger como
marido eram muito bons; ele estava com o braço em volta dela
e a cabeça dela apoiada em seu ombro, e murmurava coisas para
ela, baixo demais para que eu pudesse entender as palavras, mas
o tom era amor e garantia, e as linhas de seu rosto estavam se
suavizando.
Eu ouvi vozes suaves na outra direção também, através da porta
aberta da cozinha – Jamie e Mandy, evidentemente apontando
estrelas que gostavam uma da outra. Eu sorri, arrumando os
biscoitos na travessa. Ele provavelmente poderia encantar um
ouriço raivoso, pensei.
Com seus próprios bons instintos, Jamie esperou até que a
multidão se recompusesse e farejasse ansiosamente os biscoitos
quentes. Em seguida, ele carregou Mandy de volta e a depositou
entre as outras crianças, sem comentários.
"Trinta e quatro?", disse ele, calculando a quantidade com um
único relance. "Um para Oggy107, sim?"
"Sim. Como você faz isso?"
"Och, não é difícil, Sassenach." Ele se inclinou sobre a bandeja
e fechou os olhos, inalando beatificamente. "É mais fácil do que
cabras e ovelhas, afinal – biscoitos não têm pernas."
"Pernas?", disse Fanny, intrigada.
"Oh, sim", disse ele, abrindo os olhos e sorrindo para ela. "Para

107
Interessante que os Murrays não se manifestaram durante a leitura do livro.
207

saber o número de cabras que você tem, basta contar as pernas e


dividir por quatro."
Os membros adultos da plateia gemeram, e Germain e Jem, que
aprenderam a divisão, riram.
"Mas isso...", Fanny começou, e então parou, franzindo a testa.
"Sente-se", eu disse rapidamente. "Jem, sirva o leite, por favor.
E quantos cookies cada pessoa ganha então, senhor-sabe-tudo?"
"Três!", os meninos gritaram em coro. Uma opinião divergente
de Mandy, que achava que todos deveriam ter cinco, foi
reprimida sem incidentes e toda a sala relaxou em uma orgia
tranquila de leite frio e cremoso e migalhas com cheiro doce.
"Agora, então", disse Jamie, e fez uma pausa, cuidadosamente
escovando as migalhas da frente da camisa para a palma da mão
e lambendo-as. "Agora, então", ele repetiu. "Amanda me disse
que pode ler o livro sozinha. Você pode ler para nós, a leannan?"
"Sim!"
E com apenas uma breve interrupção para limpar as mãos
pegajosas e o rosto, ela foi acomodada mais uma vez nos braços
de sua mãe – mas desta vez, o livro laranja vívido estava em seu
próprio colo. Ela abriu a capa e olhou para o público.
"Todos calem a boca", disse ela com firmeza. "Eu leio."
-.-.-
MEU CONSULTÓRIO ERA a única sala com paredes
completas, então, uma vez que as migalhas do biscoito foram
todas devoradas e o livro de Mandy lido em voz alta várias
vezes, Ian e sua família foram para sua própria cabana,108 as
crianças arrastaram seus paletes pelo corredor rudimentar,
animados com a perspectiva de dormir na própria casa.

108
Bem... então os Murrays ainda estavam lá.
208

Fui com eles acender o braseiro, pois a segunda chaminé ainda


não estava terminada, e pendurei colchas esfarrapadas na janela
e na porta abertas para desencorajar morcegos, mosquitos,
raposas e roedores curiosos.
"Agora, se um guaxinim ou um gambá entrar", eu disse, "não
tentem fazê-lo sair. Basta sair do consultório e buscar o seu pai
ou o seu avô. Ou sua mãe", acrescentei. Bree certamente poderia
lidar com um guaxinim de maus modos.
Dei um beijo na sala em geral e voltei para a cozinha.
O cheiro de melaço havia desaparecido, mas o ar ainda estava
doce, agora com o cheiro de uísque. Brianna, sentada em uma
caixa de madeira de índigo, levantou sua xícara de lata para
mim.
"Você chegou na hora certa", disse ela.
"Para que?"
Jamie me entregou uma xícara cheia e bateu a borda da sua na
minha. "Slàinte109", ele disse. "Pelo nosso novo lar."
"Para presentes", disse Bree, meio se desculpando. "Pensei
muito nisso. Eu não sabia se algum dia os encontraria – qualquer
um de vocês", acrescentou ela, com um olhar sério para Roger.
"E eu queria trazer algo que durasse, mesmo que fosse destruído
ou perdido."
Jamie e eu trocamos um olhar perplexo, mas ela já estava
vasculhando sua bolsa de lona. Ela apareceu com um livro azul
grosso e, com os olhos dançando, colocou-o em minhas mãos.
"O que...", eu comecei, mas soube imediatamente pela sensação
e soltei um ruído que só poderia ser chamado de um grito. "Bree!
Oh, oh...!"
Jamie estava sorrindo, mas ainda perplexo. Eu o estendi para ele,
109
Saúde, em gaélico: a versão rápida de slàinte mhath – boa saúde.
209

em seguida, apertei contra meu peito antes que ele pudesse pegá-
lo.
"Oh!", eu disse novamente. "Bree, obrigada! Isso é
maravilhoso!"
Ela estava rosa de prazer, seus olhos brilhando em resposta à
minha excitação. "Achei que você gostaria."
"Oh…!"
"Deixe-me ver, mo nighean donn110", disse Jamie, pegando
suavemente o livro. Eu mal pude suportar deixá-lo ir, mas
desisti.
"Manual Merck, décima terceira edição", ele leu na capa e
ergueu os olhos, as sobrancelhas levantadas. "Merck parece ser
um escritor popular – isso, ou ele comete erros como o diabo."
"É um... um livro de medicina", expliquei, começando a me
controlar, embora pequenos arrepios de euforia ainda estivessem
passando por mim. "O Manual Merck de Diagnóstico e Terapia.
É uma espécie de compêndio do estado do conhecimento médico
geral."
"Oh." Ele olhou para o livro com interesse e o abriu, embora eu
pudesse ver que ele ainda não havia compreendido toda a sua
importância. "O controle da propagação da E. histolytica111
requer a prevenção do acesso de fezes humanas à boca", leu ele,
e ergueu os olhos.
"Oh", ele disse suavemente, vendo a expressão em meu rosto, e
sorriu. "É o que as pessoas terão descoberto – então. Coisas
sobre cura que você mesmo ainda não conhece. Embora eu
esteja supondo que você sabe que não deve comer merda?"
Eu assenti com a cabeça, ele fechou o livro suavemente e o

110
Minha moça de cabelos castanhos. Em gaélico.
111
Entamoeba histolytica é uma espécie de protozoário que causa disenterias graves com sangue e muco.
210

devolveu. Eu o segurei contra meu peito, dominado pela


antecipação. Décima terceira edição – de 1977!
Roger tossiu e, quando Brianna olhou para ele, inclinou a cabeça
na direção da bolsa.
"E...", disse ela, sorrindo para Jamie. "Para você, Pa." Ela puxou
uma brochura grossa e pequena e entregou a ele. "E para você..."
Um segundo livro seguiu o primeiro. "E este é para você
também." O terceiro.
"Eles vão todos juntos", Roger disse rispidamente. "É tudo uma
história só, quero dizer, mas impressa em três volumes."
"Oh, sim?" Jamie virou um dos livros cautelosamente, como se
temesse que pudesse se desintegrar em suas mãos.
"Está colada, não é? A lombada?"
"Sim", disse Roger, sorrindo. "É chamado de brochura, esse tipo
de livro pequenino. Eles são baratos e leves."
Jamie pesou o livro em sua mão e acenou com a cabeça, mas ele
já estava lendo a contracapa.
"Frodo Baggins112", ele leu em voz alta, e ergueu os olhos,
perplexo. "Um galês?"
"Não exatamente. Brianna pensou que a estória poderia falar
com você", Roger disse, seu sorriso se aprofundou quando ele
olhou para ela. "Eu acho que ela está certa."
"Mmphm." Jamie reuniu o trio de livros e – com um olhar
pensativo para as pegadas digitais pegajosas que Mandy havia
deixado em sua xícara – colocou-os em cima do meu armário de
ervas. Ele beijou Bree e acenou com a cabeça em direção à bolsa.
"Muito obrigado – eu sei que eles vão ser braw. O que você
trouxe para você, moça?
112
Frodo Bolseiro, na tradução para o português, um dos principais personagens de O Senhor dos Anéis,
de J. R. R. Tolkien.
211

"Bem... principalmente ferramentas pequenas", disse ela. "A


maioria são coisas que existem agora, mas de melhor qualidade,
ou que eu não poderia obter aqui sem muitos problemas e
despesas."
"O quê, nada de livros?", Jamie perguntou, sorrindo. "Será você
a única analfabeta da família?"
Bree já estava corada de prazer e excitação, mas ficou
visivelmente mais rosa com essa pergunta.
"Hum. Bem... apenas um."
Ela olhou para mim, limpou a garganta e enfiou a mão na sacola
quase vazia.
"Oh", eu disse, e o tom da minha voz fez Jamie olhar para mim,
em vez de para o livro de capa dura em sua sobrecapa de
plástico. A Alma de um Rebelde, dizia. As Raízes Escocesas da
Revolução Americana. De Franklin W. Randall, PhD.
Bree estava olhando para Jamie, uma pequena carranca ansiosa
entre as sobrancelhas, mas com isso, ela se virou para mim.
"Ainda não li", disse ela. "Mas você... qualquer um de
vocês",acrescentou ela, olhando entre mim e Jamie, "podem ler
a qualquer hora. Se vocês quiserem."
Eu encontrei os olhos de Jamie. Suas sobrancelhas se levantaram
brevemente e ele desviou o olhar.

-.-.-

BRIANNA E ROGER levaram as xícaras pegajosas, a tigela, a


colher e a jarra de leite para fora para enxaguar, e me sentei ao
lado de Jamie em um grande saco de feijões secos para me
vangloriar de meu Manual Merck por alguns minutos. Ele estava
virando o livro de Frank em suas mãos com um ar vívido,
212

indicando que ele pensava que poderia explodir, mas deixou-o


de lado e sorriu quando me viu acariciando a capa de couro azul
texturizado do meu novo bebê.
"Você vai ler do começo ao fim, como a Bíblia?", ele perguntou.
"Ou você vai apenas esperar até que alguém chegue até você
com manchas azuis e verificar aí?"
"Oh, os dois", eu assegurei a ele, pesando o livrinho grosso em
minha mão. "Pode haver novos tratamentos sugeridos para
coisas que reconheço, mas sem dúvida descreve coisas que
nunca vi ou ouvi falar também.”
"Posso ver de novo?" Ele estendeu a mão e eu cuidadosamente
coloquei o livro nela. Ele o abriu aleatoriamente, leu...
"Tripanossomíase113". Suas sobrancelhas se ergueram. "Você
pode fazer algo sobre a tripanossomíase, Sassenach?"
"Bem, não", eu admiti. "Mas, na chance de eu encontrar
tripanossomíase, pelo menos eu saberia o que era, e isso poderia
salvar o paciente de ser submetido a um tratamento ineficaz ou
perigoso."
"Sim, e dar-lhe tempo para escrever seu testamento e convocar
um padre também", disse ele, fechando o livro e devolvendo-o.
"Humm", eu disse, não querendo realmente pensar na
possibilidade – bem, na certeza absoluta, na verdade – de
diagnosticar condições fatais que eu não poderia tratar.
"E quanto aos seus livros? Eles parecem interessantes?" Eu
balancei a cabeça em direção à pilha de brochuras grossas e seu
rosto se iluminou.
Ele pegou o primeiro volume e folheou as páginas, lentamente,

113
A doença de Chagas, também conhecida como tripanossomíase americana, é uma doença
potencialmente fatal causada pelo parasita (protozoário) Trypanosoma cruzi. Estima-se que de 6 a 7
milhões de pessoas em todo o mundo estejam infectadas com T. cruzi, o parasita causador da doença de
Chagas. Mas dificilmente teriam sido encontradas na Carolina do Norte: é uma doença tropical, devido
ao seu vetor.
213

então voltou para a primeira página e leu com uma voz rouca:
"Acerca dos Hobbits. Este livro está amplamente preocupado
com os Hobbits, e de suas páginas um leitor pode descobrir
muito sobre seu caráter e um pouco de sua história. "
"Isso é apenas o prólogo", assegurei-lhe. "Você pode pular isso,
se quiser."
Ele balançou a cabeça, os olhos fixos na página, sorrindo.
"Se o autor achou que valia a pena escrevê-lo, então vale a pena
lê-lo. Não pretendo perder uma única palavra. "
Uma pontada aguda me atingiu então, vendo a maneira reverente
com que ele manuseava o livro, virando as páginas com o dedo
indicador delicado.
Um livro – qualquer livro – tinha um significado muito além de
seu conteúdo para um homem que viveu anos seguidos com
pouco ou nenhum acesso à palavra impressa, e apenas a
memória de histórias para fornecer a ele e a seus companheiros
um escape de circunstâncias desesperadoras.
"Você leu este, Sassenach?", ele perguntou, olhando para cima.
"Não, embora eu tenha lido O Hobbit, do mesmo autor. Bree e
eu lemos juntas quando ela estava na sexta série – cerca de doze
anos, quero dizer."
"Ah. Então, você não diria que esses livros são obscenos?"
"O quê? Não, de jeito nenhum", eu disse, rindo.
"O que lhe deu essa ideia?"
"Nada, a partir da capa – nunca vi tanta impressão na parte de
fora de um livro, mas não há como saber, há?"
Ele fechou o livro com óbvia relutância.
"Eu estava pensando, poderíamos ler isso à noite, talvez cada
um se revezando para ler um capítulo. Jem e Germain têm idade
214

suficiente para fazer isso. Você acha que Frances sabe ler?"
"Eu sei que ela sabe. A irmã ensinou a ela, segundo ela me
disse."
Levantei-me e fui até ele, apoiando-me em seu ombro para olhar
para A Sociedade do Anel. "É uma ideia maravilhosa."
Tínhamos feito isso com Jenny e Ian durante os breves meses de
nosso casamento recente, vividos em Lallybroch: passávamos
horas iluminadas de paz e felicidade à noite enquanto uma
pessoa ou outra lia em voz alta e as outras tricotavam meias ou
remendavam roupas ou pequenos pedaços de móveis.
A visão rosada de tais noites aqui, nossa própria família em
nossa própria casa, fez meu coração brilhar no meu peito.
Ele fez um ruído escocês baixo indicando contentamento e
colocou o livro à parte, ao lado do livro de capa dura que Bree
trouxera para ela. Um livro de Frank. Meu coração já tenro
apertou-se um pouco, ao mesmo tempo feliz e triste por ela o ter
trazido para se lembrar dele, para tê-lo com ela nesta nova vida.
Jamie me viu olhando para o livro e fez outro ruído escocês, este
indicando um interesse cauteloso. Eu balancei a cabeça para A
Alma de um Rebelde.
"Você vai ler esse?"
"Eu não sei", ele admitiu, olhando para ele. "Você leu,
Sassenach?"
"Não." Senti um pequeno mal-estar com a admissão.
O fato é que, embora eu tivesse lido todos os artigos, livros e
ensaios de Frank durante o que considerava nosso primeiro
casamento, não fui capaz de ler nenhum dos livros que ele
escreveu durante nosso segundo casamento, salvo um breve
olhar sobre aquele que lidou com as consequências de Culloden,
quando comecei a procurar pelos homens de Lallybroch.
215

"Este foi publicado depois que eu... voltei", eu disse, minha


garganta apertada. "Foi o último livro que ele escreveu. Eu nem
o tinha visto ainda. "
Eu me perguntei, por um instante, se Bree o tinha escolhido
porque a fotografia de Frank era como ele se parecia da última
vez que ela o viu, ou se ela o escolheu principalmente por causa
do título.
Jamie percebeu o tom da minha voz e olhou atentamente para
mim, mas não disse nada e pegou o Ovos Verdes e Presunto de
Mandy para uma leitura mais aprofundada.
Jem tinha levado seu próprio livro especial, The Scientific
American Boy114, para a cama com ele.
Ele provavelmente estava lendo para Germain e Fanny à luz do
fogo. Nada que eu pudesse fazer sobre isso, a não ser esperar
que não incluísse instruções passo a passo para construir uma
catapulta.

114
Livro muito popular até meados século XX, escrito em 1906 por Alexander Russel Bond e que inclui
diversas ilustrações e instruções para estimular a imaginação das crianças com a elaboração de diversas
experiências científicas simples.
216

10

SALSA, SÁLVIA, ALECRIM E TOMILHO 115

FOI UMA SEMANA DEPOIS que ouvimos o resto.


Fanny e Germain foram até a casa de Ian para ajudar a pentear116
as cabras de Jenny. Jemmy, sendo barrado desta ocupação por
conta de um polegar torcido e sem gostar de ser um espectador,
decidira ficar em casa e jogar xadrez com Jamie.
Roger estava tocando de ouvido Scarborough Fair117 em um
tipo simples de dulcimer118 que ele havia feito, um contraponto
às conversas rudimentares semelhantes que giravam lentamente
pela cozinha. Depois que Bree e eu tínhamos sovado a massa de
pão para amanhã e colocado para levedar, preparado um pernil
de veado embebido em ervas e vinagre e debatido se o chão
precisava ser esfregado ou apenas varrido, a sala ficou
silenciosa, no entanto. A partida de xadrez havia acabado –
Jamie, por um esforço heroico, conseguira perder – o dulcimer
havia ficado em silêncio e Mandy e Jemmy adormeceram,
caídos como sacos de feijão nos cantos do depósito.
Por consentimento tácito, os quatro adultos se reuniram ao redor
da mesa, com quatro xícaras e uma garrafa de vinho tinto
decente – o presente de Michael Lindsay por minha ajuda em
costurar um par de longos ferimentos no flanco de seu cavalo,
115
Uma referência à música Scarborough Fair, citada logo no início do capítulo.
116
Parte do tratamento dado aos pelos de animais para uso como lã natural. A colheita de fibras ocorre
quando o pelo das cabras é penteado ou tosado.
117
Scarborough Fair é uma canção tradicional inglesa de autoria desconhecida. A canção teve muitos
intérpretes e versões, sendo as mais destacadas a gravação feita pela dupla Simon & Garfunkel (1966) e
a versão do grupo irlandês Celtic Woman que contou com a participação da soprano Hayley Westenra.
Seus primeiros versos são: “Você está indo à Feira de Scarborough? / Salsa, sálvia, alecrim e tomilho /
Mande lembranças àquele que vive lá / Ele outrora foi o meu verdadeiro amor “ A Feira de Scarborough,
um enorme evento comercial que durava 45 dias, era conhecida e famosa desde o séc XIII. Existe uma
crença que esses temperos citados eram usados para fazer um feitiço para atrair a pessoa amada.
118
Dulcimer é um instrumento de cordas percutidas, de origem medieval. O dulcimer se assemelha a um
violino alongado com um número limitado de cordas (geralmente de três a cinco) que podem ser
dedilhadas ou dobradas, ou mesmo tocados com batedores leves chamados de martelos. Lembra muito
vagamente um xilofone.
217

estes o resultado de um encontro com um urso.


"Seu dulcimer parece bonnie, Roger Mac", disse Jamie,
erguendo a xícara em direção ao instrumento, agora colocado
em cima do armário de ervas por segurança. Roger ergueu as
sobrancelhas, surpreso.
"Você... pode decifrar?" ele disse. "Quero dizer, sabe que é uma
música?"
"Não", disse Jamie, surpreso por sua vez. "Era uma música? O
som que faz é bom, no entanto. Como sininhos tocando."
"É uma música de... nosso tempo", disse Brianna, um pouco
hesitante, e olhou para as crianças.
"Está tudo bem", Roger assegurou-lhe. "A letra dessa música
poderia ter vindo de qualquer época da Idade Média em diante."
"Isso é bom. Precisamos ter cuidado", disse Bree, com um meio
sorriso para mim. "Preferimos não arriscar Mandy cantando
Twist and Shout119 na igreja.”
"Bem, não em nossa igreja", disse Roger, "embora certamente
haja mais... hum... igrejas atléticas120 agora nas quais isso seria
mais ou menos apropriado. Eu me pergunto se há alguma igreja
que manipula cobras na área", acrescentou ele, repentinamente
interessado. "Não sei quando isso começou."
"Cobras na igreja... de propósito?", Jamie disse com dúvidas.
"Por que diabos alguém faria isso?"
"Marcos 16:17", disse Roger. "E estes sinais hão de
acompanhar os que creem; em meu nome expulsarão demônios;
eles falarão em novas línguas; eles pegarão em serpentes; e se
beberem alguma coisa mortífera, não os fará mal; eles imporão
as mãos sobre os enfermos, e eles serão curados. Eles fazem

119
Canção dos Beatles, do álbum: Please Please Me, de 1963.
120
Igrejas que estimulam esportes para divulgar a fé.
218

isso – ou farão – para provar sua fé", explicou ele. "Pegando


cobras cascavéis e bocas-de-algodão com as mãos nuas. Na
Igreja."
"Jesus Cristo", disse Jamie, e se benzeu.
"Exatamente", Roger disse, balançando a cabeça. "Tudo na
Bíblia é seguro", disse ele a Bree, "mas talvez não queiramos
insistir em coisas que possam sugerir coisas mais modernas".
Eu havia olhado involuntariamente para minhas mãos quando
Roger havia citado o versículo da Bíblia, mas olhei para cima.
Jamie parecia não estar compreendendo.
Bree respirou fundo, olhando mais uma vez para as crianças.
"Não é que queiramos que elas esqueçam", disse ela
calmamente. "Havia – há, haverá – pessoas e coisas que elas
amavam de... nosso tempo. E não sabemos se elas podem algum
dia... eventualmente... voltar. Mas temos que ter cuidado com as
lembranças daquela época que guardamos entre nós, sobre as
quais falar. Lembrar."
Eu vi sua longa garganta balançar ligeiramente enquanto ela
engolia. "Provavelmente não causaria problemas se Mandy
contasse às pessoas sobre banheiros, por exemplo –
especialmente se eu construir um", acrescentou ela, abrindo um
breve sorriso. "Mas há outras coisas."
"Sim", disse Jamie suavemente. "Suponho que sim."
Ele colocou a mão na minha coxa e eu a cobri. Ele podia ver o
que eu vi: a expressão em seus rostos, Roger e Brianna. Eu tinha
visto isso nos dias próximos ao final da Segunda Guerra
Mundial; ele tinha visto nos meses e anos após Culloden. A
aparência de exilados, a necessidade se sobrepondo ao luto, a
bravura afastando as memórias que nunca seriam deixadas para
trás, não importa o quão profundamente elas estivessem
219

enterradas.
Houve um longo momento de silêncio. Jamie pigarreou.
"Eu sei por que você voltou", disse ele. "Mas como?"
A pura praticidade da pergunta quebrou o breve feitiço do pesar.
Bree e Roger se entreolharam e depois se voltaram para nós.
"Tem mais vinho?", Roger perguntou.

-.-.-

"NÃO SABEMOS SE é possível se mover através do tempo e


do espaço", explicou Bree, sobre um copo reabastecido. "Não
conhecemos ninguém que tenha feito isso, e não parecia um bom
momento para experimentar."
"Eu acho que não", eu disse, um tanto fracamente. Na maioria
das vezes, eu conseguia não lembrar como era entrar...
naquilo..., mas a memória estava lá, certo. Como ver algo grande
e escuro navegando logo abaixo da água, e você está em um
pequeno barco em um mar infinito.
"Então, essa decisão foi fácil o suficiente", disse Roger, com
uma careta indicando que fácil era um termo relativo. "Teríamos
que fazer a viagem da Escócia para a América, de qualquer
maneira. Em parte, era uma questão de saber se a passagem pelas
pedras poderia ser melhor a partir do círculo de pedra perto de
Inverness ou daquele em Ocracoke."
"Pessoas morreram em Ocracoke, ao passar", Bree disse
baixinho, colocando a mão sobre a de Roger. "Wendigo Donner
disse a você, não foi, mamãe?"
"Ele disse." Minha própria garganta estava apertada, tanto pelas
memórias que o nome de Donner evocou quanto por outras
associações com a palavra "Ocracoke", nenhuma delas boa.
220

Bree estava muito pálida e achei que ela tinha suas próprias
lembranças do lugar; ela havia sido mantida prisioneira lá por
Stephen Bonnet.
"E mesmo aqueles que não morreram tinham – hã – anomalias",
disse Roger, e olhou para mim. "Dente de Lontra – Robert
Springer. Ele queria que todo o seu grupo voltasse para...
quando? Em meados do século XVI, antes? Um longo caminho,
de qualquer maneira. Ele conseguiu voltar mais longe do que
qualquer um dos outros, mas ainda não tão longe quanto
pretendia. A questão, porém, é que a viagem não era a mesma
para os membros do grupo."
"Achamos que poderia ser porque eles passaram um de cada vez,
seguindo um padrão e entoando", Bree interveio. Isso pode ter
feito a diferença."
"E já passamos por Ocracoke juntos antes", Roger acrescentou.
"Se tínhamos feito uma vez, talvez pudéssemos fazer de novo."
"Então, tudo se resumia a uma questão de navios, não?" Jamie
estava sentado, atento, os dedos batendo levemente contra sua
coxa, mas agora se endireitou. "Haveria uma grande diferença,
você achou? Entre um navio construído em 1739 e outro
construído em 1775 ou algo assim?"
"Sim", disse Brianna, com alguma ênfase. "Os navios ficaram
maiores e mais rápidos – mas o tempo da viagem depende do
clima, e se você topar com um iceberg ou um furacão", ela
acenou para mim, "não importa muito se você está em um barco
a remo ou no Titanic".
"Não, não importa", Jamie concordou, e eu ri. Eu tinha contado
a ele – brevemente – sobre o Titanic.
"Do seu ponto de vista, uma prancha flutuante num lago de
trutas seria tão ruim quanto o Queen Mary – e esse é um navio
realmente grande."
221

"Sim, bem, acho que a comida seria melhor no último", ele disse,
imperturbável por minha provocação. "E enquanto eu tivesse
suas pequenas agulhas121 na minha cara, eu poderia escolher
com base nisso. Então, você sabia que o tempo mudou muito em
quarenta anos?” ele perguntou, retornando a conversa para Bree,
que balançou a cabeça.
"Não as tempestades e o clima ou o tipo de vento – quero dizer,
pode ter acontecido, mas não teríamos como saber disso. O que
sabíamos, porém, era o clima político."
"A guerra", disse Roger, interpretando corretamente meu olhar
vazio. "Os britânicos estavam – quero dizer, eles estão –
bloqueando e interrompendo o comércio e apreendendo navios
americanos a torto e a direito atualmente. E se escolhêssemos o
navio errado e acabássemos sendo afundados ou capturados, ou
se eu fosse pego compulsoriamente para servir à Marinha
britânica, deixando Bree e as crianças decidirem se
atravessavam as pedras sozinhas, ou ficariam na Jamaica ou em
qualquer outro lugar para tentar me encontrar?"
"Isso é sensato", disse Jamie. "Então vocês embarcaram em
1739. Como foi?"
"Horrível", disse Bree prontamente, assim como Roger disse:
"Terrível!"
Eles se entreolharam e riram, embora com um tom que
desmentia sua alegria; era a risada um pouco nervosa dos
sobreviventes que ainda não tinham certeza se haviam
sobrevivido.
Eles viajaram em um brigue chamado Kermanagh, de Inverness,
para Edimburgo, onde encontraram uma passagem no
Constance, um pequeno navio mercante, com destino a Charles

121
Referência às agulhas de acupuntura, usadas para tratar o terrível enjoo de Jamie no mar.
222

Town.
"Nada de cabines", disse Roger. "Só um pequeno recanto no
porão, entre os barris de água e as pilhas de baús cheios de
tecidos: linho, musselina, lã e sedas. O cheiro era muito forte –
argila branqueadora122, cola, tintas e urina, sabe? – mas poderia
ter sido pior. As pessoas do outro lado do porão estavam
espremidas entre caixotes de peixe salgado e barris de gim. Com
a fumaça, eles estavam em coma, pelo que podíamos dizer no
escuro."
"Eles tiveram sorte, se assim foi", disse Brianna com tristeza.
"Nós pegamos quatro – não uma, não duas, não três, mas quatro
– tempestades ao longo do caminho. Entre ter certeza de que
iríamos ao fundo a qualquer minuto e sacudir a carga a cada dois
minutos – exceto por Mandy, estávamos todos machucados em
todos os lugares. Eu a mantive no meu colo praticamente toda a
viagem, com minha capa enrolada em volta de nós duas, para
nos aquecer."
Jamie parecia ligeiramente verde, apenas ouvindo isso, e eu tive
que admitir que eu me sentia mareada por dentro, em simpatia a
esse relato.
"O que vocês comiam?", eu perguntei, na esperança de me
estabilizar e à conversa.
"Mingau frio", Roger disse com um encolher de ombros.
"Majoritariamente. Um pouco de bacon frio também. E nabos.
Muitos nabos."
"Nabos crus?", eu perguntei.
"Oh, que é isso!", Bree protestou. "Eles são como maçãs, só que
não são doces. E eu trouxe maçãs e passas também, e cenouras,
e um pote de espinafre cozido e um de picles – e nós pegamos

122
No original fuller’s earth – uma argila natural usada há séculos para retirar impurezas da lã, e
também para branquear tecidos sem o uso de produtos químicos fortes.
223

um dos tonéis de peixe salgado..."


"Ai, meu Deus", disse Roger, com sentimento. "Achei que fosse
morrer de sede depois de comer um deles... "
"Ninguém disse a você para molhá-los?", Jamie disse, sorrindo.
"Nós comemos queijo também", disse Bree, mas estava claro
que ela estava lutando uma batalha perdida.
"Bem, o queijo não estava tão ruim, se você regasse com gim ...
você já viu um verme de queijo, de perto?"
"Você pode vê-los?", Jamie perguntou, interessado. "Já estive
no porão de um navio mais de uma vez e não conseguia ver
minha mão na frente do rosto."
"Sim", disse Roger. "Não podíamos ter uma luz aberta no porão,
é claro, então a única vez que tínhamos luz era quando eles
abriram a tampa da escotilha. O que eles faziam sempre que o
tempo estava bom", ele acrescentou, tentando ser justo.
"Isso não soa tão mal", disse Jamie. "Você nem percebe os
vermes do queijo, se estiver com fome. E nabos crus são muito
satisfatórios..."
Bree fez um pequeno ruído divertido; eu não me manifestei. Ele
estava provocando, mas não brincando. Reconheci a memória
vívida de longos anos de quase inanição nas Highlands depois
de Culloden, e algo não muito longe disso na Prisão de
Ardsmuir.
"Quanto tempo você ficou no mar?", eu perguntei.
"Sete semanas, quatro dias e treze horas e meia", disse Brianna.
"Foi uma viagem bem rápida, graças a Deus.”
"Sim, foi mesmo", Roger concordou. "A última tempestade nos
atingiu perto da costa, porém, e tivemos que desembarcar em
Savannah. Não achei que fosse colocar esse grupo em outro
barco", ele acenou casualmente para sua esposa e filhos, "mas
224

então perguntamos a que distância ficava, e diante da


perspectiva de caminhar quinhentas milhas... encontramos outro
barco."
Este era um barco de pesca.
"Um barco aberto, graças a Deus", disse Bree com fervor.
"Dormimos no convés."
"Então vocês chegaram às pedras, finalmente", Jamie disse.
"Como foi?"
"Quase não conseguimos", Roger disse baixinho. Ele olhou para
as crianças, dormindo no banco. Mandy largada, caída de cara
no chão, mole como Esmeralda. "Foi Mandy quem nos ajudou
– e você", acrescentou ele, erguendo os olhos para Jamie com
um leve sorriso.
"Eu?"
"Você escreveu um livro", disse Bree baixinho, olhando para
ele. "Histórias do Vovô. E você pensou em colocar uma cópia
na caixa com suas cartas."
O rosto de Jamie mudou e ele olhou para o chão, de repente
envergonhado. "Sim... vocês leram?", ele perguntou, e
pigarreou.
"Nós lemos." A voz de Roger era suave. "Várias e várias vezes."
"E várias vezes", Bree acrescentou, os olhos calorosos com a
memória. "Mandy poderia recitar algumas de suas estórias
favoritas, palavra por palavra."
"Sim, bem..." Jamie esfregou o nariz. "Mas o que isso tem a ver
com..."
"Ela encontrou você", disse Roger. "Nas pedras. Todos nós
estávamos pensando o máximo que podíamos, em você e Claire
e a Cordilheira dos Fraser e – e tudo que lembramos, eu
suponho. Demais, talvez – muitas coisas diferentes."
225

"Não consigo nem começar a descrever", disse Bree, e claro que


não, mas a sombra disso estava em seu rosto.
"Nós não podíamos sair. Nós passamos e estávamos... é como
explodir, Pa", ela disse, tentando explicar. "Mas tão lentamente
que você pode... meio que sentir que está desintegrando. Quando
fizemos isso antes – foi assim, mas acabou muito rápido. Desta
vez... não parou."
Eu senti a memória disso, com suas palavras, e tudo dentro de
mim balançou como se eu tivesse sido jogada de um penhasco.
Bree ficou pálida, mas engoliu em seco e continuou.
"Eu – nós – você realmente não pode falar, mas você está meio
que ciente de quem está com você, a quem você está segurando.
Mas Mandy – e Jem, um pouco – são... meio que mais fortes do
que Roger ou eu. E eu – nós – podíamos ouvir Mandy dizendo:
Vovô! Pictsie123 azul! E de repente, estávamos... todos na mesma
sintonia, acho que se poderia dizer."
Roger sorriu com isso e continuou a história.
"Estávamos todos pensando em você e naquela história
específica; é aquela com a ilustração de um pictsie azul. E...
então estávamos deitados no chão, quase literalmente em
pedaços, mas... vivos. No tempo certo. E juntos."
Jamie fez um pequeno som com a garganta – o único ruído escocês
inarticulado que eu nunca tinha ouvido dele.
Eu desviei o olhar e vi que Jem estava acordado; ele não se
moveu, mas seus olhos estavam abertos. Ele se sentou devagar
e se inclinou para frente, os cotovelos sobre os joelhos.
"Está tudo bem, vovô", disse ele, com a voz cheia de sono.

123
Segundo a definição da própria autora, “‘pictsie’ é a versão escocesa de "pixie" - ou seja, um
pequeno sprite (espírito, duende) travesso. Acho que os azuis são particularmente bons em causar
problemas “ (Definição dada no The Litforum)
226
227

PARTE DOIS

Nenhuma Lei A Leste de


Pecos124

124
“The Only Law West of Pecos” – ‘A Única Lei A Oeste de Pecos’ era como se denominava o auto
intitulado juiz Roy Bean -Phantly Roy Bean Jr (c.1825; 1903). Depois de uma vida de aventuras
circulando pela Califórnia, Novo México, etc, envolvendo-se em roubos e na guerra civil americana,
estabeleceu-se num pequeno saloon, que foi se movendo ao longo dos interesses da ferrovia que estava
sendo construída, até finalmente fincar raízes a oeste do Rio Pecos, no Texas. Sua vida movimentada foi
inspiração para um filme: “The Life and Times of Judge Roy Bean” (1972) ; “Roy Bean – O Homem da
Lei!”, com Paul Newman no papel principal. Fraser’s Ridge, lógico, se situa a leste do Rio Pecos.
228

11

RELÂMPAGO

ROGER ENTROU NA CLAREIRA e parou tão abruptamente


que Bree quase se chocou contra ele e se salvou apenas
agarrando seu ombro.
"Maldito inferno", ela disse suavemente, olhando além dele para
a ruína que os confrontava.
"Isso é ... para dizer o mínimo." Ele havia sido informado, é
claro – todo mundo, de Jamie a Rodney Beardsley, de cinco
anos, tinha dito a ele – que a cabana que servia como igreja,
escola e Loja Maçônica125 havia sido atingida por um raio e
incendiada um ano atrás, durante a ausência de Jamie e Claire.
Ver isso, porém, foi um choque inesperado.
A madeira do batente da porta tinha queimado, mas ainda estava
de pé, uma frágil recepção negra ao vazio carbonizado do outro
lado.
"Eles tiraram a maior parte da madeira queimada. " Brianna
respirou fundo, caminhou até a porta vazia e olhou ao redor.
"Provavelmente carvão para defumar carne ou fazer pólvora. Eu
me pergunto se é difícil obter enxofre hoje em dia."
Ele olhou para ela, sem saber se ela estava falando sério ou
apenas tentando manter a conversa leve até que passasse o
choque de ver destruída sua primeira – e única – igreja. O único

125
Aqui, um engano. No livro 6, as informações são que os encontros da Loja ocorriam na cabana de
Roger, não na mesma cabana que servia como igreja e escola.
229

lugar onde ele foi – por um tempo – um verdadeiro ministro. Seu


peito estava apertado, assim como sua garganta – mas ele deixou
de lado a sensação de inquietação por um momento e tossiu.
"Você pretende fazer pólvora? Depois do que aconteceu com os
fósforos?"
Ela estreitou os olhos para ele, mas ele podia dizer agora que ela
estava deliberadamente tornando as coisas leves.
"Você sabe que não foi minha culpa. E eu poderia. Eu conheço
a fórmula da pólvora e poderíamos desenterrar o salitre das
velhas latrinas das pessoas."
"Bem, você pode, se desenterrar latrinas antigas é sua noção de
diversão", ele disse, sorrindo apesar de si mesmo. "Suas
pesquisas ensinaram como não se explodir enquanto faz
pólvora?"
"Não, mas eu sei a quem perguntar", ela disse, complacente.
"Mary Patton126."
Quer ela pretendesse ou não, a distração de sua conversa estava
funcionando. A sensação de ter levado um soco no estômago
havia passado, e se ele ainda sentia as dores da memória, era
capaz de colocá-las de lado para tratar mais tarde.
"E quem é Mary Patton, quando ela está em casa?"
"Uma fabricante de pólvora – não sei se há um nome para essa
profissão. Mas ela e seu marido têm um moinho de pólvora, o
Branch Powder, no Rio Wautauga – e é por isso que o local
ganhou esse nome – era um braço do rio que tinha um moinho
de pólvora ao lado. Fica a cerca de sessenta quilômetros daqui",
disse ela casualmente, agachando-se para pegar um pedaço de
carvão enegrecido. "Eu pensei que poderia ir lá na próxima

126
Mary Patton (1751-1836) é considerada uma heroína da guerra revolucionária norte-americana, tendo
vendido mais de 200 kg de pólvora para abastecer 850 milicianos das terras de além do Tratado da
Fronteira, que lutaram na batalha de Kings Mountain durante a Guerra Revolucionária.
230

semana. Há uma trilha – até mesmo uma estrada, parte do


caminho."
"Por quê?", ele perguntou cautelosamente. "E o que você está
planejando fazer com esse carvão?"
"Desenhar", disse ela, e enfiou-o na bolsa. "Quanto à sra.
Patton... vamos precisar de pólvora, você sabe."
Agora ela estava falando sério.
"Você quer dizer muita pólvora”, disse ele lentamente. "Não
apenas para caçar." Ele não sabia quanto de pólvora havia na
casa; ele não era um atirador, então não caçava com uma arma.
"Sim, é o que eu quero dizer."
Ela virou a cabeça, e ele viu sua garganta longa e pálida se mover
enquanto ela engolia. "Eu li um pouco do livro do papai. A Alma
de um Rebelde."
"Oh, Jesus", disse ele, e o sentimento que reprimiu ao ver sua
ex-igreja voltou com força total. "E?"
"Você já ouviu falar de um soldado britânico chamado Patrick
Ferguson127?"
"Não. Mas acho que estou prestes a...?"
"Provavelmente. Ele inventou o primeiro mosquete de
carregamento por culatra eficaz. E ele vai começar uma luta
aqui". Ela acenou com a mão, indicando os arredores. "E muito
em breve. E vai acabar em um lugar chamado Kings Mountain,
no ano que vem."
Ele procurou em sua memória por qualquer menção a tal lugar,
mas não encontrou nada. "Onde é isso?"

127
Major Patrick Ferguson (1744-1780), desenhou um rifle de carregamento pela culatra por volta de
1770. Ele recebeu uma patente inglesa em dezembro de 1776 (número 1139) sobre os detalhes do projeto.
Embora um rifle mais eficiente (tendo sido colocado em ação ainda na Batalha de Brandywine), a
produção deste rifle era cara e demorada.
231

"Em algum momento, será na fronteira entre a Carolina do Norte


e a Carolina do Sul. Agora, é cerca de cento e sessenta
quilômetros ou mais..." Ela se virou, apertando os olhos na
direção do sol, então apontou um longo dedo enegrecido de
carvão em direção a um bosque de jovens árvores de carvalho
branco. "…Naquela direção."
"Você sabe aquela sobre como, para um americano, cem anos é
muito tempo, e para um inglês, cem milhas128 é um longo
caminho?", ele perguntou. "Se o povo por aqui não é todo inglês,
definitivamente ainda não é americano. Quer dizer, é um longo
caminho. Você não está me dizendo que acha que teremos que
ir para Kings Mountain por algum motivo?"
Ela balançou a cabeça, para grande alívio dele.
"Não. Só quis dizer isso quando disse que Patrick Ferguson iria
começar uma luta aqui... quis dizer... aqui. O sertão." Ela puxou
um lenço sujo do bolso e estava esfregando distraidamente as
manchas de carvão dos dedos.
"Ele vai formar uma milícia legalista", acrescentou ela em voz
baixa. "De vizinhos. Não seremos capazes de ficar de fora.
Mesmo aqui."
Ele sabia disso. Eles sabiam disso. Falaram sobre isso antes de
finalmente decidirem tentar chegar até seus pais. Santuário. Mas
mesmo procurando por esse santuário, eles sabiam que a guerra
afeta a tudo e todos em seu caminho.
"Eu sei", disse ele, e colocou um braço em volta da cintura dela.
Eles pararam um pouco, ouvindo o bosque ao redor deles. Dois
pássaros machos travavam sua própria guerra pessoal nas
árvores próximas, cantando a plenos pulmões os seus pequenos
sons metálicos.

128
A unidade do original, milhas, foi mantida para permitir o paralelismo semântico no ditado. Cem
milhas são equivalentes a cento e sessenta quilômetros no nosso padrão métrico decimal.
232

Apesar da ruína carbonizada, havia uma profunda sensação de


paz na pequena clareira. Brotos verdes e pequenos arbustos
surgiram entre as cinzas, vívidos contra o preto. Sem resistência,
a floresta curaria pacientemente a cicatriz – retomaria seu
terreno e seguiria em frente como se nada tivesse acontecido,
como se a igrejinha nunca tivesse estado aqui.
"Você se lembra do primeiro sermão que pregou aqui?", ela
perguntou suavemente. Seus olhos estavam fixos no terreno
aberto.
"Sim", ele disse, e sorriu um pouco. "Um dos rapazes soltou uma
cobra na congregação e Jamie a agarrou antes que pudesse
causar um tumulto. Uma das coisas mais legais que ele já fez por
mim."129
Brianna riu e ele sentiu a vibração quente através de suas roupas.
"O olhar no rosto dele. Pobre Pa, ele tem tanto medo de cobras."
"E não é de se admirar", disse Roger com um encolher de
ombros. "Uma quase o matou."
Ele próprio sentiu um arrepio persistente com a memória de uma
noite sem fim em uma floresta escura, ouvindo Jamie dizer a ele
– com o que ambos pensaram que seriam as últimas respirações
de Jamie – o que fazer e como fazer, se e quando ele, Roger, se
visse repentinamente no comando de toda a Cordilheira.
"Muitas coisas quase o mataram", disse ela, sem rir. "Um dia
desses..." Sua voz estava rouca.
Ele colocou a mão em seu ombro e massageou-o suavemente.
"Será um dia desses para todos, mo ghràidh130. Se não fosse, as
pessoas não pensariam que precisam de um ministro. Quanto ao
seu pai... enquanto sua mãe estiver aqui, acho que ele vai ficar

129
Esse fato foi relatado no livro 6.
130
Minha querida / meu querido. Gaélico.
233

bem, não importa o que aconteça."


Ela deu um suspiro profundo e a tensão em seu corpo diminuiu.
"Acho que todo mundo se sente assim pelos dois. Se eles
estiverem aqui, tudo ficará bem."
Você se sente assim em relação a eles, pensou ele. E para ser
justo, ele também. Espero que as crianças se sintam assim a
nosso respeito.
"Sim. Os serviços sociais essenciais da Cordilheira dos Fraser",
disse ele secamente. "Sua mãe é a ambulância e seu pai é a
polícia."
Isso a fez rir, e ela se virou para ele, os braços em volta dele,
sorrindo.
"E você é a igreja", disse ela. "Estou orgulhosa de você."
Deixando-o ir então, ela se virou e acenou com a mão em direção
à porta fantasmagórica.
"Bem, se mamãe e papai podem reconstruir das cinzas, nós
também podemos. Vamos reconstruir aqui ou você quer
escolher outro lugar? Quer dizer, não sei se as pessoas seriam
supersticiosas sobre ela ter sido destruída por um raio."
Ele encolheu os ombros, sentindo-se aquecido por suas palavras.
"Supõe-se que ele não caia duas vezes no mesmo lugar, não é?
O que poderia ser mais seguro? Venha, então; Lizzie e seu
ménage131 estão esperando."
"Certamente você está se referindo ao menagerie132 dela", disse
Bree, levantando a saia para a caminhada até a cabana de
Beardsley.
"Lizzie, Jo e Kezzie e... esqueci quantos filhos mamãe disse que

131
O significado mais conhecido desse termo em francês é ménage a trois – uma relação sexual a três.
Mas também pode ser o conjunto de membros de uma família.
132
Uma coleção diferente e variada de pessoas ou coisas.
234

eles têm agora."


"Eu também", Roger admitiu. "Mas podemos contá-los quando
chegarmos lá."
Não foi até que a floresta se fechou por trás e o caminho se
ergueu à frente deles que ele pensou em perguntar.
Ela não queria olhar além da sobrevivência diária durante o pior
de sua jornada, mas ele tinha certeza de que sua visão do
presente não se limitava a lavar roupas e matar perus.
"O que você acha que pode ser o seu próprio trabalho? Aqui."
Ele a estava seguindo; ela virou a cabeça brevemente em direção
a ele e o sol tocou seus cabelos com chamas.
"Oh, eu?" ela disse. "Acho que talvez eu seja o armeiro." Ela
sorriu, mas o olhar em seus olhos era sério. "Vamos precisar de
um."
235

12

ANTIGOS CAMARADAS

Fazenda Monte Josiah, Colônia Real


da Virginia

WILLIAM SENTIU CHEIRO DE FUMAÇA. Não fogo de


lareira ou incêndio florestal; apenas um travo acinzentado ao
vento, tingido de carvão, gordura – e peixes. Não estava vindo
da casa em ruínas; a chaminé havia desabado, levando consigo
parte do telhado, e uma grande trepadeira tingida de vermelho
cobria as pedras e as telhas espalhadas.
Também havia mudas de choupo crescendo através das tábuas
empenadas da pequena varanda; a floresta havia começado seu
trabalho furtivo de recuperação. Mas a floresta não defumava
sua carne. Alguém esteve aqui.
Ele desmontou e amarrou Bart a um tronco, preparou sua pistola
e se dirigiu para a casa. Poderiam ser índios em uma caçada,
defumando sua caça antes de carregá-la de volta para o lugar de
onde vieram. Ele não brigava com os caçadores, mas se fossem
invasores que pensavam em assumir o controle da propriedade,
eles deveriam pensar novamente. Este era o seu lugar.
Eram índios – ou um, pelo menos. Um homem seminu estava
agachado à sombra de uma enorme faia, cuidando de uma
pequena fogueira coberta com estopa úmida; William podia
sentir o cheiro de madeira de nogueira recém-cortada, misturado
com o cheiro forte de sangue, carne fresca, fumaça e o fedor
pungente de peixe secando – uma pequena prateleira de trutas
partidas estava ao lado de uma fogueira. Sua barriga roncou.
O índio – parecia jovem, embora grande e muito musculoso –
236

estava de costas para William e habilmente descarnava a carcaça


de um pequeno porco que jazia sobre um saco de estopa
achatado ao lado da fogueira.
"Olá, aí", disse William, levantando a voz. O homem olhou em
volta, piscando contra a fumaça e sacudindo-a para longe do
rosto. Ele se levantou lentamente, a faca que estava usando ainda
na mão, mas William tinha falado de maneira agradável, e o
estranho não era ameaçador. Ele também não era um estranho.
Ele saiu da sombra da árvore, a luz do sol atingiu seus cabelos e
William sentiu um choque de reconhecimento surpreso.
O mesmo fez o jovem, pela expressão em seu rosto.
"Tenente?", disse ele, incrédulo. Ele olhou William rapidamente
de cima a baixo, registrando a falta de uniforme, e seus grandes
olhos escuros se fixaram no rosto de William. "Tenente ... Lorde
Ellesmere?"
"Eu costumava ser. Sr. Cinnamon, não é?"
Ele não pôde deixar de sorrir enquanto falava o nome. Os
cabelos do jovem estavam agora com pouco mais de 2,5
centímetros de comprimento, mas apenas raspá-lo
completamente teria disfarçado sua cor marrom avermelhada
profunda distinta ou seus cachos exuberantes. Órfão da missão
francesa, ele deve seu nome133 a eles.
"John Cinnamon134, sim. Seu servo... senhor." O antigo batedor
deu-lhe uma meia reverência apresentável, embora o "senhor"
tenha sido falado com uma espécie de pergunta.
"William Ransom. Atenciosamente, senhor", disse William,
sorrindo, e estendeu a mão. John Cinnamon era alguns
centímetros mais baixo que ele e alguns centímetros mais largo;

133
Cinnamon, em inglês, significa canela (especiaria)
134
John Cinnamon foi citado no livro 7, não exatamente pelo nome, mas pelos seus cabelos e pela cor
deles, numa carta de William para lorde John. Sua estória, no entanto, começou de verdade em Costume.
237

o batedor havia crescido nos últimos dois anos e possuía um


aperto de mão muito sólido.
"Espero que você perdoe minha curiosidade, sr. Cinnamon, mas
como diabos você veio parar aqui?", William perguntou, se
soltando.
Ele tinha visto John Cinnamon pela última vez três anos antes,
em Quebec, onde passou grande parte de um longo e frio inverno
caçando e fazendo armadilhas na companhia do batedor meio-
índio, que tinha quase sua idade.
Ele se perguntou brevemente se Cinnamon tinha vindo em busca
dele, mas isso era absurdo. Ele não achava que já havia
mencionado o Monte Josiah para o homem – e mesmo se tivesse,
Cinnamon não poderia esperar encontrá-lo aqui. Ele não vinha
aqui desde os dezesseis anos.
"Ah." Para a surpresa de William, um rubor lento tingiu as largas
maçãs do rosto de Cinnamon. "Eu... hã ... eu... bem, estou indo
para o sul." O rubor ficou mais profundo.
William ergueu uma sobrancelha. Embora fosse verdade que a
Virgínia ficava ao sul de Quebec e que havia uma boa parte do
país ainda mais ao sul, o Monte Josiah não estava a caminho de
lugar nenhum. Nenhuma estrada conduzia até aqui. Ele próprio
subiu rio acima com seu cavalo em uma barcaça até Breaks,
aquele trecho de quedas d'água e corredeiras no rio James, onde
a terra desabava repentinamente sobre si mesma e interrompia
as viagens pela água. Ele tinha visto apenas três pessoas
enquanto cavalgava acima do Breaks – todas elas se dirigindo
para o outro lado.
De repente, porém, os ombros largos de Cinnamon relaxaram e
o olhar de cautela foi apagado pelo alívio.
"Na verdade, vim ver meu amigo", disse ele, e acenou com a
cabeça em direção à casa. William se virou rapidamente e viu
238

outro índio abrindo caminho por entre os arbustos de framboesa


espalhados pelo que costumava ser um pequeno gramado de
cróquete135.
"Manoke136!" ele disse. Em seguida, gritou: "Manoke!", fazendo
o homem olhar para cima. O rosto do índio mais velho iluminou-
se de alegria e uma felicidade súbita e descomplicada percorreu
o coração de William, limpando-o como a chuva de primavera.
O índio estava ágil e magro como sempre, com o rosto um pouco
mais enrugado. Seus cabelos cheiravam a fumaça de madeira
quando William o abraçou, e o cinza nele era da mesma cor
suave da fumaça, mas ainda era espesso e áspero como sempre
– ele podia ver isso facilmente; ele estava olhando de cima para
baixo, a bochecha de Manoke pressionada em seu ombro.
"O que você disse?", perguntou ele, libertando Manoke.
"Eu disse: Que coisa, como você cresceu, garoto", disse
Manoke, sorrindo para ele. "Você precisa de comida?"

-.-.-

MANOKE ERA AMIGO de seu pai; lorde John nunca o tinha


chamado de outra coisa. O índio ia e vinha quando bem entendia,
geralmente sem aviso prévio, embora estivesse no Monte Josiah
com mais frequência do que não. Ele não era um servo ou um
homem contratado, mas ele cozinhava e lavava a louça quando
estava lá, cuidava das galinhas – sim, ainda havia galinhas;
William podia ouvi-las cacarejar e farfalhar enquanto se
acomodavam nas árvores perto da casa em ruínas – e ajudava

135
Cróquete ou croque ou toque-emboque é um jogo de recreação e consiste em golpear bolas de madeira
(ou plástico, atualmente) através de arcos encaixados no chão.
136
Índio, citado pela primeira vez no livro 6 como cozinheiro de lorde John, também é citado no livro 7
como amante ocasional dele. Na realidade, Manoke conhece lorde John em Costume.
239

quando havia caça para ser abatida e limpa.


"Seu porco?", William perguntou a Cinnamon, com um breve
movimento da cabeça em direção à fogueira coberta. Ele havia
cuidado de Bart e depois se juntado aos índios para jantar na
varanda em ruínas, os homens desfrutando do ar suave da noite
e de olho nos peixes que secavam, precavendo-se de guaxinins,
raposas ou outros vermes famintos.
"Oui. Lá em cima", Cinnamon disse, acenando com a mão
grande em direção ao norte. "Duas horas de caminhada. Alguns
porcos na floresta lá, não muitos."
William acenou com a cabeça. "Você tem um cavalo?", ele
perguntou. Era um porco pequeno, talvez uns trinta quilos, mas
pesado para carregar por duas horas – especialmente porque
Cinnamon provavelmente não sabia o quão longe ele teria que
ir. Ele já havia dito a William que nunca havia visitado o Monte
Josiah antes.
Cinnamon assentiu com a boca cheia e apontou com o queixo na
direção dos galpões e do celeiro de tabaco em ruínas. William
se perguntou há quanto tempo Manoke estaria ali; o lugar
parecia estar deserto há anos – e ainda assim havia galinhas...
Os cacarejos e grasnidos breves dos pássaros pousando o
lembraram repentina e nitidamente de Rachel Hunter, e na
respiração seguinte, ele encontrou o cheiro de chuva, galinhas
molhadas – e garota molhada.
"… Aquela que meu irmão chama de a Grande Prostituta da
Babilônia. Nenhuma galinha possui algo que se assemelhe à
inteligência, mas aquela é perversa além do normal".
"Perversa?" Evidentemente ela percebeu que ele estava
contemplando as possibilidades inerentes a essa descrição e as
achando divertidas, pois ela bufou pelo nariz e se curvou para
abrir o baú de cobertores.
240

"A criatura está sentada a seis metros de altura em um pinheiro,


no meio de uma tempestade. Perversa." Ela puxou uma toalha
de linho e começou a secar os cabelos com ela.
O som da chuva mudou repentinamente, o granizo chocalhando
como cascalho jogado contra as venezianas.
"Hummph", disse Rachel, com um olhar sombrio para a janela.
"Espero que ela seja nocauteada pelo granizo e devorada pela
primeira raposa que passar, e seja bem servida." Ela voltou a
secar os cabelos. "Não importa. Terei o maior prazer em nunca
mais ver nenhuma daquelas galinhas novamente."137
O cheiro dos cabelos molhados de Rachel era forte em sua
memória – e a visão deles, escuros e desgrenhados nas costas, a
umidade deixando sua roupa gasta transparente em alguns
pontos, com sombras de sua pele macia e pálida por baixo.
"O quê? Quer dizer, eu imploro seu perdão?"
Manoke havia dito algo a ele, e o cheiro de chuva desapareceu,
substituído por fumaça de nogueira, fubá frito e peixe.
Manoke lançou-lhe um olhar divertido, mas repetiu-se
gentilmente.
"Eu disse, você veio para ficar? Porque se for assim, talvez você
queira consertar a chaminé."
William olhou por cima do ombro; os escombros envoltos em
videiras eram apenas visíveis, além da borda da varanda.
"Eu não sei", disse ele, encolhendo os ombros. Manoke acenou
com a cabeça e voltou à sua conversa com Cinnamon; os dois
estavam falando francês. William não conseguia se esforçar para
ouvir, repentinamente dominado por um cansaço que o afundou
até a medula óssea.
Ele ficaria? Agora não; mas talvez mais tarde, quando ele tivesse
137
Lembranças de William sobre algo que ocorreu no livro 7.
241

feito seu trabalho, quando ele tivesse encontrado seu primo Ben
ou a prova absoluta de sua morte. Talvez ele voltaria. Ele não
sabia o que pretendia ao vir aqui agora; era apenas o único lugar
onde ele poderia pensar em paz e não ser obrigado a dar
explicações constantes. Sua madrasta – embora ele sempre tenha
pensado nela simplesmente como Mãe Isobel – tinha deixado o
lugar para ele. Ele se perguntou de repente se ela o tinha visto,
alguma vez.
Ele encontrou mais milicianos da Virgínia que estiveram no
Acampamento Middlebrook enquanto Ben foi prisioneiro lá. A
maioria deles nunca tinha ouvido falar do capitão Benjamin
Grey, e os poucos que ouviram, sabiam apenas que ele estava
morto.
Exceto que ele não estava. William se agarrou obstinadamente a
essa convicção. Ou se estava, não era de febre ou varíola,
conforme relatado pelos americanos.
Ele iria descobrir o que havia acontecido com seu primo. Uma
vez que ele tinha... bem, havia outras coisas em que pensar. Ele
precisava limpar sua mente. Dar sentido às coisas, decidir o que
fazer. Primeiro, é claro, Ben. Mas então ele precisaria se levantar
e agir, para consertar as coisas.
"Certo", ele disse baixinho. "Inferno e morte." Nada poderia ser
consertado.
Rachel estava casada agora, com o maldito Ian Murray – um
homem que era algo entre um highlander e um mohawk, e
também era o maldito primo de William, apenas para esfregar
sal na ferida. Isso não podia ser consertado.
Jane... Sua mente se esquivou de sua última visão de Jane. Isso
também não podia ser consertado – nem apagado de sua
memória. Jane era uma pedra pequena e dura que às vezes
chacoalhava nas câmaras de seu coração.
242

Nem poderia ser corrigido o fato milagroso da verdadeira


paternidade de William. Ter ficado cara a cara com Jamie
Fraser, depois de passar uma noite infernal com ele na vã
esperança de resgatar Jane... não havia como negar a verdade.
Ele foi gerado por um traidor jacobita, um criminoso escocês...
um maldito cavalariço, pelo amor de Deus. Mas. Você pode
reivindicar minha ajuda para qualquer empreendimento que
considere digno, o escocês havia dito.
E Fraser deu essa ajuda, não foi? Imediatamente e sem
questionar.
Não apenas por Jane, mas por sua irmã mais nova, Frances.
William mal conseguia falar quando enterraram Jane. O luto
lembrado o agarrou agora e ele abaixou a cabeça sobre o pedaço
de peixe comido pela metade em sua mão.
William tinha acabado de colocar a pequena Frances nos braços
de Fraser e foi embora. E agora, pela primeira vez, se perguntou
por que ele fez isso. Lorde John também estivera presente,
assistindo ao triste e minúsculo funeral. Seu próprio pai – ele
certamente poderia ter dado Fanny em segurança aos cuidados
de lorde John. Mas ele não tinha. Nem tinha pensado nisso.
Não. Não, não lamento. As palavras ecoaram em seu ouvido, e
o toque de uma quente e grande mão segurou sua bochecha por
um instante. Uma espinha de peixe esquecida ficou presa em sua
garganta e ele engasgou, tossiu, engasgou novamente.
Manoke olhou brevemente para ele, mas William acenou com a
mão e o índio voltou à sua intensa conversa algonquina138 com
John Cinnamon. William se levantou e foi, tossindo, dobrar a
esquina da casa até o poço.
A água era doce e fria e, com um pouco de esforço, ele desalojou

138
Língua falada por índios que habitavam a região de Ontário e Quebec, no Canadá.
243

o espinho e bebeu, depois derramou água na cabeça. Enquanto


limpava a sujeira de seu rosto, ele sentiu uma sensação gradual
de calma tomar conta dele. Não paz, nem mesmo resignação,
mas a compreensão de que se tudo não pudesse ser resolvido
agora... talvez não precisasse ser. Ele tinha 21 anos agora, era
sua maioridade, mas o espólio de Ellesmere ainda era
administrado por advogados e capatazes; todos aqueles
inquilinos e fazendas ainda eram responsabilidade de outra
pessoa.
Até que ele retornasse à Inglaterra para reivindicá-los e lidar
com eles. Se ele retornasse. Ou... ou o quê?
Era um crepúsculo profundo agora, uma de suas horas favoritas
do dia aqui. A floresta se acalmava com o fim da luz, mas o ar
aumentava, livrando-se do fardo do calor do dia, passando fresco
como um espírito pelas folhas murmurantes, tocando sua própria
pele quente com sua paz.
Ele ficaria aqui, pensou, passando a mão no rosto molhado. Por
um tempinho. Não pensar. Não lutar. Ficar quieto um pouco.
Talvez as coisas começassem a se organizar em sua mente.
Ele caminhou de volta para a varanda, para encontrar Manoke e
Cinnamon olhando para ele de forma estranha.
"O quê?", disse ele, passando a mão constrangida pelo alto da
cabeça. "Eu tenho carrapichos presos nos meus cabelos?"
"Sim", disse Manoke, "mas não importa. Nosso amigo tem algo
a dizer a você, no entanto."
William olhou para Cinnamon com surpresa. Estava muito
escuro para ver se o homem estava corando, mas ele pensava
assim, dados os ombros curvados de Cinnamon e sua aparência
geral de constrangimento beligerante.
"Vá em frente", Manoke pediu, cutucando Cinnamon
244

gentilmente. "Você tem que dizer a ele algum dia. Agora é uma
boa hora."
"Me dizer o quê?" William se sentou, de pernas cruzadas, para
encontrar os olhos de Cinnamon no mesmo nível. Os lábios do
homem estavam pressionados, mas ele encontrou os olhos de
William diretamente.
"O que eu disse", ele deixou escapar. "Antes. Sobre por que
estou aqui. Eu vim no caso – eu pensei que talvez – bem, era o
único lugar que eu conhecia para começar a procurar."
"Procurando o quê?", William perguntou, perplexo.
"Por lorde John Grey", Cinnamon disse, e William viu a larga
garganta mover-se enquanto ele engolia. "Pelo meu pai."139
-.-.-
MANOKE NÃO CAÇAVA muito, mas era um bom pescador;
ele ensinou William a fazer uma armadilha para peixes, a lançar
uma linha e até mesmo a agarrar um bagre enfiando
corajosamente a mão em buracos nas margens do rio de águas
lamacentas onde eles viviam, em seguida, puxando o peixe para
fora do corpo quando ele agarrava sua mão.
Um eco dessa sensação voltou a William agora, uma breve
ondulação em sua espinha e a sensação de água turva rolando
fria e lenta sobre sua cabeça, os dedos formigando ao pensar na
repentina pinça de ferro de mandíbulas invisíveis.
"Seu pai", ele disse cuidadosamente.
"Sim", disse John Cinnamon. Sua cabeça estava baixa, os olhos
focados no bolinho de milho que ele estava comendo.
William olhou para Manoke, sentindo como se alguém o tivesse
acertado atrás da orelha com uma pele de enguia recheada. O
índio mais velho acenou com a cabeça; sua expressão era séria,
139
Um pequeno engano...
245

mas ele parecia feliz.


"De fato", William disse educadamente, embora seu estômago
tivesse congelado em uma massa dura sob suas costelas. "Eu
parabenizo você."
Ninguém disse mais nada por vários minutos após a bomba de
Cinnamon – John Cinnamon parecendo quase tão chocado com
ela quanto William.
"Lorde John é um... bom homem", disse William, sentindo que
realmente deveria acrescentar algo.
Cinnamon murmurou algo inarticulado, balançando a cabeça
como um boneco de mola, e depois estendeu a mão
apressadamente para uma pequena truta frita, que em sua
agitação enfiou inteira na boca, depois fazendo apenas ruídos de
mastigação, pontuados por pequenas tosses.
Manoke, normalmente calado, continuou calado, comendo
calmamente seu peixe frito e bolinhos de milho, sem se importar
com a agitação no peito de seus dois companheiros.
William mal conseguia olhar para Cinnamon e ainda assim seus
olhos continuavam girando em direção ao homem em fascinação
mórbida, roubando olhares rápidos antes de desviar o olhar
bruscamente.
Cinnamon claramente trazia marcas de sangue misturado,
embora ele fosse bonito o suficiente. E aquela cor de cabelos só
poderia ter vindo de um pai europeu. Mas aqueles cachos
exuberantes em pequenos caracóis não tinham nenhuma
semelhança com a cabeleira loira e abundante de lorde John.
John Cinnamon levantou-se de repente da varanda rachada onde
eles se empoleiraram para comer no crepúsculo crescente.
"Onde você está indo, mon ami140?", disse Manoke, surpreso.

140
Meu amigo, em francês
246

"Vou cuidar do fogo", Cinnamon respondeu, com um


movimento de cabeça em direção ao poço fumegante sob o
grande carvalho. A estopa que o cobria estava ficando muito
seca, começando a carbonizar e fumegar; o fedor atingiu
William um instante depois.
A mãe de Cinnamon era meio francesa. Ele disse isso a William
antes, quando eles passaram o inverno caçando em Quebec. Os
franceses costumavam ter cabelos cacheados?
Havia um balde e uma grande jarra de barro sob a árvore –
William a reconheceu; era cinza, muito lascada e pintada com
duas faixas brancas. Lorde John a comprara de um negociante
de rio logo quando eles chegaram ao Monte Josiah. Cinnamon
derramou água na palma de sua mão, borrifando-a sobre o pano
de estopa, que parou de carbonizar e voltou a fumegar
silenciosamente, permitindo apenas que fiapos de fumaça do
fogo abaixo escapassem por baixo de suas laterais presas.
Cinnamon agachou-se e enfiou vários pequenos gravetos no
fogo sob a prateleira de peixes que secavam ao lado da fogueira,
depois se levantou, a cabeça virando-se para a varanda. Seu
rosto estava quase pálido na escuridão. William olhou para
baixo, esfarelando um pouco de peixe frito entre os dedos, e
sentiu o sangue quente subir em suas bochechas, como se tivesse
sido pego fazendo algo vergonhoso.
Os olhos... talvez houvesse algo no formato dos olhos que
lembrava Papa... Ele parou de repente, incapaz de terminar um
pensamento que tinha a palavra "papai" em conjunto com... isso
...
Pensar nisso era um golpe na boca do estômago, todas as vezes.
Filho.
Filho de lorde John. Era completamente impossível. Mas lá
estava, no entanto.
247

Manoke nunca mentia. Tampouco era homem de ser enganado


facilmente. Menos ainda faria algo que pudesse prejudicar lorde
John; William tinha certeza disso. Se Manoke disse que a
história de Cinnamon era verdadeira... então era. Mas... deve
haver algum engano.

-.-.-

A PRESENÇA DE MANOKE, embora muito bem-vinda, havia


obscurecido a ideia romântica de William de vagar solitário pela
plantação, sozinho com seus pensamentos por dias a fio. A
revelação de John Cinnamon tinha acabado totalmente com essa
ideia de retiro. Ele podia andar o quanto quisesse; mas não podia
escapar da realidade do homem, grande, sólido e índio – e do
pensamento: ele é o filho verdadeiro de Papa. E eu não sou.
O fato de William não ter nenhuma relação de sangue com John
Grey nunca pareceu importante para nenhum dos dois. Até
agora.
Ainda assim, se lorde John teve um encontro casual com uma
mulher índia – ou, que Deus me ajude, uma amante índia em
Quebec – não era da conta de ninguém. Cinnamon disse que sua
mãe morrera quando ele era criança; teria sido totalmente de
acordo com o senso de honra de lorde John garantir que o
menino fosse bem cuidado.
E o que Papa fará quando vir esse... esse... fruto do fato de seus
quadris terem visitado uma prostituta141?
Isso foi demais. Ele se levantou e saiu.
Ele só queria urinar e um momento de privacidade para se
acalmar, mas não queria se acalmar, então continuou andando,
141
No original, “fruit of whoremongering loins”, no original. A tradução tentou ser fiel a todos os
significados das palavras utilizadas originalmente.
248

embora a escuridão estivesse caindo.


Ele não se importava para onde ele estava indo. Virando as
costas para o fogo, ele se dirigiu aos campos que ficavam atrás
da casa. O Monte Josiah ostentava apenas vinte hectares de fumo
quando o conhecera anos antes; a terra estava ainda sendo
cultivada agora?
Para sua surpresa, estava. Era muito cedo para fazer a colheita,
mas o cheiro espesso de seiva do tabaco não curado pairava
como incenso na noite. O cheiro o acalmou e ele caminhou
lentamente pelo campo, em direção à forma negra do celeiro de
tabaco. Ainda estaria em uso?
Estava. Chamado de celeiro por uma questão de cortesia, era
pouco mais do que um grande galpão, mas a parte de trás era um
espaço grande e arejado onde os caules eram pendurados para
serem curados – havia apenas alguns lá agora, pendurados nas
vigas, quase invisíveis contra a tênue luz das estrelas que vazava
pelas tábuas largas. Sua entrada fez com que as poucas folhas
secas e empilhadas na ampla plataforma de cura de um lado se
mexessem e farfalhassem, como se o galpão o notasse. Era uma
fantasia estranha, mas não perturbadora – ele acenou com a
cabeça para o escuro, meio consciente de ser bem-vindo.
Ele esbarrou em algo que se afastou com um som oco – um barril
vazio. Apalpando, ele contou mais do que uma vintena,
esperando. Alguns velhos, alguns novos, a julgar pelo cheiro de
madeira nova que adicionava sua fragrância ao perfume do
galpão.
Alguém estava trabalhando na plantação – e não era Manoke. O
índio gostava de fumar tabaco de vez em quando, mas William
nunca o vira participar da produção ou colheita de qualquer
safra. Ele também não cheirava a isso. Não era possível tocar no
tabaco verde sem uma espécie de alcatrão preto e pegajoso
249

aderindo às suas mãos, e o cheiro de um campo de tabaco


maduro era o suficiente para fazer a cabeça de um homem adulto
girar.
Quando ele morou aqui com lorde John – o nome causou uma
pontada, mas ele a ignorou – seu pai contratou trabalhadores da
propriedade vizinha rio acima, um grande lugar chamado
Bobwhite142, que poderia facilmente cuidar da modesta safra de
Mount Josiah, além da sua própria enorme saída. Talvez o
mesmo arranjo ainda estivesse em vigor?
A ideia de que a plantação ainda estava funcionando, mesmo
dessa forma fantasmagórica, animou-o um pouco; ele achou o
lugar bastante abandonado quando viu a casa em ruínas.
Pensar na casa o fez olhar para trás. A luz bruxuleante da
fogueira brilhava através das janelas vazias da frente, dando a
ilusão de que alguém ainda morava lá. Ele suspirou e começou
a caminhar lentamente de volta.
Ele não tinha encontrado paz, mas o esforço que sua mente fez
para evitar pensar sobre sua paternidade, seu título, suas
responsabilidades, a maldita forma do resto de sua vida, e agora
o maldito filho de lorde John fez com que em vez disso se
contorcesse na outra direção, focando no problema de Ben.
Alguém colocou um estranho sem orelhas na sepultura marcada
como de Benjamin Grey, e quem quer que fosse quase
certamente sabia o que tinha acontecido com Ben. Ele conversou
com – na última contagem – vinte e três milicianos que
estiveram nas montanhas Watchung com Washington durante o
período em que Ben teoricamente morreu. Quatro deles tinham
ouvido falar de Ben e ouvido que ele estava morto, mas nenhum
deles tinha visto o corpo ou a sepultura, e ele juraria que nenhum

142
Bobwhite era mesmo uma marca antiga de tabaco. A lata com o fumo era estampada com a ave que
lhe dá o nome: a perdiz-da-Virgínia.
250

deles estava mentindo.


Mas. Tio Hal recebeu uma carta contando a ele sobre a morte de
Ben. Foi passada a ele por um assessor do general Clinton, que
recebeu a carta de algum oficial do lado americano. Quem
escreveu aquela carta? "Por que diabos você não pediu para
ver?", ele murmurou para si mesmo.
Porque você estava muito ocupado se preocupando com sua
maldita dignidade, sua mente respondeu.
Essa era a próxima coisa lógica a fazer, no entanto. Descobrir o
nome do oficial americano que escreveu a carta e então...
encontrar o oficial, se ele não foi baleado, capturado ou morreu
de sífilis nesse meio tempo.
O próximo passo também era lógico: tio Hal certamente teria
guardado a carta – e tio Hal (e Papa...) tinha o tipo de conexão
com o exército que poderia permitir que fizessem perguntas
sobre o paradeiro de um oficial americano específico.
Ele teria que ir para Savannah, então, e torcer para que o exército
britânico ainda estivesse mantendo a cidade segura. E que seu
pai e tio Hal ainda estavam com o dito exército.

-.-.-

MANOKE E CINNAMON estavam fumando tabaco na varanda


quando ele voltou. A fumaça se misturou com a névoa crescente
do solo, um vapor doce e fresco, com cheiro de plantas.
Evidentemente, eles estiveram discutindo coisas enquanto ele
estava fora, pois Manoke tirou o cachimbo quando William se
sentou.
"Você sabe onde ele está?", ele perguntou diretamente. "Nosso
inglês?"
251

Nosso inglês, com certeza, William pensou, e olhou para


Cinnamon. A cabeça do índio estava curvada, absorto em encher
o cachimbo, mas William achou que podia ver um certo
enrijecimento dos ombros largos.
"Não", disse William, mas a honestidade o obrigou a
acrescentar: "A última vez que o vi, ele estava com o exército
em Savannah. Isso é na Geórgia."
Manoke acenou com a cabeça, mas com um certo vazio de
expressão que indicava total ignorância sobre o que ou onde a
Geórgia poderia ser. Onde quer que os caminhos privados de
Manoke o levassem, era evidente que não seria para o sul.
"Quão longe é isso?", Cinnamon perguntou, sua voz neutra.
"Talvez seiscentos e quarenta quilômetros?", William arriscou.
Levou quase dois meses para fazer a viagem até a Virgínia, mas
ele não estava se movendo com qualquer sentido real de
intenção; ele fazia perguntas sobre Ben enquanto caminhava,
mas na realidade ele estava vagando incerto em direção ao único
lugar onde sempre se sentiu feliz e em casa desde que deixou
Helwater, sua casa no Lake District da Inglaterra.
Se ele não dissesse mais nada, provavelmente Cinnamon partiria
para a Geórgia, deixando William com a paz que ele pudesse
encontrar aqui. William enxugou o rosto com a manga; o cheiro
de carne defumada, peixe e tabaco pesava em suas roupas. O
Monte Josiah iria viajar com ele por algum tempo.
Ele poderia enviar uma carta com Cinnamon, pedindo ao tio Hal
para fazer investigações para o oficial americano que havia
enviado a notificação da morte de Ben. Ele poderia fazer o que
veio fazer: sentar e pensar.
E deixar Papa encontrar esse sujeito sem avisar? Ele era
honesto o suficiente para admitir que sua aversão a permitir isso
não tinha nada a ver com o constrangimento potencial para lorde
252

John ou inconveniência para Cinnamon, mas com uma mistura


de curiosidade e... bem, simples ciúme. Se lorde John fosse se
encontrar com seu filho natural quando adulto, ele, William,
queria estar lá para testemunhar a reunião.
"O exército se move muito, você sabe", disse ele por fim, e
Manoke sorriu para ele.
Cinnamon fez um som suave de reconhecimento e balançou a
cabeça, embora ele mantivesse os olhos fixos na bolsa de tabaco,
de contas, em seu joelho.
"Você quer que eu leve você até ele?", William perguntou, sua
voz um pouco mais alta do que ele pretendia. "Para lorde John?"
Cinnamon ergueu a cabeça, assustado, e olhou para William por
um longo e inescrutável momento.
"Sim", disse ele por fim, suavemente, e depois inclinando a
cabeça novamente disse ainda mais suavemente, "Obrigado."
Bem, que diabos, William pensou, pegando o cachimbo que
Manoke lhe ofereceu. Eu posso pensar no caminho.
253

13

“O QUE NÃO É BOM PARA O ENXAME NÃO


É BOM PARA A ABELHA
”(MARCUS AURELIUS143)

Cordilheira dos Fraser,


Carolina do Norte

O PRIMEIRO ANDAR AGORA TINHA paredes pelo lado de


fora, embora muito do lado de dentro ainda fosse apenas de
vigas expostas de madeira, o que dava ao lugar uma sensação de
bastante informalidade enquanto nós caminhávamos
alegremente pelas paredes esqueléticas.
Meu consultório não tinha coberturas para suas duas grandes
janelas, nem tinha uma porta – mas tinha paredes completas
(ainda sem reboco), um longo balcão com algumas prateleiras
para meus frascos e instrumentos, uma alta e ampla mesa de
pinho liso (eu mesma tinha lixado, fazendo um grande esforço
para proteger meus futuros pacientes de farpas em suas nádegas)
para fazer exames e tratamentos cirúrgicos, e um banquinho alto
no qual eu poderia sentar enquanto os administrava.
Jamie e Roger haviam começado o teto, mas no momento havia
apenas vigas passando por cima, com remendos de lona marrom
desbotada e cinza suja (resgatada de uma pilha de tendas
militares decrépitas encontradas em um armazém em Cross
Creek) fornecendo abrigo real contra os elementos.
Jamie tinha me prometido que o segundo andar – e meu teto –

143
César Marco Aurélio Antonino Augusto (Caesar Marcus Aurelius Antoninus Augustus), nascido a
26 de abril de 121 e falecido em 17 de março de 180, foi imperador de Roma desde 161 até à sua morte
em 180. A frase dita por ele encontra-se em Meditações IV, 54.
254

seriam colocados dentro de uma semana, mas no momento eu


tinha uma tigela grande, um penico de lata amassado e o braseiro
apagado estrategicamente arranjado para evitar vazamentos.
Tinha chovido no dia anterior, e olhei para cima para ter certeza
de que não havia pedaços pendurados segurando água na lona
úmida acima antes de tirar meu livro de casos de sua bolsa de
tecido encerado.
"O que é isso?", Fanny perguntou, avistando-o. Eu a havia
colocado para trabalhar colhendo e recolhendo as cascas finas
como papel de uma enorme cesta de cebolas para macerar e fazer
tintura amarela, e ela esticou o pescoço para ver, mantendo os
dedos com cheiro de cebola cuidadosamente afastados.
"Este é meu livro de casos", eu disse, com uma sensação de
satisfação com seu peso. "Eu escrevo os nomes das pessoas que
vêm a mim com dificuldades médicas e descrevo a condição de
cada uma e, em seguida, anoto o que fiz ou prescrevi para elas,
e se funcionou ou não."
Ela olhou para o livro com respeito – e interesse. "Eles sempre
melhoram?"
"Não", eu admiti. "Temo que nem sempre, mas muitas vezes
acontece. Eu sou um médico, não uma escada rolante144", citei,
e ri antes de lembrar que não era Brianna com quem eu estava
falando.
Fanny apenas assentiu com seriedade, evidentemente
arquivando essa informação.
Eu tossi.
"Hum. Essa foi uma citação de um, hã, médico amigo meu

144
Uma das frases divertidas do dr. McCoy, na série de TV dos anos 1960 Jornada nas Estrelas (Star
Trek). O doutor mal-humorado sempre reclamava ao ter de fazer tarefas não relacionadas com sua
profissão. Essa frase é dita no episódio 11 (Friday’s Child), da segunda temporada, que foi ao ar em
1º de dezembro de 1967.
255

chamado McCoy. Acho que a noção geral é que não importa o


quão habilidosa uma pessoa possa ser, cada habilidade tem seus
limites e é aconselhável se manter no que sabe fazer."
Ela assentiu novamente, os olhos ainda fixos no livro.
"Você... acha que eu posso ler?", ela perguntou timidamente.
"Apenas uma página ou duas", ela acrescentou apressadamente.
Hesitei por um momento, mas depois coloquei o livro sobre a
mesa, abri-o e folheei até o local onde fiz uma anotação sobre o
uso de pomada de gallberry para a malária de Lizzie Wemyss,
já que eu não tinha nenhuma casca de jesuíta. Fanny tinha me
ouvido falar sobre a situação com Jamie, e a febre recorrente de
Lizzie era de conhecimento comum na Cordilheira.
"Sim, você pode, mas apenas as páginas antes deste marcador."
Peguei uma pena de corvo preta e fina do frasco de penas e
coloquei ao lado da lombada do livro na página de Lizzie.
"Os pacientes têm direito à privacidade", expliquei. "Você não
deve ler sobre pessoas que são nossos vizinhos. Mas essas
páginas anteriores são sobre pessoas que tratei em outros lugares
e, principalmente, há muito tempo."
"Eu prometo", disse ela, sua seriedade dando ênfase aos seus rr,
e eu sorri. Eu conhecia Fanny há apenas alguns meses, mas
nunca soube que ela mentisse – sobre qualquer coisa.
"Eu sei", eu disse. "Você..."
"Olá, Sra. Fraser!" Um grito distante de fora me interrompeu e
olhei pela janela, para o que estava se tornando uma trilha bem
marcada que ia do riacho até a casa. Pisquei e olhei novamente.
Eu conhecia aquela figura alta, magra e cambaleante...
"John Quincy!", eu disse, e jogando o livro de casos nas mãos
surpresas de Fanny corri para fora para encontrá-lo.
"Sr. Myers!" Quase joguei meus braços em volta dele, mas fui
256

abruptamente interrompida pelo fato de que ele estava


carregando uma grande cesta de palha surrada em seus braços e
estava rodeado – bem, bastante coberto, na verdade – por um
enxame de abelhas, estas zumbindo tão alto que eu mal
conseguia entender o que ele estava dizendo. Ele viu isso e
gentilmente se inclinou na minha direção, trazendo as abelhas
para uma proximidade desconfortável.
"Trouxe algumas abelhas, senhora!", ele gritou por cima do
barulho estrondoso de suas passageiras.
"Eu estou vendo!", eu gritei de volta. "Que adorável!"
Corpos listrados e felpudos batiam e se agitavam em um tapete
marrom sobre as costas de seu casaco esfarrapado, e listras e
grãos de pólen amarelo pontilhavam em sua barba, um pouco
mais comprida, grisalha e dispersa do que quando o conheci nas
ruas de Wilmington, doze anos atrás.
Bree e Rachel – com Oggy – ouviram o barulho e vieram da
cozinha. Elas estavam olhando para Myers fascinadas.
"Minha filha!", eu gritei, apontando e ficando na ponta dos pés
na esperança de alcançar seu ouvido – Myers tinha cerca de um
metro e noventa, descalço, mais alto até que Brianna. "E Rachel
Murray – a esposa do jovem Ian!"
"A mulher do jovem Ian?" O meio sorriso de Myers, sempre
doce, embora um tanto desdentado, se alargou em um sorriso
encantado. "E seu pequenino também, espero? É um prazer,
senhora, um verdadeiro prazer!"
Ele estendeu um braço comprido na direção de Rachel, que
empalideceu ao ver a massa de abelhas, mas engoliu em seco e
se aproximou o suficiente para segurar a mão estendida,
segurando Oggy o mais longe que podia com uma das mãos. Eu
rapidamente me afastei e peguei o bebê dela, e ela respirou
fundo.
257

E eu também. O barulho estava fazendo minha pele se contorcer,


memórias dos sons que eu tinha ouvido entre as pedras
monolíticas cavando em direção à superfície.
"Tenho o prazer de te conhecer, amigo Myers", disse Rachel,
levantando a voz. "Ian fala de ti nos termos mais calorosos!"
"Muito obrigado a ele por sua boa opinião, senhora." Ele apertou
a mão dela calorosamente, depois se virou para Bree, que o
antecipou pegando a mão dele ela mesma, com um olhar
cauteloso nas abelhas.
"Muito prazer em conhecê-lo, sr. Myers", ela gritou.
"Oh, não precisa ser cerimoniosa, senhora – John Quincy vai
estar bem."
"John Quincy, então. Eu sou Brianna Fraser MacKenzie." Ela
sorriu para ele, em seguida, acenou com a cabeça delicadamente
para seu colete vivo. "Podemos oferecer alguma... hã...
hospitalidade às suas abelhas, assim como a você?"
"Tem cerveja, não é?" Myers baixou sua cesta e vi que era uma
cesta especial para capturar e transportar abelhas e estava
manchada e com a palha esfarrapada, colocada de cabeça para
baixo, com um pedaço de colmeia gotejante dentro dela. Estava
também cheia de abelhas, o que não era de surpreender.
"Bem... sim", eu disse, trocando olhares com Bree. "Claro.
Hum... traga-as para o local da casa. Nós vamos estabelecê-
las...", eu disse, observando o enxame com cautela. Elas não
pareciam hostis; eu vi várias delas iluminando os ombros e
cabelos de Bree. Ela também as viu e ficou um pouco tensa, mas
não as afastou. Uma passou preguiçosamente pelo nariz de
Oggy; ele a seguiu de um jeito meio vesgo e tentou agarrá-la,
mas felizmente só pegou um punhado dos meus cabelos.
As crianças estavam agrupadas na trilha acima, de olhos
258

arregalados, mas Jem e Mandy desceram para se juntar à mãe.


Mandy se agarrou à perna de Brianna, mas Jem estava rodeando
por perto, fascinado pelo enxame.
"As abelhas bebem cerveja?", ele inquiriu seu proprietário.
"Isso elas bebem, filho, elas bebem", Myers respondeu, sorrindo
para ele de uma nuvem de abelhas. "As abelhas são o tipo de
inseto mais inteligente que há."
"Sim, elas são", disse eu, desembaraçando os dedos gordinhos
de Oggy e respirando fundo o ar doce. "Jem, vá encontrar o
vovô, sim?"

-.-.-

NO FINAL, eu mesma encontrei Jamie, avistando-o descendo


por entre as árvores com quatro coelhos que ele havia capturado.
"Muito oportuno", eu disse, ficando na ponta dos pés para beijá-
lo. Ele cheirava a carne de caça fresca e pinheiros úmidos.
"Temos companhia para o jantar, e como é John Quincy..."
Seu rosto se iluminou.
"Myers? ", disse ele, entregando-me o saco de coelhos. "Você
perguntou por suas bolas?"
"Eu não!", eu disse. "Mas ele me contou, de qualquer maneira.
Aparentemente, tudo ainda está onde eu coloquei. E
funcionando bem, ele me garante. Ele nos trouxe um enxame de
abelhas, entre outras coisas."
"Ele trouxe? Como ele as carregou?"
“Ele as estava vestindo", eu disse com um encolher de ombros.
"Oh, sim", ele disse. "Que outras coisas ele trouxe?"
"Cartas. Ele diz que uma é para você."
259

Jamie não diminuiu o passo, mas percebi uma leve hesitação


quando ele virou a cabeça para olhar para mim.
"De quem?"
"Eu não sei. Ele estava ocupado se livrando das abelhas, e Jem
não conseguiu encontrar você, então eu mesma vim procurar."
Quase acrescentei: "Talvez seja de lorde John", porque por
vários anos poderia ter sido, e seria uma carta bem-vinda
também, reforçando os laços de uma longa amizade entre Jamie
e John Grey. Felizmente, mordi meu lábio a tempo. Embora os
dois estivessem se falando – apenas o mínimo – eles não eram
mais amigos. E embora eu pudesse, se pressionada, negar
totalmente que a culpa era minha, era inegavelmente por minha
causa.
Eu mantive meus olhos na trilha, apenas no caso de Jamie pegar
uma expressão rebelde em meu rosto e tirar conclusões
desagradáveis. Ele não era a única pessoa que podia ler mentes,
e eu estava olhando para o rosto dele. Tive uma impressão muito
forte de que, quando disse "carta", o nome de lorde John saltou
à sua mente, assim como ocorreu à minha.
"Vou tomar um banho no riacho antes de entrar, Sassenach",
disse ele, tocando minhas costas levemente. "Devo trazer um
pouco de agrião para o jantar?"
"Por favor", eu disse, e me levantei na ponta dos pés para beijá-
lo.
Quando a casa apareceu um momento depois, vi Brianna
subindo a encosta da cabana dos Higgins com vários pães nos
braços, e empurrei todos os pensamentos sobre Jamie e John
Grey rapidamente para fora da minha mente.
"Eu faço isso, mamãe", disse ela, acenando para o saco de
coelhos. "O sr. Myers diz que o sol está se pondo e você deve
abençoar suas novas abelhas antes que elas durmam."
260

"Oh", eu disse, incerta. Eu criava abelhas de vez em quando, mas


o relacionamento não era cerimonioso, de forma alguma. "Por
acaso ele disse que tipo de bênção as abelhas podem ter em
mente?"
"Não para mim", disse ela alegremente, pegando a bolsa
manchada de sangue da minha mão. "Mas ele provavelmente
sabe. Ele diz que vai encontrar você no jardim."

-.-.-

O JARDIM SE assentava como uma pequena fortaleza marrom


pontiaguda dentro de suas paliçadas à prova de veados. A cerca
não era à prova de tudo, porém, e como sempre, abri o portão
com cautela. Uma vez, peguei três guaxinins enormes em atos
depravados em meio os restos de meu milho doce; em outra, o
intruso era uma enorme águia, sentada em cima do meu barril de
água, as asas abertas para apanhar o sol da manhã. Quando abri
o portão de repente, a águia soltou um grito quase tão alto quanto
o meu antes de alçar voo, passando pela minha cabeça como
uma bala de canhão em pânico. E…
Um breve e violento estremecimento passou por mim enquanto
pensava nas colmeias em meu antigo jardim – derrubadas pela
fuga de um assassino, o cheiro de mel dos favos quebrados
misturando-se com folhas esmagadas e o doce cheiro de sangue
recém derramado.
Desta vez, porém, o único corpo estranho dentro da cerca era
John Quincy Myers, alto e esfarrapado como um espantalho, e
parecendo bastante à vontade entre as vinhas de feijão de flor
vermelha e nabos brotando.
"Aí está, sra. Fraser!", ele disse, sorrindo amplamente ao me ver.
"Chegou bem a tempo, como diz o Bom Livro.”
261

"Parece que sim." Eu tinha uma vaga noção de que a Bíblia


poderia incluir alguma menção às abelhas – talvez a bênção de
John Quincy viesse dos Salmos ou algo nessa linha?
"Hã... Brianna disse que eu deveria vir e... abençoar as abelhas?"
"Mulher bonita, sua filha", disse Myers, balançando a cabeça
com admiração. "Vi poucas mulheres tão preciosas desse
tamanho, e nenhuma delas o que você chamaria de bonita. Todas
muito alegres, no entanto. Como ela acabou se casando com um
pregador? Ninguém pensaria que um homem de oração seria
capaz de fazer o que é certo por ela – quero dizer, nos caminhos
da carne, como você poderia..."
"As abelhas", eu disse, um pouco mais alto. "Você sabe o que
eu deveria dizer a elas?"
"Oh, com certeza." Lembrando-se do assunto em questão, ele se
virou em direção à extremidade oeste do jardim, onde a velha
cesta de abelhas fora colocada em uma tábua sobre um
banquinho frágil. Para minha surpresa, ele enfiou a mão em sua
mochila volumosa e retirou quatro tigelas rasas de cerâmica
feitas de porcelana fina e esmaltada chamada creamware145, que
emprestava um tom desconcertantemente formal à ocasião.
"Para evitar as formigas", disse ele, entregando-me as tigelas.
"Agora, há um monte de gente que mantém abelhas", explicou
ele. "Os cherokees as têm, e o creek146 e choctaw147 e, sem
dúvida, alguns tipos de índios dos quais não sei os nomes
também. Mas há os morávios, de Salem – foi onde eu consegui

145
Porcelana fina, de coloração creme e revestimento brilhante. Por volta de 1760, a porcelana creamware
dominava o mercado inglês.
146
Índios norte-americanos de língua muscógui que ocuparam uma grande extensão das terras onde hoje
se localiozam a Geórgia e o Alabama. Depois de muita luta contra os colonizadores bancos, os creeks
foram derrotados e removidos à força para o Território Indiano (atual Oklahoma ) na década de 1830,
dentro da chamada Trilha de Lágrimas.
147
Grupo étnico muscógui nativo da região sudeste dos Estados Unidos da América, principalmente dos
estados do Mississipi, Alabama e Louisiana, até serem forçados a se deslocar para o oeste, até o chamado
Território Indígena (atual Oklahoma).
262

as tigelas para as formigas e a cesta de coleta. E eles também


têm seus próprios jeitos de lidar."
Tive uma visão de John Quincy Myers, envolto em um manto
de abelhas zumbindo, passeando pelas ruas de Salem, e sorri.
"Espere", eu disse. "Você certamente não carregou aquelas
abelhas desde Salem!"
"Ora, não", disse ele, parecendo levemente surpreso.
"Encontrei-as em uma árvore a apenas um quilômetro ou mais
de sua casa. Mas quando soube que você e Jamie estavam de
volta ao seu lugar, tive a intenção de trazer algumas abelhas,
então estava procurando por elas, entendeu?"
"Isso foi muito atencioso", garanti a ele, com grande
sinceridade. E era, mas uma pergunta pequena e inquietante
surgiu no fundo da minha mente. John Quincy era uma lei para
si mesmo, e se estivéssemos sendo bíblicos hoje, poderíamos
facilmente chamá-lo de irmão das corujas148. Ele vagava pelas
montanhas, e se alguém sabia para onde ele ia ou por quê, não
me disse.
Mas pelo que ele disse, ele estava vindo para a Cordilheira dos
Fraser de propósito, sabendo que Jamie e eu estávamos aqui.
Havia as cartas que ele trouxera, com certeza... mas a maneira
como funcionava o correio do sertão era que as cartas fossem
passadas de mão em mão, amiga ou estranha, carregando-as,
desde que a direção das cartas seguisse seu próprio caminho –
entregando-as a outra pessoa quando essa direção tomava outro
rumo. O fato de John Quincy vir aqui com a intenção específica
de entregar cartas implicava que havia algo bastante especial
sobre elas.
Não tive tempo para me preocupar com as possibilidades, no
entanto: Myers estava encerrando uma breve exegese sobre os
148
Referência bíblica, Jó 30:29
263

apicultores irlandeses e escoceses, e chegando ao ponto em


questão.
"Eu conheço algumas das bênçãos que as pessoas usam para
suas colmeias", disse ele. "Não que eu chamasse o que aqueles
alemães falam de algo que soe como minha noção de uma
bênção."
"O que eles dizem? ", eu perguntei, intrigada.
Suas espessas sobrancelhas cinzentas se juntaram no esforço de
lembrar.
"Bem, é ... o que você pode chamar de abrupto. Deixe-me ver
agora..."
Ele fechou os olhos e ergueu o queixo.
"Cristo, o enxame de abelhas está aqui!
Agora voem, vocês meus animais, venham.
Na paz do Senhor, na proteção de Deus,
voltem para casa com boa saúde.

"Pousem, pousem, abelhas.

“A ordem para vocês da Santa Maria.


Vocês não têm férias; não voem para a floresta;
Nem vocês devem escapar de mim.
Nem fujam de mim.
“Fiquem completamente quietas.

"Façam a vontade de Deus" concluiu ele, abrindo os olhos. Ele


balançou a cabeça, de um lado para o outro."Isso não é demais?
Dizer a uma abelha para ficar quieta, quanto mais mil delas de
uma vez? Por que as abelhas tolerariam algo tão rude como isso,
264

pergunto?"
"Bem, deve funcionar", eu disse. "Jamie trouxe para casa mel de
Salem, muitas vezes. Talvez sejam abelhas alemãs. Você
conhece uma bênção mais... educada?"
Seus lábios franziram em dúvida, e eu tive um vislumbre de uma
ou duas presas amarelas irregulares. Ele ainda poderia mastigar
carne? Eu me perguntei, revisando ligeiramente o menu do
jantar. Eu poderia cortar a carne de coelho em pedaços pequenos
e misturá-la aos ovos mexidos com cebola picada ...
"Eu suspeito que me lembro da maior parte disso... Ó Deus,
Criador de todas as criaturas, Você abençoa a semente e a torna
proveitosa... isso é certo, proveitosa? Sim, acho que é isso ...
proveitosa para nosso uso. Pela intercessão de... bem, há uma
multidão de santos ou algo assim lá, mas, droga, se eu me lembro
de alguém além de João Batista – embora se alguém devesse
saber sobre mel, você pensaria que seria ele, não é?? Com os
gafanhotos e a vida em uma pele de urso149 – mas por que
alguém faria assim em um lugar quente como ouvi dizer que a
Terra Santa é, eu certamente não saberia dizer. De qualquer
forma... "
Seus olhos se fecharam de novo e ele estendeu a mão, quase
inconscientemente, em direção ao cesto de abelhas, envolto em
uma nuvem lenta de abelhas voando.
"Pela intercessão de qualquer um que queira interceder,
Você estará misericordiosamente ouvindo nossas orações.
Abençoe e santifique estas abelhas aqui por Sua
compaixão,
Para que elas possam... "

149
Referência bíblica, 2 Reis 1:8. Nas versões pesquisadas, não consta que ele usaria uma pele de urso.
Em algumas versões, ele usa uma roupa de pelos (sem especificação). Em outras, ele é apenas um
homem peludo.
265

"Bem", ele disse, abrindo seus olhos e franzindo a testa para


mim, "ela diz, dar frutos em abundância, embora qualquer idiota
saiba que é mel, você quer que eles sejam abundantes. E há
ainda..." As pálpebras enrugadas se fecharam contra a luz do sol
poente novamente, e ele terminou:
"Para a beleza e adorno de Seu santo templo e para nosso
uso humilde."
"Eles têm um pouco mais, acrescentou ele, deixando cair a mão
e virando-se para mim, "mas isso é o ponto principal. O que
importa, eu diria, é que você pode abençoar suas abelhas da
maneira que achar melhor. A única coisa importante – e talvez
você já saiba disso – é que você tem que falar com elas
regularmente."
"Sobre algo em particular?", eu perguntei com cautela,
flexionando meus dedos e tentando me lembrar se eu já tive uma
conversa com minhas colmeias anteriores.
Provavelmente sim, mas não conscientemente. Eu tinha, como a
maioria dos jardineiros, o hábito de resmungar para mim mesmo
entre ervas daninhas e vegetais, execrando insetos e coelhos e
exortando as plantas. Deus sabia o que eu poderia ter dito às
abelhas ao longo do caminho...
"As abelhas são muito sociáveis", explicou Myers, e soprou uma
delas suavemente com as costas da mão. "E elas estão curiosas,
o que faz sentido, eles vão e vêm e colhem notícias com seu
pólen. Então você diz a elas o que está acontecendo – se alguém
vier nos visitar, se um novo bebê tiver nascido, se alguém novo
se estabelecer ou um colono partir – ou morrer. Veja, se alguém
vai embora ou morre", explicou ele, tirando uma abelha do meu
ombro, "e você não contar para as abelhas, elas se ofendem e
todas vão voar imediatamente."
Eu podia ver algumas semelhanças entre John Quincy Myers e
266

uma abelha, em termos de coleta de notícias, e sorri com o


pensamento. Eu me perguntei se ele ficaria ofendido ao
descobrir que alguém escondeu dele uma fofoca suculenta, mas
no geral, duvido que alguém o tenha feito. Ele tinha uma
gentileza que convidava à confiança, e eu tinha certeza de que
ele guardava os segredos de muitas pessoas.
"Bem, então." O sol estava se pondo rápido agora; o cheiro
úmido das plantas era forte e os raios de luz cortavam as
paliçadas, vívidos em meio às sombras do jardim. "É melhor
continuar com isso, eu suponho."
Dados os exemplos díspares oferecidos por John Quincy, eu
tinha quase certeza de que poderia apresentar o meu próprio
quanto à bênção. Enchemos os quatro pratos com água e os
colocamos sob as pernas do banquinho, para evitar que as
formigas subissem até a colmeia, atraídas pelo cheiro do mel.
Alguns desses insetos vorazes já estavam subindo pelas pernas
do banquinho e eu os afastei com uma dobra da saia – meu
primeiro gesto de proteção para minhas novas abelhas.
John Quincy sorriu e acenou para mim enquanto eu me
endireitava, e eu balancei a cabeça de volta, estendi a mão
hesitante através do véu de abelhas que entravam na colmeia e
toquei a palha retorcida e lisa da cesta. Pode ter sido imaginação,
mas achei que podia sentir uma vibração em minha pele, logo
abaixo do limiar da audição, um zumbido forte e constante.
"Oh, Senhor", eu disse – e gostaria de saber o nome do santo
padroeiro das abelhas, pois certamente deve haver um150 – "por
favor, faça com que essas abelhas se sintam bem-vindas em seu
novo lar. Ajude-me a protegê-las e a cuidar delas, e que sempre
encontrem flores. Hã... e um descanso tranquilo no final de cada
150
Santo Ambrósio (339 – 397) é o padroeiro dos apicultores. Em obras de arte, é frequentemente
representado com uma colmeia. Quando criança, estava deitado num berço num jardim e um enxame
de abelhas pousou em seu rosto, deixando um rastro de mel. Tinha um discurso doce e agradável e,
sendo por isso é conhecido como Língua de Mel.
267

dia. Amém."
"Isso vai servir muito bem, sra. Claire", disse John Quincy, e sua
voz era baixa e quente como o zumbido das abelhas.
Saímos, fechando e travando o portão com cuidado atrás de nós,
e descemos, saindo da sombra da chaminé imponente e ao longo
da parede leste da casa. Estava escurecendo rápido agora, e o
fogo estava aceso quando entramos na cozinha, iluminando
minha família que esperava. Lar.
"Falando em novidades", eu disse casualmente para Myers,
"você disse que trouxe cartas. Se uma é para Jamie, para quem
são as outras?"
"Ora, uma para o menino", disse ele, contornando habilmente o
buraco que Jamie cavou para a nova latrina. " O filho do sr.
Fergus Fraser, Germain, quero dizer. E outra para alguém
chamada Frances Pocock. Você tem alguém aqui com esse
nome?"
268

14

MON CHER PETIT AMI


151

EU JÁ NÃO FICAVA SURPRESA com a quantidade de


comida necessária para alimentar oito pessoas por vez, mas
vendo enormes montículos fumegantes de coelho, codorna,
truta, presunto, feijão, succotash, cebola, batata e agrião
desaparecerem em poucos minutos na barriga de vinte e duas
pessoas me deu uma nova vertigem de apreensão sobre o
inverno que se aproxima.
Certo, ainda era verão e, com sorte, teríamos um bom tempo
durante o outono... mas seriam apenas três ou quatro meses, no
máximo. Quase não tínhamos pecuária, a não ser os cavalos, a
mula Clarence e um par de cabras para leite e queijo.
Jamie e Bree passavam metade do tempo caçando, e tínhamos
um bom suprimento de veado e porco pendurado no galpão de
defumação no momento, mas mesmo com caça, captura e pesca
por todos os lados, provavelmente precisaríamos trocar por
carne (ah, e manteiga!) antes de nevar – e alguém teria que
descer para Salem ou Cross Creek e trazer de volta aveia – muita
aveia – arroz, feijão, milho tostado, farinha, sal, açúcar...
Enquanto isso, eu precisaria plantar, colher, cavar e fazer
conservas como uma louca para ter o suficiente para nos
proteger do escorbuto: nabos, cenouras e batatas na adega, junto
com alho, maçã, cebola, cogumelos e uvas pendurados para
secar, tomates para serem conservados por secagem ao sol ou
imersão em óleo, se os malditos vermes não os pegassem... ai,
meu Deus, eu não poderia perder um dia da safra de girassóis;

151
Meu querido amiguinho. Em francês
269

eu precisava de todas as sementes que pudesse obter, tanto para


óleo quanto para proteína... e as ervas medicinais...
Minha lista mental foi interrompida pelo anúncio de Brianna de
que o jantar estava pronto, e eu me joguei na mesa ao lado de
Jamie, de repente percebendo como estava com fome, como
estava cansada e grata pelo descanso e também pela comida.
Os Higgins vieram todos jantar a fim de ouvir as notícias de John
Quincy, e com Ian, Rachel, Jenny e o bebê, a cozinha era uma
massa sólida de gente e conversa. Felizmente a cesta de Rachel
era generosa e Amy Higgins providenciou duas tortas de caça
enormes feitas de pomba e peru, além do pão, e o cheiro
penetrante da comida agia como um sedativo. Em instantes, as
únicas palavras ouvidas foram pedidos abafados para passar o
molho agridoce de milho, mais torta ou o fricassê de coelho, e a
cozinha realizou sua magia do dia a dia, proporcionando paz e
nutrição.
Gradualmente, à medida que as pessoas ficavam satisfeitas, a
conversa recomeçava, mas de forma moderada. Finalmente,
John Quincy empurrou o prato de metal vazio com um profundo
suspiro de plenitude e olhou benignamente ao redor da mesa.
"Senhora Fraser, senhora MacKenzie, senhora Murray, senhora
Higgins... vocês nos fizeram muito bem esta noite. Não como
tanto assim desde o Natal passado."
"Foi um prazer", assegurei-lhe. "Também não vi ninguém comer
tanto desde o Natal passado."
Eu pensei ter ouvido uma risadinha abafada atrás de mim, mas
eu ignorei.
"Contanto que tenhamos um pedaço de pão em casa, você
sempre comerá com a gente, homem", Jamie disse a ele. "E
beberá, espero?", ele acrescentou, tirando uma garrafa cheia de
algo sem dúvida alcoólica debaixo de sua bancada.
270

"Eu não diria não, sr. Fraser." John Quincy arrotou levemente e
sorriu benevolentemente para Jamie. "Eu não posso insultar sua
hospitalidade, posso?"
Dez adultos. Calculei rapidamente os copos disponíveis e,
levantando-me, consegui separar quatro xícaras de chá, duas
xícaras de chifre, três canecas de peltre e uma taça de vinho, que
coloquei em uma disposição orgulhosa sobre a mesa em frente
a Jamie.
Enquanto eu estava ocupada, porém, John Quincy abriu o baile,
por assim dizer, tirando um punhado de cartas de algum lugar
dentro de seu colete esfarrapado. Ele semicerrou os olhos
pensativamente para elas e entregou uma por sobre a mesa para
Jamie.
"Esta é a sua", disse ele, acenando com a cabeça, "e esta aqui é
para um capitão Cunningham – não o conheço, mas diz
Cordilheira dos Fraser nela. Ele é um dos seus inquilinos?"
"Sim. Vou garantir que ele a receba." Jamie estendeu a mão e
pegou as duas cartas fechadas.
"Obrigado pela gentileza. E esta aqui é para a srta. Frances
Pocock." Ele acenou gentilmente com a carta, procurando pela
destinatária.
"Fanny!", Mandy gritou. "Fanny, você recebeu uma carta!" Ela
estava com o rosto vermelho de empolgação, de pé no banco ao
lado de Roger, que a segurava pela cintura. Todos se viraram,
murmurando de curiosidade, procurando Fanny.
A própria Fanny se levantou lentamente do barril de peixe
salgado em que estava sentada no canto. Ela olhou em volta,
confusa, mas Jamie acenou para ela e ela relutantemente
avançou.
"Oh, então você é a srta. Frances! Ora, não é que você é uma
271

moça bonita? " John Quincy se desdobrou do banco, fez uma


reverência baixa e cortês e colocou a carta em sua mão sem
resistência.
Fanny apertou a carta contra o peito com as duas mãos. Seus
olhos estavam enormes e pareciam os de um cavalo em pânico
prestes a fugir.
"Ninguém nunca lhe escreveu uma carta antes, Fanny?", Jem
perguntou, curioso. "Abra e descubra quem a enviou!"
Ela o encarou por um momento, e então seus olhos se voltaram
para mim, em busca de apoio. Eu coloquei a manteiga de lado e
acenei para ela vir colocar a carta na mesa. Ela o fez, muito
gentilmente, como se pensasse que poderia quebrar.
Não era mais do que um único pedaço de papel áspero, dobrado
em três partes e selado com uma gota amarelo-acinzentada do
que parecia ser cera de vela – a gordura se espalhou pelo papel
e algumas palavras ficaram pretas na mancha transparente. Eu a
peguei, o mais delicadamente que pude, e a virei.
"Sim, é definitivamente sua carta", assegurei a ela. "Senhorita
Frances Pocock, aos cuidados de James Fraser, Cordilheira dos
Fraser, Colônia Real da Carolina do Norte."
"Abra, vovó!", Mandy disse, pulando para cima e para baixo em
um esforço para ver.
"Não, é a carta de Fanny", eu disse a ela. "Ela consegue abrir. E
ela não tem que mostrar a ninguém, a menos que queira."
Fanny voltou-se para John Quincy e, erguendo os olhos para ele
com grande seriedade, disse: "Quem lhe deu a carta para me
trazer, senhor? Veio da Filadélfia?"
Seu rosto pareceu ficar um pouco mais pálido quando ela disse
isso, mas Myers balançou a cabeça e ergueu um ombro.
"Provavelmente não é da Filadélfia, mas não posso dizer com
272

certeza de onde é, querida. Foi entregue em minhas mãos em


New Bern, quando por acaso estive lá no mês passado, mas não
foi o homem que o escreveu o que o deu para mim. Ele estava
apenas passando adiante, como as pessoas fazem."
"Oh." A tensão havia deixado seus ombros e ela respirava com
mais facilidade. "Eu percebo. Obrigada, senhor, por trazê-la."
Ela pelo menos tinha visto cartas antes, pensei; ela deslizou o
polegar sob a dobra sem hesitar, embora tenha afrouxado o selo,
em vez de rompê-lo, e o colocou ao lado da carta desdobrada.
Ela permaneceu perto, olhando para a carta, mas eu podia ver
facilmente por cima do ombro. Ela leu em voz alta, lenta mas
claramente, seguindo as palavras com o dedo.

"Para a srta. Frances Pocock,


Do sr. William Ransom

Querida Frances,

Escrevo para perguntar sobre sua saúde e


bem-estar. Espero que você esteja feliz em sua
situação atual e começando a se sentir bem.
Agradeça sinceramente ao sr. e à sra. Fraser
por sua generosidade.
Estou bem, embora muito ocupado no
momento. Escreverei novamente quando surgir
a oportunidade de um mensageiro.
Seu servo mais humilde e obediente,
William Ransom"
273

"Will-iam", ela murmurou para si mesma, seu dedo tocando as


letras de seu nome. Seu rosto mudou em um instante; brilhava
com uma espécie de felicidade reverente.
Jamie se moveu ligeiramente, ao meu lado, e eu olhei para ele.
Seus olhos estavam quentes com a luz do fogo, refletindo o
brilho de Fanny.

-.-.-

FANNY SAIU DA SALA com sua carta e, intrigada, inclinei-


me para John Quincy.
"Você não disse que trouxe uma carta para Germain também?",
eu perguntei sob o zumbido crescente da conversa.
John Quincy acenou com a cabeça. "Ah, sim, senhora. Eu já dei
a ele, no entanto. Eu o encontrei voltando da latrina."
Ele olhou ao redor da sala, então encolheu os ombros.
"Acho que ele pode ter ido ler em particular – era de sua mãe,
eu acho."
Troquei olhares desconfiados com Jamie. Fergus escrevera no
início da primavera, garantindo que tudo estava bem com sua
família. Marsali se sentia tão bem quanto uma mulher grávida
de oito meses poderia se sentir; e ele também enviou outra carta,
junto com um rol de vários objetos que encaminhou para o norte,
via Cross Creek, para nós. Em ambas as ocasiões, ele havia
enviado desejos breves, mas afetuosos, a Germain. Eu tinha lido
uma das cartas para Germain, Jamie a outra – e em ambas as
ocasiões, Germain apenas acenou com a cabeça, o rosto
impassível, e não disse nada.
Germain não apareceu para a sobremesa – fatias de pão de Amy
com conserva de maçã cremosa, feita por Sarah Chisholm como
274

pagamento por cuidar do parto de sua filha mais nova – e


comecei a ficar seriamente preocupada. Ele pode ter escolhido
comer ou passar a noite com um amigo; ele costumava fazer
isso, com ou sem Jemmy, mas deveria contar a alguém quando
saía, e geralmente o fazia.
Além disso... eu não conseguia pensar em nenhum motivo pelo
qual ele escolheria estar ausente quando havia um visitante.
Qualquer visitante, mesmo que não tão pitoresco como John
Quincy Myers, cuja aparência prometia tanto histórias divertidas
quanto notícias. As pessoas viriam nos visitar nas próximas
noites para ouvi-lo; eu sabia que ele ficaria um pouco – mas por
esta noite, ele era só nosso.
Mandy estava aninhada no colo de Myers no momento, olhando
para ele maravilhada – embora, no caso dela, eu achasse que era
sua maciça barba raiada de cinza que a interessava, mais do que
a história que ele estava contando, que tinha a ver com um caso
de adultério em Cross Creek no mês passado que resultou em
um duelo de pistolas no meio da Hay Street, no qual os
participantes erraram seus oponentes, mas atingiram,
respectivamente, uma fonte de água pública e um cavalo
atrelado a uma carruagem, o que – o ferimento sendo leve, mas
surpreendente – fez com que o cavalo fugisse com a sra. Juiz
Alderdyce, que estava sentada na carruagem enquanto o
cavalariço foi buscar um pacote para ela.
"A pobre senhora ficou ferida?", Bree perguntou, lutando para
manter o rosto sério.
"Oh, não, senhora," John Quincy assegurou-lhe. "Apenas
extremamente ultrajada e enraivecida. Quando eles pararam a
carruagem e a ajudaram a sair dela, ela caminhou direto pela rua
até os escritórios do advogado Forbes e o fez escrever uma ação
judicial contra o homem que havia ferido o flanco de seu cavalo,
naquele exato minuto."
275

O humor no rosto de Bree mudou em um instante com a menção


de Neil Forbes, que a sequestrou e vendeu para Stephen Bonnet,
mas eu vi Roger colocar sua mão sobre a dela e apertar. Ela
sugou uma bochecha por um momento, mas então se virou para
ele brevemente e acenou com a cabeça, relaxando.
"Ela não cuidou do cavalo primeiro?", Jemmy perguntou,
desaprovando abertamente.
"Jim-Bob Hooper fez isso", Myers assegurou-lhe. "Esse é o
cavalariço da sra. Juiz, o que estava conduzindo. Um pouco de
pomada e uma bolsa no nariz para ele se acalmar – o pobre
animal acalmou seu coração em não mais de um minuto. "
Jamie e Jemmy assentiram como um só, satisfeitos.
A conversa voltou-se para a causa do duelo, mas eu não fiquei
para ouvir. Fanny voltou em silêncio e estava sentada na ponta
de um banco da cozinha, sorrindo para si mesma enquanto ouvia
John Quincy falar. Eu me inclinei para sussurrar em seu ouvido
enquanto passava.
"Você sabe onde Germain está?"
Ela piscou, afastou-se do feitiço de John Quincy, mas respondeu
prontamente.
"Si-im. Acho que ele está no teto. Ele disse que não queria
companhia.”
-.-.-

GERMAIN ESTAVA NO TETO. Encolhido no chão da


varanda de nosso quarto do segundo andar, os joelhos
levantados, os braços cruzados sobre eles e a cabeça enterrada
nos antebraços, uma protuberância escura contra a palidez da
roupa de cama atrás dele.
A imagem da desgraça – e a imagem de alguém desesperado
276

para ser questionado sobre o que estava acontecendo, na


esperança de ser tranquilizado. Bem, refleti, como diz Jenny –
para que serve uma vovó, então?
Fui caminhando cuidadosamente ao redor da borda do piso,
agarrando-me às vigas de madeira para me equilibrar e
agradecendo a Deus por não estar chovendo nem explodindo um
furacão. Na verdade, a noite estava calma e estrelada, cheia de
um sussurro baixinho de pinheiros e insetos noturnos.
Eu me sentei com cuidado ao lado dele, as mãos suando um
pouco. "Então", eu disse. "Qual é o problema, querido?"
"Eu...", ele começou, mas parou, olhando por cima do ombro,
então se aproximou de mim. "Eu recebi uma carta", ele
sussurrou, colocando a mão sobre o peito. "O sr. Myers trouxe
para mim; tem meu nome nela."
Isso seria surpreendente, pensei. Como no caso de Fanny, era
sem dúvida a primeira carta pessoal que ele recebia.
"De quem é?" Eu perguntei, e o ouvi engolir.
"Da minha mãe", ele disse. "É que... eu conheço a letra dela."
"Você ainda não abriu?", eu perguntei.
Ele balançou a cabeça, negando, pressionando a mão contra o
peito como se temesse que a carta voasse sozinha.
"Germain", eu disse suavemente, e esfreguei suas costas,
sentindo suas omoplatas afiadas sob a camisa de flanela. "Sua
mãe ama você. Você não precisa ter m... "
"Não, ela não ama!", ele explodiu e se enrolou com força,
tentando conter a dor. "Ela não ama, ela não pode... Eu... eu
matei Henri-Christian. Ela não pode... não consegue nem olhar
para mim!"
Eu coloquei meus braços em volta dele e o puxei para mim. Ele
não era um garotinho de forma alguma, mas eu pressionei sua
277

cabeça no meu ombro e o segurei como um bebê, balançando


um pouco, fazendo sons suaves enquanto ele chorava, grandes
soluços que ele não conseguia conter.
O que eu poderia dizer a ele? Eu não podia simplesmente dizer
a ele que ele estava errado; a simples contradição nunca
funciona com crianças, mesmo quando é a verdade óbvia. E com
toda a honestidade, isso não era óbvio.
"Você não matou Henri-Christian", eu disse, mantendo minha
voz firme com algum esforço. "Eu estava lá, Germain." Eu tinha
estado lá e não queria voltar. Apenas o nome de Henri-Christian,
e estava tudo lá, cercando nós dois: o fedor de fumaça e o
estrondo de barris explodindo de tinta e verniz e o rugido das
chamas subindo pelo sótão, Germain agarrado a uma corda,
pendurado no alto sobre os paralelepípedos. Alcançando seu
irmão mais novo...
Não adiantou. Não consegui conter minhas próprias lágrimas e
o segurei com força, meu rosto pressionado contra seus cabelos
com seu cheiro de menino e inocência.
"Foi horrível", sussurrei. "Tão terrível. Mas foi um acidente,
Germain. Você tentou tudo que podia para salvá-lo. Você sabe
que sim."
"Sim", ele conseguiu dizer, "mas não consegui! Oh, vovó, eu
não consegui!"
"Eu sei", eu sussurrei, repetidamente, embalando-o. "Eu sei."
E lentamente, o horror e a dor se transformaram em tristeza. Nós
fungamos e choramos e eu encontrei um lenço para ele e limpei
meu próprio nariz no meu avental.
"Me dê a carta, Germain", eu disse, limpando minha garganta.
Recostei-me na cama. "Eu não sei o que diz, mas você tem que
ler. Algumas coisas você apenas tem que enfrentar."
278

"Não consigo ler", disse ele, e deu uma risadinha desamparada.


"Está muito escuro."
"Vou buscar uma vela no consultório." Coloquei meus pés em
posição e me levantei. Eu estava rígida de tanto tempo agachada
no chão, que levou um momento antes que eu pudesse ter certeza
do meu equilíbrio. "Tem água na mesa, aí. Tome um gole e deite
na cama. Eu volto já."
Desci as escadas com aquele tipo de resignação sombria em que
se entra quando não há mais nada a fazer, e subi as escadas
novamente, o brilho da vela suavizando as tábuas ásperas da
escada, sombreando meus passos.
A verdade é que, mesmo Marsali naturalmente não culpando
Germain por Henri-Christian, ele provavelmente estava certo
sobre ela não ser capaz de olhar para ele sem ser dilacerada pela
memória de tudo aquilo. Foi por isso, sem muito ser dito sobre
isso, que trouxemos Germain conosco152, na esperança de que
ele e sua família se curassem mais facilmente com um pouco de
distância.
Agora ele provavelmente pensava que sua mãe havia escrito
para dizer a ele que ela não o queria de volta, nunca.
"Coitadinhos", sussurrei, referindo-me a Germain, Henri-
Christian e sua mãe. Eu tinha certeza – bem, quase certeza – de
que Marsali não pretendia tal coisa, mas podia sentir seu medo.
Ele estava sentado na beira da cama, segurando os joelhos, e
olhou para mim com seus olhos enormes, escuros de ansiedade.
A carta estava ao lado dele e eu a peguei, sentei ao lado dele e
abri. Fiz um gesto, oferecendo a ele, mas ele negou com a

152
No livro 8, Marsali e Fergus estavam preocupados com os efeitos do luto em Germain, que estava
taciturno e poderia se perder no meio da guerra, ou ser recrutado à força, ou se meter em confusões.
Tanto que Claire e Jamie contaram a verdade sobre Claire e o que sabiam sobre como a guerra ia se
desenvolver. Por isso, Marsali e Fergus concordaram com a ida de Fergus com Jamie e Claire. Se esses
sentimentos existiam por parte Marsali e Fergus, é só algo que Claire deduziu..
279

cabeça.
"Tudo bem", eu disse, limpei a garganta e comecei a ler.
"Mon cher petit ami... "
Fiz uma pausa, tanto de surpresa quanto porque Germain ficou
tenso.
"Oh", ele disse, em uma voz muito baixa. "Oh."
"Oh!", eu disse a mim mesma, de repente entendendo, e meu
coração apertado relaxou. Mon cher petit ami era como Marsali
o chamava quando ele era muito pequeno, antes de as meninas
nascerem.
Ficaria tudo bem, então.
"O que diz, vovó? O que ela diz?"
Germain estava pressionado com força contra o meu lado, de
repente ansioso para olhar. "Quer ler você mesmo?" Eu
perguntei, sorrindo e oferecendo-a a ele. Ele negou, balançando
a cabeça violentamente, os cabelos loiros voando. "Você", disse
ele, rouco. "Você, vovó. Por favor."

"Mon cher petit ami,

Acabamos de encontrar uma nova casa, mas ela


nunca será um lar até que você esteja aqui.
Suas irmãs sentem muito a sua falta (mandaram
mechas de cabelos – caso você esteja se
perguntando o que são essas coisas bagunçadas –
ou caso tenha esquecido como são, elas dizem. Os
cabelos de Joanie são os fios castanho-claros, e os
de Félicité são os escuros. Os amarelos são do
gato), e Papa deseja que você venha ajudá-lo. Ele
280

proíbe as meninas de entrar nas tavernas para


entregar jornais e folhetos – embora elas queiram!
Você também tem dois novos irmãozinhos que”

"Dois?" Germain pegou a página de mim e segurou-a o mais


próximo que pôde da vela, sem colocá-la no fogo. "Ela disse
dois?"
"Sim!" Eu estava quase tão animada quanto ele por ouvir isso, e
inclinei-me sobre a página, ombro a ombro com ele. "Leia a
próxima parte!"
Ele se endireitou um pouco e engoliu em seco, depois continuou
a ler:

"Ficamos todos muito surpresos, como vocês


podem imaginar! Para ser honesta, eu sempre tive
medo de pensar no que o novo bebê poderia ser.
Porque eu queria ver uma criança como Henri-
Christian, é claro – para sentir como se o
tivéssemos de volta – mas eu sabia que isso não
poderia acontecer e, ao mesmo tempo, temia que
o novo filho pudesse ser um anão também – talvez
sua avó tenha lhe contado que as pessoas que
nascem assim têm muitos problemas; Henri-
Christian quase morreu várias vezes quando era
muito pequeno, e Papa me contou há muito tempo
sobre alguns dos filhos anões que ele conheceu em
Paris, e que a maioria não teve uma vida longa.
Mas um novo bebê é sempre uma surpresa e um
milagre e nunca o que você espera. Quando você
nasceu, fiquei tão encantada que me sentava ao
281

lado do seu berço e observava você dormir.


Apenas deixando a vela queimar porque eu não
aguentava apagá-la e deixar a noite esconder você
de mim.
A princípio pensamos, quando os bebês nasceram,
que talvez devêssemos chamar um deles de Henri
e o outro de Christian, mas as meninas não
aceitaram. Ambas disseram que Henri-Christian
não era como ninguém e que ninguém mais
deveria ter seu nome."

"Papa e eu concordamos que elas estavam certas..." –


Germain estava balançando a cabeça e concordando,
enquanto lia – "e então um de seus irmãos se chama
Alexandre e o outro Charles-Claire...”
"O quê?", eu disse incrédula. "Charles-Claire?"
"... em homenagem a seu vovô e sua vovó", Germain leu, e
ergueu os olhos, sorrindo enormemente para mim.
"Vá em frente", eu disse, cutucando-o. Ele concordou com a
cabeça e olhou de volta para a página, correndo o dedo ao longo
das palavras para encontrar onde tinha parado.
"Então", ele leu, e sua voz engasgou de repente, depois se
estabilizou. "Então", ele repetiu, "por favor, mon cher fils153,
volte para casa. Eu amo você e preciso que você esteja aqui,
então a nova casa será um lar de novo.
"Com meu amor sempre... "
Ele apertou os lábios com força e eu vi lágrimas em seus olhos,
ainda fixos no papel.

153
Meu querido filho
282

"Maman", ele sussurrou, e pressionou a carta contra o peito.


-.-.-

PASSOU-SE MAIS uma hora antes de as crianças irem para a


cama – Germain entre elas – e eu me vi mais uma vez em nosso
quarto arejado, desta vez com Jamie. Ele ficou na beirada do
piso aberto da varanda, vestido com sua camisa, olhando para a
noite abaixo, enquanto eu me contorcia para fora do meu
espartilho, suspirando de alívio quando a brisa fresca da noite
passou pela minha combinação.
"Seus ouvidos não estão zumbindo, Sassenach?", ele disse,
virando-se e sorrindo para mim. "Já faz algum tempo que não
ouço tanta conversa em um espaço tão pequeno."
"Humm-humm." Eu fui até ele e coloquei meus braços em volta
de sua cintura, sentindo o peso do dia e da noite indo embora.
"Está tão quieto aqui. Posso ouvir os grilos na madressilva em
volta da latrina."
Ele gemeu e apoiou o queixo no topo da minha cabeça, me
deixando segurar um pouco de seu peso.
"Não mencione latrinas. Não cheguei nem na metade da
destinada ao seu consultório. E se tivermos muito mais
companhia como esta noite, terei que cavar outra para a casa
dentro de um mês."
"Eu sei que você sabe que Roger faria isso se você pedisse",
comentei. "Você simplesmente não vai deixar."
"Mmphm. Ele não faria direito."
"Existe uma arte em cavar latrinas?", eu perguntei, provocando,
porque se Jamie era um perfeccionista sobre alguma coisa – e
para falar a verdade, ele era um perfeccionista sobre uma série
de coisas, quase todas relacionadas com ferramentas ou armas –
283

era cavar uma fossa adequada para a latrina. "Não foi Voltaire
quem disse que o perfeito é inimigo do bom?"154
"Le mieux est le mortel ennemi du bien", disse ele. "O melhor é
o inimigo mortal do bom. E tenho certeza de que Voltaire nunca
cavou uma privada em sua vida. O que ele saberia sobre isso?"
Ele se endireitou e se espreguiçou, lenta e luxuosamente. "Deus,
eu quero me deitar."
"O que está impedindo você?"
"Pretendo aproveitar a antecipação tanto quanto o deitar. Além
disso, estou com fome. Temos comida à mão?"
"Se nenhuma das crianças tiver encontrado, sim." Eu me curvei
e remexi embaixo da cama, puxando a cesta que escondi durante
a tarde antecipando essa contingência. "Queijo e uma fatia de
torta de maçã, está bom?"
Ele fez um barulho escocês indicando agradecimento e profundo
contentamento e sentou-se para atacar a cesta.
"Germain recebeu uma carta de Marsali", disse eu. As cascas de
milho no colchão farfalharam quando me sentei ao lado dele.
"John Quincy disse a você?"
"Germain me contou", disse ele, sorrindo. "Quando eu saí para
dizer às crianças para entrarem, ele estava perto do poço,
contando a Jem e Fanny sobre seus novos irmãos pequeninos, e
seus cabelos estavam em pé de excitação. Ele disse que não
conseguia dormir por querer ver seu povo, então dei-lhe papel e
tinta para escrever uma carta para sua mãe."
"Fanny o está ajudando com a grafia", acrescentou ele, limpando
as migalhas da camisa. "Quem você acha que a ensinou a
escrever? Não é uma habilidade que provavelmente teria valor

154
As frases sobre Voltaire e latrinas foram incluídas no ep 511 da série de TV. O roteiro desse episódio
foi escrito por Diana Gabaldon.
284

em um bordel, com certeza."


"Alguém tem que manter os livros e escrever cartas de
chantagem gentis ocasionais, mas talvez esse seja o trabalho da
madame. Quanto a Fanny, ela nunca disse, mas acho que deve
ter sido sua irmã.155"
Meu coração se contraiu um pouco com essa lembrança do
passado recente de Fanny. Ela nunca falava disso, ou de sua
irmã.
"Sim", disse Jamie, e uma sombra cruzou seu rosto com a
menção de Jane Pocock. Presa e condenada à morte por matar
um cliente sádico que comprou a virgindade de sua irmã mais
nova, ela se matou na noite anterior ao enforcamento – poucas
horas antes de William e Jamie chegarem até ela.
Ele apertou os lábios brevemente e então balançou a cabeça.
"Sim, bem. Devemos mandar Germain para casa assim que
pudermos, é claro. Receio que Frances sentirá falta dele, no
entanto."
Eu me abaixei para pegar nossas roupas externas descartadas,
mas me endireitei com isso.
"Você acha que devemos mandar Fanny com ele? Ficar com
Fergus e Marsali por um tempo? Ela seria uma ajuda com as
crianças."
Ele fez uma pausa, uma fatia de queijo na mão, então balançou
a cabeça.
"Não. Sete são bocas mais do que suficientes para Fergus
alimentar, e a moça está bastante feliz aqui, eu acho. Ela está
acostumada a nós. Não gostaria que ela pensasse que não a
queremos – ou que se sentisse desenraizada, sim? E", ele
hesitou, então acrescentou de uma maneira espontânea,
155
Como assim, há poucas páginas, ao falarem de ler o Senhor dos Anéis, que ela diz que sabia que Jane
havia ensinado Fanny a ler....
285

"William a deu para mim. Ele queria que eu a mantivesse


segura."
"E você acha que ele pode vir aqui para vê-la", acrescentei
suavemente.
"Sim", ele disse, um pouco rispidamente. "Eu não gostaria que
ele viesse e não a encontrasse aqui, quero dizer." Ele deu uma
mordida no queijo e mastigou lentamente, desviando o olhar.
Dei um tapinha no braço dele, depois me levantei e comecei a
endireitar nossas roupas descartadas, fazendo o melhor que pude
para colocá-las de uma forma que evitasse que fossem
arremessadas do telhado em caso de vento forte, mas não
acabassem impossivelmente amassadas. Enquanto colocava o
sporran de Jamie no topo da pilha com meus sapatos para ajudar
a pesar as coisas, vi a ponta de um papel dobrado aparecendo.
"Oh, Myers disse que também trouxe uma carta para você", eu
disse. "É essa?"
"É esta." Ele parecia cauteloso, como se não quisesse que eu
tocasse, e retirei minha mão. Ele largou o pedaço de queijo que
estava comendo, no entanto, e acenou com a cabeça para ela.
"Você pode ler, Sassenach. Se você quiser."
"São notícias perturbadoras?", eu perguntei, hesitando. Após as
turbulências emocionais da carta de Marsali, eu não queria
estragar a paz da noite de verão com algo que poderia esperar
até de manhã.
"Não, não realmente. É de Joshua Greenhow – você se lembra
dele, de Monmouth?"
"Eu lembro", eu disse, me sentindo momentaneamente tonta.
Eu estava costurando um ferimento na testa do Cabo Greenhow
quando levei um tiro durante a batalha, e seu rosto horrorizado,
com minha agulha e a ligadura penduradas absurdamente em sua
286

testa ensanguentada, foi a última coisa que vi quando caí. Não


seria exagero dizer que o que aconteceu a seguir foi a pior
experiência física da minha vida, enquanto eu estava deitada no
chão em um mundo giratório de folhas e céu e dor avassaladora,
sangrando até a morte e ouvindo um mensageiro do general Lee
tentando fazer Jamie me abandonar na lama.
Eu olhei para a carta, mas a luz era muito fraca para eu ler,
mesmo se eu tivesse meus óculos à mão.
"O que ele diz?"
"Ach, principalmente onde ele está e o que está fazendo – o que
não é muito no momento; apenas parado na Filadélfia. Embora
haja um pouco sobre o general Arnold156 aí." Ele acenou com a
cabeça para a carta. "Joshua diz que Arnold se casou com Peggy
Shippen – você vai se lembrar dela, imagino – e ele está em corte
marcial por especulação. Arnold, quero dizer, não o sr.
Greenhow."
"Especulação em quê?", eu perguntei, dobrando a carta.
Lembrei-me de Peggy, sem dúvida: uma garota de dezoito anos,
linda e sabendo disso, exibindo-se diante do general de trinta e
oito anos como uma mosca para a truta. "Eu posso ver por que
ele se casou com ela, mas por que diabos ela iria querer se casar
com ele?" Benedict Arnold tinha considerável charme e
magnetismo animal, mas também tinha uma perna mais curta do
que a outra e – até onde eu sabia – nem propriedade nem
dinheiro.
Jamie me lançou um olhar paciente.

156
General Benedict Arnold (1741-1801). Foi um general durante a Guerra de Independência dos
Estados Unidos que inicialmente lutou pelo Exército Continental mas acabou desertando para o
Exército Britânico Foi um vencedor em Ticonderoga (maio de 1775) e participou da Batalha de
Saratoga (setembro- outubro de 1777), quando se feriu, mas ficou cada vez mais descontente com o
Exército Continental e, com a ajuda do oficial do Exército Britânico major John André, tentou fazer a
rendição de West Point, o forte sob seu comando, para os britânicos. Ficou conhecido com o maior
traidor da história norte-americana.
287

"Ele é o governador militar da Filadélfia, para começar. E a


família dela é de Tories157. Você sabe o que os Filhos da
Liberdade158 fizeram com seu primo – talvez ela esteja pensando
que preferia que eles não voltassem e queimassem a casa de seu
pai sobre a cabeça dela."
"Você tem um bom argumento." A brisa noturna estava
começando a me esfriar dentro de minha combinação úmida e
eu estremeci. "Dê-me esse xale, sim?"
"Quanto sobre o que Arnold está especulando", Jamie
acrescentou, envolvendo o xale em volta dos meus ombros,
"pode ser qualquer coisa. A maior parte da cidade estará à venda,
se for pelo preço certo."
Eu concordei, balançando a cabeça, olhando para a noite, que
havia espalhado sua capa de veludo em torno de nós –
momentaneamente salpicada por uma chuva de faíscas que
disparou da chaminé do outro lado da casa, desbotando para
preto antes de pousar.
"Eu não posso impedir Benedict Arnold", eu disse calmamente.
"Eu não poderia impedi-lo, mesmo se ele estivesse aqui bem na
minha frente neste minuto. Posso?" Virei minha cabeça para ele,
num apelo.
"Não", ele disse muito suavemente, e pegou minha mão. A dele
era grande e forte, mas estava tão fria quanto a minha. "Venha
se deitar comigo, Sassenach. Eu vou aquecê-la e nós vamos
assistir a lua descer. "
-.-.-

ALGUM TEMPO DEPOIS, nós estávamos deitados juntos, nus

157
Conservadores
158
Grupo formado por patriotas americanos na pré independência americana, para proteger direitos dos
colonos e levar protestos (alguns violentos) às ruas .
288

na noite fria, felizes com o calor do corpo um do outro. A lua


estava caindo no oeste, uma lasca de prata que deixava as
estrelas brilharem. A lona clara farfalhava e murmurava no alto,
os cheiros de abeto, carvalho e cipreste nos cercavam, e um
vaga-lume aleatório, distraído de seu trabalho por uma corrente
de vento que passava, pousou no travesseiro perto da minha
cabeça e sentou-se por um momento, seu abdômen pulsando
com uma luz verde fria regular.
"Oidhche mhath, a charaid159," Jamie disse a ele. Ele acenou
com as antenas de maneira amigável e partiu, girando em
direção ao distante tremeluzir de seus camaradas no solo.
"Eu gostaria que pudéssemos manter nosso quarto assim", eu
disse melancolicamente, observando sua luz traseira
desaparecer na escuridão abaixo. "É tão adorável fazer parte da
noite."
"Não tanto quando chove." Jamie ergueu o queixo em direção
ao nosso teto de lona. "Dinna fash, entretanto; teremos um
telhado sólido antes que a neve caia."
"Suponho que você esteja certo", disse eu, e ri. "Você se lembra
da nossa primeira cabana, quando nevou e o telhado vazou?
Você insistiu em subir para consertá-lo, na forte nevasca – e
totalmente nu."
"Bem, e de quem foi a culpa?" ele perguntou, embora sem
rancor. Você não me deixaria subir de camisa; que escolha eu
tive?"
"Você sendo você, absolutamente nenhum." Eu rolei e o beijei.
"Você tem gosto de torta de maçã. Sobrou algum pedaço?"
"Não. Eu vou descer e buscar um pedaço para você."
Eu o impedi com a mão em seu braço.

159
Boa noite, ó amigo. Em gaélico.
289

"Não, não faça isso. Não estou com muita fome e prefiro apenas
ficar assim. Humm?" "Mmphm."
Ele rolou em minha direção, em seguida, escorregou para baixo
da cama e se ergueu entre minhas coxas.
"O que você está fazendo?", eu exigi, enquanto ele se
acomodava confortavelmente na posição.
"Achei que isso era óbvio, Sassenach."
"Mas você acabou de comer torta de maçã!"
"Não era esse recheio."
"Isso... não foi bem o que eu quis dizer..."
Seus polegares estavam acariciando o topo das minhas coxas
pensativamente, e seu hálito quente estava remexendo os pelos
do meu corpo de uma forma muito perturbadora.
"Se você tem medo de migalhas, Sassenach, dinna fash, vou
pegá-las depois de terminar. São babuínos que você disse que
fazem isso? Ou eram pulgas que eles pegavam?"
"Eu não tenho pulgas", foi tudo que consegui dizer na forma de
uma resposta espirituosa, mas ele riu, acomodou os ombros e
começou a trabalhar.
"Eu gosto quando você grita, Sassenach", ele murmurou um
pouco mais tarde, parando para respirar.
"Há crianças lá embaixo! ", eu assobiei, os dedos enterrados em
seus cabelos.
"Bem, tente soar como uma pantera, então..."

-.-.-

UM POUCO DEPOIS, perguntei: "Qual é a distância daqui até


290

a Filadélfia?"
Ele não respondeu de imediato, mas massageou suavemente
minha bunda com uma mão. Finalmente, ele disse: "Sabe o que
Roger Mac me disse uma vez? Que para um inglês, cem milhas
é um longo caminho; para um americano, cem anos é muito
tempo."160
Virei um pouco a cabeça para olhar para ele. Seus olhos estavam
fixos no céu e seu rosto estava tranquilo, mas eu sabia o que ele
estava dizendo.
"Quanto tempo, então?", eu perguntei baixinho e coloquei a mão
sobre seu coração, para sentir a certeza de sua batida lenta e
forte. Ele cheirava ao meu próprio almíscar e ao dele, e um
tremor do último momento ecoou pela minha espinha. "Quanto
tempo nós temos, você acha?"
"Não muito, Sassenach", ele disse suavemente. "Esta noite, está
tão longe quanto a lua. Amanhã pode estar no jardim da frente."
Os pelos de seu peito tinham se arrepiado, fosse por causa do ar
frio ou da conversa, e ele agarrou minha mão, beijou-a e sentou-
se.
"Você já ouviu falar de um homem chamado Francis Marion161,
Sassenach?"
Fiz uma pausa no ato de pegar minha combinação. Ele falou
muito casualmente, e eu olhei rapidamente para ele. Ele estava
de costas, e as cicatrizes eram uma malha de finas linhas
prateadas.
"Talvez tenha ouvido", eu respondi, olhando criticamente para a

160
Novamente, não foi alterada a unidade de distância para que o ritmo da frase se mativesse.
161
Francis Marion (1732 - 1795) foi um general americano que serviu na Guerra de Independência dos
Estados Unidos. Foi tenente-coronel no Exército Continental e general-de-brigada na milícia da Carolina
do Sul. O lugar do seu quartel-geral valeu-lhe a alcunha de Swamp Fox (Raposa do Pântano). É
conhecido pelo uso de armadilhas e emboscadas, pela perturbação das comunicações do inimigo, pela
captura dos seu mantimentos, e pela libertação de prisioneiros. Marion é considerado como um dos
primeiros adeptos das técnicas de guerrilha.
291

barra da minha camisa. Um pouco suja, mas serviria por mais


um dia. Eu a coloquei pela cabeça e peguei minhas meias.
"Francis Marion... ele era conhecido como A Raposa do
Pântano?" Eu tinha vagas memórias de assistir a um show da
Disney162 com esse nome, e pensei que o nome do personagem
era alguma coisa Marion...
"Ele ainda não é", disse Jamie, virando-se para olhar por cima
do ombro para mim. "O que você sabe sobre ele?"
"Muito pouco, e isso só de um programa de televisão. Embora
Bree provavelmente ainda pudesse cantar a música tema – hã,
essa é a música que era tocada no início de cada... hã,
apresentação."
"A mesma música todas as vezes, você quer dizer?" Uma
sobrancelha erguida com interesse. "Sim. Francis Marion...
Lembro-me dele sendo capturado por um casaco-vermelho
britânico163 e amarrado a uma árvore em um episódio, então ele
provavelmente era um..." Eu parei de repente.
"Agora", eu disse, com aquela estranha mistura de pavor e
admiração que sempre vinha quando eu cruzava com um deles.
Primeiro Benedict Arnold, e agora ... "Francis Marion está...
agora, você quer dizer."
"Pelo que Brianna me disse. Mas ela não se lembrava muito
dele."
"Por que você está interessado nele, particularmente?"
"Ach." Ele relaxou, de volta em terreno mais firme. "Você já
ouviu falar de partisan band, como os chamam, os bandos

162
A série de TV The Swamp Fox abrangeu oito episódios intermitentes de 1959 a 1961. Estrelada por
Leslie Nilsen, como Francis Marion, era produzida pelos Studios Disney e apresentada nas manhãs e
noites de domingo, pelo canal ABC norte-americano.
163
Casaco-vermelho é uma referência genérica ao soldado inglês, embora nem sempre eles usassem
casacos vermelhos... Dependendo do Regimento – se da Cavalaria, ou da Infantaria, ou se eram
Granadeiros – podiam vestir verde, ou azul.
292

partidários, Sassenach?"
"Não, a menos que você se refira a um partido político, e tenho
certeza de que não164."
"Como Whigs e Tories?165 Não, eu não estou falando disso." Ele
pegou a jarra de vinho, serviu uma xícara e me entregou. "Um
bando de guerrilheiros é muito parecido com um bando de
mercenários, exceto que a maioria deles não trabalha por
dinheiro. Algo como uma milícia particular, mas muito menos
ordeira em seus hábitos."
Eu tinha visto muitas companhias de milícia durante a campanha
de Monmouth, e isso me fez rir.
"Eu entendo. O que uma partisan band faz, então?"
Ele serviu sua própria xícara e a ergueu para mim em um breve
brinde.
"Aparentemente, eles vagam por aí, incomodando os legalistas,
matando escravos libertos e, em geral, sendo um espinho sob a
sela do exército britânico."
Eu pisquei. Walt Disney aparentemente decidiu omitir algumas
coisas da versão dos anos 1950 do Swamp Fox, e não é de
admirar.
"Matando escravos libertos? Para quê?"
"Os britânicos têm o hábito de libertar escravos que se
comprometem a ingressar no exército. É o que Roger Mac diz.
Aparentemente, o sr. Marion fez – fará? – oposição a isso." Ele
franziu a testa. "Eu acho que ele talvez não esteja fazendo isso
ainda. Eu não ouvi falar de tal coisa, pelo menos."

164
Partisan é um membro de uma tropa irregular formada para se opor à ocupação e ao controle
estrangeiro de uma determinada área. Os partisans operavam infiltrados atrás das linhas inimigas,
atrapalhando a comunicação, roubando cargas e realizando sabotagem. A palavra tem origem francesa e
se popularizou na Segunda Guerra Mundial (como Claire não se lembra disso?), mas esse termo já era
usado na guerra revolucionária norte-americana.
165
Liberais e conservadores
293

Tomei um gole de vinho. Era vinho moscatel, fresco e doce, e


desceu bem em uma noite cheia de sombras.
"E onde o sr. Swamp Fox está fazendo isso?"
"Em algum lugar na Carolina do Sul. Não tomei conhecimento
dos detalhes – fui levado pela ideia, sabe?"
"De um partisan band, você quer dizer?" Fiquei inquieta desde
que coloquei minhas meias e tive o pensamento absurdo de que
talvez eu devesse tirá-las novamente. Sem fugir dessa conversa
em particular, no entanto.
Os dedos de sua mão direita moveram-se lentamente sobre sua
coxa, a batida silenciosa de seus pensamentos.
"Sim", ele disse finalmente, e fechou os dedos em punho. "É o
que Benjamin Cleveland – sabe, o grande e gordo sodomita de
Além da Montanha166 que tentou me ameaçar? – estava me
propondo, de uma forma indireta, mas ele foi claro o suficiente."
Ele olhou para mim, olhos escuros e sérios na luz fraca da noite.
"Não voltarei a lutar com o Exército Continental", disse ele. "Já
estou farto de exércitos. E não acho que o general Washington
me aceitaria de volta, por falar nisso."
Ele sorriu com isso, um pouco pesaroso.
"Pelo que Judah Bixby me disse, você renunciou completamente
à sua patente. Lamento ter perdido o espetáculo."
Eu sorri também, não com menos arrependimento. Eu perdi
porque no momento em que Jamie renunciou à sua patente,
escrevendo sua renúncia nas costas do mensageiro que veio
chamá-lo para o serviço, eu estava deitada no chão a seus pés,
em processo de sangramento até a morte. Na verdade, Judah –

166
‘Overmountain’ é um termo genérico para denominar os homens (ou qualquer coisa) que viviam além
da fronteira então conhecida das colônias naquela região, isto é, a oeste das Montanhas Apalaches. Eles
tiveram um papel fundamental na Guerra Revolucionária Americana, em especial nessa região, sendo um
elemento primordial na Batalha de King’s Mountain.
294

um de seus jovens tenentes, que estivera presente – me disse que


Jamie havia realmente escrito sua breve recusa com lama
encharcada com meu sangue.
"Sim", ele disse secamente. "Eu não ouvi o que Washington
pensava sobre isso, mas pelo menos ele não mandou que eu
fosse preso e enforcado por deserção."
"Eu imagino que ele teve algumas outras coisas em mente desde
então."
Eu não estava em condições de ouvir – ou me importar – sobre
o progresso da guerra por algum tempo depois de me tornar uma
das vítimas finais da Batalha de Monmouth. Mas não foi
possível evitar por muito tempo. Tínhamos vivido em Savannah
quando os britânicos invadiram e ocuparam a cidade – eles ainda
estavam lá, pelo que eu sabia. Mas as notícias, como a água,
correm ladeira abaixo e tendem a se acumular nas cidades
costeiras com jornais, remessas e o novo serviço postal. Levá-lo
para as montanhas era um processo lento e difícil.
"Devo deduzir que você está realmente planejando começar o
seu próprio bando de partisans?", eu perguntei, tentando manter
a calma.
"Oh", ele disse, em um tom semelhante, "acho que sim. Não
tanto para atacar e matar, lembre-se – faz muito tempo desde que
eu participei de um ataque", ele adicionado, com uma nota
distinta de nostalgia. "Para proteção da Cordilheira, entretanto.
E então ... conforme a guerra continuar, bem... pode acontecer
que uma pequena gangue possa ser útil aqui ou ali." Esta última
frase foi adicionada de uma maneira tão casual que me endireitei
e olhei para ele com atenção.
"Uma gangue? Você quer começar uma gangue?"
Ele pareceu surpreso com isso.
295

"Sim. Você já tinha ouvido essa palavra antes, Sassenach?


"Sim", eu disse, e tomei um gole de vinho, na esperança de me
induzir à calma. "Mas eu não pensei que você teria ouvido."
"Bem, é claro que sim", disse ele, levantando uma sobrancelha
para mim. "É uma palavra escocesa, não?"
"Ah, é?"
"Sim. São apenas os homens com quem você se associa167,
Sassenach. Slàinte."
Ele pegou a xícara de mim, ergueu-a em uma breve saudação e
a esvaziou.

167
No original, essa frase está em scots “It’s just the men ye gang oot with, Sassenach.”
296

15

QUE BRUXA VELHA?

MANDY E EU ESTÁVAMOS EM lados opostos da mesa – ela


no banco – olhando para a pequena tigela amarela entre nós com
intensa concentração.
"Quanto tempo, Grannie?"
"Dez minutos", respondi e olhei para o relógio de carrilhão com
filigrana de prata que Jenny havia me emprestado. "Só se
passaram dois. Você pode se sentar; não acontecerá mais rápido
porque estamos assistindo. "
"Shim, vai." Ela fez este pronunciamento com uma confiança
calma que me fez sorrir. Vendo isso, ela levantou a cabeça e
disse: "Jemmy diz que você tem que observar com força ou ele
vai fugir". Percebendo que ela havia tirado os olhos da tigela,
ela voltou a cabeça para a frente e olhou severamente para ela,
proibindo o fermento de deslizar para o lado e rastejar.
"Eu não acho que ele quis dizer a levedura, querida.
Provavelmente eram coelhos". Ainda assim, não consegui me
afastar. Eu cheirei o ar sobre a tigela, e Mandy fez o mesmo,
com grande vigor.
"Tenho certeza que a levedura está boa", eu disse. "Ela cheira...
a fermento."
"Feremento", disse ela, balançando a cabeça em firme
concordância e bufando.
"Se não estivesse mais ativa – não fosse boa," eu expliquei, "ela
cheiraria mal". Eu esperaria os dez minutos completos, então eu
poderia mostrar a ela a espuma que a levedura ativa faz quando
297

você adiciona água morna com açúcar, mas eu tinha certeza de


que a levedura estava bem – e me senti aliviada por conta disso.
Pode-se fazer biscoitos fofinhos com fermento obtido de
carbonato de sódio, mas era um negócio bem mais complicado.
"Vamos colocar um pouco do fermento no leite", eu disse,
retirando uma colherada bem grande do bloco disforme em
fermentação, colocando-a em um recipiente limpo. "Para termos
mais fermento quando for a próxima vez de fazer biscoitos."
A cabeça de Jamie apareceu na porta.
"Pode me emprestar a pequenina por um minuto, Sassenach?"
"Sim", respondi prontamente, agarrando a mão de Mandy que já
estava a centímetros do saco aberto de farinha na mesa. "O vovô
precisa de você para ajudá-lo, querida."
"Ok", ela disse afavelmente, e enfiou na boca um dos biscoitos
de passas que fizemos mais cedo antes que eu pudesse impedi-
la.
"Oquefoi, fofô?"
"Eu preciso que você se sente em algo por um momento." O
nariz longo e reto de Jamie se contorceu com o cheiro de
manteiga e passas, e sua mão já se esticava em direção à bandeja.
"Tudo bem", eu disse, resignada. "Só um. Mas vai comê-lo aqui,
pelo amor de Deus. Se os meninos a virem com isso, eles estarão
aqui como um enxame de gafanhotos."
"Qui é gafanfoto?"
"Mandy! Você tem outro biscoito na boca?"
Os olhos de Mandy se arregalaram quando ela fez um esforço
heroico e engoliu a maior parte do que estava em sua boca.
"Não", ela disse, aspergindo migalhas. Jamie terminou seu
próprio biscoito e engoliu, um pouco mais bem educado.
298

"Isso está bom, Sassenach", disse ele, assentindo para a bandeja.


"Você vai ser uma cozinheira decente ainda." Ele sorriu para
mim, pegou Mandy pela mão e se dirigiu para a porta.
Na falta de algo como um pote de biscoito – eu poderia fazer
um? Eu me perguntei. Brianna sem dúvida poderia, uma vez que
ela ressuscitou seu forno – eu enfiava os biscoitos frescos dentro
do caldeirão menor e colocava um grande prato como tampa,
depois pegava duas das grandes pedras do rio – que
guardávamos perto lareira para usar como aquecedores de cama
quando o clima verdadeiramente frio chegasse – e colocava
sobre o prato. Não impediria os garotos, mas afastaria insetos e
– talvez – os guaxinins saqueadores. As paredes da cozinha eram
bem-construídas, mas não havia vidro na maioria das janelas
ainda.
Eu olhei pensativa para o caldeirão por um tempo, imaginando
as possibilidades. Depois o arrastei pelo corredor até o
consultório, onde eu o coloquei no armário fechado onde
mantinha as bebidas destiladas, garrafas de solução salina, e
outros itens improváveis de atrair interesse de qualquer pessoa.
Eu ouvi Jamie e Mandy na varanda da frente, conversando e fui
para a porta da frente para ver o que eles estavam fazendo.
Jamie estava de joelhos, raspando a madeira do que foi
claramente destinado a ser um assento de privada na medida
para Mandy. "Experimente isso", disse ele, sentando-se de volta
nos calcanhares. "Sente-se, quero dizer."
Mandy riu, mas sentou. "Quiéisso, vô?"
"Sabe o pequeno rato que entrou no seu quarto na semana
passada?"
"Shim. Você pegou na sua mão. Ele mordeu você, vô?", ela
perguntou com simpatia.
"Não, a leannan, ele correu pela minha manga e pulou pelo meu
299

colarinho e fez um pouso do outro lado, direto no nosso quarto


e se escondeu debaixo dos sapatos bons da vovó. Não se lembra
disso?"
Sua pequena testa franziu em concentração. "SHIM. Você
glitou."
"Sim. Bem, agora e novamente temos ratos pequenos, e outras
pequenas feras, que correm para se esconder na latrina, se algo
os assustar do lado de fora. Agora, tais coisas principalmente
não machucam você", ele levantou um dedo para ela..."Mas eles
poderiam fazer algum movimento brusco. E eu não quero que
com isso você se assuste, se solte e caia pelo buraco na latrina."
"Eeeeca!" Mandy disse, rindo.
"Não ria", disse Jamie, sorrindo. "Seu tio William caiu em uma
latrina há alguns anos, e não ficou nada satisfeito com isso."
"Quem é Tiu Willam?"
"Irmão de sua mamãe. Você não o conhece ainda."
As pequenas sobrancelhas negras de Mandy se uniram em uma
carranca.
Ele olhou brevemente para mim e meio que encolheu os ombros.
"Não há vantagem em não falar sobre ele", ele disse para mim.
"Provavelmente vamos vê-lo novamente dentro de algum
tempo."
"Tem certeza sobre isso?", eu disse em dúvida. É verdade que
não houve nenhuma acrimônia aberta na última vez que Jamie e
William se encontraram frente a frente, mas não havia nenhuma
indicação de que William tivesse atingido uma sensação de
resignação sobre as circunstâncias de seu nascimento.
"Eu tenho", disse Jamie, olhos no buraco que ele estava
perfurando. "Ele virá para se inteirar sobre Frances."
Ouvi uma pequena respiração suspensa atrás de mim e olhei para
300

trás para ver Fanny, que havia descido a trilha do jardim, com
uma cesta cheia de vegetação em seu braço. Seu lindo rosto tinha
ficado pálido e seus olhos abertos, fixos em Jamie.
"Você acha que ele vai... vir?", ela disse. "Aqui? Para me ver?"
Sua voz se ergueu e quebrou um pouco na última palavra.
Jamie olhou para ela por um momento por cima do ombro,
depois assentiu. "Eu voltaria, Frances", ele disse simplesmente.
"Então ele vai."
-.-.-

VOLTEI PARA A cozinha para verificar o fermento. Com


certeza, havia uma espuma suja na superfície da água – e o
relógio indicava que tinham se passado onze minutos.
Verificando os ingredientes para os biscoitos, no entanto,
descobri que algum patife tinha comido toda a manteiga do pote
e não tínhamos banha. Ninguém mais estava em casa; Jamie e
Mandy ainda estavam conversando na varanda. Eu teria tempo
para ir até a casinhola da fonte e buscar creme suficiente para
bater mais manteiga enquanto a massa de biscoito estava
crescendo.
Eu estava indo lentamente ao longo do caminho da casinhola da
fonte, carregando dois pesados baldes de creme de leite, quando
vi uma mulher se aproximando da casa. Ela era alta, com um
passo determinado, e usava um vestido preto com um chapéu de
palha de abas largas que ela segurava com uma das mãos para
evitar que voasse com a brisa.
Jamie havia desaparecido, provavelmente para buscar uma
ferramenta, mas Mandy ainda estava na varanda, sentada em seu
novo assento sanitário e cantando para Esmeralda. Ela não
prestou atenção à mulher – uma senhora mais idosa do que eu
tinha pensado devido a sua postura ereta e passo ágil. Chegando
301

mais perto, eu pude ver as linhas em seu rosto, e os cabelos


grisalhos apareciam em suas têmporas sob a touca que ela usava
sob o chapéu.
"Onde está seu pai, criança?", ela exigiu, parando na frente de
Mandy.
"Eu não sei", respondeu Mandy. "Essa é Esmeralda", disse ela,
segurando sua boneca.
"Eu gostaria de falar com seu pai."
"Ok", Mandy respondeu amavelmente e retomou cantando.
"Ferre Jacque, Ferre Jacque, Dormi Vooo ..."
"Pare com isso", disse a mulher bruscamente. "Olhe para mim."
"Por quê?"
"Você é uma criança muito impertinente e seu pai deveria bater
em você."
Mandy ficou com o rosto muito vermelho e mexeu seus pés, se
levantando e ficando de pé em seu novo assento.
"Vai embora!", ela disse. "Eu mando você pela descarga!" Ela
bateu a mão no ar, imitando apertar o botão da válvula de
descarga. "Wooosh!"
"O que em nome da perdição você quer dizer com isso, sua
criança perversa?" O rosto da mulher estava ficando bastante
vermelho também. Eu tinha parado, fascinada, mas agora
abaixei os baldes, sentindo que era melhor tomar as rédeas antes
que as coisas ficassem piores. Muito tarde.
"Eu coloco você na privada e eu dou a descarga, como se você
fosse cocô!", Mandy gritou, batendo os pés. Rápida como uma
cobra, a mão da mulher disparou e espalmou contra a bochecha
de Mandy.
Houve uma fração de segundo de silêncio chocado e então uma
302

série de coisas aconteceu de uma só vez. Eu me precipitei em


direção à varanda, tropecei em um dos baldes, e caí no caminho
em um dilúvio de leite; Mandy soltou um grito que poderia ter
sido ouvido tão longe quanto na estrada das carroças, e Jamie
saiu da porta da frente como o rei demônio em uma pantomima.
Ele pegou Mandy em um braço, pulou da varanda, e estava
nariz-a-nariz com a mulher antes que eu tivesse sequer me
ajoelhado.
"Deixe minha casa", disse ele, no tipo de voz calma que deixou
claro que a única outra opção era a morte instantânea.
Para seu crédito, a senhora não estava recuando. Ela levantou a
aba largo de seu chapéu negro, para melhor olhar para ele.
"A garota falou rudemente comigo, senhor, e eu não vou
permitir isso! Evidentemente ninguém procurou discipliná-la
corretamente. Não me admira." Seu olhar rasgou-o
desdenhosamente para cima e para baixo. Mandy parou de
gritar, mas estava soluçando, seu rosto enterrado na camisa de
Jamie.
"Bem, falando de grosseria", eu disse suavemente, torcendo meu
avental molhado. "Eu não acredito que tivemos a honra de já
termos nos conhecido, não é?" Eu limpei a mão no lado da minha
saia e a estendi. "Eu sou Claire Fraser."
Seu rosto não perdeu sua expressão de indignação, mas
congelou. Ela não disse uma palavra, mas recuou de mim, um
passo de cada vez. Jamie não se moveu, além de dar tapinhas
consoladores em Mandy, confortando-a. Seu rosto estava tão
fixo e duro quanto o dela.
Ela chegou à beira do caminho, parou e levantou o queixo em
direção a Jamie.
"Vocês todos", ela disse uniformemente, varrendo o chapéu em
303

um arco que me englobava – e a Jamie, Mandy, e a casa,


"indubitavelmente irão para o inferno". Com tal
pronunciamento, ela jogou um pequeno pacote para a varanda,
virou-se de costas para nós e saiu como uma ave de mau
presságio.

-.-.-

"Quem diabos era ela?", Jamie perguntou.


"A buxa má", Mandy respondeu prontamente. Seu rosto ainda
estava vermelho e seu lábio inferior formava um bico longo o
máximo que podia. "Eu odeio ela!"
"Possivelmente", eu disse. Eu me inclinei e peguei com cuidado
o pequeno pacote. Estava envolto em seda oleada, amarrado com
um cordão estranho, com um número de nós diferentes. Eu o
levantei até meu nariz e cheirei cautelosamente.
Mesmo através do cheiro obscuro da seda oleada, o cheiro
amargo de quinino era forte o suficiente para que eu pudesse
senti-lo na parte de trás da minha boca.
"Jesus H. Roosevelt Cristo", eu disse, olhando para Jamie,
maravilhada. "Ela me trouxe casca de jesuíta."
"Bem, eu disse a você, Sassenach, que se você mencionasse sua
necessidade a Roger Mac e Brianna, provavelmente
conseguiram alguma. E nesse caso", ele disse lentamente,
olhando para a direção em que nossa visitante havia
desaparecido: "Eu acho que talvez aquela mulher lá seja a sra.
Cunningham."
304

16

CÃO DE CAÇA CELESTIAL168


Duas semanas depois

EU ESTAVA NO MAIS PROFUNDO dos sonhos e vim à tona


como um peixe retirado da água, se debatendo e engasgando.
"Huh?", eu não conseguia me lembrar onde estava, quem eu era
ou como falar. Então o barulho que me acordou veio novamente,
e todos os pelos do meu corpo se arrepiaram.
"Jesus H. Roosevelt Cristo!" Palavras e sentido voltaram de
repente e eu movi as duas mãos, tateando em busca de alguma
âncora física.
Lençóis. Colchão. Cama. Eu estava na cama. Mas não Jamie;
havia um espaço vazio ao meu lado. Pisquei como uma coruja,
virando minha cabeça em busca dele. Ele estava de pé, nu, na
janela sem vidro, banhado pelo luar. Seus punhos estavam
cerrados e todos os músculos visíveis sob sua pele.
"Jamie!" Ele não se virou, nem pareceu ouvir – nem minha voz,
nem o baque e a agitação de outras pessoas na casa, também
despertados pelos uivos do lado de fora. Eu podia ouvir Mandy
começando a chorar de medo, e as vozes de seus pais se
sobrepondo na pressa de confortá-la.
Saí da cama e me coloquei com cautela ao lado de Jamie, embora
o que eu realmente quisesse fazer fosse mergulhar sob as
cobertas e puxar o travesseiro sobre a cabeça. Aquele barulho...
Eu olhei por cima do ombro dele, mas apesar do luar brilhante,
168
“Hound of Heaven”, no original. Esse é o título de um famoso poema de Francis Thompson (1859-
1907). O tema é sobre a ‘desistência’ da ideia de Deus, mas a constatação que Ele vai sempre persegui-lo
e encontrá-lo, como um cão de caça.
305

não se via nada na clareira defronte da casa que não deveria estar
lá.
Vindo da floresta, talvez; as árvores e a montanha eram uma laje
negra impenetrável.
"Jamie", eu disse, mais calmamente, e passei a mão firmemente
em torno de seu antebraço. "O que você acha que é isso? Lobos?
Um lobo, quero dizer?"
Eu esperava que existisse apenas um de qualquer coisa estivesse
fazendo aquele som.
Ele começou a se reconectar com o toque, se virou para me ver
e balançou a cabeça com força, tentando se livrar de ... alguma
coisa.
"Eu...", ele começou, a voz rouca de sono, e então ele
simplesmente colocou os braços em volta de mim e me puxou
contra ele. "Achei que fosse um sonho." Eu podia senti-lo
tremendo um pouco e o segurei com toda a força que pude.
Sinistras palavras celtas como ban-sìth e tathasg169 flutuavam
em minha mente, sussurrando em meu ouvido. A lenda dizia que
um ban-sìth uiva no telhado quando alguém na casa está prestes
a morrer. Bem, não estava no maldito telhado, pelo menos,
porque não havia um...
"Seus sonhos geralmente são tão altos?" Eu perguntei,
estremecendo com uma nova ululação. Ele não tinha saído da
cama há muito tempo; sua pele estava fria, mas não gelada.
"Sim. Às vezes." Ele deu uma risadinha sem fôlego e me soltou.
Um trovão de pequenos pés veio pelo corredor, e eu
apressadamente me joguei de volta em seus braços quando a
porta se abriu e Jem entrou correndo; Fanny estava bem atrás
dele.

169
“ban-sith” – espírito feminimo que avisa, através de gritos terríveis, da morte próxima de alguém.
“tathasg” – fantasma.
306

"Vovô! Tem um lobo lá fora! Vai comer os porquinhos!"


Fanny engasgou e levou a mão à boca, os olhos arregalados de
horror. Não pensando na morte iminente dos leitões, mas ao
perceber que Jamie estava nu. Eu o estava protegendo tanto
quanto podia com minha camisola, mas não havia uma grande
quantidade de camisola e havia uma grande quantidade de
Jamie.
"Volte para a cama, querida", eu disse, o mais calmamente
possível. "Se for um lobo, o sr. Fraser cuidará dele."
"Móran taing dhut, Sassenach", sussurrou ele com o canto da
boca. Muito obrigado, ele disse.
"Jem, me jogue meu xale, sim?"
Jem, para quem um avô nu era uma visão rotineira, pegou a
manta do gancho perto da porta.
"Posso ir e ajudar a matar o lobo?", ele perguntou esperançoso.
"Eu poderia atirar nele. Eu sou melhor do que Pa, ele diz isso!"
"Não é um lobo", disse Jamie brevemente, envolvendo seus
quadris em um xadrez desbotado. "Vocês dois vão dizer a
Mandy que está tudo bem, antes que ela derrube o teto sobre
nossas orelhas."
O uivo tinha ficado mais alto, assim como o de Mandy, em
resposta histérica. Pela expressão em seu rosto, Fanny estava
pronta para se juntar a eles.
Bree apareceu na porta, parecendo o arcanjo Miguel, toda
esvoaçante em uma túnica branca e cabelos ferozes, com a
espada de Roger na mão. Fanny soltou um pequeno gemido ao
vê-la.
"O que você estava planejando fazer com isso, a nighean?"
Jamie perguntou, acenando para a espada enquanto se preparava
para puxar a camisa pela cabeça. "Eu não acho que você pode
307

atacar um fantasma."
Fanny olhou com os olhos arregalados de Bree para Jamie,
depois se sentou no chão com um baque surdo e enterrou a
cabeça nos joelhos.
Jem estava com os olhos arregalados também. "Um fantasma",
ele disse inexpressivamente. "Um lobo fantasma?"
Eu olhei inquieta para a janela. Jemmy tinha idade suficiente
para ter ouvido falar de lobisomens... e a palavra evocou uma
imagem desagradavelmente vívida em minha mente, enquanto
um gemido particularmente desolado e penetrante perfurava o
silêncio momentâneo.
"Eu disse a você, não é um lobo", disse Jamie, soando zangado
e resignado. "É um cachorro."
"Rollo?", Jemmy exclamou, em tons de horror. "Ele voltou?"
Fanny ergueu a cabeça com os olhos arregalados, Bree fez um
barulho involuntário, e eu, involuntariamente, agarrei o braço de
Jamie novamente.
"Jesus Cristo", disse ele, um tanto suavemente sob as
circunstâncias, e soltou meu aperto. "Eu duvido." Mas eu senti
os pelos crespos em seu braço eriçando-se com o pensamento, e
minha própria pele se arrepiou.
"Fiquem aqui", disse ele secamente, e se virou em direção à
porta. Abandonando Bree de forma insensível para lidar com os
problemas das crianças, eu o segui. Nenhum de nós fez uma
pausa para acender uma vela e a escada estava escura e fria como
um poço de verdade. O uivo estava abafado aqui, no entanto, o
que foi um leve alívio.
"Você tem certeza de que é um cachorro?", eu disse para as
costas de Jamie.
"Tenho", ele disse. Sua voz era firme, mas eu o ouvi engolir em
308

seco, e um fio de inquietação apertou minhas costas. Ele virou à


esquerda ao pé da escada e foi para a cozinha.
Soltei minha respiração quando o calor armazenado no grande
cômodo fluiu sobre mim. O fogo abafado170 da lareira brilhava
fracamente, mostrando as formas sólidas e confortavelmente
arredondadas do caldeirão e da chaleira, penduradas em seus
lugares, o brilho fraco das peças de peltre no aparador. A porta
estava trancada. Apesar da sensação confortável da cozinha,
meu couro cabeludo ondulou inquieto. O som estava mais alto
agora, subindo e descendo em um ritmo muito diferente da
minha própria respiração. Eu não tinha certeza, mas achei que
estava mais alto, mais perto do que antes.
Jamie enfiou um feixe de gravetos amarrados nas brasas da
lareira; ele o puxou em seguida, soprando cuidadosamente a
ponta irregular da tocha até que uma pequena chama se ergueu
da madeira brilhante. Sua carranca relaxou com o fogo e ele
sorriu brevemente para mim.
"Dinna fash, a nighean", disse ele. "Não é nada além de um
cachorro. De verdade."
Eu sorri de volta, mas ainda havia uma nota incerta em sua voz,
e silenciosamente peguei o rolo de abrir massas de pedra
enquanto o seguia até a porta. Ele ergueu a barra pesada e a
colocou no chão, então ergueu a trava sem hesitação e abriu a
porta. O frio úmido da noite na montanha soprou, agitando
minha camisola e me lembrando que eu deveria ter colocado
minha capa. Não havia tempo para isso, porém, e corajosamente
segui Jamie até a varanda de trás.
O barulho estava mais alto aqui, mas de repente parecia menos
agitado – ele se transformou em algo como o grito de uma

170
Abafar o fogo para a noite: prática antiga que consiste em manter uma camada de brasas vivas sob
uma camada de cinzas para que o fogo não se espalhe durante a noite e ainda assim possa ser reavivado
com rapidez pela manhã.
309

coruja. Eu examinei a encosta que se erguia atrás da casa, mas


não consegui ver nada na luz bruxuleante da tocha. Apesar de
estar tão exposta, me senti mais estável. Jamie podia ter suas
próprias dúvidas, mas ele não achava que este cachorro
misterioso era perigoso, ou ele não me deixaria ficar aqui com
ele.
Ele suspirou profundamente, colocou dois dedos na boca e deu
um assobio agudo. O barulho parou.
"Bem, venha aqui, então", disse ele, levantando um pouco a voz
e dando um segundo assobio, mais suave.
A floresta estava silenciosa e nada aconteceu por um minuto ou
mais. Então algo se moveu. Uma mancha se desprendeu dos pés
de tomate ao redor da latrina e veio lentamente em nossa
direção. Ouvi passos descendo as escadas distantes e o som
abafado de vozes, mas toda a minha atenção estava voltada para
o cachorro.
Porque era mesmo um cachorro. Tive um vislumbre de olhos
dourados brilhando no escuro, e então estava perto o suficiente
para ver o andar cambaleante de pernas longas e a curva sinuosa
da espinha dorsal e da cauda. "Um cão de caça?", eu disse.
"Sim, é." Jamie me entregou a tocha, se agachou e estendeu a
mão. O cachorro – era o que se chamava de bluetick hound171,
com muitas manchas azuladas na maior parte de sua pelagem –
pareceu como se mergulhasse um pouco quando chegou até ele,
de cabeça baixa.
"Está tudo bem, a nighean", disse ele ao animal, sua voz baixa
e rouca.
"Você conhece essa cachorra?"

171
Existe a raça Bluetick Coonhound. Uma raça de cães de caça originária dos Estados Unidos, de porte
grande, forte e ágil, provavelmente descendente do Foxhound inglês ou de Hounds franceses.. Apresenta
pelo curto, com grandes manchas ao longo do corpo. Possuí um ótimo faro, é muito inteligente e apegado
ao tutor.
310

"Sim", disse ele, e pensei que havia uma nota de pesar em sua
voz. Ele acariciou sua cabeça, no entanto, e ela se aproximou,
abanando o rabo timidamente.
"Ela está morrendo de fome, coitadinha", eu disse. As costelas
da cachorra estavam visíveis até mesmo à luz de tochas, sua
barriga apertada como os cordões da bolsa de um avarento.
"Sobrou um pouco de carne, Sassenach?"
"Tenho certeza que sim." Os outros estavam na cozinha, mas
pararam de falar, ouvindo nossas vozes do lado de fora. Eles
estariam aqui em um momento.
"Jamie", eu disse, e coloquei a mão em suas costas nuas172.
"Onde você viu essa cachorra antes?"
Eu o senti engolir.
"Eu a deixei uivando no túmulo de seu mestre", disse ele
calmamente. "Não mencione isso para os bairns, sim?"

-.-.-

A CACHORRA PARECEU visivelmente surpresa ao ver tantas


pessoas preenchendo a varanda dos fundos e se virou como se
fosse fugir de volta para os arbustos. Mas ela não conseguia
abandonar o cheiro de comida e continuou girando em círculos,
com pequenos abanões de desculpas de sua cauda longa e
emplumada.
Por fim, Jamie conseguiu conter a confusão e fazer todos irem
para a cozinha enquanto ele atraía a cachorra para perto com
pequenos pedaços de pão de milho embebido em gordura de
bacon. Eu fiquei ali, pairando atrás dele com a tocha. A

172
Bem, ele tinha enfiado uma camisa pela cabeça, talvez, na correria, ela tenha saído do lugar.
311

cachorrinha veio buscar a comida de bom grado, abaixando a


cabeça submissamente, e quando Jamie estendeu a mão para
coçar atrás das suas orelhas, ela deixou, acelerando o ritmo de
seu abanamento.
"Essa é uma boa moça", ele murmurou para ela e deu-lhe outro
pedaço de pão. Apesar de sua fome, ela o pegou delicadamente
de sua mão, sem pressa.
"Ela não tem medo de você", eu disse baixinho. Eu não queria
perguntar a ele; nunca iria perguntar a ele. Mas isso não significa
que eu não me perguntaria.
"Não", ele disse, também muito suavemente. "Não, ela não tem.
Ela só me viu enterrá-lo."
"Você não está... incomodado por ela? Ela ter vindo aqui, quero
dizer."
Claramente ele havia sido perturbado pelo uivo; quem não se
perturbaria? Mas eu não poderia dizer isso agora; o rosto dele
estava calmo na luz bruxuleante da tocha.
"Não", disse ele, e olhou por cima do ombro para se certificar de
que as crianças estavam fora do alcance da voz. "Eu estava,
quando a vi – mas..." Sua mão gordurosa fez uma pausa,
descansando por um momento no pelo áspero da cachorra. "Eu
acho que talvez seja uma absolvição – que ela tenha vindo até
mim."
-.-.-

DENTRO DE CASA, a cachorra comeu vorazmente, mas com


uma delicadeza estranha, mordiscando os pedaços de pão e
carne com pequenos movimentos rápidos de cabeça. Não
parecia muito certo, de alguma forma, e comecei a observar mais
de perto. As crianças estavam em transe, revezando-se para
312

segurar pedaços de comida nas mãos para ela pegar, mas vi


Jamie franzir a testa ligeiramente, observando.
"Há algo errado com a boca dela, eu acho", disse ele depois de
um momento. "Vamos dar uma olhada?"
"Oh, deixe-a terminar de comer, por favor, sr. Fraser", disse
Fanny, erguendo os olhos para ele, séria. "Ela está com tanta
fome!"
"Sim, ela está", ele disse, agachando-se ao lado deles. Ele passou
a mão suavemente pela espinha dorsal nodosa da cachorra e sua
cauda moveu-se brevemente, mas toda a sua atenção estava
focada na comida. "Por que ela está morrendo de fome, eu me
pergunto?"
"Por quê?" Eu perguntei. Eu olhei para ele, cuidadosa com o que
eu diria. "Talvez ela tenha perdido seu mestre."
"Sim, mas ela é um cão de caça. Ela pode caçar sozinha – e é
verão; há comida em todos os lugares. Tendo mestre ou não, ela
não deveria estar neste estado. "
Curiosa, ajoelhei-me e olhei de perto. Ele estava certo; ela estava
engolindo pequenos pedaços de comida, simplesmente
engolindo, com pouca ou nenhuma mastigação. Isso pode ser
seu hábito pessoal, ou talvez qualquer cachorro faria isso com
pequenos pedaços de comida como este, mas... havia algo
errado.
Algo não exatamente um estremecimento, mas...
"Você está certo", eu disse. "Deixe-a terminar e eu darei uma
olhada."
A cachorrinha limpou até a última migalha, farejou avidamente
por mais – embora agora seu estômago estivesse visivelmente
distendido – então bebeu água e, após um olhar para o grupo
reunido, cheirou a perna de Jamie e se deitou ao lado dele.
313

"Bith sàmhach, a choin173...", ele disse, passando uma mão de


leve por suas costas compridas. Sua cauda balançou suavemente
e ela soltou um grande suspiro, parecendo derreter nas tábuas do
assoalho. "Bem, então", disse ele, no mesmo tom suave, "venha
e deixe-me ver sua boca, mo nighean gorm174." A cachorra
pareceu surpresa, mas não resistiu quando ele a rolou de lado.
"Ela é azul, não é?", Fanny se aproximou, fascinada, e estendeu
a mão hesitantemente, embora não tenha tocado no animal.
"Sim, eles chamam esse tipo de cão bluetick – eles são da cor do
tecido de cobertura dos colchões. Deixe-a cheirar seus dedos,
moça, para que ela saiba quem você é. Então, mova-se devagar,
mas ela parece uma cadela amigável."
Fanny piscou ao ouvir a palavra e olhou para Jamie.
"Você nunca teve um cachorro, Fanny?", Bree perguntou, vendo
esta pequena interação secundária.
"Não", Fanny respondeu, incerta. "Quer dizer... eu me lembro
de um cachorro. De quando eu era muito pequena. Ele...ele...eu
me lembro de acariciá-lo." Sua mão tocou as costas do cachorro
e a cauda da cachorra se mexeu. "Estava no navio. Eu me sentei
sob a grande vela quando o tempo estava bom e ele veio e então,
sentou-se comigo e me deixou acariciá-lo."
Bree trocou um rápido olhar com Roger, que estava no banco,
segurando Amanda, meio adormecida.
"O navio", disse ela a Fanny, sua voz leve e casual. "Você estava
em um navio. Antes de você vir para a Filadélfia?"
Fanny assentiu, prestando atenção apenas pela metade. Ela
estava me observando enquanto eu corria um dedo ao longo do
lábio interno preto, afastando-o dos dentes da cachorra. As
gengivas estavam boas, pelo que eu podia ver à luz do fogo –
173
Fique calma, ó cachorra. Em gaélico.
174
Minha menina azul. Em gaélico.
314

não sangrando, talvez um pouco pálidas, talvez não. Era comum


encontrar parasitas em cães, o que podia causar gengivas pálidas
devido à perda de sangue interno, mas eu não sabia de nenhuma
infecção parasitária que ocorresse na boca...
Jem havia se sentado no chão conosco e coçava a cachorra atrás
das orelhas com mão experiente.
"Assim, Fanny", disse ele. "Os cães gostam de ter as orelhas
coçadas." A cadela suspirou de felicidade e relaxou um pouco,
deixando-me abrir sua boca. Os dentes estavam bons, muito
limpos.
"Por que as pessoas dizem limpo como o dente de um cão de
caça?", eu perguntei, sentindo os ângulos de sua mandíbula, as
articulações temporomandibulares – sem sensibilidade aparente
– e os gânglios linfáticos no pescoço – não protuberantes, mas
havia algum inchaço na lateral da mandíbula e ela estremeceu e
gemeu ao meu toque. "Os dentes dela estão limpos, mas os cães
de caça realmente têm dentes mais limpos do que os outros
cães?”
"Oh, talvez." Jamie se inclinou para frente para olhar a boca da
cachorra. "Ela é uma jovem cadela – talvez não mais de um ano,
por aí. Os cães de caça que comem suas presas geralmente têm
dentes limpos, por causa dos ossos."
"Realmente." Eu estava apenas ouvindo pela metade. Virando a
cabeça da cachorra um pouco mais em direção ao fogo, eu vi a
sombra de algo. "Jamie, você pode trazer uma vela ou algo para
iluminar mais perto daqui? Acho que ela tem algo preso entre os
dentes."
"Seus pais estavam com você, Fanny?" A voz de Roger estava
baixa, quase inaudível acima do crepitar do fogo. "No navio?"
A mão de Fanny parou por um momento, descansando na cabeça
da cachorra, mas depois voltou a coçar, mais lentamente.
315

"Acho que sim", disse ela, hesitante.


A chama da vela oscilou quando Jamie olhou para Fanny, então
se estabilizou. "Sim, aí está!" Era um pequeno pedaço de osso,
firmemente preso entre os pré-molares inferiores da
cachorrinha. Era evidentemente afiado; a gengiva havia sido
cortada e estava inchada e com aparência de esponja ao redor do
local do ferimento. Pressionei suavemente e a pobrezinha
choramingou e tentei puxar a cabeça dela.
"Jemmy, corra para o consultório e traga-me a caixinha de
primeiros socorros – você sabe qual?"
"Claro, vovó!"
Ele pulou e saiu para a escuridão do corredor da frente sem
nenhum temor.
"Ela ficará bem, shenhora... sra. Fraser?" Fanny se inclinou para
frente ansiosamente, tentando ver.
"Eu acho que sim", eu disse, tentando mexer a lasca de osso com
minha unha do polegar. A cachorra não gostou, mas não rosnou
nem tentou morder. "Ela tem um pedaço de osso preso entre os
dentes e fez sua boca doer, mas se não fez um abscesso sob o
dente ... Você pode liberá-la por um minuto, Jamie. Não consigo
tirar até que Jem volte com meu fórceps. "
Libertada, a cadela saltou, sacudiu-se vigorosamente e saiu em
disparada, correndo pelo corredor atrás de Jem. Fanny pôs-se de
joelhos, mas antes que pudesse se levantar, a cachorra voltou
rugindo, as patas trovejando no chão de madeira. Ela soltou um
latido animado ao nos ver, correu ao redor da sala em círculos e
finalmente saltou sobre Fanny, derrubando-a de lado, então
ficou em cima dela, ofegando feliz e abanando.
"Sai fora!" Fanny disse, rindo enquanto se contorcia debaixo da
cachorra. "Você é uma coisa tola." Eu sorri e, olhando para
316

Jamie, o vi sorrindo também. Fanny ria com os meninos, mas


raramente de outra forma.
"Aqui, vovó!" Jem largou a caixa de primeiros socorros no meu
colo, depois ajoelhou-se e começou a boxear com a cachorra,
dando tapas em um lado do rosto dela e depois no outro. A
cadelinha ofegou feliz e fez pequenas bufadas, lançando a
cabeça nas mãos de Jem.
"Ela vai beliscar você, Jem", disse Jamie, divertido. "Ela é mais
rápida do que você."
Ela era, e ela o pegou, embora não com força. Jem gritou e
depois deu uma risadinha. "Coisa Tola", disse ele. "Vamos
chamá-la de Tola?"
"Não", disse Fanny, também rindo. "Esse é um nome tolo."
"Essa pobre cadela nunca terá sua boca cuidada se vocês não
pararem de mexer com ela", eu disse severamente – pois Brianna
e Jamie estavam rindo também. Roger sorria, mas não ria, não
queria acordar Mandy, agora profundamente adormecida em seu
ombro.
Bree acalmou o tumulto incipiente indo até o armário guarda-
comida e extraindo metade de uma grande torta de maçã seca,
que distribuiu a todos, incluindo um pedacinho de crosta para a
cachorra, que a devorou feliz.
"Tudo bem." Engoli a última dentada macia e com cheiro de
canela da minha própria fatia, limpei as migalhas dos meus
dedos – a cachorra prontamente as farejou do chão – coloquei
em fila minha pequena pinça-farpa, meu menor tenáculo, um
quadrado grosso de gaze, e – depois de pensar um momento – a
garrafa de água com mel, o antibacteriano mais suave que eu
tinha. "Vamos então."
Assim que imobilizamos a cachorra de lado – nada fácil; ela se
317

contorcia como uma enguia, mas Jem se jogou em cima de suas


costas e Jamie a pressionou com uma das mãos em seu ombro e
a outra em seu pescoço – não demorou mais do que alguns
minutos para soltar o osso, com Fanny segurando a vela com
cuidado para não pingar cera em mim ou no animal.
"Eis aqui!" Eu a segurei com a pinça, para aplausos gerais,
depois joguei no fogo. "Agora só um pouco de limpeza..."
Pressionei a gaze sobre a gengiva, com firmeza. A cachorra
ganiu um pouco, mas não lutou. Uma pequena quantidade de
sangue da gengiva lacerada e o que podia ser um traço de pus –
difícil dizer, à luz de velas, mas levei a gaze ao nariz e não
consegui detectar nenhum cheiro de putrefação. Restos de carne,
torta de maçã e hálito de cachorro, mas nenhum cheiro
perceptível de infecção.
Assim que a lasca óssea foi eliminada, o interesse por minhas
atividades diminuiu e a conversa voltou a se concentrar em
nomes dos cachorros. Lulu, Sassafrás, Ginny, Monstro175 (este
veio de Bree e eu olhei para cima e encontrei seus olhos com um
sorriso, visualizando a baleia dentuça da Disneylândia tão
claramente quanto ela), "Seasaidh ..."176
Jamie não participou da controvérsia sobre nomes, mas ele - pela
primeira vez - acariciou a cabeça da cachorra suavemente. Ele
já sabia qual era o nome dela? Eu me perguntei. Enxaguei bem
a gengiva com água com mel – a cachorra lambeu e engoliu,
mesmo deitada – mas a maior parte da minha atenção estava em
Jamie.
"Eu a deixei uivando no túmulo de seu mestre." Algo fraco
demais para ser um arrepio passou por mim e senti os pelos de
meus antebraços se arrepiarem, remexendo-se com a corrente de
175
“Monstro” é a nome da baleia que tentou comer Pinóquio e Geppeto no filme de animação da Disney
de 1940.
176
Nome feminino em gaélico escocês, significa “Deus é gracioso”. É a versão em gaélico de ‘Jessé’
nome esse de origem grega.
318

ar quente do fogo. Eu estava moralmente certa de que Jamie


colocara o dono da cachorra em seu túmulo – e que eu era a
causa relutante disso.
Seu rosto estava calmo agora, sombreado pelo fogo. O que quer
que ele esteja pensando, nada apareceu. E sua mão era gentil no
pelo manchado da cachorra. "Absolvição", ele disse.
"Qual era o nome do seu cachorro, Fanny?", Jem perguntou,
atrás de mim. "O que você tinha no navio."
"Ssspotty", disse ela, fazendo um esforço com o "s." Passaram-
se apenas alguns meses desde que consertei sua língua presa, e
ela ainda lutava com alguns sons. "Ele tinha uma mancha
branca. Em seu nariz."
"Nós poderíamos chamar esta de Spotty, também", Jem ofereceu
generosamente. "Se você quiser. Ela tem muitas manchas.
Montes de pontos", ele repetiu, rindo da rima.
"Agora você está sendo uma coisa tola", Fanny disse a ele, rindo.
"Talvez você deva esperar e ver se seu avô pretende mantê-la,
Jem", Roger disse. "Antes de você dar um nome a ela."
Obviamente, a possibilidade de não ficarmos com a cachorra
não passou pela cabeça das crianças, e elas ficaram horrorizadas
com a ideia.
"Oh, por favor, sr. Fraser!", Fanny disse, apelando ansiosa. "Eu
vou alimentá-la, eu prometo que vou!"
"E eu vou tirar os carrapatos da pele dela, vovô!", Jemmy
interveio. "Por favor, por favor, nós podemos ficar com ela?"
Os olhos de Jamie encontraram os meus e sua boca se curvou
um pouco para o lado – em resignação, pensei, em vez de humor.
"Ela veio até mim pedindo ajuda", ele me disse. "Não posso
mandá-la embora."
319

"Então, talvez você deva nomeá-la, Pa", Bree acrescentou,


reprimindo as exibições de alegria aliviada de Jem e Fanny.
"Como você a chamaria?"
"Bluebell177", disse ele sem hesitação, me surpreendendo. "É um
bom nome escocês – e combina com ela, certo?"
"Buu — Bulubell." Fanny acariciou as costas da cachorra, e a
longa cauda emplumada moveu-se preguiçosamente de um lado
para o outro. "Posso chamá-la de Bluey? Como diminutivo?"
Jamie riu então e se pôs de pé lentamente, os joelhos estalando
por ficar ajoelhado nas tábuas por tanto tempo.
"Chame-a de qualquer coisa que ela responder, moça. Mas, por
enquanto, ela precisa de sua cama, e eu também."
As crianças persuadiram a recém-batizada Bluebell a vir com
elas, oferecendo mais pedaços de massa de torta, e os adultos
começaram a se reunir, se acomodando para ir dormir. Houve
um silêncio momentâneo enquanto Bree tirava Mandy de Roger,
e quando me ajoelhei para abafar o fogo apressadamente aceso
novamente, ouvi as vozes de Jem e Fanny no patamar da escada.
"O que aconteceu com o seu cachorro, Spotty?", Jem perguntou,
a voz da pergunta distante, mas clara. A resposta de Fanny foi
tão clara quanto, e vi a cabeça de Jamie virar bruscamente em
direção à porta aberta quando ele a ouviu.
"Os homens maus o jogaram no mar", disse ela. "Bluey pode
dormir comigo esta noite? Você pode ficar com ela amanhã. "

177
Campanula rotundifolia, bluebell escocês ou bluebell da Escócia, é uma espécie de planta com flor
perene, é encontrada em todas as regiões temperadas do hemisfério norte. Na Escócia, muitas vezes é
conhecido simplesmente como bluebell.
320

17

LEITURA À LUZ DO FOGO

A ESTRUTURA DO SEGUNDO ANDAR estava pronta. Ainda


demoraria algum tempo antes que fosse completamente vedada e
um telhado colocado, mas suas noites frescas de dormir sob as
estrelas nuas com Claire estavam contadas. Jamie sentiu uma leve
pontada de pesar ao pensar nisso, mas isso foi imediatamente
eclipsado pela visão aconchegante deles dois dormindo em um
colchão de penas diante de uma lareira quente, dali a três meses,
as venezianas fechadas contra o vento uivante e a neve se
acumulando lá fora.
Ele afundou lentamente na grande cadeira perto do fogo,
apreciando a dor enquanto suas juntas relaxavam, tanto a mente
quanto os joelhos sabendo que a felicidade do descanso estava
próxima. A casa toda já estava na cama, mas Claire tinha saído
para um parto, perto do fundo da encosta. Ele sentia falta dela,
mas era uma dor agradável, como o estiramento de sua coluna
vertebral. Ela estaria de volta, provavelmente amanhã. Por
enquanto, ele tinha uma boa lareira aquecendo seus pés, uma taça
de vinho tinto suave e livros à mão. Ele tirou os óculos do bolso,
desdobrou-os e colocou-os sobre o nariz.
A biblioteca inteira da casa estava em duas pilhas modestas na
mesa ao lado de sua taça de vinho. Uma pequena Bíblia
encadernada em tecido verde, muito desgastada. Ele a tocou
suavemente, como fazia todas as vezes que a via; era uma velha
companheira – uma amiga que o tinha visto em muitos momentos
difíceis.
Havia ainda uma cópia sem capa de Os Segredos de Lady
321

Roxana178... é melhor ele levar esse para o quarto; Jem não tinha
mostrado nenhum interesse nele ainda, mas o garoto certamente
poderia ler bem o suficiente para descobrir do que se tratava se
ele o fizesse.
Uma cópia não ruim da tradução de A Odisseia179, do sr. Pope –
a talvez ele leia um pouco deste livro com Jem; ele
provavelmente acharia os navios e monstros interessantes, e seria
uma desculpa para enfiar um pouco de latim180 na cabeça do rapaz
enquanto eles estavam fazendo isso. Joseph Andrews181... um
desperdício de papel, esse; ele talvez trocasse com Hugh Grant,
que gostava de bobagens. Manon Lescaut182, em francês e com
uma bela encadernação em marroquim. Ele franziu a testa
brevemente para este; ele não o abriu. John Grey tinha enviado
para ele, antes...
Ele grunhiu irritado e, por impulso, pegou o livro no final da pilha
– o grande laranja brilhante Green Eggs and Ham de Mandy. A
cor, o título e a besta cômica na capa o fizeram sorrir, e alguns
minutos com Sam-I-Am acalmaram sua raiva.
O barulho de passos descendo as escadas o fez sentar-se, mas era
apenas Bluebell, que caminhou até ele, abanando o rabo

178
No original, Roxana, The Fortunate Mistress. Livro de Daniel Defoe, de 1724, com um imenso título
(como costumam ser os romances desse autor): The Fortunate Mistress: Or, A History of the Life and
Vast Variety of Fortunes of Mademoiselle de Beleau, Afterwards Called the Countess de Wintselsheim,
in Germany, Being the Person known by the Name of the Lady Roxana, in the Time of King Charles II.
179
A Odisseia é um dos dois principais poemas épicos da Grécia Antiga, atribuídos a Homero. É uma
sequência da Ilíada, outra obra creditada ao autor, e é um poema fundamental na literatura ocidental.
Narra as peripécias de Ulisses na sua volta para casa, após a guerra de Troia. Alexander Pope (1688 –
1744) foi um dos maiores poetas britânicos do século XVIIIe é famoso por sua tradução do poema épico
de Homero.
180
A Odisseia foi escrita em grego e traduzida por Alexander Pope para o inglês. Será que Jamie vai
tentar ensinar grego e latim ao mesmo tempo para Jem?
181
A História das Aventuras de Joseph Andrews e de seu amigo, o sr. Abraham Adams. Foi o primeiro
romance completo do autor inglês Henry Fielding a ser publicado e está entre os primeiros romances na
língua inglesa . Aparecendo em 1742 e definido por Fielding como um "poema épico cômico em prosa",
ele conta as aventuras de um lacaio bem-humorado na estrada de volta de Londres com seu amigo e
mentor, o pároco distraído Abraham Adams.
182
Histoire du chevalier des Grieux et de Manon Lescaut, mais comunente conhecido como Manon
Lescaut, é um romance do Abade Prévost (1697-1763), publicado pela primeira vez em Paris em 1731.
Considerado escandaloso na época, foi imediatamente banido. O romance conta a história de Chevalier
des Grieux e sua amante, a cortesã amoral Manon Lescaut.
322

suavemente, cheirou-o caso ele tivesse alguma comida consigo,


desistiu e foi ficar ao lado a porta dos fundos de uma maneira
significativa.
"Sim, a nighean", disse ele, abrindo a porta para ela. "Cuidado
com as painters."
Ela desapareceu na noite com um golpe de seu rabo, mas ele ficou
parado por um momento, olhando e ouvindo a escuridão.
Tudo estava quieto, exceto pelas árvores conversando entre si, e
ele saiu e ficou olhando para as estrelas, deixando de lado o
aborrecimento persistente despertado por Manon Lescaut e
permitindo que a paz viesse sobre ele. Respirou fundo o ar fresco
de pinho e o exalou lentamente.
"Sim, eu o perdoo, seu maldito pequenino sodomita", disse ele a
John Grey, e sentiu o alívio da alma que estava procurando
inconscientemente.
Um farfalhar nos arbustos perto da latrina anunciou o retorno da
cachorra. Ele esperou que ela terminasse de cheirar
diligentemente e abriu a porta para ela. Ela passou por ele com
um breve abanar do rabo e subiu as escadas com cuidado.
Sentiu-se mais acomodado e caminhou um pouco à luz das
estrelas até o cedro vermelho que crescia perto do poço, para
beber água e arrancar um galho. Ele gostava do cheiro das frutas
vermelhas – Claire disse a ele que elas eram usadas para dar sabor
ao gim, do qual ele não gostava, mas o cheiro era bom.
De novo lá dentro, a porta trancada e o fogo aceso, ele voltou aos
livros, o galho de cedro levando para ele um leve cheiro de
frescor que combinava bem com o vinho. Ele pegou um dos
pequenos livros grossos sobre os hobbits que Bree trouxera para
ele, mas mesmo com seus óculos, a impressão era densa o
suficiente para deixá-lo cansado de olhar para ela, e ele o largou
novamente, os olhos procurando algo mais na pilha.
323

Não Manon, ainda não. Seu perdão foi sincero, mas visivelmente
rancoroso, e ele sabia muito bem que teria de ser repetido
algumas vezes antes de falar novamente com John Grey.
Sem dúvida foi a ideia de um perdão relutante que o fez pegar o
livro que Brianna trouxera para si mesma – o livro de Frank
Randall. A alma de um rebelde.
"Mmphm", disse ele, e tirou-o da pilha, virando-o nas mãos.
Parecia estranho; um bom peso e tamanho, encadernação muito
boa, mas a capa de papel foi impressa com um fundo tartan muito
peculiar em rosa e verde, no qual havia um quadrado verde-claro
com uma pintura decente de uma espada escocesa de folha larga
de cabo com guarda do punho de cesto e um pedaço da lâmina.
Abaixo desse quadrado, o subtítulo, As Raízes Escocesas da
Revolução Americana. O que parecia estranho, porém, era o fato
de que estava embrulhado em uma folha transparente de algo que
não era papel, escorregadio sob seu toque. Plástico, Brianna disse
a ele quando ele perguntou. Ele conhecia a palavra, tudo bem,
mas não com esse significado183. Ele virou o livro para olhar a
fotografia – já estava meio se acostumando com as fotos, mas
ainda assim demorou um pouco para ver o homem olhando para
ele daquele jeito.
Ele pressionou o polegar com firmeza sobre o nariz de Frank
Randall e o ergueu. Ele inclinou o livro de um lado para o outro,
deixando a luz do fogo iluminar a capa de plástico. Ele tinha feito
uma mancha muito tênue, não visível se você estivesse olhando
diretamente para ela.
De repente, envergonhado dessa infantilidade, ele apagou a
marca com a manga da camisa e colocou o livro sobre os joelhos.
A fotografia olhou calmamente para ele através dos óculos de aro
escuro.

183
Plástico é uma palavra de origem grega (plastikós), que quer dizer algo moldável.
324

Não era apenas o escritor que o perturbava. Ouvir fragmentos do


que iria acontecer, ditos por Claire, Bree e Roger Mac,
frequentemente o alarmava, mas a presença física deles era
reconfortante; quaisquer que fossem os eventos horríveis que
acontecessem, muitas pessoas sobreviveram a eles. Ainda assim,
ele sabia muito bem que, embora nenhum membro de sua família
jamais mentisse para ele, eles costumavam moderar o que lhe
diziam. Frank Randall era outra coisa: um historiador, cujo relato
do que iria acontecer nos próximos anos seria...
Bem, ele não sabia exatamente o que poderia ser. Assustador,
talvez.
Perturbador, talvez. Talvez reconfortante... em alguns pontos.
Frank Randall não estava sorrindo, mas parecia bastante
agradável. Linhas cortavam seu rosto profundamente. Bem, o
homem havia passado por uma guerra.
"Para não falar de ser casado com Claire", disse ele em voz alta,
e ficou surpreso com o som de sua voz. Ele pegou sua taça de
vinho e deu um gole, segurando-a por um momento, mas então
engoliu e virou o livro.
"Bem, não sei se o perdoo ou não, inglês", murmurou ele, abrindo
a capa e respirando fundo o aroma de cedro. "Ou você a mim,
mas vamos ver o que você tem a me dizer, então."
-.-.-
ELE ACORDOU na manhã seguinte em uma cama vazia,
suspirou, espreguiçou-se e rolou para fora dela. Ele pensou que
sonharia com os eventos descritos no livro de Randall, mas não
sonhou. Ele sonhou, de forma bastante agradável, com os navios
de Aquiles184 e gostaria de contar a Claire sobre isso. Ele sacudiu

Aquiles é um herói grego da guerra de Troia. Sua história é contada na Ilíada – da qual a Odisseia é
184

uma sequência. Essa é a ligação para os sonhos e os livros.


325

os resquícios de sono e foi se lavar, fazendo uma anotação mental


de algumas das coisas que tinha sonhado para não as esquecer.
Com sorte, ela estaria em casa antes do jantar.
"Sr. Fraser?" Uma batida delicada na porta, e a voz de Frances.
"Sua filha disse que o café da manhã está pronto."
"Sim?" Ele não estava sentindo cheiro de nada de natureza
saborosa, mas "pronto" era um termo relativo. "Estou indo, moça.
Taing."
"Tang?", ela disse, parecendo assustada. Ele sorriu, colocou uma
camisa limpa pela cabeça e abriu a porta. Ela estava parada ali
como uma margarida do campo, delicada, mas ereta em seu caule,
e ele se curvou para ela.
"Taing", ele disse, pronunciando o mais cuidadosamente que
pôde. "Significa obrigado em gaélico."
"Tem certeza?", ela disse, franzindo a testa ligeiramente.
"Eu tenho", ele assegurou a ela. "Móran taing significa muito
obrigado, caso você queira algo mais forte."
Um leve rubor subiu em suas bochechas.
"Me desculpe, eu realmente não quis dizer que você... certo.
Claro que você sabe. Germain me disse que obrigado é tabag leet.
Isso está errado? Ele podia estar brincando comigo, mas eu não
pensei assim. "
"Tapadh leat", disse ele, contendo a vontade de rir. "Não, isso
mesmo; é apenas que Móran taing é... casual, pode-se dizer. A
outra é quando você quer ser formal. Se alguém salvou sua vida
ou pagou suas dívidas, você diria Tapadh leat. Se ele lhe passou
o pão à mesa, você diria, Taing, sim? "
"Sim", ela disse automaticamente, e enrubesceu ainda mais
quando ele sorriu. Ela sorriu de volta, no entanto, e ele a seguiu
escada abaixo, pensando em como ela era estranhamente
326

envolvente; ela era reticente, mas nem um pouco tímida. Ele


supôs que não se podia ser tímida, se criada com a expectativa de
se tornar uma prostituta.
Agora ele podia sentir o cheiro de mingau – ligeiramente
chamuscado. Ele torceu o nariz, ajustou sua expressão para uma
agradavelmente estoica e foi até a cozinha, olhando as paredes
inacabadas de seu escritório e a sala da frente mal começada. Ele
poderia dedicar uma hora ao seu escritório esta tarde, se ele
voltasse a tempo de...
"Madainn mhath185", disse ele, parando no espaço aberto onde a
porta estaria – na próxima semana, talvez – para dar bom dia aos
membros de sua família reunidos.
"Vovô!" Mandy saltou de seu banco, jogando sua tigela de
mingau na jarra de leite. Brianna, mal se sentando, avançou e
agarrou-a bem a tempo.
Ele pegou Mandy e a ergueu em seus braços, sorrindo para Jem,
Fanny, Germain e Brianna.
"Minha mãe queimou o mingau", Jem o informou. "Mas tem mel,
então você não percebe muito."
"Vai ficar tudo bem", disse ele, sentando-se e colocando Mandy
em seus joelhos.
"O mel não é das abelhas de Claire, não é? Eles ainda precisam
se estabelecer um pouco, aye?"
"Sim", disse Brianna, e empurrou uma tigela em sua direção,
seguida por uma jarra de leite e um pote de mel. Ela mesma estava
corada, sem dúvida por causa do calor do fogo.
"Isso é parte do salário de mamãe por ter ajeitado a perna
quebrada de Hector MacDonald. Desculpe pelo mingau; eu
pensei que poderia chegar ao galpão de defumação e voltar antes

185
Bom dia, em gaélico.
327

de ele precisar ser mexido novamente." Ela acenou com a cabeça


em direção à lareira, onde fatias de bacon estavam apenas
começando a crepitar na frigideira de ferro.
"Onde está o seu homem, moça?", perguntou ele, ignorando com
tato o pedido de desculpas dela e servindo-se de um modesto fio
de mel.
"Uma das crianças MacKinnon veio buscá-lo logo após o
amanhecer. Você estava cansado", acrescentou ela, vendo-o
franzir a testa ao pensar que não tinha ouvido o visitante. "E não
é de admirar. Não se preocupe", disse ela rapidamente, "não foi
realmente uma emergência; a velha vovó MacKinnon acordou
morrendo de novo – é a terceira vez neste mês – e queria um
ministro. Oh, o bacon!"
Ela saltou, mas Fanny já tinha se movido para virar as fatias
escaldantes e o wame de Jamie se contraiu agradavelmente com
a fumaça saborosa.
"Obrigado, Fanny." Bree sentou-se novamente e pegou a colher
novamente.
"Sr. Fraser?", Fanny disse, afastando a fumaça dos olhos.
"Sim, moça?"
"Como se diz De nada em gaélico? "
328

18

TROVÃO DISTANTE

EU ENCONTREI UM LOCAL RASO em meio ao cascalho do


riacho e rapidamente tirei meu avental e vestido, tentando não
respirar. Nem membros gangrenados ou cadáveres mortos há
muito tempo, nada cheira pior do que merda de porco. Nada.
Ainda prendendo a respiração, amassei as roupas manchadas em
uma bola e a joguei na parte rasa. Tirei os sapatos e entrei no
riacho, segurando algumas pedras grandes que havia agarrado. O
vestido já havia começado a se desembrulhar, espalhando faixas
de índigo desbotadas sobre o cascalho como a sombra de uma
arraia manta ao passar. Larguei uma pedra sobre ela e, estendendo
o avental de lona com o pé descalço, também coloquei um peso
nele.
A crise administrada no momento, eu fui um pouco mais longe e
afundei na água fria corrente até as panturrilhas, respirando
agradecida.
A criação de animais não era realmente minha especialidade – a
menos que você quisesse contar Jamie e as crianças – mas a
necessidade faz de todos nós veterinários. Eu estava visitando a
cabana do jovem Elmo Cairns para verificar o progresso de seu
braço quebrado quando sua porca também jovem e imensamente
grávida começou a mostrar sinais de dificuldade com seu
primeiro parto. Isso foi perceptível, já que a porca estava
esparramada, seus enormes flancos subindo esporadicamente, no
chão aos pés de Elmo, ela sendo – como ele explicou – "uma
espécie de animal de estimação".
Elmo estando incapacitado por seu braço quebrado, eu fiz o
329

necessário, e embora o resultado fosse gratificante – uma taxa de


sobrevivência de cem por cento e uma ninhada saudável de oito,
seis delas fêmeas (uma delas minha, Elmo me garantiu, "se a
porca não comer tudo") – não pensei que poderia ir para casa com
os subprodutos.
Era um dia quente, com aquela imobilidade pesada no ar que
pressagia trovões, e ficar na água fria com o ar frio subindo pela
minha roupa de baixo foi agradável. Eu decidi que remover meu
espartilho suado faria com que fosse ainda mais agradável, e
estava prestes a tirá-los pela cabeça quando ouvi uma tosse alta
na margem do riacho atrás de mim.
"Jesus H. Roosevelt Cristo!" Eu disse, puxando o espartilho e
girando. "Quem diabos são vocês?"
Eram dois: cavalheiros, por suas roupas um tanto inadequadas.
Não que eu estivesse em posição de fingir que usava um traje
adequado, mas eles tinham sementes de grama e carrapichos
presos nas meias de seda, lama ofuscando as fivelas dos sapatos
e manchas de resina de pinheiro nos tecidos de qualidade de suas
roupas – e um deles tinha um grande rasgo em seu casaco que
mostrava o forro de seda amarela.
Os dois me olharam da cabeça (desgrenhada) aos pés (descalços),
suas bocas ligeiramente abertas e seus olhares demorando-se nos
meus seios, que estavam bastante à mostra, a musselina úmida da
minha combinação grudada neles e o ar frio emanando da água
endureceu meus mamilos. Inapropriado, é claro... eu rapidamente
descolei a musselina da minha pele e a deixei solta, devolvendo-
lhes o olhar.
O que estava com o casaco rasgado se recuperou primeiro e
acenou com a cabeça para mim, com um interesse cauteloso nos
olhos.
"Meu nome é sr. Adam Granger e este", acenando para seu
330

companheiro mais jovem, "é meu sobrinho, sr. Nicodemus


Partland. Você pode nos dizer o caminho para a casa do capitão
Cunningham, minha boa mulher? "
"Certamente", eu disse, resistindo ao impulso de tentar arrumar
meus cabelos. "É por ali", apontei para o nordeste, "mas são uns
bons cinco quilômetros. Temo que vocês serão pegos pela
tempestade."
Eles concordaram. Uma lufada de vento agitou as folhas dos
salgueiros ao longo do riacho, e uma ebulição de nuvens cinza-
escuras estava se erguendo no oeste. Dava para ver uma
tempestade na montanha vindo de uma boa distância, mas elas se
movem rapidamente.
Movida em parte pelas exigências de hospitalidade e em grande
parte pela curiosidade, naveguei até a margem, pegando minhas
roupas molhadas.
"É melhor vocês virem até a casa", eu disse ao sr. Granger
enquanto torcia minhas roupas e as dobrava no meu espartilho.
"É bem próxima e vocês podem se abrigar lá até a tempestade
passar. Um dos meninos pode guiá-lo para a casa do capitão
Cunningham depois da chuva; a cabana dele é bastante remota."
Eles se entreolharam, olharam para o céu que escurecia, e então
acenaram com a cabeça ao mesmo tempo e se prepararam para
me seguir. Eu não tinha gostado da maneira como o sr. Partland
tinha olhado para meus seios e não queria que ele olhasse meu
traseiro enquanto eu caminhava, então eu gesticulei firmemente
para seguirem antes de mim na trilha, coloquei meus pés
molhados em meus sapatos e parti para casa, pingando.
Estimei a idade do sr. Granger em talvez cinquenta, Partland mais
jovem, talvez na casa dos trinta. Nenhum dos dois era gordo, mas
Nicodemus Partland era alto e esguio, com o tipo de olhos que
olhavam além de você, mesmo quando olhavam para você. Ele
331

ficava olhando por cima do ombro, como se para ter certeza de


que eu ainda estava lá.
Chegamos em vinte minutos, mas o ar já tinha começado a cheirar
a ozônio e eu podia ouvir um trovão ribombando à distância.
"Bem-vindos à Nova Casa, senhores", eu disse, acenando com a
cabeça em direção à porta da frente. Jamie apareceu na soleira,
segurando o gato Adso, que saltou de seus braços e passou por
mim, perseguido por Bluebell, latindo feliz. Ela parou
derrapando, vendo os estranhos, e começou a latir para eles, com
raiva e séria intenção.
Jamie desceu da varanda e agarrou a cachorra pela nuca.
"Isso é o suficiente, moça", disse ele, e com uma sacudida suave
a soltou. "Perdão, senhores."
O sr. Partland recuou quando Bluebell os ameaçou e estava com
a mão no bolso, sugerindo que ele poderia ter uma pequena
pistola dentro. Ele não tirou os olhos da cachorra, mesmo quando
Fanny saiu, chamada por Jamie, e a persuadiu a voltar para dentro
de casa.
O sr. Granger, entretanto, não tinha olhos para cachorros. Ele
estava olhando para Jamie.
Jamie percebeu isso e ofereceu sua mão com uma ligeira
reverência. "James Fraser, seu servo, senhor."
"Eu... isto é..." O sr. Granger balançou a cabeça rapidamente e
pegou a mão de Jamie. "Sr. Adam Granger, senhor. Você... você
não é o general Fraser?"
"Eu era", Jamie disse secamente. "E você, senhor?" Ele se virou
para Partland, que agora também o estava examinando como se
fosse um cavalo que pretendia comprar.
"Nicodemus Partland, seu mais obediente, senhor", disse
Partland, sorrindo, mas com um tom sugerindo que obediência
332

era a última coisa que pretendia. Ou respeito, por falar nisso.


"Sua, hum", o sr. Granger, lembrando-se tardiamente da minha
presença, se virou para olhar para mim, " esta mulher sugeriu que
podemos encontrar abrigo da tempestade aqui. Mas se a nossa
presença for inconveniente..."
"De jeito nenhum." A boca de Jamie se contraiu ligeiramente
quando ele me olhou. "Permita-me apresentar minha esposa,
senhores... Sra. General Fraser."
-.-.-

FANNY APARECEU na porta, vindo ver por que Bluebell


estava latindo agora, com Brianna atrás dela. Jamie fez as
apresentações, indicou que os visitantes entrassem na casa e
ergueu uma sobrancelha para Bree, que assentiu obedientemente.
"Minha filha cuidará de suas necessidades, cavalheiros. Eu irei
me juntar a vocês em breve. "Ele esperou apenas o tempo
suficiente para eles entrarem antes de se virar para mim. "O que
diabos você tem feito, Sassenach?", ele perguntou entredentes.
"Parto de porcos", eu disse sucintamente, e entreguei-lhe o
embrulho de roupas molhadas, de onde ainda exalava o cheiro
inconfundível de excremento de porco, testemunhando minha
estória.
"Cristo", disse ele, segurando o pacote com o braço esticado.
"Frances, moça, aceite isso, sim? Mergulhe em algo – ou deve ser
queimado?", ele perguntou, voltando-se para mim.
"Mergulhe-os em água fria com sabão neutro e vinagre", eu disse.
"Vamos fervê-los mais tarde. E obrigado, Fanny."
Ela acenou com a cabeça e pegou o pacote, com o nariz enrugado.
"Quem são esses homens?", Jamie perguntou, apontando com o
queixo em direção à porta onde Partland e Granger haviam
333

desaparecido. "E como diabos você veio a ficar na companhia


deles em nada além de sua combinação?"
"Eu estava me lavando no riacho quando eles apareceram", eu
disse, um tanto irritada. "Eu não os convidei para se juntarem a
mim."
"Não, claro que não." Ele respirou fundo e começou a se acalmar.
"Eu só não gostei da maneira como o mais jovem estava olhando
para você."
"Nem eu. Quanto a quem eles são...", comecei, mas fui
interrompido por Fanny, que se dirigia para o quintal lateral e o
tanque da lavanderia com Bluebell, mas me virei.
"O jovem é um oficial", disse ela, e acenou afirmativamente com
a cabeça. "Eles sempre acham que podem fazer o que quiserem."
Fiquei olhando para ela, perplexo, enquanto ela desaparecia.
"Eles não parecem soldados", eu disse, encolhendo os ombros.
"O mais velho me chamou de minha boa mulher, no entanto. Eles
provavelmente pensaram que eu era sua diarista."
"Minha o quê?" Ele pareceu surpreso e depois ofendido.
"Oh, isso significa apenas uma faxineira", disse eu, percebendo
que ele havia pulado para uma interpretação errônea do
significado de diarista. De qualquer forma, eles disseram que
estavam procurando pelo capitão Cunningham. E como estava
prestes a chover..."
Estava. O vento soprava através da grama, folhas, agulhas e
galhos; a floresta inteira estava respirando e as nuvens cobriram
mais da metade do céu, grandes, negras e perigosas com
relâmpagos bruxuleantes.
Brianna saiu segurando uma toalha e me ofereceu.
"Eu coloquei aqueles homens em seu escritório, Pa", ela disse.
"Está tudo certo?"
334

"Sim, bem", ele assegurou a ela.


"Espere, Bree", eu disse, emergindo da toalha quando ela se virou
para ir embora. "Você e Fanny iriam até a depósito de
mantimentos buscar alguns vegetais e talvez... não sei, algo doce
– geleia, passas... Teremos que alimentá-los, sejam eles quem
forem."
"Claro", disse ela. "Você não sabe quem eles são?"
"Fanny disse que o jovem é um oficial", disse Jamie. "Além disso,
veremos. Entre, Sassenach", disse ele, envolvendo-me com o
braço para me conduzir para dentro. "Você precisa se secar"
"E me vestir."
"Sim, isso também."
-.-.-

O DEPÓSITO DE mantimentos não ficava muito longe do galpão


de defumação, mas ficava do outro lado da grande clareira, e o
vento, desobstruído por árvores ou edifícios, as empurrou por
trás, soprando suas saias diante delas e fazendo voar a touca de
Fanny de sua cabeça.
Brianna levantou a mão e agarrou o pedaço de musselina que
passou girando. Seus próprios cabelos, soltos, esvoaçavam em
volta do rosto, assim como os de Fanny. Elas se entreolharam,
meio cegas, e riram. Então as primeiras gotas de chuva
começaram a cair, e elas correram, gritando pelo abrigo.
O depósito foi escavado na encosta de uma colina, com uma porta
de madeira áspera emoldurada com pedras empilhadas de cada
lado. A porta estava presa no batente, mas Bree a libertou com
um forte puxão e elas caíram para dentro, já com manchas
úmidas, mas a salvo do aguaceiro que agora começava do lado de
fora.
335

"Aqui." Ainda sem fôlego, Brianna deu a touca para Fanny. "Eu
não acho que isso vai evitar a chuva, no entanto.”
Fanny concordou com a cabeça, espirrou, riu e espirrou
novamente.
"Onde está a sua?", ela perguntou, fungando enquanto colocava
seus cachos desgrenhados pelo vento de volta sob a touca.
"Não gosto muito de toucas", disse Bree, e sorriu quando Fanny
piscou. "Mas eu posso usar uma para cozinhar ou fazer algo em
que cabelos soltos atrapalhariam. Eu uso um chapéu todo
molenga para caçar, às vezes, mas, caso contrário, eu apenas
prendo meus cabelos para trás."
"Oh", Fanny disse incerta. "Eu acho – acho que é por isso que a
sra. Fraser – sua mãe, quero dizer – por que ela também não as
usa?"
"Bem, é um pouco diferente com a mamãe", disse Bree, passando
os dedos pelos longos cabelos ruivos para desembaraçá-los. "É
parte de sua guerra com...", ela fez uma pausa por um momento,
imaginando o que dizer, mas afinal, se Fanny agora fosse parte
da família, ela aprenderia essas coisas mais cedo ou mais tarde –
"com pessoas que acham que têm o direito de dizer a ela como
fazer as coisas."
Os olhos de Fanny se arregalaram.
"Elas não têm?"
"Gostaria de ver alguém tentar", disse Bree secamente e, depois
de torcer os cabelos em um coque desordenado, se virou para
examinar o conteúdo do depósito.
Ela sentiu uma onda de alívio e segurança, vendo imediatamente
que uns bons três quartos das prateleiras rasas estavam cheias:
batatas, nabos, maçãs, inhames e pawpaws186 que amadureciam

186
Asimina triloba. Fruto não existente no Brasil. Típico da América do Norte, é da família Annonaceae
336

lentamente. Dois grandes sacos de estopa protuberantes estavam


apoiados na parede oposta, provavelmente cheios de nozes ou
castanhas de algum tipo (embora certamente as nozes locais ainda
não tivessem amadurecido? Talvez seus pais tenham negociado
por elas...), e o ambiente estava preenchido pelo aroma doce de
uvas secando, penduradas em cachos do teto baixo para se
enrugar em passas.
"Mamãe esteve ocupada", disse ela, virando automaticamente as
batatas em uma prateleira enquanto selecionava uma dúzia para
levar. "Suponho que você também", acrescentou ela, sorrindo
para Fanny. "Você ajudou a coletar tudo isso, tenho certeza."
Fanny baixou os olhos modestamente, mas brilhou um pouco.
"Desenterrei os nabos e algumas batatas", disse ela. "Havia
muitos comestíveis naquele lugar que eles chamam de Jardim
Velho. Sob as ervas daninhas."
"Jardim Velho", Bree repetiu. "Sim, eu acho que sim." Um
arrepio que não teve nada a ver com o frio do porão subiu por seu
pescoço e contraiu seu couro cabeludo. Ela tinha ouvido falar da
morte187 de Malva Christie no jardim. E a morte de seu filho ainda
não nascido. Sob as ervas daninhas, de fato.
Ela olhou de soslaio para Fanny, que estava torcendo uma cebola
da trança, mas a garota não demonstrou nenhuma emoção com
relação ao jardim; provavelmente ninguém havia contado a ela –
ainda, Bree pensou – sobre o que acontecera ali e por que o
jardim fora abandonado ao mato.
"Devemos levar mais batatas?", Fanny perguntou, jogando duas
cebolas amarelas gordas na cesta. "E talvez maçãs, para bolinhos?
Se não parar de chover, aqueles homens vão passar a noite. E não

– a mesma da fruta-do-conde, atemoia, graviola e com elas têm uma vaga semelhança na disposição da
polpa e das sementes.
187
Lógico que Brianna ouviu falar sobre a morte de Malva. Ela estava em Fraser’s Ridge e acompanhou
a angústia junto com seus pais pelas fofocas e perseguição. Ficou estranho colocado dessa forma.
337

temos ovos para o café da manhã."


"Boa ideia", disse Bree, bastante impressionada com a previsão
caseira de Fanny. A observação fez com que sua mente voltasse
para os visitantes misteriosos.
"O que você disse a Pa – sobre um dos homens ser um oficial.
Como você soube disso?" E como Pa sabia que você saberia algo
assim?, ela adicionou silenciosamente.
Fanny olhou para ela por um longo momento, seu rosto
totalmente inexpressivo. Então ela parecia de repente ter se
decidido sobre algo, por que ela acenou com a cabeça, como se
para si mesma.
"Eu já os vi", disse ela simplesmente. "Muitas vezes. No bordel."
"No..." Brianna quase deixou cair o pawpaw que pegou na
prateleira superior. Sua mãe havia contado sobre o passado de
Fanny, mas ela não esperava que Fanny tocasse no assunto.
"Bordel", Fanny repetiu, a palavra curta. Bree se virou para olhar
para ela; ela estava pálida, mas seus olhos estavam firmes sob a
touca. "Na Filadélfia."
"Eu entendo." Brianna esperava que sua própria voz e olhos
fossem tão firmes quanto os de Fanny, e tentou falar com calma,
apesar da voz interior apavorada dizendo: Jesus, Senhor, ela tem
apenas onze ou doze anos agora! "Será que ... hum ... Pa – foi
onde ele encontrou você?"
Os olhos de Fanny se encheram de lágrimas repentinamente, e ela
se virou apressadamente, mexendo em uma prateleira de maçãs.
"Não", ela disse em uma voz abafada. "Minha – minha irmã...
ela... nós ... nós fugimos juntas."
"Sua irmã", disse Bree com cuidado. "Onde..."
"Ela está morta."
338

"Oh, Fanny!" Ela havia deixado cair o pawpaw, mas não


importava; agarrou Fanny e apertou-a com força, como se
pudesse de alguma forma sufocar a terrível tristeza que
transbordava entre elas, espremendo-a para fora da existência.
Fanny estava tremendo silenciosamente. "Oh, Fanny", disse ela
de novo, suavemente, e esfregou as costas da garota como faria
com Jem ou Mandy, sentindo os ossos delicados sob os dedos.
Não durou muito. Depois de um momento, Fanny se controlou –
Bree podia sentir isso acontecendo, uma parada, um retraimento
da carne – e recuou, saindo do abraço de Bree.
"Está tudo bem", disse ela, piscando rápido para impedir que mais
lágrimas viessem. "Está tudo bem. Ela está – ela está segura
agora. " Ela respirou fundo e endireitou as costas.
"Depois... depois que aconteceu, William me deu ao sr. Fraser.
Oh!" Um pensamento a atingiu e ela olhou incerta para Bree.
"Você... sabe sobre William?"
Por um momento, a mente de Bree ficou completamente em
branco. William? Mas de repente a ficha caiu e ela olhou para
Fanny, assustada.
"William. Você quer dizer o filho de Pa, do sr. Fraser'?"
Dizer a palavra o trouxe à vida; o jovem alto, de olhos de gato e
nariz comprido como ela, mas moreno onde ela era clara, falando
com ela no cais em Wilmington.
"Sim", disse Fanny, ainda um pouco desconfiada. "Eu acho – isso
significa que ele é seu irmão?"
"Meio-irmão, sim." Brianna se sentiu atordoada e se abaixou para
pegar a fruta caída. "Você disse que ele deu você para Da?"
"Sim." Fanny respirou fundo novamente e se abaixou para pegar
a última maçã.
De pé, ela olhou Bree diretamente nos olhos. "Você se importa?"
339

"Não", disse Bree, suavemente, e tocou a bochecha tenra de


Fanny. "Oh, Fanny, não. De jeito nenhum."

-.-.-

JAMIE PERCEBEU LOGO que o jovem era realmente um


soldado. E achava que o mais velho não era. E embora o jovem
parecia submeter-se a Granger, Jamie pensava que Partland tinha
alguma ascendência sobre o homem mais velho – e mais rico. Ou
pelo menos ele pensa que sim, ele pensou, sorrindo
agradavelmente enquanto servia vinho para os visitantes em seu
escritório. Ele não gostou muito de Partland e estava inclinado a
pensar que o sentimento era mútuo, embora não soubesse por quê.
Ainda.
"Você vai ficar até amanhã, sr. Granger?", ele perguntou, com
um olhar cauteloso para o teto. "A noite está caindo e a
tempestade parece ter amainado para uma chuva fraca. Você não
vai querer tentar achar o seu caminho na floresta na escuridão
molhada." A chuva havia começado a bater forte lá em cima, e
ele sentiu o orgulho de um homem com um teto sólido construído
por ele mesmo, mesclado ao medo persistente de que não fosse
tão sólido quanto ele esperava.
"Vamos ficar, general", respondeu Partland, "e meu tio e eu lhe
agradecemos por sua gentil hospitalidade." Ele ergueu sua xícara
em saudação.
Granger parecia um pouco surpreso com a usurpação de sua
antiguidade, mas os homens trocaram um olhar, e qualquer que
fosse a informação transmitida entre eles, foi eficaz. Granger
relaxou, murmurando seus próprios agradecimentos.
"De nada, senhores", disse Jamie, sentando-se atrás de sua mesa
com sua própria xícara. Ele teve que ir buscar um banquinho na
340

cozinha para Partland, tendo apenas uma cadeira com encosto de


palhinha para um convidado em seu escritório. Pelo menos ele
tinha o quarto fechado, então haveria uma sensação de
privacidade confortável, separada da cozinha, onde Claire –
decentemente vestida de novo –estava aparentemente batendo
com um martelo num pedaço recalcitrante e duro de veado para
torná-lo comestível.
"Devo convidá-lo a me chamar de sr. Fraser, no entanto", ele
acrescentou, sorrindo para evitar qualquer senso de repreensão.
"Renunciei à minha patente após Monmouth, e não tenho
nenhuma associação atual com o exército continental."
"Não tem mesmo, de fato?" Granger se endireitou um pouco,
arrumando o casaco para esconder o rasgo. "Isso é modesto de
sua parte, senhor. Eu aprendi que qualquer homem que tenha
ocupado um posto militar com qualquer pretensão se apega ao
seu título para o resto da vida."
Partland manteve o rosto cuidadosamente inexpressivo; Jamie
pensou que estava escondendo um sorriso malicioso e sentiu uma
pontada de aborrecimento, mas a dispensou.
"Não posso dizer senão que muitos oficiais merecem manter seus
títulos, senhor, como resultado da aposentadoria após um longo
e honrado serviço. Tenho certeza de que esse é o caso de seu
amigo capitão Cunningham, não é?"
"Bem, sim." Granger parecia um tanto envergonhado. "Peço
desculpas, sr. Fraser, não quis ofender a sua escolha na questão
do título."
"Não ofendeu, senhor. Você conhece o capitão há algum tempo,
então?"
"Por que... sim, eu conheço", disse Granger, relaxando um pouco.
"O capitão foi muito prestativo há alguns anos, resgatando um
dos meus navios de um corsário francês, ao largo na Martinica.
341

Procurei-o para oferecer a ele meus agradecimentos e, no


decorrer da conversa, descobri que tínhamos muitas opiniões em
comum. Nós nos tornamos amigos e mantivemos uma
correspondência por... pelos céus, deve fazer vinte anos agora,
pelo menos."
"Ah. Você é um comerciante, então?" Isso explicava o forro de
seda amarela do casaco do homem, que provavelmente custou
tanto quanto o guarda-roupa de toda a casa de Jamie.
"Sim. Principalmente no comércio de rum. Mas a guerra atual
vem causando dificuldades consideráveis, eu receio."
Jamie fez um ruído evasivo para indicar pesar educado e uma
aversão a se envolver em um discurso político. O sr. Granger
parecia bastante disposto a deixar por isso mesmo, mas Partland
se inclinou para frente, colocando sua xícara sobre a mesa.
"Espero que você perdoe minha impertinência... sr. Fraser." Ele
sorriu, sem mostrar os dentes. "É apenas uma curiosidade minha,
com certeza. Qual foi a causa de sua saída do exército de
Washington, se posso perguntar?"
Jamie não queria dizer, mas ele também queria saber coisas sobre
Partland, então respondeu de maneira equilibrada.
"O general Washington me indicou como medida de emergência,
senhor – o general Henry Taylor havia morrido apenas alguns
dias antes da batalha, e Washington necessitava alguém com
experiência para liderar as companhias de milícia do general
Taylor. No entanto, a maioria dessas companhias foi alistada por
apenas três meses, e seu alistamento expirou logo após
Monmouth. Não havia mais necessidade de meus serviços."
"Ah." Partland estava olhando para ele com curiosidade, tentando
decidir se dizia o que tinha em mente. Ele disse, porém, e Jamie
ficou surpreso ao descobrir que ele vinha mantendo uma lista de
verificação mental, na qual agora fez uma marca ao lado da
342

palavra "Desleixado". Logo abaixo de "Escorregadio como


Gordura de Ganso".
"Mas com certeza o exército continental poderia encontrar uso
contínuo para um soldado com sua experiência. Pelo que ouvi,
eles estão vasculhando os exércitos da Europa em busca de
oficiais, independentemente de sua experiência ou reputação."
Jamie fez de novo o ruído evasivo, um pouco mais alto. Granger
fez uma versão inglesa do mesmo, mas Partland ignorou os dois.
"Eu tinha ouvido algumas conversas – mera fofoca mal-
humorada, tenho certeza", ele acenou com a mão com desdém,
"sobre você ter deixado o campo de batalha antes de ser
dispensado de seu dever? E que este... contratempo?... resultou
de alguma forma em sua renúncia. "
"A fofoca é um pouco mais bem-informada neste caso do que
normalmente", Jamie respondeu com voz neutra. "Minha esposa
foi gravemente ferida no campo – ela é uma cirurgiã e estava
cuidando das vítimas – e eu renunciei à minha patente para salvar
a vida dela."
E isso é tudo que você vai ouvir sobre isso, a gobaire188.
Granger pigarreou novamente e olhou com reprovação para seu
sobrinho, que se recostou e pegou sua xícara com um ar
negligente, embora ainda com um olhar de esguelha. Os golpes
abafados e regulares da marreta de Claire eram audíveis através
da parede não isolada, um pouco mais lentos do que o batimento
cardíaco de Jamie, que tinha acelerado visivelmente.
Respirando fundo para diminuir o ritmo, ele pegou a garrafa de
vinho, pesando-a. Meio cheio; o suficiente para mantê-los até o
jantar.
"Você poderia me dizer algo sobre o comércio de rum, senhor?",
188
Enxerido, fofoqueiro; em gaélico.
343

ele disse, reabastecendo a xícara de Granger. "Trabalhei um


tempo em Paris, lidando principalmente com vinhos, mas
também com um pequeno comércio de destilados. Isso foi há
trinta e cinco anos, no entanto – imagino que algumas coisas
mudaram."
A atmosfera no escritório se acalmou e os golpes de martelo
pararam. A conversa tornou-se geral e amistosa. O telhado não
estava vazando. Jamie relaxou por um momento, bebendo vinho.
Ele teria que falar com Bobby e Roger Mac sobre o capitão
Cunningham. Amanhã.
-.-.-

BOBBY HIGGINS APARECEU na porta logo depois do meio-


dia do dia seguinte. Ele estava vestido com uma camisa e calça
limpas, com seu colete bom e uma gravata debruada de renda, o
que alarmou Jamie. Esse grau de meticulosidade significava que
Bobby estava preocupado com alguma coisa e esperava aplacar a
fúria dos deuses por meio de cabelos trançados e roupas
engomadas.
"Amy disse que a sra. Goodwin contou a ela que sua irmã disse
que você queria falar comigo, senhor", disse ele imediatamente.
Ele balançou a cabeça ansiosamente, os olhos fixos em Jamie
para qualquer pista do que poderia estar por vir.
"Och, tudo bem, Bobby", disse Jamie, recuando e gesticulando
para que ele entrasse. "Eu só queria perguntar o que você pode
saber sobre o capitão Cunningham. Alguns companheiros vieram
ontem a caminho de visitá-lo."
"Oh", disse Bobby, relaxando visivelmente. "Os caras maus."
"O quê?"
"É assim que a pequena Mandy os chamou", disse Bobby,
344

segurando a mão na altura da coxa e mais ou menos na altura da


cabeça de Mandy. "Ela disse que eles pareciam caras maus e
queria que eu fosse atirar neles."
Jamie sorriu, não muito surpreso com as percepções agudas de
Mandy, mas as apreciando.
"O que você achou deles, Bobby?"
Bobby balançou a cabeça. "Eu não os vi. Os pequeninos estavam
brincando na casinhola de fonte e viram dois homens estranhos
passarem. Eles voltaram para casa e me contaram, e eu me
perguntei em voz alta quem seriam eles, e Germain me disse que
estavam procurando pelo capitão Cunningham. Então, serão os
mesmos caras, eu espero."
"Eu acho que sim. Você se junta a mim em uma caneca de
cerveja, Bobby?"
A cerveja era notavelmente ruim – Fanny e Brianna a haviam
feito –, mas era fortemente alcoólica, e eles a beberam sem
reclamar, conversando sobre os inquilinos e quaisquer
preocupações que Bobby pudesse ter.
"Acho que é hora de criarmos uma milícia, Bobby", disse Jamie
casualmente.
Para sua surpresa, Bobby assentiu sobriamente. "Já passou da
hora, talvez, senhor, se me permite dizer isso."
"Eu permito", disse Jamie, cauteloso. "Mas o que faz dizer isso?"
"Josiah Beardsley estava por perto, dois dias atrás, e me disse que
tinha visto um grupo de homens na floresta entre aqui e o
Blowing Rock. Homens armados – e ele tinha certeza de ter visto
pelo menos um casaco-vermelho entre eles." Bobby tomou um
gole de cerveja e enxugou a boca, acrescentando: "Não é a
primeira vez que ouço falar de um grupo assim, mas esses
homens estavam mais próximos do que qualquer um de que eu já
345

tivesse ouvido falar."


"Sim", Jamie disse suavemente. Ele se lembrou do que disse a
Brianna, quando ela lhe contou sobre Rob Cameron, e os pelos
se arrepiaram na base de sua espinha. Alguém virá. Ele
duvidava que esses homens tivessem algo a ver com os vilões
perversos que tentaram matar sua filha em sua própria casa e em
seu próprio tempo – mas hoje em dia, qualquer um pode ser
uma ameaça, de qualquer maneira.
"Quanto mais cedo melhor, então. Faça-me uma lista, sim,
Bobby? Que tipo de armas cada homem da Cordilheira dos Fraser
tem à disposição – seja um mosquete ou uma foice. Até mesmo
uma faca de esfolar serve."
-.-.-

POR FIM, FOI Rachel quem lhe contou tudo sobre o capitão
Cunningham. Ele pretendia dar uma mãozinha a Roger Mac e
Richard MacNeill com a montagem do telhado da nova igreja, e
foi até a cabana de Ian para ver se o rapaz iria junto. Com quatro
homens, eles poderiam fazer metade do telhado até o pôr do sol;
não era um prédio grande.
Ele encontrou Rachel sozinha, porém, pacificamente batendo
manteiga na varanda de sua cabana, as sombras de álamos
tremulando sobre ela como uma nuvem de borboletas
transparentes.
"Ian foi caçar com um dos Beardsley, Jamie", ela disse a ele,
sorrindo, mas sem perder o ritmo. "Tua irmã levou Oggy para
visitar Aggie McElroy – acho que com o propósito de exibi-lo
como um exemplo terrível, na esperança de impedir que a filha
mais nova de Aggie se case com o primeiro jovem que lhe faça
uma proposta."
346

"Essa seria Caitriona189?" ele perguntou, percorrendo seu mapa


mental de Cordilheira. "Ela não tem mais de quatorze anos,
certo?"
"Treze – mas madura, eu acredito. Ela não vai esperar muito. Não
faz muito sentido para a garota", disse ela, sacudindo a cabeça.
Ela respirou fundo e continuou, "Embora para ser justa, é tanto
medo quanto luxúria ou desejo por novidades", acrescentou ela,
ofegando ligeiramente, embora seus ombros continuassem se
movendo uniformemente. "Ela é a mais nova e... teme ser
obrigada... a permanecer solteira para cuidar de seus pais... à
medida que envelhecem, se ela não escapar... antes de realmente
começarem a ficar trêmulos.”
Gordon McElroy era cinco anos mais novo do que ele, refletiu
Jamie, e Aggie talvez tivesse quarenta e cinco. Ele se perguntou
se notaria se estivesse trêmulo ou não.
"Você é uma observadora atenta da natureza humana, moça",
disse ele, sorrindo.
"Sou", disse ela, sorrindo de volta. "Embora eu não possa alegar
muita percepção em relação a Caitriona... já que ela mesma me
contou sobre seus sentimentos. "
Rachel já estava trabalhando há algum tempo; o dia estava
quente, o suor escurecia a borda de seu fichu190 em seu decote, e
sua pele, normalmente da cor de creme com uma colher de café,
tinha adquirido um tom rosado.
Num impulso, ele subiu na varanda ao lado dela e, estendendo a
mão, pegou a alça da batedeira, empurrando-a para o lado sem
perder um golpe.
"Sente-se, moça", ele disse. "Descanse um pouco e me diga se

189
Seria uma nova homenagem a Caitríona Balfe? O nome dela já foi incorporado ao nome de Ellen. Veja
na árvore genealógica dos Fraser/MacKenzie.
190
Espécie de lenço ou mantilha, usado geralmente por mulheres, cobrindo a cabeça, pescoço e ombros.
347

souber alguma coisa sobre o capitão Cunningham."


"Tu és alto demais para essa batedeira", disse ela, mas, mesmo
assim, sentou-se na beira da varanda, esticando as pernas e
encolhendo os ombros com um suspiro de alívio.
"A manteiga virá em breve", disse ele. "Não é?" Já fazia muito
tempo desde que ele próprio havia batido manteiga – talvez...
cinquenta anos? Esse pensamento o perturbou, e ele agitou um
pouco mais rápido.
"Virá", disse ela, virando a cabeça para franzir a testa para ele.
"Mas não a menos que tu agites mais devagar."
"Oh, sim." Ele obedientemente diminuiu a velocidade para o
ritmo anterior, apreciando a sensação do líquido pesado
movendo-se para frente e para trás na batedeira com uma toada
rítmica suave. "Você viu o capitão?"
"Oh, sim", disse ela, ligeiramente surpresa. "Eu conheci a mãe
dele algumas semanas atrás, logo depois que eles chegaram. Na
floresta, colhendo confrei. Conversamos um pouco e eu a ajudei
a carregar suas cestas para sua casa. O filho dela foi muito gentil
e me ofereceu chá." Ela ergueu uma sobrancelha para ver se ele
apreciava essa pequena informação, o que ocorreu.
"Suponho que ninguém no interior tenha sequer visto chá nos
últimos cinco anos."
"Não", ela disse pensativamente. "Ele disse que tem amigos de
sua carreira naval que fazem a gentileza de lhe enviar uma cesta
com chá e outras guloseimas de vez em quando."
"Você disse logo depois que eles vieram – quando eles vieram?"
"No final de abril. Bobby Higgins me contou que o capitão disse
a ele que, como Odisseu191, ele havia se afastado do mar com um
remo no ombro até chegar a um lugar onde ninguém sabia o que

191
Odisseu é o nome grego. Ulisses é o nome latino. Trata-se do mesmo personagem mitológico.
348

isso era192 – e tendo encontrado tal lugar, se propunha a ficar, se


pudesse."
Jamie não pôde deixar de sorrir com isso. "Será que Bobby sabe
quem era Odisseu?"
"Ele não sabia, mas eu contei a ele um pouco da história e
expliquei que o capitão estava falando metaforicamente. O
capitão deixou Bobby bastante nervoso, eu acho", ela acrescentou
delicadamente. "Mas não havia um bom motivo para rejeitá-lo –
e ele pagou cinco anos de aluguel adiantado. Em dinheiro."
Qualquer figura de autoridade governamental deixaria Bobby
nervoso, com a marca do assassino em seu rosto, infligida a ele
depois que uma escaramuça em Boston, onde ele era um soldado,
deixou um cidadão morto.
"Parece que as pessoas lhe dizem muitas coisas, Rachel", disse
ele.
Ela olhou para ele, olhos castanho-esverdeados e rosto franco, e
acenou com a cabeça.
"Eu escuto", ela disse simplesmente.
Ela sabia uma série de pequenas coisas sobre os Cunningham,
pois parava de vez em quando na cabana deles quando estava
forrageando nas proximidades – distante da sua própria pouco
mais do que dois quilômetros – para compartilhar, se ela tivesse
alguma coisa em excesso. No entanto, nenhuma das coisas que
ela sabia parecia incomum, exceto que Cunningham havia
confidenciado a ela o desejo de pregar.
"Pregar?", Jamie quase parou de bater, mas uma certa resistência
o lembrou de que a manteiga estava chegando e ele continuou.

192
Odisseu é instruído por Tirésias a pegar um remo (era um remo com aberuras na extremidade) de seu
navio e caminhar pelo interior até encontrar uma “terra que nada sabe do mar”, onde o remo seria
confundido com um leque joeirador, objeto que separava o joio do trigo. Neste ponto, ele devia oferecer
um sacrifício a Poseidon, e então, finalmente, suas jornadas terminariam.
349

"Ele disse por quê? Ou como?"


"Sim, evidentemente, quando era capitão do mar. Pregava para
seus homens, quero dizer, aos domingos a bordo de seu navio.
Suponho que ele tenha achado isso gratificante e teve a ideia,
quando se aposentou, de se tornar um pregador leigo. Ele não tem
ideia real de como isso pode ser realizado, mas sua mãe garantiu-
lhe que Deus encontraria um caminho."
A notícia do desejo do capitão de pregar foi surpreendente, mas
também um tanto reconfortante. Ainda assim, ele lembrou a si
mesmo, havia muitos pregadores que invocavam o fogo do
inferno a serviço de um exército, e ter uma vocação para pregar
não limitava as crenças de um homem em outras direções. Não
era improvável que um capitão aposentado da marinha britânica
tivesse fortes oposições à independência das Colônias
americanas. E ele não achava que as observações de Frances
sobre o sr. Partland estivessem de forma alguma equivocadas.
"Você soube que Roger e Brianna os visitaram e foram colocados
porta afora pela inconveniência deles?” ele perguntou. "Acho que
a manteiga chegou."
Ela se levantou, alisando os cabelos escuros para trás sob a touca,
e foi olhar.
Ela pegou a alavanca do batedor, mexeu algumas vezes e acenou
com a cabeça.
"Sim. Brianna me contou. Eu acho", ela acrescentou
delicadamente, "que talvez Roger devesse tentar falar com o
amigo Cunningham na ausência da mãe dele".
"Talvez ele devesse." Ele puxou o topo da batedeira e eles
olharam para dentro, para ver os flocos e pedaços de manteiga
dourada nadando no creme.
350

19

ASSOMBRAÇÃO À LUZ DO DIA

ERA UM BELO dia e eu convenci Jamie – com alguma


dificuldade – de que o mundo não acabaria se ele não colocasse
a porta da cozinha hoje. Em vez disso, juntamos as crianças e
subimos pela floresta em direção à cabana de Ian, levando
pequenos presentes para Rachel, Jenny e Oggy.
"O que você vai apostar comigo, Sassenach, se eles já escolheram
um nome para aquele lá?"
"Quais são as chances?", eu disse, divertida. "E você está
apostando que sim ou que não?"
"Cinco a dois contra. Quanto ao prêmio se eu vencer... " Ele olhou
em volta para ver que nossos companheiros não estavam ao
alcance de sua escuta e baixou a voz. "Suas roupas de baixo."
Minhas roupas de baixo eram, na verdade, a metade inferior de
um pijama de flanela concebido tendo em mente o inverno que se
aproximava.
"E o que diabos você faria com minhas roupas de baixo?"
"Queimá-las."
"Nenhuma aposta. Além disso, acho que eles também não
escolheram um nome. As últimas sugestões que ouvi foram
Shadrach193, Gilbert e qualquer que seja o nome mohawk para
Aquele que Peida Como uma Cabra "
"Deixe-me adivinhar. Foi Jenny quem sugeriu esse último?"
"Quem conheceria melhor as cabras?"

193
Sadraque. Nome bíblico Daniel 3:12
351

Bluebell fungou energicamente através das camadas de folhas


que crepitavam, a cauda movendo-se para frente e para trás como
um metrônomo.
"Você pode treinar esse tipo de cachorro para caçar coisas
específicas? ", eu perguntei. "Quer dizer, eu sei que é chamado
de coonhound194, mas claramente ela não está procurando
guaxinins agora."
"Ela não é uma coonhound, embora eu suponha que ela não iria
deixar passar um. O que você queria que ela caçasse,
Sassenach?", Jamie perguntou, sorrindo. "Trufas?"
"Você precisa de um porco para isso, não é? E por falar em
porcos… Jemmy! Germain! Fiquem de olho nos porcos e cuidem
de Mandy!"
Os meninos estavam agachados perto de um pinheiro, retirando
pedaços de casca de árvore em forma de quebra-cabeça, mas ao
meu chamado eles olharam vagamente ao redor.
"Onde está Mandy?", eu gritei.
"Lá em cima!", Germain gritou, apontando para onde elas
estavam. "Com Fanny."
"Germain, Germain, olhe, eu achei uma centopeia! Uma grande!"
Atendendo ao chamado de Jem, Germain perdeu
instantaneamente o interesse pelas meninas e agachou-se ao lado
de Jem, arrancando as folhas secas do caminho.
"É melhor eu ir conferir, você acha?", eu perguntei. "Os
milípedes195 não são venenosos, mas as grandes centopeias
podem ter uma picada desagradável."
"O garoto sabe contar", Jamie me assegurou. "Se ele diz que tem

194
Um cão de raça americana, usado para caçar guaxinins (coon + hound). Existem várias raças, incluindo
o coonhound preto e castanho e o coonhound bluetick. Não sabemos porque Jamie diz que ela não é dessa
raça, sendo uma bluetick...
195
Milípedes são fisicamente diferentes das centopeias.
352

cem pernas, tenho certeza que sim – mais ou menos algumas."


Ele deu um assobio curto e a cachorra ergueu os olhos,
instantaneamente alerta.
"Vá encontrar Frances, a nighean." Ele estendeu o braço,
apontando para cima, e a cadela latiu uma vez, agradavelmente,
e saltou pela encosta rochosa, as folhas amarelas explodindo sob
seus pés ansiosos.
"Você acha que ela...", comecei, mas antes que pudesse terminar,
ouvi as vozes das meninas acima, misturadas com os latidos
entusiasmados de saudação de Bluey. "Oh. Ela sabe quem é
Frances, então."
"Claro que ela sabe. Ela conhece todos nós agora, mas ela gosta
mais de Frances."
Ele sorriu um pouco com o pensamento. Era verdade; Fanny
adorava a cachorra e passava horas penteando seu pelo, tirando
carrapatos de suas orelhas ou enrolada perto do fogo com um
livro, Bluebell roncando confortavelmente em seus pés.
"Por que você sempre a chama de Frances?", eu perguntei,
curiosa. "Todo mundo a chama de Fanny – ela se chama assim,
para falar a verdade."
"Fanny é o nome de uma prostituta", respondeu ele
laconicamente. Vendo meu olhar de espanto, entretanto, sua
expressão relaxou um pouco. "Sim, eu sei que existem mulheres
respeitáveis com esse nome. Mas Roger Mac me disse que o
romance de Cleland ainda está sendo publicado em seu tempo."
"Cleland?... Oh, John Cleland, você quer dizer – autor do
romance Fanny Hill196?" Minha voz se elevou ligeiramente,
menos surpresa que as famosas memórias pornográficas de uma

196
Escrito em 1748, enquanto Cleland estava na prisão por dívidas em Londres, a obra é considerada o
primeiro romance erótico da modernidade e tornou-se um sinônimo da batalha contra a censura erótica.
Jamie realmente leu Fanny Hill em Helwater. (livro 3 cap 15).
353

mulher de prazer ainda estivessem fortes 250 anos depois –


algumas coisas nunca saem de moda, afinal – do que pelo fato de
ele ter discutido isso com Roger.
"E ele me disse que a palavra é... um vulgarismo... para as partes
íntimas de uma mulher", acrescentou ele, franzindo a testa.
"Bem, será", eu admiti. "Ou para o traseiro de alguém,
dependendo se você vem da Grã-Bretanha ou da América. Mas
não tem esse significado agora, não é?"
"Não", ele admitiu relutantemente. "Mas ainda assim... Lord John
me disse uma vez que Fanny Laycock é um termo vulgar para
prostituta." Sua testa estava franzida. "Eu me perguntei – sua irmã
disse que seu completo era Jane Eleanora Pocock. Achei que
talvez não fosse seu sobrenome verdadeiro, mas mais um... um...
"
"Nom de guerre197?", sugeri secamente. "Eu não deveria me
perguntar. Po significa um penico, atualmente?"
"Pot de chambre198?", ele perguntou surpreso. "Claro que sim."
"Claro que sim", eu murmurei. "Deixando isso de lado, se Pocock
não fosse seu sobrenome verdadeiro, você acha que Fanny, hã,
Frances, sabe qual é o verdadeiro?"
Ele balançou a cabeça, parecendo um pouco preocupado.
"Não quero perguntar a ela", disse ele. "Ela não falou novamente
sobre... o que quer que tenha acontecido com os pais dela, não
é?"
"Não para mim. E se ela tivesse contado para mais alguém, acho
que eles teriam mencionado isso para você ou para mim."
"Você acha que ela se esqueceu?"
"Acho que ela não quer se lembrar – o que pode não ser a mesma
197
Nome de guerra, em francês. Nome falso, assumido para não usar o nome real.
198
Penico.
354

coisa."
Ele acenou com a cabeça e caminhamos em silêncio por um
tempo, deixando a paz da floresta se acalmar com a chuva lenta
de folhas caindo. Eu podia ouvir as vozes das crianças acima do
farfalhar das castanheiras, como o canto dos pássaros distantes.
"Além do mais", disse Jamie, "William a chamava de Frances.
Quando ele a deu para mim."
-.-.-

CAMINHAMOS LENTAMENTE, parando às vezes, quando eu


avistava algo comestível, medicinal ou fascinante, o que exigia
uma parada a cada poucos metros.
"O-oh!", eu disse, indo direto até uma formação horizontal de um
vermelho profundo cor de sangue ao pé de uma árvore. "Olhe
para isso!"
"Parece uma fatia de fígado de veado fresco", disse Jamie,
olhando por cima do meu ombro. "Mas não cheira a sangue, então
acho que é uma das coisas que você chama de fungos de
prateleira?"
"Muito astuto da sua parte. Fistulina hepatica", eu disse, sacando
minha faca. "Aqui, segure isso, certo?"
Ele aceitou minha cesta com não mais do que um leve rolar de
olhos e ficou pacientemente enquanto eu cortava os pedaços
carnudos – pois havia um ninho inteiro deles escondido sob as
folhas à deriva, como um conjunto de nenúfares carmesim –
livres da árvore. Deixei os menores crescerem, mas ainda tinha
pelo menos um quilo do cogumelo carnudo. Eu os embalei em
camadas de folhas úmidas, mas quebrei um pequeno pedaço e
ofereci a Jamie.
"Um lado o deixa mais alto e o outro o deixa pequeno", eu disse,
355

sorrindo.
"O quê?"
"Alice no País das Maravilhas – a Lagarta. Eu conto a você mais
tarde. Dizem que tem gosto de carne crua", eu disse.
Murmurando "lagarta" baixinho, ele aceitou o bocado, virou-o de
um lado para o outro, inspecionando-o criticamente para ter
certeza de que não continha pernas traiçoeiras, depois o enfiou na
boca e mastigou, os olhos semicerrados em concentração. Ele
engoliu e eu relaxei um pouco.
"Talvez como um pedaço de carne velha que está pendurado há
muito tempo", ele admitiu. "Mas sim, um homem pode engolir
isso."
"Isso é realmente um elogio muito bom para um cogumelo cru",
disse eu, satisfeita. "Se eu tivesse algumas anchovas à mão, faria
um bom molho tártaro para acompanhar."
"Anchovas", ele disse pensativo. "Faz anos que eu não como
anchova." Ele lambeu o lábio inferior com a lembrança. "Posso
encontrar um pouco na próxima vez que for para Wilmington."
Eu olhei para ele com surpresa.
"Você está planejando ir para Wilmington em breve?"
"Sim, eu pensei que poderia", ele disse casualmente. "Você quer
vir, Sassenach? Achei que você estaria ocupada fazendo geleias
e conservas."
"Humpf." Embora fosse perfeitamente verdade que eu deveria
passar todas as horas de vigília colhendo, encontrando, pegando,
defumando, salgando ou preservando alimentos (quando não
estava triturando, infundindo ou fazendo decocção de
medicamentos)... era igualmente verdade que eu deveria estar
reabastecendo nossos estoques de agulhas, alfinetes, açúcar –
esse era um bom argumento, eu precisaria de mais açúcar para
356

fazer as conservas de frutas – e linha, para não falar de utensílios


domésticos e dos remédios que não conseguia encontrar ou
preparar , como éter.
E, para ir direto ao ponto, cavalos selvagens não poderiam me
impedir de ir com ele. Jamie também sabia. Eu podia ver o lado
de sua boca se curvando.
Antes que eu pudesse aceitar sua oferta graciosamente ou cutucá-
lo nas costelas, um uivo agudo sobrenatural soou por entre as
árvores, e Bluebell disparou colina abaixo na nossa frente, todas
as quatro crianças a perseguindo, da mesma forma latindo.
"O que foi aquilo, guaxinins, Sassenach?"
Jamie semicerrou os olhos em direção à árvore distante sob a qual
a cachorra havia fixado residência, as patas dianteiras apoiadas
no tronco, apontando o focinho para os galhos e soltando uivos
penetrantes.
Para minha surpresa, era um guaxinim, gordo, cinza, imenso e
extremamente irascível por ter sido acordado antes do anoitecer.
Ele ocupava um buraco irregular, na metade superior de um
pinheiro atingido por um raio, e estava espiando de uma forma
beligerante. Achei que estivesse rosnando, mas não se ouvia nada
além dos gritos selvagens de cachorro e crianças.
Jamie silenciou todos eles – exceto a cachorra – e olhou para o
guaxinim com a avidez natural de um caçador. Então, eu percebi,
Jem também. Germain e Fanny haviam se aproximado, olhando
para o guaxinim com os olhos arregalados, e Mandy estava
enrolada com força em minha perna.
"Eu não quero que ele me morda!", ela disse, segurando minha
coxa. "Não deixe ele me morder, vovô!"
"Eu não vou deixar, a nighean. Dinna fash." Sem tirar os olhos
do guaxinim entronizado na árvore, Jamie tirou o rifle das costas
357

e pegou a bolsa de balas em seu cinto.


"Posso fazer isso, vovô? Por favor, posso atirar?" Jem estava
ansioso para colocar as mãos no rifle, esfregando-as para cima e
para baixo nas calças. Jamie olhou para ele e sorriu, mas então
seu olhar mudou para Germain – ou assim eu pensei.
"Deixe Frances tentar, sim?", ele disse, e estendeu a mão para a
garota assustada. Eu esperava que ela recuasse de horror, mas
depois de um momento de hesitação, um brilho cresceu em suas
bochechas e ela deu um passo para frente corajosamente.
"Mostre-me como", disse ela, parecendo sem fôlego. Seus olhos
pulavam da arma para o guaxinim e vice-versa, como se temesse
que uma ou outro desaparecessem.
Jamie normalmente levava seu rifle carregado com a bala, mas
nem sempre preparado com a pólvora199. Ele se agachou sobre
um joelho e colocou a arma ao longo da coxa, entregou a ela um
cartucho cheio pela metade e explicou como despejar a pólvora
na caçoleta.
Jem e Germain assistiam com ciúmes, ocasionalmente
intrometendo-se com comentários de sabe-tudo como: "Essa é a
chapa de fricção, Fanny" ou "Você deve segurá-lo perto do seu
ombro para não quebrar seu rosto quando disparar." Jamie e
Fanny ignoraram essas interjeições úteis, e eu reboquei Mandy
para uma distância segura e me sentei em um toco desgastado,
colocando-a no meu colo.
Bluebell e o guaxinim continuaram sua guerra vocal, e a floresta
zumbia com uivos e uma espécie de guincho raivoso e agudo.
Mandy tapou as orelhas com as mãos dramaticamente, mas as
removeu para perguntar se eu sabia atirar com uma arma.

199
As armas da época tinham duas etapas de carregamento: a bala e a pólvora. Geralmente, a pólvora
era colocada no momento de atirar, para que não ficasse úmida e perdesse o poder de ignição.
358

"Sim", eu disse, evitando qualquer elaboração. Eu sabia


tecnicamente e já havia disparado uma arma de fogo várias vezes
na minha vida. Eu achei isso profundamente enervante, porém –
ainda mais depois que eu mesma fui baleada na Batalha de
Monmouth e entendi os efeitos em um nível verdadeiramente
visceral. Eu preferia esfaquear, considerando todas as coisas.
"Mamãe pode atirar em qualquer coisa", observou Mandy,
franzindo a testa em desaprovação para Fanny, que agora
segurava a arma oscilante contra o ombro, parecendo ao mesmo
tempo emocionada e apavorada. Jamie se agachou atrás dela,
firmando a arma, sua mão sobre a dela, ajustando sua pegada e
sua mira, sua voz um estrondo baixo, quase inaudível sob a
confusão de uivos e guinchos.
"Vão para a sua avó", disse ele aos meninos, levantando a voz.
Seus olhos estavam fixos no guaxinim, que se enfunou para o
dobro do tamanho normal e lançava insultos a Bluebell,
ignorando completamente o público. Jem e Germain relutante,
mas obedientemente vieram ficar ao meu lado, a uma distância
segura – ou pelo menos eu esperava. Reprimi o desejo de fazê-
los se afastar ainda mais.
A arma disparou com um penetrante bang! que fez Mandy gritar.
Eu não gritei, mas foi por pouco. Bluey ficou de volta nas quatro
patas e agarrou o guaxinim, que havia caído da árvore com o tiro.
Eu não sabia se ele já estava morto, mas ela deu uma tremenda
sacudida de quebrar o pescoço, largou a carcaça ensanguentada e
soltou um au-auuu! de triunfo.
Os meninos correram para a frente, gritando e batendo nas costas
de Fanny com entusiasmo. A própria Fanny estava boquiaberta,
perplexa. Seu rosto estava pálido, o que podia ser visto por trás
de uma mancha de fumaça de pólvora negra, e ela continuava
olhando da arma em suas mãos para o guaxinim morto,
claramente incapaz de acreditar.
359

"Muito bem, Frances." Jamie deu um tapinha gentil na cabeça


dela e tirou a arma de suas mãos trêmulas. "Os rapazes devem
estripar e esfolar para você?"
"Eu... si-sim. Por favor", ela adicionou. Ela olhou para mim, mas,
em vez de sentar-se, caminhou cambaleante até Bluey e caiu de
joelhos nas folhas ao lado da cachorra.
"Boa cachorra", disse ela, abraçando a cachorra, que lambeu seu
rosto alegremente. Vi Jamie olhar atentamente para a cachorra
quando ele se abaixou para pegar a carcaça manchada de sangue,
mas Bluey não fez objeções, apenas ‘fez uau-uau’200 na garganta.
Depois do barulho da caçada – se é que alguém chamaria assim,
e eu acho que alguém chamaria – a floresta parecia anormalmente
silenciosa, como se até o vento tivesse parado de soprar. Os
meninos ainda estavam empolgados, mas se estabeleceram na
absorvente atividade de esfolar e estripar o guaxinim, insistindo
para que Fanny admirasse a habilidade deles. Com o fim da parte
barulhenta, Mandy se juntou com entusiasmo a eles,
perguntando: "O que é isso?" à medida que cada nova parte da
anatomia interna era revelada.
Jamie sentou-se ao meu lado, colocou o rifle aos seus pés e
relaxou, observando as crianças com um olhar benevolente. Eu
estava menos relaxada. Eu ainda podia sentir o eco do tiro de rifle
na minha medula óssea, e fiquei surpresa e perturbada com a
sensação.
Desviei o olhar e respirei fundo, tentando substituir o cheiro forte
de sangue fresco pelos aromas mais suaves da floresta e o
almíscar dos cogumelos. Esse último pensamento me fez olhar
para o meu cesto, onde o vermelho carnudo e cru da Fistulina

200
Aqui, no texto original está ‘woofling’, mais usado como substantivo, um termo afetuoso direcionado
a mais de um cachorro (woofle, o mesmo que doggo). Mas woofing (sem a letra L no meio) significa os
diversos sons que os cachorros fazem. Pode ser um erro de digitação (e revisão), mas também podemos
entender como um neologismo ou uma onomatopeia a como o inglês reproduz o som que os cachorros
fazem – “ wow wow” é o nosso “uau uau”.
360

hepatica aparecia como cortes sangrentos em meio às camadas


de folhas úmidas. O conteúdo do meu estômago subiu para minha
garganta e eu me ergui de repente.
"Sassenach?" A voz de Jamie veio atrás de mim, assustada.
"Você está bem?"
Eu estava encostada em um álamo, segurando o tronco branco
como papel para me apoiar, tentando não ouvir os ruídos de
estripação acontecendo a alguns metros de distância.
"Tudo bem", eu disse, com os lábios dormentes. Fechei meus
olhos brevemente, abri-os para ver um filete de seiva meio seca
escorrendo de uma rachadura no tronco do álamo – vermelho
escuro como sangue seco – me soltei e sentei pesadamente sobre
as folhas.
"Sassenach." Sua voz era baixa, urgente, mas suave para não
alarmar as crianças. Engoli em seco, uma, duas vezes, então abri
meus olhos.
"Estou bem", disse eu. "Um pouco tonta, só isso."
"Você está tão branca quanto aquela árvore, a nighean. Aqui..."
Ele enfiou a mão no sporran e tirou um pequeno frasco. Uísque!
E eu engoli com gratidão, deixando-o encher minha boca e secar
o gosto de sangue.
Gritos e risos das crianças – eu olhei por cima do ombro e vi que
Bluey estava rolando em êxtase nas vísceras descartadas, as
partes brancas de sua pelagem agora manchadas de um marrom
sujo. Inclinei-me e vomitei, uísque e bile subindo pela parte de
trás do meu nariz.
"A Dhia", murmurou Jamie, enxugando meu rosto com o lenço.
"Você comeu algum desses cogumelos, moça? Você está
envenenada?"
Eu empurrei o lenço para longe, respirando fundo.
361

"Não. Estou bem. De verdade." Eu engoli novamente. "Posso...",


eu estendi a mão para o frasco e ele o colocou na minha palma.
"Beba", aconselhou ele e, levantando-se, foi até as crianças,
colocando-as em ordem rapidamente. A carne e a pele foram
acondicionadas em minha cesta, os restos enterrados atrás de uma
árvore, longe da minha vista, e as crianças enviadas para o riacho
distante com instruções firmes para se lavarem e limparem a
cachorra.
"Sua avó está um pouco cansada da caminhada, mo leannan",
disse ele com um rápido olhar para mim. "Vamos apenas
descansar aqui um pouco até vocês voltarem. Amanda, fique com
Frances e cuide dela, sim? E vocês, rapazes, fiquem atentos; não
é uma boa ideia esgueirar-se pela floresta com cheiro de sangue.
Se vocês virem algum porco, levem as meninas para cima de uma
árvore e gritem. Oh, é melhor você ficar com isso ", disse ele,
pegando o rifle e entregando-o a Jem. "Apenas por precaução."
Ele deu a Germain a bolsa de balas e observou enquanto eles
desciam a encosta em direção ao som da água, mais contidos
agora, mas ainda rindo e discutindo enquanto avançavam.
"Então." Ele se sentou ao meu lado, me olhando de perto.
"Sério, estou bem", eu disse – e de fato me senti muito melhor
fisicamente, embora ainda houvesse um tremor profundo em
meus ossos.
"Sim, posso ver que sim", ele disse cinicamente. Ele não
pressionou mais, porém, apenas sentou-se ao meu lado, os
antebraços apoiados nos joelhos, relaxado – mas pronto para
qualquer coisa que pudesse acontecer.
"Je suis prest201", eu disse, tentando sorrir apesar da fina camada
de suor frio que cobria meu rosto. "Suponho que você não tenha

201
Eu estou pronto. Em francês. O lema do clã Fraser.
362

sal no seu sporran, não é?"


"Claro que sim", disse ele, surpreso, e puxou um pequeno pedaço
de papel. "É bom quando você está peely-wally202?"
"Talvez." Toquei o sal com o dedo e coloquei alguns grãos na
língua. O gosto foi purificador, para minha surpresa. Segui com
um gole cauteloso de uísque e me senti muito melhor.
"Não sei por que perguntei", disse eu, devolvendo-lhe o toque.
"O sal supostamente afasta os fantasmas, não é?"
Um leve sorriso tocou sua boca quando ele olhou para mim.
"Sim", ele disse. "Então, o que está assombrando você,
Sassenach?"
Teria sido fácil ignorar isso, ignorá-lo. Mas, de repente, eu não
conseguia mais fazer isso.
"Por que a cachorra não incomoda você?", eu perguntei sem
rodeios.
Seu rosto ficou vazio por um momento e ele desviou o olhar, mas
apenas para pensar. Ele piscou uma ou duas vezes, suspirou e se
virou para mim, com o ar de quem está se preparando para algo
desagradável.
"Ela me incomodou", disse ele calmamente. "Quando eu ouvi o
uivo naquela primeira noite, eu pensei – bem, você talvez saiba o
que eu pensei."
"Que... talvez seu mestre tivesse vindo com ela? Teria... talvez a
colocado no seu encalço?"
Minha própria voz não era mais do que um sussurro, mas ele me
ouviu e assentiu com a cabeça lentamente.
"Sim", ele disse, também muito baixinho. Eu vi sua garganta se
mover enquanto ele engolia. "Pensei que talvez eu tivesse trazido
202
Pálido, e com aparência doentia. Em scots.
363

algo para casa... "


Eu engoli, eu mesma, mas tinha que dizer isso.
"Você trouxe."
Seus olhos encontraram os meus e ficaram mais penetrantes, um
azul escuro quase preto na sombra das castanheiras. Sua boca se
apertou, mas ele não disse nada por um minuto.
"Quando ela veio sozinha", ele disse por fim, "e veio até mim,
procurando abrigo, comida... e então quando os bairns se
apegaram imediatamente a ela, e ela a eles..." Ele desviou o olhar,
como se envergonhado. "Eu pensei que ela talvez tivesse sido
enviada, sabe. Como um... um sinal de perdão. E talvez, ao
acolhê-la, eu pudesse..." Ele fez um pequeno gesto desamparado
com a mão mutilada.
"Fazer isso ir embora?"
Ele respirou fundo e seus punhos se flexionaram brevemente,
então relaxaram.
"Não. O perdão não faz com que as coisas desapareçam. Você
sabe disso tão bem quanto eu." Ele virou a cabeça para olhar para
mim, com curiosidade. "Não é?"
Não havia mais do que alguns centímetros entre nós, mas a
dolorosa distância entre nossos corações chegava a quilômetros.
Jamie ficou em silêncio por um longo tempo.
Eu podia ouvir meu coração batendo em meus ouvidos...
"Ouça", ele disse por fim.
"Estou ouvindo." Ele olhou de soslaio para mim e o fantasma de
um sorriso tocou sua boca. Ele estendeu uma palma larga e
manchada de resina de pinheiro para mim.
"Me dê suas mãos enquanto faz isso, sim?"
"Por quê?"
364

Mas eu coloquei minhas mãos nas dele sem hesitar, e senti seu
aperto nelas. Seus dedos estavam frios e pude ver os pelos de seu
antebraço arrepiados de frio, onde ele arregaçou as mangas para
ajudar Fanny com a arma.
"O que machuca você parte meu coração", ele disse suavemente.
"Você sabe disso, sim?"
"Eu sei", eu disse, tão suavemente quanto. "E você sabe que é
verdade para mim também. Mas..." Eu engoli e mordi meu lábio.
"Parece... parece..."
"Claire", ele interrompeu, e olhou para mim diretamente. "Você
está aliviada por ele estar morto?"
"Bem... sim", eu disse infeliz. "Eu não quero me sentir assim; não
parece certo. Quer dizer..." Eu me esforcei para encontrar uma
maneira clara de colocar isso. "Por um lado, o que ele fez comigo
não foi... mortal. Eu odiei, mas não me machucou fisicamente;
ele não estava tentando me machucar ou me matar. Ele só..."
"Quer dizer, se fosse Harley Boble que você encontrasse no
Entreposto Beardsley, você não se importaria que eu o matasse a
sangue frio?", ele interrompeu, com um toque de ironia.
"Eu mesma teria atirado nele, assim que o visse." Eu soltei um
suspiro longo e profundo. "Mas isso é outra coisa. Aí está o que
ele – o homem – você sabe o nome dele, a propósito?"
"Sim, e você não vai saber, então não me pergunte", disse ele
laconicamente.
Eu dei a ele um olhar perfurante e ele devolveu. Eu abanei minha
mão, dispensando essa questão por um momento.
"A outra coisa", repeti com firmeza, "é que se eu mesmo tivesse
atirado em Boble, você não teria que fazer isso. Eu não acharia
que você foi... prejudicado por isso."
Seu rosto ficou vazio por um momento, então seu olhar se aguçou
365

novamente.
"Você acha que me prejudicou matar o homem que a estuprou?"
Peguei sua mão e a segurei.
"Eu sei que sim", eu disse calmamente. E acrescentei em um
sussurro, olhando para a mão poderosa e cheia de cicatrizes na
minha. "O que machuca você parte o meu coração, Jamie."
Seus dedos se fecharam com força sobre os meus. Ele ficou
sentado com a cabeça baixa por um longo momento, então ergueu
minha mão e beijou-a suavemente.
"Está tudo bem, mo chridhe203", disse ele. “Dinna fash. Há outro
lado disso. E um que não tem nada a ver com você. "
"Que lado é esse?", eu perguntei, surpresa. Ele apertou minha
mão brevemente e a soltou, sentando-se para olhar para mim.
"Eu não poderia deixá-lo viver", ele disse simplesmente. "Quer
ele a tenha forçado ou não. Você estava lá quando Ian me
perguntou o que fazer. Eu disse: Mate todos eles. Você me ouviu,
sim? "
"Eu ouvi." Minha garganta estava repentinamente apertada e
havia uma faixa de ferro em volta do meu peito, o gosto de sangue
estava coagulando em minha boca e o medo de sufocar era uma
escuridão em minha mente. A sensação daquela noite se infiltrou
em mim como fumaça fria.
"Eu poderia ter feito isso com raiva – eu fiz isso com uma raiva
negra – mas eu teria feito o mesmo se meu sangue estivesse frio
como gelo." Ele tocou meu rosto, alisando um cacho que escapou.
"Você não vê? Esses homens eram bandidos e coisas piores.
Deixar um deles vivo seria deixar a raiz de uma planta venenosa
no solo, para crescer novamente."
Havia uma imagem vívida – mas também havia minha memória
203
Meu coração, meu amor. Gaélico.
366

daquele homem grande e trôpego, vagando distraidamente entre


os chiqueiros do posto comercial de Beardsley, onde o vi depois.
Parecendo tão diferente do homem que saiu da escuridão, para
me sufocar com o peso de seu corpo ...
"Mas ele parecia tão... irresponsável", eu disse, com um gesto
impotente. "Como alguém assim poderia começar a montar
uma... uma gangue?"
Ele se levantou de repente, incapaz de se sentar por mais tempo,
e começou a andar inquieto de um lado para o outro na minha
frente.
"Você não vê, Sassenach? Mesmo ele sendo um idiota
irresponsável... ele ia a lugares. Você o viu conversando com o
pessoal do Beardsley, não?"
"Sim", eu disse lentamente, "mas..."
Ele parou, olhando para mim.
"E se ele começasse a falar, um dia, sobre como ele cavalgou com
Hodgepile e os Browns, as coisas que eles fizeram? E se ele se
perdesse na bebida e se gabasse de como..."
Ele sufocou e respirou fundo. "Sobre o que ele fez com você."
Senti como se tivesse engolido algo frio e viscoso. E ainda
ligeiramente vivo. A boca de Jamie se comprimiu, olhando para
meu rosto.
"Sinto muito, Sassenach", disse ele calmamente. "Mas é verdade.
E eu não permitiria que isso acontecesse. Por sua causa. Por
minha causa. Mas mais... porque se soubessem que tal coisa havia
acontecido..."
"Era sabido", eu disse, meus lábios rígidos. "Isso é conhecido."
Nenhum dos homens que me resgataram naquela noite poderia
ter dúvidas de que eu tinha sido estuprada, sabendo eles quais
homens – homens, plural – cometeram o ato, ou não. Se eles
367

sabiam, suas esposas sabiam. Ninguém nunca tinha falado


comigo sobre isso, nem jamais falaria, mas o conhecimento
estava lá, e não havia nenhuma maneira de fazê-lo desaparecer.
"Porque se soubessem que tal coisa aconteceu", ele repetiu
uniformemente, "e que algum homem que participou disso teve
permissão para viver... então qualquer um que vive sob minha
proteção se sentiria desamparado. E com razão."
Ele exalou fortemente pelo nariz, virando-se.
"Você não se lembra daquele homem – aquele que se
autodenominava Wendigo?"
"Jesus."
Um arrepio percorreu meus ombros e meus braços. Eu tinha
esquecido. Não o próprio homem – ele era um viajante do tempo
chamado Wendigo Donner – mas sua conexão com o homem que
estávamos discutindo.
Membro da gangue de Hodgepile, Donner escapou para a
escuridão quando Jamie e seus homens me resgataram – e meses
depois voltou para a Cordilheira, com companheiros, para roubar
e matar, em busca das pedras preciosas que ele sabia que
tínhamos. Foi seu ataque à Casa Grande que causou –
indiretamente – o incêndio que a queimou até o chão, e suas
cinzas ainda estavam misturadas com os restos de nossas vidas
naquela clareira.204
Jamie estava certo. Donner escapou e voltou para tentar nos
matar. Deixar o homem que me estuprou em liberdade era
arriscar que a mesma coisa acontecesse novamente. A
compreensão disso me enojou. Eu tinha conseguido deixar a
maior parte do que acontecera de lado, lidando com os aspectos
físicos conforme necessário, anulando firmemente ou me

204
Fatos do livro 6.
368

recusando a lembrar do resto. Mas ainda estava lá – tudo aquilo,


girando como um prisma maligno para mostrar as coisas sob uma
nova luz dura. A luz, agora percebi, que Jamie sempre via.
E, vendo agora por mim mesma com clareza, contraí os músculos
da barriga e forcei minha voz a ficar firme.
"E se ele não fosse o último deles?"
Jamie balançou a cabeça, não em negação, mas em resignação.
"Não importa, Sassenach. Se houver outros que escaparam... a
maioria seria sábia o suficiente para fugir e ficar longe. Mas não
importa – outra gangue surgirá. É assim que as coisas são, certo?
"
"É isso?" Achei que ele estava certo – eu sabia que ele estava
certo, em termos de guerras, governos, tolices humanas em geral.
Eu só não queria acreditar que isso fosse verdade neste lugar. Esta
era a minha casa.
Ele acenou com a cabeça, observando meu rosto, não sem
simpatia.
"Lembra da Escócia – a Patrulha?"
"Sim." As Patrulhas, ele poderia ter dito, pois eram muitas.
Gangues organizadas, que extorquiam dinheiro para proteção –
mas às vezes davam essa proteção. E se eles não recebessem o
dinheiro – aluguel negro, como se chamava – poderiam queimar
sua casa ou plantação. Ou pior.
Pensei na cabana que Jamie e Roger haviam encontrado, uma
concha queimada, com os proprietários pendurados em uma
árvore diante da casa – e uma menina viva nas cinzas, tão
gravemente queimada que não conseguiria viver. Nunca
descobrimos quem fez aquilo.
Jamie podia ver os pensamentos cruzando meu rosto. Eu poderia
muito bem ter um letreiro de neon na testa, pensei zangada, e
369

evidentemente ele também percebeu isso, pois sorriu.


"Não há lei agora, Sassenach", disse ele. "Não com a saída do
governo."
Não havia medo nem paixão nessa declaração – era apenas a
verdade da questão.
"Nunca houve, aqui em cima. Ninguém além de você, quero
dizer."
Isso o fez rir, mas eu estava tão certa quanto ele.
"Não fui resgatá-la sozinho, sim? Aquela noite?"
"Não", eu disse lentamente. "Você não foi sozinho."
Todos os homens saudáveis da Cordilheira responderam ao seu
pedido de ajuda e saíram para segui-lo. Da mesma forma que os
homens de seu clã o teriam seguido para a guerra, se estivéssemos
na Escócia.
"Então", eu disse, respirando fundo. "Esses são os homens com
quem você pretende... hã... formar uma gangue?"
Ele acenou que sim com a cabeça, parecendo pensativo.
"Alguns deles", ele disse lentamente, e então olhou para mim. "É
diferente agora, a nighean. Há homens que estavam comigo
naquela noite que não vão me seguir agora, porque são homens
do rei – conservadores e legalistas. Os homens que me conhecem
há mais tempo não se importam tanto que eu seja um general
rebelde – mas há muitos novos inquilinos que nem me
conhecem."
"Não tenho certeza se general rebelde é um título que você pode
perder", eu disse.
"Não", ele disse, e sorriu, embora não com muito humor. "Não
sem virar a casaca. Sim, bem."
Ele se levantou e estendeu a mão para me puxar para cima com
370

um farfalhar de folhas. "Eu sou um traidor há muito tempo,


Sassenach, mas prefiro não ser um traidor dos dois lados ao
mesmo tempo. Se eu puder evitar."
Gritos e latidos ecoaram da trilha acima; as crianças chegavam à
casa de Ian. Corremos atrás deles e não falamos mais sobre
gangues, traição ou homens gordos no escuro.
371

20

APOSTO QUE VOCÊ PENSA QUE


ESTA MÚSICA É SOBRE VOCÊ… 205

NINGUÉM IA AO Jardim Velho, como a família o chamava. As


pessoas na Cordilheira o chamavam de Jardim da Criança-Bruxa,
embora não eu não ouvisse isso frequentemente. Eu não tinha
certeza se "criança-bruxa" pretendia referir-se à própria Malva
Christie ou ao seu filho. Os dois morreram no jardim, em meio
ao sangue – e em minha companhia. Ela não tinha mais de
dezenove anos.
Nunca disse o nome em voz alta, mas para mim, era Jardim da
Malva.
Por um tempo, eu não fui capaz de ir até lá sem uma sensação de
desperdício e terrível tristeza, mas eu ia lá de vez em quando.
Lembrar. Para orar, às vezes. E, francamente, se alguns dos
presbiterianos mais obstinados da Cordilheira me tivessem visto
em algumas dessas ocasiões, falando em voz alta com os mortos
ou com Deus, eles teriam certeza de que tinham o nome certo,
mas a bruxa errada.
Mas a floresta tinha sua própria magia lenta e o jardim estava
voltando para ela, curando-se sob a grama e o musgo, o sangue
se transformando em uma flor carmesim de monarda, e sua
tristeza se transformando em paz.
Apesar da transformação lenta, porém, alguns restos do jardim
permaneceram, e pequenos tesouros surgiram inesperadamente:

205
Verso da canção You're So Vain (1972), de Carly Simon, um single de 1972. Rumores
(confirmados em 2015 pela própria cantora) dizem que ela compôs essa música pensando em seu ex-
namorado, Warren Beatty, um tremendo mulherengo que “pensava que tudo girava em torno dele”.
372

havia um canteiro de cebolas teimosamente próspero em um


canto, uma espessa vegetação de confrei e vinagreira lutando
contra a grama, e – para o meu deleite intenso – vários arbustos
de amendoim prósperos, brotando de sementes enterradas há
muito tempo.
Eu os havia encontrado duas semanas antes, as folhas apenas
começando a amarelar, e os desenterrei. Pendurei-os no
consultório para secar, arranquei os amendoins secos do
emaranhado de terra e raízes e os torrei na casca, enchendo a casa
de lembranças de circos e jogos de beisebol.
E esta noite, pensei, despejando as nozes frias, com casca, em
minha bacia de lata, teríamos sanduíches de manteiga de
amendoim e geleia para o jantar.
-.-.-

HAVIA UMA BRISA na varanda e fiquei grata por senti-la no


meu rosto depois do calor do sol e da lareira. Também um pouco
de solidão era bem-vinda: Bree fora com Roger visitar os
inquilinos que eu ainda considerava pescadores – emigrantes de
Thurso, um bando de presbiterianos enrugados que desconfiavam
profundamente de Jamie como católico, e muito mais de mim. Eu
não era apenas católica, mas também uma feiticeira, e a
combinação os incomodava muito. Eles gostavam de Roger,
porém, de uma forma relutante, e o sentimento parecia recíproco.
Ele os entendia, disse ele.
As crianças haviam feito suas tarefas e foram espalhadas aos
quatro ventos; eu ouvia suas vozes de vez em quando, rindo e
gritando na floresta atrás da casa, mas só Deus sabia o que
estavam fazendo. Eu estava muito satisfeita por eles não estarem
fazendo o que quer que fosse bem na minha frente.
Jamie estava em seu escritório, desfrutando de sua própria
373

solidão. Eu passei, carregando minha grande bacia de amendoim


para fora, e o vi recostado na cadeira, óculos no nariz,
profundamente absorto em Green Eggs and Ham.
Sorri com o pensamento e tirei a fita para soltar meus cabelos
para que a brisa fria pudesse passar por eles.
Perdemos quase todos os nossos livros no incêndio que consumiu
a Casa Grande, mas estávamos começando a construir nossa
pequena biblioteca novamente.
As contribuições de Brianna quase a dobraram.
Além dos livros que ela trouxe – e pensar em meu precioso
Manual Merck ainda me dava uma pequena euforia de posse -
tínhamos a pequena Bíblia verde de Jamie, uma gramática latina,
As Aventuras de Robinson Crusoe206 (sem capa, mas mantendo a
maior parte de suas ilustrações vívidas), e As viagens de Gulliver,
de Jonathan Swift, com seu título original: Viagens a diversos
países remotos do mundo, em quatro partes, por Lemuel
Gulliver, a princípio cirurgião e mais tarde capitão de vários
navios em várias nações remotas do mundo, além de um ou outro
romance em francês ou inglês.
As cascas externas rachavam com facilidade, mas as peles secas
dos amendoins eram leves e parecidas com papel e grudavam em
meus dedos. Eu os estava limpando na minha saia, que agora
parecia ter sido atacada por uma horda de mariposas marrom-
claras. Eu me perguntei se Bree poderia pegar emprestado algo
interessante para ler enquanto ela estivesse visitando casas com
Roger. Hiram Crombie, o chefe do povo de Thurso, era um bom
leitor, embora seu gosto fosse de coleções de sermões e relatos
históricos; ele considerava os romances depravados. Ele tinha
uma cópia de A Eneida, entretanto – eu tinha visto.

206
O título completo original desse livro de Daniel Defoe, de 1719, é praticamente um resumo do enredo.
Vale a pena pesquisar.
374

Jamie havia enviado uma carta a seu amigo Andrew Bell,


impressor e editor de Edimburgo, pedindo-lhe que nos enviasse
uma seleção de livros, incluindo cópias de seu próprio Histórias
do Vovô e minha modesta versão da medicina doméstica faça-
você-mesmo, aplicando o dinheiro que pode ter sido acumulado
nas vendas durante os últimos dois anos para a compra dos outros
livros no pedido. Eu me perguntei quando – e se – isso poderia
chegar. Pelo que eu sabia, os britânicos ainda mantinham
Savannah, mas Charles Town continuava nas mãos dos
americanos; se o Sr. Bell fosse rápido, havia esperança de que um
navio atrasado aparecesse carregado de livros antes das
tempestades de inverno.
Passos atrás de mim interromperam meus pensamentos literários
e me virei para ver Jamie, descalço e amarrotado, enfiando os
óculos de volta no sporran.
"Está gostando da leitura?", eu perguntei, sorrindo.
"Sim." Ele se sentou me e pegou um amendoim da bacia,
quebrou-o e jogou as sementes em sua boca. "Brianna diz que o
Dr. Seuss produziu muitos livros. Você leu todos eles,
Sassenach?" Ele pronunciou Soyce, no alemão correto, e eu ri.
"Ah, sim. Muitas vezes. Bree tinha o conjunto completo – ou pelo
menos tantos quanto foram publicados na época. Suponho que
ela e Roger poderiam ter comprado mais para Jem e Mandy, se o
Dr. Seuss – os americanos dizem seu nome Soos, por falar nisso
– se ele continuasse escrevendo. Eu não sei quanto tempo ele
viveu – viverá", eu corrigi. "Ele ainda estava ativo em 1968."
Ele acenou com a cabeça, um pouco melancólico.
"Eu gostaria de poder vê-los", disse ele. "Mas talvez Brianna se
lembre de algumas das rimas, pelo menos."
"Pergunte ao Jem", eu sugeri. "Bree diz que ele lê para Mandy
desde que ela era um bebê e que tem uma memória excelente."
375

Eu ri, pensando em algumas das ilustrações do Seuss. "Pergunte


a Bree se ela pode desenhar Horton, o Elefante, ou Yertle, a
Tartaruga para você, de memória."
"Yertle?" Seu rosto se iluminou com humor. "Esse não é um
nome real, é?" "Não, mas rima com turtle, tartaruga em inglês."
Eu quebrei outra casca e joguei os pedaços da concha na grama.
"Assim como Myrtle", ele apontou.
"Sim, mas Yertle é um menino. Nenhuma tartaruga fêmea teria
feito o que ele fez."
Jamie estava se divertindo; ele parou com a mão na bacia.
"O que ele fez?"
"Fez com que todas as tartarugas em Sala-ma-Sond se
posicionassem em uma torre para que ele pudesse ser o Rei de
tudo o que via ao sentar-se em cima delas. É uma alegoria sobre
arrogância e orgulho. Não que as mulheres não sejam capazes
dessas emoções – só que elas não fariam nada tão facilmente
ilustrado."
Jamie pegou um punhado de amendoins e amassou
distraidamente, balançando a cabeça.
"Sim? E qual o tipo de alegoria desse Green Eggs and Ham? ",
ele perguntou.
"Acho que a intenção é exortar as crianças a não serem exigentes
com o que comem", disse eu, em dúvida. "Ou não ter medo de
tentar algo novo ... O que você está fazendo?" Pois ele deixou cair
seu punhado de amendoins triturados na bacia, com cascas e tudo.
"Ajudando você", disse ele, pegando outro punhado. "Você vai
ficar assim o dia todo, Sassenach, fazendo um de cada vez." Ele
esmagou o segundo punhado e jogou-o, com destroços e tudo, na
bacia.
"Mas tirar todas as cascas de lá vai..."
376

"Vamos peneirá-los", interrompeu ele, virando-se e apontando


com o queixo para o flanco distante da Montanha Roan. "Vê o
vento descendo por entre as árvores? Há uma tempestade vindo."
Ele estava certo: nuvens estavam se formando atrás do pico; as
manchas de álamo pálido na encosta tremeluziram quando o
vento crescente tocou suas folhas, e os pinheiros se inclinaram
em profundas ondas verdes. Eu balancei a cabeça e peguei várias
cascas para esmagar entre as palmas das mãos.
"Frank", disse Jamie abruptamente, e eu parei de repente.
"Falando em livros..."
"O quê?", eu disse, não tendo certeza se tinha acabado de ouvi-lo
dizer Frank. Ele tinha, entretanto, e uma pequena sensação de
mal-estar enrolou-se na base da minha espinha.
"Eu preciso que você me diga algo sobre ele." Sua atenção estava
fixa na tigela de amendoim, mas ele não estava falando isso
casualmente.
"O quê?", eu disse de novo, mas em um tom totalmente diferente.
Eu tirei as cascas de amendoim lentamente de minhas saias, meus
olhos em seu rosto. Ele ainda não estava olhando para mim, mas
sua boca se comprimiu brevemente enquanto ele esmagava um
novo punhado.
"A imagem dele em seu livro – a fotografia. Eu só estava me
perguntando, quantos anos ele tinha quando essa imagem foi
feita?"
Fiquei surpresa, mas considerei.
"Deixe-me ver... ele tinha 60 anos quando morreu..." Mais jovem
do que eu agora ... Meu lábio inferior se contraiu por um
momento, quase involuntariamente, e Jamie me lançou um olhar
penetrante. Eu olhei para baixo e limpei mais fragmentos de
amendoim.
377

"Cinquenta e nove. Ele tirou aquela fotografia para aquela capa


de livro em particular. Eu me lembro, porque ele tinha usado a
mesma fotografia – uma diferente, mais antiga, quero dizer – em
pelo menos seis livros antes disso, e ele brincou que não queria
que as pessoas o encontrassem pela primeira vez e olhassem por
cima de seu ombro procurando por um homem com metade de
sua idade." Eu sorri um pouco, lembrando, mas encontrei os olhos
de Jamie, me sentindo um pouco desconfiada. "Por que você
pergunta?"
"Eu costumava me perguntar, às vezes, como ele era." Ele olhou
para baixo e alcançou a bacia, mas com o ar de um homem
procurando algo que o distraísse. "Quando eu orava por ele."
"Você orava por ele?" Não tentei esconder o espanto na minha
voz, e ele olhou para mim, depois para longe.
"Sim. Eu... bem, o que mais eu poderia fazer por alguém, a não
ser orar?" Havia um toque de amargura nisso; ele mesmo ouviu e
pigarreou. "Deus o abençoe, seu maldito inglês! Era o que eu
dizia. À noite, sabe, quando eu pensava em você e no bairn." Sua
boca se apertou por um instante, depois relaxou. "Eu imaginava
como seria a aparência do bairn também."
Estendi a mão e fechei minha mão em seu pulso, grande e ossudo,
sua pele fria com o vento. Ele parou de esmagar os amendoins e
eu apertei seu pulso, suavemente. Ele soltou a respiração e seus
ombros relaxaram um pouco.
"Frank tem a aparência que você pensava que ele tinha?" Eu
perguntei, curiosa. Tirei minha mão de seu pulso e ele pegou
outro punhado de amendoim.
"Não. Você nunca me disse como ele parecia...207 "

207
No livro 2, cap 8, ela conta da semelhança entre Black Jack Randall e Frank. E no livro 4, cap 53, ele
relembra isso a ela, quando diz que sente ciúmes de um homem morto, e que ele sabia que Frank se
parecia com Jack Randall. Jaime e Claire (além de DG) estão meio esquecidos.
378

Por uma maldita boa razão. E você nunca perguntou, pensei.


Porque agora?
Ele encolheu os ombros e a contração voltou à boca, mas agora
com um toque de humor.
“Eu gostava de pensar nele como um homenzinho baixinho,
talvez perdendo os cabelos e barrigudo." Ele olhou para mim e
encolheu os ombros. A contração voltou novamente. "Eu pensava
que ele era inteligente, entretanto, você não teria amado um
homem estúpido. E eu coloquei os óculos certos. Embora eu
achasse que eles teriam aros dourados, não pretos. De chifre, são
eles? Ou casco de tartaruga escura? "
Eu resfoleguei, divertida. Ainda assim, a sensação de mal-estar
estava de volta. "Plástico. E não, ele não era estúpido." De forma
alguma. E um arrepio ondulou brevemente sobre meus ombros.
"Ele era um homem honesto?" Um estalido suave, o tamborilar
de amendoins e cascas quebradas na bacia de metal. O ar estava
começando a cheirar à chuva e à doçura oleosa dos amendoins.
"Em muitos aspectos", eu disse lentamente, observando Jamie.
Sua cabeça estava inclinada sobre a bacia, concentrado em seu
trabalho. "Ele guardava segredos. Mas eu também." O amor tem
espaço para segredos – você me disse isso uma vez208. Eu não
acho que havia espaço entre nós agora para nada além da verdade.
Ele fez um pequeno som escocês no fundo da garganta; eu não
sabia o que ele queria dizer com isso. Ele largou o último
punhado de cascas mutiladas na bacia e olhou para cima para
encontrar meus olhos.
"Posso confiar nele, você acha?" O céu nublado ainda estava
claro, e ele estava escuro contra ele, mechas de cabelo voando
livremente ao redor de sua cabeça. Estremeci brevemente e meu

208
O “respeito” tem espaço para segredos, mas não para mentiras, foi o que Jamie disse no livro 1 cap
15. Ele a corrigiu sobre isso no livro 8 cap 142. Novamente, Claire inverteu a frase de Jamie.
379

estômago encolheu com a absurda, mas absoluta convicção de


que alguém estava parado atrás de mim.
"O que você quer dizer?" Eu estava nervoso e isso transparecia
na minha voz. "Você confiou nele, não é? Conosco. Eu e
Brianna."
"Eu não tive escolha sobre isso, certo? Agora eu tenho." Ele se
endireitou, esfregando as palmas das mãos, e os últimos
fragmentos de pele de amendoim giraram para longe com o vento
forte.
Respirei fundo para evitar que minha voz tremesse e tirei pedaços
da casca do meu corpete. "Agora você tem escolha? Quer dizer
que você está se perguntando se pode acreditar no que ele
escreveu naquele livro?"
"Estou."
"Ele era um historiador", eu disse com firmeza, recusando-me a
virar a cabeça e olhar para trás. "Ele não iria – ele não poderia –
falsificar nada, mais do que Roger poderia mudar o que está na
Bíblia. Ou você, que não me contaria uma mentira deliberada."
"E você, de todas as pessoas, sabe o que é a história", disse ele
sem rodeios, e se levantou, com os joelhos estalados. "Quanto a
mentir... todo mundo faz isso, Sassenach, se não com frequência.
Eu certamente fiz isso."
"Não para mim", eu disse. Não era uma pergunta e ele não
respondeu.
"Pegue uma tigela, sim?"
Ele pegou a bacia e saiu para o quintal, onde o vento atingiu sua
camisa e soprou o pano atrás dele. As nuvens estavam fervendo
atrás das montanhas, e o cheiro da chuva era forte no vento. Não
demoraria muito.
Eu me levantei, me sentindo muito estranha, e me virei. A porta
380

da frente estava aberta, vazia, sua cobertura de lona empurrada


para o lado. Senti o vento soprar passando por mim, movendo-se
em minhas saias, e ouvi-o descer pelo corredor e entrar nas salas
diante de mim, sacudindo os pequenos potes de vidro em meu
consultório, agitando papéis no escritório de Jamie.
No meu caminho para a cozinha, vi o livro de Frank sobre a mesa
do escritório de Jamie e, por impulso – olhando
involuntariamente por cima do ombro, embora estivesse sozinha
– entrei.
A Alma de um Rebelde: As Raízes Escocesas da Revolução
Americana. Por Franklin W. Randall, PhD.
Jamie havia deixado o livro aberto, com o rosto para baixo. Ele
nunca tratava os livros assim. Ele usaria qualquer coisa como
marcador – folhas, penas de pássaro, uma fita de cabelo... uma
vez abri um livro que ele estava lendo para encontrar o pequeno
corpo seco de um lagarto em que alguém pisou. Mas ele sempre
fechava um livro, cuidando da encadernação.
Frank olhava para mim da contracapa, calmo e inescrutável.
Toquei seu rosto, muito gentilmente, através da capa de plástico
transparente, com um sentimento de tristeza distante, pesar
misturado com – por que não ser honesta agora? Não havia
necessidade de guardar segredos de mim mesma – alívio. Foi
concluído.
Estranhamente, a sensação de alguém parado atrás de mim havia
desaparecido quando entrei em casa.
Peguei o livro para fechá-lo e olhei para dentro ao fazer isso.
Capítulo 16, disse o título no topo da página. Partisan bands –
Bandas Partidárias.
Peguei a tigela grande para creme de leite que Jamie me trouxera
de Salem e levei para fora, sem olhar para o livro – agora
devidamente fechado sobre a mesa – mas bem ciente disso.
381

Jamie começou a peneirar o amendoim, pegando um punhado da


bacia, despejando a mistura de amendoim e detritos de uma mão
para a outra e vice-versa, deixando que os pedaços de casca e pele
voassem enquanto os amendoins mais pesados caíam com um
pequeno ting-ting-ting! na tigela. O vento estava forte o
suficiente – ficaria muito forte em pouco tempo e também
começaria a soprar os grãos. Sentei-me no chão perto da tigela e
comecei a catar os últimos amendoins limpos que caiam junto
com os fragmentos de casca.
"Você leu o livro, então?", eu perguntei depois de um momento,
e ele acenou com a cabeça, sem olhar para mim. "O que você
achou dele?"
Ele fez outro barulho escocês, balançou o último punhado dos
amendoins tilintando na tigela e sentou-se na grama ao meu lado.
"Acho que o bastardo escreveu para mim, é o que eu acho", disse
ele sem rodeios.
Eu fiquei assustada. "Para você?"
"Sim. Ele está falando comigo." Ele ergueu um ombro,
constrangido. "Ou pelo menos eu acho que ele está. Nas
entrelinhas. Quer dizer... pode ser apenas porque estou perdendo
a cabeça. Isso é talvez mais provável. Mas…"
"Falando com você... como, hum, o texto parecer pessoalmente
relevante?", eu perguntei com cuidado. "Não podia deixar de ser,
não é? Dado onde e quando estamos agora, quero dizer."
Ele suspirou e contraiu os ombros, como se sua camisa estivesse
muito apertada – o que não estava; ela ondulava sobre seus
ombros como uma vela ao vento. Eu não o via fazer isso há muito
tempo, e uma ansiedade crescente apertou meu peito.
"Ele está..." Ele balançou a cabeça, procurando palavras. "Ele
está falando comigo", ele repetiu obstinadamente. "Ele sabe
382

quem eu sou – quem eu sou", disse ele com ênfase e olhou para
mim, seus olhos azul-escuros. "Ele sabe quem foi o escocês que
tirou a esposa dele e está falando diretamente comigo. Eu posso
senti-lo, como se ele estivesse atrás de mim, sussurrando em meu
ouvido." Eu vacilei, violentamente, e ele piscou, assustado.
"Isso soa... desagradável", eu disse. Minúsculos pelos se
arrepiaram ao longo da minha mandíbula.
O canto de sua boca se curvou. Ele parou o que estava fazendo e
pegou minha mão, e eu me senti melhor.
"Bem, é um pouco inquietante, Sassenach. Não me importo
exatamente – quero dizer, com certeza, por Deus, ele tem o direito
de dizer coisas para mim, se quiser. É apenas... por quê?"
"Bem...", eu disse lentamente. "Talvez... talvez... para nós?" Eu
balancei a cabeça em direção ao riacho distante, onde Jem e
Germain e Mandy e Fanny estavam evidentemente pegando
sanguessugas, com muitos gritos. Meus lábios estavam secos e os
lambi brevemente.
"Quer dizer, nós pensamos, não é, que ele descobriu? Sobre você
não morrer, quero dizer. E talvez ele soubesse ou adivinhasse que
Bree voltaria procurando por você. Talvez ele... tenha me
encontrado também. Na história, quero dizer."
Dizer as palavras me fez sentir um tanto vazia. A ideia de Frank
descobrindo algo – Deus sabe o quê – sobre mim no turbilhão de
documentos espalhados. E decidindo – enquanto eu ainda estava
ali com ele, maldição! – não me dizer – e pesquisar e descobrir
mais.
"Ele não mencionou meu nome, não é? No livro?" Forcei as
palavras para fora, logo acima do som do vento. Uma gota fria
atingiu minha bochecha e quatro grandes manchas escuras
apareceram instantaneamente no meu avental.
383

"Não", disse Jamie, e se levantou, estendendo a mão para mim.


"Vamos entrar, a nighean, está começando a chover."
Quase não chegamos em casa antes da chuva, com a bacia, a
tigela e nossa safra de amendoim. Fomos seguidos rapidamente
por Germain, Jemmy, Fanny, Mandy, Aidan McCallum e Aodh
MacLennan, salpicados de chuva e com os braços cheios de
vegetais molhados do jardim.
Com uma coisa e outra – moer o amendoim, colocar o pão
crescido para assar, lavar a sujeira dos nabos jovens, guardar as
folhas em uma tigela de água fria para evitar que murchassem,
distribuir pequenas cenouras nodosas frescas para as crianças,
que os comiam como doces, depois cortar o pão fresco e montar
sanduíches, enquanto assava batatas-doces nas cinzas e fazer um
molho de bacon quente para as verduras cozidas – não houve
mais conversa entre mim e Jamie sobre o livro de Frank. E se
alguém ficou atrás de mim, ele foi atencioso o suficiente para me
dar a liberdade de não sentir sua presença.

-.-.-

CONTINUOU CHOVENDO durante o jantar, e depois de


verificar que os McCallums e os MacLennans não estariam se
preocupando onde seus filhos estavam, Jamie trouxe os colchões
para baixo e todas as crianças se deitaram juntas em uma pilha
úmida e quente diante da lareira.
Jamie tinha acendido o fogo em nosso quarto, e o cheiro de
gravetos de abeto seco e madeira de nogueira se sobrepôs ao
cheiro persistente de terebintina das vigas frescas. Ele estava
deitado na cama, vestido com sua camisa de dormir e cheirando
agradavelmente a animais quentes, feno frio e manteiga de
amendoim, e folheando distraidamente meu Manual Merck, que
384

eu deixei na mesa de cabeceira.


"Experimentando o Sortes Virgilianae209, por acaso?", eu
perguntei, sentando ao lado dele e soltando meus cabelos de seu
nó e sacudindo-os soltos. "A maioria das pessoas usa a Bíblia
para isso, mas suponho que o Merck também possa servir. "
"Não tinha pensado nisso", disse ele, sorrindo, e fechando o livro,
entregou-o a mim. "Por que não? Você escolhe, então "
"Tudo bem." Eu pesei o livro em minhas mãos por um momento,
apreciando o tamanho dele e a sensação da capa texturizada sob
meus dedos. Fechei os olhos, abri o livro ao acaso e corri o dedo
pela página. "O que conseguimos?"
Jamie colocou os óculos e se inclinou sobre meu braço, olhando
para o local que marquei.
"A sintomatologia desta condição é variada e obscura, exigindo
extensa observação e testes repetidos antes que um diagnóstico
possa ser feito", ele leu. Ele olhou para mim. "Sim, bem, mais ou
menos se ajusta, não?"
"Sim", eu disse, e fechei o livro, sentindo-me obscuramente
confortada. Jamie bufou levemente, mas pegou o livro de mim e
o colocou de volta na mesa.
"Você pode tomar as observações extensas como fornecidas", ele
disse secamente. "Testes repetidos, entretanto..." Sua expressão
mudou, voltando-se para dentro. "Sim, talvez. Apenas talvez.
Vou precisar pensar sobre isso."
"Pense", eu disse, ligeiramente nervosa por seu olhar de
contemplação interessada. Não tinha ideia de como alguém
poderia testar uma hipótese como a dele – ou talvez tivesse.
Engoli.

209
Forma de adivinhação pela bibliomancia, na qual conselhos ou previsões do futuro são procurados
pela interpretação de passagens das obras do poeta romano Virgílio – ou outro livro grosso o suficiente
para que a escolha da passagem seja aleatória.
385

"Você... quer que eu leia?", eu perguntei. "O livro do Frank?"


A ideia de ler A Alma de um Rebelde – o último livro de Frank –
me dava a sensação de que eu seria formalmente diagnosticada,
sem nenhum teste, como ansiosa ao extremo. E isso, sem
considerar a ideia de Jamie de que Frank de alguma forma
pretendia que o livro fosse uma mensagem pessoal para ele.
Ele olhou para mim assustado. "Você? Não."
Uma explosão de risos e gritos menores surgiu de repente de
baixo. Jamie fez um barulho escocês, levantou-se e calçou as
botas. Levantando uma sobrancelha para mim, ele saiu para o
corredor e caminhou lentamente em direção ao topo da escada,
pisando forte. Ao chegar ao quarto degrau, o barulho abaixo
cessou abruptamente. Eu ouvi um leve bufo de diversão, e ele
desceu rapidamente. Eu podia ouvir sua voz na cozinha, e um
coro manso de assentimento das crianças, mas entendia apenas
uma palavra estranha aqui e ali. Mais um minuto e ele subiu as
escadas rapidamente.
"O garotinho dos MacLennans realmente se chama Oogh?", eu
perguntei, curiosa, quando ele se sentou para tirar as botas.
"Aodh, sim", disse ele, pronunciando-o com um som um pouco
mais gutural no final, mas ainda identificável "Oogh."
"Se estivéssemos falando inglês, acho que o nome dele seria
Hugh. Aqui, Sassenach." Ele me entregou uma toalha de linho da
cozinha, enrolada no que provou ser um sanduíche de manteiga
de amendoim deliciosamente perfumado com pão fresco e geleia
de amora.
"Você não teve sua parte justa no jantar", disse ele, sorrindo para
mim. "Você estava muito ocupada enchendo todas as bocas
pequeninas. Então, guardei para você, em cima do seu armário de
ervas. Lembrei disso agora mesmo."
386

"Oh..." Fechei meus olhos e inalei beatificamente. "Oh, Jamie.


Isso é maravilhoso!"
Ele fez um som de satisfação com a garganta, serviu-me um copo
d'água e recostou-se, as mãos cruzadas sobre os joelhos, olhando-
me comer. Eu me deliciei com cada mordida doce, pedaços
grossos de amendoim, sementes de amora e pão borrachudo,
inclusive, e engoli o último com um suspiro de satisfação e pesar.
"Eu já disse a você que trouxe um sanduíche de pasta de
amendoim e geleia comigo, quando voltei pelas pedras?"
"Não, você não contou. Por que isso?" Por que de fato?
"Bem... eu acho que foi porque me lembrava de Brianna. Eu fazia
sanduíches de manteiga de amendoim para ela com frequência,
para seus almoços de escola. Ela tinha uma lancheira do Zorro,
com uma pequena garrafa térmica dentro."
As sobrancelhas de Jamie subiram. "Zorro210? Uma raposa
espanhola? "
Eu acenei com a mão com desdém. "Eu contarei a você sobre ele
mais tarde. Você teria gostado dele. Eu não levei uma lancheira,
no entanto. Acabei por embrulhar meu sanduíche em uma folha
de – de plástico."
As sobrancelhas de Jamie ainda estavam levantadas. "Como as
coisas de que os óculos do sr. Randall eram feitos?"
"Não, não." Eu bati na minha mão, tentando pensar em como
descrever o filme plástico. "Mais como... como a capa
transparente de livro dele – que também é de plástico – mas mais
leve. Uma espécie de lenço muito leve e transparente." Senti uma
pontada de nostalgia ao me lembrar daquele dia.
"Foi quando vim para Edimburgo à procura de A. Malcolm,
Impressor. Eu estava me sentindo atarantada – e com medo,

210
Zorro é a palavra em espanhol para raposa.
387

principalmente – então me sentei, desembrulhei meu sanduíche e


o comi. Eu pensei então que seria o último sanduíche de manteiga
de amendoim que eu comeria. Foi a melhor coisa que já comi. E
quando terminei, soltei o pedaço de plástico; não havia sentido
em mantê-lo." Na minha mente, eu podia ver agora, o frágil
plástico transparente se dobrando, se desdobrando, subindo e
correndo ao longo dos paralelepípedos, perdido fora do tempo.
"Eu me senti da mesma forma", eu disse, e limpei a garganta.
"Perdida, quero dizer. Eu me perguntei, então, se alguém poderia
encontrá-lo e o que eles poderiam pensar dele. Provavelmente
nada além de um momento de curiosidade."
"Ouso dizer", ele murmurou, estendendo a mão com uma ponta
da toalha para limpar uma mancha de geleia da minha boca, então
me beijando. "Mas então você me encontrou e não estava mais
perdida, espero?"
"Eu não estava. Eu não estou." Eu descansei minha cabeça em
seu ombro e ele beijou minha testa.
"Os bairns estão acomodados, Sassenach. Venha para a cama
comigo, sim?"
Eu fui, e fizemos amor devagar, à luz das brasas, ao som do vento
e da chuva a passar a noite lá fora.
Algum tempo depois, à beira do sono, minha mão na nádega
quente de Jamie, pensei no rosto de Frank; sua fotografia,
vagando em minha mente – aqueles olhos castanhos familiares
por trás dos óculos de aro preto. Sério, inteligente, erudito...
honesto.
388

21

ACENDENDO UM PAVIO

ELES SENTIRAM O CHEIRO ANTES DE TUDO. Brianna


sentiu seu nariz se contrair com o fedor misturado de urina e
enxofre. Ao lado dela, no banco da carroça, com as rédeas nas
mãos, seu pai tossiu. Com uma fina camada de pó de carvão...
"Mamãe diz que tem fins medicinais – ou pelo menos algumas
pessoas pensavam que tinha."
"O quê, pólvora?" Ele a olhou de soslaio, mas a maior parte de
sua atenção estava voltada para o pequeno aglomerado de
edifícios que acabara de aparecer, encantadoramente situado em
uma curva do rio.
"Hum-humm. Um pouco de pólvora amarrada em um trapo e
mantida na boca, de modo que possa tocar o dente que está
dolorido, instantaneamente alivia as dores dos dentes. Nicholas
Culpeper, 1647.211", ela citou.
Seu pai grunhiu.
"Isso provavelmente funciona. Você estaria muito ocupado
tentando decidir se vai vomitar ou tossir para se preocupar com
os dentes."
Alguém ouviu o barulho das rodas da carroça. Dois homens que
fumavam cachimbo perto do rio – a uma distância segura dos
prédios, ela notou – se viraram para encará-los. Um inclinou a
cabeça, avaliando, mas evidentemente decidiu que valia a pena

211
Nicholas Culpeper (1616 -1654) foi um botânico herborista, médico e astrólogo inglês. Os seus
livros publicados, The English Physitian e Complete Herbal, contém um amplo repositório dos
conhecimentos farmacêuticos e sobre ervas medicinais da época.
389

conversar com eles; ele bateu o fornilho de seu cachimbo na água


e, colocando o cachimbo de barro de cabo longo no cinto,
caminhou em direção à estrada, seguido por seu companheiro.
"Alô, aqui!", o primeiro homem gritou, acenando. Jamie puxou
os cavalos e acenou de volta.
"Boa tarde para você, senhor. Eu sou Jamie Fraser e esta é minha
filha, sra. MacKenzie. Queremos comprar pólvora."
"Eu esperava que você quisesse", disse o homem, um tanto
secamente. "Ninguém vem aqui por qualquer outro motivo."
Irlandês, ela pensou, sorrindo para ele.
"Oh, isso não é verdade, John." Seu amigo, um homem atarracado
de cerca de trinta anos, cutucou-o amigavelmente nas costelas,
sorrindo para Brianna. "Alguns de nós vêm para beber o seu
vinho e fumar o seu tabaco."
"John Patton212, senhor", disse o irlandês, ignorando o amigo. Ele
ofereceu a mão a Jamie e, depois de apertá-la, convidou-os a se
dirigir ao lado do prédio de pedra mais próximo da água.
"É o menos provável de explodir", disse o outro homem – que se
apresentou como Isaac Shelby – rindo. Brianna percebeu que
John Patton não riu.
O edifício de pedra era um moinho. Um ruído surdo e constante
atravessava as paredes, sob o barulho da roda d'água, e o cheiro
era bem diferente aqui: pedra úmida, algas e um leve cheiro que
a lembrou de fogueiras apagadas e chuva sobre as cinzas de um
lugar queimado na floresta. Isso deu a ela um estremecimento
estranho, baixo em sua barriga.
Seu pai desceu e começou a desatrelar os cavalos; ele olhou para
ela e inclinou a cabeça na direção de um dos galpões em ruínas
no alto da margem, onde três pessoas estavam em um grupo,
212
Marido de Mary Patton, mas a expertise de fabricação de pólvora era dela, aprendida de seu pai.
390

evidentemente discutindo sobre algo. Uma delas era uma mulher,


e sua postura – braços cruzados e cabeça baixa, mas de uma
forma que sugeria não submissão, mas um desejo mal contido de
dar uma cabeçada no nariz de seu interlocutor – afirmava que ali
estava a chefe.
Brianna acenou com a cabeça e partiu em direção ao galpão,
ciente do silêncio repentino atrás dela que o sr. Patton, o sr.
Shelby, ou ambos estavam olhando seu distinto traseiro. Não que
eles veriam muito; ela estava vestindo uma camisa de caça que ia
quase até os joelhos, mas o mero fato de que ela usava calça por
baixo ...
Ela ouviu Shelby tossir de repente e deduziu que ele acabara de
encontrar os olhos de seu pai.
"Jamie Fraser", ela ouviu Shelby dizer, tentando parecer
indiferente. "Eu conheço muitos Frasers. Você seria da região de
Nolichucky?"
"Não, nós temos um lugar perto da Linha do Tratado no Condado
de Rowan", disse seu pai. "Chama-se Cordilheira dos Fraser,"
"Ah! Então vem daí que conheço seu nome, senhor!", Shelby
parecia aliviado. "Benjamin Cleveland me contou sobre ter
conhecido você. Ele..."
As vozes atrás dela sumiram quando o grupo perto do galpão a
notou. Todos eles pareciam assustados, mas o olhar da mulher
mudou quase imediatamente para uma diversão severa.
"Bom dia para você, senhora", disse ela, olhando abertamente as
roupas de caça de Brianna. Ela tinha mais ou menos a idade de
Brianna e usava um avental de lona, muito gasto e manchado,
com pequenos buracos negros onde pareciam ter caído faíscas. A
saia marrom-escura e a camisa masculina de mangas compridas
por baixo eram feitas em casa – rústicas, embora bastante limpas.
"O que eu posso fazer por você?"
391

"Eu sou Brianna MacKenzie", disse Bree, se perguntando se ela


deveria estender a mão para cumprimentá-la. A sra. Patton –
certamente tinha que ser ela – não estendeu a sua, então Brianna
se contentou com um aceno cordial. "Meu pai e eu estamos, hum,
procurando comprar um pouco de pólvora. Você é por acaso a
sra. Patton?", ela acrescentou, já que a mulher não fez nenhum
movimento para se apresentar.
A senhora em questão olhou por cima do ombro e lentamente
olhou em volta de um lado para o outro, como se procurasse
alguém. Um dos jovens com quem ela estava discutindo deu uma
risadinha, mas calou a boca quando os olhos da sra. Patton
pousaram nele.
"Eu não sei quem mais eu seria", disse ela, mas não de forma
desagradável. "De que tipo de pó você quer e quanto?"
Isso paralisou Brianna por um momento. Ela não sabia
absolutamente nada sobre os tipos de pólvora – ou mesmo como
se referir a eles. O que ela queria saber era como fazer as coisas
em quantidade e com um grau razoável de segurança.
"Pó para a caça", disse ela, optando pela simplicidade. "E talvez
algo para... explodir tocos?"
Mary Patton piscou e depois riu. Os dois jovens se juntaram a ela.
"Tocos?"
"Bem, você poderia colocar fogo em um, eu suponho, se jogasse
um pouco de pólvora em cima dele", o mais velho dos rapazes
disse, sorrindo para ela. O “por cima” desencadeou uma
compreensão tardia, e ela bateu a mão na cabeça, aborrecida.
"Maldito inferno", disse ela. "Claro – é preciso moldar a carga.
Então... mais algo como uma granada, então."
O rosto bastante quadrado da sra. Patton mudou instantaneamente
para surpresa, e com a mesma rapidez para cálculos cautelosos.
392

"Granadas, não é?", ela disse, e examinou Brianna com mais


interesse.
Então ela olhou para além de Bree, e a compreensão surgiu em
seus olhos. "Seu pai, não é? É ele?"
"Sim." A mulher estava olhando de um jeito que fez Bree se virar
para olhar por cima do ombro. Seu pai havia levado os cavalos
até a margem para beber e estava parado no cascalho,
conversando com o sr. Shelby. Ele havia tirado o chapéu para
espirrar água no rosto, e o sol estava refletindo em seus cabelos,
que, embora raiados de prata, ainda eram de um vermelho
perceptível.
"Red Jamie Fraser?" A sra. Patton olhou para ela bruscamente.
"Ele é aquele que chamavam de Red Jamie, lá no velho país?"
"Eu suponho que sim." Bree ficou pasma. "Como você conhece
esse nome?"
"Hmp." A sra. Patton acenou com a cabeça de uma forma
satisfeita, os olhos ainda fixos em Jamie. "Os irmãos mais velhos
do meu papai, dois deles, lutaram em ambos os lados do Levante
Jacobita. Um foi deportado para as Índias, mas o irmão dele foi
lá e o encontrou, comprou seu contrato de servidão, e os dois
vieram se estabelecer aqui onde John e eu tínhamos terras.
Aqueles", ela deu um aceno depreciativo para os dois jovens, que
haviam se retirado para uma distância respeitosa, "são seus
filhos."
"Preocupa bastante a família, não é?" Bree acenou com a cabeça
em direção ao moinho e aos galpões, agora percebendo que havia
um pequeno aglomerado de cabanas e uma casa de bom tamanho
erguida a pouco mais de quatrocentos metros de distância, dentro
de um bosque de árvores.
"É isso", concordou a sra. Patton, agora amável. "Um de meus
tios falava frequentemente de seu pai, lutou com ele em
393

Prestonpans e Falkirk. Ele guardou algumas coisas e lembranças


da guerra. E uma coisa que ele tinha era um folheto com um
desenho de Red Jamie Fraser, oferecendo uma recompensa. Um
homem bonito, mesmo em um folheto. Quinhentas libras, a
Coroa ofereceu por ele! Imagino o que ele valeria agora?", ela
disse, e riu, com outro olhar para o homem em questão, este mais
longo.
Bree presumiu que fosse uma piada e retribuiu com um sorriso
tenso. Por precaução, ela notou afetadamente que seu pai havia
sido perdoado após o Levante, e então voltou firmemente a
conversa para a pólvora.
A sra. Patton parecia sentir que agora estavam em termos
amigáveis e de boa vontade mostrou a ela os dois galpões de
moagem, observando casualmente a construção tosca das
paredes.
"Algo explode, o telhado simplesmente voa e as paredes caem.
Não é muito importante colocá-las de novo."
"Então, estes são galpões de moagem – mas certamente é o
moinho?" Bree acenou com a cabeça para o prédio de pedra,
evidentemente um moinho, a roda d'água girando serenamente à
luz dourada do fim da tarde.
"Sim. Você mói o carvão, depois o salitre – sabe o que é isso, não
é?"
"Eu sei."
"Sim, e o enxofre. Você faz isso com água, certo? Derrete o
salitre, mói todos juntos; enquanto estiver molhado, não vai
queimar, vai?"
"Não."
A sra. Patton acenou com a cabeça, satisfeita com esta
compreensão evidente.
394

"Então. Vocês têm pólvora negra, mas é uma matéria grosseira,


com pedaços de carvão não triturado, pedaços de madeira,
pedaços de pedra, esterco de rato, todo tipo de coisa. Então você
seca isso em bolos – nós os armazenamos no outro galpão – e
então com cuidado, por assim dizer, você amassa e mói – e isso
você faz aqui neste galpão, longe de tudo o mais, porque pode
muito bem explodir se acontecer de você acender uma faísca
enquanto está fazendo isso – e se você tiver feito uma nuvem
quando a faísca se apagar, Deus o ajude, você vai arder como uma
tocha."
A perspectiva não parecia preocupá-la.
"Então, você o separa pela granulagem – o que significa colocá-
lo em telas, dividi-lo em tamanhos diferentes. O de menor
granulagem é para pistolas e rifles – isso é o que você deseja para
a caça, principalmente. Os tamanhos mais grosseiros são para
canhões, granadas, bombas, essa classe de coisas."
"Eu entendo." Era um processo simples, como explicado - mas a
julgar pelo estado do avental da Sra. Patton e as marcas de
queimadura em algumas das tábuas do galpão, bastante perigoso.
Ela provavelmente conseguiria fazer pólvora suficiente para
caça, se fosse necessário, mas descartou a ideia de tentar fazê-lo
em grandes quantidades.
"Bem então. Qual é o seu preço, para o tipo de pó que você usaria
para caçar?"
"Caça, não é?" A sra. Patton tinha olhos azul-claros e deu a
Brianna um olhar astuto deles, então olhou para o sr. Shelby e seu
pai, ainda conversando perto do rio. Por quê? ela imaginou. Ela
acha que preciso da permissão dele?
"Bem, meu preço é um dólar a libra213. Eu vendo por dinheiro

213
1 libra = 0,453 kg = 456 gramas
395

vivo e eu não negocio."


"Não negocia, não é?"
Bree disse secamente. Ela enfiou a mão na bolsa na cintura e tirou
uma das tiras finas de ouro que havia costurado nas bainhas
quando ela e as crianças vieram procurar Roger. E ela fez uma
oração silenciosa e distraída de agradecimento por terem
conseguido encontrá-lo, como ela fizera milhares de vezes desde
então.
"Não é exatamente dinheiro, mas talvez seja bom o suficiente?",
disse ela, entregando-o.
As sobrancelhas claras da sra. Patton subiram até a borda de sua
touca. Ela pegou o tira de ouro com cuidado, sentiu seu peso e
lançou um olhar penetrante para Bree. Para a alegria de Brianna,
ela realmente a mordeu, então olhou criticamente para o
minúsculo amassado no metal. Estava carimbado, mas além de
14K e 1 onça214, ela não achava que as marcações significariam
algo para a Sra. Patton e, aparentemente, não significavam.
"Feito", disse a dona da pólvora. "Quanto você quer?"

-.-.-

APÓS PESAGEM ESCRUPULOSA da pólvora e do ouro, elas


concordaram que uma tira de ouro era o equivalente a vinte
dólares, e Brianna apertou a mão da Sra. Patton – que pareceu
confusa, mas não chocada com o gesto – e voltou para a carroça,
carregando dois barris de pólvora de dez libras215, seguida pelos
dois primos, cada um com a mesma carga.
Seu pai ainda estava conversando com o sr. Shelby, mas, ao ouvir

214
1 onça = 31,10 gramas
215
5 libras = 4,53 kg
396

passos, se virou. Suas sobrancelhas se ergueram mais alto do que


as da sra. Patton.
"Quanto..." Ele se interrompeu e, pressionando os lábios, pegou
os barris dela e os colocou na carroça, junto com os sacos de
arroz, feijão, aveia e sal que haviam negociado no Moinho dos
Woolam.
Terminando, ele alcançou o sporran na cintura, mas um dos
primos balançou a cabeça.
"Ela já está paga", disse ele, e com uma breve inclinação da
cabeça em direção a Bree, virou-se e voltou para o galpão de
moagem, seguido pelo outro jovem, que olhou por cima do
ombro e correu para alcançar seu primo, dizendo algo para ele em
voz baixa que fez o primeiro homem olhar para trás novamente,
então balançar a cabeça.
Seu pai não disse nada até que eles estivessem no caminho de
volta para casa.
"O que você usou como dinheiro, moça?", ele perguntou
suavemente. "Por acaso você trouxe um pouco quando... veio?"
"Eu tinha algumas moedas – o que foi possível conseguir sem
muito barulho e despesas."
Ele acenou com a cabeça em aprovação, mas parou abruptamente
quando ela retirou outra tira de ouro – não dava para ser chamada
de lingote – de sua bolsa.
"E eu peguei trinta destes, e os costurei em nossas roupas e nos
saltos dos meus sapatos."
Seu pai disse algo que ela não entendeu em gaélico, mas a
expressão em seu rosto foi o suficiente.
"O que há de errado nisso?", ela perguntou bruscamente. "O ouro
funciona em qualquer lugar."
Ele respirou fundo pelo nariz, mas o oxigênio adicionado parecia
397

ser suficiente para permitir que ele se controlasse, pois sua


mandíbula relaxou e a cor de seu rosto diminuiu um pouco.
"Sim, é verdade." Os dedos de sua mão direita estremeceram
brevemente, depois pararam quando ele mexeu um pouco nas
rédeas.
"O problema, moça", ele disse, os olhos fixos na estrada à frente,
"é apenas isso. O ouro funciona em qualquer lugar. É por isso que
todo mundo quer. E, por sua vez, é por isso que você não quer
que seja amplamente conhecido que você o tem – muito menos
em quantidade." Ele virou a cabeça para ela por uma fração de
momento, uma sobrancelha erguida. "Eu teria pensado... quero
dizer, pelo que você me contou sobre seu Rob Cameron... pensei
que você saberia disso."
A advertência silenciosa fez um rubor quente queimar do peito
ao couro cabeludo, e ela fechou o punho em torno da tira de ouro.
Ela se sentia uma idiota, mas também acusada injustamente.
"Bem, como você faria para gastar ouro, então?", ela exigiu.
"Eu não gasto", disse seu pai sem rodeios. "Tento nunca tocar no
que está escondido. Por um lado, não sinto que seja
verdadeiramente meu e vou usá-lo apenas em caso de
necessidade urgente, para defender a minha família ou inquilinos.
Mas, mesmo assim, não o uso diretamente."
Ele olhou por cima do ombro e, forçosamente, ela também. Eles
já haviam deixado o moinho dos Patton bem para trás, e a estrada
– uma muito movimentada – estava vazia.
"Se eu tiver que usar – e terei que usar, se for equipar uma milícia
– eu rasparei os pedaços e os moldarei em pequenas pepitas,
esfregando na terra e depois limpando um pouco. Então eu
mandarei Bobby Higgins, Tom MacLeod e talvez um ou dois dos
outros homens em que eu confiaria a vida da minha família, cada
um com uma pequena bolsa cheia. Não ao mesmo tempo, não no
398

mesmo lugar e raramente no mesmo lugar duas vezes. E eles


iriam transformar isso, pouco a pouco, em dinheiro – comprando
algo e recebendo o troco em moeda, talvez vendendo uma ou duas
pepitas diretamente para um joalheiro, trocando um pouco mais
com um ourives... e o dinheiro que viesse de volta, é o que eu
gastaria. Cautelosamente."
Essa "confiaria a vida da minha família" criou uma pepita em seu
estômago. Era muito fácil ver, agora, o risco a que ela acabara de
expor Jem, Mandy, Roger e todos os outros habitantes da Nova
Casa.
"Ach, dinna fash," seu pai disse, vendo sua angústia.
"Provavelmente vai ficar tudo bem." Ele deu a ela um meio
sorriso e um breve aperto no joelho. Os cavalos estavam se
movendo em um ritmo muito mais acelerado agora, e ela
percebeu que ele estava tentando colocar a maior distância
possível entre eles e o Branch Powder antes do anoitecer.
"Você..." As palavras morreram em sua garganta, afogadas pelo
chocalho da carroça, e ela tentou novamente. "Você acha que os
homens lá", ela gesticulou para trás deles, "viriam atrás de nós?"
Ele balançou a cabeça e se inclinou para frente, concentrado em
dirigir.
"Não é provável. Os Patton sabem que nosso negócio vale mais
para eles do que o que carregamos. Mas aposto que um ou outro
dos mais jovens dirá algo sobre a garota forte em roupas
masculinas com uma bolsa de ouro no cinto. Será apenas sorte se
eles não disserem isso para alguém que possa se sentir movido a
vir nos visitar – e vamos rezar para que não o façam."
"Sim." A primeira onda de choque e raiva estava passando, e ela
se sentiu tonta. Então ela se lembrou de outra coisa que foi como
um soco no estômago.
"O quê?" Seu pai parecia alarmado; pois ela fez um barulho como
399

se realmente tivesse levado um soco. Ele estava diminuindo a


velocidade dos cavalos e ela acenou com as mãos e balançou a
cabeça.
"E que... é que... eles sabem quem você é. A sra. Patton
reconheceu você."
"Quem eu sou? Eu disse a eles quem eu sou." Ele diminuiu a
velocidade dos cavalos ainda mais para ouvir o que ela tinha a
dizer, no entanto.
"Ela sabe que você é o Red Jamie", ela deixou escapar.
"Isso?" Ele pareceu surpreso, mas não preocupado. Um pouco
divertido, na verdade. "Como diabos ela soube disso? A moça é
mais jovem que você; ela não havia nascido da última vez que
alguém me chamou assim."
Ela contou a ele sobre os tios da Sra. Patton e os folhetos.
"Evidentemente você ainda parece ter feito o tipo de coisa que
colocaria sua foto em um pôster de Procurado", disse ela, com
uma débil tentativa de humor.
"Mmphm."
Ele diminuiu a velocidade dos cavalos e a pausa do tremor e do
barulho a acalmou. Ela olhou furtivamente para ele; ele não
parecia mais com raiva – nem mesmo chateado. Apenas
pensativo, com uma expressão que ela pensou que poderia ser
descrita como pesarosa.
"Sabe", disse ele por fim, "não é uma boa coisa ter feito o tipo de
coisa que lhe dá a reputação de um louco que mata sem dúvidas
ou misericórdia. Mas olhando do outro lado - não é uma coisa
totalmente ruim ter tal reputação."
Ele estalou a língua para os cavalos e eles se moveram lentamente
em um trote e depois mais rápido. A sensação de urgência parecia
tê-lo abandonado, no entanto. Ela o observou de lado, aliviada
400

por ele não estar preocupado em ser conhecido como Red Jamie
– e mais aliviada porque o fato de ele ser conhecido parecia tê-lo
deixado menos ansioso com relação ao ouro.
Eles continuaram sem falar mais nada, o silêncio entre eles mais
fácil. Mas quando pararam para acampar, logo após o nascer da
lua, comeram sem fogo e ela dormiu um pouco, mas acordava
com frequência, sempre o vendo perto dela, na sombra negra de
uma árvore, seu rifle na mão direita e uma pistola carregada na
esquerda.
401

22

CINZAS, CINZAS…

EU SEGUI ROGER POR um imenso bosque de choupos, suas


copas tão altas acima da trilha que caminhávamos, que parecia
que havíamos entrado em uma igreja silenciosa, com as vigas
tilintando com pássaros, em vez de morcegos. Muito adequado,
pensei, dada a nossa missão.
Minha parte, porém, era mais envolta em intriga do que
diplomacia. Alcancei a fenda em minha saia para verificar meu
bolso pela terceira vez: no fundo, três raízes de gengibre de bom
tamanho e cheias de nós e, sobre elas, alguns pacotes de ervas
secas que não eram encontradas localmente.
Meu trabalho – supondo que Roger conseguisse fazer as
apresentações antes de nós dois sermos lançados para fora pelas
orelhas – era envolver a sra. Cunningham em uma conversa
prolongada. Primeiro, com efusivos agradecimentos pela casca
de jesuíta (acompanhado de desculpas silenciosas pela explosão
de Mandy), depois pela apresentação de meus presentes de
reciprocidade, um de cada vez, com explicações detalhadas de
sua origem, uso e preparação.
Tudo isso deveria dar a Roger tempo suficiente para atrair o
capitão Cunningham para fora, homens de verdade,
naturalmente, não querendo ouvir duas herboristas trocando
ideias sobre como fazer um clister que resolveria o caso mais
teimoso de constipação. Depois disso, caberia a Roger. Ele estava
andando na minha frente, ombros retos em resolução.
Tínhamos saído dos choupos e estávamos escalando novamente,
para uma zona rochosa de abetos e cicutas, ricamente resinosa ao
sol.
402

"Tem cheiro de Natal", disse Roger, sorrindo por cima do ombro


enquanto segurava um grande galho para que eu pudesse passar
por baixo. "Suponho que faremos um Natal em família, não é?
Para Jem e Mandy, quero dizer; é o que eles estão acostumados,
e eles têm idade suficiente para se lembrar." O Natal, como
feriado, era puramente religioso entre os escoceses - a
comemoração era feita no Hogmanay.
"Isso seria maravilhoso", eu disse, um pouco melancólica. Os
Natais da minha infância – aqueles de que me lembrava –
ocorreram principalmente em países não cristãos, e apresentavam
biscoitos natalinos da Inglaterra, pudim de Natal vindo em uma
lata e, em um determinado ano, uma manjedoura enfeitada com
sininhos e habitada por Maria, José, o Menino Jesus, e visitada
pelos reis magos, pastores e anjos, todos construídos com algum
tipo de vagem local e usando roupas minúsculas.
Fazer um Natal adequado para Brianna todos os anos tinha sido
maravilhoso. Eu sentia que a festa também era para mim – a
alegria de fazer coisas que li ou ouvi falar, mas nunca fiz ou vi.
Frank, o único de nós que realmente tinha experimentado o
tradicional Natal britânico, era a autoridade em cardápios,
embrulhos de presentes, canções natalinas e outras tradições
misteriosas. Desde a decoração da árvore até desmanchá-la
depois do Ano Novo, a casa estava cheia de segredos
emocionantes, com uma sensação de paz subjacente. Ter isso em
nossa nova casa, com todos juntos...
"Vou lhe dizer uma coisa", eu disse, voltando a mim mesma a
tempo de me abaixar sob a saliência de um abeto azul. "Não
mencione o Papai Noel enquanto estiver conversando com o
capitão Cunningham."
"Vou adicionar isso à minha lista de coisas a evitar", garantiu-me
gravemente.
403

"Qual é a número um da sua lista?", eu perguntei.


"Bem, normalmente, seria você", ele disse francamente. "Mas,
nas atuais circunstâncias, é um empate entre os Beardsley e o
uísque de Jamie. Quero dizer, os Cunningham podem estar
prestes a descobrir sobre ambos – se eles ainda não sabem – mas
não há razão para eles ouvirem de mim. "
"Provavelmente, eles sabem sobre os Beardsley", eu disse. "A
sra. Cunningham me deu a casca de jesuíta, quero dizer. Alguém
deve ter dito a ela que eu precisava – e muito provavelmente, para
quê. E ninguém resistiria contar a ela sobre Lizzie e seus dois
maridos216, se o fizessem.
"Verdade", Roger olhou para mim com um sorriso no canto da
boca. "Eu suponho que você não saiba se... quero dizer..."
"Com os dois ao mesmo tempo?" Eu ri. "Deus sabe, mas há três
crianças pequenas naquela casa, e pelo menos duas delas ainda
estão dormindo na cama dos pais. Eles devem ter muito sono",
acrescentei pensativa, "mas apesar das restrições de espaço..."
"Onde há vontade, há um caminho", Roger me assegurou. "E o
tempo ainda está bom fora de casa."
A trilha havia se alargado o suficiente para que pudéssemos
caminhar um pouco lado a lado. "De qualquer forma, estou
surpreso que a velha senhora tenha feito tal gesto, depois do que
ela disse a Brianna e a mim sobre bruxas, mas..."
"Bem, ela garantiu a todos nós – incluindo eu e Mandy – que
íamos para o inferno."
Isso o fez rir.
"Você viu Mandy imitando a sra. Cunningham fazendo isso?"
"Mal posso esperar. A que distância fica este lugar?"

216
Impossível esconder muito tempo esse ‘casamento peculiar’.
404

"Estamos quase lá. Ainda estou decente?", ele perguntou, tirando


as folhas de bordo das abas de seu colete.
Ele havia se vestido com cuidado para a ocasião, em boas calças,
uma camisa limpa e um colete com humildes botões de madeira,
que substituíram, às pressas por Bree, os de bronze que
normalmente usava. Além disso, Brianna havia trançado seus
cabelos e Jamie – que tinha muito mais experiência nessas
questões – tinha batido a trança para ele, dobrando-a
cuidadosamente e amarrando-a firmemente na nuca com a larga
fita de gorgorão preta de Jamie.
"Vá com Deus, a charaid", ele disse a Roger, sorrindo. Vá com
Deus, com certeza..."
"Perfeito", eu assegurei a ele. "Avante, então."
Eu nunca tinha ido tão longe quanto a cabana dos Cunningham.
Era uma construção nova, bem próxima ao extremo sul da
Cordilheira. Estávamos caminhando por mais de uma hora,
sacudindo as folhas – e com elas, mosquitos, vespas e aranhas –
que caíam em uma chuva suave e verde das árvores decíduas. O
ar estava muito quente, no entanto, e eu estava começando a
desejar ter embalado algum tipo de refresco líquido quando
Roger parou, logo antes de uma clareira.
Brianna já havia me falado sobre as pedras caiadas de branco e
as janelas de vidro brilhantes. Havia também um grande jardim
de vegetais e ervas atrás da casa, mas era evidente que a sra.
Cunningham ainda não havia conseguido criar uma cerca que
manteria veados e coelhos fora dela. Fiquei angustiada ao ver o
solo pisoteado, os caules quebrados e os topos atarracados dos
nabos, roídos e despojados de suas folhas verdes – mas, pelo lado
positivo, podia tornar os itens em meu bolso mais desejáveis.
Tirei o chapéu e arrumei os cabelos às pressas, na medida em que
isso fosse possível, depois de caminhar seis quilômetros em um
405

dia quente.
A porta se abriu antes que eu pudesse colocar meu chapéu de
volta.
O capitão Cunningham estremeceu visivelmente ao nos ver. Se
ele estava esperando alguém, não éramos nós. Meu coração
acelerou um pouco enquanto ensaiava minhas primeiras linhas de
gratidão.
"Boa tarde, capitão!", Roger chamou, sorrindo. "Eu trouxe minha
sogra, a sra. Fraser, para visitar a sra. Cunningham."
A boca do capitão se abriu ligeiramente quando seu olhar mudou
para mim. Ele não tinha uma cara de jogador de pôquer,
inescrutável, e pude vê-lo tentando conciliar o que quer que sua
mãe tenha dito sobre mim com minha aparência – que era o mais
respeitável que eu poderia fazer.
"Eu... ela... ", ele começou. Roger segurou meu braço e me
conduziu rapidamente pela trilha, dizendo algo cordial sobre o
tempo, mas o capitão não estava prestando atenção.
"Quero dizer ... boa tarde, madame." Ele me deu um aceno brusco
com a cabeça quando eu parei e fiz uma reverência na frente dele.
"Receio que minha mãe não esteja", disse ele, olhando-me com
cautela. "Eu sinto muito." "Oh, ela foi fazer visitas?", eu
perguntei. "Eu lamento isso. Eu queria agradecer a ela por seu
presente. E eu trouxe algumas coisas para ela ..."
Eu dei a Roger um olhar de soslaio que dizia: e agora?
"Não, ela apenas saiu em busca de alimentos no riacho", disse o
capitão, com um vago aceno de mão em direção ao bosque. "Ela,
hum ..."
"Oh, nesse caso", disse apressadamente, "vou apenas ir e ver se
consigo encontrá-la. Por que você e o capitão não têm uma boa
conversa, Roger, enquanto eu procuro por ela?"
406

Antes que ele pudesse dizer qualquer outra coisa, peguei minhas
saias, pisei cuidadosamente sobre a linha de pedras brancas e fui
para o bosque, deixando Roger por conta própria.

-.-.-

"AH ... ENTRE POR FAVOR." Cunningham cedeu às


circunstâncias com alguma graça, abrindo a porta e chamando
Roger para dentro.
"Obrigado, senhor." A cabana estava tão arrumada quanto em sua
primeira visita, mas cheirava diferente. Ele poderia jurar que o
fantasma do café pairava convidativamente no ar. Meu Deus, é
café ...
"Sente-se, sr. MacKenzie."
Cunningham havia recuperado a compostura, embora ainda
estivesse olhando de soslaio para Roger.
Roger havia composto alguns comentários iniciais, mas eles
foram planejados para desviar a Sra. Cunningham até que Claire
pudesse se interpor e separar mãe e filho. Melhor apenas ir direto
ao ponto, antes que qualquer uma delas volte...
"Recentemente, tive uma conversa interessante com minha prima
por casamento, Rachel Murray", disse ele. Cunningham, que
estava se curvando para pegar uma cafeteira que estava se
aquecendo na lareira, levantou-se como um boneco de uma caixa
de surpresas, por pouco evitando quebrar a cabeça na cornija de
pedra, e se virou.
"O quê?"
"Sra. Ian Murray", disse Roger. "Jovem quacre? Alta, morena,
muito bonita? Mãe de um bebê com uma voz alta?"
O rosto do capitão assumiu uma aparência congestionada e um
407

tanto ruborizada.
"Eu sei de quem você está falando", ele disse, um tanto friamente.
"Mas estou surpreso de saber que ela repetiu nossa conversa para
você." Houve uma ligeira ênfase em "você", que Roger ignorou.
"Ela não fez isso", disse ele facilmente. "Mas ela me disse que
você tinha dito algo que ela achava que eu deveria saber e
recomendou que eu viesse falar com você sobre isso." Ele ergueu
a mão, reconhecendo os arredores.
"Ela me disse que você pregava aos domingos para seus homens
na Marinha – e que achava isso... gratificante foi a palavra que
ela usou. É realmente esse o caso?"
O rubor estava diminuindo um pouco. Cunningham deu um
aceno curto e relutante. "Não consigo ver se é da sua conta,
senhor, mas sim, eu preguei, nas ocasiões em que encontrávamos
uma igreja ou navegávamos sem um capelão."
"Bem então. Tenho uma proposta a lhe fazer, senhor. Podemos
nos sentar?"
A curiosidade venceu; Cunningham acenou com a cabeça em
direção a uma grande cadeira de encosto arqueado que ficava ao
lado da lareira, e ele mesmo sentou em uma menor do outro lado.
"Como você sabe", disse Roger, inclinando-se para a frente, "sou
um presbiteriano e, por cortesia, chamam-me de ministro. Com
isso, quero dizer que ainda não fui ordenado, embora tenha
concluído todas as os estudos e exames necessários, e tenho
esperanças de ser ordenado em breve. Você também deve saber
que meu sogro – e minha esposa, sogra e filhos, por falar nisso –
são católicos."
"Eu sei." Cunningham relaxou o suficiente para mostrar
desaprovação. "Como você pode resolver tal situação com sua
consciência, senhor?"
408

"Um dia de cada vez, na maior parte do tempo", Roger disse, e


encolheu os ombros, descartando isso. "Mas o que quero dizer é
que me dou bem com meu sogro e, quando ele mandou construir
uma cabana para servir de escola, ele também me convidou a usá-
la nos serviços religiosos aos domingos. Tínhamos uma pequena
Loja de Maçons estabelecida naquela época – isso foi há mais de
três anos – e o sr. Fraser também permitiu que a Loja usasse esta
estrutura à noite para seus próprios fins.217"
Até este ponto, ele estava olhando seriamente para o rosto de
Cunningham, mas agora ele olhou para a lareira fumegante
enquanto mencionava os maçons, para dar ao homem um
momento para se decidir – se houvesse algo para se decidir.
Possivelmente sim. O desconforto e a desaprovação anteriores do
capitão haviam retrocedido como uma geleira derretendo – lenta,
mas seguramente. Ele não falou, mas seu silêncio tinha uma
qualidade diferente agora; ele estava olhando para Roger de uma
forma avaliativa.
Nada a perder…
"Nós nos encontramos de coração aberto”, disse Roger
calmamente.
Cunningham respirou fundo e acenou com a cabeça, muito
ligeiramente. "E nos despedimos na sinceridade218", ele disse, tão
baixinho quanto.
A atmosfera na sala mudou.
"Permita-me servir-lhe um pouco de café." Cunningham se
levantou, pegou xícaras de um aparador que parecia ter sido
sequestrado de sua casa em Londres e entregou uma a Roger.

217
Como já consta nas notas, as reuniões maçônicas eram realizadas na cabana de Roger.
218
No original, as duas frases citadas são “We meet on the level” e “And we parted on the square”.São
frases usadas para reconhecimento dentro da maçonaria. Essas mesmas frases foram usadas no livro 3,
cap 40, quando Jared as utiliza e descobre que Jamie também é maçom. Utilizamos, para essas frases, a
mesma tradução usada nesse livro no Brasil.
409

Na verdade, era café. Moído recentemente. Roger fechou os


olhos em êxtase momentâneo e se lembrou do que Rachel havia
dito sobre ser servido chá. Evidentemente, o capitão manteve
suas conexões marítimas. Eram esses os dois visitantes
misteriosos? Não mais do que contrabandistas?
Eles beberam em um silêncio cauteloso e sociável por um ou dois
minutos.
Roger deu um último gole exuberante e engoliu.
"Infelizmente", disse ele, "a cabana foi atingida por um raio há
um ano e totalmente queimada."
"Foi o que a sra. Murray me contou." O capitão esvaziou sua
xícara, largou-a e ergueu uma sobrancelha para Roger, apontando
para a cafeteira.
"Por favor." Roger entregou sua xícara. "Se Jamie Fraser
estivesse morando em Ridge na época, tenho certeza que ele o
teria reconstruído, mas devido ao... hum... infortúnio da guerra...
ele e sua família não puderam retornar imediatamente. Mas
suponho que você saiba disso."
"Sim. Robert Higgins me informou disso quando fiz a inscrição
para me estabelecer aqui." A sombra da desaprovação caiu em
seu rosto mais uma vez. "O sr. Fraser parece um cavalheiro de
princípios incomumente flexíveis. Nomear um assassino
condenado como administrador de sua propriedade, quero dizer."
"Bem, ele pensa que sou um herege e me atura. Ou talvez seja
isso que você quis dizer com ‘princípios flexíveis’?"
Ele sorriu para Cunningham, que engasgou com o café ao ouvir
a palavra "herege". Melhor pegar leve. A irmandade maçônica
pode ter limites...
Roger tossiu, dando tempo a Cunningham para terminar.
"Agora, a proposição que mencionei. O sr. Fraser deseja que a
410

cabana seja reconstruída em seu local original e usada para todos


os propósitos anteriores. Ele também está disposto a fornecer a
madeira bruta para a construção. Mas, como tenho certeza de que
você sabe, ele está construindo sua própria casa e não tem tempo
ou dinheiro para concluir a cabana até o ano que vem.”
"Então, o que eu gostaria de propor, senhor, é que nós – você e
eu, e o sr. Fraser – devemos reunir nossos recursos a fim de
realizar a reconstrução o mais rápido possível. E uma vez que o
prédio esteja habitável, proponho que você e eu nos revezemos
para pregar lá, em domingos alternados."
Cunningham congelou, xícara na mão, mas a crosta externa de
frio e reserva derreteu. Os pensamentos disparavam por trás de
seus olhos como peixinhos, rápidos demais para serem captados.
Roger largou sua xícara pela metade e se levantou. "Gostaria de
visitar o local comigo?"
-.-.-

O RIACHO FOI fácil de encontrar. Ainda não havia nenhum


poço perto da casa, então os Cunningham deviam estar
carregando água, e sendo assim... sim, havia uma trilha saindo de
uma cortina de arbustos de corniso, e em poucos instantes o som
da água borbulhando chegou aos meus ouvidos.
Encontrar a sra. Cunningham podia ser um pouco mais difícil.
Ela teria subido ou descido? Joguei uma moeda mental e virei rio
abaixo. Um bom palpite; havia uma ligeira curva no riacho e uma
mancha lamacenta na costa próxima, mostrando as marcas de
muitos pés – ou melhor, as marcas de um ou dois pares de pés
fazendo visitas frequentes – e uma série de marcas circulares e
arranhões mostrando onde um balde havia sido colocado no chão.
Tinha chovido ultimamente e o riacho estava cheio; havia
vegetação densa até a água do outro lado do riacho, e achei que
411

ela não teria tentado atravessar aqui; havia pedras no leito do


riacho que podiam ser usadas como degraus, mas a maioria delas
estava submersa. Eu desci ao lado do riacho, andando devagar e
ouvindo com atenção. Eu não esperava que a sra. Cunningham
cantasse hinos enquanto procurava, mas ela pode estar fazendo
barulho o suficiente para que os pássaros perto dela gritassem ou
fiassem em silêncio.
Na verdade, eu a encontrei porque ela havia atraído a atenção de
um martim-pescador que questionava sua presença. Eu segui os
longos cantos do pássaro e o vi, uma bolha de ferrugem de bico
longo, branco e azul-acinzentado, flutuando na brisa em um
longo galho que se estendia sobre uma pequena piscina formada
por um redemoinho. Então eu vi a sra. Cunningham. Na piscina.
Nua.
Felizmente ela não tinha me visto, e me agachei às pressas atrás
de uma botoeira, arrancando meu chapéu.
O pássaro martim-pescador tinha me visto e estava tendo um
ataque, seu corpinho vívido inchou de indignação enquanto
gritava para mim, mas a Sra. Cunningham o ignorou. Ela estava
se lavando relaxada e vagarosamente, com os olhos semicerrados
de prazer e os longos cabelos grisalhos escorrendo pelas costas.
Uma gota de suor escorreu pelas minhas costas e outra pingou do
meu queixo. Limpei-a com as costas da mão, invejando-a.
Por um instante, tive o impulso absurdo de me despir e me juntar
a ela, mas o reprimi instantaneamente. Eu deveria ter saído
instantaneamente também – mas não o fiz.
Parte disso era apenas o interesse comum que faz as pessoas
olharem para outras pessoas quando estão rindo, com raiva, nuas
ou envolvidas em atos sexuais. O resto foi simples curiosidade.
Há uma linha bastante tênue, às vezes, entre um cientista e um
voyeur, e eu sabia que estava andando nela, mas a sra.
412

Cunningham era inegavelmente um mistério.


Seu corpo ainda era poderoso, de ombros largos e ereto, e
enquanto a pele dos braços e seios havia afrouxado, ela ainda
tinha musculatura visível. A pele de sua barriga cedeu e as marcas
de nascimentos múltiplos ficaram visíveis. Portanto, o capitão
não era seu único filho.
Seus olhos estavam fechados de simples prazer, e sem a
expressão proibitiva, ela era uma mulher bonita. Não bonita e
profundamente marcada por anos, experiência e raiva, mas ainda
havia um apelo forte e simétrico em suas feições. Eu me perguntei
quantos anos ela poderia ter – o capitão parecia ter cerca de
quarenta e cinco, mas eu não tinha ideia se ele poderia ser seu
filho mais velho ou caçula. Em algum lugar entre sessenta e
setenta, então?
Ela tirou água de seus cabelos desgrenhados e colocou de volta
atrás das orelhas. Havia um tronco meio submerso do outro lado
da piscina, e ela encostou as costas nele com cuidado, fechou os
olhos novamente e colocou a mão na água entre as pernas.
Pisquei, e então me abaixei e andei para trás o mais
silenciosamente que pude, a saia enrolada e o chapéu na mão. A
linha, definitivamente, havia sido cruzada.
Meu calcanhar bateu em uma raiz de árvore protuberante e quase
caí, mas consegui me salvar, embora deixasse cair a saia e o
chapéu no processo. O bolso pesado bateu contra meu quadril,
me lembrando de minha intenção original.

Eu não poderia esperar muito bem até que ela terminasse o que
estava fazendo, saísse da água e se vestisse. Eu simplesmente
voltaria para a cabana, diria ao capitão que não consegui
encontrar sua mãe e deixaria o gengibre e as ervas, com meus
agradecimentos.
413

Eu estava colocando meu próprio vestido de volta em ordem


quando percebi que havia feito pegadas muito visíveis na argila
úmida onde estive escondida. Amaldiçoando baixinho, me
agarrei sob os arbustos atrás de mim, recolhendo punhados de
folhas mortas, gravetos e seixos, e espalhei-os apressadamente
sobre meus rastros reveladores. Eu estava esfregando um
punhado de folhas úmidas entre as mãos para limpá-las quando
percebi que havia um seixo entre as folhas.
Eu o joguei fora, mas tive um vislumbre de uma cor vívida
enquanto ele voava pelo ar e o agarrei novamente.
Era uma esmeralda bruta, um longo cristal retangular de um verde
turvo em uma matriz de rocha áspera.
Eu olhei para ele por um tempo, esfregando meu polegar
suavemente sobre a superfície.
"Você nunca sabe quando pode ser útil, não é?", eu disse,
baixinho, e coloquei na minha bolsa.
-.-.-

"QUANTAS PESSOAS o edifício original podia acomodar?",


perguntou o capitão, acenando com a cabeça para o frágil
esqueleto negro da porta.
"Cerca de trinta, de pé. Não tínhamos bancos para começar. Cada
um dos irmãos da loja trazia um banquinho – e muitas vezes uma
garrafa – de casa, quando tínhamos reuniões." Ele sorriu ao se
lembrar de Jamie, passando em volta uma das primeiras garrafas
de sua destilação, observando os bebedores de perto, para o caso
de algum deles cair ou morrer repentinamente.
"Oh", ele disse. "Isto me lembra. Você deve saber que o Sr. Fraser
é um irmão. Na verdade, ele é o Venerável Mestre; ele
estabeleceu a Loja aqui."
414

Cunningham largou seu fragmento de carvão, verdadeiramente


chocado.
"Um maçom? Mas certamente os católicos não têm permissão
para fazer os juramentos da maçonaria. O papa proíbe... " Seus
lábios se curvaram levemente com a palavra.
"O sr. Fraser tornou-se maçom enquanto estava na prisão na
Escócia, após o Levante jacobita. E, como ele mesmo diria a
você, o papa não estava na prisão de Ardsmuir e eu estava."
Roger até agora sempre usara seu sotaque de Oxford quando
falando com o capitão, mas agora ele deixou o sotaque das
Highlands de Jamie por trás da declaração e se divertiu ao ver
Cunningham piscar, embora se fosse pelo sotaque ou pela
enormidade das ações de Jamie, ele não sabia dizer.
"Talvez isso seja mais uma ilustração da... flexibilidade... dos
princípios do sr. Fraser", observou o capitão secamente. "Ele
alguma vez tomou uma posição de lealdade exclusiva, talvez?"
"Acho que ele é um homem sábio que sabe ser flexível em tempos
como este", Roger rebateu, controlando-se. "Se ele não fosse
capaz de andar entre dois fogos, ele teria se transformado em
cinzas há muito tempo – e também seria assim com as pessoas
que dependem dele."
"E você sendo uma delas?" Isso não foi dito com hostilidade, mas
o limite estava lá.
"Eu sendo uma delas."
Ele respirou fundo, farejando, mas o cheiro do relâmpago e o
fedor do fogo há muito se foram. Com um pouco de trabalho, a
clareira poderia mais uma vez estar pronta para a paz.
Roger continuou: "Quanto a saber se existem princípios que
Jamie Fraser manterá, sim, existem, e Deus ajude qualquer um
que se interponha entre ele e o que ele pensa que deve fazer. Você
415

acha que devemos expandir o edifício? Existem muito mais


famílias na Cordilheira agora."
Cunningham acenou com a cabeça, olhando para as costas da
mão, onde rabiscou suas medidas compassadas com um pouco de
carvão.
"Quanto você sabe? E você está familiarizado com suas
disposições religiosas? O sr. Higgins me disse que o sr. Fraser
não desencoraja o acordo com ninguém, desde que pareça
honesto e disposto a trabalhar. Mesmo assim, parece que a grande
preponderância dos inquilinos é escocesa". A última frase foi dita
com uma inflexão crescente de pergunta e Roger assentiu.
"Eles são. Ele começou seu assentamento aqui com vários
escoceses que estiveram com ele durante o Levante, e com
pessoas que são parentes de outros que ele conhece do
Piedmont219; há muitos escoceses lá", acrescentou. "A maioria
dos colonos originais é católica – naturalmente – mas havia
alguns protestantes entre eles, principalmente presbiterianos – da
Igreja da Escócia220. Uma grande parte emigrou mais tarde de
Thurso, e são todos presbiterianos." Virulentamente... "No
entanto, só recentemente voltei para a Cordilheira. Disseram-me
que também temos algumas famílias metodistas. Importa-se se eu
perguntar, senhor, o que o trouxe para se estabelecer aqui?"
Cunningham deu um breve "hmp", mas indicando uma pausa para
somar, em vez de hesitação.
"Como muitos outros, vim porque tinha conhecidos aqui. Dois de
meus marinheiros se estabeleceram na Carolina do Norte, assim
como o tenente Ferrell, que serviu comigo em três comissões
antes de ser ferido com gravidade suficiente a ponto de ser

219
Região geográfica central da Carolina do Norte (e, de maneira geral, dos Estados Unidos). Seu nome
vem do latim Pedemontium ou Pedemontis, que significa literalmente ‘pé do monte’. É uma maneira de
se referir à área próxima aos Montes Apalaches, por toda a região central dos EUA.
220
A Igreja da Escócia é uma denominação protestante, de origem reformada. É calvinista e presbiteriana,
não anglicana como a Igreja da Inglaterra ou a Igreja da Irlanda.
416

obrigado a deixar o serviço com uma pensão naval. A esposa dele


também está aqui."
Roger se perguntou se – e como – a pensão poderia continuar a
ser paga, mas felizmente não era seu problema no momento.
"Então", continuou Cunningham, encontrando os olhos de Roger
ironicamente, "isso me dará uma congregação de pelo menos seis
almas."
Roger sorriu amavelmente, mas disse a verdade ao garantir a
Cunningham que o entretenimento era escasso o suficiente para
garantir a casa cheia a quem quisesse se levantar em público e
fornecê-lo.
"Entretenimento", disse Cunningham, um tanto sombriamente.
"Bastante." Ele tossiu.
"Posso perguntar por que você propôs este acordo, Sr.
MacKenzie? Você parece inteiramente capaz de entreter qualquer
número de pessoas, sozinho."
Porque Jamie quer saber se você é um legalista e o que você
estaria inclinado a fazer sobre isso se for – e atraí-lo para pregar
e falar com as pessoas em público provavelmente mostrará isso
a ele.
Ele não mentiria para Cunningham, mas não se importava em lhe
oferecer uma verdade alternativa.
"Como eu disse, mais da metade dos colonos aqui são católicos
e, embora venham me ouvir se não houver nada melhor a
oferecer, imagino que também possam ouvir você. E dada a
minha própria situação familiar pouco ortodoxa", ele deu um
levantar de ombros depreciativo, "Acho que as pessoas deveriam
ter permissão para ouvir diferentes pontos de vista."
"Certamente deveriam", disse uma voz suave e divertida atrás
dele. "Incluindo a voz de Cristo que fala dentro de seus próprios
417

corações."
Cunningham largou o carvão novamente. "Sra. Murray", ele
disse, e se curvou. "Seu servo, madame!"
Olhar para Rachel Murray sempre iluminava o coração de Roger,
e vê-la aqui, agora, o fez querer rir.
"Olá, Rachel,” ele disse. "Onde está o seu pequenino?"
"Com Brianna e Jenny", ela disse. "Amanda está tentando fazê-
lo dizer 'cocô', pelo que deduzo que ela quer dizer excremento."
"Bem, ela não irá longe, tentando fazê-lo dizer 'excremento'."
"Muito verdadeiro." Ela sorriu para ele e depois para
Cunningham. "Brianna disse que tu estarias aqui com o capitão,
organizando os assuntos para a nova capela, então pensei que
deveria participar de tua discussão."
Ela estava vestindo chita cinza-claro com um fichu azul-escuro
cobrindo o colo, e a combinação fazia seus olhos ficarem de um
verde profundo e misterioso.
Cunningham, embora galante, parecia um tanto confuso. Roger
não, embora tenha ficado surpreso.
"Você quer dizer – você quer usar a capela também? Para... hum
... reunião?"
"Certamente."
"Espere... você quer dizer uma reunião quacre?" O capitão
franziu a testa.
"Quantos quacres vivem atualmente na Cordilheira? "
"Apenas uma, pelo que sei", disse Rachel. "Embora eu ache que
devo contar Oggy; são dois. Mas os Amigos não têm noção de
quórum, e nenhum Amigo excluiria visitantes de uma reunião
ordinária. Jenny e Ian – meu marido e sua mãe, capitão –
certamente se juntarão a mim, e Claire diz que ela e Jamie virão
418

também. Naturalmente, tu e Brianna estão convidados, Roger, e


tu também, Amigo Cunningham, com tua mãe”.
Ela deu ao capitão um de seus sorrisos, e ele sorriu de volta por
reflexo, então tossiu, levemente embaraçado. Ele estava muito
corado. Roger achou que o homem poderia estar à beira de uma
overdose ecumênica e interveio.
"Quando você gostaria de ter o lugar, Rachel?"
"No primeiro dia – tu dirias que é domingo", ela explicou a
Cunningham. "Não usamos nomes pagãos. Mas a hora do dia não
importa. Não perturbaríamos quaisquer arranjos que vocês
tenham feito. "
"Pagão?" Cunningham parecia horrorizado. "Você acha que
'domingo' é pagão?"
"Bem, é claro que é", ela disse razoavelmente. "Significa Dia do
Sol, correspondendo ao antigo festival romano com esse nome,
dies solis, que se tornou Sunnendaeg221 em inglês. Eu admito ",
disse ela, fazendo uma leve covinha para Roger, "soa um pouco
menos pagão do que terça-feira em inglês, que tem o nome de um
deus nórdico222. Mas ainda..." Ela sacudiu a mão e se virou para
ir embora. "Informem-me em que horas vocês pretendem pregar
e eu organizarei as coisas de acordo. Oh", ela acrescentou, por
cima do ombro. "Naturalmente, vamos ajudar na construção."
Os homens a observaram desaparecer entre os carvalhos em
silêncio.
Cunningham pegou outro fragmento de carvão e o esfregou
distraidamente entre o polegar e o indicador. Isso lembrou Roger
de ir com Brianna uma vez a um serviço religioso da Quarta-feira
de Cinzas em St. Mary, em Inverness. O padre, com um pequeno

221
Em inglês arcaico.
Terça-feira, em inglês, é ‘Tuesday’. Vem de Tiwesdaeg, palavra do inglês arcaico que significa Dia do
222

Tiw (Tiu’s Day). Tiw (conhecido como Tew, Tyr e Tywar) era deus da guerra na mitologia norueguesa.
Tuesday também é baseado no nome Dies Martis, Dia de Marte (Day of Mars), o deus da guerra romano.
419

prato de cinzas (Bree disse a ele que eram as cinzas das folhas de
palmeira que sobraram do Domingo de Ramos do ano anterior)
esfregou o polegar e fez uma cruz rápida na testa de cada pessoa
na congregação, murmurando rapidamente para cada um:
"Lembra-te, Homem, de que és pó, e ao pó voltarás."223
Roger tinha ido para a sua vez e podia recordar vividamente tanto
a estranha sensação arenosa das cinzas como a estranha sensação
de inquietação e de aceitação misturadas.
Algo como ele sentia agora.

223
Genesis 3:19
420

23

PESCA DE TRUTA NA AMÉRICA, PARTE


DOIS224

Alguns dias depois…

A ISCA FLUTUOU AO VENTO, verde e amarela como uma


folha caindo, para pousar entre os anéis concêntricos que se
formavam na água. Ela flutuou por um segundo na superfície,
talvez dois, então desapareceu em um minúsculo splash,
arrancada da vista por mandíbulas vorazes. Roger sacudiu a ponta
de sua vara bruscamente para acertar o anzol, mas não era
necessário. As trutas estavam com fome esta noite, atacando
tudo, e seu peixe tinha pegado o anzol tão fundo que para trazê-
lo não precisava de nada além de força bruta.
O peixe seguiu lutando, no entanto, batendo e prateando na última
luz. Roger podia sentir sua vida através da vara, feroz e brilhante,
muito maior do que o próprio peixe, e seu coração se acelerou ao
encontrá-la.
"Quem o ensinou a lançar, Roger Mac?" Seu sogro pegou a truta
assim que ela chegou na margem, ainda batendo as barbatanas, e
a golpeou com precisão em uma pedra. "Esse foi o toque mais
bonito que eu já vi."
Roger fez um modesto gesto de rejeição, mas corou um pouco de
prazer com o elogio; Jamie não dizia essas coisas levianamente.
"Meu pai", disse ele.

224
Se temos uma parte 2, onde começa? No livro 4, o cap 27 se chama Pesca de Truta na América. É o
capítulo em que Jamie sai com William para pescar (entre outras coisas), enquanto Lord John se recupera
do sarampo.
421

"Sim?", Jamie parecia assustado.


Roger se apressou em se corrigir. "O reverendo, quero dizer. Ele
era realmente meu tio-avô, então e... ele tenha me adotado."
"Ainda é seu pai", disse Jamie, mas sorrindo. Ele olhou para o
outro lado da piscina, onde Germain e Jemmy estavam discutindo
sobre quem havia pescado o maior peixe. Eles tinham uma linha
respeitável, mas não pensaram em manter suas capturas
separadas, então não sabiam dizer quem pegou o quê.
"Você não acha que faz diferença, não é? Jem sendo meu por
sangue e Germain por amor?"
"Você sabe que não." Roger sorriu ao ver os dois meninos.
Germain era um pouco mais de um ano mais velho do que Jem 225,
mas era tinha o corpo mais esguio e leve, como ambos seus pais.
Jem tinha os ossos longos e ombros largos de seu avô – e de seu
pai, Roger pensou, endireitando os próprios ombros. Os dois
meninos eram muito altos, e os cabelos de ambos brilhavam
ruivos no momento, a luz avermelhada do sol poente incendiando
o esfregão louro de Germain. "Onde está Fanny, você sabe? Ela
resolveria essa questão."
Frances tinha 12 anos, mas às vezes parecia muito mais jovem –
e muitas vezes assustadoramente mais velha. Ela tinha sido se
tornado rapidamente amiga de Germain e quando Jem tinha
chegado na Cordilheira, havia ficado bastante distante, temendo
que Jem se interpusesse entre ela e seu único amigo. Mas Jem era
um rapaz aberto e de temperamento doce, e Germain – sendo um
ex-batedor de carteiras de onze anos de idade – sabia muito sobre
como as pessoas funcionavam, e logo os três podiam ser vistos
juntos em todos os lugares, rindo enquanto eles deslizaram por
entre os arbustos, com a intenção de fazer alguma missão

225
Na verdade, seriam dois ou três anos. Não sabemos exatamente quando Germain nasceu, mas foi
entre fim de 1767, começo de 1768. Jem nasceu em maio de 1770.
422

misteriosa, ou aparecendo no final do trabalho de bater a


manteiga, tarde demais para ajudar, mas bem a tempo de um copo
de leitelho fresco.
"Minha irmã está mostrando a ela como pentear cabras."
"Sim?"
"Para conseguir os pelos. Eu quero misturar com o gesso para as
paredes226."
"Oh, sim."
Roger acenou com a cabeça, enfiando uma linha na fenda da
guelra vermelho-escuro do peixe.
O sol estava baixo por entre as árvores, mas as trutas ainda
estavam mordendo, a água salpicada de dezenas de anéis
brilhantes, pela eclosão das moscas sobre água e o respingo
frequente de um peixe saltando. Os dedos de Roger se apertaram
por um momento em sua vara, tentado – mas eles já haviam
pescado o suficiente para o jantar e o café da manhã da manhã
seguinte também. Não adianta pegar mais; havia uma dúzia de
tonéis de peixe defumado e salgado já guardado no depósito frio,
e a luz estava desvanecendo.
Jamie não deu sinais de se mover, no entanto. Ele estava sentado
em um coto confortável, com as pernas nuas e vestido apenas com
sua camisa, seu velho xale de caça amassado no chão atrás; tinha
sido um dia quente e o bálsamo ainda pairava no ar. Ele olhou
para os meninos, que haviam esquecido a discussão e estavam de
volta às suas falas, atentos como um par de martim-pescadores.
Jamie então se virou para Roger e disse, em um tom de voz
bastante comum: "Os presbiterianos têm o sacramento da

226
O pelo das cabras é duro, comprido e crespo o que o torna um excelente reforço de gesso de cal, em
paredes de ripas e gesso. Uma forte ligação é formada à medida que os fios do pelo se enredam,
amarrando-se nos cantos e fendas das ripas de madeira.
423

confissão, mac mo chinnidh227?"


Roger nada disse por um momento, surpreso com a pergunta e
suas implicações imediatas e por Jamie tratá-lo como "filho da
minha casa" – algo que ele fez exatamente uma vez, ao chamar
os clãs do Monte Helicon alguns anos antes.
A pergunta em si era direta, porém, e ele a respondeu dessa
forma.
"Não. Os católicos têm sete sacramentos, mas os presbiterianos
reconhecem apenas dois: o batismo e a ceia do Senhor. Ele podia
ter deixado por isso mesmo, mas a primeira implicação da
questão estava clara diante dele.
"Você tem algo que quer me dizer, Jamie?" Ele pensou que
poderia ser a segunda vez que ele chamava seu sogro de Jamie na
cara dele. "Eu não posso lhe dar absolvição, mas eu posso ouvir."
Ele não teria dito que o rosto de Jamie mostrava qualquer coisa
no sentido de tensão. Mas agora ele relaxou e a diferença foi
suficientemente visível para que seu próprio coração se abrisse
para o homem, pronto para tudo o que ele dissesse. Ou assim ele
pensou.
"Sim." A voz de Jamie estava rouca e ele pigarreou, abaixando a
cabeça, um pouco tímido. "Sim, tudo bem. Você se lembra da
noite em que pegamos Claire de volta dos bandidos?"
"Não é provável que eu esqueça", disse Roger, olhando para ele.
Ele voltou o olhar para os meninos, mas eles ainda estavam na
sua discussão, e ele olhou para trás, para Jamie. "Por quê?", ele
perguntou, cauteloso.
"Você estava lá comigo, no final, quando quebrei o pescoço de
Hodgepile e Ian me perguntou o que fazer com o resto? E eu
disse: Mate todos eles."

227
“Filho do meu clã”.
424

"Eu estava lá." Ele tinha estado. E ele não queria voltar. Três
palavras e tudo estava lá, logo abaixo da superfície da memória,
ainda frio em seus ossos: noite negra na floresta, uma chama de
fogo em seus olhos, vento gelado e o cheiro de sangue. Os
tambores – um bodhrán228 trovejando contra seu braço, mais dois
atrás dele. Gritando no escuro. O brilho repentino dos olhos e a
sensação de aperto no estômago de um crânio esmagado.”
"Eu matei um deles", disse Roger abruptamente. "Você sabia
disso?"
Jamie não desviou o olhar do chão e não olhou agora; sua boca
se comprimiu por um momento e ele assentiu.
"Eu não vi você fazer isso", disse ele. "Mas estava bastante claro
em seu rosto, no dia seguinte."
"Eu não me surpreendo." A garganta de Roger estava apertada e
as palavras saíram grossas e ásperas. Mas ele ficou surpreso que
Jamie tivesse notado – que tivesse notado qualquer coisa naquele
dia além de Claire, uma vez que a luta tinha acabado. A imagem
dela, ajoelhada perto de um riacho, reajustando seu próprio nariz
quebrado no seu reflexo na água, o sangue escorrendo pelo corpo
nu e machucado, voltou para ele com a força de um soco no plexo
solar.
"Você nunca sabe como será." Jamie ergueu um ombro e o deixou
cair; ele tinha perdido o laço que prendia seus cabelos, enroscado
em algum galho de árvore, e os grossos fios vermelhos se
agitavam com a brisa da noite. "Uma luta assim, quero dizer. O
que você lembra e o que não. Lembro-me de tudo sobre aquela
noite, porém – e o dia depois dela."
Roger acenou com a cabeça, mas não falou. Era verdade que os
presbiterianos não tinham o sacramento da confissão – e ele
228
Tambor celta parecido com um tamborim, tocado com uma baqueta. O couro é preso em um dos lados
do instrumento. O outro lado é aberto para que uma das mãos do músico seja posicionada contra o lado
coberto a fim de controlar a altura e timbre do som.
425

lamentava não ter; era uma coisa útil para se ter no bolso.
Particularmente, ele supôs, se você levasse o tipo de vida que
Jamie levava. Mas qualquer ministro sabe a necessidade da alma
de falar e ser compreendida, e isso ele podia dar.
"Eu imagino que sim", ele disse. "Você se arrepende, então?
Mandar os homens matarem todos eles, quero dizer."
"Nem por um instante." Jamie lançou-lhe um olhar breve e feroz.
"Você se arrepende de sua parte nisso?"
"Eu ..." Roger parou abruptamente. Não era como se ele não
tivesse pensado nisso, mas... "Lamento ter tido que fazer isso",
disse ele com cuidado. "Muito. Mas eu tenho plena certeza, na
minha própria opinião, que eu tinha que fazer."
A respiração de Jamie saiu em um suspiro. "Você sabe que Claire
foi estuprada, eu acredito." Não era uma pergunta, mas Roger
acenou com a cabeça. Claire não tinha falado sobre isso, mesmo
para Brianna – mas ela não precisava.
"O homem que fez isso não foi morto, naquela noite. Ela o viu
vivo há dois meses, no entreposto dos Beardsley."
A brisa da noite tinha esfriado, mas não foi isso que arrepiou os
cabelos de Roger. Jamie era um homem de fala precisa – e ele
começou esta conversa com a palavra "Confissão". Roger
demorou a responder.
"Estou pensando que você não está pedindo minha opinião sobre
o que deve fazer a respeito."
Jamie ficou em silêncio por um momento, escuro contra o céu
escaldante. "Não", ele disse suavemente. "Não estou."
"Vovô! Olha!" Jem e Germain estavam escalando as rochas e
arbustos, cada um com uma fileira de trutas cintilantes, gotejando
faixas escuras de sangue e água pelas calças dos meninos, os
peixes oscilantes brilhando como bronze e prata na última luz do
426

entardecer.
Roger afastou o olhar para os meninos, não sem antes ver o piscar
dos olhos de Jamie enquanto olhava para os garotos, a luz
repentina em seu rosto captando uma aparência introvertida e
preocupada que desapareceu em um instante, quando ele sorriu e
ergueu a mão para os netos, estendendo-a para admirar sua
captura.
Jesus Cristo, Roger pensou. Ele sentiu como se um fio elétrico
tivesse passado por seu peito por um instante, pequeno e chiando.
Ele estava se perguntando se eles já tinham idade suficiente.
Para saber coisas assim.
"Decidimos que cada um pegou seis", Jemmy estava explicando,
orgulhosamente segurando seu barbante e girando-o para que seu
pai e seu avô pudessem apreciar o tamanho e a beleza de sua
captura.
"E estes são de Fanny", disse Germain, levantando uma corda
menor na qual três trutas rechonchudas balançavam. "Decidimos
que ela teria pego alguns, se estivesse aqui."
"Foi um pensamento gentil, rapazes", disse Jamie, sorrindo.
"Tenho certeza que a moça vai gostar."
"Mmphm", disse Germain, embora franzisse um pouco a testa.
"Ela ainda poderá vir pescar com a gente, grand-père? A Sra.
Wilson disse que não será capaz, uma vez que for mulher."
Jemmy fez um barulho de nojo e deu uma cotovelada em
Germain. "Não seja idiota", disse ele. "Minha mãe é uma mulher
e ela vai pescar. Ela caça também, sim?"
Germain acenou com a cabeça, mas não parecia convencido.
"Sim, ela faz isso", ele admitiu. "Porém, o sr. Crombie não gosta,
nem Garça."
"Garça?" Roger disse, surpreso. Hiram Crombie achava que as
427

mulheres deveriam cozinhar, limpar, fiar, costurar, cuidar das


crianças, alimentar o gado e ficar caladas, exceto quando oravam.
Mas Garça em Pé Bradshaw era um cherokee que se casou com
uma das garotas da Morávia de Salem e se estabeleceu do outro
lado da Cordilheira. "Por quê? As mulheres cherokees plantam
suas próprias safras e tenho certeza de que já as vi pegando peixes
com redes e armadilhas para peixes."
"Heron não disse sobre a captura de peixes", Jem explicou. "Ele
diz que as mulheres não podem caçar, porque elas fedem a sangue
e isso afasta a caça."
"Bem, isso é verdade", disse Jamie, para surpresa de Roger. "Mas
só quando elas tiverem suas regras. E mesmo assim, se ela ficar
a favor do vento..."
"Será que uma mulher que cheira a sangue não atrairia ursos ou
painters?", Germain perguntou. Ele parecia um pouco
preocupado com o pensamento.
"Provavelmente não", Roger disse secamente, esperando estar
certo. "E se eu fosse você, não sugeriria tal coisa para sua tia. Ela
pode interpretar mal."
Jamie fez um pequeno som divertido e enxotou os meninos.
"Andem vocês, rapazes. Ainda temos algumas coisas para falar.
Diga a sua avó que chegaremos a tempo para o jantar, sim?"
Eles esperaram, observando até que os meninos estivessem longe
demais para ouvirem. A brisa havia cessado agora e os últimos
anéis lentos na água se espalharam e se achataram, desaparecendo
nas sombras que se acumulavam. Pequenas moscas começaram a
encher o ar, sobreviventes da eclosão.
"Você fez isso, então?" Roger perguntou. Ele estava desconfiado
da resposta; e se ainda não foi feito e Jamie desejava sua ajuda no
assunto?
428

Mas Jamie confirmou com a cabeça, relaxando os ombros largos.


"Claire não me contou sobre isso, sabe. Eu vi imediatamente que
algo a estava incomodando, é claro..." Um fio de diversão
pesarosa tingiu sua voz; o rosto de vidro de Claire era famoso.
"Mas quando eu perguntei a ela, ela me pediu para deixar isso de
lado e lhe dar tempo para pensar."
"Você deixou?"
"Não." A diversão se fora. "Eu vi que era uma coisa séria. Eu
perguntei à minha irmã; ela me disse. Ela estava com Claire no
entreposto, certo? Ela viu o sujeito também, e arrancou de Claire
qual era o problema."
"Claire me disse – quando eu deixei claro que sabia o que estava
acontecendo – que estava tudo bem; ela estava tentando perdoar
o bastardo. E pensava que estava fazendo progresso com isso. Em
grande medida." A voz de Jamie era natural, mas Roger pensou
ter ouvido uma ponta de arrependimento nela.
"Você... acha que deveria ter deixado ela lidar com isso? É um...
um processo perdoar. Não um único ato, quero dizer. " Ele se
sentiu extremamente estranho e tossiu para limpar a garganta.
"Eu sei disso", disse Jamie em uma voz seca como areia. "Poucos
homens sabem disso."
Uma onda de vergonha subiu pelo peito de Roger e atingiu seu
pescoço. Ele podia sentir que o pegava pela garganta e não
conseguiu falar por um momento.
"Sim", Jamie disse, depois de um momento. "Sim, esse é um
ponto. Mas eu acho que talvez seja mais fácil perdoar um homem
morto do que aquele que anda debaixo do seu nariz. E falando
nisso, pensei que seria mais fácil para ela me perdoar do que a
ele." Ele ergueu um ombro e o deixou cair. "E ... se ela poderia
suportar a ideia do homem morando perto de nós ou não, eu não
429

poderia."
Roger fez um pequeno som de reconhecimento; parecia não haver
mais nada útil a dizer.
Jamie não se moveu nem falou. Ele se sentou com a cabeça
ligeiramente virada para o lado, olhando para a água, onde uma
luz fugidia cintilava sobre a superfície tocada pela brisa.
"Foi talvez a pior coisa que já fiz", disse ele por fim, muito
baixinho.
"Moralmente, você quer dizer?", Roger perguntou, sua própria
voz cuidadosamente neutra. A cabeça de Jamie se virou para ele
e Roger teve um lampejo azul de surpresa quando uma réstia de
sol tocou o lado de seu rosto.
"Och, não", disse o sogro imediatamente. "Só foi difícil de fazer."
"Sim." Roger deixou o silêncio baixar novamente, esperando. Ele
podia sentir Jamie pensando, embora o homem não se mexesse.
Ele precisava contar a alguém, revivê-lo e assim aliviar sua alma
pela confissão completa? Ele sentia em si mesmo uma
curiosidade terrível e, ao mesmo tempo, um desejo desesperado
de não ouvir. Ele respirou fundo e falou abruptamente.
"Eu contei a Brianna. Que eu matei Boble e – e como. Talvez eu
não devesse."
O rosto de Jamie estava completamente na sombra agora, mas
Roger podia sentir aqueles olhos azuis em seu próprio rosto,
totalmente iluminados pelo sol poente. Com esforço, ele não
olhou para baixo.
"Sim?", Jamie disse, sua voz calma, mas definitivamente curiosa.
"O que ela disse a você? Se você não se importa de me dizer,
quero dizer."
"Eu... bem. Para dizer a verdade, a única coisa que lembro com
certeza é que ela disse: Eu amo você." Essa foi a única coisa que
430

ele ouviu, através do eco de tambores e do bater de sua própria


pulsação em seus ouvidos. Ele contou a ela ajoelhado, a cabeça
em seu colo. Ela continuava dizendo isso: "Eu amo você", seus
braços envolvendo seus ombros, protegendo-o com a cortina de
seus cabelos, absolvendo-o com suas lágrimas.
Por um momento, ele estava de volta àquela memória e voltou a
si com um sobressalto, percebendo que Jamie havia dito algo.
"O que você disse?"
"Eu disse – e como os presbiterianos não acham que o casamento
é um sacramento?"
Jamie moveu-se em sua pedra229, enfrentando Roger diretamente.
O sol estava morrendo, não mais do que uma nuvem de bronze
em seus cabelos; suas feições estavam no escuro.
"Você é um pastor, Roger Mac", disse ele no mesmo tom que
poderia ter usado para descrever qualquer fenômeno natural,
como um cavalo malhado ou uma revoada de patos-reais. "É claro
para mim – e para você, eu acho – que Deus o chamou assim, e o
trouxe a este lugar e a este tempo para fazer isso. "
"Bem, a parte de ser ministro é clara", disse Roger secamente.
"Quanto ao resto... seu palpite possivelmente não é melhor do que
o meu. E um palpite é o melhor que tenho."
"Isso o coloca bem à frente do resto de nós, homem", Jamie disse,
o sorriso evidente em sua voz. Ele se levantou, uma sombra negra
com a vara na mão, inclinando-se para a cesta de junco. "É
melhor começarmos o caminho de volta, sim?"
Não havia um caminho de verdade entre a margem do lago de
trutas e a trilha de cervos que conduzia ao longo das encostas
mais baixas da Cordilheira, e o esforço de escalar pedregulhos e
arbustos pesados na luz fraca os impediu de falar muito.

229
Era um toco de árvore (stump). Agora é uma pedra, (rock).
431

"Quantos anos você tinha quando viu um homem ser morto pela
primeira vez?". Roger perguntou abruptamente para as costas de
Jamie.
"Oito", Jamie respondeu sem hesitação. "Em uma luta durante
meu primeiro ataque ao gado. Não fiquei muito preocupado com
isso."
Uma pedra rolou sob seu pé e ele escorregou, agarrando-se a um
galho de abeto a tempo de se salvar. Equilibrando-se novamente
sobre seus pés, ele se benzeu e murmurou algo baixinho.
O cheiro de agulhas de pinheiro machucadas era forte no ar
enquanto eles se moviam mais devagar, observando o solo. Roger
se perguntou se as coisas realmente cheiravam mais fortes ao
anoitecer ou se era porque, com a visão enfraquecendo, você
acabava prestando mais atenção aos seus outros sentidos.
"Na Escócia", disse Jamie abruptamente, “no Levante, vi meu tio
Dougal matar um de seus próprios homens. Isso foi uma coisa
terrível, embora tenha sido feito por misericórdia."
Roger respirou fundo, querendo dizer... o quê, ele não tinha
certeza, mas não importava.
"E então eu matei Dougal, pouco antes da batalha." Jamie não se
virou; apenas continuou subindo, lento e obstinado, o cascalho
deslizando de vez em quando sob seus pés.
"Eu sei", disse Roger. "E eu sei por quê. Claire nos contou.
Quando ela voltou ao nosso tempo", ele acrescentou, vendo os
ombros de Jamie enrijecerem. "Quando ela pensou que você
estava morto."
Houve um longo silêncio, quebrado apenas pelo som de uma
respiração pesada e um som alto e fino – zeek! – de andorinhas
caçando.
"Não sei", disse Jamie, obviamente tomando cuidado com suas
432

palavras, "se eu conseguiria me sacrificar por uma ideia. Não que


isso não seja uma coisa louvável", acrescentou ele
apressadamente. "Mas... eu perguntei a Brianna se algum
daqueles homens – aqueles que pensaram nas ideias e nas
palavras que você precisaria para torná-las reais – se algum deles
realmente lutou."
"Na Revolução, você quer dizer? Eu não acho que eles lutaram",
Roger disse em dúvida. "Ou irão, quero dizer. A menos que você
conte George Washington, e não acredito que ele fale muito."
"Ele fala com suas tropas, acredite em mim", disse Jamie, com
um humor irônico em sua voz. "Mas talvez não para o rei ou para
os jornais."
"Não. Mas, pensando bem", Roger acrescentou com justiça,
afastando um galho de pinheiro, grosso com uma seiva pungente
que deixou sua palma pegajosa", John Adams, Ben Franklin,
todos os pensadores e que fizeram seus discursos... eles estão
arriscando seus pescoços tanto quanto você – como nós."
"Sim." O terreno estava subindo abruptamente agora, e nada mais
foi dito enquanto eles subiam, tateando o caminho sobre o solo
irregular coberto de cascalho.
"Estou pensando que talvez eu não me ache capaz de morrer – ou
levar os homens à própria morte – apenas pela noção de
liberdade. Agora não."
"Agora não?", Roger repetiu, surpreso. "Você poderia ter feito
isso...antes?"
"Sim. Quando você, a moça e seus filhos estavam... lá. " Roger
percebeu o breve movimento de sua mão, lançada em direção ao
futuro distante. "Porque o que eu fizesse aqui então seria ...
importaria, sim? Para todos vocês – e eu posso lutar por vocês."
Sua voz ficou mais suave. "É para isso que fui feito, certo?"
433

"Eu entendo", disse Roger calmamente. "Mas você sempre soube


disso, não é? O que você foi feito para fazer."
Jamie fez um som com a garganta, meio surpreso.
"Eu não sei quando eu soube", disse ele, com um sorriso na voz.
"Talvez em Leoch, quando descobri que poderia fazer os outros
rapazes fazerem travessuras – e os levei a isso. Talvez eu devesse
confessar isso?"
Roger deixou isso de lado.
"Será importante para Jem e Mandy – e para aqueles de nosso
sangue que vierem depois deles", disse ele. Desde que Jem e
Mandy sobrevivam para ter seus próprios filhos, ele acrescentou
mentalmente, e sentiu um frio na boca do estômago ao pensar
nisso.
Jamie parou repentinamente e Roger teve que dar um passo para
o lado para evitar esbarrar nele.
"Olha", disse Jamie, e ele fez. Eles estavam parados no topo de
uma pequena elevação, onde as árvores se abriam de repente, e o
cume e o lado norte da encosta abaixo se espalhavam diante deles,
um pedaço maciço de preto sólido contra o índigo do céu
desbotado. No entanto, pequenas luzes espetavam a escuridão: as
janelas e as chaminés faiscantes de uma dúzia de cabanas.
"Não são apenas nossas esposas e nossos filhos, sabe?". Jamie
disse, e acenou com a cabeça em direção às luzes. "São eles
também. Todos eles." Sua voz tinha uma nota estranha; uma
espécie de orgulho – mas também de pesar e resignação.
Todos eles.
Setenta e três famílias ao todo, Roger sabia. Ele viu os livros
contábeis que Jamie mantinha, escritos com doloroso cuidado,
observando a economia e o bem-estar de cada família que
ocupava suas terras – e sua mente.
434

"Agora, pois, assim dirás ao meu servo Davi: Assim diz o Senhor
dos Exércitos: Eu o tirei das pastagens, onde você cuidava das
ovelhas, para ser o soberano sobre o meu povo, sobre Israel."230
A citação veio à mente, e ele falou em voz alta antes que pudesse
pensar.
Jamie deu um suspiro profundo e audível.
"Sim", ele disse. "Ovelhas seria mais fácil."
Então, abruptamente, "Frank Randall – no livro, diz que a guerra
está chegando pelo sul, não que eu precisasse que ele me dissesse
isso. Mas Claire, Brianna e as crianças – e eles – eu não posso
protegê-los, se isso chegar perto." Ele acenou com a cabeça na
direção das faíscas distantes, e ficou claro para Roger que por
"eles" estava se referindo a seus inquilinos – seu povo.
Roger não parou para responder, mas ajeitou o samburá no ombro
e começou a descer.
A trilha se estreitou. O ombro de Roger roçou o de Jamie, perto,
e ele deu um passo para trás, seguindo seu sogro. A lua estava
atrasada em nascer esta noite e era muito fina. Estava escuro e o
ar estava forte agora.
"Vou ajudá-lo a protegê-los", disse ele às costas de Jamie. Sua
voz estava rouca.
"Eu sei disso", disse Jamie, suavemente. Houve uma breve pausa,
como se Jamie estivesse esperando que ele falasse mais, e ele
percebeu que deveria.
"Com meu corpo", Roger disse baixinho, noite adentro. "E com
a minha alma, se isso for necessário."
Ele viu Jamie em uma breve silhueta, o viu respirar fundo e seus
ombros relaxaram quando ele soltou o ar.
Eles caminharam mais rapidamente agora; a trilha estava escura
Referência bíblica – 2 Samuel 7:8
230
435

e eles se perdiam de vez em quando, o mato prendendo-se em


suas pernas nuas.
No limite de sua própria clareira, Jamie parou para deixar Roger
vir com ele e colocou a mão em seu braço.
"As coisas que acontecem em uma guerra – as coisas que você
faz... elas marcam você", ele disse calmamente. "Não acho que
ser pastor vai poupar você, é o que estou dizendo, e sinto muito
por isso."
Elas marcam você. E eu sinto muito por isso. Mas ele não
respondeu a isso; apenas tocou a mão de Jamie levemente onde
ela estava em seu braço. Então Jamie retirou sua mão e eles
voltaram para casa juntos, em silêncio.
436

24

ALARMES À NOITE

ADSO, LANGUIDAMENTE DEITADO, mole como um lenço


sobre a mesa, abriu os olhos e deu um pequeno mowp inquisitivo
com o barulho de raspagem.
"Não é comestível", eu disse a ele, removendo a última gota de
pomada de genciana com a colher. Os grandes olhos verde-jade
voltaram a ser fendas. Mas não se fecharam totalmente – e a ponta
de sua cauda começou a se mexer. Ele estava observando algo, e
me virei para encontrar Jemmy na porta, envolto na velha camisa
azul surrada de seu pai. Quase tocava seus pés e estava caindo de
um ombro ossudo, mas isso claramente não importava; ele estava
bem acordado e ansioso.
"Vovó! Fanny está se sentindo ruim!"
"Se sentindo mal", eu corrigi automaticamente, fechando o pote
de gordura para manter fora do alcance de Adso. "Qual é o
problema?"
"Ela está enrolada como um besouro e grunhindo como se
estivesse com dor de barriga... mas, vovó, há sangue em sua
camisola!"
"Oh", eu disse, tirando minha mão do frasco de folhas de hortelã
que eu estava selecionando e pegando um pequeno pacote de gaze
na prateleira mais alta. Eu tinha preparado essa mistura nos
últimos dois meses, de prontidão.
"Eu acho que ela está bem, querido. Ou ficará. Onde está
Mandy?"
Todas as crianças compartilhavam um quarto – e muitas vezes,
437

uma única cama; era comum que tarde da noite se encontrasse um


colchão caído no chão, e todos os quatro esparramados em cima
dele, em um emaranhado docemente úmido de membros e
roupas. Germain tinha ido caçar com Bobby Higgins e Aidan –
Jemmy sendo impedido porque havia cortado o pé ontem – mas
Mandy estava aqui, e eu não acho que sua curiosidade insistente
e opiniões loquazes seriam de ajuda na situação presente.
"Dormindo", Jem respondeu, me observando colocar o pacote de
gaze com ervas em um bule de argila e derramar água fervente
sobre ele. "Para que serve essa poção, vovó?"
"É apenas um chá feito com raiz de gengibre e alecrim", disse eu.
"E um pouco de milefólio. É um emenagogo." Eu soletrei isso
para ele, acrescentando: "É para ajudar nas regras para mulheres.
Você já ouviu falar sobre as regras?"
Os olhos de Jemmy ficaram bastante redondos.
"Você quer dizer que Fanny está no cio?", ele deixou escapar.
"Quem vai cobri-la?"
"Bem, não funciona bem assim com as pessoas", eu disse,
acrescentando astuciosamente, "Peça a sua mãe para explicar
tudo para você pela manhã. Agora, por que você não vai e se deita
com o vovô, e eu levo isso para Fanny."
Antes de sair do consultório, porém, puxei a caixa de pedras de
rio de debaixo da mesa e escolhi minha favorita: um pedaço
desgastado de calcita cinza do tamanho do punho de Jamie, com
uma linha fina e vívida de verde esmeralda embutida aparecendo
em um lado, me lembrando da esmeralda que eu peguei no riacho.
Eu adicionei aquele à minha bolsa de remédios – meu amuleto.
Coloquei a pedra na lareira e coloquei brasas em cima dela,
apenas para o caso de o calor ser necessário.
A vela estava acesa no quarto das crianças e Fanny estava em sua
própria cama estreita, descoberta e enrolada como um porco-
438

espinho, de costas para a porta. Ela não olhou em volta ao som


dos meus passos, mas seus ombros ergueram-se ainda mais em
torno das orelhas.
"Fanny?", eu disse suavemente. "Você está bem, querida?"
Pela óbvia preocupação de Jemmy com o sangue, eu estava um
pouco preocupada – mas pude ver apenas uma pequena linha de
sangue e uma ou duas manchas na musselina de sua camisola, o
marrom enferrujado da primeira menstruação.
"Estou bem", ela disse em voz baixa e fria. "É... apenas sangue."
"Isso é bem verdade", eu disse calmamente, embora o tom em
que ela disse isso tenha me alarmado. Sentei-me ao lado dela e
coloquei a mão em seu ombro. Era duro como madeira e sua pele
estava fria. Há quanto tempo ela estava deitada ali, descoberta?
"Estou bem", disse ela. "Eu tenho os tra-trapos. Eu vou... lavar...
minha camisola de manhã."
"Não se preocupe com isso", disse eu, e acariciei a parte de trás
de sua cabeça muito levemente, como se ela fosse uma gata de
temperamento incerto. Eu não teria pensado que ela poderia ficar
mais tensa, mas ela ficou. Eu tirei minha mão.
"Você está com dor?", eu perguntei, com a voz profissional que
usava ao fazer o histórico físico de alguém que vinha ao meu
consultório. Ela tinha ouvido esse tom antes, e os ombros
delgados relaxaram, apenas um fio de cabelo.
"Não leal – quero dizer, não re-almente", ela disse, pronunciando
mais claramente. Foi preciso muita prática para ela ser capaz de
pronunciar as palavras corretamente, depois de eu ter feito a
frenectomia que a livrou da língua presa, e eu podia ver que a
irritava estar escorregando de volta para o ceceio de sua
escravidão.
"Parece apertado", disse ela. "Como um punho me apertando
439

bem ali." Ela empurrou os próprios punhos na parte inferior do


abdômen como ilustração.
"Isso parece bastante normal", eu assegurei a ela. "É apenas o seu
útero acordando, por assim dizer. Ele não se moveu
perceptivelmente antes, então você não tinha percebido."
Eu já havia explicado a estrutura interna do sistema reprodutor
feminino para ela, com desenhos, e embora ela parecesse
levemente enojada com a palavra "útero", ela tinha prestado
atenção.
Para minha surpresa, a nuca dela ficou pálida com isso, os ombros
arqueando novamente. Eu olhei por cima do ombro, mas Mandy
estava roncando nos seus cobertores, morta para o mundo.
"Fanny?", eu disse, e me aventurei a tocá-la novamente,
acariciando seu braço. "Você já viu meninas terem suas regras
antes, não é?" Pelo que pudemos estimar, ela morava em um
bordel na Filadélfia desde os cinco anos de idade; eu teria ficado
surpresa se ela não tivesse visto quase tudo que o sistema
reprodutor feminino pode fazer. E então me ocorreu, e me
repreendi por ser um idiota. Claro. Ela tinha visto tudo.
"Sim", ela disse, daquele jeito frio e remoto. "Significa duas
coisas. Você pode engravidar e começar a ganhar dinheiro. "
Eu respirei fundo.
"Fanny", disse eu, "sente-se e olhe para mim."
Ela ficou congelada por um momento, mas estava acostumada à
obediência, e depois de um momento ela se virou e sentou-se. Ela
não olhou para mim, mas manteve os olhos fixos nos joelhos,
pequenos e afiados sob a musselina.
"Querida", eu disse, mais gentilmente, e coloquei a mão sob seu
queixo para levantar seu rosto. Seus olhos encontraram os meus
como um golpe, seu castanho suave quase preto de medo. Seu
440

queixo estava rígido, sua mandíbula cerrada, e eu tirei minha


mão.
"Você realmente não acha que pretendemos que você seja uma
prostituta, Fanny?"
Ela ouviu a incredulidade em minha voz e piscou. Uma vez.
Então olhou para baixo novamente.
"Eu... não sou boa para mais nada", disse ela, em voz baixa. "Mas
eu valho muito dinheiro – por... isso." Ela acenou com a mão
sobre o colo, em um gesto rápido, quase ressentido.
Eu me senti como se tivesse levado um soco na minha própria
barriga. Ela teria realmente pensado? – mas, sim, ela claramente
pensou. Deve ter pensado assim, o tempo todo em que morou
conosco. Ela parecia prosperar no início, protegida do perigo e
bem alimentada, com os meninos como companheiros. Mas no
último mês, mais ou menos, ela parecia retraída e pensativa,
comendo muito menos. Eu vi os sinais físicos e os considerei
devidos ao fato de ela ter percebido a mudança iminente; havia
preparado as ervas emenagogas, para ficarem prontas.
Aparentemente era esse o caso, mas obviamente eu não tinha
adivinhado a metade.
"Isso não é verdade, Fanny", disse eu, e peguei a mão dela. Ela
me deixou segurá-la, mas sua mão ficou na minha como um
pássaro morto. "Esse não é o seu único valor." Oh, Deus, parecia
que ela tinha outro, e é por isso que tínhamos...
"Quero dizer, não aceitamos você porque pensamos que você...
você seria lucrativa para nós de alguma forma. De jeito nenhum."
Ela desviou o rosto, com um ruído de fungada quase inaudível.
Isso estava piorando a cada momento. Tive uma lembrança
repentina de Brianna quando era uma jovem adolescente e de
passar horas em seu quarto, atolada em garantias fúteis – não,
você não é feia; claro que você vai ter um namorado quando
441

chegar a hora; não, todo mundo não odeia você. Eu não era boa
nisso na época, e claramente essas habilidades maternas
específicas não haviam melhorado com a idade.
"Nós pegamos você porque queríamos você, querida", eu disse,
acariciando a mão indiferente. "Queríamos cuidar de você."
Ela a puxou e se aninhou novamente, o rosto no travesseiro.
"Não, vocês não queriam." Sua voz saiu grossa e ela pigarreou
com força. "William fez o Sr. Fraser me aceitar."
Eu ri alto, e ela tirou a cabeça do travesseiro para olhar para mim,
surpresa.
"Sério, Fanny", eu disse. "Falando como alguém que conhece os
dois muito bem, posso assegurar-lhe que ninguém no mundo
poderia fazer qualquer um daqueles homens fazer qualquer coisa
contra a sua vontade. O Sr. Fraser é teimoso como uma rocha e
seu filho é exatamente como ele. Há quanto tempo você conhece
William?"
"Não... muito", ela disse, incerta. "Mas... mas ele tentou salvar
Ja-Jane. Ela gostava dele." Lágrimas repentinas brotaram de seus
olhos e ela voltou o rosto para o travesseiro.
"Oh", eu disse, muito mais suavemente. "Eu entendo. Você está
pensando nela. Em Jane." Claro.
Ela assentiu com a cabeça, seus ombros pequenos curvados e
tremendo. Sua trança se desfizera e os cachos castanhos macios
caíram, expondo a pele branca de seu pescoço, delgado como um
caule de aspargo branqueado.
"Foi a única vez que eu vi o cho-choro dela", disse ela, as palavras
apenas meio audíveis entre a emoção e o abafamento.
"De Jane? Quando foi isso?"
"Na sua primeira... primeira vez. Com... com um homem. Quando
ela voltou e deu a toalha ensanguentada para a sra. Abbott. Ela
442

fez isso, e então se arrastou para a cama comigo e chorou. Eu


segurei huh e... e acariciei huh... e consolei, mas não consegui
fazê-la parar." Ela abraçou a si mesma e estremeceu com soluços
silenciosos.
"Sassenach?" A voz de Jamie veio da porta, rouca de sono. "O
que há de errado? Eu rolei e encontrei Jem na minha cama, em
vez de você.", ele falou com calma, mas seus olhos estavam fixos
nas costas trêmulas de Fanny. Ele olhou para mim, uma
sobrancelha levantada e moveu a cabeça ligeiramente em direção
ao batente da porta. Eu queria que ele fosse embora?
Olhei para Fanny e para ele com uma contração indefesa do
ombro, e ele entrou imediatamente no quarto, puxando um
banquinho ao lado da cama de Fanny. Ele percebeu as manchas
de sangue imediatamente e olhou para mim novamente –
certamente isso era assunto de mulheres? – mas eu neguei com a
cabeça, mantendo uma das mãos nas costas de Fanny.
"Fanny está com saudades da irmã", eu disse, abordando o único
aspecto das coisas que achei que poderiam ser tratadas com
eficácia no momento.
"Ah", Jamie disse suavemente, e antes que eu pudesse impedi-lo,
ele se abaixou e a puxou gentilmente em seus braços. Eu enrijeci
por um instante, com medo de que um homem a tocasse agora,
mas ela se virou para ele imediatamente, jogando os braços em
volta do pescoço dele e soluçando em seu peito.
Ele se sentou, segurando-a nos joelhos, e eu senti a tensão infeliz
em meus próprios ombros diminuir, vendo-o alisar os cabelos
dela e murmurar coisas para ela em um gaélico que ela não falava,
mas claramente entendia tão bem quanto um cavalo ou cachorro
entenderia.
Fanny continuou a soluçar um pouco, mas lentamente se acalmou
com seu toque, soluçando apenas de vez em quando.
443

"Eu vi sua irmã apenas uma vez", ele disse suavemente. "Jane era
o nome dela, sim? Jane Eleanora. Ela era uma moça bonita. E ela
amava você, querida, Frances. Eu sei disso."
Fanny assentiu, com lágrimas escorrendo pelo rosto, e olhei para
o canto onde Mandy estava deitada em sua cama de rodízios. Ela
ainda estava inconsciente, o polegar firmemente conectado à
boca. Fanny se controlou em poucos segundos, no entanto, e eu
me perguntei se ela havia sido espancada no bordel por chorar ou
exibir emoções violentas.
"Ela fez isso por mim", disse ela, em tom de desolação absoluta.
"Matou o capitão Harkness. E agora ela está morta. É tudo minha
culpa." E apesar da brancura de seus dedos cerrados, mais
lágrimas brotaram de seus olhos. Jamie olhou para mim por cima
da cabeça e engoliu em seco para controlar a voz.
"Você teria feito qualquer coisa por sua irmã, sim?" disse ele,
esfregando suavemente as costas dela entre as pequenas
omoplatas ossudas.
"Sim", ela disse, a voz abafada em seu ombro.
"Sim, claro. E ela teria feito o mesmo por você – e fez. Você não
teria hesitado por um momento em dar sua vida por ela, e nem
ela. Não foi sua culpa, a nighean."
"Foi! Eu não deveria ter feito barulho, eu deveria...oh, Janie!"
Ela se agarrou a ele, abandonando-se à tristeza. Jamie deu
tapinhas em suas costas e a deixou chorar, mas olhou para mim
por cima da coroa desgrenhada de sua cabeça e ergueu as
sobrancelhas.
Levantei-me e fui ficar atrás dele, com a mão em seu ombro, e
em um francês murmurado, o familiarizei em poucas palavras
com a outra fonte de angústia de Fanny. Ele franziu os lábios por
um instante, mas depois acenou com a cabeça, nunca parando de
444

acariciá-la e fazer ruídos suaves. O chá esfriou, partículas de


alecrim e gengibre em pó flutuando na superfície escura. Peguei
a panela e a xícara e saí silenciosamente para refazer a mistura.
Jemmy estava parado no escuro do lado de fora da porta e quase
bati nele.
"Jesus H. Roosevelt Cristo!" Eu disse, apenas conseguindo dizer
em um sussurro. "O que você está fazendo aqui? Por que você
não está dormindo?"
Ele ignorou isso, olhando para a luz fraca do quarto e a sombra
curvada na parede, um olhar profundamente preocupado em seu
rosto.
"O que aconteceu com a irmã de Fanny, vovó?"
Hesitei, olhando para ele. Ele tinha apenas nove anos. E
certamente cabia a seus pais dizer a ele o que achavam que ele
deveria saber. Mas Fanny era sua amiga – e Deus sabia, ela
precisava de um amigo em quem pudesse confiar.
"Desça comigo", eu disse, virando-o em direção à escada com a
mão em seu ombro. "Eu vou contar enquanto faço mais chá. E
não diga nada à sua mãe sobre isso."
Eu disse a ele da maneira mais simples que pude, e omitindo as
coisas que Fanny havia me contado sobre os hábitos do falecido
capitão Harkness.
"Você conhece a palavra puta - hã... meretriz, quero dizer?" Eu
me corrigi, e a carranca de incompreensão relaxou.
"Certo. Germain me contou. São mulheres que vão para a cama
com homens com quem não são casadas. Mas Fanny não é uma;
a irmã dela era?"
Ele parecia perturbado com o pensamento.
"Bem, sim", eu disse. "Não quero exagerar. Mas as mulheres –
ou meninas – que se tornam prostitutas o fazem porque não têm
445

outra maneira de ganhar a vida. Não porque elas querem, quero


dizer."
Ele parecia confuso. "Como elas ganham dinheiro?"
"Oh. Os homens as pagam para – hã – ir para a cama com elas.
Acredite em mim", eu o assegurei, vendo seus olhos se
arregalarem de espanto.
"Eu vou para a cama com Mandy e Fanny o tempo todo", ele
protestou. "E Germain também. Eu não pagaria a elas por serem
meninas!"
"Jeremiah", eu disse, despejando água quente fresca na panela.
"Ir para a cama é um eufemismo – você conhece essa palavra?
Significa dizer algo que soa melhor do que o que você realmente
está falando – então é um eufemismo para a relação sexual."
"Oh, isso", ele disse, seu rosto demonstrando sua compreensão.
"Como os porcos? Ou as galinhas?"
"Mais ou menos assim, sim. Encontre um pano limpo para mim,
sim? Deve haver alguns no armário de baixo." Ajoelhei-me – com
os joelhos estalando ligeiramente – e tirei a pedra quente das
cinzas com o atiçador. Fez um pequeno som sibilante quando o
ar frio do consultório atingiu a superfície quente.
"Então", eu disse, pegando o pano que ele me trouxe e tentando
falar com a voz mais natural possível, "os pais de Jane e Fanny
morreram e elas não tinham como se alimentar, então Jane se
tornou uma prostituta. Mas alguns homens são muito perversos –
espero que você já saiba disso, não é?", eu acrescentei, olhando
para ele, e ele acenou com a cabeça sobriamente.
"Sim. Bem, um homem perverso veio ao lugar onde Jane e Fanny
viviam e queria fazer Fanny ir para a cama com ele, embora ela
fosse muito jovem para fazer tal coisa. E... hã... Jane o matou."
"Uau."
446

Pisquei para ele, mas isso foi dito com o mais profundo respeito.
Tossi e comecei a dobrar o pano.
"Foi muito heroico da parte dela, sim. Mas ela..."
"Como ela o matou?"
"Com uma faca", eu disse, um pouco laconicamente, esperando
que ele não pedisse detalhes. Eu os conhecia e desejava não saber.
"Mas o homem era um soldado e, quando o exército britânico
descobriu, prenderam Jane."
"Oh, Jesus", Jem disse, em tons de terror absoluto. "Eles a
enforcaram, como tentaram enforcar o papai?"
Tentei pensar se deveria dizer a ele para não tomar o nome do
Senhor em vão, mas por um lado, ele claramente não quis dizer
dessa maneira – e por outro, eu não tinha moral alguma para
censurá-lo nesse aspecto particular.
"Eles queriam. Ela estava sozinha e com muito medo. e ela...
bem, ela se matou, querido."
Ele olhou para mim por um longo momento, o rosto vazio de
expressão, então engoliu em seco, com força.
"Jane foi para o inferno, vovó?", ele perguntou em voz baixa. "É
por isso que Fanny está tão triste?"
Eu embrulhei a pedra em um pano grosso; o calor brilhava nas
palmas das minhas mãos.
"Não, querido", eu disse, com tanta convicção quanto pude
reunir. "Tenho certeza de que ela não foi. Deus certamente
entenderia as circunstâncias. Não, Fanny está apenas sentindo
falta da irmã."
Ele acenou com a cabeça, muito sóbrio.
"Eu sentiria falta de Mandy, se ela matasse alguém e..." Ele
engoliu em seco com o pensamento. Fiquei um pouco preocupada
447

ao notar que a noção de Mandy matando alguém aparentemente


parecia razoável para ele, mas...
"Tenho certeza de que nada disso jamais aconteceria com Mandy.
Aqui." Eu dei a ele a pedra embrulhada. "Tenha cuidado com
isso."
Subimos lentamente as escadas, deixando um rastro de vapor de
gengibre quente, e encontramos Jamie sentado ao lado de Fanny
na cama, uma pequena coleção de coisas estendida na colcha
entre eles. Ele olhou para mim, ergueu uma sobrancelha para Jem
e acenou com a cabeça para a colcha.
"Frances estava me mostrando um retrato de sua irmã. Você
deixaria a sra. Fraser e Jem darem uma olhada, a nighean?"
O rosto de Fanny ainda estava manchado de tanto chorar, mas ela
estava mais ou menos sob controle e acenou com a cabeça
sobriamente, afastando-se um pouco.
O pequeno pacote de pertences que ela trouxera tinha sido
desenrolado, revelando uma pequena pilha patética de itens: um
pente fino, a rolha de uma garrafa de vinho, duas meadas de linha
cuidadosamente dobradas, uma delas com uma agulha enfiada,
um papel de alfinetes e algumas bijuterias, vistosas, mas sem
valor. Sobre a colcha havia uma folha de papel, muito dobrada e
gasta nos vincos, com o desenho de uma menina a lápis.
"Um dos homens dexen... desenhou... uma noite no salão", disse
Fanny, afastando-se um pouco para que pudéssemos olhar.
Não era mais do que um esboço, mas o artista havia captado uma
centelha de vida. Jane tinha um contorno adorável, nariz reto e
boca delicada e madura, mas não havia flerte nem recato em sua
expressão. Ela estava olhando meio por cima do ombro, meio
sorrindo, mas com um ar de leve desprezo em seu olhar.
"Ela é bonita, Fanny", disse Jemmy, e veio ficar ao lado dela. Ele
448

deu um tapinha no braço dela como faria com um cachorro, mas


sem se aperceber totalmente disso.
Jamie deu a Fanny um lenço, eu vi; ela fungou e assoou o nariz,
balançando a cabeça.
"Isso é tudo que eu tenho", disse ela, com a voz rouca como a de
um sapo jovem. "Só isso e seu med-medalhão."
"Esse?" Jamie mexeu a pequena pilha suavemente com o grande
indicador e retirou uma pequena medalha oval de metal,
pendurada em uma corrente. "É uma miniatura de Jane, então, ou
talvez uma mecha de seus cabelos?"
Fanny balançou a cabeça, pegando o medalhão dele.
"Não", ela disse. "É uma imagem da nossa mãe." Ela deslizou a
unha do polegar na lateral do medalhão e o abriu. Inclinei-me
para frente para olhar, mas a miniatura dentro era difícil de ver,
sombreada como estava pelo corpo de Jamie.
"Posso?"
Fanny me entregou o medalhão e me virei para segurá-lo perto
da vela. A mulher lá dentro tinha cabelos escuros e suavemente
cacheados como o de Fanny – e achei que podia distinguir uma
semelhança com Jane no nariz e na configuração do queixo,
embora não fosse uma representação particularmente habilidosa.
Atrás de mim, ouvi Jamie dizer, muito naturalmente: "Frances,
nenhum homem jamais irá tomá-la contra sua vontade, enquanto
eu viver."
Houve um silêncio assustado e me virei para ver Fanny olhando
para ele. Ele tocou a mão dela, muito gentilmente.
"Você acredita em mim, Frances?", ele disse calmamente.
"Sim", ela sussurrou, depois de um longo momento, e toda a
tensão deixou seu corpo em um suspiro como o vento leste.
449

Jemmy se encostou em mim, a cabeça pressionando meu


cotovelo, e percebi que estava ali parada, com os olhos cheios de
lágrimas. Eu as limpei rapidamente na minha manga e fechei o
medalhão. Ou tentei; ele escorregou nos meus dedos e vi que
havia um nome inscrito nele, do lado oposto à miniatura.
Faith, dizia.

-.-.-

EU NÃO CONSEGUIA DORMIR. Eu tinha dado a Fanny seu


chá, fornecido a ela panos adequados – e não me surpreendi que
ela já soubesse como usá-los – falei gentilmente com ela,
tomando cuidado para não levantar mais nenhuma questão
pessoal sobre seus fantasmas.
Quando Fanny veio até nós, Jamie e eu tínhamos concordado que
não tentaríamos questioná-la sobre qualquer um dos pedaços de
memória que ela deixava escapar em voz alta – como os homens
maus no navio e o que aconteceu com o cachorro Spotty – a
menos que ela parecesse querer falar sobre eles. Achei que ela
iria, mais cedo ou mais tarde. Bree e Roger também concordaram,
embora eu pudesse ver como Brianna estava curiosa.
Fanny mencionava Jane de vez em quando, de improviso, mas de
uma forma planejada – pensei – para manter viva a sensação de
sua irmã. Vendo sua angústia esta noite, no entanto, notei que
Jane estava muito mais perto dela do que eu pensava. E agora que
eu tinha visto o rosto de Jane... eu não conseguia esquecer.
Saber apenas o que eu sabia sobre a vida das meninas no bordel
da Filadélfia era perturbador; eu realmente não queria saber como
elas chegaram lá. Eu ainda não queria... mas não consegui manter
o verme da especulação sob controle; ele tinha se enterrado em
meu cérebro e estava se contorcendo ativamente em meus
450

pensamentos, matando o sono.


Homens maus em um navio. Um cachorro lançado ao mar. Um
cachorro de estimação? Uma família – se Fanny e Jane
estivessem com seus pais em um navio que encontrou piratas...
ou mesmo um capitão malvado, como Stephen Bonnet... Senti os
pelos do antebraço arrepiarem ao pensar nele, mas com a
lembrança de raiva, não de medo. Alguém como ele poderia
facilmente ter dado uma olhada nas duas lindas garotas e decidido
que seus pais poderiam ser dispensados.
Faith. Nossa mãe, Fanny havia dito. Eu olhei mais de uma vez
para a miniatura no medalhão, mas era muito pequena para
mostrar qualquer coisa além de uma jovem de cabelos escuros,
talvez naturalmente cacheados, talvez penteados em cachos e
arrumados à moda da época.
Não. Não pode ser. Rolei pela décima vez, acomodando-me de
bruços e enterrando o rosto no travesseiro, na esperança de me
perder no cheiro de linho limpo e penas de ganso.
"Não pode ser o quê, Sassenach?" A voz de Jamie falou em meu
ouvido, sonolenta e resignada. "E se não pode, não pode esperar
até o amanhecer?"
Rolei para o lado em um farfalhar da cama, de frente para ele.
"Sinto muito", disse eu, e o toquei como desculpa. Sua mão pegou
a minha automaticamente, quente e firme. "Eu não percebi que
disse isso em voz alta. Eu estava... pensando no medalhão de
Fanny."
Faith.
"Ach", ele disse, e se espreguiçou um pouco, gemendo. "Você
quer dizer o nome. Faith?"
"Bem, sim. Quero dizer, não teria possivelmente... nada a ver
com..."
451

"Não é um nome incomum, Sassenach." Seu polegar esfregou


suavemente minhas juntas. "Claro que você... sentiria. Eu senti
também."
"Você sentiu?", eu disse suavemente. Eu limpei minha garganta
um pouco. "Eu... eu realmente não faço mais isso, mas por um
tempo, apenas – apenas de vez em quando – eu pensava nela, em
nossa Faith – do nada. Eu imaginava que poderia senti-la perto
de mim."
"Imaginando como ela seria... crescida?" Sua voz era suave
também. "Eu fazia isso, às vezes. Na prisão, principalmente; com
muito tempo para pensar, à noite. Sozinho."
Eu fiz um pequeno som e puxei para mais perto, colocando minha
cabeça na curva de seu ombro, e seu braço veio ao meu redor.
Ficamos imóveis, em silêncio, ouvindo a noite e a casa ao nosso
redor. Repleta de nossa família – mas com um pequeno anjo
pairando no ar calmo e doce, pacífico como uma fumaça subindo.
"O medalhão", eu disse finalmente. "Não pode ter nada a ver
com..."
"Não, não pode", disse ele, uma nota cautelosa em sua voz. "Mas
o que você está pensando, Sassenach? Porque você não está
pensando no que acabou de dizer, e eu sei disso."
Isso era verdade, e um espasmo de culpa por ser descoberta
apertou meu corpo.
"Não pode ser", eu disse, e engoli em seco. "É apenas..." Minhas
palavras morreram e ele esfregou sua mão entre minhas
omoplatas.
"Bem, é melhor você me dizer, Sassenach", disse ele. "Não
importa o quão tolo seja, nenhum de nós vai dormir até que você
o faça."
"Bem... você sabe o que Roger me disse, sobre o médico que ele
452

conheceu nas Highlands, e a luz azul?"


"Eu sei. O que..."
"Roger me perguntou se eu já tinha visto uma luz azul assim –
quando eu estava curando pessoas."
A mão nas minhas costas parou.
"E você já?" Ele parecia cauteloso, embora eu não soubesse se
ele estava com medo de descobrir algo que não queria saber ou
se apenas receava descobrir que eu estava enlouquecendo.
"Não", eu disse. "Ou não... bem, não. Mas... eu vi isso. Senti.
Duas vezes. Apenas um flash, quando o bebê de Malva morreu."
Morreu em minhas mãos, coberto com o sangue de sua mãe.
"Mas quando Faith nasceu, quando eu estava tão doente. Eu
estava morrendo – morrendo de verdade, eu senti isso – e Mestre
Raymond veio."
"Você me disse isso", disse ele. "Há mais?"
"Eu não sei", eu disse honestamente. "Mas isso é o que eu pensei
que aconteceu."
E eu disse a ele, sobre ver meus ossos brilharem em azul através
da carne dos meus braços, a sensação da luz se espalhando pelo
meu corpo e a infecção morrendo, me deixando mole, mas inteira
e me curando.
"Então... hum... eu sei que isso não é nada além de pura fantasia,
o tipo de coisa que você pensa no meio da noite quando não
consegue dormir..."
Ele fez um ruído baixo, indicando que eu deveria parar de me
desculpar e continuar com isso. Então, respirei fundo e o fiz,
sussurrando as palavras em seu peito.
"Mestre Raymond estava lá. E se... se ele encontrasse... Faith... e
fosse capaz de... de alguma forma trazê-la... de volta?"
453

Silêncio mortal. Eu engoli, mas o silêncio permaneceu.


"As pessoas... nem sempre estão mortas, mesmo que pareça. Olhe
para a velha Sra. Wilson! Todo médico sabe – ou ouviu – sobre
pessoas que foram declaradas mortas e acordam mais tarde no
necrotério."
"Ou em um caixão." Ele parecia sombrio e um arrepio passou por
mim.
"Sim, eu ouvi histórias assim. Mas, um bebezinho e um nascido
muito cedo...como...?"
"Eu não sei como!", eu explodi. "Eu disse que é uma fantasia
completa, não pode ser verdade! Mas... mas..." Minha garganta
fechou e minha voz falhou.
"Mas você gostaria que fosse?" Sua mão segurou minha nuca e
sua voz ficou baixa novamente.
"Sim. Mas... se fosse, mo chridhe, por que ele não teria contado
a você? Você o viu de novo, não? Depois que ele curou você,
quero dizer.231"
"Sim." Estremeci, momentaneamente sentindo a Câmara Estelar
do Rei da França perto de mim, o cheiro do perfume do rei, de
sangue de dragão e vinho no ar – e dois homens diante de mim,
esperando minha sentença de morte.
"Sim, eu o encontrei. Mas, quando o conde morreu, Raymond foi
banido e eles o levaram embora. Ele não poderia ter me contado
na época, e ele pode não ter sido capaz de voltar antes de
deixarmos Paris."
Parecia loucura, até para mim. Mas eu podia – apenas – ver:
Mestre Raymond, fugindo de L'Hôpital des Anges depois de me
deixar, talvez esquivando-se para não ser notado, escondido no

231
Ela não só o viu, como Mestre Raymond escreveu para ela, para Lallybroch, enviou ossos e presentes
de locais distantes, no livro 2.
454

lugar onde as freiras tinham, talvez, colocado Faith em uma


prateleira, embrulhada em suas roupas enfaixadas. Ele a teria
reconhecido, como ele me reconheceu...
Todo mundo tem uma cor, ele disse simplesmente. Ao redor
deles, como uma nuvem. A sua é azul, madonna. Como o manto
da Virgem. Como a minha.
Um dos dele. O pensamento veio do nada e eu enrijeci.
"Jesus H. Roosevelt Cristo." E se... tudo bem, eu estava louca,
mas era tarde demais para fazer diferença.
"E se ele – se eu, nós – e se Mestre Raymond... estiver de alguma
forma relacionado a mim?"
Jamie não disse nada, mas senti sua mão se mover sob meus
cabelos. Seu dedo médio dobrou-se para baixo e os externos se
endireitaram, fazendo o sinal dos chifres, contra o mal.
"E se ele não estiver?", ele disse secamente. Ele me rolou para
longe dele e se virou para mim para que ficássemos cara a cara.
A escuridão foi sumindo lentamente e pude ver seu rosto,
desenhado pelo cansaço, tocado pela tristeza e ternura, mas ainda
determinado.
"Mesmo se tudo o que você se fez pensar fosse de alguma forma
verdade – e não é, Sassenach; você sabe que não é –, mas se fosse
de alguma forma verdade, não faria qualquer diferença. A mulher
com o medalhão de Frances está morta agora, assim como a nossa
Faith."
Suas palavras tocaram um lugar em carne viva do meu coração,
e eu balancei a cabeça, concordando, as lágrimas brotando.
"Eu sei", eu sussurrei.
"Eu também sei", ele sussurrou, e me abraçou enquanto eu
chorava.
455

25

VOULEZ-VOUS COUCHER AVEC MOI232

O TEMPO AINDA ESTAVA BOM durante o dia, mas o galpão


de defumação ficava à sombra de um penhasco rochoso. Nenhum
fogo tinha sido aceso aqui há mais de um mês, e o ar cheirava a
cinzas amargas e a cheiro de sangue antigo.
"Quanto você acha que essa coisa pesa?" Brianna colocou as duas
mãos no ombro do enorme porco preto e branco deitado na mesa
tosca perto da parede de trás e apoiou seu próprio peso
experimentalmente contra ele. O ombro se moveu ligeiramente –
o rigor já havia passado – mas o porco em si não se mexeu um
centímetro.
"Suponho que originalmente pesava um pouco mais do que seu
pai. Talvez uns 180 quilos, quando inteiro." Jamie sangrou e
estripou o porco quando o matou; isso provavelmente havia
aliviado sua carga em cerca de 45 quilos, mas ainda era muita
carne. Um pensamento agradável para a comida do inverno, mas
uma perspectiva assustadora no momento.
Desenrolei o pano com seus bolsos no qual guardava minhas
ferramentas cirúrgicas maiores – aquele não era um trabalho para
uma faca de cozinha comum.
"O que você acha dos intestinos?", eu perguntei. "Aproveitável,
você acha?"
Ela torceu o nariz, considerando. Jamie não foi capaz de carregar
muito além da própria carcaça – ele de fato a arrastou –, mas
cuidadosamente recuperou mais de 10 quilo de intestino. Ele

232
Refrão sugestivo (significa: Você quer dormir comigo) da música Lady Marmalade, escrita por Bob
Crewe e Kenny Nolan, que foi lançada com grande sucesso pelo grupo Labelle como single do álbum
Nightbirds, de 1974.
456

havia removido grosseiramente o conteúdo, mas dois dias


embrulhadas em lona não melhoraram a condição das entranhas
sujas, nem um pouco apetitosas para começar. Eu olhei para elas
em dúvida, mas coloquei-as de molho durante a noite em uma
tina de água salgada, na chance de que o tecido não tivesse se
rasgado muito para aproveitar seu uso como invólucro de
linguiças.
"Não sei, mamãe", disse Bree, com relutância. "Eu acho que eles
estão muito perto de se estragarem. Mas podemos tentar salvar
um pouco."
"Se não podemos, não podemos." Peguei a maior das minhas
serras de amputação e verifiquei os dentes. "Podemos fazer
linguiça quadrada, afinal."
Linguiças com invólucro eram muito mais fáceis de preservar –
uma vez devidamente defumadas, duram indefinidamente. Os
hambúrgueres de linguiça eram bons, mas exigiam um manuseio
mais cuidadoso e tinham de ser embalados em tonéis de madeira
ou caixas em camadas de banha para se manter... não tínhamos
tonéis, mas...
"Banha!" Eu exclamei, olhando para cima. "Maldito inferno – eu
tinha esquecido tudo sobre isso. Não temos um caldeirão grande,
exceto o da cozinha e não podemos usar esse." Processar banha
de porco demorava vários dias, e o caldeirão da cozinha fornecia
pelo menos metade da comida cozida, para não falar da água
quente.
"Podemos pegar um emprestado?"
Bree olhou para a porta, onde um lampejo de movimento
apareceu. "Jem, é você?"
"Não, sou eu, tia." Germain enfiou a cabeça para dentro,
farejando com cautela. “Mandy queria visitar o petit bonbon de
Rachel, e grand-père disse que ela poderia ir se Jem ou eu a
457

levássemos. Jogamos ossos233 e ele perdeu."


"Oh. Tudo bem então. Você pode ir até a casa e buscar o saco de
sal do consultório da vovó?"
"Não há nenhum", disse eu, segurando o porco por uma orelha e
colocando a serra na dobra do pescoço. "Não havia muito, e
usamos quase um punhado para embeber os intestinos. Teremos
que pegar emprestado também."
Arrastei a serra através do primeiro corte e fiquei satisfeita ao
descobrir que, embora a fáscia entre a pele e o músculo tivesse
começado a ceder – a pele escorregou um pouco com o manuseio
brusco – a carne subjacente ainda estava firme.
"Vou dizer uma coisa a você, Bree", eu disse, me apoiando na
serra enquanto sentia os dentes morderem entre os ossos do
pescoço, "vai levar um pouco de tempo antes que eu tenha
esfolado e desarticulado. Por que você não sai por aí e descobre
qual senhora pode nos emprestar seu caldeirão de processamento
por alguns dias, e uns 250 gramas de sal para continuarmos?"
"Certo", disse Bree, aproveitando a oportunidade com óbvio
alívio. "O que eu devo oferecer a ela? Um dos presuntos?"
"Oh, não, tia", disse Germain, bastante chocado. "Isso é demais
para o empréstimo de um caldeirão! E você não deve oferecer
nada, de qualquer maneira", ele adicionou, suas pequenas
sobrancelhas claras se juntando em uma carranca. "Você não
pode negociar um favor. Ela vai saber que você vai dar a ela o
que é certo."
Ela deu a ele um olhar, meio questionador, meio divertido, então

233
Existem algumas referências de “jogar ossos” - algumas macabras e outras muito recentes. A que mais
pareceu correlacionada com o tempo é um jogo simples de crianças que se joga em duplas: demarcando
uma linha no chão, colocando duas caixinhas a determinada distância e os jogadores se revezando para
acertar os ossos (podem ser pedrinhas ou gravetos), dentro dos caixões (as caixinhas). Outra possibilidade
é jogar o “osso da sorte” da galinha. Cada um dos jogadores segura uma ponta do osso do peito da galinha,
que tem forma de Y, (e se chama fúrcula) e puxa com força, de uma vez, para o osso se romper. Quem
ficar com a parte maior ganha.
458

olhou para mim. Eu concordei.


"Vejo que fiquei longe por muito tempo", disse ela levemente, e
dando um tapinha na cabeça de Germain desapareceu em sua
missão.
Foi preciso um pouco de força, mas tive sorte – bem, habilidade,
digamos com toda a modéstia – em colocar a serra, e levei apenas
alguns minutos para decepar a cabeça. Os últimos fios de fibra
muscular se separaram e a enorme cabeça escorregou alguns
centímetros pelo tampo da mesa com um ruído surdo thunk, as
orelhas moles tremendo com o impacto. Eu a peguei, estimando
o peso em cerca de quinze quilos – mas é claro que isso incluía a
língua e as bochechas... que eu separaria antes de colocar a cabeça
para ferver e aproveitar a carne... isso poderia ser feito durante a
noite, no entanto, no caldeirão da cozinha... Devo colocar a aveia
de molho durante a noite, então eu poderia aquecer o mingau nas
cinzas ... ou talvez fritá-lo com algumas maçãs secas?
Eu estava suando um pouco por causa do trabalho, um alívio
bem-vindo do frio. Tirei os pés, joguei-os em um pequeno balde
para serem processados em conserva, coloquei a serra de lado e
escolhi a faca grande com a lâmina serrilhada; mesmo sem estar
curtida, pele de porco era dura.
Eu estava respirando pesadamente quando a carcaça já estava
meio esfolada e, parando para limpar meu rosto no avental,
abaixei-o para descobrir que Germain ainda estava lá, sentado em
um barril de peixe salgado que Jamie comprara no comércio de
Georg Feinbeck, um dos moravianos de Salem.
"Este não é um esporte para espectadores, você sabe", eu disse, e
fiz sinal para que ele viesse e ajudasse. "Aqui, pegue isso", eu dei
a ele uma das facas menores, "e puxe a pele. Você realmente não
precisa cortar muito, apenas use a lâmina para empurrar a pele
para longe do corpo."
459

"Eu sei como, vovó", disse ele pacientemente, pegando a faca. "É
o mesmo que tirar a pele de um esquilo, só que maior.”
"Até certo ponto, sim", eu disse, pegando seu pulso para reajustar
sua mira. "Mas um esquilo, você está tirando a pele de um pedaço
inteiro. Precisamos tirar o couro do porco em pedaços, mas
certifique-se de que as peças sejam grandes o suficiente para
serem úteis – você pode fazer um par de sapatos com o couro de
uma perna."
Eu tracei a linha dos cortes, ao redor do quadril, na parte interna
da perna, e o deixei enquanto eu lidava com os quartos dianteiros.
Trabalhamos em silêncio por alguns minutos – o silêncio não era
característico de Germain, mas achei que ele estava absorvido em
sua tarefa – e então ele parou.
"Vovó...", ele começou, e algo em sua voz me fez parar também.
Na verdade, olhei para ele, pela primeira vez desde que ele tinha
entrado, e abaixei minha faca.
"Você sabe o que voulez-vous coucher avec moi significa?", ele
deixou escapar. Seu rosto estava branco e tenso, mas inundado de
cor com isso, tornando bastante evidente que ele sabia.
"Sim", eu disse, o mais calmamente possível. "Alguém disse isso
para você, querido?" Quem, eu me perguntei. Eu não tinha ouvido
falar de qualquer falante de francês em lugar algum a quilômetros
da Cordilheira. E quem poderia...
"Bem ... Fanny", ele deixou escapar novamente, e ficou roxo. Ele
ainda estava segurando sua faca de esfolar, e seus pequenos nós
dos dedos estavam brancos de tanto segurá-la. Fanny?, eu pensei,
atordoada.
"Sério", eu disse cuidadosamente. Estendendo a mão lentamente,
peguei a faca de sua mão e a coloquei ao lado do porco meio
esfolado. "Está um pouco apertado aqui. Vamos sair para
460

respirar, certo?"
Eu não percebi quão opressiva era a atmosfera no galpão de
defumação até que saímos em um redemoinho de vento, fresco e
cheio de folhas amarelas. Ouvi Germain respirar fundo, ofegante,
e respirar fundo também. Apesar do que ele tinha acabado de me
dizer, me senti um pouco melhor. Ele também; seu rosto havia
voltado para algo próximo da cor normal, embora ainda rosado
nas orelhas. Eu sorri para ele, e ele sorriu de volta, incerto.
"Vamos subir para a casinha da fonte", disse eu, virando-me em
direção ao caminho. "Quero uma xícara de leite frio e ouso dizer
que seu avô gostaria de um pouco de queijo para o jantar."
"Então", eu continuei casualmente, seguindo na frente até a trilha.
"Onde você e Fanny estavam quando por acaso ela disse isso a
você?"
"Perto do riacho, vovó", ele disse prontamente. "Ela tinha
sanguessugas nas pernas e eu estava puxando para ela."
Bem, esse é um cenário bastante romântico, pensei, mas não
disse, imaginando Fanny sentada em uma rocha com as saias
levantadas, pernas longas e potentes brancas e salpicadas de
sanguessugas.
"Veja", ele continuou, e veio ao meu lado, agora ansioso para
explicar, "Eu estava ensinando a ela le Français, ela quer
aprender, então eu estava dizendo a ela as palavras para
sanguessuga e alga d'água, e como se diz coisas como: Dê-me
comida, por favor. Ou então: Vá embora, seu malvado".
"Como se diz: Vá embora, seu malvado?", eu perguntei,
divertida.
"Va t’en, espèce de méchant", disse ele, encolhendo os ombros.
"Vou me lembrar disso", eu disse. "Nunca se sabe quando isso
pode ser útil."
461

Ele não respondeu; obviamente, o assunto que ocupava sua mente


era sério demais para ser desviado. Ele ficou muito chocado, eu
percebi.
"Como você soube o que significa voulez-vous coucher,
Germain?" Eu perguntei, curiosa. "Fanny contou a você?"
Ele curvou os ombros e estufou as bochechas como um sapo-boi,
então balançou a cabeça, deixando escapar o fôlego.
"Não. Papa disse isso a Maman uma noite, enquanto ela
preparava o jantar, e ela riu e disse... algo que não ouvi direito..."
Ele desviou o olhar. "Então, perguntei ao papai no dia seguinte e
ele me disse."
"Eu entendo." Ele provavelmente tinha dito, e muito diretamente.
Fergus nascera e crescera em um bordel de Paris, e tinha uns nove
anos quando Jamie o havia recolhido inadvertidamente. Ele
lidava com seu passado sendo honesto sobre isso, e eu não acho
que teria ocorrido a ele fugir das perguntas de seus filhos, não
importa o que eles perguntassem.
Havíamos chegado à nova casa da fonte, uma pequena estrutura
de pedra atarracada que se estendia por uma vala igualmente
forrada de pedra por onde fluía a água que refrigerava os
alimentos. Baldes de leite e potes de manteiga eram mergulhados
na água, mantendo-se frios, e queijos embrulhados endureciam
silenciosamente em uma prateleira acima, fora do alcance de
ocasionais ratos almiscarados. Estava escuro lá dentro e muito
frio; nossa respiração falhou quando entramos.
Tirei a concha de cabaça de seu prego, agachei-me e tirei a tampa
do balde que continha o leite da manhã. Eu mexi para misturar o
creme, peguei uma concha e bebi. Estava frio o suficiente para
senti-lo deslizar na minha goela, e delicioso. Tomei um último
gole e entreguei a concha a Germain.
"Você acha que Fanny sabia o que estava dizendo?" Eu perguntei,
462

observando-o enquanto ele se agachava para tirar seu próprio


leite. Ele não olhou para cima, mas assentiu, o topo de sua cabeça
balançando sobre a concha.
"Sim", ele disse finalmente, e se levantou, virando-se para longe
de mim enquanto estendia a mão para pendurar a concha no
prego. "Sim, ela sabia o que significava. Ela... ela ... me tocou.
Quando ela disse isso." Por mais turvo que estivesse, pude ver
sua nuca escurecer.
"E o que você falou?", eu perguntei, esperando soar
completamente calma.
Ele se virou e olhou para mim, como se de alguma forma fosse
minha culpa.
Ele tinha um bigode de creme, absurdamente comovente.
"Eu disse Awa an bile yer heid!234 O que mais?"
"O quê, de fato?", eu disse levemente. "Vou falar com o vovô
sobre isso."
"Você não vai contar a ele o que Fanny me disse, vai? Eu não
queria incomodá-la!"
"Ela não está com problemas", assegurei a ele. Não o tipo que ele
quis dizer, pelo menos. "Eu só quero a opinião do seu avô sobre
uma coisa. Agora vá em frente", e fiz um gesto de enxotar para
ele, "Eu tenho um porco para cuidar."
Em contraste com o que ele acabou de me dizer, 130 quilos de
costeletas de porco, banha e intestinos podres pareciam triviais.

234
Frase (expressão idiomática) em scots que significa: vá embora, cai fora, leve suas travessuras para
outro lugar: Awa an’ bile yer heid (Away and boilled your head)
463

26

NAS SCUPPERNONGS 235

BRIANNA PUXOU UM PUNHADO de uvas de seu cacho e as


rolou com um dedo, sacudindo as que estavam rachadas, murchas
ou muito roídas por insetos. Falando de insetos – ela soprou
apressadamente várias formigas que rastejavam de dentro das
uvas para a palma de sua mão. Elas eram minúsculas, mas
mordiam ferozmente.
"Ai!" Ela tinha deixado para trás um dos pequenos insetos, e ele
a mordeu na junção entre o dedo médio e o anelar. Ela jogou as
uvas no balde e esfregou a mão com força nas calças, aliviando
momentaneamente a queimadura.
"Gu sealladh sealbh orm!236", Amy disse, no mesmo momento
que Brianna, deixando cair um punhado de uvas e apertando a
própria mão. "Há centenas dessas phlàigh bhalgair237 nestas
scuppernongs!"
"Não estava tão ruim ontem", disse Bree, tentando raspar a picada
de formiga entre os dedos com os dentes da frente. A coceira era
enlouquecedora. "O que as trouxe para fora, eu me pergunto?"
"Och, é a chuva", disse Amy. "Isso sempre as traz de – Jesus,
Maria e a Santa Brígida!" Ela se afastou da videira, sacudindo a
saia e batendo os pés. "Saiam de cima de mim, suas pequeninas
patifes malvadas!"
"Vamos embora", sugeriu Brianna. "Há uma tonelada de uvas

235
Scuppernongs é uma variedade da uva muscadínia (Vinis rotifolia), nativa do estado da Carolina do
Norte. Essa variedade é caractrizada por uvas brancas, suculentas, bastante apreciadas como uva de mesa
ou para fabricação de um vinho doce muito comercializado.
236
Pelo amor de Deus, em gaélico.
237
Pragas bastardas, em gaélico.
464

aqui; as formigas não podem estar em todas elas."


"Não sei muito sobre isso", Amy murmurou sombriamente, mas
pegou o balde e seguiu Brianna um pouco mais além no pequeno
desfiladeiro. Bree não estava exagerando: a parede rochosa
estava forrada com videiras musculosas que se agarravam e se
contorciam ao sol, pesadas com frutas de bronze perolado que
brilhavam sob as folhas escuras e perfumavam o ar com o cheiro
de vinho novo.
"Jem!", ela gritou. "Estamos nos movendo! Fique de olho em
Mandy!"
Um leve "Ok!" veio de cima; as crianças brincavam no topo da
fenda rochosa onde um veio d’água havia rachado as pedras e
deixado pequenos afloramentos cravejados de vinhas e pequenas
árvores que formavam perfeitos castelos e fortes.
"Cuidado com as cobras!", ela gritou. "Não fique sob as videiras
lá em cima!"
"Eu sei!" Uma forma ruiva apareceu brevemente acima,
brandindo um pedaço de pau para ela, e desapareceu. Ela sorriu
e se abaixou para pegar seus baldes, um satisfatoriamente pesado,
o outro meio cheio.
Amy fez um repentino som de hoof! e Brianna se virou.
Amy não estava lá. As videiras balançavam contra a face do
penhasco e ela viu um respingo escuro na rocha.
"O que... ", ela disse, registrando o cheiro forte de sangue e
estendendo a mão às cegas para a primeira coisa que encontrasse,
o balde cheio pela metade.
Um lampejo branco, a anágua de Amy. Ela estava deitada no chão
a três metros de distância; havia sangue em suas roupas e um urso
estava com a cabeça dela enfiada em sua boca, fazendo um
barulho baixo de gargarejo enquanto isso.
465

Brianna lançou o balde em reflexo. Atingiu a face do penhasco e


caiu, espalhando uvas de bronze sobre Amy e o solo. O urso
olhou para cima, com sangue nos dentes, e rosnou, e Brianna
estava escalando as videiras, gritando para as crianças voltarem,
fugirem, correrem, galhos quebrando sob seu peso, cedendo, um
quebrou e ela escorregou e caiu, bateu no chão de joelhos,
rastejou para trás, para longe, para longe... ó Deus, ó Deus...
cambaleou e pulos para as vinhas novamente, o puro terror pelas
crianças empurrando-a para cima da rocha em uma chuva de
folhas e uvas esmagadas e pedaços de terra, pedras e formigas.
"Mãe! Mãe!", Jem e Germain estavam se inclinando na borda da
encosta, tentando segurá-la para ajudar.
"Voltem!", ela engasgou, agarrando-se à rocha. Ela arriscou um
olhar para baixo e desejou não ter feito isso. "Jem, volte! Pegue
Mandy, leve os outros de volta! Agora!"
Tarde demais para impedi-los de ver; houve um coro de gritos e
uma multidão de pequenos rostos aterrorizados no topo do
penhasco.
"Mamãe! MAMA!"
Foi essa palavra que a levou ao resto do caminho, dilacerada e
sangrando. No topo do penhasco, ela rastejou, agarrando crianças
chorando, puxando-as de volta, recolhendo-os em seus braços.
Contando. Quantos, quantos deveriam haver? Jem, Mandy,
Germain, Orrie, pequeno Rob ...
"Aidan", ela engasgou. "Onde está Aidan?"
Jem olhou para ela, com o rosto branco e sem palavras, virou a
cabeça para olhar. Aidan estava no topo do penhasco, começando
a descer pelas vinhas, para chegar até sua mãe.
"Aidan!" Germain gritou. "Não!" Bree empurrou as outras
crianças para Jem.
466

"Fique com eles", ela disse, sem fôlego, e se lançou atrás de


Aidan, pegando-o pelo braço no momento em que ele estava
desaparecendo pela borda. Ela o puxou com toda a sua força e o
agarrou firmemente, lutando e chorando.
"Eu tenho que ir, eu tenho que pegar a mamãe, me solta, me deixa
ir...!" Suas lágrimas estavam quentes em sua pele e seu corpo
magro se contorceu como uma cobra, como as videiras
enferrujadas, como as formigas que picam.
"Não", ela disse, ouvindo sua própria voz apenas fracamente
através do rugido em seus ouvidos. "Não." E o segurou com
força.

-.-.-

EU ESTAVA MOSTRANDO a Fanny como usar o microscópio,


deleitando-me com seu prazer chocado com os mundos internos
– embora, em alguns casos, tenha sido puramente choque, como
quando ela descobriu o que estava nadando em nossa água
potável.
"Não se preocupe", eu assegurei a ela. "A maioria delas é bastante
inofensiva e o ácido do estômago irá dissolvê-las. Mas preste
atenção, existem coisas desagradáveis na água às vezes,
especialmente se tiver excremento nela – merda, quero dizer", eu
acrescentei, vendo seus lábios silenciosamente formarem
"excremento". Então o resto do que eu disse a atingiu e seus olhos
se arregalaram.
"Ácido?", ela disse, e olhou para baixo, segurando sua barriga.
"No meu estômago?"
"Bem, sim", eu disse, tomando cuidado para não rir. Ela tinha
senso de humor, mas ainda era muito hesitante nessa nova vida e
temia ser ridicularizada ou humilhada. "É como você digere sua
467

comida."
"Mas é..." Ela parou, franzindo a testa. "É... fol – forte. Ácido.
Ele come direto... as coisas." Ela ficou pálida sob o bronzeado
claro que o sol da montanha tinha dado a ela.
"Sim", eu disse, olhando para ela. "No entanto, seu estômago tem
paredes muito grossas e elas estão cobertas de muco, então..."
"Meu estômago está cheio de ranho?" Ela parecia tão horrorizada
que tive de morder a língua e me afastar por um momento, a
pretexto de buscar uma lâmina limpa.
"Bem, você encontra muco em quase todo o interior do seu
corpo", eu disse, depois de obter o controle do meu rosto. "Você
tem o que se chama membranas mucosas e membranas serosas;
essas secreções secretam muco sempre que você precisa de algo
um pouco escorregadio."
"Oh." Seu rosto estava sem expressão, e então ela olhou para
baixo sob suas mãos agarradas. "É... é isso que você tem entre as
pernas? Para torná-las... escorregadias quando..."
"Sim", eu disse apressadamente. "E quando você está grávida, o
escorregadio ajuda o bebê a sair. Aqui, deixe-me mostrar-lhe…"
Eu contei a Jamie o que ela tinha dito a Germain. Ele ergueu as
sobrancelhas brevemente, depois balançou a cabeça.
"Não é de se admirar, dado onde ela esteve", disse ele. "Deixe
isso passar. Ela é uma garotinha esperta; ela encontrará seu
caminho."
Eu estava desenhando as células epiteliais caliciformes,
responsáveis pelo muco, nas últimas páginas do meu livro preto
quando ouvi passos rápidos na varanda e, um instante depois, Jem
deslizou para o consultório, com os olhos arregalados e o rosto
pálido.
"A sra. Higgins", ele engasgou. "Ela foi sassinada por um urso.
468

Mamãe está trazendo ela."


"Assassinada", eu o corrigi automaticamente, e então, "O quê!"
Fanny deu um grito baixinho e, sem palavras, jogou o avental por
cima da cabeça.
Os joelhos de Jem cederam e ele se sentou no chão com um baque
surdo, ofegante.
Eu ouvi vozes lá fora, urgentes, e pegando meu kit de emergência
corri para ver o que estava acontecendo.
Brianna evidentemente havia encontrado Jamie no caminho; ele
carregava Amy Higgins nos braços, trazendo-a colina abaixo o
mais rápido que podia, Bree tropeçando atrás dele, movendo-se
como uma bêbada. Todos os três estavam cobertos de sangue.
"Oh, Jesus", eu disse, e subi correndo a colina para encontrá-los.
Havia muito barulho – crianças estavam por toda parte, chorando
e lamentando, e Bree estava tentando explicar, o peito ofegante
por ar, e Jamie estava fazendo perguntas incisivas. Ele me viu e,
ao meu gesto frenético, agachou-se e deitou Amy no chão.
Caí de joelhos ao lado dela, vendo o minúsculo jorro rítmico de
sangue de um vaso cortado em sua têmpora.
"Ela não está morta", eu disse, e puxei rolos de bandagem e
punhados de gaze da minha mochila. "Ainda."
"Eu vou buscar Bobby," Jamie disse baixinho no meu ouvido.
"Brianna – cuide dos weans238, sim?"

-.-.-

PRIMEIRO, PARE O SANGRAMENTO. E a melhor sorte


britânica para você239, acrescentei sombria – e silenciosamente –
238
Crianças, em scots.
239
The Best British Lucky é uma expressão para desejar sorte quando as chances estão contra a pessoa.
469

a mim mesma. Uma boa parte do lado esquerdo de seu rosto tinha
simplesmente sido arrancada. O couro cabeludo estava lacerado,
um olho tinha desaparecido da órbita, a própria órbita e a maçã
do rosto estilhaçadas, e o osso branco da mandíbula quebrada
exposto, o sangue remanescente escorria ao redor dos dentes
manchando-os de escarlate e vazava pela lateral do pescoço.
Ela estava deitada estranhamente, torta, e percebi que seu ombro
esquerdo tinha sido esmagado; o corpete e a manga verde-escuros
estavam pretos, encharcados de sangue. Passei um torniquete ao
redor do braço, sentindo as pontas quebradas do osso ralar
enquanto o movia. Passei uma toalha o mais delicadamente que
pude no lado estilhaçado de seu rosto e vi o pano escurecer
imediatamente, encharcado. E com uma sensação de total
futilidade, pressionei meu polegar contra a pequena artéria que
jorrava em sua têmpora. O sangue parou.
Eu olhei para cima e vi Mandy, pálida e chocada em silêncio,
agarrando-se ferozmente ao pequeno Rob, que estava
choramingando e lutando, tentando chegar até sua mãe.
Ela ainda estava viva; eu podia sentir o tremor de sua carne sob
minhas mãos. Mas tanto aconteceu – tanto sangue perdido, tanto
trauma, tanto choque – que eu sabia que ela perderia a batalha em
breve. E, com essa percepção, mudei o foco de minhas ações. Eu
não conseguiria curá-la. Tudo que eu podia fazer agora era ficar
com ela e tentar acalmá-la.
Ela estava fazendo um barulho suave de tosse e bolhas de sangue
apareceram no canto visível de sua boca. Sua mão se ergueu no
ar, procurando em vão por algo em que se agarrar. Roger correu
pela grama, ajoelhou-se do outro lado do corpo dela e agarrou a
mão que flutuava.
"Amy", disse ele, sem fôlego. "Amy, Bobby está vindo; eu o ouvi,

Talvez um ‘torça pelo melhor, espere pelo pior?’ Mas o sentido parece ser mais forte do que isso.
470

ele está quase aqui. "


Sua pálpebra se ergueu, estremeceu fechando contra a luz, abriu
com cautela, apenas uma fresta.
"Mammaidh! Mamãe! Mãe!" Os gritos de seus filhos vieram
finos e penetrantes e sua boca arruinada se contraiu e se abriu,
lutando para responder a eles.
"Fique comigo, Orrie. Aidan – Aidan, não!" Bree estava
ajoelhada na grama, segurando Aidan pelo pulso enquanto ele
lutava para ir até sua mãe, o pequeno Orrie apavorado, agarrado
à camisa de caça de Bree.
O sangue não estava mais jorrando; estava se espalhando, rápido
e silencioso, encharcando o solo. Minhas mãos estavam
vermelhas até os pulsos.
"Amy! Amy! " Era Bobby, com os olhos arregalados, avançando
encosta acima. Jamie atrás dele. Ele tropeçou e quase caiu de
joelhos, o peito lutando por ar. Roger agarrou a mão dele e
colocou a de Amy nela.
"Não", disse Bobby, lutando para respirar. "Não. Amy, não, por
favor, não vá, por favor!" Eu vi os dedos dela se contorcerem,
moverem, apertarem os dele – por um instante, não mais.
"Jesus", disse Roger. "Oh Deus." Ele olhou para mim por um
momento e leu tudo em meu rosto. Ele ergueu a cabeça e olhou
para Bree e as crianças, e vi seu rosto mudar em uma decisão
repentina.
"Traga-os", disse ele, levantando a voz o suficiente para ser
ouvido por cima do choro e dos gritos. "Rápido."
Brianna negou com a cabeça brevemente, os olhos fixos na ruína
do rosto de Amy. Os meninos devem se lembrar de sua mãe
assim?
"Traga-os", disse Roger, mais alto. "Agora."
471

Ela deu um pequeno aceno com a cabeça e soltou Aidan, que


correu para sua mãe e caiu no chão ao lado de Bobby, agarrando-
se a ele e soluçando. Bree veio atrás dele, segurando Orrie e Rob
pelas mãos, as lágrimas cobrindo seus rostos.
Roger pegou os meninos pequenos, segurou-os nos braços, perto
da mãe. "Amy", disse ele, em meio aos soluços. "Seus filhos estão
com você. E Bobby." Ele hesitou, olhando para mim, mas ao meu
aceno soltou Orrie e colocou a mão suavemente no peito dela.
"Senhor Deus, tenha misericórdia de nós", sussurrou ele. "Seja
misericordioso. Segure-a na palma da Tua mão. Mantenha-a
sempre no coração de seus filhos."
Amy se mexeu. A cabeça dela virou um pouco, na direção dos
meninos, e ela abriu o único olho, devagar, bem devagar, como
se fosse um esforço igual ao de levantar o mundo. Sua boca se
contraiu uma vez e então ela morreu.
472

27

CUBRA O ROSTO DELA

NÃO HAVIA TEMPO para delicadeza. Os homens trouxeram o


corpo de Amy para dentro de casa e, sob minhas instruções,
colocaram-na sobre a mesa de meu consultório. O dia estava
quente e ela ainda estava muito quente ao toque, mas seu corpo
tinha um peso inerte desconcertante, como um saco de estopa
cheio de areia úmida. O rigor logo a separaria da elasticidade
macia da vida; eu teria que despi-la antes que ela ficasse muito
rígida.
Mas, primeiro, cobri seu rosto com uma toalha de linho. Havia
tempo para essa delicadeza, pensei. Fiquei feliz por ter feito isso,
também, quando me virei ao som de passos na soleira e vi Bree,
ainda com a camisa de caça manchada de sangue, o rosto muito
mais branco do que o lençol velho dobrado sobre o braço. Eu
acenei com a cabeça para o balcão atrás de mim.
"Largue isso e vá se sentar com as crianças lá fora, ao sol", eu
disse com firmeza. "Elas precisam de alguém para segurá-las.
Onde está Roger?" Ela balançou a cabeça de um lado para o
outro, incapaz de tirar os olhos da mesa. O fichu de Amy tinha
sido puxado até a metade de seu corpete e estava pendurado,
encharcado com sangue que secava rapidamente que deixou
manchas leves na mesa. Eu puxei o pano e o coloquei no balde
com água fria aos meus pés.
“Roger está com Bobby", disse ela, com a voz sem cor. "Fanny
está cuidando de Mandy e dos meninos por um minuto. Você...
você vai precisar de ajuda, não é? Com...", ela parou e engoliu
473

em seco, desviando o olhar.


"Alguém estará aqui em breve", eu disse, e me consolei um pouco
com o pensamento. Eu estava familiarizada com a morte, mas
isso não significa que tinha me acostumado. "Seu pai mandou
Germain correr atrás do Jovem Ian; Rachel e Jenny irão descer
também. E Jem foi atrás de Gilly MacMillan. Sua esposa vai
reunir as mulheres que moram ao longo do riacho."
Ela assentiu com a cabeça, parecendo um pouco mais calma,
embora suas mãos ainda estivessem tremendo, o lençol dobrado
amontoado entre elas.
"Por que Pa está mandando chamar o sr. MacMillan?", ela
perguntou.
"Ele tem dois bons cães de caça", eu disse com voz neutra. "E
uma lança para javali."
"Santo Senhor. Ele – eles – vão caçar o urso? Agora?"
"Bem, sim", eu disse suavemente. "Antes que ele vá muito longe.
Onde está Aidan?", eu acrescentei, percebendo que ela havia dito
"os meninos". Aidan tinha 12 anos, mas ainda se qualificava, na
minha opinião. "Ele foi com o Jem?"
"Não", ela disse, sua voz soando estranha. "Ele está com Pa."

-.-.-
AIDAN ESTAVA BRANCO como leite e ele piscava seus olhos
vermelhos inchados, embora ele tivesse parado de chorar240. Ele
não parava de tremer, no entanto. Jamie colocou a mão no ombro
do rapaz e pôde sentir o tremor subindo da terra através da carne
de Aidan.

240
No original, “he’d stop greeting” . Num primeiro momento, não faz sentido, já que conhecemos
‘greet’ como saudar, cumprimentar. Porém, no Merriam Webster Dictionary on-line, encontramos o
significado do verbo, enquanto usado como verbo intransitivo na Escócia, como chorar, prantear,
lamentar.
474

"E-eu- vo-vou", disse Aidan, embora seu queixo tremesse tanto


que mal se podia entendê-lo. "Ca-caçar o u-urso."
"Claro que sim." Jamie apertou o ombro frágil e, após um
momento de hesitação, o soltou e se virou para a casa. "Venha
comigo, a bhalaich241, disse ele. "Precisamos nos recompor antes
de sair. "
Todo instinto que ele tinha era para evitar a casa, onde Claire e
as mulheres estariam preparando Amy. Mas ele era ainda mais
jovem do que Aidan era agora quando sua própria mãe morreu, e
ele se lembrava da desolação de ser excluído, mandado embora
de casa enquanto as mulheres abriam as janelas e portas, cobriam
o espelho e saíam determinadas, com tigelas de água e ervas,
completando os rituais secretos de tirar sua mãe dele.
Além disso, ele pensou desolado, olhando para o menininho
pálido tropeçando ao lado dele, o menino tinha visto sua mãe
morrer banhada em seu próprio sangue há pouco mais de uma
hora, seu rosto meio rasgado. Nada que ele pudesse ver ou ouvir
agora seria pior.
Eles pararam no poço e Jamie fez Aidan beber água fria e lavar o
rosto e as mãos, e Jamie fez o mesmo.
Depois, disse as duas primeiras estrofes da prece Consagrando a
Caçada242 para ele:

"Em nome da Santíssima Trindade,


em palavra, em ação e em pensamento,
estou lavando minhas próprias mãos,
Na luz e nos elementos do céu. "

241
Oh menino;oh, rapaz. Em gaélico.
242
Prece encontrada no volume I do Carmina Gadelica, página 315 (sobre o Trabalho). Em gálico:
Coisrigeadh na Seilg. Em inglês: Consecration the Chase
475

"Jurando que nunca voltarei em minha vida,


Sem pescado, sem aves também,
Sem caça, sem carne de veado trazida das
colinas,
Sem gordura, sem banha vinda do bosque."

Aidan estava respirando com dificuldade com o choque da água


fria, mas ele podia falar novamente.
"Os ursos têm gordura", disse ele.
"Sim. E vamos tirar dele."
Jamie pegou água na mão e, mergulhando três dedos na poça em
sua palma, fez o sinal da cruz na testa, peito e ombros de Aidan.
E pronunciou os versos da primeira e última estrofes da Prece
para Viajar:
Que a vida esteja na minha fala,
O sentido naquilo que eu digo,
Que a flor das cerejeiras esteja em meus
lábios,
Até que eu esteja de volta.

Atravessando ravinas, atravessando


florestas,
Atravessando vales longos e selvagens.
Que a bela e justa Maria ainda me
apoie,
Que o pastor Jesus seja meu escudo,
476

"Diga essa última parte comigo, rapaz."


Aidan se recompôs um pouco e falou:
"Que a bela e justa Maria ainda me
apoie.
Que o pastor Jesus seja meu escudo.
243
"

"Bem então." Jamie puxou a fralda da camisa e enxugou o rosto


de Aidan e o seu. "Você já ouviu essa oração antes?"
Aidan abanou a cabeça, negando. Jamie não achava mesmo que
ele soubesse. O verdadeiro pai de Aidan, Orem McCallum,
poderia ter lhe ensinado, mas Bobby Higgins era um inglês, e
embora seja um bom homem por si mesmo, ele não conhecia os
métodos antigos.
Como se o pensamento o tivesse evocado, Aidan perguntou sério:
"Papai Bobby virá conosco para caçar o urso?"
Jamie sinceramente esperava que não; Bobby tinha sido um
soldado, mas não era um caçador, e em sua tristeza e distração
poderia facilmente fazer com que ele ou outra pessoa fosse morto.
E havia os meninos em quem pensar. Mas ele disse: "Se ele sentir
que deve, então ele irá. Mas espero que não."
Roger havia levado Bobby, parecendo completamente destruído,
de volta para a cabana dos Higgins.
Ele colocou o balde sobre a tampa de proteção do poço e pousou
a mão no ombro de Aidan novamente – estava mais firme agora,
e o queixo da criança havia parado de tremer.

243
Esta prece encontra na página 317 do Volume I do Carmina Gadelica.( Ora Turais / Prayer For
Travelling)
477

"Vamos, então", ele disse.


"Vamos buscar meu rifle e colocar as coisas em ordem. Ian Òg e
o Sr. MacMillan estarão aqui em breve. "

-.-.-

"VÁ", EU DISSE para Bree, mas com mais gentileza. Eu fui até
ela e peguei o lençol que ela ainda estava segurando, coloquei no
chão e envolvi meus braços em redor dela.
"Eu entendo", eu disse calmamente. "Ela é sua amiga, e você quer
fazer o que você ainda pode fazer por ela. E você não sabe por
que é ela que está deitada lá e você está de pé aqui, ainda viva, e
tudo está desmoronando ao seu redor."
Ela fez um pequeno som de assentimento e prendeu a respiração
em um soluço. Ela se agarrou a mim com força por um momento,
depois me soltou. Lágrimas tremiam em seus cílios, mas ela é
quem estava se segurando agora, não eu.
"Diga-me o que fazer", disse ela, endireitando-se. "Eu tenho que
fazer algo."
"Cuide dos filhos de Amy", eu disse. "Isso é o que ela ia querer
que você fizesse, acima de todas as coisas."
Ela assentiu, pressionando os lábios em determinação – mas
então olhou para a figura imóvel na mesa, cheirando a urina, fezes
e o fedor forte de carne dilacerada. Moscas estavam começando
a entrar pela janela; eles voaram em círculos preguiçosos,
farejando oportunidades, procurando um lugar para colocar seus
ovos. No corpo. Não era mais Amy, e as moscas tinham vindo
para reivindicá-la.
Brianna era quase tão boa quanto Jamie em esconder seus
sentimentos quando era necessário, mas ela não estava
478

escondendo nada agora, e eu vi o medo e a angústia por trás do


choque.
Ela não suportava lidar com o corpo despedaçado de Amy – e
assim veio para ajudar.
Fraser, pensei, comovida tanto por sua bravura quanto por sua
dor.
Peguei outra toalha e bati com ela no balcão, matando duas
moscas que foram desatentas o suficiente para pousar perto de
mim.
"Alguém virá", eu repeti. "Vá. Leve Fanny com você."
479

28

MATH-GHAMHAINN244

IAN, SEM NENHUMA SURPRESA, foi o primeiro a aparecer,


entrando pela porta da frente aberta. Jamie ouviu os passos suaves
de seus mocassins um momento antes de Ian falar com Claire, no
consultório. Lá, houve uma breve exclamação de choque –
Germain teria dito a ele o que aconteceu, mas nem mesmo um
mohawk ficaria impassível ao ver o corpo de Amy Higgins – e
então sua voz caiu em um murmúrio de respeito antes que o passo
suave viesse em direção a cozinha.
"Deve ser Ian", disse Jamie a Aidan, que estava enchendo os
cartuchos muito lenta e meticulosamente na mesa da cozinha, a
língua para fora do canto da boca enquanto derramava a pólvora
do frasco de Jamie. Ele parou com as palavras de Jamie, olhando
para a porta.
Ian não desapontou o rapaz. Ele carregava seu próprio rifle longo,
com bolsa de balas e caixa de cartuchos, mas também trouxera
uma faca muito grande e de aparência perversa, enfiada em seu
cinto sem a bainha, e tinha um arco e uma aljava de casca de
bétula sobre o ombro. Ele estava sem camisa, com calças de pele
de gamo e tanga, mas havia reservado um momento para fazer
suas próprias orações e aplicar sua pintura de caça: sua testa era
vermelha acima das sobrancelhas e uma faixa branca espessa
corria pela ponte de seu nariz, com outra em cada lado, indo da
bochecha à mandíbula. Branco, ele havia dito a Jamie, era por
vingança ou para homenagear os mortos.
Aidan – que conhecia Ian muito bem em sua pessoa escocesa –

244
Urso, em gaélico.
480

nunca o tinha visto na forma puramente mohawk antes. Ele fez


um pequeno som uof, de pasmo. Jamie escondeu um sorriso,
pegando seu próprio punhal e a pedra de afiar para amolá-lo.
"Ach, Ian", disse ele, de repente notando o peito nu de seu
sobrinho. "Você sabe onde minha garra foi parar? A garra de urso
que os Tuscarora me deram, quero dizer." Ele não pensava nisso
há anos. Ele havia emprestado a Ian há algum tempo245, para usar
em uma viagem de caça. Mas talvez não fosse uma coisa ruim tê-
la com ele agora, se fosse útil.
"Sim, eu sei." Ian sentou-se para dobrar os cartuchos de Aidan,
rápido e eficiente, e não olhou para cima. "Eu dei para meu primo
William."
"Seu pri... Oh." Ele olhou para Ian, que ainda não havia erguido
os olhos. "E quando foi isso?"
"Ach. Algum tempo atrás", Ian disse alegremente. "Quando eu o
tirei do pântano, sabe. Eu disse a ele que você queria que ele
ficasse com ele. Ele olhou para cima então, uma sobrancelha fina
levantada, assim como seu pai. "Eu não estava errado, estava?"
"Não", disse Jamie, sentindo um calor repentino, embora os pelos
de seu pescoço se arrepiassem. "Não, você não estava."
Bluebell, que estava bisbilhotando pela porta dos fundos, de
repente se virou e disparou em direção à frente da casa, latindo.
Um coro de uivos profundos respondeu-lhe do fundo da encosta
diante da casa.
"Esse deve ser Gillebride, então", disse Jamie, e embainhou seu
punhal. "Está tudo pronto, rapazes?"
-.-.-

245
No livro 7, fica um pouco confuso para entender como Ian poderia ter voltado ao Forte Ticonderoga
para conseguir a pata de urso com Jamie e estar de volta dentro do tempo proposto no livro. Então, pelo
que a autora diz, Ian já havia saído com a pata.
481

EU TIREI O corpete de Amy, assim como sua saia. A saia não


estava rasgada; serviria, após uma lavagem. Amy não tinha uma
filha que pudesse usá-la, mas sempre havia necessidade de roupas
e tecidos. Alguém na Cordilheira iria recebê-la com gratidão. Eu
a coloquei de lado para lavar mais tarde. O espartilho estava
muito rasgado no ombro e endurecido de sangue. Eu o coloquei
do outro lado; iria salvar a estrutura de metal e colocaria o tecido
no fogo. A combinação... também estava rasgada, embora pudesse
ser consertada ou usada para remendar ou acolchoar. Eu não podia
enterrar Amy com ela, no entanto; estava ensanguentada e suja.
Ela usava apenas uma anágua leve e suas meias – para lavar, então,
e...
Eu ouvi o latido dos cães de Gillebride a uma distância próxima,
e o trovão dos pés de Bluebell enquanto ela corria pelo corredor
para encontrá-los. Eles deveriam estar bem juntos; os cães de
MacMillan eram machos. Bluey era uma fêmea e não estava no
cio e, como Jamie me disse em um momento irônico, cachorros
não mordem cadelas.
"Nem sempre funciona ao contrário, preste atenção", ele disse, e
eu não sorri exatamente com a lembrança, mas senti o ar mais
leve sobre mim por um momento.
Então ouvi passos no corredor e olhei para cima, pensando que
era Gillebride. Não era, e o ar de repente ficou mais espesso no
meu peito.
"Sra. Fraser." Era a figura alta e negra da sra. Cunningham,
ossuda e severa como o Grim Reaper246, com um pano dobrado
sobre um braço. Ela pairou desajeitadamente na soleira, e eu
igualmente desajeitadamente acenei para ela entrar.
"Sra. Cunningham", eu disse, e parei, sem saber o que mais dizer

246
A personificação da morte, o Ceifador. Figura sinistra que remonta à Idade Média, especialmente o
período da Peste Negra que ceifou a vida de um terço dos europeus.
482

a ela. Ela limpou a garganta, olhou para o cadáver meio vestido


de Amy, então rapidamente se afastou. Mesmo com a cabeça
coberta, o braço mutilado e o ombro estavam à vista, ossos
rachados e quebrados aparecendo afiados através da carne
imóvel.
"Eu estava perto do riacho. Seu neto passou por mim no caminho
para a casa dos MacMillan e me contou o que estava acontecendo.
Então fui até o sr. Higgins e pedi a mortalha de sua esposa." Ela
levantou o pano levemente como ilustração, e eu vi as bordas
bordadas, feitas em verdes, azuis e rosas.
"Oh." Que Amy já tivesse sua mortalha preparada, não me
ocorreu de forma alguma – embora eu devesse ter pensado nisso.
"Há... obrigada, sra. Cunningham. Foi muito atencioso da sua
parte."
Ela deu de ombros levemente e, respirando profundamente, foi
até a mesa. Ela examinou a situação deliberadamente por um
momento, exalou pelo nariz e, em seguida, estendeu a mão para
desamarrar a tira da combinação de Amy.
"Se você a segurar firme, vou rolar para baixo."
Abri minha boca para protestar que não precisava de ajuda, mas
depois fechei novamente. Eu precisava, e claramente ela tinha
alguma experiência em preparar os mortos; qualquer mulher de
sua idade teria. Tiramos a combinação dos ombros de Amy e
coloquei uma das mãos solidamente na axila direita nua, os pelos
úmidos pareciam desconcertantemente quentes e vivos, e então,
com uma sensação incontrolável de contorção, enfiei meus dedos
sob a confusão úmida do ombro esquerdo, encontrando o
suficiente para agarrar.
Tão perto, o odor do urso nela era forte o suficiente que eu senti
um arrepio atávico na espinha. A sra. Cunningham também; ela
estava respirando audivelmente pela boca. Ela desamarrou a
483

anágua, porém, e tirou a combinação e as meias com as mãos


firmes.
"Bem, então", disse ela, e olhando em volta viu que eu coloquei
a saia de lado para lavar e colocou o resto das roupas na pilha.
"Quando as outras mulheres vierem, vamos mandar lavá-las
imediatamente", disse ela, no tom de quem está acostumada a dar
ordens e fazer com que sejam obedecidas. "Não queremos o
cheiro de..."
"Sim", eu disse, com uma aresta perceptível na voz que a fez
olhar bruscamente para mim. "Agora, vamos precisar limpá-la.
Você vai até a cozinha buscar um balde de água quente? Vou
rasgar isso", acenando para o lençol fino e gasto que Brianna
trouxera, "para as tiras de amarração."
Ela apertou os lábios, mas de uma forma que sugeria uma
diversão sombria com a minha tentativa débil de exercer
autoridade, em vez de se ofender, e saiu sem dizer uma palavra.
Ouvi alguns latidos na frente e ouvi Gillebride – seu nome
significava "Apanhador de Ostras", ele me disse – chamando os
cachorros. Rasguei o lençol gasto em faixas largas; nós
prenderíamos suas pernas juntas e seus braços ao lado do corpo –
na medida do possível; eu olhei para o ombro esquerdo em dúvida
– deveríamos amarrar seu corpo com alguma aparência de beleza,
antes de trançarmos seus cabelos e colocá-la em sua mortalha.
A Sra. Cunningham reapareceu com as mangas arregaçadas, um
balde de água fumegante do caldeirão em uma das mãos e um
martelo na outra, uma colcha da minha cama sobre seu braço.
"Homens vão passar aqui, indo e vindo logo", disse ela, com um
movimento de sua cabeça em direção ao corredor.
"Ah", eu disse. Eu teria fechado a porta do consultório, só que
não havia uma ainda. Ela assentiu, largou o balde, tirou um
punhado de pregos de sete centímetros do bolso e pendurou a
484

colcha na porta aberta com algumas batidas fortes do martelo.


Havia bastante luz entrando pela grande janela, mas a colcha
parecia de alguma forma abafar tanto a luz quanto o som,
lançando a sala em um estado de reverência, apesar dos ruídos
crescentes do lado de fora. Peguei um punhado de lavanda seca e
esfreguei na água quente, em seguida, arranquei folhas de
manjericão e hortelã e joguei-as também. Para a minha ligeira
surpresa, a sra. Cunningham olhou os potes em minhas
prateleiras, pegou o sal e jogou um punhado na água.
"Para lavar o pecado", ela me informou rispidamente, vendo meu
olhar. "E evitar que o fantasma dela ande."
Eu balancei a cabeça mecanicamente para isso, sentindo como se
ela tivesse jogado uma pedra na pequena piscina de calma que eu
estava acumulando, enviando ondas de inquietação por mim.
Conseguimos limpar e amarrar o corpo em silêncio. Ela se movia
com um toque seguro e trabalhamos surpreendentemente bem
juntas, cada uma consciente dos movimentos da outra, fazendo o
que era necessário sem ser solicitado. Então alcançamos a cabeça.
Eu respirei pela boca e levantei a toalha; havia manchas de
sangue nela, e ela grudou um pouco. A Sra. Cunningham
estremeceu.
"Eu estava pensando que poderíamos apenas manter a cabeça
dela coberta", eu disse me desculpando. "Com um pano limpo,
quero dizer."
A sra. Cunningham olhava carrancuda para o rosto de Amy, as
rugas em seu lábio superior contraídas como um acordeão.
"Você não pode fazer algo para arrumá-la um pouco?"
"Bem, eu posso costurar o que sobrou do couro cabeludo de volta
no lugar e poderíamos puxar um pouco de seus cabelos sobre a
orelha faltando, mas não há nada que eu possa fazer sobre o...
485

hã... o..."
O globo ocular desalojado estava pendurado grotescamente na
bochecha esmagada, sua superfície ficando ligeiramente opaca,
mas ainda assim era um olho fixo. "É por isso que pensei ... em
cobrir o rosto dela."
A cabeça da Sra. Cunningham moveu-se lentamente, de um lado
para o outro.
"Não", ela disse suavemente, seus próprios olhos fixos em Amy.
"Eu mesma enterrei três maridos e quatro filhos. Você sempre
deseja olhar para seus rostos, uma última vez. Não importa o que
aconteceu com eles."
Frank. Eu olhei para ele e disse meu último adeus. E fiquei feliz
por ter tido a chance.
Eu assenti e peguei minha tesoura cirúrgica.

-.-.-

"GERMAIN ME DISSE onde o urso as encontrou", disse Ian.


"Eu fui até lá, rápido, no meu caminho para cá, e pude ver onde
ele havia passado por entre as vinhas, no final do pequeno
desfiladeiro. Vamos começar por aí, sim?"
Jamie e MacMillan acenaram com a cabeça, e MacMillan se
virou para dizer algo reprovador para seus cães, que estavam
farejando diligentemente de uma ponta da cozinha para a outra,
enfiando as cabeças largas na lareira e farejando o balde de lixo
com tampa.
"Por falar em Germain", disse Jamie, subitamente ciente de que
seu neto estava desaparecido, "onde diabos ele está?" Era
completamente fora do comum que Germain estivesse ausente de
qualquer situação interessante. Ele estava com muito mais
486

frequência bem no meio de...


"Ele foi com você para procurar a pista do urso?" Jamie
perguntou bruscamente, interrompendo as recriminações de
Gillebride. Ian ficou impassível por um momento, lembrando-se,
mas então assentiu com a cabeça.
"Sim, ele foi. Mas... eu tinha certeza de que ele estava atrás de
mim quando desci... "
Ele se virou involuntariamente e olhou para trás agora, como se
esperasse que Germain saltasse pelas tábuas do assoalho. Com
um profundo pressentimento no coração, Jamie se virou para
enfrentar Gillebride.
"Jem voltou com você, Gilly?"
MacMillan, um homem alto e de fala mansa, tirou o chapéu e
coçou a calva.
"Sim", ele disse lentamente. "Eu suponho que sim. Ele correu na
frente, porém, enquanto eu estava recolhendo os cães. Não o vi
de novo."
"Crìosd eadar sinn agus olc. " Jamie fez o sinal de chifres contra
o Diabo e benzeu-se apressadamente. "Cristo entre nós e o mal.
Vamos lá."
-.-.-

QUANTOS ANOS A sra. Cunningham teria? Eu me perguntei.


Ela parecia mais velha, por causa de suas roupas. Três maridos,
quatro filhos – mas a morte era uma visita casual e frequente hoje
em dia. Suas mãos eram velhas, com veias azuis grossas e juntas
salientes, mas ainda ágeis; ela enxugou o sangue com um pano
úmido, escovou os cabelos castanhos macios do lado intacto do
crânio de Amy e, arrumando-os com cuidado para esconder o
máximo de danos possível, trançou-os em uma única trança
487

grossa que ela colocou suavemente no seio de Amy.


Eu cuidei do olho – ele estava no balcão atrás de mim; eu o
embrulhei discretamente para depois colocá-lo dentro da
mortalha – e inseri um pequeno chumaço de gazes na órbita
dilacerada, costurando a tampa para fechá-la. Não havia como
esconder que Amy havia morrido de forma violente, mas pelo
menos sua família ainda seria capaz de olhar para ela.
"Sra... você se importa se eu a chamar pelo seu nome de
batismo?", eu perguntei abruptamente.
Ela ergueu os olhos de sua contemplação do cadáver,
ligeiramente assustada. "Elspeth", disse ela.
"Claire", eu disse, e sorri para ela. Achei que um sorriso tocou
seus próprios lábios, mas antes que eu pudesse ter certeza, a
colcha pendurada sobre a porta estremeceu violentamente e um
dos grandes cachorros de farejar urso de Gillebride abriu caminho
para dentro, farejando ansiosamente ao longo do chão.
"E o que você pensa que está fazendo?", eu perguntei. O cachorro
me ignorou e foi direto para o balcão, onde se ergueu
graciosamente sobre as patas traseiras, engoliu o olho e, em
seguida, pousou no chão e saiu correndo em resposta ao chamado
irritado de seu mestre no corredor.
Elspeth e eu ficamos em um silêncio gelado enquanto o grupo de
caça partia ruidosamente pela porta da frente, os cães latindo de
excitação feliz.
Quando a casa ficou em silêncio, Elspeth piscou. Ela olhou para
Amy, tranquila e composta na mortalha bordada que ela havia
tecido enquanto esperava seu primeiro filho. Era ladeado por uma
trepadeira, com flores rosas e azuis e abelhas amarelas.
"Sim, bem", ela disse finalmente. "Suponho que não importe
tanto se uma pessoa é comida por vermes ou por cães." Ela
488

parecia duvidosa, porém, e suprimi uma súbita e insana vontade


de rir.
"Ser comido por cachorros está na Bíblia", eu disse. "Jezabel.247"
Ela levantou uma sobrancelha cinza esparsa em surpresa,
evidentemente com a revelação inesperada de que eu realmente
li a Bíblia, mas então acenou com a cabeça.
"Bem, então", ela disse.

-.-.-

O SENSO DE urgência sombria de Jamie estava ficando mais


premente – já era meio da tarde – mas havia mais uma coisa que
precisava ser feita. Ele tinha que contar a Bobby Higgins o que
eles estavam fazendo e esperar que o homem estivesse muito
abalado para insistir em vir, ou sábio o suficiente para não fazê-
lo – e convencê-lo de que era certo Aidan ir. Ele deveria ter feito
uma pausa para pegar os meninos; eles eram a melhor razão para
Bobby ficar para trás – mas ele não tinha pensado nisso a tempo.
Sua ansiedade foi aliviada um pouco pela visão de Jem, vagando
do lado de fora da cabana de Higgins. Seu alívio ao encontrar o
rapaz, porém, foi imediatamente moderado pelo desejo
apaixonado de Jem de se juntar ao grupo de caça.
"Se Aidan pode ir...", Jem disse, mais ou menos pela quarta vez,
o queixo se projetando. Jamie se abaixou e o agarrou pelo braço,
falando baixo para não incomodar Aidan.
"Sua mãe não foi comida por um urso, e ela não ficará satisfeita
se você for. Você vai ficar."
"Então Aidan não deveria ir! Seu pai não vai gostar se ele for

247
Na Bíblia, essa cena é citada mais de uma vez. Por exemplo em 1 Reis 21:19, 21 e 23. E em 2 Reis
9:36-37.
489

comido, vai?"
Esse era um pensamento que atormentava Jamie, mas ele não se
arrependeu de permitir que o menino viesse.
"A mãe dele foi comida por um urso, e ele tem o direito de vir e
vê-la vingada", disse ele a Jem. Ele soltou o braço do rapaz,
pegou-o pelo ombro e o virou em direção à cabana. "Vá buscar
seu pai. Eu quero falar com ele."
Os outros membros do grupo de caça estavam inquietos, e ele
disse a Ian para ir em frente com Gillebride e os cães, ver se eles
conseguiam rastrear Germain. Aidan parecia selvagem, ainda
com o rosto branco, seus cabelos pretos estavam em pé, e Jamie
o segurou novamente para acalmá-lo.
"Fique comigo, Aidan. Não demoraremos mais do que um
minuto, mas devemos dizer ao seu pai o que está acontecendo."
Demorou muito menos de um minuto antes de Roger sair da
cabana, piscando sob a luz do sol, com Jem atrás dele, parecendo
animado, mas solene. Roger Mac carregava os mesmos traços de
choque que todos eles, embora ele estivesse bem sob controle, e
seu rosto relaxou um pouco ao ver Jamie. Em seguida, se contraiu
novamente quando ele viu o rifle.
"Você está..."
"Estamos." Ele acenou para os meninos com firmeza e baixou a
voz. "Preciso contar a Bobby, mas não quero que ele venha. Você
vai me ajudar a convencê-lo?"
"Claro. Mas..." Ele olhou para Aidan e Jemmy, curvados ao lado
da cabana. "Você não vai levá-los?"
"Eu não vou levar Jem se você disser não – o direito é seu para
negar. Mas acho que Aidan deve vir."
Roger lançou-lhe um olhar de intenso ceticismo e Jamie encolheu
os ombros.
490

"Ele deve", ele repetiu teimosamente. Todas as razões para o


"não" estavam se agrupando como moscas em volta de sua
cabeça, mas a lembrança do desespero desamparado de um
menino órfão era uma lasca de ferro em seu coração – e isso
pesava mais do que todo o resto.

-.-.-

O FOGO TINHA SE APAGADO. Na cabana e em Bobby


também. Ele se sentou encurvado e dobrado sobre si no banco
com um baú embutido, que ficava no canto, ao lado de sua lareira
fria, a cabeça inclinada sobre as mãos abertas como se procurasse
algum significado nas linhas de suas palmas. Ele não ergueu os
olhos quando eles entraram.
Jamie se ajoelhou e colocou a mão sobre a de Bobby; estava fria
e flácida, mas os dedos se contraíram um pouco.
"Robert, a charaid,” ele disse calmamente. "Eu vou agora caçar
o urso. Com a ajuda de Deus, vamos encontrá-lo e matá-lo. Aidan
deseja vir conosco, e acho que é certo que ele venha."
A cabeça de Bobby ergueu-se com um empurrão.
"Aidan? Você quer levar Aidan atrás do urso que... que..."
"Eu quero." Jamie segurou a outra mão de Bobby e apertou-os.
"Eu juro pela cabeça do meu próprio neto que não vou deixar que
nenhum mal aconteça a ele."
"Seu... você quer dizer Jem? Você vai levá-lo também?" A
confusão apareceu brevemente através da morte nos olhos de
Bobby, e ele olhou por cima do ombro de Jamie para Roger Mac.
"Ele vai?"
"Sim." A voz de Roger Mac falhou com a palavra, mas ele a disse,
Deus o abençoe. A inspiração floresceu na mente de Jamie, e com
491

uma oração interior, ele rolou seus dados.


"Roger Mac também virá", disse ele, esperando soar totalmente
seguro disso. "Ele cuidará de ambos os rapazes e os manterá a
salvo." Ele podia sentir os olhos de Roger Mac queimando um
buraco na parte de trás de sua cabeça, mas tinha certeza de que
era a coisa certa. Abençoado Miguel, guie minha língua ...
"Meu sobrinho Ian e Gillebride MacMillan estarão comigo, com
os cães. Nós três – e três cães – teremos a vantagem contra um
urso, não importa o quão feroz seja. Roger Mac e os rapazes
estarão lá apenas para testemunhar por sua esposa. À uma
distância segura", acrescentou.
Bobby se sentou, puxando as mãos e olhando para lá e para cá,
agitado. "Mas... mas eu deveria ir com você, então. Não deveria?"
Roger, reconhecendo sua deixa, pigarreou.
"Seus pequeninos precisam de você, Bobby", disse ele
gentilmente. "Você tem que cuidar deles, sim? Você é tudo o que
eles têm."
Jamie sentiu aquelas palavras golpearem de repente e sem aviso,
profundamente em seu próprio wame. Sentiu novamente uma
trouxa de pano agarrada com força contra seu peito, sentindo os
pequenos empurrões do bebê de horas de idade dentro dela, ele
mesmo tremendo de terror com o que tinha acabado de fazer para
salvar o menino – seu filho.248
Isso é o que ele pensou. O único pensamento que veio através da
névoa de medo e choque: Sua mãe está morta. Eu sou tudo o que
ele tem.
E ele viu isso acontecer com Bobby, como acontecera com ele.
Viu a vida lutar para voltar a seus olhos, os ossos de seu corpo,
derretidos pela dor, começaram a se enrijecer e a se formar
248
Jamie se lembra de como se sentiu ao pegar William no colo logo após matar lord Ellesmere, que
estava prestes a dar fim à vida do bebê recém-nascido. Livro 3 cap 15.
492

novamente. Bobby assentiu, os lábios bem apertados. As


lágrimas ainda corriam por seu rosto, mas ele se levantou do
banco, lento como um homem velho, mas se movendo.
"Onde eles estão?", ele perguntou com voz rouca. "Orrie e Rob?"
"Com minha filha", disse Jamie. "Em casa. "
Ele ergueu uma sobrancelha para Roger Mac, que lhe deu um
olhar desaprovador, mas acenou com a cabeça.
"Vou subir com você, Bobby", Roger Mac disse, e para Jamie:
"Vou alcançá-lo. Encontro você e os rapazes."

-.-.-

AS MULHERES ESTAVAM vindo. Eu podia ouvir suas vozes,


fracas ao longe, vindo do riacho. Que seriam a esposa de
Gillebride, com sua filha mais velha, Kirsty, e Peggy Chisholm,
que morava nas proximidades, com suas duas mais velhas, Mairi
e Agnes, e a velha sogra de Peggy, Auld Mam, que não tinha mais
juízo e, portanto, não poderia ser deixada sozinha. Então,
ouviram-se vozes femininas mais próximas e passos no corredor,
e Fanny entrou, com o rosto solene, seguida por Rachel e Jenny.
Ela olhou para a porta forrada com a colcha e, em seguida,
desviou os olhos.
Eu soltei minha respiração ao vê-las, e com isso, também me senti
aliviada da sensação de estar tensa por encontrar algo terrível, e
que estava comigo desde que Jem tropeçou sem fôlego no
consultório para me contar o que tinha acontecido.
Jenny largou a cesta, me abraçou rápida e fortemente, depois se
abaixou sem dizer uma palavra por baixo da colcha pendurada
para entrar no consultório. Rachel também tinha uma cesta e
Oggy no outro braço. Ela se desembaraçou do bebê e o entregou
493

a Fanny, que pareceu aliviada por ter algo para fazer.


"Tu estás bem, Claire?", perguntou ela baixinho, depois olhou
para a sra. Cunningham, que ocupara um posto ao lado da porta
coberta da cirurgia, as mãos cruzadas na cintura. "E tu, Amiga
Cunningham?"
"Sim, eu disse. A estranha sensação de estar em uma bolha íntima
com Elspeth Cunningham explodiu imediatamente com o
advento de amigos e familiares, mas a experiência me deixou
estranhamente úmida e exposta, como um marisco entreaberto. A
própria Elspeth havia fechado sua concha com força, mas acenou
com a cabeça para os recém-chegados. Seus próprios vizinhos
próximos chegariam assim que a notícia os alcançasse, mas
levaria algum tempo; as várias cabanas dos Crombie e dos Wilson
estavam a pelo menos três quilômetros de nós.
Jenny estava orando baixinho em gaélico. Não consegui entender
as palavras com clareza o suficiente para saber o que ela disse,
mas o tom característico do luto estava nela.
"Venha aqui", Rachel disse baixinho para mim, e puxou a colcha
um pouco, acenando para mim com um movimento de cabeça
sóbrio que simultaneamente me convocou e indicou que ninguém
mais precisava nos seguir.
Jenny tinha acabado sua oração. Ela estendeu a mão e pousou-a
suavemente por um momento na cabeça de Amy, coberta com
uma touca branca. "Biodh sith na Màthair Beannaichte agus a
mac losa ort, a nighean", ela disse calmamente. Que a paz da
Mãe Santíssima e do seu filho, Jesus, esteja com você, filha.
Rachel olhou para o corpo de Amy e engoliu em seco, mas não
vacilou ou desviou o olhar.
"Germain disse que foi um urso", ela disse, e eu vi seus olhos
deslizarem em direção à pilha lamentável de roupas esfarrapadas
e manchadas de sangue. "Tu estavas... presente, Claire?"
494

"Não. Brianna estava com ela quando aconteceu, colhendo uvas.


Algumas das crianças também estavam lá. Jemmy, Germain e
Aidan. Os meninos. E Mandy."
"Querido Deus. Todos viram?", Rachel perguntou, chocada. Eu
neguei com a cabeça.
"Eles estavam lá em cima, brincando. Bree e Amy estavam
colhendo as uvas muscadíneas naquele pequeno desfiladeiro
além do riacho. Ela – Brianna – afastou as crianças e depois
correu para Jamie. Ela – Amy – mal estava viva quando cheguei
nela." Minha garganta se apertou ao relembrar a mão pequena e
pálida, mole na de Roger, a contração no canto de sua boca
enquanto ela tentava se despedir de seus filhos. Apesar da minha
determinação, uma pequena lágrima quente deslizou pela minha
bochecha.
Rachel fez um pequeno som de aflição e afastou meus cabelos da
minha bochecha. Jenny pigarreou, enfiou a mão no bolso e me
entregou um lenço limpo.
"Bem, a porta da frente estava aberta quando nós entramos",
Jenny disse, marcando um item na sua lista de verificação mental.
Ela olhou para a enorme janela do consultório sem vidro, aberta
para o dia. "E você não precisará abrir as janelas."
Esse tom de humor seco, embora pequeno, aliviou a tensão e senti
um pequeno estalo, um crack entre minhas omoplatas, quando
minha coluna relaxou, pelo que parecia a primeira vez em dias,
não em horas.
"Não", eu disse. Sequei as lágrimas e funguei. "O que mais...
espelhos? Há apenas o espelho de mão no meu quarto e ele já está
virado para baixo."
"Nenhum pássaro na casa? Vejo que você tem sal..." Alguns
grãos caíram no balcão quando Elspeth jogou sal na água. "...e o
pão não será uma preocupação." Ela ergueu uma sobrancelha
495

ainda preta na direção da cozinha. Eu podia ouvir as vozes das


mulheres enquanto cumprimentavam os recém-chegados,
desempacotavam cestas, preparavam as coisas. Eu me perguntei
se deveria ir e organizar as coisas, dizer a eles onde colocar o
caixão... Deveria ser na sala da frente ou na cozinha, muito
maior? Oh, Deus, um caixão; Eu nem tinha pensado nisso.
"Och", disse Jenny, em uma voz diferente. "Aqui está Bobby
subindo a colina com Roger Mac." Num movimento
sincronizado, todas nós olhamos para o corpo de Amy, então
olhamos uma para a outra, questionando. Nós a havíamos tornado
o mais decente que podíamos, mas poderíamos deixar Bobby
sozinho com ela? Isso não parecia certo, mas também não parecia
bom deixá-lo em meio a uma multidão de mulheres, que
provavelmente fariam uma cena coletiva assim que uma delas
explodisse em lágrimas...
"Eu vou ficar com ele", disse Rachel, engolindo em seco. Jenny
olhou para mim, sobrancelha levantada, então acenou com a
cabeça. Rachel tinha um dom para a quietude.
"Vou cuidar do nosso pequeno homem", disse Jenny, e, beijando
Rachel carinhosamente na testa, saiu. Elspeth Cunningham já
havia desaparecido, provavelmente para ajudar as mulheres que
agora murmuravam na cozinha – ocupadas, mas contidas –, o som
delas como cupins trabalhando nas paredes da casa.
Esperei com Rachel para receber Bobby, mentalmente
compilando uma lista. Havia um barril cheio de uísque e outro
meio vazio na despensa, mas nenhuma cerveja. Caitlin Breuer
pode trazer alguma; eu deveria enviar Jem e Germain para
perguntar... E talvez Roger fosse falar com Tom MacLeod sobre
o caixão.
Passos no corredor e o som de uma respiração sufocada. Bobby
apareceu na porta, mas para minha surpresa, era Brianna, não
496

Roger, apoiando-o. Ela parecia quase tão destruída quanto


Bobby, mas tinha o braço firmemente em volta dos ombros dele.
Ela era dez centímetros mais alta do que ele e, apesar de sua óbvia
angústia, permanecia sólida como uma rocha.
"Amy", disse ele, vendo a mortalha branca, e o nome dela não era
mais do que um suspiro angustiado. "Oh, meu Deus... Amy..."
Ele olhou para mim e, em apelo de olhos vermelhos e desespero
silencioso. Como pude deixá-la morrer?
Nada poderia tê-la salvado e nós dois sabíamos disso, mas eu
senti a pontada de impotência e culpa, no entanto.
Bobby começou a chorar, da maneira terrível e dolorosa que os
homens fazem. Brianna, que estava pálida e com o rosto
manchado de tristeza e choque, agora corou, seus próprios olhos
marejados.
Rachel se aproximou do meu ombro e, a próxima coisa que eu
percebi foi ela tirando Bobby de Bree com a mesma facilidade
com que tomaria um ovo fresco em sua mão: com cuidado, mas
com calma.
"Vamos sentar-nos um pouco com tua esposa", ela disse
suavemente, e o guiou até um banquinho. Ela lançou um rápido
olhar por cima do ombro para Brianna e acenou para mim antes
de se sentar ao lado de Bobby.
Eu acompanhei Bree para fora do consultório e direto para fora
de casa, pensando que ela não gostaria que as outras mulheres a
vissem tão perturbada. Devo dar a ela algo para o choque, pensei,
mas antes que pudesse sugerir qualquer coisa, ela se virou e me
agarrou pelo cotovelo, os olhos úmidos brilhando em meio às
lágrimas.
"Pa se foi", disse ela. "E ele levou Roger, Jem e Aidan com ele!
Para caçar aquele urso maldito! "
497

"Oh, sim", Jenny disse atrás de mim, antes que eu pudesse falar.
Ela colocou a mão no braço de Brianna e apertou. "Dinna fash,
moça. Jamie é um homem difícil de matar, e Ian pintou o rosto.
E eu disse a bênção para os dois – aquela para um guerreiro que
parte para a batalha. Eles ficarão bem."
-.-.-

ROGER encontrou Jamie e os meninos – ele ficou feliz em ver


que eles encontraram Germain ao longo do caminho – pouco
antes da abertura para o pequeno desfiladeiro onde as videiras
cresciam em abundância. Eles ouviram o barulho que fazia em
seu caminhar e pararam para esperá-lo.
Ele parou, respirando pesadamente, e acenou com a cabeça em
direção à parede rochosa onde as vinhas ondulavam e
estremeciam com a brisa leve. "Foi aqui que aconteceu?"
O cheiro das uvas maduras era forte e doce acima do cheiro
áspero e amargo das folhas, e seu estômago roncou em resposta;
ele não tinha comido desde o café da manhã. Jamie enfiou a mão
no sporran e entregou-lhe metade de um bannock em ruínas, sem
comentários.
"Mais adiante, pai", disse Jemmy. "Estávamos lá, no topo do
penhasco. Mamãe e a sra. Higgins estavam lá embaixo – veja
onde aquela grande sombra está, foi aí que... "
Ele parou abruptamente, olhou, então gritou. "O urso! O urso! Ele
está aí!"
Roger largou o bannock e seu cajado e agarrou Jemmy por um
braço e Aidan pelo colarinho, puxando-os para trás. Jamie e Ian
não se moveram. Eles olharam ao longo do desfiladeiro, olharam
um para o outro e balançaram a cabeça.
"Dinna fash, a bhalaich", Jamie disse a Aidan, gentilmente. "Não
498

é o urso."
"Você tem... certeza disso, não é?" Roger sentiu como se a
respiração tivesse sido expulsa dele. Ele podia ver o que Jemmy
tinha visto: um pequeno crescimento de cicutas na borda
esquerda do desfiladeiro lançava sombras profundas sobre as
vinhas à direita, e algo estava se movendo naquela sombra.
"Raposas", disse Ian, com um encolher de ombros. "Venha para...
ah..." Ele parou, notando Aidan, que respirava como uma
máquina a vapor.
"Sanguinem culum lingere", disse Jamie laconicamente.
"Bluebell! Venha até mim, a nighean. "
Todos os cães estavam interessados nas raposas, puxando suas
coleiras e ganindo, mas não latindo.
Querem lamber o sangue. A mente de Roger fez a tradução do
latim e rapidamente se reajustou aos eventos, apresentando-lhe,
com uma sensação de afundar o estômago, o que tinha acontecido
aqui, apenas algumas horas atrás.
Jamie estava conversando com Ian e Gillebride em gaélico agora,
gesticulando ao longo do cume. Jem e Aidan agrupados perto de
Roger, silenciosos e com olhos arregalados. A brisa mudou de
direção e ele ouviu os gritos e latidos das raposas.
"Você viu o que aconteceu com a sra. Higgins?" Roger perguntou
a Jem, em voz baixa.
Jem negou com a cabeça. "Mandy viu", disse ele. "Mamãe veio
até aqui em cima e nos pegou. Como Tarzan”, acrescentou.
"Como o quê?", Ian ouviu e se virou para olhar para Jem, confuso.
Roger fez um gesto de dispensa do assunto e Ian voltou à
discussão. Isso não durou mais do que alguns momentos, e eles
partiram ao longo da borda da garganta, os cães farejando
ansiosamente de um lado para outro.
499
500

29

LEMBRE-SE, HOMEM…

"VÁ", SUA MÃE HAVIA dito com firmeza. "Você precisa se


mexer, e alguém precisa ir e dizer a Tom MacLeod que vamos
precisar de um caixão. O mais breve possível."
Sua mãe lançou um olhar rápido e atormentado para dentro da
casa. "Se puder, até esta noite, para o velório..."
"Tão cedo?", Brianna tinha pensado que estava entorpecida pelos
choques do dia, mas este era novo. "Ela está... ela...- foi apenas
algumas horas atrás!"
Sua mãe suspirou, balançando a cabeça.
"Eu sei. Mas ainda está fazendo calor."
"Moscas", acrescentou a Sra. Cunningham sem rodeios. Ela veio
até a porta, provavelmente procurando por Claire. Ela acenou
com a cabeça desoladamente para Brianna. "Já estive em vigílias
com tempo quente, onde larvas caíam da mortalha e se
contorciam pelo chão. Pelo menos se houver um caixão, elas... "
"Vamos colocar o corpo dela na fonte por enquanto", disse sua
mãe apressadamente, com um olhar de reprovação para Elspeth
Cunningham. "Vai ficar tudo bem. Vá, querida. "
Ela foi.

-.-.-

TOM MACLEOD SE gabava de ser o único fabricante de caixões


entre a Linha Cherokee e Salem. Se isso era verdade, Brianna não
sabia, mas como ele disse a ela, ele geralmente tinha pelo menos
501

um caixão em construção, em caso de necessidade repentina.


"Este está quase pronto", disse ele, conduzindo Brianna para um
galpão aberto que cheirava a aparas de madeira frescas que
cobriam o chão. "Higgins, você diz... não tenho certeza se eu sei
qual senhora pode ser. Quão grande você diria...? "
Brianna silenciosamente segurou uma mão na altura do peito, e o
Sr. MacLeod assentiu. Ele era velho, parecendo couro curtido e
quase totalmente careca, com cabelos meio grisalhos, de barba, e
de ombros curvados pela constante postura sobre o trabalho, mas
ele exalava uma sensação de serena competência.
"Esse vai servir, então. Agora, quanto à quando..." Ele apertou os
olhos para o caixão semiacabado, equilibrado em cavaletes de
madeira. Tábuas de pinho em diferentes estágios de preparação
encostadas nas paredes. Ela podia ouvir o farfalhar do que
provavelmente eram ratos nas sombras, e achou isso
estranhamente reconfortante, quase doméstico.
"Eu poderia lhe ajudar", ela deixou escapar, e ele olhou para ela,
assustado.
"Sou uma boa construtora", disse ela. Havia ferramentas
penduradas em uma parede, e ela atravessou e pegou uma plaina,
segurando-a com a confiança de quem sabe o que fazer com ela.
Ele viu isso e piscou lentamente, considerando. Então seus olhos
percorreram lentamente seu corpo, medindo sua altura – e suas
roupas manchadas de sangue.
"Você é a moça d’Ele Mesmo, não é?", ele disse, e acenou com a
cabeça, como se para si mesmo.
"Sim, bem... se você sabe lidar com pregos, tudo bem. Caso
contrário, você pode lixar madeira.”

-.-.-
502

ROGER DISSE UMA oração silenciosa enquanto eles passavam


pelo desfiladeiro. Uma para a alma de Amy Higgins e, em
seguida, outra para a segurança do grupo de caça. Os meninos
caminhavam sobriamente, mantendo-se perto dele como haviam
sido instruídos, olhando para a frente e para trás como se
esperassem que o urso saltasse das videiras.
Talvez meia hora depois, as paredes do desfiladeiro se
espalharam e se achataram na floresta, e eles caminharam pela
sombra de altos pinheiros e choupos, os cães se arrastando até os
ombros nas folhas caídas e agulhas secas, abrindo caminho. Ian
estava na liderança; ele parou na base de uma encosta íngreme e
acenou com a cabeça para os outros homens, apontando para
cima.
"O urso está aí em cima?", Aidan sussurrou para Roger.
"Eu não sei." Roger segurou seu bastão com mais firmeza. Ele
tinha uma faca no cinto, mas ela não dava nem para começar a
penetrar na pele e na gordura de um urso.
"Os cães sim", Germain observou.
Os cachorros sabiam. Um dos cães de caça ergueu a cabeça e fez
um som profundo e ansioso de arrooo, arrooo e se lançou para
frente. Gillebride o soltou imediatamente e ele disparou encosta
acima em direção às árvores, seguido por Bluebell e o outro cão,
os três velozes como a água, gritando enquanto avançavam.
E todos correram então, os cães e os homens atrás deles, o mais
rápido que puderam sobre as folhas esmagadas. O peito de Roger
começou a queimar e ele podia ouvir os meninos engolindo ar e
ofegando, mas eles continuaram.
Todos os cães sentiram o cheiro e latiam de excitação, as longas
caudas balançando rígidas atrás deles.
503

Ian e Jamie subiam a encosta, pernas compridas, lutando contra


troncos caídos e esquivando-se de árvores. Gillebride estava se
esforçando ao lado de Roger, de vez em quando encontrando
fôlego para gritar encorajamento aos cães.
"Sin e! An sin e!"
Roger não sabia qual homem havia gritado; Jamie e Ian estavam
bem fora de vista, mas as palavras em gaélico soaram fracamente
por entre as árvores. Lá! Aí está!
Aidan fez um ruído alto de asfixia, abaixou a cabeça e começou
a correr como se sua vida dependesse disso, subindo a encosta
com o vento. Roger agarrou a mão de Jemmy e seguiu com
Germain, cravando seu cajado com força no chão para ajudá-los.
Eles chegaram ao topo da encosta, perderam o equilíbrio e
escorregaram e caíram em um pequeno vale, onde os cães
estavam pulando como chamas em torno de uma árvore alta,
gritando e uivando para uma grande – muito grande – forma
escura a dez metros do chão, preso na forquilha entre dois
troncos.
Roger levantou-se com dificuldade, soltando as folhas secas e
procurando os meninos. Aidan estava por perto; ele estava na
metade do caminho e estava congelado, de gatinhas, olhando para
cima. Sua boca se movia, mas ele não estava falando. Roger
olhou em volta desesperadamente à procura de Jemmy.
"Jem! Onde você está?"
"Bem aqui, Pa", Jem disse atrás dele, através do barulho dos
cachorros. "Aidan está bem?"
Ele sentiu uma onda de alívio ao ver a cabeça ruiva de Jem; sua
trança estava desfeita e seus cabelos estavam cheios de agulhas
de pinheiro. Havia um arranhão em sua bochecha, mas ele
claramente não estava ferido. Roger deu um tapinha de leve nele
504

e se virou para Aidan, agachando-se ao lado do menino.


"Aidan? Você está bem?"
"Sim." Ele parecia atordoado e não era de se admirar. Ele não
tirou os olhos do urso. "Será que vai descer e nos comer?"
Roger deu um olhar cauteloso ao urso na árvore. Bem que ele
poderia, pelo que Roger sabia.
"Ele Mesmo e os outros sabem o que fazer", assegurou a Aidan,
esfregando as costas pequenas e ossudas do menino para
tranquilizá-lo. Ele esperava que estivesse certo.
"Se vier para você, bata no focinho o mais forte que puder",
Jamie havia dito a ele. "Se vier para morder, enfie seu pedaço de
pau na garganta dele ..."
Roger havia perdido seu cajado, ao cair. Onde... ah, ali. Ele
desceu a encosta, mantendo um olho no urso, uma bolha negra e
sólida contra o céu azul. Não parecia disposto a se mover, mas
ele se sentiu muito melhor com o bastão na mão.
Os caçadores haviam se reunido um pouco mais longe e olhavam
para o urso com os olhos estreitos. Os cachorros estavam em
êxtase, saltando, arranhando a árvore, latindo e ganindo, e
claramente dispostos a continuar com isso pelo tempo que fosse
necessário.
"Vamos." Roger reuniu os meninos e os conduziu encosta acima,
atrás de Jamie e dos outros. Agora que ele os tinha em segurança
nas mãos, ele teve um momento para realmente olhar para o urso.
Ele estava movendo a cabeça inquieto de um lado para o outro,
olhando para os cães e pensando claramente: Que diabos...? Ele
ficou surpreso ao sentir uma certa simpatia pelo animal
enganchado na árvore. Então ele se lembrou de Amy e a simpatia
morreu.
"... não consigo dar um tiro decente", Jamie estava dizendo,
505

mirando ao longo de seu rifle.


Ele abaixou e olhou para Ian. "Você pode movê-lo para mim?"
"Oh, sim." Ian desenrolou seu arco, sem pressa e sem nenhum
barulho, encaixou uma flecha e a atirou direto no traseiro do urso.
O urso guinchou de raiva e recuou rapidamente até a metade do
tronco, deu aos cachorros um olhar rápido e então com uma graça
incrível saltou para outra árvore a três metros de distância,
agarrando o tronco.
Todos os homens gritaram e os cães imediatamente cercaram a
nova árvore, assim que o urso começou a descer. O urso, com a
flecha espetada absurdamente atrás dele, voltou a subir, olhou de
um lado para outro em busca de uma ideia melhor e, não
encontrando nenhuma, saltou de volta para sua árvore original.
Jamie atirou nele e ele caiu no chão como um enorme saco de
farinha.
"Droga!", disse Jemmy, pasmo. Germain agarrou sua mão. Aidan
deu um uivo de raiva e se lançou em direção ao urso caído. Roger
também se lançou e agarrou o colarinho de Aidan, mas a camisa
usada rasgou e Aidan correu, deixando um punhado de pano nas
mãos de Roger.
"Fique aí, porra!" Roger gritou com Jem, que estava olhando
boquiaberto, e foi atrás de Aidan, batendo em galhos caídos,
torcendo os tornozelos e raspando as canelas em tocos e troncos
mortos.
Os outros homens também gritavam e corriam. Mas Aidan tinha
tirado a faca do cinto e rugia alto e agudos enquanto tropeçava
nos últimos metros em direção ao urso. Os cachorros já haviam
alcançado e estavam mordendo e rasgando a carcaça – se é que
era uma carcaça.
Gillebride estava descendo a ladeira, com a lança nas mãos e
berrando para os cães. O urso levantou-se repentinamente,
506

balançando, e empurrou Bluebell para longe. Ela se chocou


contra uma árvore com um grito e caiu e Aidan cravou sua
pequena faca na lateral do urso, gritando e gritando, e então
Roger o alcançou, agarrou-o pela cintura e atirou-se para longe
com Aidan embaixo dele e ouviu atrás de si o thunk! da lança e
um longo, longo suspiro do urso. Folhas voaram quando o urso
atingiu o solo. Elas tocaram o rosto de Roger e um dos cães
galopou sobre ele, as unhas cravando-se em suas costas enquanto
se lançava sobre o urso morto.
"Pai! Pai! Você está bem?", Jemmy o estava puxando, gritando.
Ele ouviu vagamente Gillebride e Ian espantando os cachorros
para longe da carcaça e sentiu uma grande e dura mão sob seu
cotovelo, puxando-o para cima, e a floresta girou.
"A cachorra está bem", Jamie estava dizendo, e Roger se
perguntou se tinha perguntado sem perceber ou se Jamie estava
apenas puxando conversa. "Ela talvez tenha quebrado uma
costela, não mais. O pequenino está bem, também", acrescentou.
"Aqui." Ele pegou um pequeno frasco de seu sporran e envolveu
as mãos de Roger em torno dele.
"Papai?" Jem estava ajoelhado ao lado dele, ansioso. Roger sorriu
para ele, embora seu rosto parecesse borracha derretida, incapaz
de manter a forma por mais de alguns segundos.
"Está tudo bem, a bhalaich."
O cheiro forte do urso se misturou ao cheiro de uísque e folhas
mortas. Ele podia ouvir Aidan soluçando e procurou por ele. Ian
estava com ele, um braço em volta do menino, aninhado ao seu
lado enquanto eles se sentavam nas folhas amarelas, encostados
em um tronco caído. Ele viu que Ian havia manuseado um pouco
da tinta branca misturada com gordura de urso de seu próprio
rosto e a riscou na testa de Aidan.
Jamie e Gillebride estavam ao lado do urso, examinando-o,
507

Germain espiando com cautela por trás de seu avô. Com grande
esforço, Roger se levantou e estendeu a mão para Jem.
"Vamos."
Era uma coisa linda, apesar das feridas. A maciez do focinho, as
cores do corpo e as curvas vívidas e perfeitas de garras, as
almofadas carnudas da pata, as costas enormes e arredondadas,
quase o levaram às lágrimas.
Jamie se ajoelhou perto da cabeça do urso e o ergueu, o crânio
pesado movendo-se facilmente quando ele o virou e afastou o
lábio dos dentes grandes, os dedos movendo-se ao longo da
mandíbula. Ele fez uma careta e, alcançando cautelosamente a
boca do urso, tirou um pequeno pedaço de entre os dentes de trás
- algo que parecia um fragmento de alguma planta, algo verde
escuro. Ele estendeu a palma da mão e tocou a coisa, abrindo-a,
e Roger viu que era um pedaço de tecido verde-escuro tingido de
preto em uma das pontas. O preto úmido vazou na palma da mão
de Jamie e Roger pôde ver que era sangue.
Jamie acenou com a cabeça, como se para si mesmo, e enfiou o
fragmento do corpete de Amy em seu sporran. Então ele se
levantou, com uma intenção clara no corpo que fez Ian se levantar
também, levando Aidan a vir e ficar com todos eles, enquanto
Jamie dizia a oração pela alma de alguém caído na batalha.

-.-.-

ELES DESCERAM para a Casa Nova249 ao pôr do sol, Brianna


e Tom MacLeod carregando o caixão entre eles, ele na frente e
ela atrás.
Ela observou a parte de trás de sua cabeça enquanto eles lidavam
249
No original Big House, mas essa era a casa antiga, que desapareceu no incêndio. Mudamos para fazer
correspondência com os outros momentos em que ela é citada como Casa Nova.
508

com o caminho através das longas sombras das árvores, e se


perguntou quantos anos ele poderia ter. Seus cabelos eram ralos
e quase inteiramente brancos, presos em uma mecha, e sua pele
escamosa e castanha como a de uma tartaruga. Mas seus olhos
eram brilhantes e ferozes como os de uma tartaruga também, e
suas mãos largas conheciam a madeira.
Eles não trocaram mais de uma dúzia de palavras durante a tarde,
mas não precisaram.
No início, ela sentiu uma tristeza profunda ao pensar em um
caixão; Amy sendo enterrada, colocada à parte, separada. Mas
sua alma se acomodou no trabalho – medo, choque e preocupação
desaparecendo com a concentração necessária para o manuseio
de objetos pontiagudos, e ela começou a sentir uma sensação de
paz. Isso era uma coisa que ela poderia fazer por Amy: colocá-la
para descansar em madeira limpa. Suas mãos estavam ásperas de
lixar e as roupas cheias de serragem; ela cheirava a suor e pinho
fresco, e os abetos balsâmicos perfumavam a trilha do caixão.
Incenso, ela pensou.

-.-.-

JÁ ESTAVA QUASE escuro quando Brianna deixou Tom e o


caixão no quintal e subiu para fazer uma toalete apressada e trocar
de roupa. As roupas sujas caíram, pesadas de suor e serragem, e
ela sentiu um alívio momentâneo, como se tivesse se livrado de
uma pequena parte do fardo do dia. Ela empurrou as roupas
descartadas para um canto com o pé e ficou imóvel, nua.
A casa abaixo zumbia como a colmeia de sua mãe, com estrondos
e gritos intermitentes enquanto as pessoas entravam pela porta
aberta, as vozes instantaneamente silenciando em respeito, mas
apenas momentaneamente. Ela fechou os olhos e passou as mãos
509

muito lentamente pelo corpo, sentindo a pele e os ossos, o


balanço macio dos cabelos úmidos e pesados que caíam pelas
costas, soltos.
Ela pensou que deveria se sentir culpada. Ela se sentiu culpada,
apesar da névoa da exaustão, mas como sua mãe havia dito – mais
de uma vez – a carne não tem consciência. Seu corpo estava grato
por se encontrar vivo em um quarto frio e escuro, sendo
acalmado, banhado e penteado à luz de velas.
Uma batida suave na porta e Roger entrou. Ela largou a anágua
que estava prestes a colocar e foi até ele de combinação e
espartilho.
"O que vocês fizeram com o urso?", ela murmurou em seu ombro,
alguns minutos depois. Ele cheirava a sangue.
"Ele foi estripado, amarrado em cordas e arrastado para casa.
Acho que seu pai colocou no depósito, para evitar atrair
predadores que queiram pegá-lo. Ele diz que ele e Gilly
MacMillan vão esfolar e desmembrar amanhã. Vai ser muita
carne", acrescentou.
Um leve estremecimento desceu por suas costas e em sua barriga.
Ele sentiu e a abraçou mais forte.
"Você está bem?", ele disse suavemente junto aos seus cabelos.
Ela acenou com a cabeça, incapaz de falar, e eles ficaram juntos
em silêncio, ouvindo o estrondo abafado da casa abaixo.
"Você está bem?", ela perguntou, finalmente se soltando. Ela deu
um passo para trás para olhar para ele; seus olhos pareciam
machucados de cansaço e ele acabara de se barbear. Seu rosto
estava úmido e manchado de arranhões e havia um pequeno corte
logo abaixo de sua mandíbula, uma linha escura de sangue seco.
"Foi horrível?"
"Sim, foi... mas realmente maravilhoso também." Ele balançou a
510

cabeça e se abaixou para pegar a anágua caída. "Eu vou contar a


você mais tarde. Eu tenho que colocar minha roupa de ministro e
ir falar com as pessoas."
Ele endireitou os ombros enquanto falava; ela podia vê-lo ir além
de sua própria emoção e cansaço e compreendeu sua vocação
como a que, em outro homem, teria a ver com sua espada.
"Mais tarde", ela ecoou, e pensou rapidamente que talvez ela
devesse aprender as palavras da bênção para um guerreiro que
partia.

-.-.-

LEVOU ALGUM TEMPO para ela se recompor o suficiente para


deixar o santuário de seu quarto e descer.
O caixão de Amy foi colocado em cavaletes na cozinha, pois a
multidão que veio para a vigília nunca caberia na pequena sala de
visitas. Todos trouxeram comida; Rachel e as duas meninas
Chisholm mais velhas tinham se encarregado de desempacotar as
cestas e sacolas e arrumar as coisas. Brianna respirou fundo
hesitante quando entrou na sala, fazendo seu espartilho ranger,
mas estava bem; se havia algum cheiro de urso ou podridão, era
mascarado pelos cheiros de lenha queimando, cera de vela, geleia
de frutas do bosque, cidra de maçã, queijo, pão, carne fria e
cerveja, com o fantasma reconfortante do uísque de seu pai
flutuando na multidão.
Roger estava junto à lareira, vestido com sua capa preta com o
colarinho alto e branco de ministro, cumprimentando as pessoas
em silêncio, tocando suas mãos, oferecendo calma e conforto. Ele
atraiu a atenção de Brianna e deu-lhe um olhar caloroso, mas
estava envolvido com Auld Mam, que ficou na ponta dos pés,
equilibrando-se com a mão em seu braço, gritando algo em seu
511

ouvido.
Ela olhou para o caixão. Ela devia ir e prestar seus respeitos –
encontrar algumas palavras para dizer a Bobby.
Sim, como o quê? Não posso simplesmente dizer: "Sinto muito."
Lágrimas vieram aos olhos dela, apenas olhando para ele.
O marido enlutado fazia um grande esforço para se manter de pé
e responder a uma onda de simpatia que ameaçava inundá-lo. Seu
pai assumiu uma posição ao lado de Bobby, mantendo um olho
nele, enfrentando as manifestações de pesar mais exaltadas – e
mantendo o copo de Bobby cheio. Ele sentiu o olhar de Brianna
sobre ele e olhou para ela, captou sua atenção e ergueu uma
sobrancelha pesada em uma expressão que dizia clara como o dia:
"Você está bem, moça?"
Ela acenou com a cabeça e fez o seu melhor para sorrir, mas uma
sensação de pânico estava crescendo nela e ela se virou
abruptamente e saiu para o corredor, respirando rápido e
superficialmente. Enquanto ela caminhava pelo corredor frio, ela
pareceu ouvir um passo lento e pesado atrás dela e o arranhar de
garras na madeira.
Sua mãe havia dito que as crianças menores foram alimentadas e
colocadas para dormir em seu consultório, seguras atrás da colcha
pendurada. Brianna parou, escutando, e embora tudo estivesse
quieto por dentro, ela puxou a ponta da colcha e olhou para o
quarto.
Pequenos corpos estavam enrolados e esparramados em pilhas
aconchegantes sob a grande mesa, ao lado da lareira – embora o
fogo tivesse sido apagado e a tela de proteção trazida da cozinha
para evitar acidentes – e em todos os cantos da sala, dormindo
sob as vestimentas exteriores de seus pais e suas próprias. Ela viu
Mandy sobre uma dessas pilhas, membros espalhados como uma
estrela do mar. Jem estaria em outro lugar, fora com os meninos
512

mais velhos. A sala inteira parecia respirar com os ritmos lentos


e profundos do sono, e ela desejou repentinamente deitar-se ao
lado deles e abandonar a consciência.
Ela olhou pela décima vez para a grande janela. Havia um
cobertor de lã com padrões geométricos nativos pregado sobre
ela, para impedir a entrada de correntes de ar frio. Seus cabelos
se arrepiaram em sua nuca, olhando para ele; não iria impedir
nenhuma das coisas que andavam à noite.
"Está tudo bem, Bwee. Estou aqui." A voz suave a assustou e ela
recuou, olhando em volta. A voz viera de um canto perto da
lareira e, espiando nas sombras, ela avistou Fanny, sentada de
pernas cruzadas, Bluebell no chão ao lado dela, profundamente
adormecida, o focinho da cachorra colocado na coxa de Fanny.
As bandagens de musselina ao redor das costelas de Bluey eram
uma mancha branca e macia no escuro.
"Você está bem, Fanny?", Bree sussurrou de volta. "Você quer
comer alguma coisa?"
Fanny negou com a cabeça, a touca branca bem firme, como um
cogumelo cutucando o solo.
"A sra. Fraser trouxe-me o jantar. Eu disse que Bluey e eu
ficaríamos com Orrie e Rob", disse ela, cuidadosa com seus erres.
"Se eles acordarem..."
"Não é provável", disse Bree, sorrindo apesar de sua inquietação.
"Mas você pode vir me buscar, se acontecer."
Um pouco da paz das crianças adormecidas permaneceu com ela
quando ela saiu do consultório, mas desapareceu no momento em
que ela voltou para a cozinha, quente e repleta de pessoas. Seu
espartilho pareceu repentinamente mais apertado e ela
permaneceu perto da parede, tentando se lembrar de como
respirar pela parte inferior do abdômen.
513

"Bobby é dono de sua cabana?", Moira Talbert estava


perguntando, seus olhos fixos especulativamente no pequeno
grupo de pessoas ao redor de Bobby Higgins. "Ele Mesmo a
construiu, e eu sei que sua filha e seu homem moraram lá por um
tempo, mas Joseph Wemyss disse a Andrew Baldwin como Ele
Mesmo havia dado o lugar a Bobby e Amy, mas ele não disse se
era a casa e o terreno por escritura, ou apenas o uso dele."
"Não sei", respondeu Peggy Chisholm, seus próprios olhos se
estreitando em especulação. Ela olhou para o outro lado da sala,
onde suas duas filhas estavam ajudando a cortar e colocar fatias
de um vasto bolo de frutas embebido em uísque que Mandaidh250
MacLeod trouxe. "Você acha que talvez Ele Mesmo esteja
pensando em casar sua pequenina órfã com Bobby? Se fosse
assim, Bobby teria direito à cabana, claro... "
"Muito jovem", disse Sophia MacMillan, balançando a cabeça de
um lado para o outro. "Ela ainda nem é mocinha."
"Sim, e ele precisa de uma mãe para seus filhos pequeninos",
Annie Babcock disse com desdém. "Aquela lá é muito quieta e
tímida. Agora, a minha prima Martina, ela tem dezessete anos
e..."
"Mesmo assim, o homem é um assassino", Peggy interrompeu.
"Não acho que o quero como genro, mesmo com uma boa casa."
Brianna estava sufocada pelo espanto, mas com isso encontrou
sua voz.
"Bobby não é um assassino", disse ela, e ficou surpresa ao saber
como estava rouca. Ela limpou a garganta com força e repetiu:
"Ele não é um assassino. Ele era um soldado e atirou em alguém
durante um motim. Em Boston."

250
Não encontramos o significado exato dessa palavra. Encontramos uma expressão (mandaidh mi – eu
posso, eu sou capaz) mas também como uma versão em gaélico do nome Amanda. Acho que essa última
é a mais apropriada.
514

Um pequeno choque a percorreu com a palavra "Boston". A Old


State House251 atrás dela e o cheiro do tráfego, com a grande placa
redonda de bronze colocada no asfalto a seus pés. Seus colegas
de classe da quinta série agrupando-se em torno dela, todos
tremendo com o vento que soprava do porto. O Massacre de
Boston, dizia a placa.
"Um motim", ela disse, com mais firmeza. "Um grande grupo de
pessoas atacou um pequeno grupo de soldados. Bobby atirou em
alguém para salvar a vida dos soldados."
"Oh, sim?", disse Sarah MacBowen com um arquear cético de
sua sobrancelha. "Então, por que ele está com a marca de
assassino no rosto?"
A cicatriz havia desvanecido nos dez anos desde então, mas
estava claramente visível agora; Bobby estava sentado ao lado do
caixão, e o brilho pálido da vela mostrava a marca da cicatriz,
escura contra a brancura de seu rosto. Ela viu que ele ainda estava
segurando a borda do caixão de pinho, como se pudesse impedir
Amy de se afastar dele, recusando-se a reconhecer que ela já
havia partido.
Brianna tinha que ir até ele. Tinha que olhar para Amy. Tinha que
se desculpar. "Com licença", ela disse abruptamente, e empurrou
Moira.
Um pequeno grupo de amigos de Bobby estava reunido em torno
dele, murmurando palavras roucas e dando-lhe um aperto
ocasional de consolo no ombro. Ela ficou para trás, esperando
uma abertura, o batimento cardíaco pulsando em seus ouvidos.
"Och, Brianna!" Uma mão agarrou seu braço, e Ruthie MacLeod
se inclinou para olhar para ela. "Você está bem, a nighean? Eles
251
Old State House é um edifício histórico em Boston, Massachusetts. Construído em 1713, foi a sede
do Tribunal Geral de Massachusetts até 1798.Muitos eventos importante aconreceram ali: o Massacre de
Boston, de 5 de março de 1770, ocorreu na praça em frente ao Town House, como era chamada na época.
A Declaração da Indepência foi lida pela primeira vez em Boston na varanda dessa casa histórica, em 18
de julho de 1776.
515

estão dizendo que você estava com Amy quando a besta malvada
a levou – é mesmo?"
"Sim", ela disse. Seus lábios estavam rígidos.
"O que aconteceu?" Beathag Moore e outra jovem estavam
agrupados atrás de Ruthie, os olhos brilhando de curiosidade.
"Quão perto você estava do urso?"
Como se a palavra "urso" tivesse sido um sinal, as cabeças se
voltaram para Brianna.
"Tão perto quanto estou de você agora", disse ela. Ela mal
conseguia ouvir suas próprias palavras; seu coração tinha
acelerado e... oh, Deus. Ele explodiu em uma vibração violenta
em seu peito, como se um bando de pardais estivesse preso dentro
dela, e manchas pretas dançaram nas bordas de sua visão. Ela não
conseguia respirar.
"Eu... eu tenho que..." Ela fez um gesto impotente para os rostos
ávidos, se virou e saiu cambaleando da sala, meio correndo para
as escadas.
Ela estava puxando o corpete ao chegar ao patamar, e quase o
arrancou ao tropeçar para dentro do quarto e fechar a porta atrás
de si.
Ela teve que sair do espartilho, ela não conseguia respirar ... Ela
arrancou as alças de seus ombros e se contorceu para fora do
espartilho meio fechado, ofegando por ar. Tirou a saia e a anágua
e se encostou na parede, o coração ainda galopando. Ar.
Suando e tremendo, ela abriu a porta e começou a subir as escadas
para o ar livre do sótão inacabado.
-.-.-
ROGER VIU BRIANNA ficar branca, depois se virar e sair
cambaleando da cozinha, batendo na porta escancarada que
fechou com força atrás dela.
516

Ele abriu caminho através da multidão o mais rápido que pôde,


mas ela havia sumido quando ele saiu para o corredor. Talvez ela
só precisasse de ar – Deus sabe que ele também precisava; a brisa
gelada da noite soprando do quintal foi um grande alívio.
"Bree!", ele chamou da porta, mas não houve resposta – apenas o
arrastar de pés e murmúrios de visitantes subindo a encosta com
o piscar de uma tocha de pinheiro.
O consultório, então – ela deve ter ido olhar as crianças...
Ele a encontrou, finalmente, na casa. Bem no alto, ao ar livre,
agarrada a uma das colunas de madeira da estrutura do sótão
inacabado, uma sombra branca contra o céu noturno.
Ela deve tê-lo ouvido, embora ele tentasse agir com cautela;
apenas uma única camada de tábuas servia (por enquanto) tanto
como teto do segundo andar quanto como piso do sótão. Ela não
se moveu, porém, exceto pelo fluxo de seus cabelos e de sua
combinação, ambos ondulando no ar agitado. Havia uma
tempestade tardia na vizinhança; ele podia ver a massa de nuvens
de aço fervendo atrás da montanha distante, atingida por
rachaduras constantes e vívidas de relâmpagos. O cheiro de
ozônio era forte no vento.
"Você parece a figura de proa de um navio", disse ele, chegando
perto dela. Ele colocou os braços suavemente ao redor dela,
protegendo-a do frio. "E ao toque se parece como uma também –
você está tão fria, tão rígida como madeira."
Ela fez um som que ele interpretou como uma indicação de que
ela estava feliz em vê-lo e reconheceu seu toque de humor, mas
ou estava com muito frio para falar ou não sabia o que dizer.
"Ninguém sabe o que dizer quando algo assim acontece", disse
ele, e seus lábios roçaram uma orelha branca e fria.
"Você sabe. Você disse."
517

"Nah", ele disse. "Eu disse algo, sim, mas só Deus sabe – e eu sou
sincero ao dizer isso, a propósito – se foi a coisa certa a se dizer,
ou se existe algo que poderia ser certo, em uma situação como
essa. Você estava lá", ele disse, em uma voz mais suave. "Você
ajudou, você cuidou dos bairns. Você não poderia ter feito mais."
"Eu sei." Ela se virou para ele então, e ele sentiu a umidade em
sua bochecha contra a sua. "Isso é o que é tão terrível. Não havia
nada que pudesse consertar, que tornasse as coisas melhores. Um
segundo ela estava lá, e então..."
Ela estava tremendo. Ele deveria ter pensado em trazer uma capa,
um cobertor... mas tudo que ele tinha era seu próprio corpo, e ele
a segurou tão perto quanto pôde, sentindo a vida sólida dela
tremendo em seus braços, e sentiu uma terrível culpa por seu
alívio por não ter sido...
"Poderia ter sido eu", ela sussurrou, sua voz tremendo tanto
quanto seu corpo. "Ela não estava a dez metros de mim. O urso
poderia ter vindo do outro lado, e... e Jem e Mandy seriam or-
órfãos esta no-noite. " Ela deixou escapar um pequeno soluço
sufocado. "Mandy estava bem perto dos meus pés, cinco minutos
an-antes. Ela... poderia ter..."
"Você está congelando", ele sussurrou em seu cabelo. "Vai
chover. Vamos descer."
"Eu não posso fazer isso. Não devíamos ter vindo", disse ela.
"Não devíamos ter vindo para cá." E desabando o seu corpo ereto,
ela inclinou a cabeça em seu ombro e chorou, pressionada com
força contra ele. O frio havia vazado de seu corpo para o dele, e
as gotas de gelo de suas palavras pareciam chumbo grosso
congelado em sua mente. Mandy.
Ele não podia dizer a ela que tudo ficaria bem. Mas também não
poderia deixá-la ficar sozinha aqui como um para-raios.
"Se eu tiver que carregar você, provavelmente vou cair do telhado
518

e ambos seremos mortos", disse ele, e pegou sua mão fria.


"Desça, sim?"
Ela acenou com a cabeça, endireitou-se e enxugou os olhos na
manga da camisa. "Não é errado estar vivo, disse ele calmamente.
"Estou feliz que você esteja."
Ela assentiu novamente, levou a mão dele aos lábios frios e
beijou-a. Eles desceram a escada no escuro um após o outro, cada
um sozinho, mas juntos, em direção ao brilho distante da lareira
abaixo.
519

30

VOCÊS DEVEM CONHECER…

ENTERRAMOS AMY NO DIA SEGUINTE, no pequeno e alto


prado que servia de cemitério na Cordilheira. Era um dia pacífico
e ensolarado, e a cada passo na grama revelava-se algum flash de
cor, os roxos e amarelos de ásteres e varas douradas. O calor do
sol em nossos ombros era um conforto, e as palavras de oração e
recomendação de Roger também traziam algum conforto.
Eu me peguei pensando – como todos fazem, em certa idade –
que preferia ter um funeral como este. Ao ar livre, entre amigos
e familiares, com pessoas que me conheciam, a quem servi
durante anos. Uma sensação de imensa tristeza, sim, mas uma
sensação mais profunda de solenidade, que não está em conflito
com a luz do sol e o sopro verde profundo da floresta próxima.
Todos ficaram em silêncio enquanto a última pá de terra era
lançada sobre o domo da sepultura. Roger acenou com a cabeça
para os meninos, amontoados, mudos e chocados em torno do pai,
cada um segurando um pequeno buquê de flores silvestres.
Brianna ajudou as crianças a colher as flores – e Mandy, é claro,
insistiu em fazer seu próprio buquê, um punhado de trifólio
selvagem tingido de rosa e hastes de grama virando semente.
Rachel ficou quieta, ao lado de Bobby Higgins. Ela gentilmente
pegou sua mão flácida e colocou um pequeno ramo de pequenas
flores brancas parecidas com margaridinhas do campo. Ela
sussurrou algo em seu ouvido e ele engoliu em seco, olhou para
os filhos e, em seguida, avançou para colocar as primeiras flores
no túmulo de Amy, seguido por Aidan, os meninos, Jem,
Germain e Fanny – e Mandy, carrancuda pela concentração em
fazer isso direito.
520

As pessoas pararam brevemente perto do túmulo, tocando os


braços e as costas de Bobby, murmurando para ele. Então
começaram a se dispersar, voltando para casa, trabalho, jantar,
normalidade, gratas por – dessa vez – a morte ter passado por elas
e vagamente culpadas por sua gratidão. Alguns permaneceram,
conversando baixinho uns com os outros.
Rachel apareceu novamente ao lado de Bobby – ela e Bree
estavam assumindo uma atitude silenciosa de não deixá-lo
sozinho.
Então foi a nossa vez. Eu segui Jamie, que não disse nada. Ele
pegou Bobby pelos ombros e inclinou a cabeça de modo que eles
ficaram frente a frente por um momento, compartilhando a dor.
Ele ergueu a cabeça e a balançou de um lado para o outro, apertou
o ombro de Bobby e se afastou de mim.
"Ela era linda, Bobby", eu sussurrei, minha garganta ainda
grossa, depois de todas as lágrimas já derramadas. "Nós vamos
lembrar dela. Sempre."
Ele abriu a boca, mas não havia palavras. Ele apertou minha mão
com força e assentiu, as lágrimas escorrendo despercebidas.
Ele havia se barbeado para o enterro, e pequenas feridas
apareciam como pontos vermelhos e arranhaduras em sua pele
pálida.
Jamie e eu caminhamos lentamente pela trilha em direção à casa.
Sem falar, mas tocando um ao outro levemente enquanto
caminhávamos.
Ao nos aproximarmos do jardim, fiz uma pausa.
"Eu vou... pegar alguns..." Eu acenei vagamente em direção às
paliçadas.
O quê? Eu me perguntei. O que eu poderia colher ou desenterrar
para fazer um cataplasma para uma ferida mortal no coração?
521

Jamie acenou com a cabeça, então me pegou em seus braços e me


beijou.
Recuou e colocou a mão em minha face, olhando para mim como
se quisesse fixar minha imagem em sua mente, depois se virou e
desceu.
Na verdade, eu não precisava de nada do jardim, exceto ficar
sozinho nele.
Eu fiquei lá por um tempo, deixando o silêncio que nunca é
silêncio tomar conta de mim; a agitação e o suspiro da floresta
próxima enquanto a brisa passava, as conversas distantes de
pássaros, pequenos sapos chamando do riacho próximo. A
sensação das plantas conversando entre si.
Era fim de tarde e o sol estava se pondo por entre as estacas dos
cervos, lançando uma luz salpicada nas vinhas sobre a palha
retorcida da cesta, onde as abelhas iam e vinham com uma graça
preguiçosa.
Estendi a mão e a coloquei na colmeia, sentindo o adorável
zumbido profundo do todo o trabalho acontecendo dentro dela.
Amy Higgins se foi – está morta. Vocês devem conhecê-la – seu
quintal está cheio de malvas-rosa e ela tem – tinha – jasmim
crescendo em seu estábulo e um belo corniso plantado próximo.
Fiquei imóvel, deixando a vibração da vida entrar em minha mão
e tocar meu coração com a força de asas transparentes.
Suas flores ainda estão crescendo.
522

PARTE TRÊS

A Ferroada De Abelha da
Etiqueta e a Picada de
Cobra da Ordem Moral 252

252
A citação completa da ensaista e escritora norte-americana Florence King (1936 – 2016) é: “In social
matters, pointless conventions are not merely the bee sting of etiquette, but the snake bite of moral
order” (“Em questões sociais, convenções inúteis não são apenas a ferroada de abelha da etiqueta,
mas a picada de cobra da ordem moral”)
523

31

PATER FAMILIAS253
Savannah, Colônia Real da Georgia

WILLIAM ESTAVA MEIO ESPERANÇOSO que suas


indagações sobre lorde John Grey resultassem em total falta de
informações ou na notícia de que Sua Senhoria havia retornado
à Inglaterra.
Mas não teve essa sorte. O escrivão do major-general Prévost
conseguira encaminhá-lo sem demora para uma casa na praça
St. James e foi com o coração batendo forte e uma bola de
chumbo no estômago que ele desceu os degraus do quartel-
general de Prévost para encontrar Cinnamon, esperando na rua.
Sua ansiedade foi dissipada no instante seguinte, porém, quando
o coronel Archibald Campbell, ex-comandante da guarnição de
Savannah e bête noire254 pessoal de William, subiu a calçada,
com dois ajudantes ao seu lado. O primeiro impulso de William
foi pegar o chapéu, colocá-lo sobre o rosto e passar correndo na
esperança de não ser reconhecido. Seu orgulho, já em carne viva,
não toleraria nada disso e, em vez disso, ele marchou direto pela
calçada, de cabeça erguida, e acenou regiamente para o coronel
quando ele passou.
"Bom dia para você, senhor", disse ele. Campbell, que estava
dizendo algo a um dos ajudantes, ergueu os olhos distraidamente
e parou abruptamente, enrijecendo-se.
253
Pater familias era o mais elevado estatuto familiar na Roma Antiga, sempre uma posição masculina.
O termo é latino e significa, literalmente, "pai de família".
254
Bête noire (fera negra, em francês) refere-se a uma pessoa ou coisa que você odeia ou que irrite você
demasiadamente.
524

"O que diabos você está fazendo aqui?", disse ele, o rosto largo
escurecendo como uma costeleta tostada.
"Meus assuntos, senhor, não são da sua conta", disse William
educadamente, e fez menção de passar.
"Covarde", disse Campbell com desdém atrás dele. "Covarde e
prostituto. Saia da minha frente antes que eu o prenda."
A mente lógica de William estava lhe dizendo que eram as
relações de Campbell com o tio Hal que estavam por trás desse
insulto, e ele não deveria levar isso para o lado pessoal. Ele devia
seguir em frente como se não tivesse ouvido.
Ele se virou, o cascalho rangendo sob seu calcanhar, e apenas o
fato de que a expressão em seu rosto fez Campbell ficar branco
e saltar para trás deu a John Cinnamon tempo para dar três
passos largos e agarrar os braços de William por trás.
"Amène-toi, imbécile", ele sibilou no ouvido de William.
"Vite!255"
Cinnamon pesava dezoito quilos mais do que William, e ele
conseguiu o que queria – embora, na verdade, William não tenha
lutado contra ele. Ele não se virou, porém, mas recuou – sob a
compulsão de Cinnamon – lentamente em direção ao portão, os
olhos ardentes fixos no semblante manchado de Campbell.
"O que há de errado com você, gonze256?" Cinnamon perguntou,
assim que eles estavam em segurança fora do portão e fora da
vista da mansão de madeira. A simples curiosidade em sua voz
acalmou William um pouco, e ele passou a mão com força pelo
rosto antes de responder.
"Desculpe" ele disse, e respirou fundo. "Aquele... ele... aquele
homem é responsável pela morte de uma... uma jovem senhora.
Uma jovem que eu conhecia."
"Merde", Cinnamon disse, virando-se para olhar para a casa.
"Jane?"
"Co-como...de onde você tirou esse nome?", William exigiu. O

255
Venha, imbecil. (...) Rápido. Em francês.
256
Cara em francês.
525

chumbo em sua barriga pegou fogo e derreteu, deixando um


buraco queimado para trás. Ele ainda podia ver as mãos dela,
pequenas, delicadas e brancas, quando ele as colocou em seu
seio – cruzadas, os pulsos rasgados cuidadosamente amarrados
em preto.
"Você fala isso durante o sono às vezes", Cinnamon disse com
um encolher de ombros de desculpas. Ele hesitou, mas seu
próprio desejo era forte e ele não conseguiu deixar de perguntar:
"E daí?"
"Sim." William engoliu em seco e repetiu com mais firmeza:
"Sim. Ele está aqui. Rua Oglethorpe, número doze. Venha,
então."

-.-.-

A CASA ERA modesta, mas ajeitada, uma fachada pintada de


branco com uma porta azul, situada em uma rua de casas
igualmente bem-ajeitadas, com uma pequena igreja de arenito
vermelho no final da rua. Folhas derrubadas pela chuva caíram
de uma árvore no jardim da frente e pairavam em nuvens
amarelas e úmidas sobre um caminho de tijolos. William ouviu
Cinnamon prender a respiração quando chegaram ao portão, e o
viu olhar de um lado para o outro enquanto eles se
encaminhavam para a porta, secretamente tomando nota de cada
detalhe.
William bateu à porta sem hesitar, ignorando a aldrava de latão
em forma de cabeça de cachorro. Houve um momento de
silêncio e, em seguida, o som de um bebê chorando dentro de
casa. Os dois jovens se entreolharam.
"Deve ser o filho da cozinheira de Sua Senhoria", disse William,
com indiferença assumida. "Ou da empregada. Sem dúvida, a
mulher vai..."
A porta se abriu, revelando um lorde John carrancudo, de cabeça
descoberta e em mangas de camisa, segurando uma criança
pequena e uivante contra o peito.
526

"Você acordou o bebê, malditos sejam seus olhos", disse ele.


"Oh. Olá, Willie. Entre, então, não fique aí deixando entrar
correntes de ar; o pequeno demônio está tendo sua dentição, e
pegar um resfriado ainda por cima não vai melhorar seu
temperamento em qualquer extensão perceptível. Quem é seu
amigo? Seu servo, senhor", acrescentou ele, colocando a mão
sobre a boca da criança e acenando com a cabeça para Cinnamon
com um justo pressuposto de hospitalidade.
"John Cinnamon", os dois jovens disseram automaticamente,
falando juntos, então pararam, igualmente nervosos. William se
recuperou primeiro.
"Seu?", ele perguntou educadamente, com um aceno de cabeça
para a criança, que momentaneamente havia parado de uivar e
estava mordendo ferozmente a junta do dedo de lorde John.
"Certamente você está brincando, William", seu pai respondeu,
dando um passo para trás e sacudindo a cabeça em um convite.
"Permita-me familiarizá-lo com seu primo em segundo grau,
Trevor Wattiswade Grey. Estou muito feliz em conhecê-lo, sr.
Cinnamon – quer um gole de cerveja? Ou algo mais forte? "
"Eu... ", em pânico, Cinnamon olhou para William em busca de
orientação.
"Podemos exigir algo um pouco mais forte, senhor, se você
tiver." William estendeu a mão para o bebê, recebendo-o
cautelosamente das mãos molhadas e aliviadas de lorde John.
Seu pai enxugou a mão na calça e estendeu-a para Cinnamon.
"Seu servo, sen..." Ele parou abruptamente, tendo
evidentemente dado uma boa olhada em Cinnamon pela
primeira vez. "Cinnamon", disse ele lentamente, os olhos fixos
no rosto do grande índio. "John Cinnamon, você disse?"
"Sim, senhor", disse Cinnamon roucamente, e caiu de joelhos de
repente com um estrondo que sacudiu a porcelana no aparador e
fez o pequeno Trevor enrijecer e gritar como se estivesse sendo
estripado por texugos.
"Oh, Deus", disse lorde John, olhando de Trevor para Cinnamon
e vice-versa. "Aqui." Ele pegou a criança de William novamente
527

e a sacudiu de maneira experiente.


"Sr. Cinnamon", disse ele. "Por favor. Levante-se. Não há
necessidade..."
"O que, em nome de Deus, você está fazendo com esse bebê, tio
John?" Uma voz feminina furiosa veio da porta do outro lado da
sala, e a cabeça de William girou em sua direção. Emoldurada
na porta estava uma garota loira de tamanho médio, exceto pelos
seios, que eram muito grandes, brancos como leite, e meio
expostos pelo banyan257 aberto e pela camisola desamarrada que
ela usava.
"Eu?", disse lorde John, indignado. "Eu não fiz nada para a fera.
Aqui, senhora, leve-o."
Ela o pegou, e o pequeno Trevor imediatamente enfiou o rosto
em seu seio, fazendo ruídos de busca bestial. A jovem teve um
vislumbre do rosto de William e olhou para ele.
"E quem diabos é você?", ela exigiu.
Ele piscou. "Meu nome é William Ransom, senhora", disse ele,
com certa rigidez. "Seu servo."
"Este é seu primo Willie, Amaranthus", disse lorde John,
avançando e dando tapinhas no topo da cabeça de Cinnamon
como forma de desculpas enquanto passava por ele. "William,
posso apresentar Amaranthus, viscondessa Grey, ... viúva de seu
primo Benjamin."
Quase não estava lá, aquela pausa, mas William ouviu e olhou
bruscamente da jovem para seu pai, mas o rosto de lorde John
estava composto e amigável. Ele não cruzou seu olhar com
William.
Então... ou eles encontraram o corpo de Ben – ou não, mas eles
estão deixando sua esposa acreditar que ele está morto.
"Minhas condolências, lady Grey258", ele disse, curvando-se.

257
Um roupão de tecido fino, inspirado nos quimonos japoneses, para ser usado sobre as vestes
cotidianas, em casa. Típico dos séculos XVII e XVIII na Inglaterra e suas Colônias.
258
Interessante. No livro 8, Claire era lady John e não lady Grey. E agora Amaranthus é lady Grey e não
lady Benjamin – seria por ser viúva? Ou por ter direito ao título que Ben herdaria de Hal e John é
apenas o segundo filho e não tem direito? Não sabemos responder.
528

"Obrigada", ela disse. "Ai! Trevor, seu pequeno Myotis259


bestial! " Ela sufocou Trevor colocando-o sob uma aba de seu
banyan puxada apressadamente para a frente, evidentemente
puxando para baixo sua camisola no mesmo movimento, pois a
criança havia se apoiado em seu seio e agora estava fazendo
ruídos de sucção embaraçosamente altos.
"Hã... Myotis?" Parecia vagamente grego, mas não era uma
palavra com a qual William estivesse familiarizado.
"Um morcego vésper", ela respondeu, ajustando a criança mais
confortavelmente em seus braços. "Eles têm dentes muito
afiados. Eu imploro seu perdão, meu senhor." E com isso, ela
girou nos calcanhares nus e desapareceu.
"Aham", disse Cinnamon, que, ignorado, silenciosamente se
levantou. "Meu senhor... espero que me perdoe por vir aqui sem
avisar. Eu não sabia onde encontrar você, até que meu amigo",
acenando para William. "descobriu sua casa agora mesmo. Eu
deveria ter esperado, no entanto. Eu... posso voltar...?", ele
acrescentou, com um movimento hesitante em direção à porta.
"Não... não." Aliviado da presença de Amaranthus e de Trevor,
lorde John recuperou a sua serenidade habitual. "Por favor,
sente-se, sim? Eu vou pedir... Oh. Na verdade, não há ninguém
para quem pedir, infelizmente. O mordomo se juntou ao exército
e minha cozinheira está bastante bêbada. Eu vou pegar..."
William o segurou pela manga, quando ele se encaminhava em
direção à cozinha. "Não precisamos de nada", disse ele, com
bastante delicadeza. Paradoxalmente, o caos dos últimos
minutos havia resolvido sua própria sensação de agitação. Ele
colocou a mão no ombro de seu pai, sentindo os ossos duros e o
calor de seu corpo, se perguntando se ele o chamaria de "Papa"
novamente, e o virou em direção a John Cinnamon.
O índio estava tão pálido quanto era possível para alguém de sua
pele ficar e parecia que estava prestes a vomitar.

259259
Gênero de morcegos, escontrados no mundo todo, que se subdivide em 104 espécies. Vésper, que
será referenciado a seguir, refere-se à família Vespertilionidae, a que pertencem os morcegos desse
gênero, com hábitos vespertinos.
529

"Vim para agradecer", ele desabafou, fechando os lábios com


força, como se temesse dizer mais.
O rosto de lorde John se iluminou, suavizando enquanto ele
olhava o jovem alto de cima a baixo. O coração de William
apertou um pouco.
"Não há de que", disse ele, e parou para limpar a garganta. "Não
há de que", ele disse de novo, mais fortemente. "Estou muito
feliz em encontrá-lo novamente, sr. Cinnamon. Obrigado por ter
vindo me encontrar."
William descobriu que havia um nó na garganta e se virou em
direção à janela, com um sentimento obscuro de que deveria dar-
lhes um momento de privacidade.
"Foi Manoke quem me contou", Cinnamon disse, sua voz rouca
também. "Que foi você, quero dizer."
"Ele disse a você... bem, sim, agora que me lembro, ele estava
lá em Quebec quando eu o levei para a missão... depois que sua
mãe morreu, quero dizer. Você viu Manoke... recentemente?"
A voz de lorde John tinha uma nota estranha e William olhou
para ele.
"Onde?"
"Em Monte Josiah", respondeu William, virando-se. "Eu... hã...
fui lá. E encontrei o sr. Cinnamon visitando Manoke. Ele...
Manoke, quero dizer... disse para mandar lembranças e para
dizer para você ir pescar com ele novamente."
Um olhar muito estranho cintilou nos olhos de lorde John, mas
depois se foi quando ele se concentrou novamente em John
Cinnamon. William percebeu que o índio ainda estava nervoso,
mas não mais em pânico.
"É muita gentileza de sua parte me receber, senhor", disse ele,
com um aceno de cabeça desajeitado para lorde John. "Eu queria
– quer dizer, eu não quero – me impor a você, ou... ou causar
qualquer problema. Eu nunca faria isso."
"Oh, claro", lorde John disse, a perplexidade clara em sua voz e
rosto.
530

"Eu não espero reconhecimento", Cinnamon continuou


bravamente. "Ou qualquer outra coisa. Eu não pergunto nada.
Eu só... eu só... precisava ver você. " Sua voz falhou
repentinamente com as últimas palavras e ele se virou
rapidamente. William viu lágrimas tremendo em seus cílios.
"Reconhecimento." Lorde John estava olhando para John
Cinnamon, seu rosto estava completamente inexpressivo, e de
repente William não aguentou mais.
"Como seu filho", disse ele asperamente. "Pegue-o; ele é melhor
do que o que você tem. " E alcançando a porta em duas passadas,
abriu-a e saiu, deixando-a entreaberta atrás de si.

-.-.-

WILLIAM CAMINHOU COM propósito deliberado até o


portão e parou. Ele queria ir embora, partir e deixar lorde John
e seu filho fazerem os acertos que pudessem. Quanto menos ele
soubesse da conversa, melhor. Mas ele hesitou, com a mão no
trinco.
Ele não conseguia abandonar Cinnamon, sem saber qual poderia
ser o resultado dessa conversa. Se as coisas dessem errado... ele
teve uma visão de Cinnamon, rejeitado e perturbado, saindo de
casa e indo, Deus sabe para onde, sozinho.
"Não seja idiota", murmurou para si mesmo. "Você sabe que
Papa não..." Papa ficou preso como um espinho em sua garganta
e ele engoliu em seco.
Ainda assim, ele tirou a mão da trava e se virou. Ele esperaria
um quarto de hora, ele decidiu. Se algo terrível fosse acontecer,
provavelmente seria rápido. Ele não podia permanecer no
minúsculo jardim da frente, muito menos se esgueirar sob as
janelas. Ele contornou o jardim e seguiu pela lateral da casa, em
direção aos fundos.
O quintal era considerável, com uma horta, canteiros já
preparados para o próximo plantio, mas ainda exibindo uma
franja de repolhos. Um pequeno galpão para cozinhar ficava no
531

final do quintal, e havia uma parreira de um lado, com um banco


sob ela. O banco estava ocupado por Amaranthus, que segurava
o pequeno Trevor contra seu ombro, dando tapinhas em suas
costas de uma forma profissional.
"Oh, olá", disse ela, avistando William. "Onde está seu amigo?"
"Lá dentro", disse ele. "Conversando com lorde John. Eu pensei
que deveria apenas esperar por ele... mas eu não desejo
incomodá-la." Ele fez menção de se virar, mas ela o deteve,
levantando a mão por um momento antes de retomar os tapinhas.
"Sente-se", disse ela, olhando-o com interesse. "Então você é o
famoso William. Ou devo chamá-lo de Ellesmere?"
"De fato. E não, você não deve." Ele sentou-se cautelosamente
ao lado dela. "Como está o amiguinho?"
"Extremamente cheio", ela disse, com uma pequena careta. "A
qualquer minuto... opa, lá vai ele." Trevor havia emitido um
arroto alto, acompanhado por um jorro de leite aguado que
escorreu por cima do ombro de sua mãe. Aparentemente, essas
explosões eram comuns; William viu que ela havia colocado um
guardanapo sobre o banyan para recebê-lo, embora o pano
parecesse inadequado para o volume da produção de Trevor.
"Dê-me isso, sim?" Amaranthus mudou a criança habilmente de
um ombro para o outro e acenou com a cabeça em direção a
outro pano amassado que estava no chão perto de seus pés.
William o pegou com cuidado, mas ele provou estar limpo – por
enquanto.
"Ele não tem uma ama?", ele perguntou, entregando o pano.
"Ele tinha", disse Amaranthus, franzindo a testa ligeiramente
enquanto enxugava o rosto da criança. "Eu a despedi."
"Embriaguez?", perguntou ele, lembrando-se do que lorde John
dissera sobre a cozinheira.
"Entre outras coisas. Bêbada de vez em quando – muitas vezes
– e suja em suas maneiras."
"Suja como uma imundície, ou... hã... sem meticulosidade em
suas relações com o sexo oposto?"
532

Ela riu, apesar do assunto.


"Ambos. Se eu já não soubesse que você era filho de lorde John,
essa pergunta teria deixado isso claro. Ou, melhor", ela
emendou, juntando a banyan mais perto de si, "a formulação
dela, em vez da própria pergunta. Todos os Greys – todos
aqueles que conheci até agora – falam assim."
"Eu sou o enteado de Sua Senhoria", ele respondeu calmamente.
"Qualquer semelhança de linguagem deve, portanto, ser uma
questão de exposição, em vez de herança."
Ela fez um pequeno ruído interessado e olhou para ele, uma
sobrancelha clara levantada. Seus olhos eram daquela cor
mutável entre cinza e azul, ele viu. Agora mesmo, eles
combinavam com as pombas cinzentas bordadas em seu banyan
amarelo.
"Isso é possível", disse ela. "Meu pai diz que uma espécie de
tentilhão aprende suas canções com os pais; se você tirar um ovo
de um ninho e colocá-lo em outro a alguns quilômetros de
distância, o filhote aprenderá as canções dos novos pais, em vez
dos que botaram o ovo."
Reprimindo cortesmente o desejo de perguntar por que alguém
deveria se preocupar com tentilhões de alguma forma, ele
apenas assentiu.
"Você não está com frio, senhora?" ele perguntou. Eles estavam
sentados ao sol e o banco de madeira estava quente sob suas
pernas, mas a brisa que soprava em sua nuca era fria, e ele sabia
que ela não estava usando nada além de uma camisola sob o
banyan. O pensamento trouxe de volta uma vívida lembrança de
sua primeira visão dela, seios leitosos e mamilos proeminentes
em exibição, e ele desviou o olhar, tentando pensar
instantaneamente em outra coisa.
"Qual é a profissão do seu pai? ", ele perguntou ao acaso.
"Ele é um naturalista – quando pode se dar ao luxo de ser",
respondeu ela. "E não, não estou com frio. Sempre está muito
quente na casa, e não acho que a fumaça da lareira seja boa para
Trevor; isso o faz tossir."
533

"Talvez a chaminé não esteja funcionando corretamente. Você


disse, quando pode se dar ao luxo de ser. O que seu pai faz
quando ele não pode se dar ao luxo de perseguir seus... hã ...
interesses particulares?"
"Ele é um livreiro", disse ela, com um leve tom de desafio. "Na
Filadélfia. Foi lá que conheci Benjamin", acrescentou ela, com
um tom quase imperceptível na voz. "Na loja do meu pai." Ela
virou a cabeça ligeiramente, observando para ver o que ele
achava disso. Ele desaprovaria a conexão, conhecendo-a agora
como filha de um comerciante? Provavelmente não, ele pensou
ironicamente. Sob as circunstâncias.
"Você tem minhas mais profundas condolências pela perda de
seu marido, senhora", disse ele. Ele se perguntou o que ela sabia
– ou melhor, o que lhe foi dito – sobre a morte de Benjamin, mas
parecia indelicado perguntar. E seria melhor descobrir o que
papai e tio Hal sabiam sobre isso agora, antes de entrar em
território desconhecido.
"Obrigado." Ela desviou o olhar, seus olhos baixos, mas ele viu
sua boca – uma boca bem bonita – se comprimir de uma forma
que sugeria que seus dentes estavam cerrados.
"Malditos Continentais!", disse ela, com violência repentina. Ela
ergueu a cabeça e ele viu que, longe de estar cheios de lágrimas,
seus olhos faiscavam de raiva. "Malditos sejam eles e sua
filosofia republicana idiota! De todas as tolices obstinadas,
confusas e traiçoeiras... Eu..." Ela se interrompeu de repente,
percebendo o susto dele.
"Eu imploro seu perdão, meu senhor", ela disse rigidamente.
"Eu... fui dominada pelas minhas emoções."
"Muito... adequado", disse ele sem jeito. "Quero dizer, bastante
compreensível, dadas as... hum... circunstâncias." Ele olhou de
soslaio para a casa, mas não houve som de portas se abrindo ou
vozes levantadas em despedida. "Mas me chame de William –
somos primos, não somos?"
Ela sorriu completamente com isso. Ela tinha um sorriso
adorável.
534

"Então nós somos. Você deve me chamar de prima Amaranthus,


então – é uma planta", ela acrescentou, com o ar um pouco
resignado de alguém frequentemente obrigado a dar essa
explicação. "Amaranthus retroflexus. Da família
Amaranthaceae. Comumente conhecido como bredo."
Trevor, que até este ponto estava empoleirado no joelho de sua
mãe, arregalando os olhos estupidamente para William, agora
fez um barulho urgente e estendeu a mão em sua direção.
Temendo que a criança escapasse das garras de sua mãe e caísse
de cara no caminho de tijolos, William agarrou-o pela cintura e
içou-o sobre o próprio joelho, onde o menino ficou, balançando
e gritando, sorrindo para o rosto de William. Apesar de si
mesmo, William sorriu de volta. O menino era bonito, quando
não gritava, com cabelos escuro e macio e os olhos azul-claros
comuns aos Grey.
"E aí, Trev?", disse ele abaixando a cabeça e fingindo dar uma
cabeçada na criança, que riu e agarrou seus cabelos.
"Ele se parece muito com Benjamin", disse ele, tirando as
orelhas das mãos de Trevor. "E com meu tio. Espero não lhe
causar dor ao dizer isso", ele acrescentou, de repente inseguro.
Ela balançou a cabeça, porém, e seu sorriso tornou-se triste.
"Não. É bom que ele se pareça com o pai. Seu tio suspeitava de
mim um pouco, eu acho. Casamos com bastante pressa",
explicou ela, em resposta ao olhar indagador de William, "e
embora Benjamin tenha escrito para contar a seu pai sobre o
casamento, sua carta aparentemente não chegou à Inglaterra
antes de Sua Graça partir para as colônias. Então, quando
descobri que Sua Graça estava na Filadélfia e eu mesma escrevi
para ele... "
Ela deu de ombros graciosamente e olhou para a casa.
"Fale-me sobre o seu amigo", disse ela. "Ele é índio?"
William sentiu um peso repentino voltar, um peso que ele havia
perdido sem perceber nos últimos minutos.
"Sim", ele disse. "A mãe dele era meio índia, meio francesa, ele
diz. Embora eu não possa dizer a que nação ela possa pertencer.
535

Ela morreu quando ele era pequeno, e ele foi criado em um


orfanato católico em Quebec."
Amaranthus estava interessada. Ela se inclinou para frente,
olhando para a casa.
"E o pai dele?", ela perguntou. "Ou ele sabe alguma coisa sobre
o pai?" William olhou involuntariamente para a casa novamente,
mas tudo estava em silêncio.
"Quanto a isso", disse ele, tateando em busca de algo para dizer
que não fosse mentira, mas ainda algo aquém da verdade
completa, "é uma longa história – e não é minha história para
contar. Tudo o que posso dizer é que seu pai era um soldado
britânico."
"Eu reparei nos cabelos dele", disse Amaranthus, sorrindo e
mostrando suas covinhas. "Muito marcante." Ela olhou para a
casa além dele e estendeu a mão para pegar o bebê de volta.
"Você vai ficar com Sua Senhoria?"
"Acho que não." Ainda assim, a ideia de estar em casa – mesmo
que o lar fosse um lugar onde ele nunca tinha estado antes – o
varreu com um desejo repentino. Aparentemente, Amaranthus
percebeu isso, pois ela se inclinou na direção dele e colocou a
mão gentilmente sobre a dele.
"Você não vai ficar – só um pouco? Eu sei que o tio John
gostaria; ele sente muito a sua falta. E eu gostaria de conhecer
você melhor."
A simples sinceridade dessa declaração o comoveu.
"Eu... eu gostaria", ele disse sem jeito. "Eu não... isto é, pode
depender do meu amigo. Após sua conversa com meu pai."
"Eu percebo." Ela acariciou Trevor, alisando seus cabelos
macios e aconchegando-o em seu ombro. William sentiu uma
pontada repentina de inveja ao ver isso. Amaranthus, porém,
levantou-se e ficou balançando com a criança em seus braços,
seus próprios cabelos claros balançando com a brisa enquanto
ela olhava para a casa.
"Eu gostaria de entrar, mas não quero incomodá-los. Eu me
536

pergunto o que pode estar demorando tanto?"


537

32

LHUDE SING CUCCU260

JOHN GREY FICOU PARADO por um momento, piscando


para a porta pela qual seu filho acabara de desaparecer, e
sentindo logo atrás dele o enorme dilema empoleirado em uma
pequena cadeira dourada. Sem a menor noção do que poderia
acontecer a seguir, ele se virou e disse a única coisa possível nas
circunstâncias.
"Você gostaria de um pouco de brandy261, Sr. Cinnamon?"
O jovem levantou-se imediatamente, gracioso apesar de seu
tamanho e a despeito da expressão de profunda ansiedade
estampada em suas feições largas. A mistura de medo e
esperança nos olhos de John Cinnamon apertou o coração de
Grey, e ele colocou a mão suavemente no braço do jovem,
virando-o em direção à peça de mobiliário mais resistente
disponível, uma cadeira de braços largos com uma sólida
estrutura de carvalho.
"Sente-se", disse ele, apontando para o objeto. "E deixe-me
pegar algo para você beber. Atrevo-me a dizer que você precisa
disso." Certamente que sim, pensou ele, dirigindo-se à porta que
dava para a cozinha. O que, em nome de Deus, devo dizer a ele?
Nem o tempo gasto em encontrar brandy, nem o cerimonioso ato
de servi-lo forneceram-lhe qualquer resposta. Ele se sentou na
poltrona listrada de verde e pegou seu brandy, sentindo uma
mistura peculiar de consternação e alegria.

260
Cante alto cuco!, verso da canção medieval, de autoria incerta, Sumer is icumen in (O verão está
chegando – também conhecida como Canção do Cuco), na linguagem da época, muito diferente do
inglês moderno. A referência ao cuco pode ser porque essa ave coloca seu ovo no ninho de outros
pássaros, para que sejam chocados e cuidados por outros pais.
261
Todo conhaque é um brandy – destilado de vinho, altamente alcoólico, até 60% de graduação. Nem
todo brandy é conhaque (ou cognac, na grafia francesa). Para ser conhaque, deve ser produzido na região
de Cognac, na França.
538

"Estou muito feliz em encontrá-lo novamente, sr. Cinnamon",


disse ele, sorrindo. "Eu o vi pela última vez na idade de seis
meses ou mais, eu acho. Você cresceu."
Cinnamon corou um pouco com isso – uma melhora em relação
à palidez com que ele entrou na sala – e balançou a cabeça
desajeitadamente.
"Eu... obrigado", ele desabafou. "Por cuidar do meu bem-estar
todos esses anos."
Grey ergueu a mão em uma breve dispensa, mas perguntou,
curioso: "Quantos anos já se passaram? Quantos anos você
tem?"
"Vinte, senhor – ou devo chamá-lo de meu senhor ou de
Excelência?", ele perguntou, a ansiedade ainda evidente.
"Senhor está muito bem", Grey assegurou-lhe. "Posso perguntar
como você se familiarizou com o meu... com o William?"
Ter uma história simples para contar parecia relaxar um pouco
o jovem e, quando ele terminou tudo, o brandy em seu copo
havia se reduzido a resíduos de âmbar e seus modos estavam
substancialmente menos ansiosos. Com o tamanho de Cinnamon
em mente, Grey o serviu com uma mão generosa.
Manoke, ele pensou, com uma mistura de exasperação e
diversão. Não adianta ficar com raiva; Manoke fazia suas
próprias regras e sempre fez. Ao mesmo tempo, porém... Apesar
da natureza intermitente e casual de seu relacionamento, Grey
confiava no índio mais do que em qualquer pessoa, com exceção
de seu próprio irmão ou Jamie Fraser. Manoke não colocaria
Cinnamon em seu encalço por mal; ou ele pensava que
Cinnamon provavelmente era seu filho e, portanto, tinha o
direito de saber disso – ou por ter encontrado William quando
adulto, ele pensou que Grey poderia precisar de outro filho.
Talvez ele tenha feito isso, ele pensou, com um pequeno aperto
na barriga. Se William escolhesse lidar com o problema de sua
paternidade simplesmente desaparecendo... ou mesmo se não...
mas não. Não daria certo, concluiu ele, com uma surpreendente
sensação de pesar.
539

"Estou feliz que você esteja aqui, sr. Cinnamon", disse ele, os
olhos no brandy enquanto servia outro copo para o jovem.
"Devo começar me desculpando."
"Oh não!" Cinnamon explodiu, sentando-se ereto. "Eu nunca
esperaria que você – quero dizer, não há nada pelo que se
desculpar."
"Sim, existe. Eu deveria ter escrito um breve relato de sua
situação quando o coloquei sob os cuidados dos irmãos católicos
em Gareon, em vez de simplesmente deixá-lo lá com nada além
de um nome262. No entanto, é difícil", acrescentou ele com um
sorriso, "olhar para uma criança de seis meses e imaginar o...
hã... o resultado da passagem do tempo. De alguma forma, nunca
se pensa que as crianças vão crescer." Ele teve uma visão
passageira de Willie com a idade de dois anos e meio, pequeno
e feroz - e já começando a se parecer com seu pai verdadeiro.263
Cinnamon olhou para suas mãos muito largas, apoiadas nos
joelhos – e então, como se não pudesse evitar, olhou para a mão
esguia de Grey, ainda envolvendo a garrafa de brandy. Então ele
olhou para o rosto de Grey, em busca de parentesco.
"Você se parece com seu pai", disse Grey, encontrando os olhos
do jovem diretamente. "Eu gostaria de ser aquele homem – tanto
por você quanto por mim." Houve um silêncio profundo na sala.
O rosto de Cinnamon ficou impassível e continuou assim. Ele
piscou uma ou duas vezes, mas não revelou nada do que sentia.
Finalmente, ele acenou com a cabeça e respirou fundo, num
suspiro que foi às raízes de sua alma.
"Você pode... você pode... me falar sobre meu pai, senhor?"
Bem, era isso, pensou Grey. Ele percebeu as escolhas
instantaneamente: reivindicar o jovem como seu ou dizer-lhe a
verdade. Mas quanto da verdade?
O problema era que a existência de Cinnamon não era
puramente sua própria preocupação; havia outras pessoas

262
Fatos ocorridos em Costume.
263
Prisioneiro cap 43 - Hal e Lord John estão nas cerimônias fúnebres do Rei George II. Quando Lord
John pensa no sucessor do rei, ele se lembra da imagem de William pequeno e como o rosto de Jamie
ficou iluminado ao vê-lo. É quando ele tem certeza que Jamie é pai de William.
540

envolvidas; Grey tinha o direito de se intrometer em seus


assuntos sem consulta ou permissão? Mas ele precisava dizer
algo ao menino, pensou. E estendeu a mão para seu copo.
"Ele era um soldado britânico, como Manoke lhe disse”, disse
ele com cuidado. "Sua mãe era meio francesa e meio...
infelizmente, não tenho ideia da nação de origem do outro
progenitor. "
"Assiniboine, eu sempre pensei", Cinnamon me disse. "Quer
dizer, eu sabia que uma parte de mim devia ser de origem índia,
e olhava para os homens que passaram por Gareon para ver se...
Há muitos assiniboine naquela parte do país. Eles costumam ser
altos e... " Sua grande mão se ergueu e gesticulou meio
conscientemente para a largura de seus ombros.
Grey acenou com a cabeça, surpreso, mas satisfeito que o jovem
estava recebendo a notícia com calma.
"Eu a vi, sua mãe", disse ele, e tomou outro gole do brandy. "Só
uma vez – mas ela era na verdade alta para uma mulher; talvez
uns três centímetros mais alta do que eu. E muito bonita", ele
acrescentou suavemente.
"Oh." Foi um pouco mais do que um suspiro de reconhecimento,
mas Grey ficou surpreso – e comovido – ao ver o rosto do
menino mudar. Por um instante, Grey se lembrou da expressão
no rosto de Jamie Fraser quando ele recebeu a comunhão das
mãos de um padre irlandês, quando os dois foram para a Irlanda
em busca de um criminoso. Um olhar de reverência, de paz
agradecida.264
"Ela morreu de varíola, em uma epidemia. Eu... hã... comprei
você de sua avó pela soma de cinco guinéus, dois cobertores de
lã e um pequeno barril de rum. Ela era francesa", ele
acrescentou, em uma mistura de explicação e desculpas, e
Cinnamon contraiu levemente os lábios.

264
A única ocasião em que Lord John e Jamie estiveram juntos na Irlanda foi durante os acontecimentos
de Prisioneiro. Não existe nenhuma ocasião semelhante a essa descrita no livro. O mais próximo é no
capítulo 19 desse livro, em que Jamie faz sua confissão a um padre, mas não existe comunhão, nem
hóstia, nem mesmo Lord John está presente nesse momento. Portanto... podemos só supor que esse foi
algo que ocorreu em algum outro momento não descrito no livro.
541

"E ... meu pai?" Ele se inclinou para frente, as mãos nos joelhos,
atento. "Você vai me dizer o nome dele? Por favor", ele
acrescentou, um pouco da ansiedade voltando.
Grey hesitou, com as imagens vívidas do que tinha acontecido
quando William descobriu sua verdadeira linhagem fresca em
sua mente – mas as situações eram bem diferentes, ele disse a si
mesmo, e em plena consciência ...
"O nome dele é Malcolm Stubbs265", disse ele. "Você, hum, não
herdou sua estatura dele."
Cinnamon olhou para ele por um instante confuso, então,
percebendo a alusão, deu uma risada breve e chocada. Ele
colocou a mão sobre a boca em constrangimento, mas vendo que
Grey não estava desconcertado, abaixou-a.
"Você disse: o nome dele é, senhor. Ele está... vivo, então?"
Toda a esperança – e todo o medo – com que entrara em casa
estavam de volta em seus olhos.
"Ele estava, a última vez que ouvi falar dele, embora isso tenha
ocorrido há mais de um ano. Ele mora em Londres, com a esposa
dele."
"Londres", Cinnamon sussurrou, e balançou a cabeça de um lado
para o outro, como se Londres certamente não pudesse ser um
lugar real.
"Como eu disse, ele foi ferido quando tomamos Quebec.
Gravemente ferido – ele perdeu um pé e a parte inferior da perna
por causa de uma bala de canhão; fiquei surpreso por ele ter
sobrevivido, mas ele teve grande resiliência. Tenho certeza de
que ele conseguiu passar essa característica para você, sr.
Cinnamon." Ele sorriu calorosamente para o jovem índio. Ele
não tinha bebido tanto brandy quanto o jovem, mas o suficiente.
Cinnamon acenou com a cabeça, engoliu em seco e, em seguida,
abaixando a cabeça, olhou para o padrão no tapete turco por
alguns momentos. Finalmente, ele limpou a garganta e olhou
para cima, decidido.

265
É personagem nos contos Assunto, Costume e Sitiados.
542

"Você diz que ele é casado, senhor. Eu não imagino que sua
esposa - esteja ciente da minha existência."
"Cem contra um", Grey assegurou-lhe. Ele olhou para o jovem
com cuidado. Ele poderia realmente partir para Londres? No
momento, ereto e robusto, ele parecia capaz de qualquer coisa.
Grey tentou – e falhou – imaginar o que a esposa de Malcolm
faria, caso John Cinnamon aparecesse em sua porta em uma bela
manhã.
"Minha culpa, eu espero", ele murmurou baixinho, pegando a
garrafa. "Outro gole, sr. Cinnamon? Eu deveria aconselhar isso,
realmente."
"Eu - sim. Por favor." Ele inalou o brandy e pousou o copo com
ar de decisão. "Fique certo, senhor, não desejo fazer nada que
possa causar o mínimo desconforto a meu pai ou à esposa dele."
Grey tomou um gole cauteloso de seu próprio copo recém-
preenchido.
"Isso é muito atencioso", disse ele. "Mas também bastante
prudente. Posso perguntar se eu realmente provasse ser seu pai
– e deixe-me repetir que lamento o fato de não ser... " Ele ergueu
o copo alguns centímetros e Cinnamon baixou os olhos, mas deu
um breve aceno de reconhecimento. "O que você pretendia
fazer? Ou devo perguntar o que você esperava?"
A boca de Cinnamon abriu, mas depois fechou enquanto ele
considerava. Grey estava começando a ficar impressionado com
os modos do jovem. Deferente, mas nem um pouco tímido;
direto, mas atencioso.
"Na verdade, eu mal sei, senhor", Cinnamon disse por fim. Ele
se recostou um pouco, se acomodando. "Não esperava, nem
procuro", acrescentou, inclinando a cabeça, "qualquer
reconhecimento ou... ou ajuda material. Suponho que tenha sido
em boa parte curiosidade. Mas mais, talvez, um desejo por
algum senso de... não de pertencimento; seria tolice esperar isso
– mas algum conhecimento de conexão. Só para saber que existe
uma pessoa que compartilha o meu sangue", finalizou com
simplicidade. "E como ele é."
543

"Oh!", ele disse então, envergonhado. "E, claro, gostaria de


agradecer a meu pai por se preocupar com meu bem-estar." Ele
pigarreou novamente. "Posso pedir, senhor, um favor particular
seu?"
"Certamente", Grey respondeu. Sua mente fora estimulada por
sua própria pergunta – o que uma criança abandonada poderia
buscar de um pai desconhecido? William certamente não queria
nada de Jamie Fraser, mas essa era uma circunstância bem
diferente. William havia conhecido Jamie quando ele era
criança, no entanto conhecê-lo já como um homem
provavelmente provaria ser uma situação bem diferente... E,
além disso, William tinha uma família, uma família adequada,
pessoas que compartilhavam não seu sangue, mas seu lugar no
mundo. Grey tentou – e falhou completamente – imaginar como
devia ser sentir-se totalmente sozinho.
"... se fosse possível escrever tal carta", Cinnamon estava
dizendo, e Grey voltou ao momento presente com um solavanco.
"Enviar uma carta", ele repetiu. "Para Malcolm. Eu... sim, acho
que posso fazer isso. Hã... dizendo o que, se você não se importa
que eu pergunte?"
"Apenas para reconhecer sua gentileza em prover meu bem-
estar, senhor – e para assegurar-lhe meu serviço, caso ele venha
a precisar dele."
"Oh. Sua ... sim, sua bondade..." Cinnamon olhou atentamente
para ele, e Grey sentiu um rubor subir em suas bochechas que
não tinha nada a ver com o brandy. Droga, ele deveria ter
percebido que Cinnamon pensava que Malcolm havia fornecido
os fundos para seu sustento todos esses anos. Considerando que,
na realidade...
"Foi você", Cinnamon disse, surpresa quase cobrindo a
decepção em seu rosto. "Quero dizer, o sr. Stubbs não... "
"Ele não poderia", disse Grey apressadamente. "Como eu disse,
ele estava gravemente ferido, muito gravemente ferido. Ele
quase morreu e foi enviado de volta para a Inglaterra o mais
rápido possível. Verdadeiramente, ele... ele teria sido incapaz..."
544

Incapaz de pensar no filho que ele fez e deixou para trás.


Malcolm nunca mencionou o menino para Grey, nem perguntou
por ele.
"Entendo", disse Cinnamon tristemente. Ele apertou os lábios e
focou seu olhar na cafeteira de prata no aparador. Grey não
tentou falar mais; ele só poderia piorar as coisas.
Finalmente, os olhos de Cinnamon clarearam e ele olhou para
Grey novamente, sério. O jovem tinha olhos escuros muito
bonitos, fundos e ligeiramente oblíquos. Esses tinham vindo de
sua mãe – Grey gostaria de poder dizer isso a ele, mas este não
era o momento para tais detalhes.
"Então eu agradeço, senhor", ele disse suavemente, e curvou-se
profundamente em direção a Grey. "Foi muito generoso da sua
parte prestar tal serviço ao seu amigo."
"Eu não fiz isso por causa de Malcolm", Grey deixou escapar.
Seu copo estava vazio – como isso aconteceu? – e ele o colocou
com cuidado na pesada mesinha central.
Eles se sentaram olhando um para o outro, sem saber bem o que
dizer a seguir. Grey podia ouvir Moira, a cozinheira, falando do
lado de fora; ela frequentemente falava com as fadas no jardim,
mesmo quando não estava bêbada.
O relógio266 sobre a lareira bateu meia hora e Cinnamon
estremeceu de surpresa, virando-se para olhar para ele. Tinha sinos
musicais e uma borboleta mecânica sob uma cúpula de vidro, que
levantava e abaixava suas asas de cloisonné267.
O movimento quebrou o silêncio constrangedor, entretanto, e
quando Cinnamon se virou, ele falou sem hesitação.
"Padre Charles disse que você me deu um nome, quando me
deixou na missão. Você não sabia como minha mãe me
chamava, suponho?"

266
No original carriage clock, que é um pequeno relógio desenhado para viagens. Seria, na realidade, ‘do
futuro’, já que esse tipo de relogio só foi desenvolvido no começo do século XIX.
267
Cloisonné é uma antiga técnica de trabalho em esmalte na qual tiras finas de metal são coladas sobre
uma superfície, formando um desenho composto por vários pequenos compartimentos preenchidos com
pasta de esmalte vitrificado.
545

"Ora, não", disse Grey, desconcertado. "Eu não sabia."


"Então foi você quem me chamou de John?" Um leve sorriso
apareceu no rosto de Cinnamon. "Você me deu seu próprio
nome?"
Grey sentiu um sorriso em resposta em seu próprio rosto e
ergueu um ombro de maneira depreciativa.
"Oh, bem...", ele disse. "Eu gostei de você."
546

33

MUITO POR ONDE ESCOLHER 268

O QUE QUER QUE PAPA E JOHN Cinnamon estivessem


fazendo, eles estavam demorando muito para fazer.
Depois de alguns minutos, durante os quais Trevor uivou
incessantemente, Amaranthus pedia desculpas e retirou-se para
casa em busca de roupas limpas.
Sem ocupação ou conhecidos na cidade ou no acampamento
militar, e relutante em entrar pessoalmente na casa, William se
viu sem nada para fazer. A última coisa que ele queria era
encontrar algum conhecido, de qualquer forma. Ele puxou o
chapéu preto macio e flexível bem para baixo sobre a testa e se
forçou a vaguear, em vez de caminhar apressado, pela cidade em
direção ao acampamento. O local estaria cheio de soldados
rasos, fornecedores de provisões e tropas de apoio; seria fácil
passar despercebido.
"William!"
Ele enrijeceu com o grito, mas sufocou o impulso momentâneo
de correr. Ele reconheceu aquela voz – assim como o dono dela
sem dúvida reconheceu sua altura e figura. Ele se virou com
relutância para cumprimentar seu tio, o duque de Pardloe, que
emergira de uma casa logo atrás dele.
"Olá, tio Hal", disse ele, com a graça que conseguiu reunir. Ele
supôs que não importava; lorde John contaria a seu irmão sobre
a presença de William e John Cinnamon, em qualquer caso.
"O que você está fazendo aqui?", seu tio perguntou –
suavemente – para ele. Seu olhar penetrante captou tudo, desde
as botas sujas de lama de William até a mochila manchada em

268
O título original é “Spoilt for Choice”, ao pé da letra seria ‘estragado pela escolha’. Mas é uma
expressão que quer dizer ‘não saber o que escolher por ter muitas opções’.
547

seu ombro e a capa gasta sobre o braço. "Veio se alistar?"


"Haha," William disse friamente, mas se sentiu imediatamente
melhor. "Não. Eu vim com um amigo, que tinha negócios no
acampamento."
"Viu seu pai?"
"Não realmente." Ele não elucidou e, após uma pausa pensativa,
Hal sacudiu sua própria capa militar cinza e a jogou sobre os
ombros.
"Vou descer ao rio para tomar um pouco de ar antes do jantar.
Vem comigo?"
William encolheu os ombros. "Por que não?"
Eles saíram da cidade e desceram as ribanceiras sem serem
abordados, e William sentiu o aperto entre as omoplatas
diminuir. Seu tio não se entregava a conversas inúteis e não se
importava nem um pouco com o silêncio. Eles chegaram à beira
da praia estreita sem trocar uma palavra e caminharam
lentamente por entre pinheiros e arbustos de chá-dos-apalaches
até a areia limpa e sólida da zona das marés.
William firmou os pés com muita precisão, gostando de deixar
impressões na areia cinza lamacenta. O céu de verão era vasto e
azul acima deles, um sol amarelo escaldante descendo
lentamente sobre as ondas. Eles seguiram a curva da praia,
terminando em uma pequena ponta de cascalho arenoso habitada
por um bando de aves, os ostraceiros, com seus bicos cor de
laranja, que os olharam com frieza e cederam espaço com má
vontade, virando as cabeças e olhando furiosamente enquanto
eles gingavam de lado.
Eles ficaram ali por alguns minutos, olhando para a água. "Você
sente falta da Inglaterra?", Hal perguntou abruptamente.
"Às vezes", William respondeu honestamente. "Mas não penso
muito nisso", acrescentou, com menos honestidade.
"Eu sinto." O rosto de seu tio parecia relaxado, quase
melancólico na luz fraca. "Mas você não tem mulher, nem
filhos. Nenhum negócio próprio, ainda."
548

"Não."
Os sons dos escravos trabalhando nos campos atrás deles ainda
eram audíveis, mas abafados pelo ritmo das ondas a seus pés, a
passagem das nuvens silenciosas acima de suas cabeças.
O problema do silêncio era que permitia que os pensamentos em
sua cabeça adquirissem uma insistência cansativa, como o tique-
taque de um relógio em uma sala vazia. A companhia de
Cinnamon, por mais perturbadora que fosse ocasionalmente,
permitiu que ele escapasse deles quando precisava.
"Como alguém faz para renunciar a um título?"
Ele não tinha a intenção de perguntar isso ainda, e ficou surpreso
ao ouvir as palavras saírem de sua boca. O tio Hal, por outro
lado, não parecia surpreso.
"Você não pode."
William olhou furioso para seu tio, que ainda estava olhando
imperturbável rio abaixo em direção ao mar, o vento puxando
mechas dos seus cabelos escuros presos na nuca.
"O que você quer dizer, eu não posso? É da conta de alguém eu
renunciar ao meu título ou não?"
Tio Hal olhou para ele com uma impaciência afetuosa.
"Não estou falando retoricamente, idiota. Eu quero dizer isso
literalmente. Você não pode renunciar a um título de nobreza.
Não há meios estabelecidos em lei ou nos costumes para fazê-
lo; logo, isso não pode ser feito."
"Mas você... ", William parou, perplexo.
"Não, eu não fiz isso", disse seu tio secamente. "Se eu pudesse,
na época, eu teria feito, mas não pude, então eu não fiz. O
máximo que pude fazer foi parar de usar o título de duque e
ameaçar mutilar fisicamente qualquer um que o usasse como
referência ou endereçado para mim. Levei vários anos para
deixar claro que eu falava a sério", acrescentou ele sem
rodeios.269

269
Esses fatos são comentados em Irmandade.
549

"Mesmo?", William perguntou cinicamente. "Quem você


mutilou?"
Ele realmente supôs que seu tio falava retoricamente, e ficou
surpreso quando o antigo e atual duque franziu a testa no esforço
de lembrar.
"Oh... vários escrevinhadores – eles são como baratas, você
sabe; esmague um e os outros correm para as sombras, mas
quando você se vira, há uma multidão deles de volta,
banqueteando-se alegremente com sua carcaça e espalhando
sujeira por sua vida."
"Alguém já disse que você tem jeito com as palavras, tio?"
"Sim", seu tio disse secamente. "Mas, além de socar alguns
jornalistas, eu desafiei George Mumford – ele é o marquês de
Clermont agora, mas não era então –, Herbert Villiers, visconde
Brunton e um cavalheiro chamado Radcliffe. Ah, e um coronel
Phillips, do trigésimo quarto – primo do conde Wallenberg."
"Duelos, você quer dizer? E você lutou com todos eles?"
"Certamente. Bem, não com Villiers, porque ele pegou uma
friagem no fígado e morreu antes que eu pudesse, mas por outro
lado... mas isso não vem ao caso. " Hal se conteve e sacudiu a
cabeça para limpá-la. A noite estava chegando e a brisa terrestre
era forte. Ele enrolou a capa sobre o corpo e acenou com a
cabeça em direção à cidade.
"Vamos lá. A maré está subindo e eu jantarei com o General
Prévost em meia hora. "
Eles caminharam lentamente pelo crepúsculo, a grama áspera
raspando em suas botas.
"Além disso", seu tio continuou, de cabeça baixa contra o vento,
"eu tinha outro título – um sem mácula. Recusar-me a usar o
título de Pardloe significava que eu também me recusava a usar
a renda das propriedades do título, mas isso não significava
quase nada em termos de minha vida diária, exceto um pouco de
revirar os olhos da sociedade. Meus amigos em grande parte
continuaram sendo meus amigos, fui recebido na maioria dos
lugares a que estava acostumado a ir e – o que é importante –
550

continuei fazendo o que pretendia fazer: formar e comandar um


regimento. Você...", ele olhou para William, passando um olhar
avaliador sobre ele do chapéu de abas largas às botas rústicas.
"Sem falar muito sobre isso, William – pode ser mais fácil
perguntar o que você quer fazer, em vez de perguntar como não
fazer o que não quer."
William parou, fechou os olhos e apenas ficou parado, ouvindo
a água por alguns momentos de abençoado alívio do tique-taque
dos pensamentos. Absolutamente nada estava acontecendo
dentro de sua cabeça.
"Certo", ele disse finalmente, respirando fundo e abrindo os
olhos. "Você nasceu sabendo que era isso o que queria fazer?",
ele perguntou curiosamente.
"Acho que sim", respondeu seu tio lentamente, começando a
andar novamente. "Não me lembro de ter pensado em ser nada
além de um soldado. Quanto a querer isso, porém... eu não acho
que essa pergunta nunca me ocorreu. "
"Exatamente", disse William, com certa secura. "Você nasceu
em uma família onde é isso que o filho mais velho faz, e
acontece que isso se ajustou para você. Fui criado acreditando
que meu dever sagrado era cuidar de minhas terras e inquilinos,
e nunca me ocorreu por um instante que o que eu queria seria
um aspecto da situação – não mais do que aconteceu com você.”
"O fato é", continuou ele, tirando o chapéu e colocando-o
debaixo do braço para evitar que fosse levado pelo vento, "que
eu não me sinto com direito – por assim dizer – a qualquer um
dos títulos para os quais eu supostamente nasci... Além disso..."
Um pensamento o atingiu, e ele lançou um olhar estreito para o
tio. "Você disse que não aceitava a renda do ducado. Eu não
suponho que você também negligenciou o cuidado das
propriedades das quais você não estava lucrando?"
"Claro que n...", Hal se interrompeu e lançou um olhar para
William, cujo aborrecimento foi temperado por um certo
respeito. "Quem ensinou você a pensar, garoto? Seu pai?"
"Eu imagino que lorde John pode ter tido alguma pequena
551

influência", William disse educadamente. Suas entranhas


tinham revirado – como acontecia com regularidade monótona
recentemente - com a menção de seu pai de outrora. Ele não
conseguia esquecer o olhar de ansiedade temerosa nos olhos de
John Cinnamon... oh, que inferno, é claro que ele poderia
esquecer. Era uma questão de vontade, só isso. Ele empurrou a
imagem mentalmente para o lado – a segunda melhor opção.
"Mas você não renunciou de fato às suas responsabilidades,
embora não lucrasse com elas. Você está me dizendo, porém,
que não poderia ter feito isso. Não há nenhuma circunstância em
que um par270 do reino possa deixar de ser um par?"
"Bem, não por seu próprio capricho, não. Veja bem, um título
de nobreza é o presente de um monarca agradecido. Um
monarca que deixa de ser grato pode de fato privar um par de
seus títulos, embora eu duvide que qualquer monarca possa fazer
isso sem o apoio da Câmara dos Lordes. Os colegas não gostam
de se sentir ameaçados – raramente acontece com qualquer um
deles hoje em dia, eles não estão acostumados com isso",
acrescentou, sarcasticamente.
"Mesmo assim, não é uma questão de capricho real, também. Os
motivos para revogar um título de nobreza são bastante
limitados, creio eu. O único que vem à mente é se engajar em
uma rebelião contra a Coroa."
"Não me diga..."
William havia falado levianamente – ou pretendia –, mas Hal
parou e lançou um olhar penetrante para o sobrinho.
"Se você considera a deslealdade e a traição de seu rei, seu país
e sua família um meio adequado de resolver suas dificuldades
pessoais, William, então talvez John não o tenha ensinado tão
bem quanto eu supunha."
Sem esperar por uma resposta, ele se virou e saiu cambaleando
por entre os canteiros de algas aquáticas apodrecidas, deixando
pegadas amorfas na areia.

270
Um Par do Reino é um membro do Pariato, um sistema de honras ou de nobreza em vários países.
Na Grã-Bretanha, inclui os Duques, Marqueses, Condes e Viscondes.
552

-.-.-

WILLIAM PERMANECEU perto da costa por mais algum


tempo. Não pensando. Não sentindo muito de nada também.
Apenas observando as correntes se movendo através do rio,
lavando seu cérebro cansado. Um esquadrão de pelicanos
marrons com cabeças brancas desceu flutuando no céu,
mantendo a formação enquanto deslizavam 60 centímetros
acima da superfície do a água. Evidentemente, não vendo nada
de interessante, eles se ergueram novamente como um só e
navegaram de volta sobre os pântanos em direção ao mar aberto.
Não admira que as pessoas fujam para o mar, pensou ele, com
uma pequena sensação de anseio. Para se livrar das pequenas
preocupações da vida diária e escapar das demandas de uma vida
indesejada. Nada além de quilômetros de água sem limites, céu
sem limites.
E comida ruim, enjoo e a chance de ser morto a qualquer
momento por piratas, baleias rebeldes ou, muito mais
provavelmente, pelo clima.
A ideia de baleias rebeldes o fazia rir e a ideia de comida, ruim
ou não, o lembrava de que estava morrendo de fome. Virando-
se para ir embora, ele descobriu que enquanto estava lá
vegetando, um grande crocodilo havia rastejado para fora do
arbusto atrás dele e estava repousando a cerca de um metro de
distância. Ele gritou, e o réptil, assustado e indignado, abriu um
conjunto horripilante de mandíbulas e fez um barulho entre um
rosnado e um arroto enorme.
Ele não tinha ideia de como exatamente tinha feito isso, mas
quando parou, ofegante e encharcado de suor, estava no meio do
acampamento do exército. Com o coração ainda batendo forte,
ele percorreu os corredores organizados das tendas, sentindo-se
mais uma vez seguro em meio aos ruídos normais de um
acampamento se preparando para o jantar, o ar denso com os
cheiros de lenha, terra quente das cozinhas do acampamento,
carne grelhada e ensopado fervente.
553

Ele estava faminto quando voltou à casa de papai, embora nesta


época do verão ainda houvesse luz do dia por mais uma hora,
pelo menos. Ele presumiu que Trevor estaria na cama, apesar da
luz do sol, e caminhou o mais silenciosamente que pôde, usando
a grama úmida ao lado da calçada de tijolos.
Como Trevor – e necessariamente a mãe de Trevor – estava em
sua mente, ele olhou ao redor da lateral da casa e descobriu que
o banco na parreira estava ocupado, certo, mas não por
Amaranthus, com ou sem bebê atado a ela.
"Guillaume!271 ", John Cinnamon o avistou e irrompeu do
caramanchão frondoso com tanta força que espalhou folhas e
uvas perdidas no cascalho.
"John! Como foi?" Ele podia ver o rosto largo de Cinnamon,
brilhando de alegria, e seus órgãos internos murcharam. Papa
aceitara John Cinnamon como filho?
"Oh! Foi... seu pai é um grande, bom homem, Guillaume! Você
tem tanta sorte de tê-lo."
"Eu... há... sim", William disse, um pouco em dúvida. "Mas o
que ele disse..."
"Ele me contou tudo sobre meu pai", disse Cinnamon, e parou
para engolir com a enormidade da palavra. "Meu pai. Ele se
chama Malcolm Stubbs; você já o conheceu?"
"Não tenho certeza", disse William, franzindo a testa em um
esforço para se lembrar. "Tenho certeza de que já ouvi o nome
uma ou duas vezes, mas se já o conheci, deve ter sido quando eu
era bem jovem."
Cinnamon balançou a mão grande, descartando isso. "Ele era um
soldado, um capitão. Ele ficou gravemente ferido na grande
batalha pela cidade de Quebec, nas Planícies de Abraão, sabe?"
"Eu sei sobre a batalha, sim. Mas ele sobreviveu? "
"Sim. Ele mora em Londres." Cinnamon apertou o ombro de
William em um transporte de deleite com o nome, e William
sentiu sua clavícula se mexer.
271
A forma francesa do nome William. Em português seria Guilherme.
554

"Eu percebo. Bem, isso é bom, suponho? "


"Lorde John diz que se eu decidir escrever uma carta, ele fará
com que o capitão Stubbs a receba. Em Londres!" Claramente,
Londres era vizinha da Terra das Fadas e William sorriu para
seu amigo, ao mesmo tempo verdadeiramente feliz por
Cinnamon estar genuinamente emocionado com esta revelação
– e secretamente e vergonhosamente aliviado de que, afinal,
Cinnamon realmente não era o filho natural do Papa.
Foi necessário dar várias voltas pelo quintal, ouvindo o relato
animado de Cinnamon sobre exatamente o que ele havia dito, e
o que lorde John havia dito, e o que ele tinha pensado quando
lorde John disse isso, e ...
"Então você vai escrever uma carta, não é?", William finalmente
conseguiu interrompê-lo o suficiente para perguntar.
"Ah, sim." Cinnamon agarrou sua mão e apertou. "Você vai me
ajudar, Guillaume? Ajude-me a decidir o que dizer?"
"Ai. Sim, claro." Ele recuperou a mão esmagada e flexionou os
dedos suavemente. "Nós vamos. Suponho que isso signifique
que você gostaria de permanecer aqui em Savannah um pouco,
caso haja uma resposta do capitão Stubbs?"
Cinnamon pareceu empalidecer ligeiramente, seja com a ideia
de receber tal resposta, ou com a possibilidade de que ele não
recebesse, mas ele respirou fundo e acenou com a cabeça.
"Sim. Lorde John teve a gentileza de nos convidar para ficar com
ele, mas acho que não seria certo. Eu disse a ele que vou
encontrar trabalho, um pequeno lugar para morar. Oh,
Guillaume, estou tão feliz. Je n’arrive pas à y croire!272"
"Eu também, mon ami", disse William, e sorriu. O deleite de
Cinnamon era contagiante.
"Mas vou dizer uma coisa – vamos ser felizes juntos durante o
jantar. Eu vou cair morto de fome a qualquer minuto. "

272
Eu não posso acreditar nisso. Em francês.
555

34

O FILHO DO MINISTRO

Cordilheira dos Fraser

A CASA DE REUNIÃO, COMO todos haviam começado a


chamar a cabana que serviria como sala de aula, Loja Maçônica,
uma igreja para os serviços Presbiterianos e Metodistas, e um
lugar para a reunião dos quacres, estava agora terminada, e na
tarde daquele dia, a professora relutante, o Venerável Mestre da
Loja e os três pregadores concorrentes se encontraram – com
seus cônjuges representando sua congregação – para inspecionar
e abençoar o lugar.
"Tem cheiro de cerveja", disse a professora nomeada, franzindo
o nariz.
Sim, o cheiro de lúpulo era forte o suficiente para competir com
a fragrância da madeira de pinho crua das paredes e dos novos
bancos, tão recém-cortados que ainda exalavam uma seiva
dourada pálida em alguns lugares.
"Sim", disse o Mestre. "Ronnie Dugan e Bob McCaskill tinham
opiniões divergentes sobre se deveria haver algo para os
pregadores se elevarem além do chão, e alguém chutou o barril."
"Nenhuma grande perda", respondeu o marido da única quacre
praticante na Cordilheira dos Fraser. "A pior cerveja que eu já
bebi desde o pequeno Markie Henderson mijou na tina de sua
mãe e ninguém descobriu antes de a cerveja ser servida."
"Oh, não foi tão ruim", disse o ministro presbiteriano,
presumivelmente tentando seguir o princípio de não julgar o
próximo, mas foi abafado por um murmúrio geral de
concordância.
"Quem a produziu?", perguntou Rachel em voz baixa, olhando
556

por cima do ombro para o caso de o infame cervejeiro estar por


perto.
"Eu fico envergonhado em admitir que forneci o barril", disse o
capitão Cunningham, franzindo a testa, "mas não tenho ideia de
sua fabricação. Veio com alguns dos meus livros de Cross
Creek."
Houve um murmúrio geral de compreensão – pontuado por um
grunhido de desaprovação da Sra. Cunningham – e o tópico da
cerveja foi postergado por um consenso geral tácito.
"Bem, agora." Jamie deu início à reunião, abrindo um de seus
livros sobressalentes, agora dedicado aos negócios da Casa de
Reunião. "Brianna diz que está disposta a ensinar os pequeninos
insetos – hã, os bairns – por duas horas pela manhã, das nove às
onze, então vamos espalhar a informação por aí – ela começará
após a colheita. E se algum dos rapazes e moças mais velhos
ainda não souber ler ou escrever, eles podem vir para aprender
as letras... quando, a nighean?"
"Digamos com hora marcada", respondeu Bree. "E quanto a
lousas – nós temos alguma?"
"Não", respondeu Jamie, e escreveu Lousas - 10, em seu livro-
razão com um lápis.
"Apenas dez?", eu disse, olhando por cima do braço dele.
"Certamente há mais crianças do que isso para ensinar."
"Eles virão assim que tiverem certeza de que Brianna não vai
bater neles", disse Roger, sorrindo para a esposa. "Acho que
podemos descobrir onde conseguir as lousas com Gustav
Grunewald, o mestre-escola da Morávia. Eu o conheço e ele é
um bom camarada. Vou pintar um quadro negro para você usar
até encontrá-las."
"Eu sei onde há um depósito de giz decente", eu entrei na
conversa. "Vou trazer um pouco quando for lá amanhã
procurando por gerânios”.273
"Mesas?" Bree perguntou timidamente, olhando em volta. A
273
Gerânios estão entre as flores usadas para atrair abelhas. Provavelmente, Claire vai procurar mudas de
gerânios para replantá-los e atrair mais abelhas.
557

sala era espaçosa e bem iluminada, com janelas – até agora sem
guarnição – em três das quatro paredes, mas não havia móveis
além dos bancos – aparentemente, quem quer que quisesse
construir um pódio elevado para o pregador havia perdido a
discussão.
"Assim que alguém tiver tempo, mo chridhe. Não vai doer para
elas segurar suas lousas sobre os joelhos por um tempo, e você
não terá mais do que algumas crianças antes do outono. Elas
precisam trabalhar até terminar a colheita, ken." Jamie virou
uma página.
"Negócios da Loja... bem, isso é para como a Loja vai funcionar.
Agora, estamos acostumados – da última vez que tivemos um
local de reunião – a ter a reunião regular da Loja em uma quarta-
feira, mas eu entendo que o capitão aqui gostaria de ter aquela
noite para um serviço religioso?"
"Se isso não o perturba muito, senhor?"
"Nem um pouco", disse Roger, fazendo com que o capitão o
olhasse com severidade. "Você seria mais do que bem-vindo
para se juntar a nós na Loja, é claro, capitão."
Cunningham olhou para Jamie, que assentiu, e o capitão relaxou,
apenas ligeiramente, com uma inclinação de sua própria cabeça.
"Então, a reunião regular da Loja será na terça-feira, e...
tínhamos nos acostumado a usar a cabana como um ponto de
encontro em outras noites, apenas socialmente, sim?"
"Traga seu próprio banco e garrafa", esclareceu Roger. "E um
pedaço de madeira para a lareira."
A Sra. Cunningham bufou em um estilo elegante de uma dama,
indicando o que ela pensava de reuniões sociais de homens
envolvendo garrafas. Eu pensei que ela tinha razão, mas Jamie,
Roger e Ian me garantiram que as noites informais eram uma
grande ajuda para descobrir o que estava acontecendo ao redor
da Cordilheira – e possivelmente fazer algo sobre isso antes que
as coisas saíssem do controle.
"Então." Jamie mudou para uma nova página, esta com o
cabeçalho Igreja em grandes letras pretas, sublinhado. "Como
558

vocês querem administrar os domingos – ou não é domingo para


os Amigos, Rachel?”
"Eles chamam de Primeiro Dia, mas é realmente domingo, sim",
o Jovem Ian acrescentou.
Rachel parecia divertida, mas assentiu com a cabeça.
"Então, vocês três farão um culto – ou reunião", ele acrescentou,
com um aceno de cabeça para Rachel, "todo domingo? Ou vocês
querem alternar?"
Roger e o capitão se entreolharam, hesitantes em dizer qualquer
coisa que pudesse parecer um confronto, mas determinados a
reivindicar tempo e espaço para suas congregações nascentes.
"Eu estarei aqui a cada primeiro dia", Rachel disse calmamente.
"Mas, dada a natureza do encontro dos quacres, acho que talvez
fosse melhor se fosse no final da tarde. Aqueles que participam
do culto no início do dia podem achar útil sentar e contemplar
na quietude de seus corações o que ouviram, ou compartilhar
com outras pessoas."
"Mamãe e eu estaremos lá também", disse Ian com firmeza.
Os dois pregadores pareceram surpresos, mas assentiram.
"Também faremos culto todos os domingos", disse Roger. "O
terceiro mandamento não diz: Deves santificar o dia do Senhor
duas vezes por mês, afinal de contas."
"É verdade", disse o capitão, mas antes que ele pudesse falar
mais, a sra. Cunningham disse o que todos estavam pensando.
"Quem vai primeiro?"
Houve um silêncio desconfortável, que Jamie quebrou cavando
em seu sporran e puxando um xelim de prata, que jogou no ar,
pegou nas costas da mão e bateu com a outra mão sobre ele.
"Cara ou coroa, capitão?"
"Hum..." Pego de surpresa, Cunningham hesitou, e eu vi sua mãe
começar a balbuciar coroa – bastante inconscientemente, eu
pensei. "Cara", disse ele com firmeza. Jamie ergueu a mão para
espiar a moeda e a mostrou ao grupo.
559

"Cara, então. Você escolhe primeiro ou segundo, então,


capitão?"
"Você sabe cantar, senhor?". Roger perguntou, assustando
Cunningham novamente. "Eu... sim", disse ele, surpreso. "Por
quê?"
"Eu não posso", disse Roger, tocando a garganta para ilustrar.
"Se você for primeiro, poderá deixá-los com a mente elevada
com um hino de despedida. Então, eles serão mais receptivos,
talvez, ao que tenho a dizer." Ele sorriu, e houve uma pequena
onda de risos, mas eu não acho que ele estivesse brincando.
Jamie acenou com a cabeça.
"Não precisa se preocupar em ser o primeiro ou o último,
capitão. O entretenimento é escasso."

-.-.-

JOHN QUINCY MYERS, durante sua curta estada conosco,


opinou que os habitantes das montanhas tinham tanta falta de
oportunidades de entretenimento que eles viajariam trinta
quilômetros para ver a tinta secar. Esse pensamento fazia parte
de sua modesta renúncia de ele próprio ser divertido, mas ele
não estava errado.
Um novo pregador teria sido suficiente para atrair uma multidão.
Dois eram inéditos e dois pregadores representando diferentes
faces do Cristianismo...! Enquanto eu estava com Jamie do lado
de fora da nova casa de reunião, esperando o início do serviço
do capitão Cunningham, ouvi apostas murmuradas atrás de mim
– primeiro, se os dois pregadores iriam lutar um contra o outro
e, em caso afirmativo, quem poderia ganhar.
Jamie, também ouviu, se virou para se dirigir ao bando de
meninos meio-crescidos que faziam tais apostas.
"Cem para um dizem que eles não vão lutar um contra o outro",
disse ele, em voz carregada, acrescentando então em um tom
mais baixo: "Mas se eles fizerem isso, coloco dez xelins em
Roger Mac, cinco para um."
560

Isso causou uma pequena sensação entre os meninos – e um


cacarejo de desaprovação entre os poucos verdadeiros
metodistas e anglicanos presentes, que morreu quando o capitão
se aproximou, em uniforme naval completo, incluindo chapéu
com renda dourada, mas com uma sobrepeliz em um braço. Sua
mãe – de preto fino, com corpete de renda preta – se pendurava
no outro braço. Um murmúrio de aprovação estourou, e Jamie e
eu nos encaminhamos para a frente da multidão para lhes dar as
boas-vindas.
O capitão suava um pouco – era uma manhã quente –, mas ele
parecia ao mesmo tempo bem-humorado e controlado.
"General Fraser", disse ele, curvando-se para Jamie. "E a sra.
general Fraser. Espero ver você bem nesta manhã abençoada."
"Sim, senhor", disse Jamie, curvando-se de volta. "E eu
agradeço a você. Agradeço ainda mais, no entanto, se nos
conceder um título mais modesto, talvez, mas mais adequado.
Eu sou o coronel Fraser – e esta é minha senhora."
Abri minhas saias de algodão leve274 e fiz uma reverência,
esperando me lembrar de como. Eu me perguntei se o capitão
tinha captado a insinuação de que Jamie tinha, comandava ou
poderia comandar uma milícia. Sim, ele tinha...
O capitão se enrijeceu visivelmente, mas a Sra. Cunningham fez
uma bela reverência a Jamie e se levantou suavemente.
"Nossos agradecimentos a você, coronel", disse ela, sem
pestanejar, "por dar a meu filho a oportunidade de levar a
palavra de Deus aos que mais precisam dela."

-.-.-

ROGER TINHA VÁRIAS opiniões sobre comparecer ao


serviço do capitão Cunningham.
"Mamãe e Pa estão indo", Bree argumentou. "E Fanny e

274
No original calico, que é um tipo de algodão macio. Muitas vezes é traduzido como chita, mas nossa
chita, comum, bem colorida, não corresponde a esse tecido. É interessante o contraste das roupas simples
e adequadas ao clima de Claire e as roupas mais elaboradas de Elspeth.
561

Germain. Não queremos dar a impressão de que estamos


evitando o pobre homem, não é – ou esnobando seu serviço? "
"Bem não. Mas não quero parecer que fui apenas julgar a
competição, por assim dizer. Além disso, seu Pa precisa ir; ele
não pode parecer... parcial."
Ela riu e arrancou a linha com que estava costurando, fazendo a
bainha de uma das saias de Mandy, que de alguma forma
conseguiu se descosturar de um lado enquanto a proprietária
estava suposta e virtuosamente ocupada em ajudar vovó Claire
a fazer compota de maçã.
"Pa não gosta que as coisas aconteçam na Cordilheira dos Fraser
pelas costas dele, por assim dizer", disse ela. "Não que eu ache
que o capitão Cunningham vai pregar insurreição e tumulto do
púlpito."
"Nem eu farei isso", ele a assegurou. "Não como a primeira
coisa, de qualquer maneira."
"Vamos", ela disse. "Você não está curioso?"
Ele estava. Intensamente. Não era como se ele não tivesse
ouvido sua cota de sermões, crescendo como filho de um
ministro presbiteriano – mas, na época, ele não tinha a menor
pretensão de se tornar um ministro, e não prestou muita atenção
aos pontos delicados. Ele aprendeu um pouco durante sua
primeira tentativa de sermão na Cordilheira, e mais durante sua
tentativa de ordenação, mas isso foi há alguns anos – e muitos
dos presentes não o reconheceriam como outra coisa senão o
genro de Ele Mesmo.
"Além disso", acrescentou ela, levantando a saia e semicerrando
os olhos para avaliar seu trabalho, "vamos nos destacar como
um dedo machucado se não formos. Todo mundo estará lá,
acredite em mim. E todos estarão lá para o seu serviço também
– lembre-se do que Pa disse sobre entretenimento."
Ele teve que admitir que ela estava certa em todos os aspectos.
Jamie e Claire estavam lá em seu melhor, parecendo benignos,
Germain e Fanny com eles, parecendo estranhamente limpos e
ainda mais sobrenaturalmente subjugados.
562

Ele lançou um olhar afiado para sua própria prole, que estava
pelo menos limpa, e – se não completamente subjugada – pelo
menos confinada no banco entre ele e Brianna. Jemmy estava se
contorcendo um pouco, mas razoavelmente aplacado, e Mandy
estava ocupada ensinando a Esmeralda a Oração do Senhor275
em um sussurro alto – ou pelo menos a primeira linha, que era
tudo que Mandy sabia – pressionando piamente juntas as mãos
rechonchudas de pano da boneca.
"Eu me pergunto quanto tempo o sermão provavelmente
durará", disse Bree, olhando para as crianças.
"Bem, ele está acostumado a pregar para marinheiros – suponho
que com um público cativo que não se atreve a sair ou
interromper, você pode ficar tentado a se estender um pouco."
Ele podia ouvir pelo barulho e murmúrios no fundo da sala que
vários meninos mais velhos estavam parados lá, semelhantes ao
grupo que soltou uma cobra durante seu primeiro sermão.
"Você não está planejando intimidá-lo, está?" perguntou Bree,
olhando por cima do ombro.
"Eu não estou, não."
"O que é intimidar, papai?", Jem saiu de seu estado de coma,
atraído pela palavra.
"Significa interromper alguém quando ele está falando ou gritar
coisas grosseiras para ele."
"Oh."
"E você nunca, nunca vai fazer isso, me ouviu?"
"Oh.", Jem perdeu o interesse e voltou a olhar para o teto.
Um movimento de interesse percorreu a congregação quando o
capitão Cunningham e sua mãe entraram. O capitão acenou para
a direita e para a esquerda, não exatamente sorrindo, mas
parecendo agradável. A sra. Cunningham estava olhando
bruscamente em volta, atenta a problemas.
Seus olhos pousaram em Esmeralda e ela abriu a boca, mas o
275
Para os presbiteranos, Oração do Senhor. Para os católicos, o pai-nosso. É a mesma prece. Mas como
este trecho é narrado pelo ponto de vista de Roger, foi mantido o nome comum aos protestantes.
563

filho pigarreou alto e, agarrando-a pelo cotovelo, conduziu-a até


um banco da frente. A cabeça dela girou brevemente, mas o
capitão ocupou seu lugar e ela voltou-se para ele, em meio ao
arrastar de pés e murmúrios da congregação.
"Irmãos e irmãs", disse o capitão, e todos se endireitaram
abruptamente, quando ele se dirigiu a eles no que Roger pensava
ser a voz usada em seu tombadilho, elevada para ser ouvida
acima do bater das velas e do rugido de canhão. Cunningham
tossiu e repetiu mais baixinho: "Irmãos e irmãs em Cristo, dou-
lhes as boas-vindas. Muitos de vocês me conhecem. Para
aqueles que não, eu sou o capitão Charles Cunningham, ex-
capitão da Marinha de Sua Majestade. Recebi um chamado de
Deus há dois anos e estou me esforçando para atender a esse
chamado com o melhor de minha capacidade. Vou lhe contar
mais sobre minha jornada – e a sua – em direção a Deus, mas
vamos agora começar nossos cultos esta manhã cantando O
God, Our Help in Ages Past 276”.
"Eu acho que ele realmente está indo bem", Bree sussurrou para
Roger enquanto a congregação gentilmente se levantava.
O capitão era bom. Depois do hino – que quase metade da
congregação conhecia, mas era uma melodia simples e fácil o
suficiente para o resto cantarolar – ele abriu sua Bíblia de couro
gasta e leu Mateus 4: 18-22:
"E Jesus, caminhando junto ao mar da Galileia, viu dois irmãos,
Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão, lançando uma rede
ao mar, porque eram pescadores.
E ele disse-lhes: Segui-me, e eu vos farei pescadores de homens.
E eles imediatamente deixaram suas redes e o seguiram.
E, continuando dali, viu outros dois irmãos, Tiago, filho de
Zebedeu, e João, seu irmão, num navio com Zebedeu, seu pai,
consertando as redes; e ele os chamou.
E eles imediatamente deixaram o navio e seu pai, e o seguiram.”

276
“Ó Deus, Nosso Socorro em Tempos Passados" é um hino de Isaac Watts em 1708 que parafraseia o
Salmo 90 do Livro dos Salmos.
564

Depois disso, ele largou sua velha Bíblia de couro e contou-lhes,


com grande simplicidade, o que o trouxera aqui.
"Há dois anos, eu comandava um dos navios de Sua Majestade,
o HMS Lenox, na base norte-americana. Era nossa tarefa
bloquear os portos coloniais e realizar incursões ocasionais
contra as comunidades rebeldes."
Roger sentiu a cautela instantânea que se espalhou pela sala
como uma névoa baixa. Alguns dos presentes estavam fadados
a ser legalistas secretos, embora a maioria daqueles que se
declararam abertamente o tenham feito como rebeldes, se por
convicção ou por um desejo pragmático de se aliarem a seu
senhorio – o senhorio sentado na terceira fila – ele não sabia.
"Meu filho Simon havia entrado recentemente no navio como
segundo-tenente. Fiquei muito satisfeito, pois não nos víamos há
pelo menos dois anos, ele tendo cumprido serviço no Canal277."
O capitão parou por um momento, como se estivesse olhando
para o passado.
"Eu estava orgulhoso dele", ele disse calmamente. "Orgulhoso
por ter escolhido me seguir até a marinha e orgulhoso de sua
conduta. Ele era um tenente muito jovem – tinha apenas dezoito
anos – mas era empreendedor e corajoso, e com um grande
cuidado com seus homens."
Ele apertou os lábios por um momento, então respirou fundo.
"Enquanto patrulhávamos a costa de Rhode Island, encontramos
e perseguimos uma chalupa278 rebelde, e entramos em ação
armada. Meu filho foi morto nessa ação."
Houve um som abafado de choque e simpatia da congregação,
mas Cunningham não deu provas de tê-lo ouvido e continuou
em frente.
"Eu não estava a mais do que alguns metros de distância dele
quando o tiro o atingiu e o peguei em meus braços. Eu o senti

277
Os ingleses se referem ao Canal da Mancha simplesmente como The Channel..
278
No original cutter. Que é cúter ou chalupa em português, barco de um mastro só, leve e ágil. A palavra
‘chalupa’ parece ser mais conhecida no Brasil do que cúter.
565

morrer."
"Eu o senti morrer”, ele repetiu baixinho, e agora seus olhos
vasculhavam a congregação. "Alguns de vocês conhecerão esse
sentimento."
Muitos deles fizeram.
"Não há tempo para lamentar, é claro, no meio de uma ação, e
quase uma hora depois tomamos posse da chalupa e prendemos
sua tripulação. Enviei o barco apreendido ao porto sob o
comando do imediato do navio – normalmente, esse dever
caberia ao meu filho, como tenente. Mas naquele ponto, toda
atividade, todo movimento, toda a necessidade de liderar e
comandar – tudo isso desapareceu. E eu fui me despedir do meu
filho."
Roger olhou involuntariamente para Jemmy, para o redemoinho
suave de cabelo no topo de sua cabeça, a parte de trás de suas
orelhas limpas e rosadas.
"Ele estava lá embaixo, deitado em uma cama na enfermaria, e
eu me sentei ao lado dele. Não posso dizer o que senti ou o que
pensei; o espaço dentro de mim estava vazio. É claro que eu
sabia o que tinha acontecido comigo, a perda de uma parte de
mim, uma perda maior do que qualquer perda de um membro ou
lesão física – e ainda assim não senti nada. Eu acho", ele se
interrompeu e pigarreou, "acho que estava com medo de sentir
alguma coisa. Mas enquanto eu estava sentado, observei seu
rosto – aquele rosto que eu conhecia tão bem – e eu vi a luz
entrar novamente."
" Ele mudou", disse ele, olhando cara a cara, urgente que eles
entendessem. "Seu rosto se tornou... transcendente. E lindo, de
repente, o rosto de um anjo. E então ele abriu os olhos."
O choque colocou todas as almas em uma postura em riste. A
sra. Cunningham, Roger percebeu, já estava tão ereta quanto era
possível para alguém com uma coluna vertebral. Ela ficou rígida
e imóvel, o rosto virado.
"Ele falou comigo", disse o capitão, e sua voz estava rouca. "Ele
disse: Não se preocupe, pai. Eu vou ver você de novo. Em sete
566

anos". Ele limpou a garganta novamente, com mais força. "E...


então ele fechou os olhos e... estava morto."
Demorou vários momentos para os murmúrios e suspiros
desaparecerem, e Cunningham permaneceu pacientemente até o
silêncio retornar.
"Quando me levantei do lado de meu filho", disse ele, "percebi
que o Senhor havia me dado uma bênção e um sinal. O
conhecimento – o conhecimento da certeza", ele enfatizou, "de
que a alma não é destruída pela morte, e a convicção de que o
Senhor me chamou para sair e dar esta mensagem a Seu povo."
"Por isso, vim para o meio de vocês em resposta ao chamado de
Deus. Para trazer a você a palavra da bondade de Deus, para
oferecer humildemente orientação onde posso fazê-lo – e para
honrar a memória de meu filho, o primeiro-tenente Simon
Elmore Cunningham, que serviu a seu rei, seu país e seu Deus
sempre com honra e fidelidade."
Roger levantou-se para o hino final com uma onda de
sentimento. Ele esteve com Cunningham em cada palavra,
totalmente absorvido, cheio de tristeza, orgulho, cordialidade,
elevado – e mesmo deixando de lado os aspectos puramente
emocionais do sermão do capitão, ele teve que admitir que foi
um bom trabalho em termos de religião.
Roger virou-se para Brianna e, sob a música crescente, disse:
"Jesus Cristo", sem qualquer blasfêmia.
"Você pode dizer isso de novo", ela respondeu.

-.-.-

EU ME PERGUNTAVA como Roger se colocaria após a


atuação do capitão Cunningham. A congregação se espalhou sob
as árvores para se refrescar, mas todos os grupos pelos quais
passei estavam discutindo o que o capitão havia dito, com
grande entusiasmo e absorção – como deveriam. O encanto de
sua história permaneceu comigo – uma sensação de admiração
e esperança.
567

Bree parecia estar se perguntando também. Eu a vi com Roger,


à sombra de um grande carvalho branco, em uma discussão
acurada. Ele balançou a cabeça, porém, sorriu e puxou a sua
touca. Ela havia se vestido como uma modesta esposa de
ministro e alisou a saia e o corpete.
"Dois meses, e ela vai vir para a kirk279 vestindo camurça280",
disse Jamie, seguindo a direção do meu olhar.
"Quais são as chances?", eu perguntei.
"Três para um. Você quer apostar, Sassenach?"
"Apostando no domingo? Você vai direto para o inferno, Jamie
Fraser."
"Eu não me importo. Você estará lá antes de mim. Me
perguntando as chances, além do mais... Além disso, ir à igreja
três vezes em um dia deve pelo menos tirar alguns dias do
purgatório."
Eu concordei.
"Pronto para a segunda rodada?"
Roger beijou Brianna e saiu da sombra para o dia ensolarado,
alto, moreno e bonito em seu melhor – bem, seu único – traje
preto. Ele veio em nossa direção, com Bree em seus calcanhares,
e eu vi várias pessoas nos grupos próximos perceberem isso e
começarem a guardar seus pedaços de pão, queijo e cerveja, se
esconder atrás de arbustos para um momento privado e cuidar
de crianças que haviam se desarrumado.
Fiz uma saudação quando Roger se aproximou de nós.

"Vai passar por cima281?"


"Gerônimo282", ele respondeu brevemente. Com um endireitar
279
Igreja, em scots.
280
No original, ‘bucksinks’, também pode ser traduzida por pele de gamo.
281
No original “Over the top”, também usada como “going over the top”, foi usada na 1ª Guerra
Mundial, para que os soldados passassem por cima das trincheiras para atacar o inimigo. É usada para
demonstrar um esforço excessivo ou exagerado para executar uma tarefa. Acabou se tornando uma
expressão conhecida. Em inglês, também é usada a abreviação OTT.
282
Gerônimo foi um apache nativo americano, conhecido por sua bravura suprema, que morreu em 1909
lutando contra o México e os Estados Unidos para proteger as terras dos apaches. O uso desse nome para
demonstrar força e coragem vem do treinamento dos primeiros paraquedistas americanos. Diziam que
568

visível dos ombros, ele se virou para cumprimentar seu rebanho


e conduzi-los para dentro.
Voltamos para dentro, que estava visivelmente aquecido,
embora ainda não insuportavelmente quente, graças a Deus. O
cheiro de pinho novo estava mais suave agora, amortecido pelo
farfalhar de tecidos feitos em casa e pelos leves aromas de
culinária e de agricultura e da confusão de cuidar de crianças
que se erguia em uma névoa agradavelmente doméstica.
Roger deixou que eles se acomodassem por um momento, mas
não o suficiente para que as conversas começassem. Ele entrou
de braços dados com Bree, deixou-a no banco da frente e se
virou para sorrir para a congregação.
"Há alguém aqui que ainda não me conhece?", ele perguntou, e
houve uma leve ondulação de risos.
"Sim, bem, o fato de você me conhecerem e estarem aqui de
qualquer maneira é reconfortante. Às vezes, são as coisas que
sabemos que significam muito, em parte porque as conhecemos
bem e entendemos sua força. Vamos ficar de pé então, e nós
diremos a Oração do Senhor juntos."
Eles se levantaram gentilmente e o seguiram na oração – alguns,
eu percebi, falando no Gàidhlig, embora a maioria em um inglês
com sotaque variado.
Quando todos nós nos sentamos novamente, ele pigarreou, com
força, e comecei a me preocupar. Eu tinha certeza de que sua
voz estava melhor do que antes, fosse pela cura natural ou pelos
tratamentos – se algo tão simples e, ao mesmo tempo, tão
peculiar como a imposição de mãos do dr. McEwan pudesse ser
dignificada por esse nome – que eu estava dando a ele uma vez
por mês. Mas já fazia muito tempo que ele não falava muito em
público, muito menos pregava – quanto mais cantava, e o
estresse da expectativa era muito difícil de lidar.
"Alguns de vocês são das Ilhas, eu sei – e do Norte. Então, vocês

teriam tanto medo na hora de saltar que não lembrariam o próprio nome. Um deles disse que gritaria
Gerônimo para demonstrar sua coragem e todos fizeram o mesmo. Gritar ‘Gerônimo’ virou uma
exclamação de excitação. Com certeza, Roger conheceria essa estória, assim como Claire, por ter vivido
um tempo nos Estados Unidos e por ter assistido, provavelmente, diversos filmes de guerra.
569

saberão o que é o canto alinhado."


Eu vi Hiram Crombie olhar em direção ao banco em que estava
sua família reunida, e senti a agitação interessada de outras
pessoas, em meio à multidão, que realmente sabiam.
"Para aqueles de vocês que vieram recentemente de outras partes
– não é problema; apenas uma maneira de lidar com coisas como
salmos e hinos, quando vocês não têm mais do que um livro de
orações entre vocês. Ou praticamente nenhum." Ele ergueu seu
próprio hinário surrado, um maço sem capa de páginas
esfarrapadas que Jamie tinha encontrado em uma taverna em
Salisbury e comprado por três pence e dois pés de porco, estes
últimos tendo sido recentemente adquiridos em um jogo de
cartas.
"Hoje, vamos cantar o Salmo Cento e Trinta e Três. É curto, mas
eu gosto. Vou cantar – ou entoar, talvez", ele sorriu para eles e
pigarreou novamente, mas secamente, "a primeira linha, e então
vocês cantam de volta para mim. Eu farei o próximo, e assim
por diante, sim?"
Ele abriu o livro na página marcada e entoou – com uma voz que
era pelo menos poderosa o suficiente para ser ouvida e rítmica o
suficiente para seguir – a primeira frase:
"Veja que bom!"
Uma pausa instantânea e várias vozes, confiantes, tomaram
conta:
"Veja que bom!"
Uma expressão de alegria surgiu em seu rosto, e foi só então que
percebi que ele não tinha certeza de que funcionaria.
"E como é agradável... "
"E como é agradável!”
Mais vozes, uma confiança cada vez maior e, na terceira frase,
estávamos compartilhando a felicidade de Roger, passando para
as palavras e seu significado.
Foi um salmo bastante curto, mas eles estavam se divertindo
tanto que o leu duas vezes e quando parou, finalmente, se
570

retorcendo de suor e corado pelo calor e esforço, a última frase


"A bênção da vida para sempre!", ainda reverberava no ar.
"Isso foi bom", disse ele, em um grasnido, e eles riram, embora
gentilmente. "Jamie, você pode vir ler para nós o Antigo
Testamento?"
Olhei para Jamie com surpresa, mas aparentemente ele estava
pronto para isso, pois pegou sua pequena Bíblia verde, que havia
trazido com ele, e veio para a frente da sala. Ele estava vestindo
o melhor de seus dois kilts, com o único casaco de aparência
sóbria que possuía, e tirando os óculos do bolso, colocou-os e
olhou severamente por cima deles para os meninos nos fundos,
que instantaneamente pararam de sussurrar.
Evidentemente satisfeito de que o olhar severo seria suficiente,
ele abriu o livro e leu em Gênesis a história dos anjos que
visitaram Abraão e, ao receber sua hospitalidade, garantiram-lhe
que quando viessem novamente, sua esposa, Sara, teria dado um
filho a ele. "Por isso Sara riu consigo mesma, quando pensou:
Depois de já estar velha e meu senhor já idoso, ainda terei esse
prazer?"
Ele olhou brevemente para aquela linha e seus olhos
encontraram os meus. Ele fez "Mmphm" no fundo da garganta
e terminou com "Existe alguma coisa impossível para o Senhor?
Na primavera voltarei a você, e Sara terá um filho".
Eu ouvi uma pequena risadinha atrás de mim, mas foi
imediatamente abafada pelo verso final: " Sara teve medo, e por
isso mentiu: “Eu não ri”. Mas ele disse: “Não negue, você
riu”.”
Jamie fechou o livro decididamente, entregou-o a Roger e
sentou-se ao meu lado, dobrando os óculos.
"Não sei como as pessoas podem pensar que Deus não tem um
senso de humor perverso", ele sussurrou para mim283.
Fui salva de uma resposta por Roger, anunciando que eles
tentariam um breve hino, perguntando quantos estariam

283
Essa conversa já aconteceu no livro 5, cap 12.
571

familiarizados com Jesus Shall Reign.284 Vendo uma


apresentação satisfatória de mãos, ele os iniciou, e embora sua
voz estalasse como uma xícara quebrada no meio da primeira
linha, muitos deles conheciam o hino para mantê-los vivo, com
Roger medindo o tom com a mão espalmada, e recitando as
primeiras palavras de cada versículo.
Mesmo se não estivesse cinquenta graus de temperatura e mil
por cento de umidade na pequena sala, eu estaria totalmente
encharcada de pura simpatia por Roger.
Bree trouxera um cantil e nesse momento se levantou e entregou
a ele. Ele bebeu profundamente, respirou e passou a manga do
rosto.
"Sim", ele disse, a voz ainda muito áspera, mas funcionando.
"Pedi à minha esposa que lesse um pouco do Novo Testamento
para vocês." Ele gesticulou para Brianna, que já estava corada
pelo calor da sala, mas que ficou significativamente mais rosa.
Ela olhou gravemente ao redor da sala, no entanto, fazendo
contato visual, e então, sem preliminar, abriu a pequena Bíblia
verde de Jamie e leu a passagem que descrevia a festa de
casamento em Canaã, onde Jesus, a mando de sua mãe, salvou o
noivo da humilhação tendo transformado água em vinho.
Ela leu bem, com uma voz forte e clara, e sentou-se para acenar
com a cabeça de aceitação um tanto relutante. Roger, que havia
sentado durante a leitura, levantou-se e – uma vez mais –
pigarreou.
"Como você pode ver... eu não vou ser capaz de falar por muito
tempo. Portanto, o sermão será curto." Isso pareceu agradável
para a congregação, que todos assentiram e se acomodaram.
"Sei que a maioria de vocês ouviu o sr. Cunningham falar esta
manhã e ficaram comovidos com seu testemunho. Eu também."
Sua voz era uma lixa áspera, mas era compreensível. Um
zumbido de resposta e acenos sóbrios.
"É importante ouvir sobre grandes eventos, revelações e

284
Jesus Deve Reinar – Hino criado por Isaac Watts (1674-1748), baseado no Salmo 72, reflete sua época
e a posição geo-política da Inglaterra e a crescimento do Império Britânico.
572

milagres. Isso nos lembra da grandeza de Deus e de Sua glória.


Mas a maioria de nós...", ele fez uma pausa para respirar. "A
maioria de nós não vive em situações de grande perigo ou
aventura. Não somos chamados com tanta frequência para fazer
um grande gesto... para sermos heróis. Embora tenhamos alguns
entre nós." Ele sorriu para eles, encontrando olhos aqui e ali na
multidão.
"Mas cada um de nós é chamado a viver a sua vida nos pequenos
momentos; praticar a gentileza, arriscar nossos sentimentos,
acreditar em outra pessoa, atender às necessidades das pessoas
de quem cuidamos. Porque Deus está em todo lugar e vive em
todos nós. Esses pequenos momentos são Dele. E Ele fará dessas
pequenas coisas... glória... e deixará Sua... grandeza... brilhar
em... em você."
Ele mal conseguiu passar da última frase, forçando o ar a
suportar cada palavra, e teve que parar, a boca entreaberta,
lutando para respirar.
"Amém", disse Jamie, em sua voz mais decidida, e as pessoas
gritaram "Amém!" com grande entusiasmo.
Roger foi imediatamente submerso por simpatizantes que se
aglomeraram na frente. Eu vi Brianna, de lado, sorrindo através
das lágrimas, e vagamente percebi que eu estava fazendo a
mesma coisa.
-.-.-
TINHA PENSADO QUE A maioria das pessoas tinha perdido
o apetite pela religião após as duas primeiras rodadas, e pelo
menos metade delas voltou para suas casas para jantar, ainda
discutindo as virtudes e defeitos das liturgias rivais. Mas umas
boas vinte pessoas – sem contar nossa família – voltaram vindos
da floresta no final da tarde e – em alguns casos, visivelmente
ainda acabando de se arrumar – se preparando para entrar na
Casa de Reunião mais uma vez, claramente se perguntando o
que diabos eles estavam prestes a encontrar.
Rachel e Jenny reorganizaram os bancos de modo que ficassem
em um quadrado, de frente para o centro da sala. No centro
573

estava minha pequena mesa de instrumentos, agora segurando


uma jarra de água e uma xícara de lata.
A própria Rachel ficou parada na porta para dar as boas-vindas
às pessoas, ladeada por Jenny e Ian.
"Dou-te as boas-vindas, amigo McHugh, e a tua família
contigo", disse ela a Sean McHugh. "É nosso costume que as
mulheres se sentem de um lado da sala e os homens do outro. "
Ela sorriu para Mairi McHugh. "Portanto, como tu és a primeira
mulher, podes fazer tua escolha."
"Oh. Bem então. Hã ... obrigada... a ti? Isso está certo?", ela
sussurrou para o marido.
"Como eu vou saber?", ele perguntou razoavelmente. "Dizemos
tu e ti quando estamos aqui?", ele perguntou a Rachel, que, com
uma cara séria, disse-lhes que não precisavam usar a linguagem
simples, a menos que o espírito os movesse a fazê-lo, mas que
ninguém riria se o fizessem.
Eu ouvi um murmúrio de alívio das pessoas atrás de mim, e um
leve relaxamento quando os meninos McHugh muito grandes
passaram cautelosamente pela porta, um de cada vez.
Jamie e eu esperamos até que todos entrassem.
"Você vai se sair bem, moça", disse Jamie a Rachel, dando um
tapinha em seu ombro enquanto se virava para entrar.
"Oh, eu não pretendo fazer coisa alguma", ela assegurou a ele.
"A menos que eu seja movida pelo espírito de falar, nesse caso,
imagino que direi algo adequado."
"Isso não significa necessariamente que ela não vai começar um
tumulto, Ian murmurou em meu ouvido. "O espírito tende a ser
muito livre com suas opiniões."

-.-.-

O JANTAR FOI SIMPLES, porque não havia ninguém para


ficar em casa e prepará-lo durante o dia. Eu fiz um enorme
caldeirão de sopa de milho com leite pela manhã, com cebola,
574

bacon e batatas fatiadas para enriquecê-la e depois da


verificação obsessiva de sempre quanto à lareira, coloquei as
brasas para cobrir o caldeirão e deixá-lo ferver, junto com uma
oração para que a casa não queimasse em nossa ausência. Teve
pão de ontem e quatro tortas de maçã geladas para sobremesa285,
com um pouco de queijo.
"Não é um pudim", Mandy disse, franzindo a testa quando me
ouviu dizer isso. "Issé torta!"
"Verdade, querida", eu disse. "É apenas uma maneira de falar
em inglês, chamar todas as sobremesas de pudim.”
"Por quê?"
"Porque os ingleses não sabem falar direito", Jamie disse a ela.
"Diz o escocês que come creamed crud286 com sua sobremesa",
respondi, fazendo Jem e Mandy rolarem no chão de tanto rir,
repetindo " creamed crud" um para o outro sempre que pararam
para respirar.
Germain, que comia creme de coalhada no pudim – e
pronunciava como crud ao estilo escocês – desde que nasceu,
balançou a cabeça para eles e suspirou de maneira mundana,
olhando para Fanny para compartilhar sua condescendência.
Fanny, que provavelmente não havia encontrado nada além de
pão com manteiga ou torta na fila de sobremesas, parecia
confusa.
"Mesmo assim", eu disse, servindo a sopa em tigelas. "Pegue o
pão, por favor, Jem? Mesmo assim", repeti, "é bom poder sentar-
se para jantar, não é? Foi um dia bastante longo", acrescentei,
sorrindo para Roger e depois para Rachel.
"Tu foste maravilhoso, Roger", disse Rachel, sorrindo para ele.
"Eu nunca tinha ouvido falar de canto alinhado antes. Tu já
ouviste, Ian?"
"Oh, sim. Havia uma pequena kirk presbiteriana em Skye, onde
285
No original, ‘pudding’. Aqui, existe uma grande confusão entre os significados ‘pudding’ entre os
britânicos e os americanos.
286
Crud significa deposito de sujeira, ou de incrustação de gordura. Por isso as crianças americanas riram.
Creamed curd é um iogurte ou coalhada mais espessos, feito com leite evaporado (como a coalhada árabe,
ou o iogurte grego) e é usado como cobertura de tortas e bolos densos, como o gingerbread.
575

eu parei com meu pai uma vez, quando fui com ele comprar uma
ovelha. Não há mais nada para fazer em Skye no domingo", ele
explicou. "Kirk, quero dizer, não comprar ovelhas."
"Parece familiar", eu comentei, sacudindo um grande pedaço de
manteiga fria para tirá-lo de seu molde. "Esse tipo de canto,
quero dizer, não Skye. Mas não sei por que seria."
Roger sorriu fracamente. Sua voz não saía além de um sussurro,
mas a felicidade brilhava em seus olhos.
"Escravizados africanos", disse ele, quase inaudível. "Eles
fazem isso. Chamada e resposta, como às vezes é nomeado.
Você talvez... os tenha ouvido em River Run?"
"Oh. Sim, talvez", eu disse, um pouco em dúvida. "Mas parece
mais... recente?" O levantar de uma sobrancelha escura indicou
que ele interpretou o que eu quis dizer com "recente".
"Sim." Ele pegou sua cerveja e deu um grande gole. "Sim.
Cantores negros, depois outros... que se seguiram e a abraçaram.
É uma das...", ele olhou para Fanny e depois para Rachel, "uma
das raízes que você vê, na, hum, música mais moderna. "
Rock'n' roll, eu supus era o que ele quis dizer, ou possivelmente
rhythm and blues – eu não era do tipo que estudava música.
"Por falar em música, Rachel, você tem uma voz linda", disse
Bree, inclinando-se sobre a mesa para acenar um pedaço de pão
sob o nariz de Oggy.
"Agradeço-te, Brianna", disse Rachel, e riu. "A cachorra
também. Ela contribuiu muito para o nosso primeiro encontro,
embora talvez tenha dado substância ao argumento de que cantar
em uma reunião é uma distração." Ela pegou o pão e deixou
Oggy esmagá-lo na mão. "Fiquei satisfeita com o fato de tantas
pessoas terem decidido compartilhar nosso encontro – embora
suponha que tenha sido principalmente por curiosidade. Agora
que eles sabem a terrível verdade sobre os Amigos, eles
provavelmente não virão de novo."
"Qual é a terrível verdade sobre Amigos, tia Rachel?", Germain
perguntou, fascinado.
576

"Que somos chatos", Rachel disse a ele. "Você não percebeu?"


"Bem, exceto pela Bluebell, foi meio chato", Jem concordou,
cutucando sua tigela de sopa em busca de pedaços crocantes de
bacon. "Mas não de um jeito ruim", acrescentou ele
apressadamente, percebendo o olhar de Ian para ele. "Apenas,
você sabe, pacífico." Ele sorveu a sopa e abaixou a cabeça.
"Esse é o ponto, não é? Temos pimenta?" Jamie salgou a sopa e
passou o saleiro pela mesa, mas o moedor de pimenta rolou e
caiu no chão.
"Sim, nós temos. Oh, Bluebell pegou. Aqui, cachorra..." Eu me
abaixei para estender a mão por baixo da mesa, onde Bluey
estava farejando cautelosamente o moedor de pimenta. Ela
espirrou explosivamente, várias vezes, e eu voltei com o moedor
salpicado de muco, que limpei cuidadosamente no meu avental.
"Você deve ter cuidado com essa pimenta, cachorra", Roger
murmurou, espiando por baixo da mesa. "Ruim para as cordas
vocais,"
Bluebell proferiu um garoo amável e abanou o rabo em resposta.
Rachel garantiu a Fanny que Bluebell – que fora deixada do lado
de fora durante os cultos matinais para passear na floresta com
outros cães que acompanhavam seus donos – era bem-vinda para
uma reunião também, uma cortesia que Bluey retribuiu
generosamente ao participar com entusiasmo no refrão do hino
simples que Rachel se sentiu impelida a cantar. Ela me disse que
as reuniões geralmente não tinham música, devido à presunção
de que isso interferiria na espontaneidade da adoração – mas que
era aceitável que uma pessoa cantasse, se ela se sentisse
motivada a isso. Certamente o canto fez tanto quanto os sermões
do capitão e de Roger para levantar o ânimo da congregação.
"Gostei do seu encontro, a leannan", disse Jamie, sorrindo para
Rachel enquanto colocava uma quantidade generosa de pimenta
na sopa. "E eu acho que você ficará surpresa, sobre quantos
virão na próxima semana. O povo fala, ken."
"Eu sei", ela garantiu a ele. "E o Senhor sabe o que dirão. Mas
obrigada, Jamie, por teres vindo – e a todos vocês também",
577

acrescentou ela, sorrindo para incluir eu, Bree e Roger, e as


várias crianças, todas obrigadas a comparecer aos três cultos. Ao
contrário dos cultos anteriores, porém, elas foram autorizadas e
até encorajadas a falar.
Rachel havia explicado o funcionamento básico de uma reunião
de amigos para os participantes – que você ficava sentado em
silêncio, ouvindo sua luz interior, a menos ou até que o espírito
o movesse a dizer algo – seja essa uma preocupação que você
deseja compartilhar, uma prece que você queria fazer, uma
música para cantar ou um pensamento que você gostaria de
discutir.
Ela acrescentou que embora muitas reuniões começassem e
terminassem em silêncio, ela se sentiu movida pelo espírito para
começar a reunião de hoje cantando, e embora não fingisse fazê-
lo com a habilidade do amigo Cunningham ou do amigo Roger
(os MacKenzie tinham vindo, é claro, mas os Cunningham não,
o que não me surpreendeu), se alguém quisesse se juntar a ela,
ela ficaria grata por sua companhia.
Uma boa dose de calor tinha sido estimulada pela música – e
pela contribuição de Bluebell – e todos ficaram sentados em
silêncio por alguns minutos. Eu senti Jamie, ao meu lado,
endireitando-se um pouco, como se tivesse tomado uma decisão,
e então contou à congregação sobre Silvia Hardman, uma
mulher quacre que ele conheceu por acaso em sua casa perto da
Filadélfia e que cuidou dele por vários dias, suas costas tendo
decidido incapacitá-lo.
"Além de sua grande bondade", disse ele, "fiquei encantado por
suas filhas pequeninas. Elas eram tão gentis quanto a mãe – mas
era de seus nomes que eu mais gostava. Patience, Prudence e
Chastity287, elas eram chamadas. Então, eu queria perguntar a
você, Rachel – os Amigos costumam dar nomes de virtudes a
seus filhos?"
"Sim", disse ela, e sorrindo para Jemmy, que começou a se
contorcer um pouco, acrescentou: "Jeremiah – se tu não te
chamasses Jeremiah, que nome tu escolherias? Se tu fosses
287
Paciência, Prudência e Castidade. Como, nesse caso, são nomes, mantivemos a grafia em inglês.
578

nomeado por uma virtude, quero dizer. "


"Quié uma virtude?", Mandy perguntou, franzindo a testa para o
irmão como se esperasse que nele brotasse uma,
instantaneamente.
"Algo bom", Germain disse a ela. "Tipo..." Ele olhou em dúvida
para Rachel, pedindo confirmação. "...Paz? Ou talvez Bondade?
"
"Exatamente", ela disse, balançando a cabeça gravemente. "Que
nome tu escolherias, Germain, enquanto Jemmy está pensando?
Piedade? Ou talvez Obediência?"
"Não!", ele disse, horrorizado, e em meio à risada geral, as
pessoas na reunião começaram a propor noms-de-vertu288, tanto
para si mesmas quanto para vários membros da família, com
explosões de risadas subsequentes ou – uma ou duas vezes –
discussões acaloradas sobre a adequação de uma sugestão.
"Você começou, Pa", disse Brianna, agora, durante o jantar,
divertida. "Mas eu percebi que você não escolheu um nome de
virtude na reunião."
"Ele já tem os nomes de três reis escoceses", Roger protestou.
"Ele ficará extremamente orgulhoso de si se você der mais para
ele brincar."
"Você também não escolheu um, não é, mamãe?", eu podia ver
as engrenagens girando na mente de Bree e me movi para
impedi-la.
"Hã... que tal Gentileza?", eu disse, fazendo com que muitos dos
que estavam à mesa caíssem na gargalhada.
"A Crueldade é uma virtude?", Jamie perguntou, sorrindo para
mim.
"Provavelmente não", eu disse, um tanto friamente. "Embora eu
suponha que depende das circunstâncias."
"Verdade", disse ele, e, pegando minha mão, beijou-a.
"Determinação, então – ou talvez Resolução?”

288
Nomes de virtudes, em francês.
579

"Bem, Resolução Fraser soa muito bem", eu disse. "Eu também


tenho um para você."
"Oh, sim?"
"Resistência."
Ele não parou de sorrir, mas uma certa expressão de tristeza
surgiu em seus olhos.
"Sim", ele disse. "Esse deve servir."
580

35

AMBSACE289

Ao General James Fraser, da Cordilheira dos


Fraser,
Colônia da Carolina do Norte
Do Capitão Judah M. Bixby

Caro General Fraser,


Espero que esta Carta o encontre bem, assim como
a Sra. Fraser. Agora sou o capitão de uma
Companhia de Infantaria sob o comando do
General Wayne290, a quem você conhece e que disse
para enviar seus amáveis Cumprimentos, por isso
faço-o aqui.
O General Wayne me disse que ouviu que você
voltou para seu lar na Carolina do Norte. Espero
que isso seja verdade e que você receba esta.
Caso não o faça, serei breve e escreverei outra
Carta mais tarde, que você poderá receber, com as
Novidades que eu tiver.
Por enquanto, gostaria de lhe contar primeiro que
tivemos uma briga na semana passada com os
Britânicos, perto de um Forte britânico chamado

289
Mantivemos a palavra no original. Ela está sendo usada num sentido diferente do encontrado em
dicionários. É o nome da menor pontuação num jogo de dados, mas é uma palavra também usada no
sentido de má sorte. Se pensarmos na pontuação dos dados, dois dados com número 1, e pensarmos que
esses dados são dois homens, entendemos o significado que Frances dá à palavra no capítulo.
290
Major-general Anthony Wayne (1745-1796). Combatendo ao lado das forças continentais, suas
táticas de batalha ferozes e suas façanhas, como uma noite de ataque apenas com baionetas na Batalha
de Stony Point, não só lhe valeu o respeito de seus homens, mas também o apelido de Louco Anthony.
581

Stony Point, nas margens do Hudson. Não


atacamos o Forte, mas fizemos com que eles
corressem de volta para ele com bastante
esperteza!
Em segundo lugar, lamento muito dizer-lhe que o
Dr. Hunter foi capturado durante a luta e está
detido como Prisioneiro no Forte. Ele não se
machucou, pelo que eu sei, e tenho certeza de que,
sendo ele um Médico e também um Quacre que não
lutou contra eles, os Britânicos provavelmente o
tratarão com bondade e não o enforcarão.
Sei que o Médico é um bom Amigo para você e para
a sra. Fraser e você gostaria de saber o que
aconteceu com ele. Eu mantenho vocês dois em
minhas Orações à Noite, e assim manterei o Doutor
e sua Esposa também.
Seu Servo (e Ajudante) mais Humilde e Obediente,
Judah Mordecai Bixby, Capitão do Exército
Continental

JAMIE TOMOU A CARTA de volta de minhas mãos e a leu de


novo, franzindo a testa. Estávamos sentados em um tronco do
lado de fora do meu jardim, e agora me aproximei dele para
olhar por cima do ombro.
Meu estômago apertou em um nó com a palavra "capturado" e
subiu em minha garganta com a palavra "enforcarão".
"Stony Point", eu disse, lutando para manter a calma. "Você sabe
onde é isso?"
Jamie negou com a cabeça, os olhos ainda fixos no papel.
582

"Em algum lugar de Nova York, eu acho." Ele me entregou a


carta. "Sua esposa", disse ele. "Você acha que Dottie sabe onde
Denny está? Ou você acha que ela está com ele?"
"Na prisão?", eu perguntei incrédula. Fazia quase um ano desde
que vimos Denzell e Dottie pela última vez e, ao ver as palavras
"Doutor Hunter", minha mão foi involuntariamente para a
lateral do meu corpo. A pequena cicatriz de onde Denny havia
removido uma bala de mosquete do meu fígado após a Batalha
de Monmouth havia sarado bem, mas eu ainda sentia uma
pontada profunda no lado direito do corpo quando me virava
para pegar algo – e ainda acordava de repente de vez em quando
no meio da noite com uma sensação de profunda confusão, meu
corpo vibrando com a memória do impacto. O corpo forma
cicatrizes internas e também cicatrizes superficiais quando uma
ferida cicatriza – e o mesmo ocorre com a mente.
"Possivelmente." A carranca havia desaparecido, mas ele ainda
parecia preocupado. "Na cidade, pelo menos. Ela poderia ajudá-
lo", ele acrescentou, em resposta à minha expressão perplexa.
"Comida, remédios, cobertores. Ele mandou uma mensagem,
sim?" Ele acenou com o papel.
Dottie poderia estar na prisão, eu percebi, embora provavelmente
não como uma prisioneira. Não era desconhecido que as esposas
– e às vezes filhos – fossem morar com um marido preso, saindo
durante o dia para mendigar por comida ou talvez encontrar um
pouco de trabalho. Os presos normalmente eram mal alimentados
e às vezes nem chegavam a ser alimentados, sendo forçados a
contar com a ajuda de familiares ou amigos, ou de almas
caridosas da comunidade, se estivessem presos longe de casa.
Mas provavelmente esposas não seriam permitidas em uma
prisão militar, entretanto...
"Você tem algum papel em seu escritório?", eu perguntei,
deslizando para fora do tronco. "Sim. Por quê?" Ele dobrou a
583

carta, levantando uma sobrancelha para mim.


"Vou escrever para John Grey", eu disse, tentando soar como se
fosse uma coisa simples e óbvia de se fazer. Bem, era óbvio. Ou
assim pensei.
"Não, você não vai." Ele disse isso com calma, embora sua
resposta tenha vindo tão rápida que eu pensei que ele tivesse dito
por puro reflexo. Então eu olhei em seus olhos. Endireitei minhas
costas, cruzei os braços e fixei nele o meu próprio olhar.
"Você se importaria de reformular isso?", eu disse educadamente.
Um dos benefícios de um casamento longo é que você pode ver
claramente onde algumas conversas podem levar – e,
ocasionalmente, pode evitar as armadilhas e escolher outro
caminho por consentimento mútuo silencioso. Ele franziu um
pouco os lábios, olhando pensativamente para mim. Então ele
respirou fundo e acenou com a cabeça.
"Dorothea vai escrever para seu pai, se ela ainda não o fez", ele
disse razoavelmente. Ele enfiou a carta de Judah em seu sporran
e se levantou. "Sua Graça fará tudo o que puder ser feito."
"Não sabemos se Dottie pode escrever para o pai. Ela pode não
estar perto de Denzell – ela pode nem saber que ele está na prisão!
Por falar nisso, não sabemos onde Hal – hã, quero dizer o duque
– está, também", acrescentei.
Maldito inferno, eu não deveria ter chamado Hal pelo primeiro
nome...
"Mas ele e John podem ser encontrados, pelo menos. O Exército
Britânico certamente sabe onde eles estão."
"Quando eu mandar uma mensagem para Savannah ou Nova
York, Denzell provavelmente já terá sido solto ou em liberdade
condicional. Ou removido pra outro lugar."
"Ou morrido." Eu desdobrei meus braços. "Pelo amor de Deus,
584

Jamie. Se alguém sabe como são as condições dentro de uma


prisão britânica, é você!"
Ele havia se virado para ir embora, mas com isso, sua cabeça
girou como a de uma cobra. "Sim, eu sei."
Sim, ele sabia. A prisão foi onde ele conheceu John...
"Além disso", eu disse, tentando voltar para um terreno mais
seguro, "eu disse que eu escreveria para ele. Denzell é mais meu
amigo do que seu. Você não precisa se envolver de forma
alguma."
O sangue subia pela coluna de seu pescoço, o que nunca era um
bom sinal.
"Eu não pretendo ser envolvido", disse ele, lidando com a palavra
como se tivesse pulgas. "E eu não quero que você esteja
envolvida com John Grey. De forma alguma", acrescentou ele
como uma nota de rodapé enfática, e agarrou a pá com a qual ele
estava cavando o novo poço para o jardim, de uma maneira que
sugeria que nada o teria agradado mais do que coroar John Grey
com ela – ou, na falta dele, eu.
"Não estou sugerindo nenhum tipo de envolvimento", disse eu,
com uma boa suposição de calma.
"É um pouquinho tarde para isso", disse ele, com uma ênfase
desagradável que enviou o sangue até minhas próprias
bochechas.
"Pelo amor de Deus! Você sabe o que aconteceu. E como. Você
sabe que eu..."
"Sim, eu sei o que aconteceu. Ele deitou-se em sua cama,
espalhou suas coxas, e copulou com você. Você acha que eu vou
ouvir o nome do homem e não pensar nisso?" Ele disse algo
muito rude em gaélico sobre os testículos de John, enfiou a
lâmina de sua pá no chão e puxou-a novamente.
585

Eu respirei lentamente pelo nariz, os lábios pressionados


firmemente juntos. "Eu pensei", disse depois de um momento,
"que tínhamos acabado com isso."
Eu preferia pensar assim. Aparentemente, isso foi uma ilusão da
minha parte. E de repente, lembrei-me do que ele disse – bem,
uma das coisas que ele disse – quando ele veio me encontrar no
Jardim dos Bartram. Ele, ressuscitado dos mortos e cheirando a
repolho; eu, manchada de lama e despedaçada de alegria.
"Eu a amei desde que a vi, Sassenach. Eu vou amar você para
sempre. Não importa se você dormir com o todo exército inglês.
Bem, não", ele se corrigiu, "seria importante, mas não me
impediria de amar você."
Respirei um pouco mais calma, embora minha mente seguisse em
frente e me apresentasse outra coisa que ele havia dito, mais tarde
naquela conversa:
"Eu não digo que eu não me importo com isso, porque me
importo. E eu não digo que não vou fazer um escarcéu sobre isso
mais tarde, porque provavelmente eu vou."
Ele se aproximou de mim e olhou para o meu rosto, olhos azuis
escuros muito atentos.
"Eu já disse a você que sou um homem ciumento?"
"Você já disse, mas..."
"E eu já disse a você que fiquei com raiva de cada hora que você
passou na cama de outro homem?"
Eu respirei fundo para esmagar as palavras apressadas que eu
podia sentir fervendo.
"Você disse", eu respondi, apenas com os dentes ligeiramente
cerrados. Ele olhou para mim por um longo momento.
"Eu fui sincero sobre isso", disse ele. "E ainda sou sincero. Você
vai fazer o que quiser, Deus sabe, você sempre faz, mas não finja
586

que não sabe o que eu sinto sobre isso!"


Ele girou nos calcanhares e se afastou com a pá por cima do
ombro como um rifle.
Meus punhos estavam cerrados com tanta força que podia sentir
minhas unhas cortando minhas palmas. Eu teria jogado uma
pedra nele, mas ele já estava fora de alcance e se movendo rápido,
os ombros contraídos de raiva.
"E quanto a William?", eu gritei atrás dele. "Se ele está envolvido
com John, você também está, seu escocês teimoso!"
Os ombros se curvaram com mais força, mas ele não se virou.
Seu grito flutuou de volta para mim, no entanto.
"Dane-se William!"
-.-.-

UMA PEQUENA TOSSE atrás de mim me distraiu da lista


mental de sinônimos para "maldito escocês!" que eu estava
compilando. Virei-me e encontrei Fanny parada ali, com o
avental estufado de nabos sujos e o rosto doce com uma
expressão preocupada, dirigida a Jamie, que estava
desaparecendo entre as árvores perto do riacho.
"O que Will-iam fez, sra. Fraser?", ela perguntou, olhando para
mim por baixo de sua touca. Eu sorri, apesar da recente agitação.
Sua fala era muito fluente agora, exceto quando ela estava
chateada ou falando rápido, mas muitas vezes ela ainda tinha
aquela ligeira hesitação entre as sílabas do nome de William.
"William não fez nada de errado", eu assegurei a ela. "Não que
eu saiba. Nós não o vimos desde... hã... " Eu parei um instante
tarde demais.
"O funeral de Jane", disse ela sobriamente, e olhou para a massa
roxa e branca de nabos. "Eu pensei... talvez o sr. Fraser tivesse
587

uma carta. De William. Ou talvez sobre ele", ela acrescentou, a


carranca voltando. Ela acenou com a cabeça em direção às
árvores. "Ele está zangado."
"Ele é escocês", eu emendei, com um suspiro. "O que significa
teimoso. Também irracional, intolerante, rude, perverso,
obstinado e algumas outras coisas questionáveis. Mas não se
preocupe; realmente não tem nada a ver com William. Aqui,
vamos colocar os nabos na tina e então cobrir com água. Isso
evitará que os topos murchem. Vou fazer purê de nabos para o
jantar, mas quero cozinhar a parte superior com gordura de bacon
e servi-los ao lado. Se alguma coisa é capaz de fazer os
Highlanders comerem um vegetal com folhas verdes é a gordura
do bacon."
Ela acenou com a cabeça como se isso fizesse sentido e baixou o
avental lentamente, de modo que os nabos rolaram para dentro da
tina em uma cascata, os topos verde-escuros balançando, como
pompons.
"Você provavelmente não deveria ter contado a ele", Fanny falou
com um distanciamento quase clínico.
"Contado a quem o quê?", eu disse, pegando um balde de água e
jogando-o sobre os nabos enlameados. "Pegue outro balde, sim?"
Ela obedeceu, jogou a água na tina, colocou o balde no chão,
olhou para mim e disse séria: "Eu sei o que significa copular."
Senti como se ela tivesse acabado de me dar um chute forte na
canela.
"Você sabe, de fato?", eu consegui dizer, pegando minha faca de
trabalho. "Eu, hum... suponho que sim." Ela passou metade de
sua curta vida em um bordel na Filadélfia; ela provavelmente
sabia muitas outras palavras que não faziam parte do vocabulário
de uma "É uma pena", disse ela, virando-se para buscar outro
balde; os meninos encheram todos eles esta manhã; restavam
588

seis. "Eu gosto muito de Sua Senhoria. Ele foi tão bom para mim
e... e Jane. Também gosto do sr. Fraser", acrescentou ela, embora
com certa reserva.
"Tenho certeza de que ele aprecia sua boa opinião", eu disse
gravemente, me perguntando, Que diabos? "E sim, Sua Senhoria
é um homem muito bom. Ele sempre foi um bom amigo para
nós." Coloquei um pouco de ênfase no nós e vi que isso foi
registrado.
"Oh." Uma pequena carranca perturbou a pele perfeita de sua
testa. "Suponho que isso torne as coisas piores. Que você tenha
ido para a cama com ele", ela explicou, para que eu não tivesse
perdido o que queria dizer. "Os homens não gostam de
compartilhar uma mulher. A menos que seja um ambsace."291
"Um ambsace?", eu estava começando a me perguntar como
poderia me livrar dessa conversa com algum tipo de dignidade.
Eu também estava começando a ficar bastante alarmada.
"Era assim que a sra. Abbott chamava. Quando dois homens
querem fazer coisas com uma garota ao mesmo tempo. Custa
mais do que ter duas meninas, porque eles costumam machucá-
la. Na maioria das vezes, apenas hematomas", ela acrescentou de
forma justa. "Mas ainda assim."
"Ah." Parei por um momento, então peguei o último balde e
terminei de encher a tina. Os nabos menores balançavam na
superfície da água, as raízes cabeludas espalhando redemoinhos
de terra. Baixei os olhos para Fanny, que encontrou meus olhos
com uma expressão de calmo interesse. Eu realmente preferia que
ela não compartilhasse seus pensamentos interessantes com
ninguém na Cordilheira, e eu estava razoavelmente certa de que
Jamie sentiria o mesmo.

291
É esse sentido que não encontramos: um ménage a trois, um relacionamento sexual a três. Dois
homens e uma mulher.
589

"Venha sentar comigo lá dentro por um momento, sim, Fanny?"


Sem esperar por aquiescência, acenei para que ela me seguisse de
volta para casa. Afastei a lona que estava substituindo a porta292
da frente de nossa casa em construção e caminhei para o espaço
cavernoso da cozinha. A lona que cobria a porta mexia-se
suavemente com o som das velas, e o espaço tinha uma penumbra
calmante, quebrada apenas pela luz da porta traseira aberta e
pelas duas janelas que davam para o poço e o caminho do jardim.
Tínhamos uma mesa e bancos, mas, além disso, havia dois úteis
banquinhos de três pernas, uma cadeira de madeira um tanto
decrépita que Maggie MacAllan me deu como pagamento pelo
meu trabalho de parteira no nascimento de sua neta, dois
pequenos barris de peixe salgado e várias caixas de embalagens
que ainda não tinham sido desmontadas para o uso de sua
madeira, cuja presença aumentava a ilusão ambiente de estar no
porão de um navio à vela. Eu acenei para Fanny sentar em um
banco e peguei o outro, suspirando de prazer por tirar o peso dos
meus pés.
Fanny também se sentou, parecendo um pouco apreensiva, e eu
sorri, na esperança de tranquilizá-la.
"Você realmente não precisa se preocupar com William", eu
disse. "Ele é um jovem cheio de recursos. Ele está apenas... um
pouco confuso, eu acho. E talvez com raiva, mas tenho certeza de
que ele vai superar isso em breve. "
"Oh", Fanny disse lentamente, "você quer dizer que ninguém
disse a ele que o sr. Fraser é seu pai, mas então ele descobriu?"
Ela franziu a testa para suas mãos entrelaçadas, então olhou para
mim. "Acho que eu também ficaria com raiva. Mas por que o sr.

292
Existe algo estranho com essa porta, que ora existe e ora não existe. Desde o funeral de Amy havia
porta – que tinha ficado aberta. Agora não está mais lá. Seria bom ter uma planta da Casa Nova para
podermos entender melhor a localização da cozinha e dessa(s) porta(s).
590

Fraser está com raiva? Ele doou William?"


"Ah... não exatamente." Olhei para Fanny com alguma
preocupação. Em poucos minutos, sem saber, ela conseguiu tocar
em muitos dos segredos da família, incluindo a batata quente de
minhas relações com lorde John.
"O sr. Fraser era jacobita – você sabe o que isso significa?"
Ela assentiu com incerteza.
"Os jacobitas apoiavam James Stuart e lutaram contra o rei da
Inglaterra", expliquei. "Eles perderam aquela guerra." Um lugar
vazio se abriu sob minhas costelas enquanto eu falava. Tão
poucas palavras para tal destruição de tantas vidas.
"O sr. Fraser foi para a prisão depois; ele não foi capaz de cuidar
de William. Lorde John era seu amigo e criou William como
filho, porque nenhum dos dois pensava que o sr. Fraser algum dia
seria libertado, e lorde John pensava que ele nunca teria filhos."
Eu captei o eco distante do conselho de Frank, como o sussurro
de uma aranha atrás da lareira vazia: Sempre se apegue à verdade,
tanto quanto possível...
"Lorde John foi ferido?", Fanny perguntou. "Na guerra?"
"Ferido... oh, porque ele não podia ter filhos, você quer dizer? Eu
não sei – ele certamente foi ferido, no entanto." Eu tinha visto
suas cicatrizes. Eu limpei minha garganta. “Deixe-me dizer uma
coisa, Fanny. Sobre mim."
Seus olhos se arregalaram de curiosidade. Eles eram de um tom
castanho-claro suave e quase pretos quando suas pupilas ficaram
grandes nas sombras da cozinha.
"Eu lutei em uma guerra também", eu disse. "Não essa mesma
guerra; outra, em um país diferente – antes de conhecer o sr.
Fraser ou lorde John. Eu era uma ... curadora. Cuidei de homens
feridos e passei muito tempo entre os soldados e em lugares
591

ruins." Respirei fundo, fragmentos daqueles tempos e lugares


voltando. Eu sabia que as memórias deveriam aparecer em meu
rosto, e eu deixei.
"Eu vi coisas muito ruins", eu disse simplesmente. "Eu sei que
você também."
Seu queixo tremia ligeiramente e ela desviou o olhar, sua boca
macia refletindo sua cautela. Estendi a mão lentamente e toquei
seu ombro.
"Você pode dizer qualquer coisa para mim", eu disse, com ligeira
ênfase em qualquer coisa. "Você nunca precisa me dizer – ou ao
sr. Fraser – qualquer coisa que você não queira. Mas se houver
coisas sobre as quais você queira falar – sua irmã, talvez, ou
qualquer outra coisa – você pode. Qualquer pessoa da família –
eu, o sr. Fraser, Brianna ou o sr. MacKenzie... Você pode dizer a
qualquer um de nós o que precisar. Não ficaremos chocados..."
Na verdade, provavelmente ficaríamos, pensei, mas não importa.
"E talvez possamos ajudar, se você estiver preocupada com
alguma coisa. Mas..."
Ela olhou para cima com isso, instantaneamente alerta, me
perturbando um pouco. Essa criança tinha muita experiência em
detectar e interpretar tons de voz, provavelmente por uma questão
de sobrevivência.
"Mas", eu repeti com firmeza, "nem todo mundo que vive na
Cordilheira teve essas experiências, e muitas dessas pessoas
nunca conheceram alguém que tivesse. A maioria delas viveu em
pequenas aldeias na Escócia, muitas delas não são educadas. Elas
ficariam chocadas, talvez, se você lhes contasse muito sobre...
onde você morava. Como você e sua irmã..."
"Eles nunca conheceram prostitutas?", ela disse, e piscou. "Eu
acho que alguns dos homens devem ter conhecido."
"Sem dúvida, você está certa", eu disse, tentando manter o
592

controle da conversa. "Mas são as mulheres que falam."


Ela acenou com a cabeça sobriamente. Eu pude ver um
pensamento vindo a ela; ela desviou o olhar por um instante,
piscou e então olhou para mim com um olhar pensativo.
"O quê?", eu disse.
"A mãe da sra. MacDonald disse que você é uma bruxa", ela
respondeu. "A sra. MacDonald tentou fazê-la parar quando viu
que eu estava ouvindo, mas a velha não para de falar de nada,
nunca, exceto quando está comendo."
Eu encontrei a mãe de Janet MacDonald, Grannie Campbell, uma
ou duas vezes, e não fiquei muito surpresa ao ouvir isso.
"Eu não suponho que ela seja a única", eu disse, um pouco
laconicamente. "Mas estou sugerindo que talvez você deva ter
cuidado com o que diz às pessoas fora da família sobre sua vida
na Filadélfia."
Ela acenou com a cabeça, aceitando o que eu disse.
"Não importa que vovó Campbell diga que você é uma bruxa",
disse ela pensativamente. "Porque o sr. MacDonald tem medo do
sr. Fraser. Ele tentou fazer a vovó parar de falar sobre você", ela
acrescentou, e encolheu os ombros. "De qualquer forma,
ninguém tem medo de mim."
Dê um tempo a eles, criança, pensei, olhando para ela.
"Eu não diria que as pessoas têm medo do sr. Fraser, realmente –
mas elas o respeitam", eu disse cuidadosamente.
Ela abaixou a cabeça um pouco, indicando que ela sabia mais do
que eu sobre isso, mas não iria discutir comigo.
"Às vezes", disse ela, "uma das garotas encontrava um protetor.
De vez em quando, ele até mesmo se casava com ela", ela
suspirou brevemente com o pensamento, "mas geralmente ele
apenas se certificava de que ela tivesse boa comida e roupas
593

bonitas, e ninguém a machucaria ou a usaria mal,"


Eu não sabia bem para onde isso estava indo, mas inclinei minha
cabeça interrogativamente. "Quando minha irmã encontrou
William novamente perto da Filadélfia, ele disse que a levaria e
a mim sob sua proteção. Ela estava tão feliz." Sua pequena, e
clara expressão subitamente estava carregada de lágrimas. "Se...
se nós pudéssemos ter ficado com ele..."
Jamie me contou exatamente o que aconteceu com a irmã de
Fanny, Jane – e o fez com o mínimo de palavras, sua concisão
traindo o quão profundamente isso o chocou, e quão
profundamente feriu a ele e William. Levantei-me e ajoelhei ao
lado de Fanny, tomando-a em meus braços. Ela chorou quase
silenciosamente, como uma criança escondendo tristeza ou dor
por medo de atrair punição, e eu a segurei com força, meus
próprios olhos ardendo com lágrimas.
"Fanny", sussurrei por fim. "Você está segura. Não vamos deixar
nada acontecer com você, nunca mais."
Ela soluçou e estremeceu brevemente, mas não se agarrou a mim.
Ela também não se afastou; apenas sentou-se em seu banquinho,
quieta e frágil como um pássaro ferido, suas penas afofadas para
manter a vida que ela ainda tinha.
"William", disse ela, tão baixo que mal pude ouvi-la. "Ele pediu
ao sr. Fraser para cuidar de mim. Mas... o sr. Fraser não precisa.
Não estou realmente sob sua proteção."
"Você está, Fanny", eu disse, sentindo o cheiro de linho mole de
sua touca, e afaguei-a gentilmente. "William deu você a ele, e..."
"E agora ele está zangado com Will-iam." Ela se afastou,
limpando as lágrimas de seus olhos.
"Oh, meu Deus. Você quer dizer que está com medo de que
vamos colocá-la para fora, porque o sr. Fraser tem uma... hum...
594

diferença de opinião com William? Não. Não, sério, Fanny.


Acredite em mim, isso não vai acontecer. "
Ela me deu um olhar cheio de dúvidas, mas acenou com a cabeça
obedientemente. Claramente ela não acreditava em mim.
"O sr. Fraser é um homem de palavra."
Ela olhou para mim por um longo momento, com uma carranca
franzindo a pele macia entre suas sobrancelhas. Então ela se
levantou abruptamente, enxugou a manga sob o nariz e fez uma
reverência para mim. "Não vou falar com ninguém", disse ela.
"Sobre qualquer coisa."
595

36

O QUE PERMANECE INVISÍVEL

EU TINHA DECIDIDO o que fazer sobre Denny instantes depois


de gritar "escocês teimoso!" para Jamie, mas a conversa que se
seguiu com Fanny afastou momentaneamente o assunto de minha
mente, e com uma coisa e outra, era final da tarde seguinte
quando consegui encontrar Brianna sozinha.
Sean McHugh e seus dois rapazes maiores tinham vindo pela
manhã – com seus martelos – para ajudar com o telhado da
cozinha e o enquadramento do terceiro andar; Jamie e Roger
tinham estado lá com eles, e o efeito de cinco homens grandes
armados com martelos era muito parecido com o de um pelotão
de pica-paus gordos marchando em formação cerrada acima da
minha cabeça. Eles estiveram nisso a manhã toda – fazendo com
que todos os outros fugissem de casa – mas pararam para um
almoço tardio perto do riacho, e eu vi Bree voltar para dentro com
Mandy.
Eu a encontrei em meu consultório rudimentar, sentada sob o sol
da tarde que entrava pela grande janela, a maior janela da Casa
Nova. Ainda não havia vidro nela – podia não haver vidro antes
da primavera, se tanto – mas a inundação da luz desobstruída da
tarde era gloriosa, brilhando nas novas tábuas de pinho amarelo
do chão, no macio tecido amarelo-claro da saia de Bree, e no halo
luminoso de fogo de seus cabelos, meio presos em uma trança
longa e solta.
Ela estava desenhando e, observando-a absorta no papel preso em
sua escrivaninha, senti uma profunda inveja de seu dom – não
pela primeira vez. Eu teria dado muito para ser capaz de capturar
596

o que via agora, Brianna, bronze e fogo na luz clara e profunda,


a cabeça inclinada enquanto observava Mandy no chão, cantando
para si mesma enquanto construía um edifício de blocos de
madeira e garrafas de vidro pequenas e pesadas que eu usava para
tinturas e ervas secas.
"O que você está pensando, mamãe?"
"O que você disse?", eu olhei para Bree, piscando, e sua boca se
curvou.
"Eu disse", ela repetiu pacientemente, "o que você está pensando?
Você está com aquele olhar."
"Que olhar é esse?", eu perguntei com cautela. Era uma regra de
fé entre os membros da minha família que eu não conseguia
guardar segredos; que tudo o que pensava estava visível no meu
rosto. Eles não estavam totalmente certos, mas também não
estavam completamente errados. O que nunca ocorreu a eles era
o quão transparentes eles eram para mim.
Brianna inclinou a cabeça para um lado, os olhos se estreitaram
enquanto ela examinava meu rosto. Sorri agradavelmente,
estendendo a mão para interceptar Mandy quando ela passou
trotando por mim, com três frascos para remédios nas mãos.
"Você não pode levar as garrafas da vovó para fora, querida", eu
disse, removendo-as habilmente de seu aperto rechonchudo.
"Vovó precisa delas para colocar remédios."
"Mas eu vou pegá sanguessugas cum Jemmy e Aidan e
Germain!"
"Você não conseguiria colocar nem mesmo uma sanguessuga em
uma garrafa desse tamanho", eu disse, me levantando e colocando
as garrafas em uma prateleira fora de alcance. Eu examinei a
próxima prateleira e encontrei uma tigela de cerâmica
ligeiramente lascada com uma tampa.
597

"Aqui, pegue isso." Enrolei uma pequena toalha de linho ao redor


da tigela e enfiei no bolso de seu avental. "Certifique-se de
colocar um pouco de lama – um pouquinho de lama, certo? Não
mais do que uma pitada – e um pouco da alga em que você
encontra as sanguessugas. Isso as manterá felizes."
Eu a observei trotar para fora da porta, os cachos negros
balançando, então me preparei e me virei para Bree.
"Bem, se você quer saber, eu estava pensando em quanto eu
deveria contar a você."
Ela riu, embora com simpatia.
"Esse é o olhar, certo. Você sempre parece uma garça olhando
para a água quando tem algo que não consegue decidir se conta
para alguém."
"Uma garça?"
"Olhos redondos e atentos", explicou ela. "Um assassino
contemplativo. Vou desenhar você fazendo isso um dia desses,
para que você possa ver."
"Contemplativo... vou acreditar na sua palavra. Acho que você
nunca conheceu Denzell Hunter, não é?"
Ela balançou a cabeça. "Não. Ian o mencionou uma ou duas
vezes, eu acho – um médico quacre? Ele não é irmão de Rachel?
"
"Esse é ele. Para mantê-la no básico por enquanto, ele é um
médico maravilhoso, um bom amigo meu, e além de ser irmão de
Rachel, ele é casado com a filha do duque de Pardloe, que por
acaso é o irmão mais velho de lorde John Grey."
"Lorde John?" Seu rosto, já brilhando com luz, abriu um sorriso
cintilante. "Minha pessoa favorita – fora da família. Você tem
ouvido falar dele? Como ele está?"
"Tudo bem, até onde sei. Eu o vi brevemente em Savannah há
598

alguns meses – o Exército Britânico ainda está lá, então é


provável que ele também esteja." Eu pensei no que dizer, na
esperança de evitar qualquer coisa estranha, mas um roteiro não
é uma conversa. "Estava pensando que você poderia escrever
para ele."
"Acho que sim", disse ela, inclinando a cabeça e olhando para
mim de lado, uma sobrancelha vermelha levantada. "Neste
minuto?"
"Bem... em breve. A questão é que Jamie acabou de receber uma
carta de um de seus assessores – do exército – contarei a você
sobre isso mais tarde. De qualquer forma, o ponto principal é que
Denzell Hunter foi capturado pelo Exército Britânico e está sendo
mantido em um campo de prisioneiros militar em Stony Point."
"Capturado fazendo o quê?" Ela se endireitou e colocou a mesa
de colo de lado. Ela não estava desenhando um retrato
sentimental de sua filha, eu vi – parecia a planta baixa de algo,
embelezado com pequenos esboços de macacos nas margens.
"Você disse que ele é um quacre?"
Suspirei. "Sim. Ele é o que eles chamam de Quacre de Combate,
mas ele não luta. Ele se juntou ao Exército Continental como
cirurgião, entretanto, e foi evidentemente retirado de um campo
de batalha em algum lugar."
"Parece um homem interessante", ela comentou, a sobrancelha
ainda erguida. "O que ele tem a ver comigo escrevendo para lorde
John?"
Expliquei, o mais brevemente possível, as conexões e
possibilidades, concluindo: "Então eu – nós – queremos ver se o
duque sabe onde Denny está. Mesmo que ele não consiga libertá-
lo diretamente – e conhecendo Hal, eu não apostaria contra ele
fazendo exatamente isso – ele pode garantir que Denny seja bem
tratado e, naturalmente, que encontrasse Dottie e cuidasse dela."
599

Bree estava me observando com uma expressão curiosamente


analítica no rosto, como se estivesse estimando as forças do metal
nas vigas de uma ponte.
"O quê?", eu disse. "John era um bom amigo seu. Antes, quero
dizer. Acho que você gostaria de escrever para ele de qualquer
maneira."
"Oh, eu quero", ela me assegurou. "Só estou me perguntando por
que você não escreve para ele. Ou por falar nisso, por que você
não está escrevendo para Hal? Já que você está usando o primeiro
nome, quero dizer."
Maldição. Eu não poderia mentir completamente; questões de
honestidade à parte, ela detectaria isso instantaneamente. Atenha-
se à verdade tanto quanto possível, então...
"Bem, é Jamie," eu disse relutantemente. Era, mas eu sentia
alguns escrúpulos em jogar Jaime na fogueira em relação a Bree.
"Ele teve um desentendimento com os Grey há pouco tempo. Eles
não se falam, e se eu fosse escrever para John ou Hal, ele...
entenderia mal", terminei, um tanto fracamente.
Sendo filha de seu pai, ela imediatamente colocou o dedo no
cerne da questão.
"Que tipo de desavença?", ela perguntou. O olhar analítico
desaparecera, substituído pela curiosidade.
Bem, era isso. Eu poderia dizer: "Pergunte ao seu pai", e ela iria,
ou poderia enfrentar a verdade e esperar pelo melhor. Enquanto
eu ainda estava tentando me decidir, porém, ela passou para o
próximo pensamento.
"Se Pa se importa que você escreva para lorde John, por que ele
não se importaria que eu fizesse isso?", ela perguntou
razoavelmente. Ela colocou o desenho no balcão, onde eu podia
ver claramente. Todos os pequenos macacos se pareciam com
600

Mandy.
"Porque ele teoricamente não saberia que eu disse a você que
havia um desentendimento para começar." E, com sorte, ele pode
não descobrir que você escreveu. A sala estava quente com a luz
do sol, mas eu estava me sentindo desconfortavelmente quente,
minhas roupas formigando e murchando na minha pele.
"Tudo bem", disse ela, depois de pensar por um momento, e
pegou uma pena. "Eu vou fazer isso agora. Mas", ela disse,
apontando a pena para mim, "a menos que você me diga do que
se trata, eu vou perguntar a lorde John. Ele vai me dizer." E o
maldito bem que podia dizer mesmo. Ele disse a Jamie, pelo amor
de Deus...
"Tudo bem", eu disse, e fechei meus olhos. "Ele se casou comigo,
quando pensamos que Jamie estava morto." Silêncio total. Eu abri
meus olhos para encontrar Bree olhando para mim, ambas as
sobrancelhas levantadas, seu rosto completamente vazio pela
incompreensão. E então me lembrei de minha conversa com
Fanny. Achei que ela ficaria quieta sobre as conclusões que tirou.
Mas se não ficasse...
"E eu dormi com ele. Mas não é o que você pensa..."
Nesse momento desfavorável, Jamie passou pela janela com Sean
McHugh. Eles estavam conversando, ambos olhando para cima,
Jamie apontando para algo no andar de cima. Brianna fez um
barulho como se tivesse tentado engolir um pawpaw inteiro293, e
Jamie olhou para nós, assustado.
Eu me senti como se tivesse engolido uma granada de mão, mas
rapidamente bati nas costas de Brianna, fazendo um gesto de
"Não é nada" para Jamie. Ele franziu a testa, mas McHugh disse
algo e ele desviou o olhar, então de volta para mim, ainda
carrancudo. Eu acenei para ele se afastar com mais firmeza, mas
293
Pawpaw não é uma fruta pequena. Seu gênero botânico é da mesma família da graviola.
601

ele disse, "Um momento, a charaid", por cima do ombro para


Sean e caminhou em direção à janela.
"Jesus H. Roosevelt Cristo", murmurei baixinho, e pensei ter
ouvido uma risada estrangulada de Brianna.
"A moça está bem?", Jamie perguntou, enfiando a cabeça pela
janela e erguendo o queixo para Bree, que estava encolhida em
seu banquinho, ofegando um pouco.
"Eu... bem", ela resmungou. "Engoli a-alguma coisa..." Ela
acenou debilmente para o balcão, onde uma caneca de alguma
coisa estava entre as ervas secas e louças espalhadas.
Ele ergueu uma sobrancelha, mas não insistiu no assunto, em vez
disso se virou para mim.
"Você pode subir? Geordie quebrou o polegar com um martelo.
Ele diz que não é nada, mas me parece estranho."
Eu me senti como se tivesse acabado de correr dois quilômetros
com o estômago cheio.
"Tudo bem", eu disse, enxugando as palmas das mãos suadas no
avental. Eu olhei por cima do ombro. "Bree, eu já volto." O
escarlate estava sumindo de seu rosto.
"Mm-hm." Ela tossiu e respirou fundo. "Não caia do telhado."

BRIANNA PEGOU O esboço de uma escola em potencial e ficou


olhando para ela por um minuto, mas não estava vendo janelas e
bancos. Ela estava – com uma mistura de horror e profunda
curiosidade – imaginando sua mãe na cama com lorde John Grey.
"Como diabos isso aconteceu?" ela perguntou ao esboço. Ela o
colocou no chão novamente e se virou para olhar pela janela,
agora vazia e tranquila, com vista para a longa encosta que descia
abaixo da casa, cheia de grama florida e tufos de corniso. "E
602

como diabos eu vou ser capaz de olhar John Grey nos olhos da
próxima vez que o vir?"
Por falar nisso, olhar nos olhos de seu pai... Ok, ela podia ver por
que Pa teria problemas com a mãe dela escrevendo para John
Grey. Apesar de sua perturbação, uma risadinha chocada escapou
dela e ela levou a mão à boca.
"Eu gosto de mulheres", ele disse a ela uma vez, exasperado. "Eu
as admiro e as honro, e por várias desse sexo sinto considerável
afeto – a sua mãe entre elas, embora eu duvide que o sentimento
seja recíproco." Seu diafragma deu uma guinada pequena e
desconcertada com isso. "Oh sério?", ela murmurou,
relembrando sua última observação sobre o assunto: "Eu não
procuro, entretanto, prazer em suas camas. Eu falo com clareza
suficiente?"294
"Alto e claro, Vossa Senhoria", disse ela em voz alta, dividida
entre o choque e a diversão. As pessoas mudam, é claro – mas
certamente não tanto. Ela balançou a cabeça. Sua respiração
desacelerou, mas seu corpete ainda parecia muito apertado. Ela
colocou um dedo no topo do espartilho para puxá-los um pouco,
e então sentiu um tremor no peito.
"Oh, inferno...", ela sussurrou, e agarrou a borda do banquinho
para não cair. Todo o sangue deixou sua cabeça e sua visão ficou
branca. Seu coração tinha parado novamente. Literalmente.
Parado.
Um... dois... três... bata, maldito, bata! Em pânico, ela bateu a
palma da mão com força contra o esterno. E então engasgou
quando começou a bater, com choque com o baque surpreendente
em seu peito, tanto quanto com alívio. E então disparou como
uma lebre em uma corrida de galgos, estremecendo em seu peito,
deixando-a sem fôlego e apavorada, a mão pressionada contra o

294
Essa conversa entre lorde John e Brianna ocorre no livro 4, cap 59
603

peito.
"Pare, pare, pare com isso...", ela sussurrou com os dentes
cerrados. Já havia parado antes, essa disparada... pararia de
novo... Mas não parou.
"Bree? Onde você... Jesus H. Roosevelt Cristo!"
Sua mãe estava de repente lá, arrancando o papel amassado de
sua mão, agarrando-a com um braço forte em volta de sua cintura.
"Abaixe-se", sua mãe disse, calma e autoritária. "Sente-se
totalmente. Sim, é isso... "
Suas saias floresceram ao redor dela enquanto ela afundava no
chão, uma nuvem amarelada tremulando através da névoa branca.
Com as mãos apoiadas no chão, ela resistiu à pressão de sua mãe
para se deitar, balançando a cabeça.
"Não." Ela não parecia ter nenhuma conexão com sua voz, mas
ela ouviu, rouca, mas clara. "Vai ficar tudo ok. Está tudo ok."
"Tudo bem." Um rangido de tábuas; sua mãe se acomodou ao
lado dela e ela ouviu o barulho de uma xícara de madeira
raspando nas tábuas do assoalho. Calor... a mão de sua mãe
envolvendo seu pulso, um polegar se movendo em busca de um
pulso.
Boa sorte com isso, ela pensou confusa. Mas, ao pensar nisso, a
disparada do coração diminuiu. Uma parada confusa, uma ou
duas batidas aleatórias, e então seu coração retomou
silenciosamente suas operações normais, como se nada tivesse
acontecido.
Tinha, porém, e ela ergueu a cabeça para encontrar os olhos de
sua mãe fixos em seu rosto, com um olhar atento e atencioso que
ela conhecia muito bem. A garça.
"Estou bem", disse ela com firmeza, tentando de qualquer
maneira. "Só... eu só fiquei tonta por um minuto."
604

Uma das sobrancelhas de sua mãe se ergueu, mas Claire não disse
nada. Sua mão ainda estava segurando o pulso revelador de
Brianna.
"Mesmo. Não é nada", disse ela, soltando-se das garras da mãe.
Cada vez, ela dizia a si mesma que não era nada.
"Quando isso começou?" Os olhos de Claire eram normalmente
de um âmbar suave – exceto quando ela estava sendo médica. Em
seguida, eles adquiriram uma pupila escura e afiada, como os
olhos de uma ave de rapina.
"Quando você me disse que... Jesus, você acabou de me contar
que..." Brianna ficou de pé e se levantou. Cautelosamente, mas
seu coração continuou batendo baixinho, como deveria. Não é
nada.
"Sim, eu contei. E não estou falando sobre isso desta vez", sua
mãe disse secamente, levantando-se também. "Quando isso
aconteceu pela primeira vez?"
Ela pensou em mentir, mas o desejo de continuar negando que
algo estava realmente errado desapareceu rapidamente contra a
necessidade – a esperança – de ser tranquilizada.
"Logo depois que atravessamos as pedras em Ocracoke. Foi... eu
não pensei que conseguiria." A tontura ameaçou voltar com a
lembrança daquilo... daquele... A ânsia subiu de repente, e ela se
inclinou e vomitou, um leve respingo de mingau meio digerido
nas novas tábuas do consultório.
"Querido Senhor." A voz de sua mãe era suave. "Você não está
grávida, está?"
"Nem pense nisso!" Ela estremeceu, enxugando a boca no
avental. "Eu não posso estar." Ela nem havia pensado na
possibilidade e não estava prestes a começar. Ela já estava
assombrada pela ideia de que ela poderia morrer e deixar Jem e
605

Mandy...
"Em Ocracoke", ela repetiu, controlando-se. "Eu saí das pedras
com Mandy em meus braços. Eu não conseguia ver – era tudo
manchas pretas e brancas, e eu pensei que fosse desmaiar, e então
eu meio que desmaiei... Eu estava deitada no chão e ainda
segurava Mandy; ela estava lutando para se soltar e gritando:
Mamãe, mamãe!, mas eu não conseguia responder a ela e então
percebi que meu coração não estava batendo. Eu pensei que
estava morrendo."
Ela sentiu um cheiro doce e picante, e sua mãe envolveu seus
dedos em torno de uma xícara e a conduziu aos seus lábios.
"Você não vai morrer", disse a mãe, com um tom bem-vindo de
convicção. Bree assentiu, querendo acreditar, embora seu
coração ainda estivesse batendo forte, deixando momentos de
vazio em seu peito. Ela tomou um gole do líquido; era uísque
adoçado com mel e com algo de ervas e muito aromático.
Ela fechou os olhos e se concentrou em tomar pequenos goles,
desejando que as coisas se acalmassem, voltassem ao normal. O
ambiente ao redor estava começando a voltar. O sol da grande
janela batia quente em seus ombros.
"Com que frequência isso em vem acontecendo?"
Ela engoliu, saboreando a doçura que estava extravasando para
sua corrente sanguínea, e abriu os olhos.
"Quatro vezes, antes de agora. Em Ocracoke, novamente na noite
seguinte. Estávamos acampando, na estrada." Ela estremeceu
com a memória; deitada rígida no chão ao lado de Roger, as
crianças dormindo entre eles. Com o coração acelerado, os
punhos cerrados para não agarrar o braço de Roger e sacudi-lo
para acordá-lo. "Isso foi ruim – durou horas. Ou pelo menos
pareceram horas. Finalmente parou, pouco antes do amanhecer."
606

Ela se sentiu torcida, mole como as roupas úmidas de orvalho que


envolviam seus membros; e ainda se lembrava do terrível esforço
necessário para se levantar, para colocar um pé na frente do
outro...
A próxima vez foi uma semana depois, em uma barcaça no rio
Yadkin, e a última antes disso na estrada de Cross Creek a
Salisbury.
"Aqueles não foram tão ruins. Apenas alguns minutos – como
este." Ela tomou outro gole, segurou-o na boca, depois engoliu e
olhou para a mãe. "Você sabe o que é isso?"
Sua mãe estava limpando o resto do vômito das tábuas do piso,
os lábios comprimidos, um par de linhas verticais visíveis entre
suas sobrancelhas macias.
"Há um limite para o que posso dizer com certeza, sem um
eletrocardiograma", disse Claire, com os olhos fixos no pano que
estava usando. "Mas falando de maneira muito geral, parece que
você está exibindo algo que chamamos fibrilação atrial295. Não é
uma ameaça à vida", acrescentou ela rapidamente, olhando para
cima e vendo o alarme no rosto de Bree.
Seu coração deu uma espécie de salto acelerado com as palavras
de sua mãe e estava batendo agora de uma forma que parecia
hesitante. Seus joelhos tremiam e ela se sentou de repente. Sua
mãe largou o pano, sentou-se ao lado dela e puxou-a para perto.
Seu rosto estava meio enterrado no avental cinza grosso de sua
mãe, cheirando a gordura e alecrim, sabonete suave e suco de
maçã. O cheiro do tecido, do corpo de sua Mama, trouxe lágrimas
indefesas aos olhos. Talvez não fosse uma ameaça à vida, mas ela

295
Também chamada de fibrilação auricular, trata-se de requência cardíaca irregular e muitas vezes
acelerada que geralmente provoca má circulação sanguínea. As câmaras superiores do coração (átrios),
devido a sinais elétricos desorganizados, não batem de maneira coordenada com as câmaras inferiores
(ventrículos). Esta condição pode não apresentar sintomas. Quando eles ocorrem, incluem palpitações,
falta de ar e fadiga. De 2% a 4% da população sofre desa condição.
607

sabia que também não era simplesmente nada.


"Vai ficar tudo bem", sua mãe sussurrou em seu cabelo. "Vai ficar
tudo bem, amor."
Ela estava segurando o braço da mãe, com força, o osso delgado
como um bote salva-vidas.
"Se, se alguma coisa acontecer, você vai cuidar das crianças para
mim. "
Não era uma pergunta e sua mãe não a considerou como uma.
"Sim", disse ela, sem hesitar, e a sensação de tremor diminuiu no
peito de Bree. Ela estava respirando com dificuldade, mas não
parecia haver espaço para ar suficiente.
"Tudo bem", disse ela. Ela podia sentir seus dedos tremendo no
braço da mãe e, com esforço, o soltou. "Tudo bem", disse ela
novamente, e sentando-se ereta, tirou o cabelo do rosto.
"OK. O que agora?"
-.-.-

TUM-TUM, TUM-TUM... Os sons fortes de um coração


saudável eram claros através do meu estetoscópio Pinard 296 de
madeira. Batendo um pouco mais rápido do que o normal – e não
é à toa – mas saudável. Eu me endireitei e Bree imediatamente
agarrou a gola de sua blusa, com o rosto tenso.
"Seu coração parece perfeito, querida", eu disse. "Tenho certeza
de que é um pouco de fibrilação atrial, mas é apenas uma questão
de impulsos elétricos perdidos. Você não vai ter um ataque
cardíaco ou qualquer coisa desse tipo."
A tensão em seu rosto diminuiu e meu próprio coração apertou
296
O estetestocópio de Pinar, no formato de um sino com um disco achatado em uma das pontas, ainda hoje
é usado para ascultar os sons do peito de recém-nascidos ou mesmo do feto ainda no úrtero. Foi
desenvolvido por Adolph Pinard (1844 - 1934) em 1876.
608

um pouco.
"Bem, graças a Deus por isso." Uma espessa mecha de cabelo se
soltou da fita e vi que sua mão tremia ao afastá-la do rosto. "Mas
isso – isso vai continuar acontecendo?"
"Eu não sei." Além das más notícias, não sei é a pior coisa que
um médico pode dizer a um paciente, mas infelizmente também
é a coisa mais comum. Respirei fundo e olhei para minhas
prateleiras de remédios.
"Oh, Deus", disse Bree, a apreensão genuína em sua voz tingida
com diversão relutante. "Você vai pegar mais uísque. Deve ser
sério."
"Bem, se você não quiser, eu quero", disse eu. Eu escolhi o bom,
o Jamie Fraser Special, ao invés do uísque estritamente
medicinal que dava aos pacientes, e o cheiro dele subiu quente e
vivo, deslocando os cheiros de terebintina, metal chamuscado e
pó de pólen.
"Oh, tenho quase certeza que sim." Ela pegou a xícara de metal e
inalou os vapores reconfortantes, fechando os olhos
involuntariamente e o rosto relaxando.
"Então", ela disse, levantando uma sobrancelha. "O que você
sabe?"
Eu rolei meu próprio uísque lentamente em volta da minha
língua, então engoli também. "Bem, como eu disse, a fibrilação
atrial é uma questão de irregularidades dos impulsos elétricos.
Seu músculo cardíaco está bom, mas está – de vez em quando –
recebendo seus sinais cruzados, por assim dizer. Normalmente,
todas as fibras musculares em seus átrios se contraem de uma vez;
mas quando eles não recebem uma mensagem sincronizada do nó
elétrico em seu coração que os fornece, eles se contraem mais ou
menos ao acaso."
609

Brianna engoliu outro gole, assentindo.


"É exatamente assim que parece, certo. Mas você disse que não é
perigoso? É terrivelmente assustador."
Hesitei, uma fração de segundo a mais. Ninguém, exceto Jamie,
era mais sensível à transparência do meu rosto, e vi o alarme subir
novamente atrás de seus olhos.
"Não é muito perigoso", eu disse apressadamente. "E você é
jovem e muito saudável; é muito menos provável."
"O que é menos provável?" Ela largou a xícara, agitada, e olhou
involuntariamente para o teto; Mandy estava de volta ao quarto
das crianças logo acima, cantando em voz alta Frère Jacques para
sua boneca Esmeralda.
"Bem... derrame. Se os átrios não se contraem adequadamente
por muito tempo – eles devem espremer o sangue para os
ventrículos; o ventrículo direito bombeia sangue para os pulmões,
o esquerdo para o resto do corpo..." Vendo suas sobrancelhas
avermelhadas se unirem, fui direto ao assunto. "O sangue pode
acumular-se nos átrios por tempo suficiente para formar um
coágulo. E se for assim, ele pode se dissolver antes de entrar no
corpo, mas se não..."
"Fecham-se as cortinas e termina o espetáculo?" Ela tomou um
gole muito maior de sua bebida. Ela estava pálida como a barriga
de um peixe depois de ser fisgado e parecia da mesma forma
agora. "Ou apenas eu ficando incapaz, então eu fico babando e
não posso falar e as pessoas têm que me alimentar, me arrastar e
limpar minha bunda?"
"Não é provável que aconteça", eu disse, da forma mais
tranquilizadora possível, o que, dadas as circunstâncias, não era
tão reconfortante. Eu podia visualizar os horríveis resultados
possíveis tão bem quanto ela obviamente estava fazendo. Um
pouco melhor, na verdade, já que vi muitas pessoas sofrendo de
610

efeitos colaterais do derrame, incluindo morte. Tive um impulso


momentâneo e absurdo de contar a ela um fato fascinante sobre
homens que morrem de derrame297, mas não era a hora.
"Então, o que você pode fazer sobre isso?", ela perguntou,
endireitando-se e firmando os lábios. Eu vi seus olhos se voltarem
para o novo Manual Merck e o entreguei a ela.
"Não tenho certeza", eu disse. "Preciso pesquisar." Eu não estava
esperançosa, dado o que a fibrilação atrial realmente era: uma
perturbação intermitente do sistema elétrico do coração.
"Quero dizer", eu disse, observando seu polegar através do livro,
sobrancelhas franzidas, "você pode impedir um ataque severo –
um que dura dias..."
"Dias?", ela deixou escapar, olhando para cima com os olhos
arregalados. Eu fiz um movimento com a mão no ar.
"Você não tem esse tipo de fibrilação", assegurei a ela. Mas veja,
você sempre pode desenvolvê-lo... "Você só tem o tipo menor e
paroxístico que vem e vai e pode simplesmente desaparecer um
dia." E, Deus, por favor, deixe acontecer exatamente isso...
"Mas para um ataque grave, o tratamento normal na década de
1960 era administrar um choque elétrico no coração com pás
aplicadas no peito. Isso faz com que a fibrilação pare e o coração
comece a funcionar normalmente de novo."
A maior parte do tempo…
"O que simplesmente não podemos fazer aqui", disse Bree,
olhando em volta do consultório como se estivesse estimando
seus recursos.
"Não. Mas eu repito, você não tem nada tão grave quanto isso.

297
A única coisa que nos ocorre é se há uma ereção no momento, mas as nossas pesquisas indicam que
AVC podem, ao contrário, induzir â disfunção erétil nos pacientes que sobrevivem... Mas, assim como os
enforcados também têm ereções (o que levou a prática perigosa de auto sufocamento ou sufocamento a
dois para aumentar o estímulo sexual), pode haver algo nessa linha...
611

Você não vai precisar disso."


Minha boca secou com as visões de um disfibrilador, para
ressincronizar os impulsos. Mesmo quando funcionava... Eu
tinha visto um paciente receber choques repetidamente, o pobre
corpo agarrado pela eletricidade e erguido no ar, para cair mole e
torturado sobre a mesa, apenas para enfrentar outra rodada
quando a caneta de ECG vibrou como um sismógrafo. Engoli o
resto do meu uísque, tossi e pousei a xícara.
"Aí diz alguma coisa útil?”
"Não", disse ela, fechando o livro. Seu tom era deliberadamente
casual, mas eu podia ver claramente quão abalada ela estava. "É
exatamente o mesmo que você disse – administração de choque
elétrico. Quero dizer, eles têm um remédio que, digamos,
funciona às vezes em alguns pacientes, mas tenho certeza de que
não é nada que possamos fazer aqui também. Digitálicos?"
Eu neguei com a cabeça. A penicilina era uma coisa – e mesmo
isso não era de forma alguma confiável. Eu ainda não tinha como
produzir uma dosagem padrão ou dizer se um determinado lote
da substância era potente.
"Não", eu disse com pesar. "Quer dizer, você pode extrair
digitalina de folhas de dedaleira, e as pessoas o fazem. Mas é
terrivelmente perigoso, porque você não pode prever a dosagem,
e até mesmo um pouco mais pode matar. E temos algumas coisas
em mãos." Tentei parecer extremamente útil. "Faremos o possível
para manter um bom estoque de chá de salgueiro branco à mão –
é o mais poderoso."
O salgueiro branco não crescia na Carolina do Norte, mas estava
razoavelmente disponível nos boticários das cidades, e eu tinha
um bom estoque que Jamie me trouxe de Salisbury.
"Chá?", ela perguntou ceticamente.
612

"Na verdade, o princípio ativo do chá de casca de salgueiro é


exatamente o mesmo produto químico encontrado na aspirina. E
embora as pessoas o usem principalmente para o alívio da dor,
ele tem o efeito colateral interessante de afinar o sangue."
"Oh. Então... se meu coração começar a se contrair, devo preparar
uma xícara de chá de casca de salgueiro e isso pelo menos evitará
que meu sangue coagule?" Ela estava tentando manter seu tom de
dúvida, mas pude ver que um pequeno raio de esperança havia
sido aceso. Agora era meu trabalho soprá-lo e tentar encorajá-lo
a se firmar e queimar.
"Sim, exatamente. Agora, o chá não elimina os sintomas
perturbadores, mas existem alguns tipos de coisas ad hoc298 que
você pode tentar para eles."
"Tais como?"
"Bem, mergulhar o rosto em água fria às vezes funciona..."
"Ou é o que você me diz. Aposto que você nunca viu ninguém
fazer isso, não é? " Ela estava definitivamente interessada, no
entanto.
"Na verdade, eu vi. Em L'Hôpital des Anges, em Paris."
Mergulhar várias partes do corpo em água fria – ou às vezes
quente - era um tratamento amplamente recomendado para
muitas doenças diferentes no hospital, pois a água estava
amplamente disponível e era barata. E, surpreendentemente,
geralmente funcionava, pelo menos a curto prazo.
"Ou, se acontecer de você não estar perto de nenhuma água fria,
você pode tentar uma das manobras vagais."
Isso a pegou de surpresa, e ela me lançou um olhar de gato.
"Se você quer dizer fazer sexo..."

298
Com um fim preciso, um objetivo determinado. Expressão em latim.
613

"Não são manobras vaginais", eu disse, "embora eu achasse que


a fibrilação pode distrair demais para querer fazer isso, em
qualquer caso. Eu disse manobras vagais – estimular o nervo
vago. Existem algumas maneiras diferentes de fazer isso, mas a
mais simples – e provavelmente a melhor – é algo chamado de
manobra de Valsalva299. Isso parece complicado, mas
basicamente é apenas respirar fundo e prender o fôlego – pode
ajudar segurando o nariz com os dedos – como se você estivesse
tentando curar soluços e, em seguida, pressionar os músculos
abdominais para baixo o máximo que puder – como tentar forçar
uma evacuação não cooperativa enquanto segura sua respiração."
Ela me lançou um longo olhar, considerando, exatamente o tipo
de olhar que Jamie teria me dado ao receber esse tipo de conselho.
Profundamente suspeito de que eu estava sendo desagradável
com ele de propósito, mas interiormente temeroso de que eu não
estava.
"Bem, isso deve me tornar muito popular nas festas", disse ela.

299
Esta técnica possui esse nome em homenagem a Antonio Maria Valsalva, médico do século XVII, de
Bologna.
614

37

MANOBRAS COMEÇANDO COM A LETRA


V

NEM JAMIE NEM EU tínhamos dito algo um ao outro sobre


lorde John Grey, ciúme sexual ou teimosia em geral desde que
ele saiu pisando duro no meio de nossa discussão – quer tenha
sido para parar a discussão ou apenas para abafar a vontade de
me estrangular, eu não sabia.
Ele estava perfeitamente calmo e aparentemente amigável
quando entrou para o jantar, mas eu o conhecia. Ele me conhecia
também, e deitamos para dormir lado a lado, nos desejamos boa
noite e oidhche mhath, respectivamente, viramos as costas um
para o outro e nos revezamos respirando pesadamente até
adormecer, pensando que qualquer sábio que pediu para não
deixar o sol se pôr em sua ira300, obviamente, não conhecia
nenhum escocês.
Eu pretendia encontrá-lo sozinho e conversar com ele no dia
seguinte, mas com o telhado, o polegar esmagado de Geordie
McHugh e as notícias preocupantes do batimento cardíaco
perturbado de Brianna, não houve uma oportunidade.
O jantar foi aparentemente pacífico; não havia companhia,
nenhum desastre culinário, e nenhuma emergência como uma das
crianças pegando fogo – o que realmente acontecera com Mandy
alguns dias antes, embora ela tivesse sido salva por Jamie ao
perceber que seu vestido faiscava, e então ele mergulhou sobre a
mesa, agarrou-a, rolou-a no tapete da lareira e, em seguida,

300
Está na Bíblia, em Efésios 4:26-32.
615

pegou-a e enfiou-a no caldeirão cheio de água, que estava meio


cheio de batatas fatiadas e cenouras, mas felizmente ainda não
fervendo. Ela e Esmeralda haviam emergido da provação
gotejantes, histéricas e ligeiramente chamuscadas nas bordas,
mas basicamente sãs.
Eu também estava me sentindo um pouco chamuscada nas bordas
e estava determinada a apagar as brasas fumegantes sobre as
quais estávamos caminhando.
Então, quando nos levantamos do jantar, deixei os pratos na mesa
e convidei Jamie para dar um passeio comigo – aparentemente
em busca de uma begônia noturna florescendo que eu havia
encontrado. Fanny, que tinha alguma ideia do que era uma
begônia, olhou atentamente para mim, depois para Jamie, depois
para o prato vazio com o rosto estudadamente em branco.
"As begônias são as coisas que você planta ao lado da latrina?",
ele perguntou, quebrando o silêncio com que saímos de casa.
Estávamos passando pela privada da casa principal naquele
momento, e o cheiro amargo de tomate começava a sobrepujar o
cheiro inebriante de jasmim. "É esse cheiro que eu sinto?"
"Não, isso é jasmim; as flores não desabrocham depois de agosto,
então, tenho tomateiros surgindo sob as vinhas. As plantas de
tomate têm um cheiro forte e vem das folhas, então você tem isso
quase até o tempo realmente frio – quando nada cheira de
qualquer maneira, porque está tudo congelado."
"O mesmo acontece com qualquer pessoa que passa mais de trinta
segundos em uma privada em janeiro", disse Jamie. "Você não se
demoraria para cheirar flores quando acha que sua merda pode
virar gelo antes de você tê-la totalmente fora."
Eu ri e senti a tensão entre nós diminuir, mesmo fraca como a
piada era.
Ele queria resolver isso também.
616

"Um dos aspectos pouco valorizados das roupas femininas", eu


disse. "Isolamento. Quando a temperatura baixa, basta adicionar
outra anágua. Ou duas. Claro ", acrescentei, olhando para trás
para a casa para ter certeza de que não havíamos atraído nenhum
seguidor, "não ter partes íntimas que possam ser expostas aos
elementos também é uma grande ajuda."
Uma lasca de lua brilhou brevemente na grade superior do curral,
a madeira polida pelo uso prolongado. Mais além, a casa aparecia
enorme contra o céu meio escuro, apenas algumas das janelas
inferiores iluminadas. Sólida e bonita, como o homem que a
construiu.
Parei perto da cerca do curral e me virei para encará-lo. "Eu
poderia ter mentido, você sabe."
"Não, você não poderia. Não pode mentir para ninguém,
Sassenach, muito menos para mim. E dado que Sua Senhoria já
tinha me dito a verdade..."
"Você não teria certeza se era verdade", eu disse. "Dado o que
ambas as partes me contaram sobre aquela luta, eu poderia ter
dito a você que John estava falando bobagens, porque queria te
irritar. E você teria acreditado em mim."
"Você poderia escolher suas palavras com um pouco mais de
cuidado, Sassenach", disse ele, com uma pitada de severidade em
sua voz. "Eu não quero ouvir nada sobre as bobagens de Sua
Senhoria. Por que você acha que eu teria acreditado em você? Eu
nunca acredito em nada do que você me diga que eu não tenha
visto com meus próprios olhos."
"Agora quem está sendo irritante?", eu disse, um tanto friamente.
"E você teria acreditado em mim porque teria desejado – e não
me diga o contrário, porque eu não vou acreditar nisso."
Ele fez um huh, um som bem baixinho. Estávamos recostados nas
barras da cerca do curral, e os cheiros de jasmim, tomate e
617

excremento humano foram substituídos pelo odor mais doce de


esterco e as exalações lentas e pesadas da floresta além: o sabor
picante das folhas mortas sobrepostas por folhas afiadas, resinas
limpas de abetos e pinheiros.
"Por que você não mentiu, então?", ele perguntou, após um longo
silêncio. "Se você pensava que eu acreditaria."
Fiz uma pausa, escolhendo minhas palavras. O ar estava parado,
quente e cheio de canções de grilos. Encontre-me, venha até mim,
ame-me... estridulações do coração? Ou apenas desejo de
gafanhoto?
"Porque eu prometi a você honestidade há muito tempo", eu
disse. "E se a honestidade acabar sendo uma faca de dois gumes,
acho que as feridas geralmente valem a pena."
"Frank também achava isso?"
Eu inalei, muito lentamente, e segurei a respiração até que vi
manchas nos cantos dos meus olhos.
"Você teria que perguntar isso a ele", disse eu, com muita
precisão. "Isso é sobre você e eu."
"E Sua Senhoria."
Eu perdi a paciência que estava segurando.
"O que diabos você quer que eu diga? Que eu gostaria de não ter
dormido com John?"
"E você gostaria?"
"Na verdade", eu disse entre dentes, "dada a situação, ou o que
eu pensei que a situação era..."
Ele não era mais do que uma forma alta e negra contra a noite,
mas eu o vi virar-se bruscamente em minha direção.
"Se você disser não, Sassenach, posso fazer algo de que vou me
arrepender, então não diga, sim?"
618

"O que há de errado com você? Você me perdoou, você disse..."


"Não, eu não disse. Eu disse que amaria você para sempre, e irei,
mas..."
"Você não pode amar alguém se não perdoar!"
"Eu perdoo você", ele disse.
"Como você se atreve, porra?", eu gritei, virando-me para ele
com os punhos cerrados.
"O que há de errado com você?" Ele tentou agarrar meu braço,
mas eu me afastei dele. "Primeiro você está com raiva porque eu
não disse que a perdoei e agora você está indignada porque eu a
perdoei?"
"Porque eu não fiz nada de errado para começar, seu idiota
estúpido, e você sabe disso! Como você ousa tentar me perdoar
por algo que eu não fiz?"
"Você fez isso!"
"Eu não fiz! Você acha que fui infiel a você e a mim. Não fui!"
Eu estava gritando alto o suficiente para abafar os grilos e
tremendo de raiva.
Houve um longo momento de silêncio, durante o qual os grilos
voltaram a afinar cautelosamente. Jamie se virou para a cerca,
agarrou-se à barra superior e sacudiu-a com violência, fazendo a
madeira ranger. Ele podia estar falando gaélico, mas o que quer
que estava dizendo soava como um lobo enfurecido.
Eu fiquei parada, ofegante. A noite estava quente e úmida e o suor
começava a brotar em meu corpo. Eu arranquei meu xale e joguei
por cima da cerca. Eu podia ouvir a respiração de Jamie também,
rápida e profunda, mas ele estava parado agora, segurando a barra
da cerca com os ombros rígidos e a cabeça baixa.
"Você quer saber o que há de errado comigo?" ele perguntou
619

finalmente. Sua voz estava baixa, mas não era calma. Ele se
endireitou, assomando ao luar.
"Eu jurei para mim mesmo que ia colocar... essa... coisa... para
fora da minha cabeça, e eu estava quase conseguindo. Mas então
aquele sodomita me manda uma carta301, repentinamente – assim,
como se nada nunca tivesse acontecido! E então está tudo de volta
novamente." Sua voz sufocou e ele parou por um segundo,
sacudindo a cabeça violentamente, como se quisesse clareá-la.
"E quando eu penso nisso, e então eu vejo você... Eu quero ter
você, imediatamente. Você me excita, esteja você cortando
pepinos ou tomando banho nua no riacho com os cabelos soltos.
Eu a desejo muito, Sassenach. Mas ele está lá na minha cabeça, e
se... se... " Sem palavras, ele bateu com o punho na grade da cerca
e eu senti a madeira tremer no meu ombro.
"Se eu não posso suportar a ideia de que você e ele estavam me
fodendo nas minhas costas, como você acha que posso suportar
pensar que você e eu estamos compartilhando uma cama, com ele
nela?"
Eu mesmo teria martelado a cerca, exceto por saber que doeria.
Em vez disso, esfreguei minhas mãos com força no rosto e cravei
os dedos em meu couro cabeludo, espalhando grampos de cabelo.
Eu fiquei lá, bufando.
"Não estamos", eu disse, em um tom de certeza absoluta. "Não
estamos, porque eu não estou. Eu nunca, nem por um segundo,
pensei em ninguém além de você quando estive em sua cama. E
eu deveria estar realmente ofendida com a ideia de que você está,
mas... "
"Eu não estou." Ele engoliu em seco e me pegou pelos braços.
"Eu não estou, Claire. É só que temo que sim."

301
Carta? Que carta? Nenhuma carta foi recebida de Lord John... até esse momento.
620

Eu me senti tonta de hiperventilação e coloquei minhas próprias


mãos espalmadas em seu peito para me equilibrar, e senti o cheiro
do almíscar pungente de seu corpo, as ondas dele um fantasma
quente acre nos rodeando. Eu o excitei.
"Vou dizer uma coisa a você", eu disse finalmente, e levantei
minha cabeça para olhar para ele. Estava totalmente escuro agora,
mas meus olhos estavam bem adaptados para ver seu rosto, seus
olhos procurando os meus. "Vou dizer uma coisa a você", eu
repeti, e engoli em seco. "Você – deixe isso comigo."
Ele tremeu ligeiramente; pode ter sido uma risada escondida.
"Você se tem em muito alta conta, Sassenach", disse ele, com a
voz rouca. "Você acha que um lugar quente para enfiar meu pau
é o suficiente para me fazer esquecer?"
Eu o encarei.
"O que diabos você quer dizer com isso, você..." As palavras me
falharam, e eu me soltei, batendo os braços em frustração
perplexa. "Por que você diria algo assim? Você sabe que não é
verdade!"
Ele coçou o queixo; eu podia ouvir os pelos raspando.
"Não, não é", ele concordou. "Eu só estava tentando pensar em
dizer algo ofensivo o suficiente para fazer você me bater."
Eu realmente ri, embora mais de surpresa do que de humor
verdadeiro. "Não me tente. Por que você quer que eu bata em
você?"
Ele balançou nos calcanhares e me olhou, lentamente, dos
cabelos desfeitos aos mocassins surrados. E de volta.
"Bem, em cerca de dez segundos, pretendo deitá-la de costas na
grama, levantar suas saias e possuir você com certa força. Achei
que me sentiria melhor fazendo isso se você me provocasse
primeiro. "
621

"Eu… provocar você?"


Fiquei imóvel por três daqueles segundos, o sangue trovejando
em meus ouvidos e pulsando em meus dedos. Então eu caminhei
em direção a ele.
"Sete", eu disse.
"Seis", e alcancei a gola de sua camisa.
"Cinco... Quatro..." Eu puxei o tecido para baixo, dizendo TRÊS
bem alto, inclinei-me para frente e mordi seu mamilo. Mas não
uma mordida de amor provocante.
Ele gritou, se jogou para trás, me agarrou e com uma grande mão
segurando minha nuca, empurrou meu rosto contra o dele. Nossas
bocas colidiram desordenadamente e permaneceram assim,
abertas, vorazes, amorosas, buscando tanto quanto beijando,
lábios, orelhas, narizes, línguas e dentes, mãos tateando e
agarrando e puxando e esfregando. Eu encontrei seu pau e
esfreguei com força através de suas calças e ele soltou um
rosnado profundo e agarrou minhas nádegas e então estávamos
na grama em um emaranhado de joelhos e membros e roupas
amarrotadas e carne quente nua sob o céu estrelado.
Pareceu durar muito tempo, embora não pudesse ter durado.
Voltei a mim lentamente, as reverberações passando por mim em
um latejar lento e agradável. Provocação. Com certeza.
Ele estava deitado de costas ao meu lado, o rosto voltado para a
lua, os olhos fechados e respirando como alguém resgatado do
mar. Sua mão direita ainda estava entre minhas coxas e eu estava
enrolada ao lado dele, as espirais de sua orelha, lindas como uma
concha do mar, a poucos centímetros de minha boca.
"Resolvemos isso do nosso jeito, você acha?", eu disse sonolenta.
"Nosso?" Sua mão direita se contraiu, mas ele não a puxou.
"Nosso."
622

Ele suspirou profundamente e virou a cabeça para mim, abrindo


os olhos.
"Resolvemos." Ele sorriu um pouco e fechou os olhos
novamente, seu peito subindo e descendo sob minha mão. Eu
podia sentir seu mamilo através de sua camisa, pequeno e ainda
duro contra minha palma.
"Eu rasguei a pele?"
"Você faz isso toda vez que me toca, Sassenach. Mas eu não estou
sangrando.”
Ficamos deitados em silêncio por algum tempo, e o som dos
grilos e o farfalhar das folhas fluíram sobre nós como água.
Ele falou baixinho e eu virei a cabeça, pensando que não o estava
ouvindo direito, mas estava. Eu simplesmente não sabia que
idioma ele estava falando.
"Isso não é Gàidhlig, é?", eu perguntei em dúvida, e ele negou
com a cabeça lentamente, os olhos ainda fechados.
"Gaeilge", ele disse. "Irlandês. Eu ouvi isso de Stephen O’Farrell,
durante o Levante. Acabei de me lembrar agora.
"Meu corpo está fora de meu controle", ele disse suavemente.
"Ela era a metade do meu corpo – a própria metade da minha
alma.302"

302
Versos retirados (fora de sequência), do poema Elegia para a esposa, de Muireadhach Albanach Ó
Dálaigh, poema da primeira metade do século XIII, em irlandês clássico. Muito triste e belo, pois a
amada esposa morreu, ou como diz o primeiro verso “Minha alma se separou de mim ontem à noite”.
623

38

CEIFADORA303

EU ESTAVA CAVANDO UMA quantidade de plantas


chamadas serralha de quatro folhas, com a intenção de
transplantá-las para meu jardim, quando ouvi o zurro
inconfundível de uma mula irritada. Eu tinha bastante experiência
com Clarence e alguns de seus companheiros para dizer a
diferença entre um chamado de saudação e uma declaração de
hostilidade. Ambos ensurdecedores, mas diferentes.
Algumas vozes masculinas e outra mula juntaram-se à discussão.
Colocando apressadamente as ervas já arrancadas no musgo
úmido em minha cesta, peguei a dita cesta e fui ver o que estava
acontecendo.
Nenhuma das vozes parecia familiar, e parei perto do barulho,
olhando através de uma parede de árvores formada por abetos
prateados e choupos altos e magros. Dois homens, dois animais,
tudo bem – mas um deles, uma baia clara, tinha se desviado e
estava pastando na grama florida perto da trilha, enquanto o
outro, mais escuro, resistia ferozmente aos esforços dos dois
homens para forçá-lo – eu verifiquei; sim, era ele, um burro – a
continuar subindo o desfiladeiro estreito e rochoso.
Francamente, não culpei o burro nem um pouco. Ele e sua
companheira estavam com a carga pesada, cada um com uma
longa caixa de madeira pendurada de cada lado e grandes pacotes
cobertos de lona amarrados desordenadamente a uma armação de
mochila no topo.

303
No original, “grim reaper”, que já vimos que é ceifador, no sentido figurativo de morte. Segue em
outra nota...
624

Eu poderia adivinhar o que havia acontecido. Havia uma trilha


boa e larga que subia deste lado da encosta, mas se ramificava em
um local chamado Mulher Ferida, que era uma pequena fonte de
um azul brilhante com um único choupo na borda, casca branca
e sólida, mas com rastros de seiva vermelho-sangue escorrendo
lentamente das feridas infligidas por insetos que se enterravam e
pelos pica-paus que os caçavam. A trilha principal fazia uma
curva fechada e seguia para o leste, enquanto um caminho mais
estreito de veados, muito obstruído por vegetação e pedras
rolantes, subia direto pelo lado direito do álamo.
A mula líder havia tropeçado nas pedras ou sido apanhada pelos
galhos das árvores que margeavam o caminho. O que quer que
tenha causado isso, as amarras de sua bagagem haviam quebrado
ou escorregado, e metade da carga estava pendurada sobre sua
cauda, espalhando pequenas caixas e bolsas de couro, com uma
das caixas compridas descansando com uma ponta no chão, a
outra apontando para o céu, e um frágil fio de corda ainda a
prendendo à mula.
Eu já tinha visto o tipo de estojo usado para enviar armas de fogo,
muitas vezes. Na França, na Escócia, na América – não importa
o período de tempo, um rifle é um rifle, e você precisa de uma
caixa longa e estreita se quiser carregar um grande número deles.
Eu não reconheci nenhum dos homens e não esperei para me
apresentar. Retirei-me com minhas serralhas o mais rápido que
pude.
Felizmente, encontrei Jamie em meia hora, passando o dia com
Tom MacLeod, o fabricante de caixões.
"Quem está morto?", eu engasguei, sem fôlego por descer a
montanha.
"Ninguém, ainda", disse Jamie, olhando para mim. "Mas você
parece que está prestes a morrer, Sassenach. O que aconteceu?"
625

Coloquei minha cesta em um cavalete, sentei em outro e contei a


eles, parando para respirar ou beber água do cantil que Tom me
entregou.
"Nada nesse caminho, exceto a casa do Capitão Cunningham, não
é?", Tom observou.
"Você quer dizer que eles talvez não tenham subido por acidente,
sim?" Jamie enfiou a cabeça para fora do galpão dos caixões e
olhou para o céu. "Vai chover em breve. Será uma pena se nossos
amigos ficarem presos na lama."
Tom grunhiu em aprovação e, sem maiores consultas, entrou em
sua casa, voltando em menos de um minuto com um velho chapéu
de couro na cabeça, um bom rifle na mão, uma pistola no cinto e
uma caixa de cartucho pendurada sobre o ombro. Ele tinha uma
segunda pistola na outra mão, que deu a Jamie. Jamie assentiu,
verificou o depósito de pólvora e a pederneira e a enfiou no cinto.
Tocando distraidamente em seu punhal, ele acenou para mim.
"Vá buscar o Jovem Ian, sim, Sassenach? Eu o vi ceifando em
seu campo superior há menos de uma hora."
"Mas o que..."
"Vá", disse ele, embora suavemente. "Dinna fash, Sassenach. Vai
tudo ficar bem."
-.-.-

ENCONTREI O JOVEM Ian, não em seu campo superior, mas


na floresta próxima, de rifle na mão.
"Não atire! ", eu chamei, localizando-o através das moitas. "Sou
eu!"
"Não poderia confundi-la com nada, exceto um pequeno urso ou
um grande porco, tia", assegurou-me ele enquanto eu abria
caminho através de uma moita de corniso em direção a ele. "E eu
626

não quero encontrar com nenhum desses hoje."


"Ótimo. Que tal um belo par de traficantes de armas?
Expliquei o melhor que pude enquanto corria atrás dele enquanto
ele fazia um desvio pelo campo para pegar sua foice, que ele
enfiou em minhas mãos.304
"Eu não acho que você vai ter que usá-la, tia", disse ele, sorrindo
ao ver a expressão em meu rosto. "Mas se você ficar aí
bloqueando a trilha, precisaria ser um homem desesperado para
tentar passar por você."
Quando chegamos, descobrimos que a trilha já havia sido
bloqueada efetivamente pelo fardo do burro, que havia
conseguido se libertar completamente. Quando Ian e eu
aparecemos um pouco abaixo dos homens das armas, o burro,
desfrutando de sua nova leveza de espírito, estava escalando
agilmente a pilha de bolsas, caixas e vime em nossa direção, com
a intenção de se juntar a seu companheiro, que não estava
deixando sua própria carga impedi-lo de vasculhar um grande
pedaço de amora silvestre que margeava a trilha bem ali.
Evidentemente, tínhamos chegado quase ao mesmo tempo que
Jamie e Tom MacLeod, pois os dois traficantes de armas se
viraram boquiabertos para mim e Ian da mesma forma que para
Jamie e Tom, na trilha acima deles.
"Quem diabos são vocês?", um dos homens exigiu, olhando de
mim para Ian com perplexidade. Ian havia amarrado os cabelos
com um topete para mantê-lo fora do caminho enquanto ceifava,
e sem sua camisa, profundamente bronzeado e tatuado, ele
parecia muito com o mohawk que era. Eu não queria pensar como
deveria aparentar, totalmente desgrenhada e com meus cabelos
cheios de folhas e esparramados, mas agarrei minha foice e dei a

304
Essa é a complementação da nota do título. Claire ostentando uma foice pode não ser a representação
da morte, mas pode ser assustadora.
627

eles um olhar severo.


"Eu sou Ian Òg305 Murray," Ian disse suavemente, e acenou para
mim. "E essa é minha tia. Oops." A primeira mula estava
bisbilhotando com determinação entre nós, fazendo com que
ambos saíssemos do caminho.
"Eu sou Ian Murray", Ian repetiu, recuando o rifle em uma
posição relaxada, mas definitivamente pronta sobre o peito.
"E eu", veio uma voz profunda de cima, "sou o coronel James
Fraser, da Cordilheira dos Fraser, e esta é a minha esposa." Ele
apareceu, de ombros largos e alto contra a luz, com Tom atrás
dele, a luz do sol brilhando em seu rifle.
"Pegue aquela mula, sim, Ian? Esta é minha terra. E quem, posso
perguntar, são vocês, cavalheiros?"
Os homens estremeceram de surpresa e giraram para olhar para
cima – embora um tenha lançado um olhar apreensivo por cima
do ombro, para ficar de olho na ameaça na retaguarda.
"Hã... nós somos... hum..." O jovem – ele não poderia ter mais de
vinte anos – trocou um olhar de pânico com seu companheiro
mais velho. "Eu sou o tenente Felix Summers, senhor. Do navio
Revenge, de Sua Majestade."
Tom fez um barulho que pode ter sido uma ameaça ou diversão.
"Quem é seu amigo, então?", ele perguntou, acenando para o
senhor mais velho, que poderia ter sido qualquer coisa, desde um
vagabundo da cidade a um caçador do sertão, mas que parecia um
pouco afetado pela bebida, o nariz e as bochechas cobertos por
capilares estourados.
"Eu... acredito que o nome dele é Voules, senhor", disse o
tenente. "Ele não é meu amigo." Seu rosto tinha passado de um
branco chocado para um rosa afetado. "Eu o contratei em

305
Ian Jovem. Veremos, mais adiante, também Ian Mhór, fazendo referência a Ian Grande, o Ian Pai.
628

Salisbury, para ajudar com – com minha bagagem."


"Entendo", disse Jamie educadamente. "Você está talvez...
perdido, tenente? Acredito que o oceano mais próximo está a
cerca de quinhentos quilômetros atrás de você."
"Estou de licença do meu navio", disse o jovem, recuperando a
dignidade. "Eu vim visitar... alguém."
"Nenhum prêmio para adivinhar quem", disse Tom a Jamie, e
abaixou o rifle. "O que você quer fazer com eles, Jamie?"
"Minha esposa e eu vamos levar o tenente e seu ... homem... até
a casa para um refresco", disse Jamie, curvando-se graciosamente
para Summers. "Você poderia ajudar Ian com... Ele acenou com
a cabeça em direção ao caos espalhado entre o cascalho. "E, Ian,
uma vez que você tenha as coisas em mãos, suba e traga o capitão
Cunningham para se juntar a nós, sim?"
Summers percebeu a diferença sutil entre "convidar" e "trazer"
tão bem quanto Ian, e enrijeceu, mas não teve escolha. Ele tinha
uma pistola e uma adaga de oficial em seu cinto, mas pude ver
que a primeira não estava preparada e, portanto, provavelmente
não estava carregada também, e eu duvidava que ele já tinha
sacado sua adaga por qualquer motivo além de poli-la. Jamie nem
mesmo olhou para as armas, muito menos pediu sua rendição.
"Agradeço, senhor", disse Summers, girando nos calcanhares e
recuando apenas um pouco quando passou por mim e minha foice
e começou a descer a trilha, as costas rígidas.

-.-.-

ERA QUASE HORA do jantar quando o capitão Cunningham


chegou, não exatamente sob a custódia do Jovem Ian, mas
definitivamente em sua companhia e não muito satisfeito com
629

isso.
Felizmente, tive tempo para me lavar, pentear folhas de carvalho
e agulhas de abeto dos meus cabelos e, em geral, me recompor
enquanto Jamie sentava o tenente Summers e o sr. Voules na sala
e oferecia cerveja a eles. Voules aceitou avidamente, Summers
relutantemente – mas eles beberam. E agora, duas horas e quatro
litros de cerveja depois, eles estavam, se não felizes, um pouco
mais relaxados.
"Quem são esses homens?", Fanny sussurrou para mim, voltando
para a cozinha depois de outra entrega de cerveja. "Eles não
palecem – parecem gostar muito do sr. Fraser."
"São amigos do capitão Cunningham", eu disse. "Acho que o
capitão se juntará a eles em breve. Temos algo que eles possam
comer? Os homens são sempre mais fáceis de lidar com o
estômago cheio."
"Isso é verdade", disse ela, acenando com a cabeça sabiamente.
"Um bordel de primeira classe tem uma boa cozinheira. Mas você
não pode deixar um homem comer muito se quiser que ele faça
alguma coisa. Madame Abbott dizia que se a barriga de um
homem se projeta tanto que ele não consegue ver seu pau, é
melhor você dar a ele vinho o suficiente para que ele adormeça e
então dizer que ele se divertiu quando acordar. Ele..."
"Que tal a torta de caça que a sra. Chisholm mandou?", eu
interrompi apressadamente. "Sobrou algo dela?”, eu disse a
Fanny que ela poderia me dizer qualquer coisa, e eu fui sincera,
mas às vezes ainda ficava desconcertada com os detalhes vívidos
de suas lembranças.
O capitão definitivamente tinha uma aparência perigosamente
insatisfeita306.

306
No original, lean and hungry look, referência à peça Júlio César de Shakespeare, em que Cesar
observa a respeito de um dos homens que conspiram contra ele: “Yon Cassius has a lean and hungry
630

"Esse tipo de homem é perigoso", murmurei, observando


enquanto ele entrava na sala, com o Jovem Ian em seus
calcanhares, como um lobo simpático.
Então tive um vislumbre de Jamie, levantando-se para
cumprimentar Cunningham e pensei: E ele não é o único...
Deixei Fanny cuidar da torta de caça e segui os homens até a sala
com uma bandeja contendo uma garrafa de uísque JFS, uma
pequena jarra de água e cinco de nossos melhores copos, sendo
estes os pequenos copos de fundo pesado conhecidos como copos
de tiro307, pois faziam um som fortemente semelhante ao de um
tiro de pistola quando batidos na mesa após um brinde. Eu
esperava que ainda houvesse cinco deles após esta pequena
reunião social.
"Capitão", eu disse, sorrindo agradavelmente enquanto colocava
a bandeja na mesa. "Que bom ver você."
Ele olhou para mim, mas era muito educado para dizer o que
estava pensando claramente. Eu não tinha certeza se minha
presença iria melhorar ou piorar as coisas, mas Jamie desviou os
olhos brevemente, indicando que tal presença não seria
necessária, então fiz uma reverência para os presentes e caminhei
pelo corredor até a cozinha, onde eu tirei os sapatos e recuei
silenciosamente com as meias, para grande diversão de Fanny.
"Imagino que meu sobrinho tenha contado a você as
circunstâncias em que encontramos seus... conhecidos esta
tarde?", Jamie estava dizendo, em um tom de voz agradável.
Houve um som de respingos e o tilintar de copos.
"Circunstâncias", Cunningham repetiu bruscamente. "Tenente
Summers é... era um amigo próximo do meu filho falecido.
look.” César quer dizer que Cassio aparenta estar perigosamente insatisfeito, como se estivesse faminto
por poder.
307
Nas pesquisas, descobrimos que esses copos na realidade só começaram a ser fabricados no final do
séc XIX, começo do séc XX. Mas o conceito de ‘shot’, tiro, como medida de bebida alcóolica já era
conhecido desde o séc XVIII.
631

Mantivemos a correspondência desde a morte de Simon, e tenho


Félix da mesma forma que teria se ele fosse meu filho também.
Eu tenho consideráveis objeções ao seu tratamento para com ele
e seu servo, senhor!"
"Um trago com você, senhor? Slàinte mhath!"
De minha posição vantajosa, achatada contra a parede, não podia
ver Jamie, mas podia ver o capitão, que pareceu surpreso com a
resposta a sua afirmação.
"O quê?", ele disse bruscamente, e olhou para seu copo de uísque
como se pudesse estar envenenado. "O que você disse, senhor?"
"Slàinte mhath", Jamie repetiu suavemente. "Significa para sua
saúde."
"Oh." O capitão olhou para Summers, que a esta altura parecia
um porco que acaba de ser atingido na cabeça com uma pesada
marreta. "Er... sim. Para... sua saúde, sr. Fraser."
"Coronel Fraser", Ian acrescentou, prestativo. "Slàinte mhath!"
O capitão bebeu sua bebida, engoliu e ficou roxo. "Talvez um
pouco de água, capitão." Eu vi o braço de Jamie esticado, o jarro
na mão. "Diz-se que abre o sabor do whisky. Ian?"
Ian pegou a jarra e habilmente misturou uma bebida fresca –
metade com água, desta vez – para o capitão, que a pegou, os
olhos marejados.
"Eu repito... senhor...", disse ele com voz rouca. "Eu tenho
objeção…"
"Bem, eu também, senhor", disse Jamie, no mesmo tom amável.
"E eu acho que qualquer homem que se preze faria o mesmo, ao
descobrir um empreendimento marcial acontecendo sob seu
nariz, em suas terras, sem aviso ou notificação. Você não
concorda?"
"Não finjo entender o que você quer dizer com um
632

empreendimento marcial, coronel." Cunningham se controlou e


se endireitou como um atiçador. "O tenente Summers teve a
gentileza de me trazer alguns suprimentos que pedi a amigos da
marinha. Elas..."
"Eu me perguntei, ken, por que um Lowlander, e especialmente
aquele que é um capitão naval, iria escolher a Cordilheira dos
Fraser para se estabelecer", disse Jamie, interrompendo-o. "E
porque você iria querer uma terra tão longe no cume, para esse
assunto. Mas, claro, sua casa fica a cerca de dezesseis
quilômetros das aldeias cherokees, não é?"
"Eu... tenho certeza de que não sei", disse o capitão. "Mas isso
não tem nada a ver..."
"Eu fui um agente indigenista por algum tempo, ken?", Jamie
continuou, no mesmo tom suave. "Sob a superintendência de
Johnson. Passei um tempo considerável com os cherokees, e eles
me consideram um homem honesto."
"Eu não estava contestando sua honestidade, coronel Fraser."
Cunningham parecia um tanto irritado, embora fosse óbvio que
isso era novidade para ele. "Eu tenho problemas com a sua..."
"Você deve saber, suponho, que o governo britânico esteve em
conluio com várias nações indígenas na condução desta guerra,
encorajando-as a atacar assentamentos suspeitos de convicções
rebeldes. Fornecendo-lhes armas e pólvora ocasionalmente."
"Não, senhor." O tom do capitão mudou, sua beligerância um
pouco tingida agora com cautela. "Eu não estava ciente disso."
Jamie e Ian fizeram barulhos educados escoceses indicando
ceticismo. "Você vai admitir que sabe que sou um rebelde,
capitão?"
"Você é bastante aberto sobre isso, senhor!", Cunningham
explodiu. Ele se sentou ereto, os punhos cerrados sobre os
633

joelhos.
"Eu sou", Jamie concordou. "Vocês não fazem segredo de suas
próprias lealdades..."
"Lealdade ao rei e ao país não requer segredo nem defesa,
coronel!"
"Sim? Bem, suponho que isso depende se essa lealdade resulta
em ações que podem ser consideradas prejudiciais a mim e aos
meus, capitão. Minha causa ou minha família."
"Não queríamos dizer..." O tenente Summers estava começando
a ficar alarmado. Tirado de sua letargia pelo tom crescente da
conversa, ele tentou se sentar ereto, o rosto redondo sério. "Não
pretendíamos trazer os índios para atacar você, senhor, que Deus
me ajude!"
"Sr. Summers!" O capitão ergueu a mão e o tenente ficou
vermelho e se acalmou.
"Coronel. Repito que não escondo minha lealdade. Eu a prego em
público todos os domingos, diante de Deus e dos homens."
"Eu ouvi você", disse Jamie secamente. "E você notará, eu
suponho, que não fiz nenhum movimento para impedi-lo de fazê-
lo. Não tenho nenhum problema com suas opiniões; fale como
quiser e deixe o diabo ouvir."
Eu pisquei. Ele estava com raiva e estava começando a deixar
transparecer.
"Fale o que quiser, capitão. Mas não vou apoiar nenhuma ação
que ameace a Cordilheira."
O tenente Summers fez um pequeno movimento involuntário, e
o capitão Cunningham fez um movimento curto e agudo que o
silenciou.
"Você tem minha palavra, coronel", disse ele entre os dentes.
634

Houve um longo momento de silêncio e então ouvi Jamie respirar


fundo, seguido por um copo de uísque.
"Então vamos beber ao entendimento entre nós, capitão", ele
disse calmamente, e eu ouvi o breve movimento e raspar de vidro
na madeira quando todos pegaram suas doses.
"Para a paz", disse Jamie. Ele esvaziou o copo e o bateu na mesa
com um estrondo que tirou o sr. Voules de seu estupor.
"Que raios foi isso?" Ele se sentou, olhando turvo de um lado para
outro. "Eles estão atirando em nós com nossas próprias armas?"
O breve silêncio foi quebrado por Jamie.
"Armas?", ele disse suavemente. "Você notou alguma arma, Ian,
quando empacotou o equipamento do capitão?"
"Não, tio", Ian disse, exatamente no mesmo tom. "Sem armas."
-.-.-

APESAR DE SEUS aspectos farsescos, o incidente com as armas


do capitão foi verdadeiramente alarmante. Pregar lealdade ao rei
na igreja em um domingo era uma coisa; preparar-se –
evidentemente – para um conflito armado sob o nariz de Jamie
era outra.
"Você pode despejá-lo?", eu perguntei timidamente. As crianças
foram todas para a cama depois do jantar, e Jamie, eu, Brianna e
Roger estávamos organizando um pequeno conselho de guerra
por cima de pratos de pudim de milho.
"Eu poderia", disse Jamie, franzindo a testa para o jarro de creme.
"Mas estive pensando nisso, e acho que talvez seja melhor deixá-
lo ficar, onde ele estará sob meus olhos, do que mandá-lo fazer
travessuras onde ele não estará."
"O que você acha que ele estava – ou está – planejando fazer?",
Roger perguntou. "Quero dizer – é pelo menos possível que ele
635

quisesse armas para proteção; a casa dele é muito perto da Linha


Cherokee."
“Vinte mosquetes talvez seja um número um pouco excessivo
para manter índios perdidos fora de sua casa", respondeu Jamie.
"Se ele comprou armas, ele tinha um plano para usá-las. Para
quê? Ele tem em mente tentar me assassinar e queimar meus
inquilinos? Qual seria o ponto disso?"
"Talvez ele esteja fazendo a mesma coisa que você, Pa." Bree
derramou creme em seu próprio pudim e depois no de Jamie.
"Formando uma milícia pessoal para proteger sua propriedade."
Eu olhei para Jamie. Ele devolveu o olhar, mas balançou a cabeça
quase imperceptivelmente e pegou a colher. Embora a prevenção
de ataques à Cordilheira fosse certamente um dos motivos de
Jamie para armar alguns de seus homens, eu tinha certeza de que
ele tinha outros. Ele claramente não achava que era hora de contar
a Roger e Bree sobre eles.
"Ian disse que um dos homens que trouxe as armas era um tenente
naval. Um dos homens do capitão de sua carreira no mar,
suponho?", Bree perguntou.
"Suponho também", disse Jamie, com certa concisão.
"Insinuando", ela disse, "que ele ainda tem ligações com a
Marinha. De onde provavelmente vieram as armas – eles usam
mosquetes em navios?"
"Sim, eles usam." Jamie se mexeu ligeiramente, como se sua
camisa fosse muito apertada – o que não era. "Quando os navios
se aproximam, lutando, os marinheiros levam os mosquetes para
o cordame e disparam contra o outro navio. A Marinha tem
muitas armas."
"Como você sabe disso?", Bree perguntou, curiosa.
"Eu li, moça", seu pai disse, levantando uma sobrancelha para
636

ela. "Havia um relato de uma batalha naval no jornal de Salisbury


e um desenho mostrando os pequenos marinheiros entre os
mastros, explodindo.”
"Sim, bem", disse Roger, colocando uma colher de morangos
maduros em fatias sobre o pudim. "Duvido que Cunningham
tente levantar as armas dessa forma novamente. E se ele o fizer..."
"Então ele estará nos armando, em vez de a si mesmo." Apesar
da seriedade da discussão, Bree achou graça. A expressão de
diversão desapareceu, porém, e ela se inclinou em nossa direção.
"Mas você vai precisar de mais armas do que as que tirou do
capitão, não é?"
"Eu vou", Jamie admitiu. "Mas pode levar algum tempo para
encontrá-las. E comprar a pólvora para dispará-las. "
Roger e Bree trocaram um olhar e ele acenou com a cabeça.
"Vamos ajudar com isso, Pa", disse ela, e enfiou a mão no bolso
e tirou três pequenas tiras planas do que só poderia ser ouro,
brilhando fracamente à luz das velas.
"Onde diabos você conseguiu isso?" Peguei um, tocando-o com
cuidado. Era surpreendentemente pesado para seu tamanho;
definitivamente ouro.
"Um joalheiro na Newbury Street, em 1980", disse ela. "Mandei
fazer cinquenta destas. Costurei algumas nas bainhas de nossas
roupas e escondi outras nos saltos dos sapatos. Custou apenas dez
para nos abastecermos para a viagem e comprarmos passagem no
navio da Escócia. Resta muito, quero dizer, se você precisar
comprar pólvora ou algo assim."
"Você tem certeza, moça?" Jamie tocou uma das tiras com o dedo
"Eu tenho ouro o suficiente. É apenas..."
"Só um pouquinho mais difícil de usar", disse Roger, sorrindo.
"Não se preocupe; temos a honra de ajudar a financiar a
637

Revolução."
638

39

EU RETORNEI

A lorde John Grey, aos cuidados do comandante


das Forças de Sua Majestade em Savannah,
Colônia Real da Georgia

Caro lorde John

Eu estou de volta. Embora eu deva dizer "eu


retornei!" – mais dramático, quem sabe? Estou
sorrindo enquanto escrevo isto, imaginando você
dizendo algo sobre como a falta de drama não é
uma das minhas falhas. Nem sua também, meu
amigo.
Nós – meu marido, Roger, e nossos dois filhos,
Jeremiah (Jem) e Amanda (Mandy) - fixamos
residência na Cordilheira dos Fraser. (Embora
seja mais como se a residência estivesse ganhando
existência ao nosso redor; meu pai está
construindo sua própria fortaleza.) Estaremos
aqui no futuro previsível, embora eu saiba melhor
do que a maioria das pessoas o quão pouco se
pode prever o futuro. Deixaremos os detalhes para
quando eu o vir novamente.
Eu teria escrito para você em qualquer caso, mas
estou fazendo isso hoje porque meu pai recebeu
uma carta três dias atrás de um jovem chamado
639

Judah Bixby, que foi seu ajudante de campo


durante a Batalha de Monmouth (você estava
envolvido com isso? Se for assim, espero que você
não tenha se machucado). O Sr. Bixby escreveu
para contar a Pa que um amigo dele, dr. Denzell
Hunter, foi capturado em Nova York e está
atualmente detido na prisão militar em Stony
Point.
Mamãe disse que você saberá perfeitamente bem
por que estou escrevendo para você sobre Denzell
Hunter, em vez de ela o fazer. Pa disse que
ninguém precisa escrever para você, pois a esposa
do dr. Hunter certamente já terá escrito ao pai
(seu irmão, se entendi direito?), mas concordo
com mamãe que é melhor escrever, para o caso da
sra. Hunter não saber onde o marido dela está, ou
não poder escrever para você por algum outro
motivo.
Todo o meu melhor para você e sua família - e, por
favor, dê o meu melhor para o seu filho William.
Estou ansiosa para encontrá-lo – e encontrar
você, é claro! – novamente.
(Alguém assina uma carta "Seu mais obediente,
humilde, etc." se esse alguém é uma mulher? Com
certeza não ...)
Sinceramente,
Brianna Randall Fraser MacKenzie (sra.)

P.S. Anexos estão alguns esboços que fiz da Casa


Nova (como meu pai a chama) em seu estado atual
de construção, bem como breves rabiscos com
640

meu olhar sobre os membros de minha família, em


seus estados atuais. (Há quanto tempo você não vê
meus pais?) Tenho certeza de que você pode dizer
quem é quem (deveria ser "quem é qual"? Se sim,
faça o ajuste gramatical para mim).
641

40

BRANDY NEGRO

Savannah

M, O DUQUE DE PARDLOE escreveu e depois parou.


Mergulhando a pena novamente, ele inseriu cuidadosamente a
palavra "Querida", embora fosse obrigado a incliná-la para cima
a fim de espremê-la na página, tendo começado sua escrita muito
para a esquerda. Ele olhou para a página em branco por um
momento, então olhou para cima para encontrar seu irmão mais
novo olhando para ele, uma sobrancelha levantada.
"Que diabo você quer?", ele rosnou.
"Brandy", John respondeu suavemente. "E você também, pelo
que parece. O que diabos você está fazendo? " Atravessando a
sala, ele se ajoelhou para remexer em seu baú de campanha,
emergindo com uma garrafa preta de barriga redonda que
chacoalhou de uma forma reconfortantemente pesada.
"Isso é brandy? Tem certeza?" Mesmo assim, Hal se aproximou
da pequena mesa em que havia se empoleirado a sua escrivaninha
e enfiou a mão no baú para pegar um par de canecas de peltre
amassadas.
"Stephan von Namtzen 308disse que sim." John deu de ombros e,
vindo até a mesa, pegou o canivete de Hal e começou a remover
o lacre de cera da garrafa. "Você se lembra de nosso amigo
Graf309 von Erdberg? Ele diz que é conhaque negro, para ser
exato."
"É realmente preto?", Hal perguntou, interessado.

308
Amigo bastante querido de lorde John, é personagem em Assunto, Súcubo, Irmandade e Prisioneiro.
309
Conde, em alemão.
642

"Bem, a garrafa é, embora eu deduza pela carta que é chamada


assim coloquialmente porque é feita por um pequeno grupo de
monges que vivem na borda da Floresta Negra. Seu nome
verdadeiro é algo alemão..." Descartando os últimos resquícios
de cera, ele segurou a garrafa perto dos olhos e apertou os olhos
para o rótulo escrito à mão. "Blut der Märtyrer. Sangue dos
Mártires."
"Que alegre." Hal estendeu sua caneca, e o rico aroma do que era
claramente um bom brandy, talvez um pouco mais vermelho do
que o normal – ele apertou os olhos para enxergar a xícara –
encheu seu nariz. "Você manteve seu alemão, então?"
John ergueu os olhos de sua xícara, levantando a outra
sobrancelha.
"Quase não tive tempo de esquecer", disse ele. "Faz apenas um
ano desde Monmouth e os malditos hessianos310 saíram de cada
fenda na terra. Embora eu suponha – acrescentou ele
casualmente, desviando o olhar – que você quer dizer se tenho
visto nosso amigo Graf recentemente. Eu não tenho. Isso veio
com uma breve nota dizendo que Stephan estava em Trier, Deus
sabe por quê.311"
"Ah." Hal tomou um gole do brandy e fechou os olhos, tanto para
realçar o sabor quanto para evitar olhar para John.
O brandy começou a se estabelecer nos membros de John, o calor
suavizando seus pensamentos. E, possivelmente, seu julgamento.
"Você decidiu escrever para Minnie, então?" A voz de John era
casual, mas a pergunta não era.

310
Os hessianos foram os auxiliares alemães do século XVIII contratados para o serviço militar pelo
governo britânico. Eles assumiram o nome do estado alemão de Hesse-Kassel.
311
Trier, nome em alemão de Tréveris, é considerada a cidade mais antiga da Alemanha. Em
Prisioneiro, Stephan von Namtzen acreditava que, após se confessar ao padre, teria como penitência
fazer uma peregrinação a essa cidade.
643

"Eu não escrevi."


"Mas você... oh. Entendo, você quer dizer que ainda não decidiu,
e é por isso que você estava pairando sobre aquela folha de papel
como um abutre esperando que algo morra."
Hal abriu os olhos e se endireitou, fixando em John o tipo de olhar
que o faria fechar a boca como um baú. John, porém, pegou a
garrafa e encheu novamente o copo de Hal.
"Eu sei", ele disse simplesmente. "Eu também não gostaria. Mas
você acha que Ben está realmente morto, então? Ou você está
escrevendo para ela sobre Dottie e seu marido?"
"Não, eu não sei." A caneca se inclinou na mão de Hal. Ele salvou
com não mais do que um toque de brandy caindo em seu colete,
que ele ignorou. "Não acredito, e acho que a sra. MacKenzie
provavelmente está certa sobre Dottie escrever para mim. Quero
esperar até ouvirmos dela antes de alarmar Minnie."
John observou isso, sua própria expressão deliberadamente
impassível.
"É que eu nunca vi você começar uma carta, para ninguém, com
a saudação Querida."
"Eu não preciso", disse Hal irritado. "Beasley 312 faz toda aquela
bobagem quando é oficial e, se não for, para quem estou
escrevendo já sabe quem são e o que penso deles, pelo amor de
Deus. Afetação inútil. Eu as assino", acrescentou ele, após uma
breve pausa.
John fez um ruído evasivo e tomou um gole de brandy,
segurando-o pensativamente na boca. A pena tinha feito uma
mancha escura na mesa onde seu irmão a tinha deixado cair.
Vendo isso, Hal enfiou a pena de volta no frasco e esfregou a
marca com a lateral da mão.

312
Secretário e escrivão de Hal na sede do regimento dele em Londres.
644

"Era só – eu não conseguia pensar em como começar, caramba."


"Não se culpe."
Hal olhou para a folha de papel, com sua saudação acusatória.
"Então eu... escrevi... 'M'. Só para começar, você sabe, e então eu
tive que decidir se continuava e escrevia o nome dela ou deixava
como 'M.'... Então, enquanto eu estava pensando...” Sua voz
morreu e ele deu um gole rápido e convulsivo do Sangue dos
Mártires.
John deu um gole um pouco mais reservado, pensando em
Stephan von Namtzen, que escrevia de vez em quando, sempre
se dirigindo a ele com a formalidade alemã como "Meu Estimado
e Nobre Amigo", embora as cartas em si tendessem a ser muito
menos formais... As saudações de Jamie Fraser variavam do
casual "Querido John" ao um pouco mais caloroso "Meu caro
amigo" e, dependendo do estado de suas relações, "Prezado
Senhor" ou um friamente abrupto "Meu Senhor", na outra
direção.
Possivelmente Hal estava certo. As pessoas para as quais escrevia
nunca duvidavam do que ele pensava delas, e o mesmo acontecia
com Jamie. Talvez fosse bom da parte de Jamie dar um aviso
justo, para que você pudesse abrir uma garrafa antes de continuar
lendo.
O brandy era bom, escuro e muito forte. Ele deveria ter diluído
com água, mas – mas dada a rigidez do corpo de Hal, achou que
foi bom que não o tivesse feito.
Querida M. Era verdade que Hal sempre havia endereçado cartas
a ele apenas como "J." Ainda bem que o sr. Beasley, o escrivão
de Hal, arrumava a correspondência de Hal, ou o rei poderia
muito bem ter sido chamado abruptamente de "G." Ou seria "R"
para "Rex"?
645

Por mais absurdo que fosse, o pensamento sacudiu a memória que


o incomodava desde que vira a letra vestigial e olhou para ela e
depois para o rosto de seu irmão.
Hal havia chamado Esmé assim – "Em". Sua primeira esposa,
morta no parto – e o primeiro filho de Hal morto com ela. Ele
estava acostumado a escrever notas para ela começando assim –
apenas um "M", sem nenhuma outra saudação; John tinha visto
algumas. Talvez ver a única letra, preta e em negrito contra o
papel branco, tenha trazido tudo de volta com a rapidez
inesperada de uma bala no coração.
Hal pigarreou de forma explosiva e engoliu o brandy, o que o fez
tossir, espalhando gotas vermelho-âmbar por todo o papel. Ele o
agarrou e amassou, em seguida, jogou-o no fogo, onde pegou e
ardeu com uma chama tingida de azul.
"Eu não posso", disse ele definitivamente. "Eu não vou! Quer
dizer, não sei se Ben está morto. Não tenho certeza."
John esfregou a mão no rosto e acenou com a cabeça. Ele próprio
sentiu um frio no coração ao pensar no sobrinho mais velho.
"Tudo bem. Alguém mais vai contar para a Minnie? Adam ou
Henry? Ou, você sabe, Dottie?", ele acrescentou timidamente.
O sangue foi drenado do rosto de Hal. Pelo que John sabia,
nenhum dos irmãos de Ben era um correspondente muito bom.
Mas sua irmã, Dottie, estava acostumada a escrever regularmente
para sua mãe – tinha, na verdade, até escrito para informar a seus
pais que ela estava fugindo com um médico quacre. E se tornar
uma rebelde, na barganha. Ela não teria escrúpulos em contar a
Minnie qualquer coisa que ela achasse que sua mãe deveria saber.
"Dottie também não sabe", disse Hal, tentando se convencer.
"Tudo que eu disse a ela foi que ele estava desaparecido."
"Desaparecido, presumivelmente morto", John apontou. "E
646

William disse..."
"E onde está William, falando em escrever?" Hal exigiu,
procurando refúgio na hostilidade. "A menos que você saiba algo
que eu não sei, ele simplesmente fugiu sem dizer uma palavra."
John exalou fortemente, mas controlou seu temperamento.
"William encontrou boas evidências de que Ben não morreu
naquele campo de prisioneiros em Nova Jersey", ressaltou. "E ele
descobriu a esposa e o filho de Ben para nós."
"Ele encontrou um corpo em uma cova com o nome de Ben, e
não era Ben – mas, pelo que sabemos, Ben está em uma cova com
o nome daquele sujeito, e quem os enterrou simplesmente
confundiu os corpos." Hal queria acreditar fervorosamente que
alguém havia enterrado um estranho sob o nome de Ben – mas
por que alguém deveria ter feito isso?
John captou o pensamento tão nitidamente como se Hal o tivesse
escrito em sua testa.
"Eles podem ter confundido. Mas eles também podem ter feito
isso deliberadamente – enterrado um estranho sob o nome de
Ben. E há uma série de razões pelas quais alguém pode ter feito
isso. Ben administrar isso para cobrir sua fuga é a melhor."
"Eu sei", disse Hal seco. "Não. Você está certo, não tenho certeza
se ele está morto. Eu não ia dizer a Minnie que achava que ele
estava – embora eu ache que há uma boa chance disso." Ele
enrijeceu sua mandíbula quando disse isso. "Mas eu tenho que
dizer a ela algo. Se eu não escrever logo, ela saberá que algo está
errado – ela é muito boa em saber coisas que ninguém quer que
ela saiba. "
Isso fez John rir, e Hal bufou um pouco, a tensão em seus ombros
relaxando um pouco.
"Bem", John sugeriu, "você disse a ela que Ben se casou e teve
647

um filho, não foi? Por que não escrever e dizer a ela que você
conheceu a garota – Amaranthus, quero dizer – e seu suposto neto
e a convidou para fixar residência aqui enquanto Ben estiver...
ausente? Isso certamente é notícia suficiente para uma carta."
E se Ben estiver morto, saber que ele deixou um filho será um
consolo. John não disse isso em voz alta, mas as palavras
pairaram no ar entre eles.
Hal acenou com a cabeça, exalando.
"Eu farei isso." Sua mente, liberada do medo imediato, levantou
voo. "Você acha que aquele tal Penobscot ou o que quer que ele
seja chamado – você sabe, o cartógrafo Campbell – você acha
que ele pode ser capaz de desenhar algo com uma semelhança
passageira do jovem Trevor? Gostaria que Minnie o visse."
E se algo acontecesse com o menino, pelo menos teríamos isso...
"Alexander Penfold, você quer dizer", disse John. "Eu nunca o vi
desenhar nada mais complexo do que uma rosa dos ventos, mas
deixe-me pesquisar um pouco. Talvez eu só conheça uma pessoa
capaz de pintar um retrato decente." Ele sorriu então, e ergueu
sua caneca recém-cheia. "Para o seu neto, então. Prosit!313"
"Prosit", Hal ecoou, e bebeu o resto do brandy sem parar para
respirar.

313
Do alemão: expressão usada para brindar pela saúde de uma pessoa.
648

41

IMBECIL INCONVENIENTE

JOHN GREY PEGOU o canivete – uma pequena coisa francesa


envolta em jacarandá e extremamente afiada – e cortou uma pena
nova com uma sensação de antecipação. No curso de sua vida até
o momento, ele calculava que ele havia escrito mais de cem cartas
para Jamie Fraser, e sempre experimentou um leve frisson com a
ideia de uma conexão iminente – qualquer que seja a natureza
dessa conexão. Sempre acontecia, não importa se as cartas foram
escritas em tom de amizade, afeto – ou em advertência ansiosa,
raiva ou saudades que se arderam em chamas e no cheiro de
queimado, deixando para trás cinzas amargas.
Esta314, porém, seria diferente.

13 de agosto de 1779 d.C.

Para James Fraser, Cordilheira dos Fraser


Colônia Real da Carolina do Norte

Ele imaginou Jamie em seu habitat escolhido em meio à selva,


suas mãos duras e lisas com calosidades e seus cabelos presos
para trás com uma tira de couro, companheiro de índios, lobos e
ursos. E acompanhado também por suas companhias femininas,
com certeza...

314
Bem.. esta é a carta. Há um erro, então, de cronologia: John escreve para Jamie depois de receber a
carta de Brianna, e a briga de Jamie e Claire acontece antes de Brianna escrever sua carta, enquanto Jamie
a cita para Claire na hora da briga.
649

De lorde John Grey, Oglethorpe Street, No. 12


Savannah, Colônia Real da Georgia

Ele queria começar com a saudação "Meu caro Jamie", mas ainda
não havia reconquistado o direito de fazer isso. Ele iria, no
entanto.
"Em outros mil anos ou mais...", ele murmurou, mergulhando a
pena novamente. "Ou ... talvez antes."
Deveria ser "General Fraser"?
"Rá", ele murmurou. Não adianta deixar o homem irritado a
priori...

Sr. Fraser,
Escrevo para oferecer uma Comissão de
Emprego à sua filha. Tenho falado muitas
vezes de seus dons como artista para amigos e
conhecidos, e recentemente um desses
conhecidos – um sr. Alfred Brumby, um
comerciante de Savannah – admirou vários
esboços que ela me enviou e perguntou se eu
poderia ter a bondade de acionar o Escritório
do Embaixador para ele obter seu
consentimento para sua filha viajar para
Savannah a fim de pintar um retrato de sua
nova esposa.
Brumby é um cavalheiro rico e perfeitamente
capaz de pagar uma bela Taxa (se sua filha
desejar, terei o maior prazer em negociar o
preço por ela) e as despesas de sua viagem e
hospedagem enquanto estiver em Savannah.
650

Ele sorriu um pouco para si mesmo ao pensar em Brianna Fraser


MacKenzie – e Claire Fraser – e o que qualquer uma das mulheres
poderia dizer em resposta à sua oferta de ajuda em seus assuntos.

Posso assegurar-lhe que o Sr. Brumby é um


cavalheiro e seu estabelecimento é
irrepreensível (para que você não tema que eu
proponho sequestrar a jovem para meus
próprios objetivos).

"O que", ele murmurou para si mesmo, "é exatamente o que eu


proponho fazer, seu imbecil difícil..."
Se ele tivesse sido cauteloso sobre isso, Fraser teria suspeitado
imediatamente de seus motivos. Mas em uma longa carreira de
soldado e diplomacia, ele viu quantas vezes a verdade crua, falada
com toda a seriedade, pode ser tomada como uma piada. Ele
continuou, sarcasticamente:
Com toda a seriedade, garanto a segurança
dela e de qualquer amigo ou parente que você
escolher enviar com ela.

Jamie poderia vir pessoalmente? Isso seria profundamente


interessante... muito perigoso, embora...

Nestes tempos turbulentos, você certamente


terá grande preocupação com o bem-estar dos
viajantes – e talvez você ache que convidar
uma jovem de sinceros sentimentos
republicanos a assumir residência temporária
651

em uma cidade atualmente sob o controle do


Exército de Sua Majestade pode ser
imprudente.
Com uma noção de seus prováveis sentimentos
em relação à causa rebelde, vou poupá-lo de
uma Enumeração completa de minhas razões,
mas garanto-lhe – não há o menor risco de que
Savannah sofra invasão ou conquista pelos
americanos, e Brianna não será exposta a
danos físicos.

Ele parou para pensar, mexendo na pena. Ele deveria mencionar


os franceses?
O que Fraser já poderia saber, empoleirado lá em seu covil
montanhoso? É verdade que o homem escrevia – e
provavelmente recebia – cartas, mas dadas as dramáticas
circunstâncias de sua renúncia à patente como general de campo
em Monmouth, John duvidava que Jamie estivesse trocando
notas diárias com George Washington, Horatio Gates315 ou
qualquer outro comandante americano de tal inteligência.
Mas e se ele soubesse que o almirante d'Estaing316 e sua frota de
sapos317 poderiam estar pulando nas praias de Charles Town ou
Savannah dentro de algumas semanas?
Ele jogou xadrez com Jamie Fraser por anos e tinha um respeito

315
General Horatio Gates (ca. 1728-1806) Ajudante geral de Washington (chefe de gabinete) após a queda
do Forte Ticonderoga. Ele foi promovido a comandante do Departamento do Norte, e seu exército
combinado com os do general Benedict Arnold forçaram a rendição do Exército Britânico de Burgoyne
em Saratoga. Arnold depreciativamente o chamava de "Granny Gates", devido à sua indecisão e falta de
ação rápida na maioria dos assuntos militares.
316
Jean Baptiste Charles Henri Hector, conde d'Estaing (1729 - 1794) foi um general e almirante francês.
Após a entrada da França na Guerra da Independência Norte-Americana em 1778, d'Estaing liderou uma
frota para ajudar os rebeldes norte-americanos.
317
Franceses eram chamados se "sapos" pelos britânicos, devido ao seu hábito de comer rãs. É um
comentário deselegante e bastante inapropriado.
652

considerável pelas habilidades do homem. Melhor sacrificar


aquele peão em particular, então, para afastá-lo do cavaleiro
espreitando...
É verdade que os franceses...

Não, espere. Ele fez uma pausa, franzindo a testa para a frase
escrita pela metade. E se alguém que não fosse James Fraser por
acaso colocasse as mãos nesta missiva? E aqui estava ele,
colocando informações inequivocamente confidenciais
diretamente nas mãos dos rebeldes.
"Bem, isso não vai servir..."
"O que não vai servir? E por que você não está vestido?" Hal
havia entrado, despercebido, e estava olhando para si mesmo no
grande espelho que refletia as portas francesas do outro lado do
escritório. "Por que estou sangrando?" Ele parecia bastante
surpreso.
John levou um momento para escurecer a frase sobre os franceses
com uma rápida pincelada de tinta, depois se ergueu para
inspecionar o irmão, que na verdade tinha um arranhão profundo
bem na frente da orelha esquerda escorrendo sangue. Ele estava
tentando impedir que o sangue pingasse em seu lenço de pescoço,
mas não parecia ter um lenço disponível para esse propósito. John
enfiou a mão no bolso de seu banyan e deu a Hal o seu.
"Não parece um corte de barbear. Você estava praticando esgrima
sem máscara?" Isso era para ser uma piada – Hal nunca tinha
experimentado uma das novas máscaras de arame, já que
raramente usava uma espada hoje em dia, a menos que
pretendesse matar alguém com ela, e pensava que seria uma
covardia grosseira lutar um duelo escondido atrás uma máscara.
"Não. Oh... eu me lembro. Eu estava entrando na rua quando um
653

rapaz saiu disparado do beco e dois soldados logo atrás dele


gritando: Pare, ladrão! Um deles bateu em mim e eu bati no
canto daquela igreja. Não percebi que me machuquei." Ele
pressionou o lenço contra o rosto.
O arranhão deve ter sido doloroso, mas ele acreditava que Hal
não havia sentido. Hal era Hal – o que significava que ele
ignorava as circunstâncias físicas em tempos de estresse, ou
fingia ignorar, com o mesmo efeito. E ele estava com certeza sob
estresse ultimamente.
John pegou o lenço de volta, mergulhou-o na taça de vinho que
estava bebendo e pressionou-o novamente no ferimento. Hal fez
uma leve careta, mas segurou o pano ele mesmo.
"Vinho?", ele perguntou.
"Claire Fraser", John respondeu, com um encolher de ombros. As
noções de medicina de sua ex-mulher ocasionalmente faziam
sentido, e até mesmo cirurgiões do exército lavavam uma ferida
com vinho, de vez em quando.
"Ah." Hal havia experimentado os cuidados médicos de Claire
Fraser de perto e apenas acenou com a cabeça, pressionando o
lenço manchado na bochecha.
"Por que devo estar vestido?", John perguntou, olhando de
soslaio para sua carta inacabada. Ele estava debatendo se deveria
dizer a Hal o que pretendia. Seu irmão tinha uma mente
invulgarmente penetrante, quando estava de bom humor, e
conhecia Jamie Fraser muito bem. Por outro lado, havia coisas no
próprio relacionamento de John – por pior que estivesse – com
Jamie Fraser que ele preferia não permitir que seu irmão
invadisse.
"Devo me encontrar com Prévost e sua equipe em meia hora, e
você deve estar comigo. Eu não disse a você?"
654

"Não. Minha função é puramente ornamental, ou devo ir


armado?"
"Armado. Prévost quer discutir a vinda das tropas de Maitland318,
a partir de Beaufort", disse Hal.
"Você espera que esta discussão seja amarga?"
"Não, mas posso acrescentar minha própria acrimônia à reunião.
Não gosto dos homens sentados aqui sem nada para se ocupar,
exceto a bebida e as prostitutas locais."
"Oh." John sentiu um aperto momentâneo no peito com a menção
de prostitutas, mas o rosto de Hal não mostrou nenhum sinal de
que a palavra trouxe Jane Pocock à mente. John tirou a adaga, a
pistola e a bolsa de balas do baú e colocou-as na cama, ao lado
de suas meias brancas limpas. "Muito bem, então."
Ele se vestiu com mais ou menos eficiência e entregou a Hal sua
faixa de couro, virando-se para que seu irmão pudesse amarrá-la
na parte de trás. Seus cabelos ainda não tinham crescido além dos
ombros; Hal afastou irritadamente o rabicó atarracado que se
fazia passar por um rabo.
"Você ainda não encontrou um novo valete?"
"Não tenho tempo para treinar um." Ele podia sentir o hálito
quente de Hal e os dedos frios na nuca e achou o toque calmante.
"O que o mantém tão ocupado?" A voz de Hal estava afiada; ele
estava sob tensão.
"Sua nora, meu filho, meu filho presumido, seu filho e, você sabe,
pequenos detalhes de negócios regimentais." Ele se virou para
encarar Hal, deixando cair a corrente de sua gargantilha de prata
no formato de meia lua sobre sua cabeça. Hal teve a graça de
318
O tenente-coronel John Maitland (1732 - 25 de outubro de 1779) foi um oficial da Marinha e do Exército
britânico e político. Tornou-se tenente-coronel do 1º Batalhão, 71º Regimento da Infantaria, Fraser
Highlanders em outubro de 1778. Ele lutou na Batalha de Stono Ferry , onde comandou o reduto britânico,
e ajudou a levantar o Cerco de Savannah . Ele morreu de malária em 22 de outubro de 1779, logo após o
cerco ter sido levantado.
655

parecer ligeiramente envergonhado, embora bufasse.


"Você precisa de um valete. Eu vou encontrar um para você.
Vamos."
A sede de Prévost ficava em uma grande mansão na orla da Praça
St. James, a não mais do que dez minutos de caminhada, e o dia
estava bom. Estava quente e ensolarado, com uma leve brisa
soprando em direção ao mar, e também era dia de mercado. Os
irmãos Grey seguiram pela Bay Street em direção ao City Market,
passando por uma multidão de pessoas e o cheiro revigorante de
vegetais e peixe fresco.
"Aqui está uma pergunta para você", disse John, esquivando-se
de uma mulher com uma bandeja de ostras pingando pendurada
no pescoço e um balde de cerveja em cada mão. "Você conhece
Jamie Fraser. Você acha que ele seria suscetível ao dinheiro?"
Hal franziu a testa.
"De que maneira? Todos são suscetíveis a dinheiro, nas
circunstâncias certas. Suponho que você não quis dizer suborno."
"Não. Na verdade, estou preocupado que o que estou propondo a
ele não deveria se parecer como suborno."
As sobrancelhas de Hal subiram em surpresa. "Que diabo você
quer que ele faça?"
"Dê sua aprovação – e incentivo – à ideia de sua filha vir para
Savannah a fim de pintar um retrato. Eu disse que faria com que
ela fosse decentemente paga por isso, mas eu..."
"Um retrato seu?" Hal lançou-lhe um olhar divertido. "Eu
gostaria de ver. Um presente para mamãe, ou você está cortejando
alguém?"
"Eu não tinha nenhuma dessas perspectivas em mente. O retrato
não será de mim, em qualquer caso; Alfred Brumby quer uma
imagem feita de sua nova esposa."
656

Hal sorriu. "A bela Angelina?"


John sorriu também. A jovem Sra. Brumby era bonita, mas havia
algo nela que simplesmente fazia as pessoas quererem rir.
"Se alguém é capaz de capturar a natureza inefável da Sra.
Brumby na tela, esse alguém pode ser Brianna MacKenzie."
"Mas não é por isso que você quer atrair a jovem para fora de sua
fortaleza, é? Deve haver outros pintores de retratos na colônia da
Geórgia, certo?"
Eles estavam se aproximando da sede de Prévost; os gritos e
batidas ritmadas dos exercícios militares vieram fracamente
através da névoa matinal do terreno aberto no final da Jones
Street. Os casacos-vermelhos estavam começando a engrossar a
multidão de pessoas que lotavam a Montgomery Street.
"Você não entendeu meu propósito", disse John, virando-se de
lado para permitir que uma senhora apressada com grandes
cestos, uma sombrinha, dois criados e um cachorrinho passassem
por ele. "Com licença, senhora ... E espero que Jamie Fraser faça
isso também."
Hal olhou atentamente para ele, mas foi impedido de falar pela
passagem de dois rapazes do curtidor, com lenços enrolados em
seus rostos e carregando uma enorme cesta entre eles, de onde o
fedor de excremento de cachorro emergia lacrimejante como um
gênio malvado.
Hal aparentemente tinha enchido os pulmões da substância e
tossiu até às lágrimas. John olhou para ele; seu irmão estava
sujeito a ataques de respiração ofegante e falta de ar. Nesse caso,
porém, ele se controlou, cuspiu várias vezes, deu um soco no
peito com o punho cerrado e se sacudiu, respirando pesadamente.
"Qual propósito?", ele disse.
"Eu mencionei meu filho? Brianna Fraser é meia-irmã de
657

William."
"Oh. Então ela seria. Eu não tinha pensado nisso." Hal ajustou o
chapéu, desalojado pelo acesso de tosse. "Ele não a conheceu?"
"Muito rapidamente, alguns anos atrás – mas ele não tinha ideia
de quem ela era. Conheço a jovem muito bem, entretanto, e
embora ela seja tão obstinada quanto qualquer um de seus pais,
ela tem um coração bondoso. Ela ficaria curiosa sobre seu irmão
– e se há alguém que pudesse falar sensatamente com ele sobre
suas... dificuldades... provavelmente seria ela."
"Hmph." Hal considerou isso por alguns passos. "Tem certeza de
que isso é sábio? Se ela é filha de Fraser – espere, você disse
ambos os pais dela. Ela também é filha de Claire Fraser?"
"Ela é", disse John, em um tom que indicava que isso
provavelmente era tudo que seu irmão precisava saber sobre
Brianna. Aparentemente foi, pois Hal riu. "Ela pode persuadi-lo
a virar o casaco e lutar pelos rebeldes, ela pode?"
"Se há uma característica que Jamie Fraser conseguiu transmitir
a todos os seus descendentes", disse John secamente, "é a
teimosia. Por mais forte que seja, duvido que ela consiga
persuadir William de qualquer coisa."
"Então..."
"Eu quero que ele fique," John deixou escapar. "Aqui. Pelo
menos até que ele se decida. Sobretudo."
"Tudo" abrangendo a paternidade de William, sua carreira no
exército, seu título e as propriedades a cujo controle ele acabara
de ascender, tendo atingido a maioridade.
"Oh." Hal parou, olhando para o irmão, depois olhou para a rua.
O quartel-general de Prévost ficava no canto mais distante, uma
grande casa cinza com o fluxo normal de oficiais e civis entrando
e saindo sob os olhos dos dois soldados que guardavam a porta.
658

Hal pegou o braço de John e puxou-o para a rua lateral, menos


lotada.
O coração de John estava batendo forte. Ele não havia articulado
seus medos, nem para si mesmo, mas a carta para Jamie os trouxe
claramente à superfície de sua mente.
Hal olhou para ele, uma sobrancelha escura arqueada.
John fechou os olhos e respirou fundo o suficiente para manter o
nível de sua voz.
"Eu tenho sonhos", disse ele. "Não todas as noites.
Frequentemente, no entanto."
"De William." Não era uma pergunta, mas John assentiu com a
cabeça e abriu os olhos. O rosto de Hal estava atento, seus olhos
diretos e injetados. "Morto?" Hal perguntou. "Perdido?"
John assentiu novamente, sem palavras. Ele pigarreou, porém, e
encontrou algumas.
"Isobel me contou que ele se perdeu uma vez, em Helwater,
quando tinha mais ou menos três anos – vagando sozinho em uma
névoa nas colinas. Às vezes eu vejo isso. Às vezes... outras
coisas."319
William sempre lhe contara histórias, escrevera cartas. De ficar
preso em Quebec durante um inverno longo e frio. Uma caçada,
perdido durante a noite, pés congelados, a luz misteriosa do céu
ártico vibrando acima, caindo através do gelo na água escura...320
Para William, isso era mera aventura, e John gostava de ouvir
sobre isso, mas no escuro de seus sonhos, essas coisas voltavam
torcidas, frias como fantasmas e cheias de pressentimentos.
"E a batalha", disse Hal, quase baixinho. Ele estava encostado na
parede de tijolos de uma taverna, os olhos fixos nas pontas

319
Prisioneiro, cap 39
320
Livro 7
659

polidas das botas. "Sim. Você vê essas coisas quando é pai.


Mesmo quando você não está dormindo."
John acenou com a cabeça, mas não disse nada. Ele se sentiu um
pouco melhor por ter falado. Claro que Hal pensava nessas coisas.
Henry gravemente ferido em batalha e Benjamin... Ele pensou em
William, cavando uma cova no escuro, esperando encontrar o
corpo de seu primo... Ele sonhava em cavar uma cova sozinho e
encontrar William nele.
Hal deu um suspiro e se endireitou.
"Diga a Fraser que William está aqui", ele disse calmamente.
"Apenas mencione, casualmente. Nada mais. Ele vai mandar a
garota."
"Você acha?"
Hal olhou para ele e segurou seu cotovelo, conduzindo-o para
fora do beco. "Você acha que ele se preocupa menos com
William do que você?"
660

42

SASANNAICH CLANN NA GALLADH!321

JAMIE LEU A CARTA DUAS VEZES, os lábios se contraíram


no mesmo lugar – na metade da primeira página e depois de novo,
no final. Na verdade, não era incomum para ele reagir a uma das
cartas dessa forma, mas quando o fazia, normalmente era porque
continha notícias indesejáveis da guerra, de William, ou de
alguma ação incipiente por parte do governo britânico que
poderia resultar na prisão iminente de Jamie ou alguma outra
inconveniência doméstica.
Esta, no entanto, foi a primeira carta que John enviou em quase
dois anos – desde antes do retorno de Jamie dos mortos para me
encontrar casada com John Grey, e antes de ele ter socado John
no olho como resultado desta notícia e inadvertidamente ter
levado Sua Senhoria a ser preso e quase enforcado pela milícia
americana. Bem, a reviravolta foi um jogo justo, eu suponho...
Não há por que adiar.
"O que John tem a dizer? ", eu perguntei, mantendo minha voz
agradavelmente neutra. Jamie olhou para mim, bufou e tirou os
óculos.
"Ele quer Brianna", disse ele brevemente, e empurrou a carta
sobre a mesa para mim.
Eu olhei involuntariamente por cima do ombro, mas Bree tinha
ido para a fonte com uma caixa de queijos de cabra recém-feitos.

Família inglesa filha da puta – em gaélico. Palavra por palavra, ficaria “família inglesa prostituta”,
321

mas, dessa forma, fica mais condizente com uma imprecação de Jamie Fraser.
661

Tirei meus óculos do bolso.


"Acho que você notou essa última parte?", eu disse, olhando para
cima quando terminei de ler.
"Meu filho William renunciou à sua patente e atualmente está
hospedado comigo em Savannah, fazendo uso de seu recém-
descoberto lazer para contemplar seu futuro, já que agora
atingiu sua maioridade...? Sim, eu notei."
Ele olhou para a carta e depois para mim. "Contemplar o futuro
dele? O que há para contemplar, pelo amor de Deus? Ele é um
conde."
"Talvez ele não queira ser um conde", eu disse suavemente.
"Não é algo que você possa escolher, Sassenach", disse ele. "É
como uma marca de nascença; você nasce com isso."
Ele estava carrancudo olhando para a carta, os lábios apertados.
Lancei a ele um olhar exasperado, que ele percebeu, pois ergueu
os olhos e ergueu as sobrancelhas para mim.
"Por que você está me dando esse tipo de olhar?" Ele demandou.
"Não é minha cul...", ele parou, quase a tempo.
"Bem, não vamos dizer culpa – ninguém está culpando você,
mas..."
"Ninguém exceto William. Ele está me culpando." Ele exalou
pelo nariz, respirou fundo e balançou a cabeça. "E não sem razão.
Veja, é por isso que eu não queria que Brianna contasse a ele! Se
ele nunca tivesse me visto nem descoberto a verdade, ele estaria
na Inglaterra agora, cuidando de suas terras e inquilinos, feliz
como um..." Ele parou, tateando...
“Passarinho322?", eu sugeri. "O que faz você pensar que ele não
322
No original ‘clam’. A frase em inglês seria “happy as a clam”, feliz como um marisco, o equivalente
ao nosso ‘feliz como um passarinho. A comparação com um marisco surge quando pensamos que um
marisco aberto parece com uma boca sorrindo. A frase completa seria “happy as clam in high water/high
tide” , feliz como um marisco na maré alta, já que, nesse período, os mariscos, moluscos, lagostas etc
662

está feliz no momento? Talvez ele simplesmente não tenha


conseguido uma passagem de volta para a Inglaterra ainda."
"Passarinho?" Ele olhou para mim por um instante, as
sobrancelhas levantadas, depois dispensou todos os passarinhos
com um gesto abrupto. "Eu não ficaria feliz em sua posição, e não
vejo como um homem honrado poderia ficar."
"Bem, ele é muito parecido com você." Eu esperava manter a
conversa focada em William e evitar prestar atenção em John,
mas deveria saber que era inútil. Ele pegou a carta, amassou-a e
jogou-a no fogo com uma expressão gaélica muito grosseira.
"Mac na galladh323! Primeiro ele pega meu filho, depois copula
com minha esposa e agora está tentando subornar minha filha!"
"Oh, ele não está!" Eu estava controlando meu próprio
temperamento, mas as chamas da raiva envolvendo as bordas da
sala estavam ficando muito quentes; eu estava ficando marrom e
crocante. "Ele só quer que Bree vá falar com o irmão dela! Você
não pode ver isso, seu maldito... escocês?"
Isso o fez parar por um instante, e eu vi uma faísca de diversão
em seus olhos, embora não tenha alcançado sua boca. Ele
respirou, no entanto, isso foi uma melhoria.
"Falar com o irmão dela", ele repetiu. "Por quê? Ele acha que
Brianna vai cantar meus louvores a tal ponto que William vai
esquecer que eu sou a razão de ele ser um bastardo? E mesmo se
ele decidisse me perdoar por isso, não iria ajudá-lo a se acalmar
para ser um conde." Ele bufou. "Sob a influência daquele covil
de cobras, não ficaria surpreso se Brianna acabasse navegando
para a Inglaterra com eles para pintar retratos da rainha."
"Eu não tenho ideia do que John pensa", eu disse uniformemente.

(variações da mesma frase) não são pescados. O primeiro registro formal dessa expressão foi nos anos
1840. Portanto, Claire conhecia, mas provavelmente Jamie não. Por isso, um certo espanto de quem já
está acostumado a escutar coisas que muitas vezes não fazem sentido para ele.
323
Filho da puta!
663

"Mas, uma vez que ele diz contemplar seu futuro, presumo que
ele queira dizer que William tem dúvidas. Brianna é uma estranha
nisso; ela teria uma perspectiva diferente sobre as coisas. Ela
podia ouvir sem se envolver pessoalmente."
"Rá", disse ele. "Aquela garota fica pessoalmente envolvida em
cada maldita coisa que ela toca. Ela herdou isso de você",
acrescentou ele, com um olhar acusador para mim.
"E ela não desiste de nada que tenha decidido fazer", eu disse,
recostando-me na cadeira e cruzando as mãos no colo. "Ela
herdou isso de você."
"Obrigado."
"Não foi necessariamente um elogio. "
Ele soltou algo como uma risada, embora permanecesse em pé.
Ele tinha ficado da cor dos tomates do meu jardim no auge de sua
fala, mas estava voltando ao seu normal bronze avermelhado.
Também relaxei um pouco e respirei fundo.
"Você sabe uma coisa sobre John, no entanto."
"Eu sei uma série de coisas sobre ele – a maioria das quais eu
gostaria de não saber. Qual coisa você quer dizer?"
"Ele sabe que sua filha ama você. E não importa o que ela e
William tenham a dizer um ao outro, isso fará parte da conversa."
Ele piscou, desconcertado. "Eu... bem, sim, talvez... mas..."
"Você acha que ele se preocupa menos com William do que
você?"
A atmosfera havia esfriado e eu podia sentir minha frequência
cardíaca desacelerando. Jamie tinha virado de costas e estava
encostado na cornija da lareira, olhando para o fogo. A carta
havia queimado, mas ainda estava visível, uma folha preta na
lareira. Os dedos de sua mão direita bateram lentamente contra a
pedra.
664

Por fim, ele suspirou e se virou. "Vou falar com Brianna", disse
ele.
-.-.-

"VOCÊ JÁ FALOU com Brianna?", eu perguntei, no dia


seguinte.
"Eu vou", disse ele, com alguma relutância, "mas não vou contar
a ela sobre William."
Eu estava cheirando com cautela o ensopado que fiz para o jantar,
mas desisti para olhar de soslaio para ele. "Por que diabos não?"
"Porque se eu falar, ela iria porque pensaria que é isso que eu
quero, de outra forma ela não iria em absoluto."
Provavelmente era verdade, embora eu pessoalmente não visse
nada de errado em pedir a ela para fazer algo que Jamie queria
que fizesse. Ele claramente via, então eu balancei a cabeça
concordando e estendi a colher para ele.
"Prove isso, sim, e me diga se você acha que é adequado para
consumo humano."
Ele fez uma pausa, a colher a meio caminho de sua boca. "O que
há nele?"
"Eu estava esperando que você pudesse me dizer. Acho que
possivelmente pode ser carne de veado, mas a sra. MacDonald
não sabia ao certo; o marido dela voltou para casa de uma viagem
às aldeias cherokee e não tinha nenhuma pele nele, e ele disse que
estava bêbado demais quando ganhou em um jogo de dados para
ter perguntado. "
Com as sobrancelhas erguidas o máximo que podia, ele fungou
com cautela, soprou a colher de ensopado quente e lambeu uma
provinha, fechando os olhos como um dégustateur324 francês
324
Degustador, em francês.
665

julgando as virtudes de um novo Ródano325.


"Humm", ele disse. Ele lambeu um pouco mais, porém, o que foi
encorajador, e finalmente abocanhou a porção inteira, que
mastigou lentamente, os olhos ainda fechados em concentração.
Por fim, engoliu e, abrindo os olhos, disse: "Precisa de pimenta.
E talvez vinagre?"
"Para dar sabor ou para desinfecção?", eu perguntei. Eu olhei para
o armário de guardar comida, me perguntando se eu poderia
juntar restos suficientes de seu conteúdo para um jantar
substituto.
"Prove", disse ele, passando por mim para mergulhar a colher
novamente. "É saudável o suficiente, no entanto. Acho que é
wapiti326 – e carne de um veado muito velho e duro. Não é a sra.
MacDonald quem pensa que você é uma bruxa?"
"Bem, se ela acha, ela guardou para si mesma quando me trouxe
seu filho mais novo ontem, com uma perna quebrada. O filho
mais velho trouxe a carne esta manhã. Era um pedaço de carne
bem grande, independentemente da origem. Coloquei o resto para
defumar, mas cheirava um pouco estranho."
"O que cheira estranho?" A porta dos fundos se abriu e Brianna
entrou, carregando uma pequena abóbora, Roger atrás dela com
uma cesta de couve do jardim.
Eu levantei uma sobrancelha para a abóbora – pequena demais
para fazer torta e muito verde, e ela deu de ombros.
"Um rato ou algo estava roendo quando entramos no jardim." Ela
a girou para mostrar marcas de dentes recentes. "Eu sabia que iria
estragar imediatamente se a deixássemos – se o rato não voltasse
e acabasse com ela – então a trouxemos."

325
Os vinhos do Vale do Rhône, região vinícola muito importante no sul da França.
326
Wapiti, uapiti ou cervo-canadense é uma espécie de veado encontrado na Ásia e noroeste da América
do Norte.
666

"Bem, eu já ouvi falar de abóbora verde frita", eu disse, aceitando


o presente em dúvida. "Esta já é uma refeição bastante
experimental, afinal."
Brianna olhou para a lareira e deu uma fungada profunda e
cautelosa. "Cheira... comestível", disse ela.
"Sim, foi o que eu disse", disse Jamie, descartando a
possibilidade de envenenamento por ptomaína327 em massa com
uma das mãos. "Sente-se, moça. Lorde John me enviou uma
pequena carta e ele está mencionando você."
"Lorde John?" Uma sobrancelha vermelha se arqueou e seu rosto
se iluminou. "O que ele quer?"
Jamie olhou para ela.
"Por que você acha que ele quer algo de você?", ele perguntou,
cauteloso, mas curioso.
Brianna puxou a saia para um lado e se sentou, a abóbora ainda
em uma das mãos, e estendeu a mão para Jamie com a palma para
cima.
"Empreste-me seu punhal por um minuto, Pa. Quanto a lorde
John, ele não é de jogar conversa fora. Não sei se ele quer algo
de mim, mas li o suficiente de suas cartas para saber que ele não
se incomoda em escrever a menos que tenha um propósito."
Eu bufei um pouco e troquei um olhar com Jamie. Isso era
totalmente verdade. Certo, seu propósito ocasionalmente era
apenas avisar Jamie que ele estava arriscando sua cabeça, seu
pescoço ou suas bolas em qualquer aventura precipitada em que
John pensasse que ele poderia estar envolvido, mas
definitivamente era um propósito.
Bree pegou o punhal oferecido e começou a fatiar a pequena
327
Ptomaína ou ptomatina pode se referir a vários compostos químicos relacionados com o amoníaco.
Formam-se como produtos residuais da ação de bactérias que causam a decomposição de matéria
orgânica vegetal ou animal.
667

abóbora, derramando pedaços brilhantes de sementes verdes


emaranhadas sobre a mesa.
"Então?" ela disse, os olhos em seu trabalho.
"Então", disse Jamie, e respirou fundo.

-.-.-

A ABÓBORA VERDE frita era realmente comestível, embora eu


não dissesse muito mais sobre ela.
"Precisa de ketchup", foi o comentário de Jemmy.
"Sim", seu avô concordou, mastigando cautelosamente.
"Ketchup de nozes, talvez? Ou de cogumelo."
"Ketchup de nozes?" Jemmy e Amanda explodiram em risadas,
mas Jamie apenas os olhou com tolerância.
"Sim, pequeninos ignorantes", disse ele. "Ketchup é qualquer
condimento que você põe em sua carne ou vegetais – não apenas
aquele purê de tomate que sua mãe faz para vocês."
"Qual é o gosto do ketchup de nozes?", Jem exigiu.
"Nozes", disse Jamie, inutilmente. "Com vinagre e anchovas e
algumas outras coisas. Quietos agora; quero falar com sua mãe."
Enquanto as crianças e eu limpávamos a mesa, Jamie expôs a
proposta de lorde John, em detalhes, para Brianna. Cuidando,
observei, para manter seus próprios sentimentos fora do assunto.
"Você pode demorar um pouco para pensar, a nighean", ele disse,
terminando. "Mas está chegando o final do ano para uma longa
jornada. Se você for... você pode muito bem não ser capaz de
voltar até a primavera. "
Brianna e Roger trocaram um longo olhar e eu senti uma pontada
no coração. Eu não tinha pensado nisso, mas ele estava certo.
668

Passagens soterradas pela neve isolavam as altas montanhas da


região baixa com a mesma eficácia de uma parede de pedra de
300 metros.
Brianna estava assentindo com a cabeça, no entanto. "Nós vamos
fazer isso", disse ela simplesmente. "Nós?", disse Roger, mas ele
sorriu.
"Tem certeza?", Jamie perguntou, e eu vi os dedos de sua mão
direita tremularem brevemente na beirada da mesa.
"Se você vai comprar muitas armas, provavelmente precisará
levar seu ouro e uísque para a costa", observou Bree
razoavelmente. "Lorde John está me oferecendo um salvo-
conduto garantido – e escolta armada, se eu quiser, mas não quero
– para ir lá." Ela ergueu um ombro. "O que poderia ser mais
fácil?"
Jamie ergueu uma sobrancelha. Roger também.
"O quê?", ela exigiu, olhando de um para o outro. Jamie fez um
leve ruído escocês e desviou o olhar. Roger respirou fundo, como
se fosse falar, depois soltou o ar novamente.
"Você está pensando em esconder seis tonéis de uísque e
quinhentas libras em ouro em sua caixinha de tintas?", Jamie
disse.
"Sob o nariz de seus guardas armados", Roger acrescentou, "que
provavelmente serão soldados britânicos, encarregados, entre
outras coisas, da prisão de, de..."
"Moonshiners328", eu disse. Jamie ergueu a outra sobrancelha.
"Sério", eu disse. "A ideia é que as pessoas com destilarias ilegais
as operam principalmente à noite, suponho."
"Bem, eu tenho um plano", disse Brianna, com alguma aspereza.
328
Moonshine significa luar. Por isso os operadores de destilarias ilegais (principalmente produzindo
uísque de milho não envelhecido de alto teor alcóolico – alguns chegando até a 80%) teoricamente as
operariam à noite para fugir da fiscalização.
669

"Vou levar as crianças comigo."


"Uau!", disse Jemmy. Amanda, sem ter ideia do que estava sendo
discutido, cantou "Uau" fielmente também, o que fez Fanny e
Germain rirem.
Jamie disse algo baixinho em gaélico. Roger não disse isso, mas
poderia muito bem ter as palavras "Deus nos ajude a todos"
tatuadas em sua testa. Eu me senti da mesma forma, mas pela
primeira vez, pensei que tinha escondido meus sentimentos
melhor do que os homens, que não estavam tentando esconder os
seus de jeito nenhum. Limpei o rosto com uma toalha e comecei
a cortar a torta de maçã e passas para a sobremesa.
"Possivelmente, existem alguns refinamentos que poderiam ser
adicionados", eu disse, o mais suavemente possível, minhas
costas viradas com segurança. "Por que não falamos sobre isso
quando as crianças estiverem na cama."

-.-.-

LEVAMOS TODAS AS crianças para a cama e Jamie trouxe


uma garrafa de JFS. Envelhecido sete anos em barris de xerez,
podia não valer muito seu peso em ouro, mas ainda assim era uma
ajuda inestimável para conferências com um grande potencial
para desvios.
Ele serviu uma grande dose para cada um de nós e, sentando-se
ele mesmo, ergueu a mão pedindo silêncio enquanto dava um
gole, segurava-o por um longo momento, depois engolia e
suspirava.
"Tudo bem", disse ele, abaixando a mão. "O que você tem em
mente, então, mo nighean ruadh?"
Roger resfolegou de diversão ao ouvi-lo chamar Brianna de
670

"minha moça ruiva" e eu sorri para o meu uísque. A expressão


carregava perfeitamente as implicações simultâneas de que tudo
o que ela tinha em mente era provavelmente imprudente a um
grau alarmante – e que sua propensão para tal imprudência
provavelmente tinha vindo de seu pai ruivo.
Bree percebeu isso também, levantou as sobrancelhas
avermelhadas e ergueu a xícara para ele como um brinde.
"Bem", disse ela, depois de tomar e saborear seu primeiro gole.
"Você precisa conseguir armas e cavalos."
"Eu preciso", disse Jamie pacientemente. "Os cavalos não serão
um grande problema, contanto que o façamos com cuidado.
Posso obtê-los com o cherokees."
Ela acenou com a cabeça e sacudiu a mão, aceitando isso.
"Tudo bem. As armas – você realmente tem dois problemas aí,
não é?"
"Eu ficaria feliz se fossem apenas dois", disse ele, tomando outro
gole. "Que problemas, você quer dizer, moça?"
"Para comprar as armas – ah, entendo o que você quer dizer com
mais de dois problemas. Mas, deixando isso de lado por um
minuto: você precisa comprar as armas e depois trazê-las de volta
aqui. A propósito, você tem uma ideia de onde irá obtê-las?"
"Fergus", Jamie disse prontamente.
"Como?", eu perguntei, olhando para ele.
"Ele está em Charles Town", disse ele. "Os americanos controlam
a cidade, sob o comando do general Lincoln. E onde há um
exército, há armas."
"Você está planejando roubar armas do Exército Continental?",
eu soltei. "Ou obrigar Fergus a fazer isso, o que é ainda pior?"
"Não", disse ele pacientemente. "Isso seria traição, sim? Vou
671

comprá-las de quem as está roubando. Alguém sempre está.


Fergus provavelmente já saberá quem são os contrabandistas
locais, mas se não, eu tenho considerável fé de que ele pode
descobrir."
"Vai custar um bom preço", disse Roger, erguendo uma
sobrancelha.
Jamie fez uma careta, assentindo. "Sim. Eu mantive aquele ouro
seguro todos esses anos pelo tempo que deveria ser necessário
para a causa da revolução – e... agora é."
"Tudo bem", disse Bree pacientemente. "Digamos que Fergus
possa conseguir armas para você, de uma forma ou de outra. Se
ele tiver que pagar por elas", aqui Jamie sorriu, apesar da
seriedade da conversa, "então você precisa entregar o ouro a ele,
e então alguém precisa trazer as armas de volta. Entããão...", ela
respirou fundo e olhou para Roger, depois ergueu o polegar329.
"Um. Agora que a colheita terminou, precisamos levar Germain
para casa, para sua família em Charleston330, assim que
pudermos; ele está morrendo de vontade de ver sua mãe e seus
novos irmãos bebês. Dois", levantou o dedo indicador, "lorde
John quer que eu vá pintar um retrato em Savannah, pelo qual
serei paga em dinheiro real, que precisamos para coisas como
roupas e ferramentas. E três...", ela ergueu o dedo médio e, sem
olhar para Roger, disse: "Roger precisa ser ordenado. Quanto
antes melhor."
Jamie virou a cabeça para olhar para Roger, que enrubesceu
profundamente com isso. "Bem, você precisa", Bree disse a ele.
Sem esperar por uma resposta, ela voltou-se para Jamie e colocou
as duas mãos abertas sobre a mesa, as palmas para baixo.

329
Maneira diferente de enumerar as coisas com os dedos. Ao invés de começar pelo polegar,como fazemos,
Brianna começa pelo polegar.
330
Interessante. Jamie acabou de citar Charles Town, o nome como a cidade era conhecida na época.
Brianna cita Charleston, o nome pela qual essa cidade da Carolina do Sul era conhecida no séc XX e que
a cidade assumiu em 1783.
672

"Então, vou responder para lorde John imediatamente e digo a ele


que vou fazer isso e que não preciso de guardas, obrigada, mas
Roger vai viajar comigo e vamos levar as crianças. Porque se não
conseguirmos voltar antes da neve", explicou ela, virando o rosto
para mim, "pode levar cinco ou seis meses até que os vejamos
novamente. E", ela acrescentou, olhando diretamente para Jamie,
"eu acho que elas estarão mais seguras indo conosco do que
ficando aqui. E se os amigos do capitão Cunningham decidirem
voltar e trazer uma milícia passando pela Cordilheira, e
saquearem e queimarem esta casa enquanto fazem sua rota?"
A pergunta direta me chocou e claramente perturbou Jamie e
Roger também. Jamie pigarreou com cuidado.
"Você acha que eu seria pego de surpresa?", ele perguntou
suavemente.
"Não, acho que você os esmagaria", disse ela, meio sorrindo.
"Mas isso não significa que eu quero as crianças no meio desse
tipo de briga, especialmente sem Roger ou eu aqui para mantê-
las fora da linha de fogo."
As mãos dela ainda estavam apoiadas sobre a mesa, assim como
as de Jamie, e eu vi o eco da carne –as mãos dele, grandes e
desgastadas, os nós dos dedos aumentados pelo trabalho e pela
idade, um dedo faltando e os outros com cicatrizes, mas ainda
mantendo uma graça poderosa – e a mesma graça, imaculada e
de pele lisa, mas igualmente poderosa, nas mãos de Brianna.
"Então", disse ela, respirando fundo, "digo a Lord John que o
farei, mas que passaremos por Charleston primeiro para que
Roger possa verificar tudo o que precisa fazer para a ordenação e
levar Germain de volta à família dele. Lorde John gosta de
Germain"331, ela continuou, sorrindo apesar da seriedade da

331
Não dá para saber exatamente como Brianna pode ter essa informação, já que Lord John interagiu
ativamente com Germain no livro 8, quando ela não estava presente. OK, vamos supor que Germain deve
ter contado a ela muitas estórias sobre o tempo que ele passou num acampamento militar com Lord John.
673

situação. "Ele vai querer ajudar. Então, peço a ele que me envie
um passaporte ou o que quer que você chame hoje em dia,
assinado por seu irmão. Uma carta oficial que nos dê passagem
livre, sem interferência, por estradas e cidades mantidas pelo
Exército Britânico. Seremos a família de um ministro inocente
com três filhos e viajaremos sob a proteção do duque de Pardloe,
que é o coronel de seja lá qual for o regimento. Quais são as
chances de alguém nos revistar?"
As sobrancelhas de Jamie se juntaram e eu pude ver que ele
estava avaliando essas probabilidades e, embora ainda não
gostasse delas, foi obrigado a admitir que era um plano.
"Sim, bem", ele disse relutantemente. "Isso pode funcionar, para
levar o ouro para Fergus – e talvez eu possa arranjar algo para o
uísque. Sempre tem chucrute. Mas não quero que vocês voltem
com uma carga de mosquetes contrabandeados na carroça.
Ministro ordenado ou não", acrescentou, erguendo uma
sobrancelha para Roger. "Eu tenho clamado a Deus por uma boa
dose de ajuda em minha vida, e consegui, mas não estou pedindo
a Ele para me salvar – ou a vocês– de minha própria tolice."
"Estou com você nessa", Roger assegurou-lhe. "Quanto tempo
demoraria, você acha, para obter uma resposta de Sua Senhoria,
com os documentos de liberação?"
"Talvez duas ou três semanas, se o tempo estiver bom."
"Então, teremos tempo para pensar no que fazer com as armas,
sempre supondo que as conseguiremos." Roger ergueu sua xícara
até então não saboreada e bateu contra a minha. "Um brinde ao
crime e à insurreição."
"Você disse chucrute332?", Brianna perguntou.

332
O cheiro forte de vinagre e condimentos do chucrute disfarça o aroma do uísque!
674
675

43

OS HOMENS COM QUEM VOCÊ SE


ASSOCIA 333

NAS PRÓXIMAS semanas, as diferentes abordagens de Deus


oferecidas na Casa de Reunião arrebanharam seus próprios
adeptos. Muitas pessoas participaram de mais de um culto, seja
por uma abordagem eclética do ritual, indecisão, um desejo pela
socialização, se não pela instrução – ou simplesmente porque era
mais interessante ir à igreja do que sentar-se em casa lendo
devotamente a Bíblia em voz alta para suas famílias.
Ainda assim, cada serviço tinha seu próprio núcleo de fiéis que
vinham todos os domingos, além de um número variável de
indecisos e visitantes informais. Quando o tempo estava bom,
muitas pessoas permaneciam durante o dia, fazendo piquenique
sob as árvores, comparando comentários sobre o serviço
metodista e o presbiteriano. E – sendo, em grande parte,
escoceses das Highlands possuidores de fortes opiniões pessoais
– discutindo sobretudo, desde a mensagem do sermão até o estado
dos sapatos do ministro.
A Reunião de Rachel atraia menos pessoas e muito menos
discussões, mas aqueles que vinham para se sentar em silêncio e
em companhia para ouvir sua luz interior vinham todas as
semanas e, aos poucos, mais surgiam.
Nem sempre era completamente silencioso – como Ian observou,
o espírito tinha suas próprias opiniões e algumas reuniões eram
muito animadas – mas eu pensei que para algumas mulheres, pelo
333
O título original está em Scots : The men ye gang oot with.
676

menos, a oportunidade de se sentar por uma hora em um lugar


silencioso valia mais que a pregação ou o canto mais inspirado.
Jamie e eu sempre comparecemos aos três cultos, porque o
senhorio não poderia mostrar parcialidade, mesmo que o ministro
presbiteriano fosse seu próprio genro e a – celebrante?
instigadora? Eu não tinha certeza de como alguém chamaria
Rachel, exceto talvez o grão de areia dentro de uma pérola – sua
sobrinha por casamento. E porque lhe permitia manter o polegar
firmemente no pulso da Cordilheira.
Depois de cada um dos cultos matinais, eu assumia meu posto
sob uma determinada castanheira enorme e dirigia uma clínica
informal por uma hora ou mais, tratando de ferimentos leves,
olhando gargantas e oferecendo conselhos junto com uma
clandestina (porque era domingo, afinal) garrafa de "tônico" –
essa sendo uma mistura de uísque bruto, mas bem aguado e
açúcar, com várias substâncias à base de ervas adicionadas para
o tratamento da deficiência de vitaminas, alívio de dor de dente
ou indigestão, ou (nos casos em que suspeitava da necessidade)
uma dose de terebintina para matar os ancilóstomos.
Enquanto isso, Jamie – muitas vezes com Ian ao seu lado –
vagava de um grupo de homens para outro, cumprimentando a
todos, conversando e ouvindo. Sempre ouvindo.
"Você não pode manter a política em segredo, Sassenach", ele me
disse. "Mesmo se eles quisessem – e na maioria das vezes não
querem – eles não podem segurar a língua ou disfarçar o que
pensam."
"O que eles pensam em termos de princípios políticos ou o que
pensam dos princípios políticos de seus vizinhos?", eu perguntei,
tendo captado os ecos dessas discussões nas mulheres que
formavam a maior parte de minha clínica pastoral dominical.
Ele riu, mas não com muito humor.
677

"Se eles disserem o que seu vizinho pensa, Sassenach, não é


preciso muita leitura para saber o que eles pensam."
"Você acha que eles sabem o que você está pensando?", eu
perguntei, curiosa. Ele encolheu os ombros.
"Se não o sabem, logo o saberão."

-.-.-

DUAS SEMANAS DEPOIS, quando o capitão Cunningham


terminou a oração final, mas antes que pudesse dispensar sua
congregação, Jamie se levantou e pediu permissão ao capitão
para se dirigir ao povo.
Eu vi as costas de Elspeth Cunningham – sempre retas como uma
muda de pinheiro - ficarem rígidas, as penas pretas em seu chapéu
de ir à igreja tremerem em advertência. Mesmo assim, o capitão
não teve muita escolha e, com uma justa suposição de cortesia,
deu um passo para trás e gesticulou para que Jamie tomasse a
palavra.
"Bom dia a todos vocês", disse ele, com uma reverência à
congregação. "E eu peço seu perdão – e do capitão Cunningham",
outra reverência, "por precisar perturbar sua paz de espírito em
um domingo. Mas eu recebi uma pequena nota esta semana que
perturbou minha paz de espírito consideravelmente, e espero que
vocês me deem a oportunidade de compartilhá-la com vocês."
Um murmúrio de concordância, perplexidade e interesse
percorreu a sala. Junto com uma onda profunda e subterrânea,
mal sentida, de apreensão.
Jamie enfiou a mão no casaco e retirou um bilhete dobrado, com
um lacre de cera de vela quebrado que havia derramado sua
gordura no papel, de modo que as sombras das palavras
678

transpareciam quando ele o desdobrou. Ele colocou os óculos e


leu em voz alta.

"Sr. Fraser—

Tenho a liberdade de lhe dizer que ouvi dizer


que o General Gates atacou as Forças de
Lorde Cornwallis334 perto de Camden335 e
sofreu uma Grande Derrota, incluindo a
lamentável Morte do Major General De
Kalb336. Com a retirada das Forças de Gates,
a Carolina do Sul foi abandonada ao Inimigo.
Enquanto isso, ouvi dizer que tropas adicionais
estão sendo enviadas do norte da Flórida para
apoiar a ocupação de Savannah. Essas notícias
são alarmantes, mas estou ainda mais
alarmado ao ouvir de alguns amigos que o
general Clinton planeja atacar o Interior por
outros Meios mais traiçoeiros. Ele propõe
enviar Agentes entre nós, para solicitar, alistar
e armar Legalistas e, ao fazê-lo, erguer uma
grande Milícia, apoiada pelo Exército regular,

334
General lorde Charles Cornwallis (1738 - 1805) foi um alto oficial do exército britânico e magistrado
colonial. Teve papel importante nas batalhas durante a guerra de independência norte-americana, onde
ele comandou os exércitos ingleses durante parte do conflito. Ele se rendeu ao inimigo em 1781 após a
fracassada batalha de Yorktown, quando sofreu sua maior humilhação, diante das forças patriotas e
francesas combinadas que cercaram seu exército e forçaram que ele se rendesse, encerrando assim
grande parte das lutas no teatro norte- americano.
335
A Batalha de Camden foi um confronto que terminou com uma expressiva vitória dos Britânicos no
sul dos Estados Unidos. Em 16 de agosto de 1780, forças britânicas sob comando do General Cornwallis
destruíram as tropas norte-americanas (que estavam em maior número) sob a direção do general Gates a
cerca de 10 km de Camden, Carolina do Sul, garantindo a dominação inglesa das Carolinas seguido da
queda de Charleston. Aqui há uma grande licença literária de DG, pois, supostamente, no livro ainda
estamos em 1779, e a batalha de Candem só irá acontecer um ano depois.
336
Johann von Robais, Barão de Kalb, nascido Johann Kalb (1721 – 1780), foi um oficial militar alemão-
francófono que serviu como major-general no Exército Continental durante a Guerra Revolucionária
Americana. Ele foi mortalmente ferido enquanto lutava contra o Exército Britânico durante a Batalha de
Camden.
679

para atacar e subjugar qualquer Indício de


Rebelião nas montanhas do Tennessee e nas
Carolinas.
Tenho a firme Convicção de que não se trata
de um Boato inútil, e enviarei várias Provas
assim que chegarem às minhas mãos.
Portanto…"

Enquanto ele lia, tive uma estranha sensação de déjà vu. Uma
sensação de um buraco na boca do estômago e uma onda de
arrepios nos braços. O cômodo estava quente e úmido como um
banho turco, mas eu me senti como se estivesse em um ambiente
frio e vazio, com uma chuva gelada escocesa batendo na janela,
ouvindo palavras de desgraça inevitável.

"E, com isso, reconhecemos o apoio a esses


direitos divinos pelos chefes dos clãs das
Terras Altas, os senhores jacobitas e vários
outros súditos leais de Sua Majestade, o rei
James, que subscreveram seus nomes nesta
Carta de Associação como prova disso."

"Não. Oh, Deus, não..." Eu não tinha a intenção de dizer em voz


alta, mas escapou dos meus lábios, embora apenas em um
sussurro que fez as pessoas a cada lado de mim olharem para o
lado, então apressadamente se afastarem, como se eu, de repente,
tivesse lepra. Jamie terminou:
"Exorto-o, portanto, a fazer os Preparativos
que estiverem em seu Poder, e esteja pronto
para se juntar a nós em caso de Necessidade
680

urgente, para defender nossas Vidas e


Liberdade."

Houve um momento de silêncio retumbante, e então Jamie


dobrou a nota e falou antes que a reação da multidão pudesse
explodir.
"Não direi o nome do cavalheiro que me enviou esta carta, pois
ele é um cavalheiro conhecido por seu nome e reputação e não o
colocarei em perigo. Eu acredito que o que ele diz é verdade."
As pessoas se mexiam ao meu redor, mas fiquei imóvel, olhando
para ele.
Não. De novo não. Por favor, de novo não...
Mas você sabia, a parte razoável da minha mente estava dizendo.
Você sabia que estava voltando. Você sabia que ele não poderia
sair do caminho – e ele não iria, mesmo se pudesse ...
"Sei muito bem que alguns aqui professam lealdade ao rei. Todos
sabem que eu não. Vocês farão o que sua consciência mandar – e
eu também farei." Ele encontrou os olhos dos homens aqui e ali
na plateia, mas evitou olhar para o capitão Cunningham, que
estava parado, sem expressão, ao lado.
"Não vou expulsar nenhum homem de sua terra pelo que ele
acredita." Jamie parou por um momento, tirou os óculos e olhou
diretamente de um rosto para outro antes de continuar. Eu sabia
que ele estava olhando para os homens que ele conhecia como
legalistas declarados, e reprimi a vontade de olhar em volta.
"Mas esta terra e seus inquilinos são meus para proteger, e eu
farei isso. Vou precisar de ajuda nessa empreitada e, para isso,
estarei convocando uma milícia. Se você decidir se juntar a mim,
eu irei armar você, alimentá-lo durante a marcha e fornecer
montarias para aqueles homens que não tem uma."
681

Eu podia sentir Samuel Chisholm – com mais ou menos dezoito


anos – sentado ao meu lado, enrijecer e mover os pés ligeiramente
sob si, claramente decidindo se pularia e se voluntariaria no local.
Jamie o viu se mover e ergueu a mão ligeiramente, com um breve
sorriso.
"Aqueles que desejarem se juntar a mim hoje – venham e falem
comigo lá fora. Quem quiser pensar no assunto pode vir a minha
casa a qualquer hora. Dia ou noite", ele acrescentou, com uma
torção irônica da boca que fez algumas pessoas rirem
nervosamente.
"Seu servo, senhor", disse ele, voltando-se para o rosto
impassível do capitão Cunningham, "e agradeço sua cortesia."
Ele caminhou com firmeza pelo corredor entre os bancos,
estendeu a mão para mim e me puxou para cima, deu-me o braço
e saímos rapidamente, deixando um silêncio absoluto atrás de
nós.
-.-.-

ELE FEZ A mesma coisa no culto presbiteriano, Roger parado


gravemente atrás dele, os olhos baixos. Aqui, porém, a audiência
estava preparada – todos tinham ouvido o que acontecera no culto
metodista.
Assim que terminou de falar, Bill Amos se pôs de pé. "Vamos
cavalgar com você, Mac Dubh337", disse ele com firmeza. "Eu e
meus rapazes."
Bill Amos era um homem bonito, de cabelos pretos e sólido, tanto
fisicamente quanto em termos de caráter, e houve murmúrios de
concordância entre as pessoas. Mais três ou quatro homens se

337
Filho do Negro (filho do hoem de cabelos negros), em gaélico escocês. Referência ao pai de Jamie,
Black Brian (Brian Dubh), que tinha cabelos muito negros.
682

levantaram no local para se comprometer, e eu podia sentir o


zumbido de excitação agitando o ar úmido.
Eu podia sentir a sensação de medo frio entre as mulheres
também. Várias delas falaram comigo durante minha clínica entre
os serviços.
"Você não pode persuadir seu homem do contrário?", Mairi
Gordon me perguntou, em voz baixa e olhando em volta para ter
certeza de que não foi ouvida. "Eu tenho apenas meu bisneto e
serei deixada sozinha para morrer de fome se ele for morto."
Mairi tinha quase minha idade e sobreviveu aos dias após
Culloden. Eu podia ver o medo atrás de seus olhos e senti-lo
também.
"Eu vou... falar com ele", eu disse sem jeito. Eu poderia – e
tentaria – persuadir Jamie a não levar Hugh Gordon, mas sabia
muito bem qual seria sua resposta.
"Não vamos deixar você morrer de fome", eu disse, com o
máximo de confiança que pude reunir. "Não importa o que
aconteça."
"Sim, bem", ela murmurou, e me deixou curar a queimadura em
seu braço em silêncio.
A sensação de entusiasmo nos acompanhou para fora da igreja.
Os homens agrupavam-se em torno de Jamie; outros homens
estavam em seus próprios núcleos, sob as árvores, à sombra dos
pinheiros.
Eu procurei, mas não vi o capitão Cunningham entre eles; talvez
ele achasse um erro se declarar abertamente.
Por enquanto.
A frieza que sentira na igreja era um peso tremelicando na minha
barriga, como uma poça de mercúrio. Continuei conversando
agradavelmente com as mulheres e crianças – e um homem
683

ocasional com um dedo do pé esmagado ou uma farpa no olho –


mas eu podia sentir o que estava acontecendo, com muita clareza.
Jamie havia dividido a Cordilheira e as linhas de fratura estavam
se espalhando e se abrindo.
Ele tinha feito de propósito e por necessidade, mas isso não
tornava o fato mais fácil de suportar. No período de três horas,
tínhamos passado de uma comunidade – embora contenciosa –
para campos abertamente opostos.
O terremoto havia ocorrido e as ondas de choque secundárias
continuariam. Os vizinhos não seriam mais vizinhos, mas sim
inimigos abertos.
A guerra havia sido declarada.

-.-.-

GERALMENTE, AS PESSOAS sairiam vagarosamente depois


da igreja, os grupos se formando e se dividindo e se formando
novamente enquanto amigos eram cumprimentados, notícias
trocadas, panos espalhados, comida desempacotada, conversa
crescendo sob as árvores como o zumbido reconfortante de uma
colmeia trabalhando.
Hoje não.
As famílias recuaram sobre si mesmas, amigos que ainda estavam
do mesmo lado procuraram uns aos outros para se reafirmar –
mas a Cordilheira se dividiu, e seus pedaços fraturados se
afastaram lentamente ao longo dos caminhos da floresta,
deixando o ar quente e espesso para pousar na igreja vazia, vazia
de paz.
Minha última paciente, Auld Mam338, que tinha (ela disse) catarro
338
Mãe Velha, em scots, (significando, Vovó, é claro)
684

nas costas, foi levada embora por uma de suas filhas, segurando
uma garrafa de tônico extraforte, e eu soltei um suspiro profundo
e não reconfortante e comecei a guardar meus instrumentos e
suprimentos.
Bree levara as crianças para casa – obviamente não haveria
piquenique sob as árvores naquele domingo –, mas Roger ainda
estava do lado de fora da igreja com Jamie e Ian, os três
conversando baixinho.
A visão me deu algum conforto. Pelo menos Jamie não estava
sozinho nisso.
Ian acenou para Roger e Jamie e saiu em direção à sua própria
casa, acenando brevemente para mim em despedida. Jamie
desceu até mim, ainda falando com Roger.
"Sinto muito, a mhinistear339", ele estava dizendo, quando eles
chegaram ao alcance da voz. "Eu não teria feito isso na kirk, mas
eu tinha que alcançar os legalistas ao mesmo tempo que os
rebeldes, ken? E a maioria deles não vem mais para a Loja."
"Nenhum incômodo, homem." Roger deu um tapinha nas costas
dele e sorriu. Foi um sorriso ligeiramente forçado, mas genuíno
apesar de tudo. "Eu entendo."
Ele acenou com a cabeça para mim, depois se voltou para Jamie.
"Você planeja ir ao encontro de Rachel também?"
Ele teve o cuidado de manter qualquer tipo de tom de irritação
em sua voz, mas Jamie ouviu mesmo assim.
"Sim", ele disse, endireitando-se com um suspiro. Então, vendo
o rosto de Roger, ele fez uma pequena careta irônica.
"Não para recrutar, a bhalaich. Para sentar em silêncio e pedir
perdão."

339
Ó ministro, em gaélico.
685
686

44

BESOUROS COM PEQUENOS


OLHOS VERMELHOS
Savannah
Fins de agosto

MESMO ADMITINDO PARA SI MESMO, no fundo de seu


coração que era simples obstinação (embora ele a transmitisse à
sua consciência como honestidade e orgulho – de natureza
chocantemente republicana, mas ainda assim orgulho), William
tinha fixado residência em uma pequena casa de apenas um
pavimento à beira dos pântanos com John Cinnamon. Lord John
tinha – sem comentários – destinado a ele um quarto no número
12 da rua Oglethorpe, entretanto, e ele frequentemente dormia lá
quando vinha para o jantar. Ele também continuou usando as
roupas com as quais havia chegado em Savannah, embora o
criado de lorde John as levasse embora todas as noites e as
escovasse, lavasse ou remendasse antes de devolvê-las pela
manhã.
Nessa manhã em particular, porém, William acordou com um
conjunto de veludo cinza escuro, com um colete de seda ocre,
elegantemente bordado com pequenos besouros de cores
variadas, cada um com minúsculos olhos vermelhos. Camisa
limpa e meias de seda estavam espalhadas ao lado – mas seu ex-
uniforme do exército havia desaparecido, exceto pelas botas de
má aparência, que pareciam uma reprovação ao lado de seu
lavatório, seus arranhões e cicatrizes mais evidentes por causa da
graxa escura recente.
Ele parou por um momento, depois vestiu o banyan que Papa lhe
687

emprestara – lã azul de tecido fino, reconfortante em uma manhã


fria, pois havia chovido à noite – lavou o rosto e desceu para
tomar o café da manhã.
Papa e Amaranthus estavam à mesa, ambos parecendo ter sido
desenterrados, em vez de acordados, da cama.
"Bom dia", disse William, bem alto, e se sentou. "Onde está
Trevor?"
"Em algum lugar com seu amigo, o sr. Cinnamon", disse
Amaranthus, piscando com sono. "Deus o abençoe. Ele veio
procurar por você, e como você ainda estava mergulhado em um
sono pesado, ele disse que levaria Trevor para um passeio."
"O pequeno demônio uivou a noite toda", disse lorde John,
empurrando um pote de mostarda na direção de William. "O
arenque defumado já está vindo", acrescentou ele, evidentemente
explicando o porquê da mostarda. "Você não o ouviu?"
"Ao contrário de algumas pessoas, eu dormi o sono dos justos",
disse William, passando manteiga em uma torrada. "Não ouvi
nenhum som."
Ambos os parentes o olharam com olhos arregalados por cima da
travessa de torradas.
"Vou colocá-lo na sua cama esta noite", disse Amaranthus,
tentando alisar seus cachos desgrenhados. "Vejamos como você
se sente justo ao amanhecer."
Um cheiro de bacon fumegante exalava dos fundos da casa, e os
três comensais se aprumaram involuntariamente enquanto o
cozinheiro trazia uma generosa travessa de prata contendo não
apenas bacon, mas também linguiças, morcela e cogumelos
grelhados.
"Elle ne fera pas çuire les tomates", disse sua senhoria, dando de
ombros levemente. Ela não vai mais cozinhar tomates. "Elle
688

pense qu’elles sont toxiques." Ela acha que eles são venenosos.
"La facon dont elle les cuits, elle a raison", murmurou
Amaranthus, em um francês bom, mas com sotaque estranho. Da
maneira como ela os cozinha, ela está certa. William viu seu pai
levantar uma sobrancelha; evidentemente ele não tinha percebido
que ela falava francês.
"Eu, hum, vi as roupas que você gentilmente preparou para mim",
disse William, desviando a conversa com muito tato. "Estou
muito agradecido, é claro – embora eu não acho que terei
oportunidade de usá-las agora. Possivelmente..."
"Cinza vai ficar muito bem em você", lorde John disse, parecendo
mais feliz quando Moira entrou e colocou um copo do que
cheirava a café com uísque ao lado dele. Ele acenou com a cabeça
em direção a Amaranthus, sentada em frente a William. "Sua
prima bordou os besouros no colete ela mesma."
"Oh. Obrigado, prima." Ele se curvou para ela, sorrindo. "De
longe, o colete mais fantástico que já tive."
Ela se endireitou, parecendo indignada, e puxou o manto contra
o peito.
"Ele não é nada fantasioso! Cada um desses besouros pode ser
encontrado nesta Colônia, e todos eles têm as cores e formas
certas! Bem", ela acrescentou, sua indignação diminuindo, "Eu
vou admitir que os olhos vermelhos realmente foram um toque
de fantasia da minha parte. Eu apenas pensei que o conjunto
exigia mais vermelho do que um único besouro joaninha
forneceria."
"Totalmente apropriado", lorde John assegurou-lhe. "Você nunca
ouviu falar em licença poética, Willie?"
"William", William corrigiu friamente, "e sim, eu ouvi.
Obrigado, prima, por meus besouros charmosamente poéticos –
689

eles têm nomes?"


"Certamente", Amaranthus disse. Ela estava se animando, sob a
influência de chá e linguiças; havia um tom rosado em suas
bochechas. "Eu direi a você mais tarde, quando você estiver
usando."
Um leve, mas inconfundível frisson passou por William ao ouvir
"quando você estiver usando", juntamente com uma visão
instantânea do dedo esguio dela movendo-se lentamente de um
besouro para outro, sobre o seu peito. Ele não estava imaginando;
Papa olhou atentamente para Amaranthus quando ela disse isso.
Não havia nenhum sinal de flerte intencional em seu rosto, no
entanto; seus olhos estavam fixos no prato fumegante de arenque
defumado, colocado diante dela.
William pegou um bocado de mostarda e empurrou o pote para
ela.
"Apesar dos besouros e da elegância", disse ele, "não posso usar
calças de veludo cinza para limpar um galpão com Cinnamon,
que é minha principal missão hoje."
"Na verdade, não, William," disse lorde John, dando a seu nome
o mais leve toque de ironia. "A sua presença é exigida no almoço
com o general Prévost."
O garfo carregado de arenque de William parou a meio caminho
de sua boca.
"Por quê?", ele perguntou cautelosamente. "Que diabos o general
Prévost quer comigo?”
"Nada, espero", disse o pai, pegando a mostarda. "Ele é um
soldado decente, mas com um forte sotaque suíço e nenhum senso
de humor, conversar com ele é como empurrar um barril de
tabaco morro acima. No entanto...", acrescentou Lord John,
olhando por cima da mesa. "Você vê o pote de pimenta em algum
690

lugar?... No entanto, ele está entretendo um grupo de políticos de


Londres no momento, e alguns oficiais seniores de Cornwallis
vieram da Carolina do Sul para encontrá-los."
"E…?"
"Aha – peguei você!", disse Lord John, levantando um
guardanapo e descobrindo o pimenteiro debaixo dele. "E ouvi
dizer que Denys Randall – aliás Denys Randall-Isaacs – vai
fazer parte do grupo. Ele me enviou uma nota esta manhã,
dizendo que sabia que você estava hospedado comigo, e se eu
faria a gentileza de trazê-lo comigo e Hal para almoçar, tendo
ele conseguido um convite para você."

-.-.-

ESTAVA QUENTE E abafado, mas as nuvens estavam se


formando, criando uma sombra bem-vinda.
"Duvido que chova antes da hora do chá", disse Lord John,
olhando para cima enquanto eles saíam de casa. "Você quer uma
capa para o seu colete novo?"
"Não." A mente de William não estava em suas roupas, por mais
bonitas que fossem. Nem estava realmente em Denys Randall; o
que quer que Randall tivesse a dizer, ele ouviria em breve. Sua
mente estava em Jane.
Ele evitava descer a Barnard Street desde que ele e Cinnamon
chegaram a Savannah. O quartel-general da guarnição ficava em
uma casa em Barnard, a não mais de oitocentos metros da rua
Oglethorpe, número 12. Do outro lado da praça do quartel-
general ficava a casa do comandante, uma casa grande e elegante
com um painel oval de vidro colocado na porta da frente. E
crescendo no centro da praça havia um enorme carvalho vivo,
coberto de musgo. A árvore da forca.
691

Seu pai estava dizendo algo, mas William não prestava atenção;
ele vagamente sentiu lorde John notar e parar de falar. Eles
caminharam em silêncio até a casa do tio Hal, onde o encontraram
esperando, em uniforme de gala. Ele olhou para o terno de
William e acenou com a cabeça em aprovação, mas não disse
nada além: "Se Prévost lhe oferecer uma patente, não aceite."
"Por que eu deveria?", William respondeu secamente, ao que seu
tio grunhiu de uma forma que provavelmente indicava
concordância. Seu pai e seu tio caminhavam juntos atrás dele,
dando mais espaço para ele.
Eles não conseguiram enforcar Jane. Mas eles a trancaram em um
quarto da casa com a janela oval e vista para a árvore. E a
deixaram sozinha, para esperar sua última noite na terra. Ela
morreu à luz de velas, cortando os pulsos com uma garrafa
quebrada. Escolhendo seu próprio destino. Ele podia sentir o
cheiro da cerveja e do sangue; viu seu rosto à luz vacilante
daquela vela, calmo, distante – sem mostrar medo. Ela teria
ficado satisfeita em saber disso; ela odiava que as pessoas
soubessem que ela estava com medo.
Por que eu não pude salvar você? Você não sabia que eu viria
por você?
Eles passaram sob os galhos da árvore, as botas arrastando-se por
entre as camadas de folhas úmidas derrubadas pela chuva.
"Stercus340", disse tio Hal atrás dele, e ele se virou, assustado. "O
quê?"
"O quê, de fato." Tio Hal acenou com a cabeça para um pequeno
grupo de homens vindo do outro lado da praça. Alguns deles
estavam vestidos de cavalheiros – talvez os políticos de Londres
– mas com eles estavam vários oficiais. Incluindo o coronel

340
Merda, em latim.
692

Archibald Campbell.
Por um instante, William desejou que John Cinnamon estivesse
em sua retaguarda, em vez de seu pai e tio. Por outro lado…
Ele ouviu seu pai bufar e tio Hal fazer uma espécie de zumbido
sombrio na garganta. Sorrindo um pouco, William caminhou
decididamente até Campbell, que fez uma pausa para dizer algo
a um dos cavalheiros.
"Bom dia para você, senhor", disse ele a Campbell, e moveu-se
propositalmente em direção à porta, apenas perto o suficiente de
Campbell para fazê-lo recuar automaticamente. Atrás dele, ele
ouviu o tio Hal dizer – com delicada polidez, "Seu servo, senhor",
seguido pelo cordial de seu pai, "É um prazer vê-lo novamente,
coronel. Espero que você esteja bem? "
Se houve uma resposta a esta gentileza, William não ouviu, mas
dada a expressão no rosto de Campbell – bochechas vermelhas e
pequenos olhos de mirtilo atirando adagas no grupo dos Grey –
ele concluiu que houve uma.
Sentindo-se muito melhor, William esperou que o tio Hal
aparecesse e fizesse as apresentações ao general Prévost e sua
equipe, o que ele fez com uma cortesia curta, mas adequada. Ele
concluiu que não havia amor entre Prévost e seu tio, mas que eles
se reconheciam como soldados profissionais e fariam tudo o que
fosse necessário para resolver uma situação militar, sem levar em
conta as personalidades.
Ele apertou a mão de Prévost, olhando disfarçadamente para ver
se a cicatriz era visível. Papa havia dito que Prévost foi chamado
de "Velho Cabeça-de-Bala" por ter tido seu crânio fraturado por
uma bala que o atingiu na cabeça na Batalha de Quebec. Para sua
gratificação, ele podia ver: uma depressão perceptível do osso
logo acima da têmpora, aparecendo como uma sombra oca sob a
borda da peruca de Prévost.
693

"Meu senhor?", disse uma voz ao seu lado quando ele entrou na
sala de recepção, onde os convidados estavam se reunindo para
receber xerez e biscoitos salgados para evitar a inanição até que
o almoço fosse servido.
"Sr. Ransom", William disse com firmeza, virando-se para ver
Denys Randall, uniformizado e parecendo muito mais bem
cuidado em suas vestimentas do que na reunião anterior. "Seu
servo, senhor."
Ele olhou para trás e viu que o grupo de Campbell havia chegado,
mas que tio Hal e seu pai tinham, entretanto, de alguma forma
planejado flanquear Prévost, comportando-se como se fossem
parte da linha de recepção oficial, cumprimentando cada um dos
políticos de Londres – vários dos quais tio Hal parecia conhecer
– com efusivas boas-vindas antes que Campbell pudesse
apresentá-los.
Sorrindo, ele se voltou para Denys. "Alguma palavra sobre meu
primo?"
"Não diretamente." Randall pegou dois copos de xerez de uma
bandeja que passava e entregou um a William. "Mas eu sei o
nome do oficial britânico que recebeu a carta original com a
notícia da morte de seu primo."
"Coronel Richardson?", William perguntou, desapontado. "Sim,
eu sei disso."
Mas Denys estava balançando a cabeça.
"Não. A carta foi enviada a Richardson pelo coronel Banastre
Tarleton341." O xerez de William entrou pelo lado errado e ele

341
Tenente-coronel Banastre Tarleton (1754-1833). Um ambicioso soldado britânico. Suas excelentes
habilidades como cavaleiro e líder permitiram-lhe subir na hierarquia militar, chegando a general.
Considerado implacável e um tanto cruel com homens e animais, os historiadores deram-lhe o título de
"Ban Sanguinário" e "O Carniceiro", devido às suas ações na Batalha de Waxhaws (29 de maio de 1780),
onde ele e seus homens mataram impiedosamente mais de cem patriotas que se rendiam.
694

engasgou ligeiramente.
"O quê? Tarleton recebeu a carta dos americanos? Como? Por
que?" O último342 encontro de William com Ban Tarleton
terminou com uma luta corporal – no campo de batalha em
Monmouth – por Jane. William estava razoavelmente certo de
que havia vencido.
"Eu realmente gostaria de saber isso", respondeu Denys,
curvando-se para cumprimentar um cavalheiro de veludo azul do
outro lado da sala. "E eu sinceramente espero que você descubra
e me diga. Enquanto isso, você ouviu alguma coisa sobre nosso
amigo Ezekiel Richardson?"
"Sim, mas provavelmente nada muito útil. Meu pai recebeu uma
carta de um capitão de barco conhecido dele, que mencionou
casualmente que tinha visto Richardson nas docas em Charles
Town."
"Quando?" Denys não demonstrou nenhuma empolgação aberta
com a notícia, mas inclinou a cabeça como um terrier se
perguntando se acabara de ouvir o barulho de um esquilo no
subsolo.
"A carta era datada de um mês atrás. Não há como dizer se o
capitão viu o sujeito naquela época ou algum tempo antes.
Nenhuma pista de que Schermerhorn – esse é o capitão –
soubesse que Ezekiel Richardson é um vira-casaca, a propósito,
então suponho que ele não estava de uniforme. Não em um
uniforme americano, quero dizer."
"Nada mais?" O terrier ficou desapontado, mas animou-se
novamente com a próxima informação de William.
"Aparentemente, Richardson estava com um cavalheiro chamado

342
William se esqueceu que, no dia seguinte dessa briga, eles se encontraram de forma razoavelmente
amigável no dia seguinte, quando Tarleton trouxe de volta o cavalo de Wiliam, que havia sido levado
pelos desertores hessianos. Livro 8 cap 86
695

Haym343. Mas ele não disse nada sobre o que eles estavam
fazendo, ou quem Haym poderia ser. "
"Eu sei quem ele é." Denys manteve o controle de sua expressão,
mas seu interesse era claro.
A conversa foi interrompida neste ponto pelo toque de um
pequeno gongo e o anúncio do mordomo de que o almoço estava
servido, e ele se viu separado quando outro conhecido saudou
Denys.
"Tudo bem, Willie?" Seu pai apareceu ao lado dele enquanto ele
passava pelas portas duplas da sala de recepção para um amplo
corredor com um fantástico piso de tela pintada, feito em uma
simulação do mosaico de uma villa romana. "Ele descobriu
alguma coisa sobre Ben?"
"Não muito, mas pode haver algo." Ele rapidamente transmitiu a
essência de sua conversa com Randall.
"Ele diz que conhece o homem com quem Richardson foi visto
em Charles Town. Haym."
"Haym?" Tio Hal os alcançou a tempo de ouvir isso e ergueu uma
sobrancelha ao ouvir o nome.
"Possivelmente", disse William. "Você o conhece?"
"Não posso dizer que conheço", disse seu tio com um encolher
de ombros. "Mas eu ouvi falar de um rico judeu polonês chamado
Haym Salomon. Não consigo imaginar o que diabos ele estaria
fazendo em Charles Town, embora a última vez que ouvi falar
dele, ele tinha sido condenado à morte como espião, em Nova
York."

343
Haym Salomon (ou Solomon) (1740 - 1785), um empresário, corretor financeiro e político que
imigrou da Polônia para a cidade de Nova York durante o período da Guerra de Independência Norte-
Americana. Ele ajudou a converter os empréstimos franceses em dinheiro, vendendo letras de câmbio
para Robert Morris, o Superintendente de Finanças. Desta forma, ele ajudou o Exército Continental e foi
possivelmente, junto com Morris, o principal financiador do lado americano durante a guerra contra a
Grã-Bretanha.
696

-.-.-

O ALMOÇO FOI TEDIOSO, com pequenas pontos de irritação.


William se viu sentado entre um Sr. Sykes-Hallett, que parecia
ser um membro do Parlamento de algum lugar em Yorkshire, a
julgar por seu sotaque incompreensível, e um cavalheiro esguio e
bem vestido em um casaco verde-garrafa chamado Fungo (ou
possivelmente Fungus) , que borbulhava sobre o brilhantismo da
Campanha do Sul (sobre a qual ele claramente não sabia nada,
nem notava os olhares de pedra dos soldados sentados perto dele)
e continuou a se dirigir a William como "lorde Ellesmere",
embora ele tivesse sido tenuamente convidado a parar de fazer
isso.
William pensou ter recebido um olhar simpático do tio Hal na
mesa ao lado, mas não tinha certeza.
"Eu entendi corretamente que você renunciou à sua patente, lorde
Ellesmere?", perguntou o fungo verde, entre mordidelas de
salmão cozido no vapor. O coronel Campbell disse que você
teve... algum problema com uma garota? Veja bem, eu não o
culpo nem um pouco." Ele ergueu uma sobrancelha fina como
um fio de cabelo com um ar de conhecedor. "Uma carreira militar
é boa o suficiente para homens que têm capacidade, mas não têm
meios – mas eu entendo que você felizmente não precisa abrir seu
caminho na vida às custas – pelo menos potencialmente – de seu
sangue?"
William fora criado para exercer a cortesia mesmo em
circunstâncias adversas e, portanto, apenas pegou com um garfo
uma porção da terrina de coelho e colocou-a na boca, em vez de
com ele apunhalar a garganta de Fungo.
Agora, isso teria sido coisa de Campbell... mas não era realmente
a malícia de Campbell que o incomodava. Ele não tinha
697

percebido o quanto o incomodaria – não ser mais um soldado. Ele


se sentia como um impostor, um intruso, um pedaço inútil e
desprezado, sentado aqui entre os soldados em um colete coberto
com a porra de besouros, pelo amor de Deus!
Era uma grande reunião, cerca de trinta homens, dois terços deles
uniformizados, e ele podia sentir claramente os limites entre os
civis e os soldados. Respeito, certamente – mas respeito com um
desprezo subjacente – de ambos os lados.
"Que colete encantador, senhor", disse o homem do outro lado da
mesa, sorrindo. "Eu admito uma grande queda pelos besouros. Eu
tive um tio que os coletava. Ele deixou sua coleção para o Museu
Britânico quando morreu."
O nome do homem era Preston, William pensou – segundo
secretário do subsecretário de guerra ou algo assim. Ainda assim,
ele não estava sendo sarcástico ou malicioso; ele tinha um rosto
forte, embora bastante caseiro, com um nariz grande e torto que
exibia um par de pince-nez e obviamente não pretendia nada além
de uma conversa amigável.
"Minha prima os bordou para mim, senhor", disse William, com
uma ligeira reverência. "O pai dela é naturalista, e ela me garante
que eles estão completamente corretos – exceto pelos olhos, que
eram sua fantasia particular."
"Sua prima?" Preston olhou para a mesa ao lado, onde Papa e tio
Hal estavam conversando com Prévost e seus dois convidados
principais, um nobre menor enviado como representante de lorde
George Germain, o secretário de Estado para as colônias, e o outro
era um francês bem-vestido, ou algo do tipo. "Certamente não é o
duque que é naturalista. Oh, mas é claro, o tio deve estar do lado
da sua mãe?"
"Ah. Não, senhor, eu não fui claro. Ela é viúva do meu primo,
nora do meu tio." Ele inclinou a cabeça na direção do tio Hal. "O
marido dela morreu como prisioneiro de guerra em Nova Jersey,
698

e ela e seu filho se refugiaram conosco. "


"Minhas profundas condolências à jovem, meu senhor", Preston
disse, parecendo genuinamente preocupado. "Suponho que o
marido dela era um oficial – você conhece o regimento dele?"
"Sim", disse William, deixando o meu senhor passar. "O
trigésimo quarto. Por quê?"
"Eu sou um subsecretário júnior do Ministério da Guerra, meu
senhor, encarregado de supervisionar o apoio de nossos
prisioneiros de guerra. Apoio lamentavelmente insuficiente,
receio", acrescentou ele, com um aperto de boca.
"Na maioria dos casos, tudo que posso fazer é solicitar e
organizar a ajuda de igrejas e legalistas compassivos nas
proximidades das prisões. Os americanos são tão limitados em
seus meios que dificilmente têm dinheiro para alimentar suas
próprias tropas, quanto mais seus prisioneiros, e fico
envergonhado em dizer que o mesmo é quase sempre verdadeiro
para o Exército britânico. "
Preston recostou-se quando dois lacaios chegaram com a sopa.
"Este não é o momento nem o lugar para tais discussões", disse
Preston, olhando em volta, enquanto uma tigela descia à sua
frente. "Mas se você estiver livre mais tarde, meu senhor, ficaria
muito grato se me contasse o que puder sobre seu primo e as
condições em que foi mantido. Se... se não for muito doloroso",
acrescentou ele apressadamente, com outro olhar para o tio Hal.
"Eu ficaria feliz", disse William, pegando sua colher de sopa de
prata e experimentando a sopa de lagosta. "Talvez... possamos
nos encontrar nos Arcos esta noite? A Casa Rosa, você sabe. Eu
não iria querer causar angústia ao meu tio." Ele olhou para o tio
Hal também – seu tio parecia estar sofrendo de indigestão, fosse
de natureza física ou espiritual, e Papa estava olhando para a sopa
com uma expressão muito fixa.
699

"Claro." O sr. Preston olhou rapidamente para o duque e baixou


a voz. "Eu... hesito em perguntar, mas você acha que seu pai
talvez possa acompanhá-lo mais tarde? Sua experiência com
prisioneiros foi, claro, algum tempo atrás, mas..."
"Prisioneiros?", William sentiu algo pequeno e duro balançar em
sua barriga, como se ele inadvertidamente tivesse engolido uma
bola de golfe. "Meu pai?"
O sr. Preston piscou, se retratando.
"Perdoe-me, meu senhor. Eu pensei..."
"Isso não importa." William acenou com a mão. "O que você quis
dizer, entretanto; sua experiência com prisioneiros?"
"Por que lorde John foi o administrador de uma prisão na Escócia,
talvez... vinte ou vinte e cinco anos atrás...? Agora, qual era o
nome... oh, claro. Ardsmuir. Você não sabia disso? Oh Deus, eu
imploro seu perdão."
"Vinte e cinco anos atrás", William repetiu. "Eu... suponho que
alguns dos prisioneiros possam ter sido traidores jacobitas, do
Levante?"
"Oh, de fato", disse o sr. Preston, parecendo mais feliz agora que
William não estava ofendido. "A maioria deles, se bem me
lembro. Já escrevi um ou dois pequenos livros sobre o assunto da
reforma penitenciária, e o tratamento dos prisioneiros jacobitas
compreendeu uma parte significativa de minhas pesquisas. Eu...
poderia lhe contar um pouco mais sobre isso, talvez... esta noite?
Digamos às dez horas?"
"Encantado", disse William cordialmente, e colocou a colher
cheia de sopa fria na boca.
700

45

NÃO É BEM COMO A LEPRA

LORD JOHN LEVANTOU uma colher de sopa quente e a


manteve suspensa para esfriar, sem desviar o olhar do cavalheiro
sentado à sua frente à mesa, ao lado de Prévost. Ele podia sentir
Hal vibrando ao lado dele e se perguntou brevemente se deveria
derramar a sopa na perna de Hal, como um meio de tirá-lo da sala
de jantar antes que ele dissesse ou fizesse algo imprudente.
Seu antigo irmão adotivo, que acabara de ser apresentado a eles
como o Cavalier Saint-Honoré, não pôde deixar de notar a reação
deles à sua presença, mas conservou um sangue-frio perfeito,
deixando seu olhar passar vagamente pelos irmãos Grey, não
encontrando os olhos de ninguém. Ele estava conversando com
Prévost em francês parisiense e, pelo que Grey sabia, na verdade
estava fingindo ser francês, malditos sejam os olhos dele!
Percy. Seu... seu... Para sua surpresa, ele foi incapaz de aplicar
um epíteto adequado. Ele não gostava nem confiava em Percy –
mas uma vez ele amou o homem, e ele era suficientemente
honesto consigo mesmo para admitir isso.
Percival Wainwright344 – seu nome verdadeiro era Perseverance,
mas John estava disposto a apostar que ele era a única pessoa no
mundo que sabia disso – estava parecendo bem, e muito bem
vestido em um terno caro e elegante de seda puce345 com um
colete listrado azul claro e branco. Ele ainda tinha feições
delicadas e atraentes com olhos castanhos suaves, mas o que quer
que tenha feito nos últimos anos lhe deu uma nova firmeza de
344
Personagem já visto nos livros 7 e 8, além de estar presente em Assunto e Irmandade.
Couleur puce, em francês. O nome completo da cor seria “a cor da barriga de uma pulga”, um
345

marrom-arroxeado profundo.
701

expressão – e novas linhas em torno de sua boca.


"Monsieur", John disse a Percy diretamente, e curvando-se para
ele, continuou em francês. "Permita-me que me apresente – sou
lorde John Grey, e este", ele acenou com a cabeça em direção a
Hal, que estava respirando ruidosamente, "é meu irmão, o duque
de Pardloe. Estamos honrados com sua companhia, mas estamos
curiosos para saber o que... que golpe de sorte teria trazido você
aqui."
"A votre service346", Percy respondeu, com uma reverência
igualmente civilizada. John imaginou o brilho em seus olhos?
Não, não foi imaginação, ele concluiu, e casualmente deixou sua
mão cair no joelho de seu irmão, apertando de uma maneira que
pretendia sugerir que uma palavra de Hal e ele mancaria por
horas.
Hal pigarreou em um tom ameaçador, mas também se curvou,
sem tirar os olhos de Percy enquanto o fazia.
"Estou aqui a convite do sr. Robert Boyer", disse Percy, mudando
para o inglês com um leve sotaque francês. Ele inclinou a cabeça
ligeiramente, indicando um cavalheiro corpulento em uma mesa
vizinha, cujo terno cor de vinho tinha o tom exato dos vasos
sanguíneos rompidos em seu nariz bulboso. "Monsieur Boyer
possui vários navios e mantém contratos com a Marinha Real e
com o Exército, para o fornecimento de alimentos e outras
necessidades. Ele tem alguns assuntos importantes para discutir
com o general e pensou que eu poderia ser de alguma pequena
ajuda com... detalhes."
A faísca ficou mais pronunciada, mas Percy felizmente se absteve
de qualquer coisa aberta, visto que Hal estava fazendo buracos
com os olhos em seu colete listrado.
"De fato", disse John casualmente, em inglês. "Que interessante."
346
“A seu serviço”, em francês.
702

E com o mais breve aceno de desdém para Percy, ele largou o


joelho de Hal e se virou para seu parceiro à direita, sendo este a
sra. major-general Prévost. Madame general estava obviamente
acostumada a ser a única mulher em jantares militares e parecia
surpresa quando alguém falava com ela.
John a envolveu em descrições de seu jardim e quais plantas
estavam crescendo bem no momento e quais não estavam. Isso
ocupou relativamente pouca atenção, infelizmente; ele podia
ouvir Hal, atrás dele, conversando com seu outro parceiro, um
coronel de artilharia muito condecorado, mas idoso e
entorpecido, que era surdo como pedra. As perguntas meias
gritadas de Hal foram pontuadas por pequenos comentários
zombeteiros ditos em voz baixa, dirigidos a Percy, que até agora
os havia ignorado.
Sentindo um nó na barriga com a necessidade urgente de fazer
algo, e incapaz de chutar Percy por baixo da mesa ou dar a Hal
uma sacudida nas costelas com o cotovelo, John empurrou a
cadeira para trás e se levantou abruptamente.
Ele se dirigiu para o biombo discreto no canto da sala de jantar
que escondia os urinóis da vista, mas o cheiro forte da urina de
vários comedores de lagosta o atingiu no rosto e ele desviou,
saindo pelas portas francesas abertas para o ar fresco do jardim.
Tinha chovido, mas o aguaceiro tinha parado e a água pingava de
cada árvore e arbusto.
Ele sentiu como se houvesse uma faixa de ferro em volta de seu
peito, que se quebrou quando ele saiu de casa, e respirou fundo,
haustos refrescantes do ar fresco da chuva. Seu rosto estava
quente e ele passou a mão pelas folhas molhadas de um arbusto
de hortênsia e limpou o rosto com água fria.
"John", disse uma voz atrás dele.
Ele enrijeceu, mas não se virou.
703

"Vá embora", disse ele. "Eu não quero falar com você."
Houve um leve resfolegar em resposta.
"Eu entendo", disse Percy, em seu sotaque inglês normal. "E não
posso dizer que o culpo. Mas temo que você tenha que fazer isso,
você sabe."
"Não, não tenho." John se virou, pretendendo empurrar Percy e
voltar para dentro, mas Percy agarrou seu braço.
"Não tão rápido", disse ele. "Botão-de-ouro347."
A coluna vertebral de John reagiu muito mais rápido do que sua
mente consciente. O estômago e as bolas se contraíram com uma
força que o fez engasgar, antes que sua mente conseguisse
informá-lo de que o maldito homem realmente acabara de usar
seu nome de guerra. O codinome secreto sob o qual ele trabalhou
– por três anos mortais – na Câmara Negra de Londres.
Ele percebeu que estava olhando para Percy com a boca aberta e
fechou-a. Percy sorriu, um pouco trêmulo. A fachada do francês
arrogante e elegante havia sumido, e realmente era Percy. Seus
cachos escuros estavam escondidos sob a peruca macia empoada,
mas os olhos estavam como sempre foram – escuros, suaves e
promissores. Promessas de vários tipos.
"Não me diga", disse John, surpreso que sua própria voz soasse
normal. "Monsieur Citròn348?"
"Sim."
A voz de Percy estava rouca, embora John não pudesse ter dito
devido a qual emoção. Humor, medo, excitação, luxúria...? O
último pensamento o fez se livrar do aperto de Percy e dar um
passo para trás.
"Há quanto tempo você sabia?", ele demandou. "Monsieur
347
No original buttercup. Uma flor silvestre de amarelo brilhante. Também pode ser traduzida por
ranúnculo.
348
Senhor Limão, em francês.
704

Citròn" tinha sido o seu oposto, no equivalente da França à


Câmara Negra. Todos os países tinham um, embora os nomes
variassem. A colmeia subterrânea onde as abelhas operárias
juntavam o pólen da inteligência, grão em grão, e
meticulosamente o transformavam em mel – ou veneno.
Percy encolheu os ombros.
"Eu trabalhei para o Secret du Roi por cerca de dois anos, antes
de eles me entregarem você. Levei mais seis meses para descobrir
quem você realmente era."
Não pela primeira vez, John desejou ter a capacidade de Jamie
Fraser de fazer ruídos glóticos que deixavam claro seu estado de
espírito sem o incômodo de encontrar palavras. Mas ele era um
inglês e, portanto, encontrou alguns.
"Você está trabalhando para Hirondelle agora?" Ele demandou.
O Segredo do Rei – o círculo de espionagem particular de Louis
XV – não tinha morrido completamente com a morte do rei, mas
da maneira como essas coisas eram feitas, foi silenciosamente
absorvido por um corpo mais oficialmente reconhecido.
Ele próprio havia escapado das garras de Hubert Bowles, chefe
da Câmara Negra de Londres, alguns anos atrás, e deixou o
mundo dos segredos oficiais para trás com a sensação aliviada de
alguém sendo pescado de um pântano fedorento na ponta de uma
corda.
Percy levantou um ombro brevemente, sorrindo.
"Se eu ainda fosse fiel a La Belle France –e a seus mestres – você
não poderia dizer se eu estaria dizendo a verdade sobre isso ou
não, poderia?"
O coração de John estava começando a desacelerar, mas aquele
"se" o acelerou de novo, como um cavalo esporeado.
Ele não respondeu imediatamente. Mas gastou um tempo olhando
705

Percy de cima a baixo, deliberadamente.


"Não é bem como a lepra, você sabe", disse Percy, suportando
esse escrutínio com visível diversão. "A traição não se mostra tão
facilmente."
"Diabos, não", disse John, mas mais para ter algo a dizer do que
porque era verdade.
"Você está realmente me dizendo que você está – ou está prestes
a", acrescentou ele, com um olhar severo para os trajes
parisienses muito caros de Percy, "se separando de seus
interesses especiais na França?"
Incluindo para quem trabalhava na Câmara Negra? Eu imagino.
"Sim. Ainda não fiz isso, porque...", ele olhou involuntariamente
por cima do ombro e John deu uma risada curta.
"Muito esperto", disse ele. "Então você está querendo preparar
um pouso suave deste lado antes de pular. E você pensou em
começar comigo?"
Havia manipulação da verdade suficiente nessa história para John
arrancar a pele da mão de Percy se ele tentasse pegá-la.
Ele não a pegou e também não abaixou a cabeça. Apenas se
levantou e não reagiu, observando Grey com seus olhos escuros
e suaves.
"Você salvou minha vida, John", ele disse baixinho, olhando para
ele. "Obrigado por isso. Não tive a chance de dizer isso na
época."349
John sacudiu a mão com desdém, embora seu peito tivesse
apertado com as palavras de Percy. Ele havia suprimido tudo na
época e não queria de volta agora, vinte anos depois. Nada
daquilo.

349
Fatos ocorridos em Irmandade.
706

"Sim. Bem..." Ele se virou ligeiramente; Percy estava parado


entre ele e o terraço com portas francesas.
"Então eu pensei que você poderia estar disposto a me fazer um
favor muito menos perigoso."
"Pense melhor nisso", John aconselhou-o secamente, e,
contornando seu antigo amante, afastou-se rapidamente.
Ele não ouviu nada atrás dele; nem protesto, nem ofertas, nem
seu nome sendo chamado.
Nas portas francesas abertas, ele olhou involuntariamente para
trás.
Percy estava parado perto do arbusto de hortênsias. Sorrindo para
ele.
707

46

À PRIMEIRA LUZ DA AURORA

O SOL JÁ ESTAVA ACIMA DO HORIZONTE quando


William seguia vagarosamente pela rua Oglethorpe em direção à
casa de seu pai. Ele teve uma longa, fascinante – e muito
esclarecedora – conversa com Christopher Preston, sobre o
tratamento dado pela Coroa aos prisioneiros, sociedades de ajuda
aos prisioneiros, navios-prisão... e a Prisão de Ardsmuir. Com o
tempo, ele precisaria ter uma conversa com lorde John. Só não
apenas... neste... minuto.
Ele não estava bêbado, mas também não estava completamente
sóbrio. Um de seus bolsos cedeu pesadamente e tilintou quando
ele o tocou. Ele tinha uma vaga memória de jogar cartas com
Preston e alguns amigos dele – pelo menos essa experiência
parecia ter terminado melhor do que a última vez em que ele ficou
cegamente bêbado, acabou sem um tostão e... encontrou Jane
novamente.
Jane.
Ele não queria chamá-la à mente, mas lá estava ela, vívida,
desenhada na superfície de sua mente com uma pena de ponta
afiada. A primeira vez que ele a encontrou – e a segunda. O brilho
de seus cabelos e o cheiro de seu corpo, perto dele no escuro.
Ele parou e se apoiou pesadamente na cerca de ferro que cercava
o jardim da frente de um vizinho. O cheiro de flores e solo recém-
revolvido era fresco como o ar da manhã em seu rosto, o sopro
do rio distante e seus pântanos calmantes, com sua sensação de
água corrente, lodo preto e macio e crocodilos à espreita.
O pensamento inesperado de crocodilos o fez rir, e ele esfregou a
mão sobre os pelos ásperos de sua barba, sacudiu a cabeça e
708

entrou pelo portão da casa de Papa. Ele farejou o ar com


expectativa, mas chegou muito cedo; ele podia sentir o cheiro da
fumaça do fogo da cozinha, mas nenhum bacon. Vozes, no
entanto... Ele vagou pela lateral da casa, com a intenção de ver se
poderia encantar Moira, a cozinheira, para lhe dar um pedaço de
pão torrado ou um pouco de queijo para aliviar as dores da fome
até que algo mais substancial estivesse pronto.
Ele encontrou Moira na horta, colhendo cebolas. Ela estava
conversando com Amaranthus, que evidentemente também
estava colhendo; ela carregava um cesto que continha um grande
monte de uvas e um par de peras da pequena árvore que crescia
perto da cozinha. Com um olho nas frutas, ele se aproximou e
desejou bom dia às mulheres. Amaranthus lançou-lhe um olhar
de cima a baixo, inalou como se tentasse julgar seu estado de
embriaguez pelo aroma e, com um leve aceno de cabeça,
entregou-lhe uma pera.
"Café?", ele disse esperançosamente para Moira.
"Bem, não direi que não existe", disse ela em dúvida. "No
entanto, é sobra de ontem e é forte o suficiente para tirar o brilho
de seus dentes.”
"Perfeito", ele assegurou a ela, e mordeu a pera, fechando os
olhos enquanto o suco delicioso inundava sua boca. Abriu-os
para encontrar Amaranthus, de costas para ele, abaixando-se para
olhar algo no chão entre os rabanetes. Ela estava vestindo um
robe fino por cima da camisola, e o tecido se esticava
caprichosamente sobre seu traseiro redondo.
Ela se levantou de repente, virando-se, e ele imediatamente se
inclinou em direção ao chão que ela estava olhando, dizendo: "O
que é isso?" embora ele pessoalmente não tenha visto nada além
de sujeira e um monte de rabanetes.
"É um besouro de esterco", disse ela, olhando para ele de perto.
709

"Muito bom para o solo. Eles rolam pequenas bolas de


excremento e as arrastam para longe."
"O que eles fazem com elas? As, hum, bolas de esterco, quero
dizer."
"Comem", disse ela, dando de ombros levemente. "Eles enterram
as bolas por garantia e depois as comem conforme a necessidade
– ou às vezes se reproduzem dentro das bolas maiores."
"Que... aconchegante. Você já tomou café da manhã?", William
perguntou, levantando uma sobrancelha.
"Não, ainda não está pronto."
"Nem eu", disse ele, levantando-se. "Embora eu não esteja tão
faminto quanto antes de você me dizer isso." Ele olhou para o
colete. "Eu tenho algum besouro de esterco nesta nobre
coletividade?"
Isso a fez rir.
"Não, você não tem", disse ela. "Não é colorido o suficiente."
Amaranthus estava de repente bem perto dele, embora ele tivesse
certeza de que não a tinha visto se mover. Ela tinha o estranho
truque de parecer surgir de repente do nada; era desconcertante,
mas bastante intrigante.
"Aquele verde brilhante", disse ela, apontando um dedo longo e
delicado em sua cintura, "é um besouro Chrysosuchus auratus."
"É realmente?"
"Sim, e esta adorável criatura com nariz comprido é um billbug."
"Um percevejo?" William apertou os olhos para baixo.
"Não exatamente, um billbug", ela disse, tocando o besouro em
questão, "é uma espécie de gorgulho, mas come taboa. E milho
novo. "
"Uma dieta bastante variada."
710

"Bem, a menos que você seja um besouro de esterco, você tem


alguma escolha do que comer", disse ela, sorrindo. Ela tocou
outro besouro e William sentiu um leve, mas perceptível arrepio
na base da espinha. "Agora aqui", disse ela, com pequenos toques
distintos de seu dedo, "nós temos o besouro verde, o besouro-
tigre, e o falso besouro da batata."
"Como é um verdadeiro besouro da batata?"
"Muito parecido. Este é chamado de falso porque, embora ele
possa comer batatas, ele realmente prefere urtigas-de-cavalo350."
"Ah." Ele achava que deveria expressar interesse no resto das
coisinhas de olhos vermelhos que ornamentavam seu colete, em
parte para retribuir sua bondade em bordá-los, mas mais na
esperança de que ela continuasse tocando neles. Ele estava
abrindo a boca para perguntar sobre uma coisa grande de cor
creme com chifres quando ela deu um passo para trás para olhar
em seu rosto.
"Ouvi meu sogro falando com lorde John sobre você", disse ela.
"Oh? Bem. Espero que tenham se divertido com isso", disse ele,
sem se importar muito.
"Falando em falsos besouros de batata, quero dizer", disse ela.
Ele fechou os olhos brevemente, depois abriu um e olhou para
ela. Ela estava perfeitamente sólida, sem vacilar nem um pouco.
"Eu sei que estou um pouco alto pela bebida", disse ele
educadamente. "Mas eu não acho que me pareço com qualquer
tipo de besouro de batata, independentemente da opinião do meu
tio."
Ela riu, mostrando os dentes muito brancos. Talvez ela não tenha

350
Tanto a batata como a urtiga de cavalo (que não é uma urtiga de verdade, mas sim a Solanum
carolinense –planta bastanate tóxica muito assemelhada ao nosso juá-bravo, ou arrebenta-cavalo –
Solanum sisymbriifolium, também tóxico e tão cheio de espinhos quanto a sua prima norte-americana) são
da família solanacea, a mesma do tomate e da berinjela...
711

bebido café...
"Não, você não parece", ela garantiu. "A dicotomia apenas me
lembrou o que o pai Pardloe estava dizendo – que você queria
renunciar ao seu título, mas não podia."
Ele se sentiu repentinamente quase sóbrio.
"Mesmo. Você ouviu por acaso o motivo?"
"Não", ela disse. "E não é da minha conta, é?"
"Evidentemente você pensa que é", disse ele. "Ou por que você
estaria mencionando isso?"
Ela se abaixou e arrancou um pequeno cacho de uvas do cesto,
oferecendo-o a ele. Moira, ele notou, tinha ido embora de vez,
atrás de seus afazeres.
"Bem, eu pensei que se esse for realmente o caso... eu poderia ser
capaz de sugerir algo."
Com uma estranha sensação de alegria, ele pegou as uvas e
perguntou: "Como?"
"Bem", disse ela, tão razoavelmente como se estivesse
descrevendo os hábitos alimentares de um vaga-lume, "é muito
simples. Você não pode renunciar ao seu título, mas pode
transmiti-lo. Abdicar em favor de seu herdeiro, quero dizer."
"Eu não tenho um herdeiro. Você está sugerindo..."
"Sim, exatamente." Ela acenou com a cabeça em aprovação para
ele. "Você se casa comigo e assim que eu tiver um filho, você
pode dar a ele seu título e se aposentar para a vida privada e criar
dachshunds ou talvez fingir que cometeu suicídio e se tornar
quem você quiser."
"Deixando você..."
"Me deixando como a condessa viúva de qualquer que seja o
nome de sua propriedade, eu esqueci. Isso poderia ser
712

ligeiramente melhor do que ser a nora na penúria do duque de


Pardloe, não é?"
Ele respirou fundo. O cheiro do café estava realmente no ar,
assim como o de bacon, mas de repente ele perdeu o interesse
pela comida. Ele olhou para ela. Ela ergueu uma sobrancelha loira
lisa.
"E se seu próximo filho for uma filha?", disse ele, para sua
própria surpresa. "E aquele depois dessa? Parece-me que correria
o risco de acabar com um... harém de garotas, todas precisando
de dotes e casamentos, e eu ainda sendo um maldito conde."
Sua sobrancelha se enrugou ligeiramente.
"O que é um harém?"
"É o que os xeiques árabes fazem para espantar a monotonia do
casamento, ou pelo menos foi o que me disseram. Poligamia,
quero dizer."
"Certamente você não quer insinuar que acha que ser casado
comigo seria monótono, William." A sombra de uma covinha
cintilou em sua bochecha. "Mas quanto ao harém, bobagem.
Você não precisa se casar comigo imediatamente, você sabe. Nós
tentaríamos, e se o resultado for masculino, então você se casa
comigo, reconhece a criança e..." Ela deu um aceno de mão em
um silencioso "voilà".
"Não acredito que estou tendo essa conversa", disse ele,
sacudindo a cabeça violentamente. "Eu realmente não acredito.
Mas, para fins de argumentação, que diabo você se propõe a fazer
se o resultado, como você disse tão casualmente, for feminino?"
Ela franziu os lábios e virou a cabeça para o lado, considerando.
"Oh, eu posso pensar em uma dúzia de coisas pelo menos. O mais
simples seria eu ir para o exterior à primeira sugestão de gravidez
– eu deveria fazer isso de qualquer maneira, já que ainda não
713

seríamos casados – e fingir ser uma viúva rica. Então..."


William soltou um ruído que pretendia ser uma risada, e ela
ergueu a palma da mão para suprimi-lo, continuando
serenamente: "E então, se a criança fosse uma menina, eu
simplesmente voltaria com a queridinha (pois tenho certeza de
que qualquer filho seu seria adorável, William) e anuncio que
uma boa amiga minha morreu de parto e que eu adotei a filha
dela, por caridade, é claro, mas também para dar uma irmã ao
meu querido Trevor."
Ela abaixou a palma da mão e arregalou os olhos para ele. "Essa
é uma maneira. Eu posso pensar em outras, se você..."
"Por favor, não." Ele não sabia se ria, gritava com ela, comia uma
uva ou simplesmente ia embora. Antes que ele pudesse decidir,
ela fez sua alucinação novamente e pressionou-se levemente
contra ele, as mãos em seus ombros, o rosto sedutoramente
voltado para cima.
"Mas veja", ela disse razoavelmente, "não há realmente nenhum
risco. Para você, quero dizer. E você pode...", sua mão segurou a
bochecha dele, breve e fria como a chuva, e seu dedo indicador
traçou seus lábios, "apenas possivelmente se divertir."
714

47

TACE É VELA EM LATIM351

JOHN SABIA QUE ELES teriam que falar sobre Percy, mas ele
conseguiu evitar Hal até o dia seguinte, pelo simples expediente
de deixar seu casaco e uma gorjeta com o cozinheiro de Prévost
e seguiu para o porto enquanto Hal ainda estava conversando com
o Velho Cabeça-de-Bala. Lá ele alugou um barco para levá-lo
para pescar nos pântanos. Seu guia, um local chamado Lapolla,
era muito qualificado, e John voltou depois de escurecer,
cheirando a lama e grama do pântano, com um saco cheio de
peixes vermelhos e uma coisa grande e horrível chamada
caranguejo-ferradura, que eles descobriram – felizmente morto –
em uma pequena ilhota composta inteiramente de conchas de
ostras.
Ele tinha comido um pouco de seu peixe, assado em uma fogueira
na praia e totalmente delicioso. Então, ligeiramente bêbado, ele
entrou furtivamente no quarto de Hal por volta da meia-noite e
deixou o caranguejo morto na mesa de cabeceira ao lado de seu
irmão adormecido, como um comentário simbólico sobre a
situação.
Com uma coisa e outra, porém, ele não encontrou um Hal
consciente até o final da tarde seguinte, após um chá angustiante
na casa de uma sra. Tina Anderson, que, embora fosse uma beleza
351
Um ditado de origem obscura. ‘Tace’, em latim, significa ficar em silêncio, ficar quieto. Onde entra a
vela? Bem, uma vela apagada mantém tudo no escuro, da mesma forma que uma voz silenciada não
explica, não esclarece, não se expressa. Dessa forma, as coisas se mantem obscuras. Achamos uma
explicação de que era costume antigamente expressar desaprovação de uma peça ou ator jogando uma
vela no palco, e quando isso era feito, a cortina era imediatamente baixada. Assim, a vela significava ficar
em silêncio.
715

loira alta e escultural possuidora de grande charme, também


possuía uma horda de amigas tagarelas que o atacaram todas
juntas, agarrando-se afetuosamente à sua manga ou dedilhando
seu cordão de ouro, enquanto expressavam sua gratidão pela
presença do exército e sua admiração pelos soldados corajosos
que as estavam salvando – aparentemente – de rapina em massa.
"Foi como ser bicado até a morte por um bando de pequenos
papagaios", disse ele a Hal. "Gritos estridentes e penas por toda
parte".
"Não se importe com os papagaios", disse Hal seco. Ele próprio
tinha saído para um encontro mais formal – e sem dúvida menos
barulhento – na casa de uma sra. Roma Sars, onde conversou com
alguns dos políticos que estiveram no almoço de Prévost.
"Eu esperava falar com Monsieur Soissons e descobrir de que
diabólica maneira o maldito Percy veio parar aqui, quando ele
deveria estar morto – ou pelo menos decentemente fingindo estar
– mas Soissons não estava lá", Hal respondeu brevemente. Ele
tirou a faixa352 e a marca vermelho-escura em seu pescoço sugeria
que ele se engasgou com palavras não-ditas de um tipo e de outro
durante toda a tarde. "Onde foi que você disse que encontrou o
sujeito pela última vez?"
John desfez sua própria faixa de couro353 e fechou os olhos,
suspirando de alívio. "Eu o encontrei no acampamento americano
em um lugar chamado Coryell’s Ferry, logo antes de Monmouth.
Eu contei a você sobre isso."
Hal enxugou o rosto com uma toalha descartada, evidentemente

352
No original, “stock”. Essa palavra exigiu muita pesquisa, até a ajuda de um militar, já que se trata de
um item do uniforme, para tentar descobrir qual seria o termo equivalente em português, sem sucesso.
Não era utilizada no nosso país. Trata-se de uma faixa (ou um lenço, uma gola ou colarinho extra) que
deveria ser amarrado firmemente no pescoço, não exatamente como proteção, mas para que o pescoço
ficasse reto e mantivesse a postura. Quem desejar, sugiro pesquisar ‘stock_tie’ para visualizar melhor.
353
No original, “leather stock”. O conceito é o mesmo da nota anterior, porém, por ser de couro, era
muito mais parecida com uma coleira com fivelas que devia ser bem apertada e ajustada no pescoço.
Sugiro pesquisar por ‘leatherneck’ ou ‘leather stock’. É possível entender melhor.
716

usada anteriormente para engraxar botas, e a jogou no canto.


"E como diabos ele foi parar lá, por falar nisso?"
John abanou a cabeça de um lado para o outro. O que isso importa
agora, afinal? Ainda assim, ele não iria explicar como Percy
escapou de ser enforcado pelo crime de sodomia; ele preferia que
Hal não morresse de apoplexia ainda.
"E sobre como você foi preso pelos americanos, escapou e
apareceu após a batalha no campo com um índio mohawk
homicida que alegava ser sobrinho de James Fraser? Mais ou
menos", Hal disse, e um canto de sua boca se contraiu.
"Principalmente menos, eu imagino. Você não mencionou Percy,
de qualquer forma."
John piscou de uma forma evasiva e inclinou a cabeça em direção
à porta. Passos rápidos estavam vindo pelo corredor; sem dúvida,
o valete de Hal, vindo para retirá-lo da escravidão de seu
uniforme de gala.
Para sua surpresa, entretanto, os passos pertenciam a William,
levemente desgrenhado, mas evidentemente sóbrio.
"Eu preciso encontrar Banastre Tarleton", disse ele, sem
preâmbulos. "Como você sugere que eu faça isso?"
"O que você quer com ele?", Hal perguntou, sentando-se em uma
cadeira de madeira. "E se você quiser ajuda, a recíproca é justa –
ajude-me a tirar essas malditas botas. Eles são de John e estão me
matando."
"Não é minha culpa que você tenha joanetes", disse John.
"Totalmente adequado para um comandante de infantaria,
entretanto, você tem que admitir. Ninguém pode dizer que você
não faz seu trabalho de forma competente."
Hal deu-lhe um olhar levemente maligno, em seguida, colocou as
mãos na cabeça de William para se preparar enquanto William
717

lutava para soltar uma bota.


"Você sabe onde Tarleton está?", ele perguntou a John, que negou
com a cabeça. "Nem eu", disse Hal, dirigindo-se ao topete sobre
a cabeça de William, que girava perfeitamente no sentido horário
antes de se projetar. Assim como o de seu pai, John pensou.
"O secretário-chefe de Clinton deve saber", disse Grey, e
pigarreou. "O nome dele é Ronson – capitão Geoffrey Ronson,
de qualquer forma."
"Tudo bem." William arrancou a bota e quase disparou para trás
do baú de campanha em que estava sentado. Ele jogou a bota
enlameada no tapete da lareira e inspecionou o peito, para ter
certeza de que seus besouros não haviam sofrido danos. "Onde
diabos sir Henry está atualmente?"
"New York, por enquanto", disse Hal, esticando o outro pé. "Eu
apostaria um dinheiro razoável que Tarleton ainda está com ele.
Os homens da Cavalaria de Tarleton eram o novo brinquedo de
Clinton em Monmouth, e duvido que ele já tenha acabado de se
divertir com eles."
William grunhiu quando a segunda bota saiu e colocou-a com a
companheira no tapete.
"Então, devo escrever para Tarleton diretamente, aos cuidados de
sir Henry?"
John e Hal trocaram olhares.
"Eu acho que sim", disse Hal, com um leve encolher de ombros.
"Apenas não coloque nada na carta que você não queira que o
mundo saiba. Alguns funcionários são discretos e muitos deles
não são."
"Falando nisso", disse John, olhando para o filho. "Seria
indiscreto de nossa parte perguntar por que você quer encontrar
Banastre Tarleton?"
718

William balançou a cabeça, então alisou o topete desalojado de


volta na massa escura de seus cabelos.
"Denys Randall me disse no almoço de ontem que foi Ban
Tarleton quem primeiro recebeu a carta do Acampamento
Middlebrook sobre a morte de Ben ali. Ele evidentemente a deu
a Ezekiel Richardson, e assim..." Ele fez um gesto em espiral
indicando a chegada da carta às mãos de Hal. "Então, eu quero
saber por que Tarleton conseguiu isso e como."
"Muito razoável", Hal concordou. "Mas duvido que seja tão
fácil."
Ele baixou as sobrancelhas e olhou para William, muito
diretamente. "O que eu digo a você não pode ser dito a mais
ninguém, William. Nem para seu amigo índio, para sua amante –
se você tiver uma, e não, eu não quero saber – ou qualquer outra
pessoa."
William se absteve de revirar os olhos, mas por pouco. John
olhou para baixo para esconder um sorriso.
"Tace é vela em latim", disse William amavelmente, e colocou a
mão sobre a boca. "Os meus lábios estão selados."
Hal bufou, mas acenou com a cabeça.
"Certo. Sir Henry está cansado de fingir que os americanos estão
em New York e Virgínia. Ele quer um golpe ousado e está de
olho em Charles Town. Se ele ainda não saiu de New York para
pegá-la dos americanos, ele o fará nos próximos meses. "
"Quem lhe disse isso?" John perguntou, surpreso.
"Três homens diferentes no almoço, todos eles me imploraram
para ficar quieto."
"Eu entendo o que você quer dizer com discrição, tio", disse
William, abertamente divertido.
"Eu", disse Hal friamente, "sou o coronel do Quadragésimo Sexto
719

Regimento de Infantaria de Sua Majestade. Você é...", sua voz


foi sumindo enquanto ele olhava para William, com a cabeça
descoberta e ligeiramente amarrotado em suas roupas civis, mas
ainda com a postura de um soldado.
Acho que isso nunca o deixará, pensou John. Não deixou seu pai.
"... Não é um oficial em serviço no momento", Hal finalizou,
escolhendo ser diplomático pela primeira vez.
William acenou com a cabeça agradavelmente.
"Isso é uma sorte, não é?" ele disse. "Como você não é meu
oficial comandante, não pode me proibir de ir procurar Tarleton,
se eu quiser."
720

48

UM ROSTO NA ÁGUA

"FANNY E CYRUS, SENTADOS sob uma árvore, se b-e-i-j-a-


n-d-o", Roger disse ao entrar no consultório. Eu ri, mas olhei com
culpa por cima do ombro.
"É melhor que não estejam. Jamie está vagando como um lobo,
procurando a quem possa devorar." Cyrus era um rapaz muito
alto e muito magro de uma das famílias de pescadores, embora
eu não soubesse dizer qual. Ele se sentou ao lado de Fanny na
igreja em um domingo e aparecia de vez em quando perto dela
como um fantasma alto e tímido. Eu nunca o tinha ouvido falar e
me perguntei se ele falava inglês. O gaélico de Fanny até agora
era limitado a lugares-comuns como "Passe-me um bannock, por
favor" e o pai-nosso, mas acho que eles podem estar em uma
idade em que os jovens ficam naturalmente tímidos na presença
uns dos outros.
"Eles não estão", Roger me assegurou. "Acabei de vê-los na
margem do riacho, sentados com decoro a cerca de meio metro
de distância, Cyrus com as mãos cruzadas com tanta força no colo
que deve estar cortando a circulação. Quem Jamie está querendo
devorar e por quê?"
"Ele recebeu uma carta de Benjamin Cleveland, assinada também
por dois outros proprietários de terras além da fronteira da Linha
do Tratado, no condado de Tennessee. Eles estão importunando
Jamie para comprometer sua milícia e juntar-se a eles na
erradicação da vil raiz da tirania – o que me leva a considerar
classificar os vizinhos e, se eles forem legalistas, arrastá-los para
fora e espancá-los, levando seus estoques, queimando suas
construções, pendurando-os ou fazendo outras coisas antissociais
721

para desencorajá-los."
A risada de Roger desapareceu.
"O estilo de prosa do sr. Cleveland deixa um pouco a desejar",
disse ele. "Arrancar a raiz, quero dizer – mas pelo menos ele é
claro sobre isso."
"Jamie também", eu disse, e retomei a tarefa de bater as raízes em
meu pilão com um pouco mais de força do que o necessário. "Ele
não quer fazer isso de jeito nenhum, mas ele não pode
simplesmente dizer a eles para irem diretamente para o inferno
porque tudo poderia se precipitar rapidamente. Se ele os mandar
para o inferno, a única coisa que os impediria de adicionar a
Cordilheira à sua lista de visitas seria a distância. "
"Quão longe daqui está o Condado de Tennessee?", Roger
perguntou, inquieto.
Parei de bater por tempo suficiente para encolher os ombros e
limpar o suor que se formava na testa com a manga.
"Aproximadamente três ou quatro dias de viagem. Com bom
tempo", acrescentei, olhando para a janela, que mostrava o sol
brilhando sobre a grama florescendo.
"E, hum... há o capitão Cunningham e seus amigos legalistas a
serem considerados também, suponho?"
"Oh, Deus", eu disse. "Sim, é o verme local da maçã, não é? Por
outro lado", acrescentei judiciosamente, "ele é provavelmente a
melhor desculpa de Jamie para não se juntar ao nosso amigo
Benjamin em suas rondas sanguinárias – a ideia de que Jamie tem
que ficar aqui para manter seus próprios legalistas na linha. O que
pode ser verdade, pensando bem."
"Eu acho que sim. O que é isso?", ele perguntou, acenando para
a argamassa no pilão, puramente por distração.
722

"Echinacea"354, eu disse. "É um pouco cedo, mas eu preciso dela.


Você escava as raízes no outono, porque é quando a planta
começa a armazenar sua energia na raiz; não é necessário manter
as flores e folhas.
"Você percebe", acrescentei, fazendo uma pausa para respirar,
"que, apesar da distância, as únicas coisas que evitam que os
capangas de Nicodemus Partland – quer dizer, deve ser ele, não
é? – de atravessar a Cordilheira rapidamente são você e Jamie? "
Roger não parecia surpreso ao ouvir isso, mas ainda estava
desconcertado.
"Sim", ele disse lentamente. "Você consegue ver isso na Loja.
Você sabe que não se fala de política ou religião lá? Igualdade,
Fraternidade, etc.?"
"Então, eu ouvi dizer." Eu diminuí um pouco as minhas batidas e
dei a ele um sorriso irônico. "Eu sempre achei que era um
costume mais honrado na violação355, no entanto. Hum... sabe
como as pessoas são, quero dizer." Homens, eu quis dizer, e ele
percebeu, me devolvendo o sorriso irônico. Ele balançou a mão
para a frente e para trás, ambiguamente.
"Os membros da Loja geralmente seguem a letra da lei lá – mas
o que acontece na prática é que alguns homens simplesmente
param de vir, se eles têm diferenças substanciais."
Parei de bater e olhei para ele. "É por isso que Jamie sempre vai
às terças-feiras – ele delimitou a Loja como seu território?"
"Sim e não. Ele é modesto sobre isso, mas ele é o Venerável
Mestre. E, francamente, qualquer lugar com ele tende a ser seu
território."

354
Planta medicinal, usada nos casos de gripes e resfriados, aliviando corizas e tosse. É antialérgica e
anti-inflamatória.
355
A frase vem da peça Hamlet, de Shakespeare, em que o personagem principal diz que muitos costumes
de seu povo são mais honradamente violados do que seguidos. Atualmente, essa frase tem um significado
extra: que muitas vezes só nos lembramos de uma regra ao quebrá-la.
723

Isso me fez rir, e peguei uma garrafa de cerveja no balcão, tomei


um gole e ofereci a ele.
"Mas?", eu disse.
Ele acenou com a cabeça e pegou a garrafa.
"Ele encoraja todos a virem, de qualquer maneira, e ele mantém
a paz – na Loja, onde ele pode fazê-lo sem ser abertamente sobre
política. Mas, como você diz... na violação. Os homens falam, e
mesmo que não estejam falando sobre política, é fácil saber quem
é quem. E depois de um ponto – a maioria dos legalistas
comprometidos parou de vir."
"Eles estão se reunindo na casa do capitão?", eu adivinhei, e ele
acenou com a cabeça.
Isso me deu uma sensação de mal-estar. "Quantos?"
"Vinte ou mais. A maioria do pessoal da Cordilheira está do
nosso lado, embora a maior parte deles realmente prefira ser
deixada sozinha e sem ser incomodada."
"Eu não posso dizer que os culpo", eu disse secamente. Um grito
fino e agudo veio da janela e eu virei bruscamente, mas relaxei
novamente de imediato...
"Mandy e Orrie Higgins estão coletando sanguessugas para mim,
com Fanny", eu disse, acenando para a janela. "Eles continuam
colocando-as um no outro. Falando nisso...", eu me inclinei um
pouco para trás, olhando para ele. "Você estava procurando por
Jamie ou precisa de atenção médica?"
Ele sorriu, lembrado de sua missão.
"A segunda opção – mas não é para mim. Eu estava visitando os
Chisholm e quando estava saindo, parei para falar com Auld
Mam – ela estava sentada em um banco do lado de fora fumando
seu cachimbo, então me sentei e conversei um pouco"
"Isso deve ter sido divertido."
724

"Bem, até certo ponto. Mas então ela me disse que sempre que
vai à privada, seu útero cai em sua mão, e eu perguntaria se há
algo a ser feito sobre isso."
Ele corou um pouco e eu sufoquei uma risada.
"Deixe-me pensar sobre isso. Vou subir e falar com ela amanhã.
Enquanto isso, você iria pescar Mandy e Orrie e tirá-los do riacho
e descobrir se Cyrus vai ficar para o jantar?"
-.-.-

ENQUANTO SEGUIA EM direção ao riacho, ele viu Jem,


Germain, Aidan e alguns dos outros meninos morro acima,
farreando pela floresta, brandindo gravetos uns para os outros,
golpeando-os como espadas e fingindo dispará-los como
mosquetes, gritando "Bang! em intervalos aleatórios.
"É tudo diversão e jogos até que alguém perde um olho", ele
murmurou, ouvindo a advertência da sra. Graham em sua
juventude. No entanto, não fazia sentido juntar esse grupo e dar
um sermão para eles. Além do fato de serem meninos, havia um
fato mais frio também: esses meninos estavam a apenas alguns
anos de poderem cavalgar com uma milícia ou entrar para o
exército.
E a maldita guerra estava vindo em sua direção, rápido.
"Mas mil setecentos e oitenta e um, virá", ele disse, e cruzou os
dedos. "Yorktown acontece em outubro de 1781. Dois malditos
anos. Apenas mais dois malditos anos." Certamente eles
poderiam chegar tão longe?
A visão de Mandy e Orrie no riacho, encharcados, cobertos de
lama e algas, e tagarelando alegremente como um par de chapins,
acalmou um pouco sua mente – assim como a visão de Fanny e
Cyrus, que agora haviam se aproximado.
725

Cyrus, mais de trinta centímetros mais alto que Fanny, fazia o


possível para se arquear e olhar o que ela estava mostrando sem
tocá-la acidentalmente. Roger pigarreou, não querendo assustá-
los, e Cyrus endireitou-se rigidamente.
"Está tudo bem, a charaid", Fanny disse a ele, pronunciando "a
charaid" com muito cuidado – e muito errado. Roger sorriu e viu
Cyrus sorrir também, embora ele tentasse esconder. "É apenas
Roger Mac."
"Verdade", Roger disse amigavelmente, sorrindo para eles. "A
sra. Claire só quer saber se você vai ficar para jantar, a bhalaich."
Cyrus tinha ficado vermelho ao ser descoberto tão perto de Fanny
e, em consequência, perdeu todo o seu inglês, mas respondeu em
gaélico que agradecia à patroa e não gostaria de nada melhor, mas
que seu irmão Hiram lhe disse para voltar antes do anoitecer, e
era uma longa caminhada.
"Sim, então. Oidhche mhath."
Ele percebeu, ao se virar, que Fanny trouxera seu pequeno rolo
de tesouros pessoais para mostrar a Cyrus; seus olhos captaram o
brilho de um pingente na grama, e Fanny estava com a mão
protegendo pela metade um papel desdobrado com algum tipo de
desenho, como se para mantê-lo longe dos olhos dele. Ah, deve
ser o desenho de sua irmã morta; Bree o havia descrito para ele.
Cyrus devia ter uma chance, então, se Fanny estava
compartilhando isso com o garoto.
"Boa sorte, a bhalaich", disse ele, principalmente para si mesmo,
e sorriu.
Sorriu não apenas por uma benevolência geral para com os jovens
namorados, mas porque o desenho de Fanny o lembrava do
motivo dessa benevolência.
Roger tocou o bolso da calça, sentindo o estalar do papel e a
726

pequena dureza do selo de cera quebrado. Não era que ele não
acreditasse. Afinal, ele estava esperando por isso – ou algo assim.
Mas há uma diferença entre pensar que você entende algo e, em
seguida, segurar a realidade em suas mãos e perceber que talvez
você não entenda. Mas perceber também que o que você ainda não
entende pode ser a coisa mais importante que você já fez.
Um som fraco de grito o fez virar a cabeça, os instintos paternais
imediatamente focados – mas a queixa penetrante de Mandy
cessou quase imediatamente, quando ela empurrou Orrie, que
caiu para trás na água – não pela primeira vez.
Bem, talvez a segunda coisa mais importante, ele pensou,
sorrindo um pouco. Seu pai adotivo – que tinha sido, na verdade,
seu tio-avô – tinha sido um ministro presbiteriano e nunca se
casou – embora os ministros pudessem se casar, e geralmente
encorajados a fazê-lo, já que suas esposas poderiam ser uma
ajuda no lado organizador de uma congregação.
Ele nunca perguntou ao reverendo por que ele não se casou – nem
nunca se perguntou, até agora. Talvez tivesse sido tão simples
como não encontrar a pessoa certa e não estar disposto a se
contentar com uma simples companhia. Talvez tão simples
quanto o sentimento de que seria difícil equilibrar um
compromisso com Deus com o compromisso com uma esposa e
filhos.
Você me deu a esposa e filhos primeiro, ele elevou seu
pensamento na direção geral de Deus. Então, estou pensando que
talvez você não queira que eu os abandone para fazer qualquer
outra coisa que você tenha em mente.
Qualquer outra coisa. Essa era a realidade que ele tinha no bolso,
ainda escondida no momento. Uma carta do reverendo David
Caldwell – um amigo e um bispo presbiteriano muito antigo. Ele
havia realizado a cerimônia de casamento de Roger e Bree e
727

ajudou muito a preparar Roger para sua primeira tentativa de


ordenação. Foi um conforto e uma alegria saber que Davy
Caldwell ainda achava que ele poderia fazer isso.
Haverá um Presbitério definido para uma
Assembleia Geral em Charles Town, a
realizar-se em Maio do próximo Ano. É claro
que falarei em seu Nome, no que diz respeito à
Aceitação de seu Registro no Seminário e
Qualificação anterior para Ordenação. Seria
bom, porém, se você formasse alguma
Conexão com alguns dos Bispos que farão
parte do Presbitério antes de encontrá-los
mais formalmente em Charles Town – assim
como um Homem pode usar ambos: Botões e
Cinto para manter suas Calças no lugar.

As palavras do reverendo Caldwell ainda o faziam sorrir. Mas


sob o humor e o senso de gratidão a Davy Caldwell havia um
senso de... o quê? Ele não sabia como chamá-lo, aquela estranha
vibração no peito, um vazio não desagradável na barriga –
antecipação, mas pior, como se estivesse à beira de um precipício,
prestes a pular, sem saber se ele planaria ou se espatifaria nas
rochas abaixo. Ele não tinha ilusões sobre as rochas. Mas ele
sonhava em voar.

... E, enquanto em silêncio, elevando a mente,


eu pisei
A alta santidade insuperável do espaço,
Estendi minha mão e toquei a face de Deus.356

356
Versos finais do poema High Fly, de John Gillespie Magee, um aviador e poeta anglo-americano.
Magee serviu na Royal Canadian Air Force, onde ingressou antes de os Estados Unidos entrarem na
728

O reverendo tinha uma cópia amarelada desse poema fixada no


enorme quadro de cortiça em seu escritório desde que Roger se
lembrava – e pela primeira vez, agora lhe ocorreu que talvez o
reverendo o tivesse guardado em memória de seu pai, que
morreu, como o poeta, voando um Spitfire na guerra. Ou assim
ele pensava.
Ele tocou o bolso novamente, com uma breve oração pela alma
de seu pai – onde quer que estivesse – e outra pelo reverendo
Caldwell e sua bondade.
Bobby Higgins trouxera para ele a carta de Caldwell, tendo-a
recolhido em Cross Creek, e ele a enfiou no bolso e foi fazer
algumas tarefas, querendo ficar sozinho quando a lesse, o que fez
na companhia do burro Clarence e dois cavalos curiosos.
Roger sabia sobre o Presbitério de Charles Town. Ele escreveu
para Caldwell sobre suas perspectivas de ordenação há algum
tempo e mencionou casualmente que ele e sua família iriam parar
em Charles Town em cerca de um mês, para devolver Germain
ao seio de sua família. Ele não mencionou a necessidade de
colocar as mãos em armas para Jamie. Ele ainda estava tentando
não pensar nisso.
Ele pensou que talvez fosse até a Casa de Reunião a fim de sentar
e pensar sobre a outra perspectiva diante dele, mas isso ainda
parecia muito público, e em vez disso ele cruzou o riacho nas
pedras e subiu a colina atrás da casa, pretendendo escalar até a
Fonte Verde. Mas o jardim de Claire estava próximo e, num
impulso, ele abriu o portão e, não encontrando ninguém lá,
entrou.
Ele raramente ia ao jardim e foi imediatamente atingido pelo
cheiro do início do outono, tão diferente do cheiro puro da

Segunda Guerra Mundial; ele morreu em uma colisão aérea sobre Lincolnshire em 1941..
729

floresta. O ar cheirava a terra recém-escavada e esterco


composto, o cheiro amargo de nabo, repolho e cebola picante,
com um cheiro de flores tardias flutuando, mais forte do que os
aromas doces e inebriantes do alto verão, com odores tênues de
resina e anis.
Claire havia plantado girassóis, fileiras grossas contra uma
parede das paliçadas, e aos pés dos girassóis, pinhas de coníferas,
e tangos amarelos e um monte de outras flores que ele não sabia
nomear, mas das quais gostava. Havia lindas flores lilases, que
ele pensava serem cosmos, com minúsculas borboletas brancas e
amarelas voando entre elas, e algumas flores vermelhas e
amarelas; ele teria que perguntar a ela.
"Para as abelhas", ela disse, contando a todos sobre elas no jantar.
As abelhas agora se divertiam entre as flores; ele podia ouvir seu
zumbido, como a vibração de uma corda solta e puxada.
"Ei", ele disse a elas, de repente, mas suavemente. "Recebi uma
carta de Davy Caldwell. Acho que agora é por minha conta. Eu
acho – espero – serei ordenado. Um Ministro da Palavra e do
Sacramento, é assim que eles – nós – o chamamos.
Presbiterianos, quero dizer", acrescentou ele, presumindo que
fossem abelhas católicas e, portanto, desconheciam o costume.
Ele não supôs que "ordenado" significava alguma coisa para uma
abelha. Todas elas eclodiram de suas células de cera com um
senso inabalável de seu propósito na vida, afinal; não há
necessidade de decisão ou cerimônia. Foi bom dizer isso em voz
alta, no entanto.
"Ordenado", ele repetiu. "Eu irei para Charles Town, para
facilitar o caminho. Vocês gostam de saber coisas assim, Claire
diz. Brianna e as crianças também vão; eles gostarão de ver o
oceano, andar descalços na praia." Se não houver muitos navios
de guerra britânicos flutuando na água... "E então iremos para
730

Savannah. Brianna vai pintar o retrato de alguém."


O som de crianças gritando e rindo perto do riacho chegou até ele
fracamente, tão reconfortante quanto o zumbido das abelhas, e
ele sentiu como se pudesse ficar ali para sempre, em um estado
de paz feliz.
Então houve um grito repentino, muito mais alto, e ele esqueceu
a paz instantaneamente. Ele se levantou de um salto, procurando
a direção do grito, ouviu-o novamente e disparou para fora do
jardim como se o som tivesse sido um garfo espetado em suas
costas.
Ele viu imediatamente ao irromper por entre as árvores e chegar
à margem do riacho – um quadrado branco, flutuando,
rodopiando, no meio do riacho. O vento talvez o tivesse levado...
Mas antes que ele pudesse chegar à beira do riacho, o corpo longo
de Cyrus se lançou da margem oposta e caiu na água, braço
esticado, ele viu a mão enorme de Cyrus se fechar no papel
encharcado um instante antes de ambos serem submersos.
"Não!", Fanny estava gritando. "Não! Não! Não!" Ela também
havia caído no riacho e tentava em vão alcançar Cyrus e o papel,
mas a água era mais funda ali, puxava suas saias e ela
cambaleava, os sapatos escorregando na lama e no lodo do leito
do riacho.
Roger tirou os próprios sapatos, saiu com dificuldade e agarrou
Fanny pela cintura.
"Está tudo bem", ele dizia com ansiedade, arrastando a garota
pela corrente em direção à margem. "Vai ficar tudo bem!" Mas
Fanny, que sabia perfeitamente bem que não ficaria, continuou
gritando, lutando sem pensar para alcançar o último
remanescente de sua irmã.
Querido Senhor, mostre-me o que fazer... O que havia para fazer?
731

ele se perguntou. Ele colocou Fanny no chão e a garota caiu de


joelhos, dobrou-se como uma folha moribunda e ficou
mortalmente silenciosa, exceto por grandes suspiros trêmulos de
ar.
"Papai, papai!" Mandy, que estava estritamente proibida de
atravessar o riacho sozinha, tinha acabado de pular as pedras
como um grilo e agora agarrou a perna de Roger, choramingando
de pânico.
Vozes de cima. Os meninos tinham ouvido os gritos e estavam
correndo através do – oh, maldito inferno...
"Saiam do jardim!", Roger berrou. Os ruídos de pés esmagando
os nabos cessaram instantaneamente, e ele afastou o dano
potencial de sua mente, precisando de toda a atenção para separar
Mandy de sua perna encharcada enquanto tentava dizer coisas
reconfortantes para Fanny.
Fanny respirava como um cavalo sem fôlego. Temendo que ela
pudesse hiperventilar e desmaiar, Roger agachou-se ao lado dela
e colocou a mão em suas costas estreitas e arfantes.
"Fanny", ele disse gentilmente, "você está ensopada. Entre.
Vamos pegar algumas roupas secas e algo quente para beber." Ele
colocou a mão sob o cotovelo de Fanny, tentando fazê-la se
levantar, mas Fanny apertou os braços cruzados com mais força
contra o corpo dobrado e balançou a cabeça. A respiração
ofegante diminuiu, porém, começando a dar lugar aos soluços.
Ruídos sufocantes anunciaram a abordagem hesitante de Cyrus,
e Roger ergueu os olhos para ele, alto, esguio e gotejante, o rosto
branco como um morto.
"Senhora...", ele disse, e engoliu em seco, sem ter ideia de como
continuar.
"Não é sua culpa, a bhalaich", Roger começou, mas Cyrus se
732

esquivou das palavras hesitantes e se ajoelhou diante de Fanny.


"Senhora...", ele disse novamente, incerto. Fanny o ignorou
completamente, mas ele estendeu a mão fechada e abriu-a
lentamente sob o nariz dela.
O papel era pouco mais do que uma bola amassada e encharcada
em sua palma. Roger o ouviu engolir novamente.
Fanny fez um som como se ele tivesse enfiado uma estaca em sua
barriga, arrebatou o resto do papel dele e o embalou contra o
peito, soluçando como se seu coração fosse se partir.
Suponho que já esteja partido, coitadinha...
"Mo chridhe bristeadh – sussurrou Cyrus, o rosto contraído de
tristeza. "B'fhearr gu robh mi air bathadh mus do thachair e cron
tha seo ort." Quebrado está meu coração. Eu gostaria que tivesse
me afogado antes de permitir que tanto mal viesse sobre você.
Fanny não respondeu e não se mexeu. Roger trocou um olhar
desamparado com Cyrus, mas antes que ele pudesse tentar mover
Fanny novamente, os meninos chegaram, cheios de perguntas
chocadas. Germain estava com o pano de flanela com o resto dos
tesouros de Fanny, apanhado na margem do riacho e embrulhado
em sua mão.
"Prima…?", ele disse hesitante, sua mão com o pacote pairando
entre Fanny e Roger. Fanny não se mexeu para pegá-lo, então
Roger acenou para ele.
"Obrigado, Germain. Leve para a casa, sim?" Ele se levantou,
com os joelhos rígidos, as meias úmidas e geladas acumulando-
se nos tornozelos. "Jem? Pegue Mandy e os meninos e vá para a
casa com Germain. Nós vamos... subir em seguida."
Todos os meninos assentiram, olhos arregalados de preocupação
e saíram com Mandy, olhando por cima dos ombros e começando
a murmurar uns para os outros.
733

Cyrus estava começando a tremer, o vento frio passando pelo


pano fino e úmido de sua camisa e calça. Roger colocou a mão
em sua cabeça curvada – mesmo ajoelhado, sua cabeça alcançou
bem acima da cintura de Roger.
"Vai ficar tudo bem", disse ele em gaélico. "Você não fez nada
de errado. Vá para casa agora."
Cyrus olhou para Roger, depois desamparado para a cabeça baixa
de Fanny. Depois de um momento, ele acenou com a cabeça
bruscamente, levantou-se e curvou-se para ela antes de se virar
afastando-se lentamente, olhando para trás, o rosto cheio de
ansiedade.
Roger suspirou e, após um momento de hesitação, sentou-se no
chão e pegou Fanny em seus braços. Ele balançou a garota
lentamente, dando tapinhas em suas costas como se ela fosse uma
criança pequena. Ele se sentia como um espectador em um lugar
onde uma bomba acabou de explodir e nem ambulância nem
polícia chegaram ainda.
Ambulância e polícia... sim, seriam Claire e Jamie, ele pensou
com um toque de diversão irônica. Chamar um ou outro dos
Frasers fora, de fato, seu primeiro impulso, depois de tirar Fanny
do riacho. Mas Jamie tinha ido para Salem, e Claire disse que iria
examinar um caso do que poderia ser catapora nos MacNeill. E
se você fosse direto ao ponto... nenhum deles poderia realmente
ajudar nesta situação. Considerando que, talvez... apenas talvez...
Ele respirou fundo, abraçou Fanny com força, depois a colocou
no chão e se levantou. Fanny estava tremendo a essa altura, forte
o suficiente para que os soluços parassem, embora as lágrimas
ainda estivessem fluindo e seus olhos estivessem inchados.
"Venha comigo", Roger disse com firmeza, pegando a mão dela.
"Brianna talvez possa consertar isso."
734

-.-.-

ROGER SÓ PENSOU, quando disse "consertar isso", numa ideia


confusa de fita adesiva, seguida por uma noção duvidosa de secar
o papel e costurar o desenho. Brianna, felizmente, teve uma ideia
melhor.
"É um papel de pano grosso e bonito", observou ela, colocando
os pedaços ainda úmidos do desenho na mesa da cozinha e
alisando-os. "Deve ter sido, para durar tanto tempo. Há quanto
tempo você acha que Fanny está com ele?"
"Dois anos, talvez?", Roger arriscou um palpite. "A irmã dela
tinha mais ou menos dezessete anos quando morreu, e Fanny diz
que isso foi feito quando ela tinha dez anos, então Jane teria
talvez quinze anos. Você pode copiá-lo, você acha?"
"Sim, e eu farei. Mas Fanny também vai querer o original. Por
razões sentimentais."
Roger acenou com a cabeça. "Sim. O que você pode fazer sobre
isso, então?"
"Oh, apenas emendar o rasgo."
"Você realmente vai costurar juntos? Eu pensei nisso, mas..."
"Bem, na verdade não é uma má ideia", disse ela, parecendo
querer rir, mas se abstendo por educação. "Mas tenho certeza de
que Fanny não gostaria que sua pobre irmã se parecesse com o
monstro de Frankenstein, mesmo que ela não soubesse o que isso
é."
"O que é isso?" Fanny pairou na porta, parecendo inquieta. Agora
sem as roupas molhadas, seca e vestida com uma camisola nova
e meias, e com suas bochechas coradas e cabelos ondulados e
escuros, parecia um pequeno anjo desgrenhado recentemente
resgatado de texugos.
735

"É apenas um romance", disse Bree, e sorriu. "Eu vou contar a


estória mais tarde, se você quiser. Aqui, venha e olhe. "
Fanny aproximou-se da mesa com a cabeça meio virada, não
querendo realmente ver o desenho arruinado. Então ela viu a tela
de papel que Bree tinha buscado na despensa – uma moldura
retangular de madeira, com uma tela muito fina feita de musselina
da qual fios foram puxados para criar uma grade, essa presa nas
laterais da moldura – e a curiosidade venceu sua relutância.
"É um rasgo limpo – isso é sorte." Brianna tocou a ponta rasgada
de uma metade com um dedo gentil. "Vê como está desgastado
ao longo da borda? O papel é feito de fibras, e se você deixasse
uma folha de papel na água por muito tempo, sabe o que obteria?"
"Um punhado de fibras encharcadas?", Roger adivinhou.
"Bastante. Então..." Ela trouxe uma caixa com seus suprimentos
de papel e agora tirou dela uma grande bolsa de pano, cheia de...
"Isso é algodão?", Fanny perguntou, fascinada pelas manchas
brancas felpudas que saíam da pequena pilha de retalhos de tecido
e algo que parecia – aos olhos pessimistas de Roger – punhados
de cabelos loiros desgrenhados puxados para fora da cabeça de
alguém.
"Um pouco disso. E linho cujas fibras foram separadas e
penteadas. E alguns pedaços de papel e trapos em decomposição.
Então, começamos com um punhado de fibras, finamente
moídas." Ela colocou sua tela de fazer papel sobre a mesa, pegou
uma pequena garrafa com rolha e cuidadosamente espalhou uma
linha do que parecia ser um tapete no meio da tela. "Esse vai ser
o meu remendo. Agora colocamos as peças em cima disso..."
Uma por uma, Roger entregou-lhe as partes rasgadas do desenho
e ela ajustou cuidadosamente as bordas rasgadas o mais perto que
pôde.
736

"Ainda bem que foi desenhado com lápis de grafite", observou


ela. "Tinta, carvão ou aquarela, estaríamos sem sorte. Do jeito
que é..."
Ela trouxe algo que parecia a bandeja de enxague de fotos de um
fotógrafo moderno: uma caixa rasa com lados elevados, as
emendas seladas com piche. Prendendo a respiração, ela ergueu
a tela de papel e abaixou-a lentamente na bandeja.
"Água, por favor, enfermeira", murmurou ela, estendendo a mão
para a grande jarra cor de amora que estava no aparador, sempre
cheia de água limpa. Roger saiu do banco – deixando uma
pequena poça no chão, ele reparou – e foi buscá-la.
Ela borrifou água com cuidado sobre o desenho até que ficasse
bastante saturado. "Então vai grudar na tela e não flutuar", ela
explicou – e então despejou mais água na bandeja, deixando-a
subir até que cobriu a folha de papel.
"Tudo bem." Ela largou a jarra pesada com um pequeno suspiro
de alívio. "Agora vamos deixá-lo de molho por... oh, vinte e
quatro horas devem ser suficientes. Isso irá dissolver a fibra do
papel do desenho, que então se ligará à fibra do remendo – sem
atrapalhar as linhas do desenho". Roger a viu cruzar os dedos
brevemente atrás das costas. Ela sorriu para Fanny.
"Então, pressionamos, secamos e, essencialmente, teremos uma
nova folha de papel - mas com o desenho como está."
Fanny estava observando o derramamento com o olhar
hipnotizado de um coelho congelado observando uma raposa,
mas com as palavras de Brianna, ela olhou para cima e deixou
escapar um enorme "Ohhhhh!"
"Oh, obrigada! Muito obrigada"
Ela pressionou as palmas das mãos contra o rosto, olhando para
o desenho como se de repente tivesse ganhado vida.
737

E Roger teve a repentina sensação de que sim. Até este ponto, ele
tinha visto isso puramente como algo que Fanny valorizava, sem
realmente perceber o desenho em si. Agora ele viu.
Quem quer que o tenha desenhado era um artista talentoso – mas
a garota na página era algo especial em si mesma. Linda, sim,
mas com uma sensação de... o quê? Vitalidade, atração – mas ela
também exalava um ar de desafio, ele pensou. E enquanto a bela
boca e o olhar de soslaio ofereciam um meio sorriso sedutor, eles
comunicavam também determinação – e uma sensação de raiva
fervente que arrepiou os cabelos da nuca de Roger.
Ele se lembrou de que essa garota havia matado um homem com
as próprias mãos e com premeditação.
Para salvar sua irmãzinha de um destino que ela conhecia muito
bem.
Ele se perguntou brevemente se o homem que a desenhou naquela
noite no bordel a tinha levado, sabendo o que estava comprando,
e talvez saboreando. Ele suprimiu instantaneamente as visões
evocadas pelo pensamento, embora não houvesse como suprimir
o pensamento em si.
Fanny estava parada ao lado dele, ainda olhando para o último
resquício físico de sua irmã.
Ele colocou um braço em volta dos ombros dela, gentilmente, e
dirigiu seu pensamento para a garota cujo rosto brilhava na água,
sua memória sobrevivendo à destruição e dissolução:
Não se preocupe. Nós a manteremos segura, aconteça o que
acontecer. Eu prometo a você.
738

49

SUA AMIGA, SEMPRE

De Brianna Fraser MacKenzie (Sra.)


Cordilheira dos Fraser,
Carolina do Norte
Para lord John Grey, a / c Harold, Duque de
Pardloe, Coronel do Quadragésimo Sexto
Regimento de Infantaria de Sua Majestade,
Savannah, Geórgia

Caro Lord John-

Recebi sua graciosa oferta de encomenda para


pintar o retrato da Sra. Brumby, e aceito com
grande prazer!
Agradeço também por seu salvo-conduto, que
também aceito com gratidão por sua
consideração, pois meu marido e meus filhos
me acompanharão.
Meu marido tem negócios importantes a tratar
em Charles Town, então vamos prosseguir até
lá primeiro – embora brevemente! – e depois
vamos para Savannah, chegando até você, se
Deus quiser e o riacho não subir, como as
pessoas dizem por aqui ( Disseram-me que o
ditado referia-se, originalmente, à tribo de
índios Creek – a mesma grafia de riacho, em
739

inglês, é claro –, que eram bastante


beligerantes e quem poderia culpá-los, mas
dado o clima nas montanhas, acho que a água
é um impedimento muito mais provável para
viajar), antes do fim de setembro.
Sendo esse o caso, talvez fosse agilizar as
coisas se você enviasse tudo o que solicitamos
a título de salvo-conduto aos cuidados do Sr.
William Davies de Charlotte, Carolina do
Norte.
Vamos passar por Charlotte a caminho de
Charles Town (que, como tenho certeza de que
você sabe, está atualmente nas mãos dos
americanos). O Sr. Davies é amigo do meu pai
e manterá os documentos em segurança para
nossa chegada.
Mal posso esperar para ver você de novo!

Sua amiga, sempre,


Brianna
740

50

JANTAR DE DOMINGO EM SALEM

ROGER ESTAVA LUTANDO PARA colocar um aro de ferro


em torno do topo de um barril grande, barrigudo e antigo que
tinha sido reconstruído, evidentemente tendo explodido em
algum momento no passado recente devido à pressão interna de
pinguins em decomposição, a julgar pelo cheiro fraco, mas
maligno, que vazava da madeira manchada. O tempo estava
fresco, mas o sol estava alto e o suor acumulava-se em suas
órbitas e formigava seu couro cabeludo.
Era quase hora do almoço, mas ele não tinha apetite. Ele estava
ficando tonto de segurar a respiração. No entanto, ele olhou para
cima esperançoso quando ouviu passos descendo a trilha da
casinhola da fonte. Não era Bree ou Fanny com um sanduíche
bem-vindo e uma garrafa de cerveja, no entanto. Era seu sogro,
com dois grandes potes de cerâmica nos braços.
"Eles vão sentir o seu cheiro vindo a um quilômetro de distância",
Jamie comentou com aprovação, farejando. Ele largou os potes,
dos quais um forte cheiro de chucrute subia como algum
poderoso gênio germânico, e olhou para o aro recalcitrante. Ele
se agachou perto do barril, abraçou-o com cautela e, virando o
rosto, apertou o mais forte que pôde, pressionando as tiras de
madeira envelhecida para dentro o suficiente para que o aro
pudesse ser rapidamente pressionado no lugar.
"Ugh!", ele disse, ofegando enquanto se levantava. "Peixe
estragado?"
741

"No mínimo." Roger pôs-se de pé e espreguiçou-se, gemendo.


"Não imagino que isso vá melhorar muito o cheiro", disse ele,
apontando para o barril recém-montado.
"Bem, ainda vai cheirar a chucrute", disse Jamie, abrindo um dos
potes. "Mas o repolho geralmente suprime outros cheiros, então
o peixe – ou o que quer que seja – não será tão ruim. Além disso,
Claire diz que seu nariz se acostuma com qualquer coisa e então
você não vai se incomodar com isso.
"Ah, ela diz?", Roger murmurou. Não era sua sogra quem ia
viajar quinhentos quilômetros com uma carroça cheia de barris
fedorentos e três crianças gritando: "Piii-uiii!" todo o caminho
até a costa.
"Ronnie diz que os outros dois barris foram usados para carne de
porco salgada e linguiça de sangue, ele acha. Você só vai cheirar
a um jantar de domingo em Salem"357, disse seu sogro
insensivelmente. "Este está pronto?"
"Sim." Roger cutucou uma lasca com o polegar, observando
disfarçadamente Jamie espiar nas profundezas do barril. Ele
estava bastante orgulhoso de seu trabalho – e também de que
tenha funcionado: encaixar um segundo fundo falso no barril,
com espaço suficiente apenas para uma fina – mas rica – camada
de ouro por baixo, e encaixá-la o suficiente para que fosse
improvável que se soltasse se alguém a jogasse no chão.
"Oh, isso é braw!" Ainda olhando para dentro, Jamie pegou o
barril, pesou-o nas mãos e largou-o experimentalmente. Ele
pousou com um baque sólido, de pé. Jamie olhou para dentro,
ergueu os olhos e sorriu. "Parece com uma noz358, Roger Mac."

357
Salem (atual Winston-Salem) é uma cidade fundada em 1766 por imigrantes da Moravia, uma região
que atualmente se localiza na Áustria, todos falantes de língua alemã e com hábitos de sua região de
origem. Por isso, Jamie cita chucrute, carne de porco salgada e linguiça de sangue, alimentos comumente
apreciados por esses imigrantes.
358
Se pensarmos em nozes, com uma casca dura e muito resistente, temos uma noção das características
que Jamie admirou no barril.
742

"Sim, bem, Brianna me ajudou – com o modelo, quero dizer. E


Tom MacLeod deu a ela a madeira."
"Ela não disse a ele para quê, espero", disse Jamie, mas sem
nenhum medo real de que ela pudesse ter contado.
"Ela me disse que contou a ele que pensava em fazer um berço
para os Ogilvy." O jovem Angus e sua esposa estavam esperando
o primeiro filho e, portanto, agora recebiam batas velhas, batas
sobressalentes, chupetas, mamadeiras e qualquer quantidade de
conselhos provavelmente indesejados.
Jamie acenou com a cabeça em aprovação e, sem mais delongas,
despejou uma cascata verde-clara de chucrute perfumado no
barril.
"Você precisará movê-lo de um lado para outro, quando viajar",
disse ele, em resposta ao pensamento não dito de Roger de que
Jamie poderia ter esperado até que o barril fosse colocado na
carroça antes de adicionar dez quilos de repolho fermentado ao
peso. "Melhor tentar enquanto estiver sozinho, no caso de algo se
soltar, certo?"
Outra cascata volumosa foi vertida no barril, e o chucrute oscilou
suavemente sete centímetros abaixo da cicatriz na madeira que
mostrava onde a tampa iria se fixar.
Eles ficaram olhando pensativos para a massa aromática, e a
mesma ideia ocorreu a ambos. Ele sentiu Jamie se contorcer,
assim como ele mesmo pensava que era melhor verificar se o
fundo falso se soltou com a força do dilúvio. Jamie já estava
pegando um pedaço de pau adequado, que entregou a Roger.
Roger sondou as profundezas do barril, sorrindo um pouco.
Sempre dava a ele uma pequena sensação de calor quando de
repente ele compartilhava um pensamento não falado com
alguém. Acontecia de vez em quando com Bree, mais raramente
com Claire – mas surpreendentemente frequente com Jamie.
743

Talvez fosse apenas porque eles trabalhavam juntos muitas vezes,


conheciam o jeito físico um do outro.
"Certo, então. Tudo em perfeito estado." Roger jogou fora o
graveto úmido, pegou a tampa e pressionou-a no lugar, bateu com
força com um martelo e eles terminaram o trabalho com um aro
final. Rude, mas eficaz.
Jamie recuou, assentindo enquanto desenrolava as mangas da
camisa.
"Ken, se houver o menor perigo, deixe os barris e corra", disse
ele. "Vocês não terão nenhum problema no caminho – exceto
assaltantes nas estradas", acrescentou ele como uma reflexão
tardia. "O pequeno passe de lorde John deve cuidar de vocês para
qualquer outra coisa. Mas quando você chegarem a Charles
Town..." Ele ergueu um ombro e o estômago de Roger se
contraiu.
Sim, Charles Town. Jamie tinha escrito – em um código cifrado
que fascinou Roger – para Fergus, que teria algo planejado
quando eles chegassem – mas o quê?
Jamie não estava preocupado com Charles Town, no entanto.
"Veja o que Fergus tem em mente; ele é ousado em suas
barganhas, mas agora é pai de cinco filhos, então não é tão
imprudente como costumava ser. Mas quando você for para
Savannah", ele começou, mas então parou, franzindo a testa. O
que quer que ele estivesse pensando, porém, Roger não estava
adivinhando.
"Há um soldado chamado Francis Marion", disse Jamie
abruptamente. "Um oficial Continental. Claire disse que ele é
conhecido em – seu tempo. A Raposa do Pântano, ela disse. Ele
não está sendo chamado assim agora ", acrescentou
apressadamente, "mas será que você já ouviu falar dele?"
744

"Sim," Roger disse lentamente. "Mas esse nome é virtualmente


tudo o que eu sei. Ele está em Savannah?"
Jamie assentiu, parecendo mais relaxado.
"Recebi uma carta semana passada, de um homem que conheço.
Notícias, aye? E ele contou sobre a guarnição britânica em
Savannah – eu perguntei, já que a moça pretende ir para lá – e
disse que esse Marion havia mencionado a ele que Benjamin
Lincoln tinha em mente vir de Charles Town e fazer uma
tentativa para tomar Savannah. E, hum..." Os olhos de Jamie
estavam firmemente fixos em uma poça do caldo do chucrute.
Oh, então aqui estava a parte escorregadia. Isso saiu num jorro:
"Aquele Randall disse em seu livro que os americanos atacariam
Savannah em outubro – este ano", acrescentou ele, com um olhar
direto para Roger:
"Os americanos não terão sucesso, mas Marion estará lá."
"E... você quer que eu fale com ele?"
O suor estava secando agora, e o vento estava frio em sua camisa.
"Se você quiser. A questão é que Marion tem muita experiência
com milícias."
"Como se você não tivesse?", Roger disse.
A diversão cintilou no rosto de Jamie, mas ele negou, balançando
cabeça.
"Não tive qualquer experiência em dar suporte a uma milícia que
reuni e comandei para o exército continental. Marion fez isso
várias vezes, pelo que diz a carta, e eu quero saber se ele tem
algum conselho sábio a respeito de como lidar com... certos
oficiais."
"Quem é um bastardo e quem não é, você quer dizer? Isso seria
uma ajuda, mas você provavelmente terá uma escolha?"
745

"Todos os oficiais são bastardos", disse Jamie secamente. "Eles


têm que ser. Eu também. Alguns você pode confiar, e outros, não.
Pelo que ouvi, Marion pode ser alguém em quem confiar."
"Eu entendo."
E você quer um amigo no exército antes de ir até eles. Um homem
para ajudá-lo a testar as águas antes de você se comprometer.
Ou, talvez, para avisá-lo.
"A escolha é sua, não é?", Roger continuou. "Se deve
comprometer sua – nossa – milícia para lutar com o exército, ou
seguir sozinho, como Cleveland e Shelby."
"Eles não estão sozinhos", corrigiu Jamie. "Os homens da região
além da Linha do Tratado têm que convocar uns aos outros em
caso de necessidade. Mas cada homem mantém seu próprio
comando. Não é assim no Exército."
Os cabelos de Jamie estavam soltos de um lado; ele tirou o laço
e os amarrou, apertando os olhos contra o vento.
Estava chegando uma tempestade de fim de verão; você podia ver
uma se aproximando por quilômetros, aqui nas montanhas, e as
nuvens escuras estavam se aglomerando rapidamente sobre a
montanha Roan.
"A escolha", disse Jamie, ainda olhando para a tormenta que se
aproximava, "é manter a milícia perto, proteger a Cordilheira –
tanto quanto possível – ou sair, para lutar contra os britânicos. Se
fizermos isso, podemos decidir a melhor forma de agir."
Roger contemplou essa questão por alguns momentos.
"Ser ou não ser?", perguntou ele. "É mais nobre na mente359 e
tudo o mais? Porque é isso que você – nós – estamos fazendo,
não? Nós agimos ou não." Ele olhou para Jamie, que estava dando
359
São falas iniciais do famoso solilóquio de Hamlet, que reflete dobre as suas escolhas, contempla a
dor e a injustiça da vida (Hamlet, Ato III, Cena I, Shakespeare, 1594).
746

uma boa impressão de uma mola enrolada, e sorriu. "Isso começa


com você; você não poderia ficar fora de uma luta se alguém
pagasse a você para fazer isso."
Jamie teve a gentileza de rir disso, embora parecesse
constrangido.
"Sim. Mas existe o capitão Cunningham. Ele pode pegar suas
armas, um dia desses e aí?"
"Bem, não seria bom", admitiu Roger. “Mas ele não vai atacar a
Cordilheira e começar a incendiar as cabanas de seus vizinhos,
vai? Quero dizer... ele mora aqui."
"Verdade."
"Então os americanos estão indo para fazer o que – sitiar
Savannah?"
"É o que ele diz. Randall. Mas eles não terão sucesso."
Havia algo estranho na voz de Jamie cada vez que ele dizia esse
nome. Não é de se admirar que houvesse, mas Roger não sabia
dizer exatamente o que era: não dúvida, não ódio, não – não
exatamente – medo...
"Você acha que é seguro para Bree e as crianças ficarem em
Savannah enquanto isso está acontecendo?"
Jamie deu de ombros e pegou seu casaco descartado.
"Os americanos não tomarão a cidade e Brianna estará dentro
dela, sob a proteção de lorde John Grey."
"E você confia nele. Lorde John, quero dizer."
Não era uma pergunta e Jamie não respondeu, mas fez outra.
"Você confia em Randall?"
Roger respirou fundo entre os dentes, mas acenou sim com a
cabeça.
747

"Sobre as batalhas e assim por diante? Sim, eu confio. Quero


dizer – para ele era história; já aconteceu. E para todas as outras
pessoas na época em que publicou aquele livro. Ele não poderia
dizer simplesmente: Esta batalha aconteceu nesta data, quando
realmente aconteceu em outra data – ou nem sequer aconteceu.
Porque haveria muitos outros historiadores – para não dizer os
editores – que saberiam o que aconteceu. Se o livro estivesse
cheio de... desinformação, digamos, nunca teria sido publicado.
Quero dizer, os editores acadêmicos verificam os manuscritos
dos livros que publicam. "
Eles ficaram um pouco em silêncio, observando a tempestade
chegar.
Roger encontraria Francis Marion e, se Deus quisesse, Fergus
encontraria armas. Mas Roger percebeu que seus pensamentos
estavam fugindo de decisões difíceis e realidades escorregadias
em direção a suas próprias perspectivas pessoais mais iminentes.
Ele estava se perguntando se Bree poderia estar grávida e, em
caso afirmativo, como ela reagiria ao cheiro do jantar de
domingo em Salem.
748

51

RODAS DENTRO DE RODAS 360

"O QUE FOI QUE SUA MÃE DISSE ao seu pai sobre esta
expedição?"
Roger arregaçou as calças até o meio da coxa, olhando para a roda
da carroça cujo aro projetava-se do meio borbulhante de um
pequeno riacho.
"É muito profundo", disse Brianna, franzindo a testa para a água
corrente marrom. "É melhor você tirar suas calças. E talvez sua
camisa também."
"Isso é o que ela disse? Embora ela provavelmente esteja certa
sobre ser muito profundo..."
Brianna deu uma risadinha divertida. Ele havia tirado os sapatos,
meias, casaco, colete e gravata, e parecia um homem despido para
um duelo sério.
"A boa notícia é que com uma corrente assim você não vai pegar
sanguessugas. O que ela disse a Pa – ou o que ela mesma citou
como tendo dito, o que não é necessariamente a mesma coisa –
foi: Você está me dizendo que pretende transformar um ministro
presbiteriano perfeitamente respeitável em um traficante de
armas e mandá-lo entrar em uma carroça cheia de ouro duvidoso
e uísque ilegal para comprar um monte de armas de um

360
Frase da peça The Crucible (As Bruxas de Salem), de Arthur Miller, de 1953, sobre os julgamentos
das bruxas de Salem em 1692-3. A frase significa uma situação complexa, mas que se apresenta como
simples, o que torna mais difícil sua resolução.
749

contrabandista desconhecido, na companhia de sua filha e três


de seus netos?"
"Sim, é essa parte. Eu esperava que fosse mais divertido... "
Relutantemente, ele tirou a calça, jogando-a sobre os sapatos e as
meias. "Talvez eu não devesse ter trazido você e as crianças.
Germain e eu teríamos tido uma grande aventura só nós dois."
"Sim, era disso que eu tinha medo."
Ela olhou por cima do ombro, subindo a encosta íngreme em que
a carroça quase caiu quando a roda soltou. Era muito perto da
borda para que ela se sentisse confortável, e ela mandou as
crianças para o outro lado da estrada para pegar lenha, na
esperança de que isso os manteria fora da carroça e longe de
problemas.
Ela estava de olho em Roger e com o ouvido atento aos gritos de
alarme vindos de cima; parte de sua mente estava calculando
quanto tempo levaria para consertar a roda, se saísse do riacho
intacta – caso contrário, eles teriam de passar a noite aqui – e
algumas células cerebrais estavam listando ociosamente que
comida eles tinham, só para garantir. Mas a maior parte de sua
atenção estava voltada para o próprio peito.
Palpitação
Tum-tum... Tum-tum... Tum-tum...
Palpitação
Agora não! ela pensou ferozmente. "Eu não tenho tempo para
isso."
"Tempo para quê?"
Roger olhou por cima do ombro, um pé na água corrente e sua
camisa esvoaçando desavergonhada com a brisa, proporcionando
a ela vislumbres breves, mas divertidos de seu traseiro.
750

"Tudo isso", disse ela, revirando os olhos e gesticulando para a


carroça meio destruída na estrada e as vozes das crianças, depois
para a pequena caixa de ferramentas a seus pés. "Vá logo com
isso, você vai congelar de pé aí."
"Ah, eu não vou, vou submergir numa água morna e agradável..."
Ele endireitou os ombros e entrou no riacho, tateando o fundo de
pedra, a água subindo até seus joelhos.
Palpitação. Palpitaçãopalpitaçãopalpitação
Tum-tum.
Ela se sentou repentinamente, apoiou a cabeça nos joelhos e
inspirou, inspirou muito profundamente. Manobras vagais,
vamos tentar isso. Como se chamava…? Manobra de Valsalva,
era isso. Ela prendeu o último fôlego e empurrou para baixo com
os músculos abdominais, o mais forte que pôde, contando até dez,
sentindo o coração desacelerar e bater com mais força.
Bom…
Tum-tum... Tum-tum... Tum-tum...
Roger alcançou a roda e segurava o aro, meio agachado para
conseguir uma boa ancoragem.
Com a estabilidade do coração, sua visão melhorou e ela se
recostou, respirando com dificuldade. Ouvindo.
Estou tão cansada de ouvir. Apenas... pare com isso, ok?
A roda se ergueu repentinamente de seu leito rochoso e Roger
escorregou entre as pedras e caiu sobre um joelho, gritando
enquanto a água subia até seu peito.
"Oh, céus... porra!"361
"Oh, não!" Mas ela estava rindo, embora tentando não rir.
361
A expressão original é “Jesus Effing Christ on bread!” Literalmente, “Jesus Diacho Cristo no pão”,
algo impossível de se traduzir. O final dela (on bread) talvez tenha relação algumas expressões que usam
‘on toast’, não no sentido de torrada, mas como uma celebração, um ‘viva!’.
751

Tirando apressadamente os próprios sapatos e meias, ela prendeu


as saias para cima e entrou para ajudar. A água estava fria, mas
felizmente a roda estava intacta e Roger foi capaz de virar e
empurrá-la em sua direção o suficiente para que ela pudesse
segurá-la com uma das mãos e evitar que escapasse enquanto ele
se levantava e pegava uma melhor aderência ao seu lado.
A roda tinha quase um metro de diâmetro, era pesada e
desajeitada, mas o aro de ferro evitou que a roda se quebrasse.
"Uma grande bênção!", disse ela, levantando a voz por cima do
som da água. "Não está quebrada!"
Ele assentiu com a cabeça, ainda sem fôlego, e agarrando a borda
do aro com as duas mãos tirou a roda das mãos dela e nadou até
a margem, arrastando-a encosta acima. Ele a largou e se sentou,
respirando com dificuldade. Ela também.
Palpitaçãopalptaçãopalpitação...
Ela ofegou para respirar, e pontos flutuantes brilharam nos cantos
de seus olhos.
"Jesus, Bree...você está bem?" A mão dele estava segurando o
pulso dela; ela virou a própria mão e agarrou a dele com força.
Palpitaçãopalptaçãopalpitação...
"Eu, oh... sim, estou... estou bem." Ela se forçou a respirar fundo
e empurrar para baixo. E mais uma vez, seu coração parou de
bater acelerado, embora a batida mais lenta ainda fosse irregular.
Tum. Tum-tum-tum-tum. Tum. Pausa. Tum-tum.
"Como diabos você está bem. Você está branca como leite. Aqui,
coloque a cabeça entre os joelhos."
Ela resistiu ao empurrão dele na sua nuca, afastando-o com a
mão.
"Não. Não, está tudo bem. Apenas... senti um leve desmaio por
752

um minuto. Provavelmente baixo nível de açúcar no sangue, não


comemos nada desde o café da manhã. "
Ele retirou a mão, lentamente, olhando para ela com intensa
preocupação. E de repente ela percebeu que teria que contar a ele.
Ela não estava morrendo e não queria que ele se preocupasse cada
vez que acontecesse.
O vento frio em seu rosto a estava revivendo, e ela se virou para
ele, tirando mechas de cabelo de sua boca.
"Roger Eu... eu tenho que contar a você uma coisa."
Ele a encarou, franzindo um pouco a testa e, de repente, seu rosto
mudou. Uma luz apareceu em seus olhos, uma sensação crescente
de ansiedade.
"Você está grávida? Deus, Bree, isso é maravilhoso!"
-.-.-

O CHOQUE MOMENTÃNEO a deixou sem fala por um


segundo. Então irrompeu em seu peito, em uma explosão de fúria
que afogou qualquer pensamento sobre seu coração.
"Você - você – como, maldito, você se atreve?"
Algum vestígio de pensamento sobre as crianças acima a impediu
de gritar, e as palavras emergiram em um rosnado estrangulado.
Sua intenção, no entanto, mostrou-se claramente; os olhos de
Roger se arregalaram e ele agarrou o braço dela.
"Sinto muito", disse ele, em voz baixa e uniforme. "Me diga o
que está errado."
Ela lutou por um momento, querendo o simples alívio da
violência, mas ele não a deixou ir, e ela parou e ficou ali sentada,
com lágrimas jorrando como o único meio de aliviar a pressão.
Ele soltou o braço dela e colocou o seu sobre os ombros dela. Ela
753

sentiu o frio de sua camisa e pele molhadas, o encharcamento de


suas próprias bainhas, mas o calor do medo e da frustração
cresceu nela como vapor.
Ela se agarrou ao braço de Roger como se fosse uma raiz de
árvore útil em uma enchente. Ela estava soluçando e tentando ao
mesmo tempo com urgência, com medo de que o aperto da
emoção tomasse seu coração e o jogasse em comoção novamente,
mas incapaz de continuar resistindo à necessidade de liberar tudo,
de contar tudo a ele.
"Me-desculpe", ela continuou ofegando, e ele a agarrou com mais
força, balançando-a um pouco, esfregando suas costas com a mão
livre.
"Não, eu sinto muito", disse ele em seu cabelo. "Bree, me perdoe.
Eu não quis... Eu realmente não quis dizer..."
"Dãã!", disse ela com voz rouca, e se afastou um pouco dele,
enxugando com os nós dos dedos o nariz que escorria. "Você não
– isso é uma afirmação para você. Eu sei que você quer outro
bebê, mas..."
"Não se você não quiser", ele assegurou, embora ela pudesse
ouvir o desejo em sua voz. "Eu não arriscaria você, Bree. Se você
está com medo, se você..."
"Oh Deus." Ela acenou com a mão para detê-lo. Ela parou de
soluçar e estava apenas aninhada em seus braços, respirando. Seu
coração estava batendo. Normalmente.
"Tub-Tub", disse ela... "É assim que os livros didáticos dizem que
soa um batimento cardíaco. Mas não é, realmente."
Silêncio momentâneo. Ele acariciou seu cabelo, com cautela.
"Não?"
"Não." Ela respirou fundo, livre, sentindo o fluxo de ar chegar até
a ponta dos dedos. "E não, eu também não estou louca."
754

"Vou acreditar na sua palavra." Ele a soltou suavemente e olhou


penetrantemente em seu rosto. "Você está bem, Bree?" Ele
parecia tão ansioso que ela quase começou a chorar de novo, de
remorso.
"Mais ou menos..." Ela engoliu em seco, fungou e fez um grande
esforço para se endireitar e se controlar. Nesse ponto, ela
percebeu que Roger estava sentado ao lado dela com nada além
de sua camisa de cauda comprida toda molhada e ela começou a
rir, mas se conteve, temendo que tudo pudesse facilmente torná-
la histérica.
"Vista as calças e eu contarei tudo", disse ela, endireitando os
ombros.
"Manheeeeeee!", Mandy estava chamando da beira da estrada
acima, acenando com os braços. "Mamãe, estamos com
fomeeeeeee!"
"Vou pegar alguma coisa para eles", Roger disse, reassumindo
apressadamente as calças. "Você lava o rosto e... bebe água. Vá
com calma e eu já volto."
Ele escalou a margem, chamando por Jem e Germain, e depois
de um minuto, ela se recompôs o suficiente para fazer o que ele
disse – se lavar e beber água. A água do riacho era boa: fria e
fresca, com um leve sabor picante de agrião, e ter algo – até
mesmo água – no estômago pareceu acalmá-la.
Tum-tum. Tum. Tum-tum. É verdade que houve um baque menor
seguindo o principal, mas foi o ritmo sólido e reconfortante do
baque que deu confiança a ela. Ela sorriu com a ideia e passou as
mãos molhadas pelos cabelos, que haviam se soltado da fita.
Ela estava ajoelhada na grama ao lado da roda quando Roger
apareceu de novo, trazendo presentes na forma de dois ovos
cozidos, um pedaço de pão seco esfregado com azeite de oliva e
alho e uma garrafa de cerveja. Ela começou com a cerveja. "Não
755

está tão ruim", disse ela, acenando com a cabeça para a roda. "Um
dos aros serrados se soltou, mas não está quebrado. Posso
encaixar de volta e colocar um parafuso de arame no..."
"Para o inferno com a roda", disse ele, embora suavemente.
"Coma um ovo e me diga o que está acontecendo." Seu rosto não
mostrava nada além de preocupação, mas a postura de seus
ombros indicava que ele não iria embora.
Ela tomou um longo gole de cerveja para criar coragem, abafou
um arroto e contou a ele.
"Eu fico pensando que simplesmente vai passar. Uma vez que
parar, não acontecerá novamente. Mas eu continuo ouvindo, lá
no fundo... e então isso não acontece por uma semana, duas
semanas, três... e eu começo a relaxar e então bum! Lá está ele de
novo." Ela olhou para ele se desculpando. "Eu sinto muito por ter
desmoronado. Mas você sabe, é como uma gravidez – há essa
coisa dentro de você, parte de você, mas você não pode controlá-
la e ela simplesmente pega seu corpo e... faz coisas com ele." Ela
olhou para baixo e começou a pegar fragmentos de casca de ovo
da grama.
"E isso pode matar você", disse ela, muito suavemente. "Embora
Mama diga que não é uma ameaça à vida – exceto pelo negócio
de talvez dar um derrame."
"Deixe isso – cascas de ovo fazem parte da paisagem." Ele pegou
sua mão sem resistência e beijou-a suavemente. "Você trouxe
casca de salgueiro com você?"
"Sim. Mama fez um kit para mim." Ela sorriu um pouco, apesar
da situação, e gesticulou colina acima, em direção à carroça torta.
"Está na minha bolsa. Vinte e quatro pacotes de casca de
salgueiro, cada um capaz de preparar três xícaras de infusão. Ela
pensou que isso iria durar até chegarmos a Charles Town."
"Mais uma coisa", disse ela, e respirou fundo, fungando. Seu
756

nariz estava começando a ficar mais limpo e ela podia respirar


novamente.
"Sim?"
"Gravidez e isso – essa coisa do coração. Mama diz que é como
muitas outras coisas – a gravidez pode fazer com que isso
desapareça, temporária ou permanentemente. Mas também pode
piorar muito a situação." Ela assoou o nariz em um lenço
molhado. "E ela não disse isso, mas pensei nisso depois – e se for
alguma coisa... quero dizer, o coração de Mandy. Eu... dei isso a
ela?"
"Não", disse ele com firmeza. "Não, sabemos que é um defeito
de nascença comum. O duto arterial estava patente, disse sua
mãe. Você não causou isso. No entanto…"
Ela queria acreditar nele, mas as dúvidas e pensamentos que ela
estava suprimindo nos últimos meses estavam todos
borbulhando.
"Seu tataravô em algum grau. Buck. Ele tinha algo errado com
seu coração, não tinha?"
O rosto de Roger ficou momentaneamente em branco.
"Sim, ele tinha", ele disse lentamente. "Mas isso – quero dizer,
parecia ser um efeito de passar através das pedras." Sua mão foi
para o próprio peito, inconscientemente, e ele o esfregou
lentamente. "Ele estava tendo um... ataque, uma convulsão... bem
quando passamos. Mas então ficou melhor – e então piorou
muito, mais tarde. Foi quando conhecemos Hector McEwan."
Sua respiração estava muito mais fácil. Havia algo sobre o
pensamento lógico que causava um curto-circuito na emoção.
Talvez seja por isso que as pessoas disseram que você deveria
contar até dez quando estava zangado...
"Eu gostaria de ter perguntado a ele mais sobre isso", disse ela.
757

"Mas", ela tocou o próprio peito, onde seu coração estava batendo
baixinho. "Eu não tinha nada parecido com isso naquela época. "
Ela podia ver que ele não queria dizer isso, mas ela sabia o que
ele estava pensando, porque era a conclusão lógica e ela estava
pensando também.
"Talvez o dano, se for isso, fique pior, quanto mais você faz isso?
A viagem, quero dizer."
"Deus, eu não sei." Ele olhou colina acima. As vozes das crianças
estavam mais fracas; eles estavam na floresta do outro lado da
estrada. "Não parece ter prejudicado Jem, ou... ou a mim. Ou sua
mãe. Mas... só agora me ocorreu: sua mãe viajou pelas pedras
enquanto estava grávida de você. Talvez aquilo…?" Ele tocou o
peito dela, suavemente.
"Tamanho de amostra muito pequeno." Ela riu, trêmula. "E eu
não viajei com Mandy. Não se preocupe. Mamãe disse que as
chances de alguém da minha idade e do meu estado de saúde
sofrer um derrame eram infinitesimais. Quanto à gravidez..."
"Bree." Ele se levantou e a colocou de pé, de frente para ele. "Eu
falei sério, m'aoibhneas. Eu nunca arriscaria sua vida, sua saúde
– ou sua felicidade." Ele inclinou a cabeça de forma que eles
ficassem cara a cara, olho no olho, e ele sentiu o sorriso dela.
"Você não sabe o quanto você significa para mim?", ele disse.
"Sem falar nas crianças. E não menos importante... você
realmente acha que eu correria o risco de você morrer antes de
mim e me deixar com aqueles pequeninos demônios?"
Ela riu, embora ele pudesse ver as lágrimas ainda brilhando nos
cantos de seus olhos. Ela apertou as mãos dele com força, depois
o soltou e procurou um lenço no bolso.
"M'aoibhneas?", ela perguntou, sacudindo o lenço e enxugando o
nariz com ele. "Eu não sei essa. O que significa?
758

"Felicidade", disse ele rispidamente, e pigarreou."Minha grande


alegria." Ele acenou com a cabeça para a roda e seu aro saltado.
"O que é que eles dizem? A felicidade é alguém que pode
consertar você quando você está quebrado?"
-.-.-

LEVOU MENOS DE uma hora para consertar a roda – tanto


quanto ela poderia fazer com o que tinha à mão.
"É realmente necessário um ferreiro para colocar rebites novos
no aro", disse ela, levantando depois de ficar agachada lidando
com a roda recém fixada. "Tudo que eu tinha eram tachas de
cabeça chata para os raios e alguns parafusos realmente rústicos
e um pouco de arame, mas..."
"Vamos dirigir devagar", disse Roger. Ele protegeu os olhos,
avaliando a altura do sol. "Ainda restam três horas de luz do dia.
E eu acho que há um lugar chamado Bartholomew, ou Yamville,
ou algo assim nesta estrada. Pode ser grande o suficiente para ter
um ferreiro."
As crianças haviam se exaurido correndo para cima e para baixo
na trilha, brincando de pega-pega e esconde-esconde enquanto
ela consertava a roda. Um almoço sólido de batatas cozidas frias
(notavelmente bom com um pouco de sal e vinagre) e ovos, com
uma boa porção de chucrute para vitamina C e maçãs para
finalizar – eles tinham um saco de pequenas maçãs amarelo-
esverdeadas, doces, mas ácidas - e Mandy estava desmaiada,
enrolada na carroceria com a cabeça em um saco de aveia, e Jem
e Germain bocejando ao lado dela, mas determinados a não
adormecer e perder nada.
Roger sentia o mesmo. O rastro se alargou e se transformou em
uma estrada de verdade, mas não havia ninguém nela; eles não
haviam passado ou encontrado ninguém nas últimas duas horas,
759

e os cavalos tinham diminuído a velocidade, então a floresta


começou a passar silenciosamente, árvore por árvore, em vez do
borrão verde da parte anterior da jornada. Era calmante, hipno...
hip-
"Ei!" Brianna agarrou seu braço, fazendo-o voltar a despertar. Por
reflexo, ele puxou as rédeas e os cavalos pararam, bufando, os
flancos ensopados de suor.
"Você estaria dormindo em pé, se estivesse de pé", disse ela,
sorrindo. "Você, rasteje lá para trás com Mandy por um tempo.
Eu vou conduzir."
"Nah, estou bem." Ele resistiu à tentativa dela de tirar as rédeas
dele, mas no processo ele perdeu o controle de seu rosto e bocejou
tão amplamente que seus ouvidos rugiram como o som de ondas
distantes e seus olhos lacrimejaram.
"Vá", disse ela, juntando as rédeas cuidadosamente e passando-
as nas costas dos cavalos, estalando a língua antes que ele pudesse
argumentar. "Estou bem. Sério", ela adicionou mais suavemente,
olhando para ele.
"Sim. Bem... talvez só um pouco." Ele não teve coragem de
deixá-la sozinha no banco, no entanto, e tateou embaixo dele em
busca do grande cantil. Ele jogou água no rosto, bebeu um pouco
e colocou a tampa de volta, sentindo-se um pouco mais alerta.
"O que mais você tem em sua bolsa mágica?" perguntou ele,
tendo visto a mochila de lona debaixo do banco ao lado do cantil.
"Além do seu chá?"
"Algumas das minhas pequenas ferramentas", ela respondeu,
olhando para a bolsa. "E uma coisa boa também. Alguns livros –
presentes e alguns brinquedos para Mandy, e o livro do Grinch
que fiz para ela. Ela queria trazer Green Egg and Ham, mas isso
não serviria. "
760

Roger sorriu ao pensar nos Brumbys e seus amigos da sociedade


avistando o grande livro laranja brilhante. Bree estava
trabalhando lentamente em aproximações feitas à mão de alguns
dos outros livros do Dr. Seuss, com sua própria versão
caprichada, tanto dos desenhos quanto dos versos originais que
ela e Claire podiam se lembrar. Eles não eram de forma alguma
tão vistosos como a coisa real, mas também era muito menos
provável de causarem mais do que um sorriso ou uma carranca
intrigada, caso alguém olhasse atentamente para um deles.
"E se você encontrar um impressor em Savannah, que dê uma
olhada e queira publicar o livro?" ele perguntou, tentando soar
não mais do que ligeiramente curioso. Ele quase havia superado
a preocupação em expor pedaços da cultura futura ao século
XVIII, mas ainda assim lhe dava uma sensação desconfortável na
nuca, como se a Polícia do Tempo pudesse estar esperando para
localizar Horton e o Mundo dos Quem362 e denunciá-los. A
quem? ele se perguntou.
"Eu acho que dependeria de quanto ele me oferecesse", ela disse
levemente. Ela sentiu a resistência dele, porém, e transferiu as
rédeas para a mão esquerda para dar um tapinha na dele.
"Atrito histórico", disse ela. "Existem todos os tipos de coisas –
ideias, máquinas, ferramentas, seja o que for – que foram – são,
quero dizer – descobertas mais de uma vez. Mamãe disse que a
agulha hipodérmica foi inventada de forma independente por
pelo menos três pessoas diferentes, todas ao mesmo tempo, em
países diferentes. Mas outras coisas são inventadas ou
descobertas e elas simplesmente... ficam. Ninguém as usa. Ou
elas se perdem e são encontradas novamente. Por anos – séculos,
às vezes – até que algo aconteça e, então – seja a hora certa, ou
seja lá o que for –, vem de repente e se espalha, e é de

362
No original, ‘Horton Hears a Who!’ (1970), livro de Dr Seuss, pseudônimo de Theodor Seuss Geisel
761

conhecimento comum.
"Além disso", acrescentou ela de forma prática, cutucando a
bolsa com o pé, "que mal poderia fazer perder uma versão
bastarda de O gato de chapéu363 no século XVIII?"
Ele riu apesar de sua inquietação.
"Ninguém iria imprimir isso. Uma história que mostra crianças
sendo deliberadamente desobedientes à mãe? E não sofrer
consequências terríveis por fazer isso?"
"Como eu disse. Não é o momento certo para um livro como
esse", disse ela. "Não iria... pegar."
Ela havia superado o colapso emocional completamente agora –
ou pelo menos era o que parecia. Os cabelos ruivos compridos
caindo soltos nas costas, o rosto animado, mas não perturbado,
seus olhos na estrada e nas cabeças balançando dos cavalos.
"E então existe Jane", ela disse, acenando para a bolsa e baixando
a voz. "Falando em consequências terríveis, pobre garota."
"Jan... oh, a irmã de Fanny?"
"Eu consertei o desenho, mas prometi a Fanny que pintaria Jane
também", disse Bree, franzindo um pouco a testa. "Fazê-la mais
permanente. E lorde John diz que o sr. Brumby vai me fornecer
os melhores suprimentos de pintura que o dinheiro e uma sólida
reputação conservadora podem comprar em Savannah. Não
consegui convencer Fanny a me deixar tirar seu desenho, mas ela
me deixou copiá-lo para que eu tivesse algo para trabalhar."
"Pobre menina. Meninas, devo dizer." Claire contara a Brianna,
depois do alvoroço sobre a chegada da menstruação de Fanny, o
que acontecera com Jane, e Bree contara a ele.
"Sim. E o pobre Willie também. Não sei se ele estava apaixonado
por Jane ou apenas se sentia responsável por ela, mas mamãe
363
‘The Cat in the Hat’ (1957), livro de Dr Seuss.
762

disse que ele apareceu em seu funeral em Savannah parecendo


horrível, com aquele cavalo enorme. Ele deu o cavalo a Pa, para
Fanny – ele já havia dado Fanny para ele cuidar – e então ele
simplesmente... partiu. Eles não ouviram nada sobre ele desde
então364. "
Roger acenou com a cabeça, mas não havia muito a dizer. Ele
encontrou William, nono conde de Ellesmere, uma vez, vários
anos antes, por cerca de três minutos, em um cais em Wilmington.
Um adolescente, então, alto e magro – e com uma notável
semelhança com Bree, embora tivesse cabelos escuros – mas com
muito mais confiança e porte do que ele esperaria de alguém
dessa idade. Ele supôs que essa era uma das vantagens de nascer
(pelo menos teoricamente) dentro da aristocracia hereditária.
Você realmente achava que o mundo – ou boa parte dele –
pertencia a você.
"Você sabe onde ela foi enterrada? Jane?", ele perguntou.
Ela balançou a cabeça. "Em um cemitério particular em uma
propriedade fora da cidade, só isso. Por quê?"
Ele deu de ombros, brevemente. "Achei que talvez devesse
prestar minhas homenagens. Para que eu pudesse dizer a Fanny
que tinha ido e feito uma oração por sua irmã."
Ela olhou para ele com olhos amorosos.
"É um pensamento muito bom. Vou dizer o que vou fazer: vou
perguntar a lorde John onde ela está – mamãe disse que ele
providenciou o sepultamento de Jane, então ele saberá onde é.
Então você e eu podemos ir juntos. Você acha que Fanny gostaria
que eu fizesse um esboço do túmulo? Ou isso seria muito...
perturbador?"

364
Talvez Brianna não saiba, mas houve um outro encontro entre William e Jamie no livro 8 cap 136,
além da carta que Frances recebeu.
763

"Acho que ela gostaria."


Ele tocou seu ombro, então afastou os cabelos de seu rosto e os
amarrou com seu lenço. "Você não teria nada comestível nessa
sacola, não é?"
764

52

MADURO PARA A COLHEITA365

Do coronel Benjamin Cleveland


Ao coronel Fraser, Cordilheira dos Fraser,
Carolina do Norte, coronel John Sevier,
coronel Isaac Shelby, etc….

Caros senhores:

Isto é para informá-los de que a partir do dia


14 próximo, estarei cavalgando com minha
milícia pelas Fazendas e Povoações que ficam
entre a Curva inferior do Nolichucky e as
fontes termais, com a intenção de assediar e
desalojar os Homens de uma Disposição
Legalista vivendo nela e eu os convido a se
juntar a mim neste Compromisso.
Se você pensa como eu em apreciar a ameaça
que abrigamos em nosso Peito e a necessidade
de exturpá-la366, traga seus homens
preparados com suas armas e junte-se a mim
em Sycamore Shoals no dia 14.

Seu Srv.

365
Referência bíblica João 4:35
366
Péssima ortografia, como dirá Jamie, mais adiante – ele quer extirpar os legalistas, não?
765

B. Cleveland

"E QUAIS SÃO NOSSAS ESCOLHAS?", eu perguntei,


tentando soar calmamente objetiva.
Jamie suspirou e baixou o livro de contabildade.
"Posso ignorar a carta de Cleveland – incluindo sua ortografia.
Como fiz com a última. Ninguém sabe que eu a recebi, exceto
você, Roger Mac e o mascate que a trouxe. O Gordo Benjie não
vai esperar muito pela minha resposta; ele fará sua colheita em
breve, e ele está ansioso para começar a caçar antes que o tempo
mude."
"Isso nos daria um pouco de tempo, pelo menos. " Um canto de
sua boca se ergueu.
"Gosto da maneira como você diz nós, Sassenach."
Eu corei um pouco. "Eu sinto muito. Eu sei que é você que tem
que fazer o trabalho sujo. Mas..."
"Eu não estava brincando, Sassenach", ele disse suavemente, e
sorriu para mim. "Se eu for rasgado membro por membro fazendo
isso, quem vai me costurar de volta, senão você?"
"Nem mesmo brinque sobre ser rasgado membro por membro."
Ele me olhou com curiosidade, então acenou com a cabeça,
aceitando.
"Ou... posso enviar de volta uma resposta dizendo a ele que estou
ocupado com os legalistas locais e não me atrevo a deixá-los
soltos para causar danos na Cordilheira. E isso, Sassenach, é mais
da metade da verdade, mas não acho que quero dizer uma coisa
dessas a Cleveland – nem quero colocar meu nome nisso no
papel. Digamos que eu tenha escrito isso – e que alguém
conhecido de Cleveland, em seguida, coloque na cabeça enviar
766

minha pequena nota aos jornais em Cross Creek?"


Esse era um bom argumento, e meu estômago embrulhou um
pouco. Colocar seu nome em qualquer tipo de documento político
nos dias de hoje poderia ser essencialmente pintar um alvo em
suas costas. Em todas as nossas costas.
"Ainda assim... não é como se alguém no oeste da Carolina do
Norte tivesse dúvidas quanto à sua lealdade", objetei. "Quero
dizer, você era um dos generais de campo de Washington."
"Sim, eu fui", disse ele cinicamente. “E fui é uma palavra
significativa. Metade das pessoas que sabem que eu fui um
general – por cerca de um mês – também pensam que sou um
covarde traidor que abandonou meus homens no campo de
batalha. O que eu fiz. Não seria surpresa para nenhum deles saber
que eu virei um casaco-vermelho."
E juntar-se aos homens dos assentamentos além das Montanhas
Apalaches, para assediar e assassinar os legalistas iria de alguma
forma restaurar sua reputação como um patriota obstinado, eu
supunha.
"Oh, bobagem." Levantei-me e fui atrás dele, colocando minhas
mãos em seus ombros e apertando. "Ninguém que conhece você
pensaria isso por um momento, e eu estaria disposta a apostar que
a maioria das pessoas na Carolina do Norte nunca ouviram falar
de Monmouth e não tem a menor ideia de que você lutou lá –
muito menos o que realmente aconteceu."
O que realmente aconteceu. Verdade, ele tecnicamente
abandonou seus homens no campo para me impedir de sangrar
até a morte – mesmo que a batalha tivesse terminado e os homens
em questão fossem todos das milícias do condado cujo
alistamento já estava concluído ou deveria terminar no dia
seguinte. Somente o fato de que ele havia renunciado
formalmente à sua patente – por escrito, como ele fez – naquele
767

momento o impediu de ser submetido à corte marcial.


Isso e o fato de George Washington estar tão furioso com o
comportamento de Charles Lee367 no campo de Monmouth que
dificilmente se voltaria contra Jamie Fraser – um homem que o
seguiu por aqueles campos e lutou ao lado de seus homens com
coragem e bravura.
"Respire profundamente três vezes e solte; seus ombros estão
duros como pedra."
Ele obedientemente seguiu essa instrução e, após a terceira
respiração, abaixou a cabeça para que eu pudesse massagear sua
nuca, assim como seus ombros. Sua carne estava quente e tocá-
lo me deu uma sensação reconfortante de solidez.
"Mas o que provavelmente farei", disse ele para seu peito, "é
enviar a Cleveland e aos outros uma garrafa de uísque de dois
anos, junto com uma carta dizendo que minha cevada acabou de
ser cortada e eu não posso deixá-la apodrecer, ou não haverá
uísque no próximo ano."
Isso me fez sentir muito melhor.
Os homens de Além da Montanha368 eram rebeldes, e alguns –
como Cleveland – podiam ser fanáticos sanguinários, mas eu
tinha certeza de que todos eles tinham suas prioridades corretas
quando se tratava de uísque.
"Excelente ideia", eu disse, e beijei sua nuca. "E com sorte,
teremos um início de inverno com muita neve."

367
Major-general Charles Lee (1732–1782). Conhecido como Ounewaterika, ou "Água fervente", pela
família de sua esposa, uma mohawk. Um soldado de carreira com uma reputação dúbia. Ele serviu ao
Exército Continental e, pela força de sua experiência e bravura indiscutíveis, tornou-se o segundo em
comando antes da Batalha de Monmouth (em 28 de junho de 1778). Devido à sua participação nos eventos
daquela batalha, Lee foi submetido à corte marcial por incompetência, mas ao final foi absolvido.
368
Overmountain Men, como ficaram conhecidos – os Homens além da Montanha, eram homens da
fronteira norte-americana do oeste das Montanhas Apalaches que participaram da Guerra Revolucionária
e formaram milícias que foram importantes em diversas batalhas, entre elas a de King’s Mountain (em 7
de outubro de 1780), na Carolina do Sul.
768

Isso o fez rir, e o aperto na parte inferior das minhas costas


relaxou, embora minhas mãos parecessem vazias quando as
retirei.
"Tenha cuidado com o que deseja, Sassenach.
A luz do sol poente estava atrás dele agora, seu perfil numa
silhueta preta.
Eu fiquei fascinada pelo brilho da luz na ponte de seu nariz longo
e reto quando ele virou a cabeça, e pela curva graciosa de seu
crânio – mas o que prendeu meu coração foi sua nuca.
Ele passou a mão sob o rabo de seu cabelo, levantando-o
casualmente enquanto coçava a cabeça e o sol brilhou puro e
branco como um osso através dos minúsculos fios de cabelo
escondidos que desciam pela cadeia de músculos que havia ali.
Apenas um instante – ele puxou a fita e sacudiu os cabelos sobre
seus ombros, uma desbotada e ainda escura massa de bronze e
prata, brilhando ao sol – e se foi.
-.-.-

O NOLLE PROSEQUI369 de Jamie ao cordial convite de


Benjamin Cleveland para vir caçar os legalistas era
evidentemente aceitável, pois nenhuma outra missiva se seguiu –
e ninguém apareceu para colocar fogo em nossas plantações
também.
Isso foi tão bom, já que a declaração de Jamie de que sua cevada
havia sido colhida estava antecipando a realidade em algumas
semanas.
Agora, porém, a cevada estava em feixes nos campos e estava
sendo enfiada em sacos e transportada para debulhar e peneirar
369
Expressão em latim, muito usado no Direito, que significa a vontade do autor de não dar
prosseguimento ao tema.
769

tão rápido quanto os trabalhadores do campo disponíveis – Jamie,


eu, Young Ian, Jenny e Rachel, e Bobby Higgins e seu enteado
Aidan – poderiam manipular.
Depois de um dia cansativo de trabalhar na colheita, voltávamos
cambaleantes para casa, comíamos tudo o que eu conseguira
preparar pela manhã – geralmente um ensopado feito de feijão
gordo, arroz e qualquer outra coisa que eu pudesse encontrar na
luz cinza turva do amanhecer – e caiamos na cama. Exceto Jamie.
Ele comia, deitava-se diante da lareira por uma hora, depois se
levantava, jogava água fria no rosto, vestia a menos suja de suas
duas camisas de trabalho e saía ao encontro da milícia na grande
clareira mais abaixo de nossa casa. Ele colocava Bobby para
treinar quem quer que aparecesse, enquanto falava com os recém-
chegados, persuadindo-os a se juntar, selando o compromisso
com um xelim de prata (ele tinha dezesseis restantes, escondidos
no salto de uma de suas botas) e a promessa de uma montaria e
uma arma decente.
Em seguida, ele assumia o treinamento, à medida que a luz
gradualmente passava pela terra, atraída pelo último brilho do
céu, e quando o sol finalmente desaparecia, ele cambaleava até a
cama e – com sorte – tirava suas botas antes de desabar de bruços
ao meu lado.
Os outros homens também precisavam cuidar de sua colheita e
abate, portanto, o comparecimento era irregular – e seria, ele me
disse, até meados de outubro.
"Nessa altura, possivelmente, terei alguns cavalos e rifles em
mãos para lhes dar."
"Espero que todos os amigos do sr. Cleveland tenham colheitas
para cuidar também", disse eu, cruzando os dedos das duas mãos.
Ele riu e derramou um jarro d'água sobre a cabeça, depois o
pousou e ficou parado por um momento, as mãos apoiadas no
770

lavatório, a cabeça baixa, pingando na bacia – e por todo o chão.


"Sim", disse ele, na caverna escura de seus cabelos compridos e
úmidos. "Sim, eles têm." Ele não se endireitou imediatamente, e
eu podia ver a profundidade de cada respiração lenta conforme
suas costas inflavam. Finalmente, ele se endireitou e, balançando
a cabeça como um cachorro molhado, pegou a toalha de linho que
eu lhe ofereci e enxugou seu rosto.
"Cleveland é rico", disse ele. "Ele tem servos para cuidar de seus
campos e estoque, o que permite que brinque de carrasco. Não
tenho esse luxo, graças a Deus."
771

53

O PRIMEIRO PÉ

EM 16 DE SETEMBRO, NOSSA porta da frente se fechou pela


primeira vez370. Era uma coisa bela, carvalho sólido, aplainado e
lixado, liso como vidro. Jamie e Bobby Higgins colocaram as
dobradiças e penduraram a porta antes do almoço e terminaram
de instalar a maçaneta, a fechadura e a placa de encaixe (a
fechadura adquirida a um preço horrível de um chaveiro em Cross
Creek) pouco antes do pôr do sol. Jamie fechou a porta com um
baque impressionante e travou a fechadura com um floreio
cerimonioso, sob os aplausos da família reunida – que no
momento incluía Bobby e seus três filhos, convidados a
compartilhar o jantar conosco e oferecer uma pequena companhia
para Fanny, pois ela sentia falta de Germain, Jem e Mandy
cruelmente.
Fizemos apostas durante o jantar sobre quem poderia ser a
primeira pessoa a bater em nossa nova porta, com suposições que
iam de Aodh MacLennan (que passava mais tempo conosco do
que com sua própria família – "Por que ele se daria ao trabalho
de bater, Sassenach?") ao pastor Gottfried – um forasteiro, com
vinte para um, já que vivia em Salem. No amanhecer, Jamie
puxou o ferrolho e saiu para cuidar dos animais, mas agora
estávamos terminando nossa refeição do meio-dia e nenhum
passo estranho havia se aventurado ainda na nossa soleira virgem.

370
É meio estranho que numa região selvagem, onde panteras podem passear ao lado da latrina, eles
viveram quatro meses sem porta na casa.
772

Eu estava examinando as profundezas do meu caldeirão para ver


quanta sopa restava, reprimindo a vontade de declamar o discurso
das bruxas de Macbeth – em grande parte porque não conseguia
me lembrar de mais nada além de dobrem, dobrem, problema e
confusão, com escassas lembranças adicionais de olhos de
salamandra e dedos dos pés de sapo – quando de repente um bam-
bam-bam medido ecoou pela casa.
"Eee!" Orrie saltou – derramando sua sopa – mas Aidan, Rob e
Fanny foram todos mais rápidos e chegaram ao corredor
empatados, discutindo sobre quem deveria atender a porta.
"Olhem só as maneiras de vocês, seus pequenos gomerels371",
Jamie disse suavemente, vindo por trás deles. Ele agarrou os dois
meninos pelos ombros e os empurrou para o lado. "E você
também, Frances, o que está pensando, empurrando e lutando
com os rapazes?" Fanny corou e cedeu, dando-lhe a honra de
atender sua própria porta.
Eu saí para o corredor, curiosa para ver quem era o nosso
interlocutor. Jamie era tão alto que eu não conseguia ver além
dele, mas o ouvi cumprimentar quem quer que fosse em gaélico,
com um título honorífico formal. Ele parecia surpreso.
Eu também fiquei surpresa quando ele recuou e gesticulou para
Hiram Crombie entrar no corredor.
Hiram morava na extremidade oeste da escarpa, bem abaixo na
encosta, e geralmente se aventurava para longe de seu próprio
pedaço na floresta apenas para ir à igreja em um domingo. Eu não
achava que ele já tinha vindo para a casa antes.
Homem magro e de aparência severa, ele era o chefe de fato da
vila de pescadores que emigrou, em massa, do extremo norte
perto de Thurso, para se estabelecer na Cordilheira. Procurei por
Roger automaticamente por cima do ombro; os pescadores eram
371
Um tolo, uma pessoa estúpida. Em scots.
773

todos presbiterianos inflexíveis, que tendiam a se manter


isolados; Roger era provavelmente a única pessoa na casa que
poderia ser considerada como tendo relações verdadeiramente
cordiais com Hiram – embora o sr. Crombie pelo menos falasse
comigo, após os eventos em torno do funeral de sua sogra. 372
Roger estava longe, no entanto. E parecia que, de fato, Hiram
tinha outras coisas além da religião em mente.
Ele tirou o chapéu – seu chapéu bom, eu vi – quando ele entrou e
me deu um pequeno aceno de reconhecimento, em seguida,
lançou um olhar para o grupo de crianças, piscou sem mudar de
expressão e se virou para Jamie.
"Uma palavra com você, a mhaighstir373?"
"Oh. Sim, claro, sr. Crombie." Ele deu um passo para trás e
gesticulou em direção à porta de seu escritório – conhecida por
todos como a sala de dar uma palavrinha. Ele encontrou meus
olhos enquanto seguia Hiram para o escritório, e encolheu os
ombros com os olhos arregalados em resposta ao meu olhar
questionador. Inferno se eu sei, dizia.

ENXOTEI AS CRIANÇAS para o riacho em busca de lagostins,


sanguessugas, agriões e qualquer outra coisa que parecesse útil e
me retirei para meu consultório, aproveitando o raro momento de
lazer para divagar pelas páginas do meu precioso novo Manual
Merck, mantendo um ouvido atento para o caso de Jamie querer
algo para Hiram.
Um dos equipamentos incomuns do meu novo consultório era
uma cadeira de balanço com assento de palhinha. Jamie tinha
feito para mim – à noite, ao longo de um período de meses – de

372
Livro 6 cap 39
373
Ó Mestre, um título de respeito ao senhor das terras e da casa. Em gaélico.
774

madeira de freixo, as pranchas arqueadas do balanço feitas de


madeira de bordo-de-rocha e o assento feito por Graham Harris,
o especialista local. Jamie me garantiu que a cadeira duraria mais
que eu e qualquer das várias gerações subsequentes, sendo o
bordo-de-rocha assim chamado porque era duro como pedra. A
cadeira era extremamente útil para acalmar bebês ou crianças
pequenas, agitadas e que se contorciam, que eu queria examinar
– e igualmente útil para acalmar minha própria mente quando eu
tinha que fugir do estresse da vida diária, a fim de evitar
estrangular as pessoas.
No momento, porém, eu estava satisfeita com a mente e o corpo,
e absorta em descobrir qual poderia ser o tratamento moderno
para a cistite intersticial374.

Ajuste de estilo de vida

Até 90% dos pacientes melhoram com o tratamento, mas a


cura é rara. O tratamento deve envolver o incentivo à
conscientização e prevenção de fatores desencadeantes,
como tabaco, álcool, alimentos com alto teor de potássio e
alimentos condimentados.
Terapias medicamentosas ...

Certo, não havia nada que eu pudesse realmente fazer com grande
parte das informações – ninguém na Cordilheira comia comida
muito condimentada para começar, mas minhas chances de
convencê-los a parar de usar tabaco, álcool ou passas eram
baixas. Quanto às drogas, a única substância aplicável que eu
374
Também conhecida como Síndrome da bexiga dolorosa. È uma doença crônica e dolorosa que afeta a
bexiga. Muitas vezes, é confundida com uma infecção do trato urinário (ITU), mas não há nenhuma
infecção. Alem da dor ou pressão pélvica e na bexiga, causa uma vontade frequente de urinar. Ainda hoje
é uma doença difícil de tratar.
775

tinha era meu confiável chá de casca de salgueiro. Além da


curiosidade, porém, havia de alguma forma um grande conforto
no senso de autoridade do livro; a sensação de que havia alguém
– muitos alguéns – que abriram um caminho para mim. Eu não
estava completamente sozinha na luta diária entre a vida e a
morte.
Senti essa certeza pela primeira vez quando eu, uma enfermeira
novata, recebi uma cópia do Manual para as Tropas Sanitárias,
do Exército dos EUA, de um médico ianque que conheci durante
meu primeiro posto durante a guerra. Minha guerra, como sempre
pensei nela.
É assim que os ianques nos chamavam – o apoio médico alistado
– as tropas sanitárias. Depois da primeira semana em um hospital
de campanha, eu queria rir (quando não estava chorando com a
cabeça debaixo do travesseiro) com o nome, mas não estava
errado. Estávamos lutando com tudo o que tínhamos, e a limpeza
não era a menor de nossas ferramentas.
E agora não era a menor das minhas.
A quantidade de água necessária ao homem médio
diariamente para beber varia de acordo com a
quantidade de exercícios que ele faz e a
temperatura da atmosfera; uma média razoável é
de um litro e meio a dois litros, além do que ele
ingere na comida. Durante a marcha, a
quantidade é limitada pela capacidade do cantil –
cerca de um litro –, e essa quantidade deve ser
economizada com muito cuidado.
Diz-se que uma água é potável quando é adequada
para beber. Uma água potável é uma água não
contaminada; por mais límpida, brilhante e
cintilante que seja uma água, ela não é potável se
776

estiver situada de maneira que possa ser


contaminada por matéria fecal, urina ou
drenagem de terras adubadas. É um erro muito
comum que toda a água de nascente seja pura;
muitas nascentes, especialmente aquelas que não
fluem constantemente, retiram sua água de fontes
superficiais.

Eu deveria copiar isso no meu próprio livro de casos, pensei,


olhando para o grande livro preto na prateleira acima dos potes
de sanguessugas. Era um pensamento reconfortante que algum
dia aquele livro de casos também pudesse dar um senso de
autoridade para outro médico, munindo-o com o dom de minha
própria experiência, meu próprio conhecimento.
Virei as páginas do Merck lentamente e parei, meus olhos
capturados pelo título Malária. Havia algo novo no tratamento da
malária? Eu tinha visto Lizzie Beardsley duas semanas atrás, e
ela me garantiu que tinha tomado a casca de jesuíta que a Sra.
Cunningham tinha me dado... mas ela estava pálida e suas mãos
tremiam quando ela trocou a fralda do pequeno Hubertus, e
quando eu a pressionei, ela admitiu se sentir "um pouco tonta, de
vez em quando".
"Não é de se admirar", murmurei para mim mesma. O mais velho
de seus quatro filhos não tinha completado cinco anos, e enquanto
um dos meninos Beardsley – bem, um de seus maridos, por que
não ser franca sobre isso? – geralmente estava em casa para fazer
as tarefas externas enquanto o outro caçava ou pescava ou
verificava as linhas de armadilhas, Lizzie fazia praticamente todo
o trabalho doméstico pesado, sozinha, enquanto amamentava um
novo bebê e alimentava e cuidava dos outros.
"O suficiente para deixar qualquer um tonto", eu disse em voz
777

alta. Estar na cabana de Beardsley por mais de alguns minutos me


deixava tonta.
Eu podia ouvir ruídos, vozes no corredor. O sr. Crombie tinha
feito seu negócio com Jamie, então. Eles pareciam cordiais o
suficiente...
Quem iria ler meus escritos? eu me perguntei. Não apenas o livro
de casos, mas o pequeno livro de medicina doméstica que eu
havia publicado em Edimburgo dois anos atrás? Nele havia uma
série de comentários úteis sobre a importância de lavar as mãos e
cozinhar bem a comida – mas o livro de casos tinha coisas mais
valiosas: minhas anotações sobre a produção de penicilina (por
mais rudes que meus esforços fossem), desenhos de bactérias e
micro-organismos patogênicos com uma breve exegese sobre a
Teoria dos Germes, a administração de éter como um anestésico
(em vez de um remédio aplicado internamente para enjoo, seu
principal uso no momento), e ...
"Oh, aí está você, Sassenach." A cabeça de Jamie apareceu no
consultório, com uma expressão que me fez fechar o Merck
abruptamente e sentar ereta.
"O que diabos aconteceu?", eu disse. "Há algo de errado com um
dos Crombie?", eu estava fazendo um rápido inventário mental
do meu kit de primeiros socorros quando me pus de pé, mas Jamie
negou com a cabeça. Ele entrou e fechou a porta com cuidado
atrás de si.
"Os Crombie estão prosperando", ele me assegurou. "Assim
como todos os Wilson e os Baikie. E os Greig também."
"Oh, bom." Afundei de volta na minha cadeira de balanço. "O
que Hiram queria, então?"
"Bem", disse ele, com uma retomada da expressão estranha,
"Frances."
778

-.-.-

"ELA TEM DOZE anos, pelo amor de Deus!", eu disse. "O que
você quer dizer com ele quer permissão para seu irmão cortejá-
la? Que irmão, por falar nisso? Não achei que ele tivesse um."
“Oh, sim. Meio-irmão, eu deveria ter dito. Cyrus. O mais alto que
parece um talo de cevada semeado. Eles o chamam de 'Chraobh
Ard375. Você não tem nada para beber aqui, Sassenach? "
"Aquilo ali – eu disse, apontando para uma garrafa preta com uma
caveira e ossos cruzados ameaçadores marcados com giz branco.
"É gin de ruibarbo. A 'Chraobh Ard?" Eu sorri, apesar da
situação. O jovem em questão – e ele era muito jovem; eu não
acho que ele mesmo poderia ter mais de quinze anos – era
realmente muito alto; ele ultrapassava Jamie por uns quatro ou
cinco centímetros – mas esguio como um rebento de salgueiro.
"O que Hiram pode estar pensando? ", eu perguntei. "O irmão
dele certamente não tem idade para se casar com ninguém,
mesmo que Fanny tivesse, o que ela não tem."
"Sim." Ele pegou uma xícara do balcão, olhou desconfiado e
cheirou-a antes de colocá-la na mesa e despejar uma dose de gim
nela. "Ele admite isso. Ele diz que Cyrus viu a moça na kirk e
gostaria de fazer uma visita – de uma forma oficial, entendeu? –,
mas Hiram não quer que sua atenção seja mal interpretada ou
tomada por desrespeito."
"Oh, sim?" Levantei-me e servi um pouco de gim para mim.
Tinha uma fragrância adorável para combinar com seu sabor –
doce, mas com um toque ácido. "O que ele realmente tem em
mente?"
Jamie sorriu para mim e bateu a borda de sua xícara de madeira

375
Árvore Alta, em gaélico.
779

na minha. "A milícia. Outras coisas também, mas principalmente


isso. "
Isso foi uma surpresa. Embora Hiram fosse, como todos os outros
pescadores que conheci, duro como um prego, nunca o vi ou
qualquer outro homem de Thurso pegando em armas, além de
ocasionalmente jogos de tiro. Quanto a andar a cavalo... "Veja, o
capitão Cunningham tem pregado sobre a guerra novamente, e
ele está deixando Hiram inquieto."
"Ele tem, de fato?" Com uma coisa e outra, eu não tinha ido aos
serviços religiosos do capitão aos domingos ultimamente. Mas eu
sabia que ele era um legalista – e havia aquele homem,
Partland,376 que tentou trazer rifles para ele. "Você acha que ele
está planejando formar sua própria milícia? Aqui?" Isso seria
mais do que estranho.
"Acho que não", disse Jamie lentamente, franzindo a testa para o
gim. "O capitão tem seus limites, mas acho que ele é sábio o
suficiente para saber que os tem. Mas seus amigos... Granger e
Partland. Se eles tivessem em mente criar uma unidade de milícia
legalista – e eles têm – ele provavelmente os apoiaria. Pregando
à sua congregação sobre isso, quero dizer, e incentivando os
homens adequados a comparecerem."
Era estranho, pensei, que enquanto o uísque aquecia o corpo, o
gim parecia esfriá-lo. Ou talvez fosse a conversa sobre milícias
que estava me dando uma sensação de frio na nuca.
"Mas com certeza Hiram não vai ouvir o capitão Cunningham,
vai? Quer dizer, o capitão não é propriamente um papista, mas do
ponto de vista de Hiram, os metodistas provavelmente não são
muito melhores."
"Verdade." Jamie lambeu o canto da boca. "E eu duvido que ele

376
Enquanto Partland realmente veio visitar Cunningham, só sabemos mesmo dos rifles que Felix
Summers trouxe.
780

próprio tenha ouvido muitos dos sermões de Cunningham. Mas


algumas pessoas de Thurso sim, é claro."
"Para entretenimento?" Eu sorri. Embora Roger e o capitão
tivessem congregações pequenas, mas dedicadas, não eram
poucos os habitantes que vinham ouvir qualquer pessoa disposta
a se levantar e falar, e que assistiam a todos os cultos de domingo,
incluindo as reuniões de Rachel, posteriormente comparando as
opiniões críticas das observações de cada pregador.
"Sim, principalmente. O capitão não é tão bom quanto um show
de Punch-and-Judy377 - ou mesmo tão bom quanto Roger Mac –
mas ele é algo para se ouvir e falar. E os primos de Hiram estão
conversando. Ele não gosta disso."
"E então... ele quer que seu meio-irmão corteje Fanny?" Eu
balancei minha cabeça, de um lado para o outro. Mesmo com o
drinque de gim de ruibarbo na minha barriga, eu não via a
conexão.
"Bem, não é realmente sobre Frances, sabe." Ele pegou a garrafa
de gim e cheirou-a pensativamente. "Ruibarbo, você diz. Se eu
beber mais disso, vai me fazer correr para a latrina?378"
“Eu não sei. Experimente e descubra", eu o aconselhei,
estendendo minha própria xícara para mais. "Então, do que se
trata e por que Fanny está envolvida?"
"Bem, é um vínculo – não formal, é claro – mas uma ligação entre
Hiram e eu. Ele vê muito bem para onde as coisas estão indo, e
será mais fácil, quando chegar a hora, para ele ir comigo e trazer
alguns de seus homens junto, se houver um... sentimento
amigável entre as famílias, sim?"
"Jesus H. Roosevelt Cristo." Levei um minuto para contemplar

377
Personagens do teatro de marionetes que tem origem na Commedia Dell'Arte italiana. No teatro de
rua na Inglaterra, frequentemente fazia parceria em suas trapalhadas com sua esposa Judy. Jamie assiste
a um espetáculo desses em Prisioneiro.
378
O chá de ruibarbo é um dos chás laxantes recomendados pela medicina natural...
781

isso. "Você não pode realmente estar pensando em casar Fanny


com os Crombie! Pode ser uma guerra, mas não é a maldita
Guerra das Rosas379, com casamentos dinásticos à direita e à
esquerda. Quer dizer, eu odiaria ver você acabar dentro de um
barril de vinho Madeira Malvasia, como o duque de Clarence, ou
com um atiçador em brasa na bunda.380"
Isso o fez rir, e o nó que se formou sob o gim no meu estômago
relaxou um pouco.
"Ainda não, Sassenach. Não, e não vou deixar Cyrus incomodar
Fanny – nem mesmo falar com ela formalmente, se ela não gostar
da ideia. Mas se a moça não se importa que ele a visite – e ele é
um rapaz de temperamento doce – então... sim, pode ajudar
Hiram quando eu precisar pedir a ele para cavalgar comigo e
trazer seus homens."
Tentei imaginar Hiram Crombie cavalgando para a batalha ao
lado de Jamie e, surpreendentemente, não achei tão rebuscado.
Exclua a parte de equitação ... o pessoal de Thurso obviamente
tinha uma mula ocasional ou um cavalo magro para transporte,
mas no geral, eles desconfiavam profundamente de cavalos e
preferiam andar. Eu suponho que eles poderiam ser a Infantaria...
"Mas não quero que Frances fique ansiosa", disse ele. "Eu vou
falar com ela – e você também deveria, como mulheres, ken?"
"Como mulheres, com certeza", eu murmurei. Mas ele estava
certo. Fanny sabia muito, muito mais sobre os riscos de ser
mulher do que a média das garotas de 12 anos de idade, e embora

379
A Guerra das Rosas ou Guerra das Duas Rosas foi uma série de lutas dinásticas pelo trono da
Inglaterra, ocorridas de, ao longo de trinta e dois anos (1455 a 1487) de forma intermitente, durante os
reinados de Henrique VI, Eduardo IV e Ricardo III, na Inglaterra.
380
George Plantagenet, duque de Clarence (1449 – 1478) foi condenado à morte por traição ao rei. Como
tinha fama de beberrão, foi afogado num barril do seu vinho favorito. A outra morte terrível, ser
empalado com um atiçador em brasa, ocorreu com um rei inglês: Edward II (1307 - 1327), que foi
forçado a abdicar, preso, torturado, sufocado e teria sido empalado por fim – esta última tortura é
contestada por historiadores atualmente, que defendem que, na verdade, ele foi sim empalado, mas
quando já estaria morto.
782

eu duvidasse que Cyrus fosse qualquer tipo de ameaça para ela,


devia tranquilizá-la de que ela teria todo o direito de recusar a
proposta.
"Tudo bem", eu disse, ainda um pouco relutante. "Você sabe
alguma coisa sobre Cyrus, além de ele ser alto?"
"Hiram falou bem do rapaz. Vindo dele, eu acho que foi um
elogio muito grande."
"O que ele disse?"
Jamie jogou fora o resto do gim, arrotou levemente e pousou a
xícara.
"Ele diz que Cyrus pensa como um peixe."
-.-.-

PARA MINHA SURPRESA, Fanny não se mostrou avessa a


uma visita mais formal de Cyrus, quando abordei
cuidadosamente o assunto com ela.
"Ele realmente não fala inglês, no entanto ", ela disse
pensativamente. "Muitas pessoas naquela extremidade da encosta
não falam, Germain me disse."
Germain estava certo; muitos pescadores falavam apenas gaélico;
essa foi uma das razões pelas quais eles permaneceram como um
grupo unido, um tanto separado dos outros residentes da
Cordilheira.
"Estou aprendendo o Gàidhlig", ela me assegurou, pronunciando-
o corretamente. "E suponho que aprenderia mais com Cyrus."
"Por quê?", eu perguntei, bastante surpresa. "Quero dizer, o que
faz você querer aprender gaélico?"
Ela corou um pouco, mas não desviou o olhar ou o voltou para
baixo. Essa forte sensação de autodomínio era uma das coisas que
783

às vezes fazia Fanny ser um pouco enervante.


"Eu os ouvi cantando", disse ela. "Na igreja, com Roger Mac.
Alguns dos Wilson e o sr. Greig e seu irmão desceram para ouvi-
lo pregar – acho que você já tinha saído naquele dia, então não os
ouviu – mas depois do sermão, Roger Mac perguntou ao Sr. Greig
se ele sabia..." Ela balançou a cabeça, de um lado para o outro.
"Não consigo nem dizer o nome, mas era uma música em gaélico,
e eles cantaram, todos eles, e estavam batendo as mãos nos
bancos como tambores e – toda a igreja... estava..." Ela olhou para
mim, incapaz de explicar, mas eu podia ver a luz em seu rosto.
"Viva."
"Oh", eu disse. "Lamento ter perdido isso."
"Se Cyrus vier me visitar, talvez alguns de sua família desçam e
cantem de novo", disse ela. "Além disso", ela acrescentou, uma
leve sombra cruzando seu rosto, "com Germain e Jemmy fora,
Cyrus será alguém com quem conversar, quer ele me entenda ou
não."
-.-.-

A MENÇÃO A Germain me deixou um pouco desconfiada e fui


procurar Jamie, que estava consertando a parede do celeiro onde
Clarence, em um acesso de raiva, escoiceou e quebrou uma das
tábuas.
"Você acha que deveria falar com Hiram antes que Cyrus
chegue?", eu disse. "Quero dizer, naturalmente, não queremos
contar a ninguém sobre... de onde Fanny veio. Mas se Cyrus
fizesse algum, hum, movimento inapropriado em direção a ela...
ela poderia se sentir obrigada a responder?"
Ele sentou-se nos calcanhares para me ouvir e, com isso, riu e se
aprumou, sacudindo a cabeça.
784

"Não se preocupe, Sassenach", ele disse. "Ele não vai encostar


um dedo na moça, ou Hiram vai quebrar seu pescoço, e Hiram
vai ter avisado isso a ele."
"Bem, isso é reconfortante. Você acha que talvez você devesse
também dar um aviso a ele? Como loco parentis de Fanny, quero
dizer?"
"Locum381", disse ele, "e não. Vou apenas dar-lhe as boas-vindas
e aterrorizá-lo com a minha presença. Ele não ousará respirar
nela, Sassenach."
"Tudo bem", eu disse, ainda um pouco em dúvida. "Acho que ela
acreditou em nós – acreditou em você – quando dissemos que não
esperávamos que ela se tornasse uma prostituta, mas... ela passou
metade de sua vida em um bordel, Jamie. Mesmo que ela não
estivesse... participando, sua irmã estava, e Fanny certamente
sabia de tudo o que estava acontecendo. Esse tipo de experiência
deixa uma marca."
Ele fez uma pausa, a cabeça baixa, olhando para o chão, onde
uma pequena pilha de marcas de cascos de mula frescas marcava
o humor de Clarence.
"Você me curou de algo muito pior, Sassenach", disse ele, e tocou
minha mão suavemente. Ele me tocou com a mão direita, a
mutilada.
"Eu não fiz isso", protestei. "Você mesmo se curou – você
precisava. Tudo que eu fiz foi... hã..."
"Drogar-me com ópio e fornicar comigo até me trazer de volta à
vida? Sim, isso."
"Não foi fornicação", eu disse, bastante afetada – embora minha
mão tenha se virado, meus dedos se enlaçando com força nos
dele. "Nós éramos casados."

381
Locum parentis é uma expressão em latim que significa no lugar dos pais, assumindo o papel dos pais.
785

"Sim, éramos", ele disse, e sua boca se apertou, assim como sua
mão apertou mais a minha. "Não era só você que eu estava
fodendo, e você sabia disso tão bem quanto eu."
Se eu soubesse, não havia nada no mundo que me faria admiti-lo,
muito menos discuti-lo, então eu deixei o assunto de lado.
"Mas admito que nenhum de nós poderia fazer o mesmo por
Frances. Talvez Cyrus consiga – não tocando nela." Ele beijou
minha mão, largou-a e se abaixou para pegar seu martelo.
-.-.-
É CLARO QUE eu já tinha visto Cyrus Crombie antes, na igreja,
mas além de um segundo olhar para sua altura, não o tinha
realmente notado. Jamie havia providenciado para que ele fosse
até a casa no final da semana com alguns primos, para ajudar na
estrutura do terceiro andar – e ser apresentado formalmente a
Fanny.
E foi assim que, dois dias depois, subi até o precário topo da casa,
onde o terceiro andar estava lentamente tomando forma em meio
ao estalar e bater de cordas, madeira e lona.
"Estou surpresa que você não esteja enjoado", eu disse,
encontrando Jamie fazendo medições ao longo de uma borda da
plataforma elevada que um dia seria um sótão, e fazendo marcas
de giz que provavelmente eram menos aleatórias do que
pareciam.
"Eu provavelmente estaria, se eu pensasse sobre isso", ele disse
distraído. "O que a traz aqui, Sassenach? É cedo para o jantar."
"Verdade. Mas eu trouxe comida para você”. Enfiei a mão no
bolso e tirei um pãozinho recheado com queijo e picles. "Você
precisa comer mais. Eu posso ver todas as suas costelas",
acrescentei com desaprovação.
Eu realmente podia; ele havia tirado a camisa para trabalhar, e as
786

sombras de suas costelas apareciam claramente em suas costas,


sob a rede desbotada de suas cicatrizes.
Ele apenas sorriu para mim, mas se levantou e pegou o pãozinho,
dando uma grande mordida no mesmo movimento.
"Taing", disse ele, engolindo, e acenou com a cabeça para o ar
atrás de mim. "Ali está ele."
Eu me virei para olhar. Era mesmo Cyrus Crombie que estava
vindo pelo caminho atrás da casa. Árvore Alta, com certeza. Ele
tinha uma explosão de cachos castanhos claros que caíam sobre
seus ombros e uma expressão apreensiva.
"Não deveriam vir mais alguns dos Crombie também?", eu
perguntei.
"Sim, eles vêm. Eu imagino que ele veio um pouquinho mais
cedo, a fim de ter uma palavra – bem, não muito particular, mas
sem Hiram respirando em seu pescoço – com Fanny. Corajoso da
parte dele", ele acrescentou com aprovação.
"Devo descer? Para servir como dama de companhia?", eu
perguntei, observando o menino. Ele parou perto do poço e tirou
um rolo de pano da bolsa em seu cinto.
"Não, Sassenach. Eu disse a minha irmã o que estava
acontecendo; ela vai ficar de olho neles sem assustar Cyrus."
"Você acha que eu assustaria?"
Ele riu e colocou o último pedaço do pãozinho na boca, mastigou
e engoliu. Senti uma lufada de piccalilli382 e queijo, e meu próprio
estômago gorgolejou em antecipação.
"Eu acho. Você não sabe que todo o povo pescador ainda pensa
que você é o arquétipo de uma bruxa, senão de uma completa

382
Tipo de picles em que diversos vegetais, que variam conforme a região (pepino, cenoura, pimentão,
vagem, couve-flor, cebola-pérola, tomates verdes...) são conservados em uma base de vinagre com açúcar
e especiarias, das quais não pode faltar sementes de mostarda e de coentro.
787

bean-sithe383? Até Hiram faz o sinal de chifres contra o mal


escondido quando se aproxima de você."
Eu não tinha certeza de como me sentia sobre isso. Era verdade
que eu inadvertidamente ressuscitara384 a sogra de Hiram dos
mortos em seu funeral; embora ela tivesse morrido de forma mais
permanente alguns minutos depois, ela teve tempo de denunciar
Hiram por não pagar por um funeral suficientemente luxuoso –
mas eu pensei que o efeito já poderia ter passado.
"Quem foi que tentou construir uma torre para o céu e não deu
certo?", eu perguntei, descartando a questão da minha imagem
pública por enquanto e olhando para a borda da plataforma.
"Os homens de Babel", disse ele, procurando no bolso um pedaço
de papel e um lápis. "Eu não acho que eles estavam esperando
companhia, entretanto. Apenas se exibindo para se sentirem em
vantagem. Esse tipo de coisa sempre coloca você em apuros."
"Se tivermos companhia suficiente para justificar isso" – acenei
para a longa extensão de piso áspero – "já estaremos em apuros."
Ele fez uma pausa e olhou para mim. Ele estava magro e exausto,
sua pele avermelhada e queimada nos antebraços e ombros,
mechas de cabelo ruivo voando com o vento e seus olhos muito
azuis.
"Sim", ele disse suavemente. "Nós estaremos."
O gorgolejo no meu estômago mudou ligeiramente de tom. O
terceiro andar deveria ser um sótão – em parte, para
armazenamento ou para fornecer quartos para uma governanta,
caso eu encontrasse uma novamente – mas também para fornecer
um local de refúgio para inquilinos que pudessem precisar. Em
383
A autora usou uma grafia ligeiramente diferente da usada no cap 16, talvez para reforçar o modo de
falar peculiar que os habitantes de Thurso possam ter. Essa cidade é a mais ao norte da ilha britânica e a
proximidade das línguas nórdicas altera ligeiramente o modo de falar.
384
Na verdade, a Sra Wilson ainda não estava morta. Foi Jem que percebeu algo e mostrou para Claire.
Como ela voltou a se mexer e falar na presença de Claire... ela levou a fama de tê-la ressuscitado.
788

caso…
A atenção de Jamie mudou, no entanto, e ele estava esticando o
pescoço para olhar para a borda. Ele acenou para mim e eu fui até
ele.
Abaixo, Cyrus Crombie abriu o rolo de tecido e colocou suas
ferramentas – macete, formão e faca – na borda do poço. Ele
puxou o balde e agora mergulhou os dedos na água e borrifou nas
ferramentas.
Eu podia ver que ele estava dizendo algo, mas ele não estava
falando alto, e eu não conseguia ouvir acima do gemido do vento.
"Ele está abençoando suas ferramentas?", eu perguntei, olhando
para Jamie, que assentiu.
"Sim, claro." Ele parecia satisfeito. "Os presbiterianos podem ser
hereges, Sassenach, mas eles ainda acreditam em Deus. É melhor
eu descer agora e dar as boas-vindas a ele."
789

54

NASCER DA LUA

ACORDEI ASSUSTADA DE UM SONO SÓLIDO com Jamie


explodindo da cama ao meu lado. Esta não era uma ocorrência
incomum, mas como de costume, me deixou sentada totalmente
ereta entre as colchas, com a boca seca e completamente
atordoada, o coração martelando como uma furadeira.
Ele já estava descendo as escadas; eu ouvi a batida de seus pés
descalços nos últimos degraus – e acima desse som, batidas
frenéticas na porta da frente. Eu sacudi minha cabeça
violentamente e tirei as cobertas. Ele ou eu? foi o primeiro
pensamento coerente que se formou a partir da névoa flutuando
em meu cérebro. Alarmes noturnos como esse podem ser notícias
de violência ou desventura e, às vezes, de uma natureza que exige
todas as mãos, como um incêndio em uma casa ou alguém que se
encontrou inesperadamente com uma pantera caçadora em uma
nascente. Mais frequentemente, no entanto…
Eu ouvi a voz de Jamie e o pânico me deixou. Era baixa,
questionadora, com uma cadência que significava que ele estava
acalmando alguém. Alguém estava falando, numa agitação
estridente, mas não era o som de um desastre.
Eu, então. Parto ou acidente? Minha mente ressurgiu de repente
e estava funcionando claramente, mesmo enquanto meu corpo se
atrapalhava como barata tonta, tentando lembrar o que eu tinha
feito com minhas meias sujas. Provavelmente parto, no meio da
noite... Mas o pensamento inquietante de incêndio ainda
espreitava na borda dos meus pensamentos.
Havia um obituário com meu nome e o de Jamie, alegando que
790

morremos em um incêndio que consumiu nossa casa. A casa tinha


pegado fogo, e nós não, mas qualquer sinal de fogo arrepiava
meus cabelos.
Eu tinha uma imagem clara em minha mente do meu kit de
emergência e estava grata por ter pensado em reabastecê-lo pouco
antes do jantar. Estava pronto no canto da minha mesa no
consultório. Minha mente estava menos clara sobre outras coisas;
eu coloquei meu espartilho virado para trás. Eu os arranquei,
joguei-os na cama e fui espirrar água no rosto, pensando em
muitas coisas que eu não poderia dizer em voz alta, pois já ouvia
os pés de Fanny correndo pelo patamar.
Cheguei ao final da escada tardiamente, para encontrar Fanny
com Jamie, que estava conversando com uma menina que não
tinha muito mais do que a idade de Fanny, descalça, perturbada e
vestindo nada além do que uma camisola puída. Eu não a
reconheci.
"Ach, aqui está a Ela Mesma385 agora", disse Jamie, olhando por
cima do ombro. Ele colocou a mão no ombro da garota, como se
para impedi-la de voar. E parecia que ela poderia mesmo sair
voando: magra como uma vassoura, com cabelos loiros finos
como os de um bebê emaranhados pelo vento, e olhos passando
ansiosos em todas as direções em busca da ajuda possível.
"Esta é Agnes Cloudtree, Claire", disse ele, acenando com a
cabeça em direção à menina. "Frances, você pode encontrar um
xale ou algo para emprestar à moça, para que ela não congele?"
"Eu não preciso...", a garota começou, mas seus braços estavam
em volta dela e ela tremia tanto que suas palavras falharam.
"A mãe dela está grávida", Jamie a interrompeu, olhando para
mim. "E pode estar tendo um pouco de dificuldade com o

385
Versão feminina do nome com Jamie era conhecido (Himself) .
791

nascimento."
"N-não podemos p-pagar..."
"Não se preocupe com isso", eu disse, e, acenando para Jamie,
peguei-a em meus braços. Ela era pequena, ossuda e estava muito
fria, como um filhote mal coberto de penas caído de uma árvore.
"Vai ficar tudo bem", eu disse suavemente para ela, e alisei seu
cabelo. "Nós iremos até sua mãe imediatamente. Onde você
vive?"
Ela engoliu em seco e não olhou para cima, mas estava com tanto
frio que se agarrou a mim para se aquecer.
"Eu não sei. Quer dizer, não sei como dizer. Apenas... se você
puder vir comigo, eu posso levá-la de volta?" Ela não era
escocesa.
Eu olhei para Jamie em busca de informações – eu não tinha
ouvido falar dos Cloudtrees; deviam ser colonos recentes – mas
ele negou com a cabeça, uma sobrancelha levantada. Ele também
não os conhecia.
"Você veio a pé, moça?", ele perguntou, e quando ela assentiu
com a cabeça, perguntou: "O sol ainda estava no céu quando você
saiu de casa?"
Ela negou, dessa vez. "Não senhor. Estava bem escuro, todos nós
tínhamos ido para a cama. Então as dores da minha mãe vieram
de repente, e ..." Ela engoliu em seco novamente, lágrimas
brotando em seus olhos.
"E a lua?", Jamie perguntou, como se nada estivesse errado. "Ela
já tinha se erguido quando você saiu?"
Seu tom prático a acalmou um pouco, e ela respirou fundo,
engoliu em seco e assentiu com a cabeça.
"Bem erguida, senhor. Dois palmos acima da borda da terra."
792

"Que frase tão poética", eu disse, sorrindo para ela. Fanny viera
com meu velho xale de jardinagem – estava gasto e tinha buracos,
mas, para começar, fora feito de lã virgem e grossa. Tirei-o de
Fanny com um aceno de agradecimento e envolvi os ombros da
garota.
Jamie havia saído para a varanda, provavelmente para ver onde
agora estava a lua. Ele recuou e acenou com a cabeça para mim.
"A valente garotinha esteve lá fora sozinha durante a noite por
cerca de três horas, Sassenach. Senhorita Agnes, há uma trilha
decente que leva à casa de seu pai?"
Suas sobrancelhas suaves se franziram com a preocupação – ela
não tinha certeza do que "decente" poderia significar neste
contexto – mas ela acenou com a cabeça incerta.
"Há uma trilha", disse ela, olhando de Jamie para mim na
esperança de que isso pudesse ser o suficiente.
"Pegue Clarence", ele disse para mim, por cima da cabeça dela.
"A lua está brilhante o suficiente. Eu vou com você." E acho que
é melhor nos apressarmos, sua expressão acrescentou. Eu preferi
pensar que ele estava certo.

-.-.-

CLARENCE NÃO FICOU entusiasmado por ser arrancado do


sono, nem por carregar duas pessoas, mesmo que uma delas fosse
uma menina faminta. Ele continuou bufando e resfolegando
irascivelmente, andando devagar e soprando para fora do corpo
toda vez que eu tentava empurrá-lo com os calcanhares. Jamie
tinha saído com a enorme égua de Fanny, Miranda. Ela tinha um
temperamento impassível e amável e era forte o suficiente para
suportar seu peso. Ela também não ficou muito satisfeita com a
expedição noturna, mas caminhou gentilmente pelos bosques de
793

álamos e lariços, choupos e abetos, subindo a trilha íngreme e


estreita que levava ao topo da Cordilheira.
Clarence a seguiu em vez de ser deixado para trás, mas ele não
estava com pressa e eu continuava perdendo de vista a massa
sombria de cavalo e homem – e com eles, qualquer noção de onde
estava a trilha. Eu me perguntei como diabos a garota havia
encontrado seu caminho até nós através da escuridão e do
espinheiro; suas pernas e braços estavam arranhados e havia
folhas e agulhas de pinheiro em seus cabelos. Ela cheirava a
floresta.
A lua já estava bem alta no céu agora, um pedaço assimétrico e
manhoso de lua que tornava possível perceber aberturas
enganosas na floresta, sem realmente ser brilhante o suficiente
para ver qualquer coisa a mais de um metro de distância.
Eu tinha Agnes empoleirada na minha frente, a camisola dobrada
para cima e as pernas brancas como hastes de cogumelos
balançando na escuridão dos dois lados. Eu me perguntei se ela
havia saído de casa em pânico – ou se talvez a camisola suja fosse
sua única roupa. Cheirava levemente a gordura de cozinha e
repolho chamuscado.
"Fale sobre sua mãe, Agnes", falei, dando um forte chute nas
costelas de Clarence. Ele torceu as orelhas demonstrando seu
aborrecimento e eu desisti. Ele era um bom burro, mas não
deixava de derrubar um cavaleiro que o irritasse. "Quando –
como – as dores dela começaram?"
Ela estava um pouco menos assustada, agora que obtivera a ajuda
que procurava, e aos poucos foi ficando mais calma à medida que
respondia às minhas perguntas.
A sra. Cloudtree (havia um sr. Cloudtree na residência? Sim,
havia, embora seu corpo se enrijecesse quando ela o mencionou)
estava perto de sua hora (bom, não era um nascimento
794

prematuro), embora ela pensasse que poderia ser dali a outras


duas ou três semanas (talvez um pouco mais cedo, então... mas
mesmo assim, o bebê deve ter uma chance razoável ...).
No seu próprio nascimento, as dores de sua mãe surgiram por
volta do meio-dia, disse Agnes, e sua mãe não achou que
demoraria muito. Agnes chegou quatro horas depois do
rompimento da bolsa, e cada um de seus irmãos mais novos ainda
mais rápido. (Bom, a sra. Cloudtree era uma multigrávida. Mas,
nesse caso, ela deveria ter dado à luz com bastante rapidez e sem
complicações... e claramente ela não tinha ...)
Agnes não conseguia explicar qual era o problema, a não ser um
trabalho de parto mais longo que o normal. Mas ela sabia que
havia problemas e isso me interessou.
"Não é...", disse ela, puxando o velho xale com mais força em
volta dos ombros e virando a cabeça em um esforço para ver meu
rosto, me fazer entender. "Algo está diferente."
"Algo parece errado para você?", eu perguntei, interessada.
Ela balançou a cabeça em dúvida. "Eu não sei. Eu ajudei, da
última vez, quando Georgie nasceu. E eu estava lá quando Billy
veio… Eu era muito pequena para ajudar, mas dava para ver tudo.
Isso é apenas... diferente." Eu a ouvi engolir em seco e dei um
tapinha em seu ombro.
"Estaremos lá em breve", eu disse. Eu queria garantir a ela que
tudo ficaria bem, mas ela sabia o suficiente – ou não teria vindo
correndo no escuro em busca de ajuda. Eu só podia esperar que
nada irrecuperável tivesse acontecido na cabana dos Cloudtrees
nesse meio tempo.
Eu olhei para cima, procurando a lua. Eu nunca consegui mudar
meu senso de tempo para estrelas e planetas, em vez do relógio,
e então fui obrigada a estimar o tempo, ao invés de ter certeza
dele, como Jamie fazia. "A lua era um galeão fantasmagórico..."
795

passou pela minha cabeça. Pode ser, pensei, avistando-a


momentaneamente através de uma fenda no escuro, abetos
perfumados nos cercando. "E um salteador veio cavalgando ...
cavalgando...”386
Eu sabia tudo o que podia saber neste momento; era hora de parar
de pensar. Cada nascimento era diferente. E cada morte. O
pensamento falou por si mesmo dentro da minha mente antes que
eu pudesse impedi-lo, e um arrepio percorreu meu corpo.
Eu fiz algumas perguntas sobre a família de Agnes, mas ela havia
se recolhido em sua própria ansiedade e não estava disposta a
falar muito mais. Além da informação de que eles construíram
sua cabana atual no início do verão, obtive pouco conhecimento
dos Cloudtrees além de seus nomes: Aaron, Susannah, Agnes,
William e George.
No topo da Cordilheira, Jamie parou na orla do topo careca, como
o povo chamava os prados altos e sem árvores na crista da
montanha. Como de costume, havia um vento forte soprando lá
em cima, e o xale que eu havia puxado sobre minha cabeça foi
jogado para trás e meus cabelos com ele, chicoteando livres na
brisa. Jamie largou as rédeas de Miranda e ela imediatamente
abaixou a cabeça e começou a mastigar grama.
Jamie desmontou e veio pegar as rédeas de Clarence. Fora das
árvores agora, eu podia vê-lo claramente ao luar; ele estava
sorrindo para mim, olhando quando meus cabelos foram
levantados diretamente do meu couro cabeludo.
"Não levante voo ainda, Sassenach. Vou precisar da srta. Agnes
para nos guiar a partir daqui", disse ele, e estendeu a mão para
ela. "Você vem comigo, moça?"
Eu a senti enrijecer, mas depois de um momento de hesitação, ela
386
Versos do poema The Highwayman, de Alfred Noyes, publicado em Collected Poems, de 1947. O
poema, com belas e fantasmagóricas imagens, se justapondo e se contradizendo, pressagia morte.
796

acenou com a cabeça e deslizou de Clarence. Clarence


resmungou e se virou rapidamente, obviamente pensando que
agora que tínhamos nos livrado da garota, era hora de ir para casa.
"Pode reconsiderar isso", eu disse a ele, controlando sua cabeça
com força. Seguiu-se uma curta batalha de vontades, resolvida
por Miranda e seus cavaleiros partindo com a implacabilidade
lenta de um rolo compressor. Clarence bufou e zurrou atrás dela,
mas ela não se virou e, depois de um momento de raiva, ele
começou um trote de partir os dentes e mergulhou atrás dela.
Um quarto de hora depois, cruzamos a Linha Cherokee. Uma
chama branca, brevemente aparecendo ao luar, marcava uma das
árvores testemunhas387 que marcavam a Linha do Tratado.
A lua estava alta no céu e as árvores abertas o suficiente para eu
ver Jamie olhar para trás por cima do ombro. Eu levantei minha
mão em um pequeno aceno de reconhecimento; eu percebi. Um
nascimento prematuro pode não ser tudo que a família de Agnes
estava arriscando, estabelecendo-se em terras indígenas. Fiquei
feliz por Jamie ter insistido em vir; ele falava cherokee o
suficiente para se dar bem, se isso se tornasse necessário.
A viagem não demorou muito, mesmo Agnes precisando sair ao
ar livre de vez em quando para se orientar – ela sabia ler as
estrelas, disse ela com naturalidade – mas dentro de uma hora,
vimos o brilho fraco nas janelas de uma cabana, cobertas por pele
oleada.
Eu deslizei de Clarence e puxei a sacola que continha meu kit.
"Vou cuidar dos cavalos", disse Jamie, subindo para pegar as
rédeas de Clarence. "Você precisa se apressar, eu acho."

387
Uma árvore solitária em meio a uma paisagem remota ou totalmente aberta. Normalmente, uma
árvore-testemunha existe há muitas centenas de anos e é a única testemunha da história naquela área.
Algumas ganham placas ou outros sinais indicativos como marcação. Outros objetos que resistiram ao
tempo também podem ser a única testemunha em uma área; por exemplo, uma rocha testemunha,
uma abertura de caverna testemunha.
797

Agnes já estava na porta, tremulando como uma mariposa


frenética, e mesmo de onde estávamos, eu podia ouvir os ruídos
profundos e guturais de uma mulher em trabalho de parto.
A porta se abriu repentinamente para dentro e Agnes caiu sobre
a soleira. Uma figura alta e escura a colocou de pé e deu um tapa
em seu rosto.
"Onde diabos você esteve, garota!"
Os ouvidos de Clarence ergueram-se ao ouvir um som de tiro, e
quando isso foi sucedido imediatamente pelos gritos agudos de
crianças pequenas, ele se virou e saiu trotando para a floresta.
"Seu maldito idiota!", eu gritei com ele. "Volte aqui!"
"Ifrinn388!" Jamie passou por mim e correu atrás da mula,
economizando o resto de seu fôlego para a perseguição.
"Quem diabos é você?"
Virei-me para ver um jovem Cherokee parado na luz bruxuleante
da porta, olhando para mim. Ele estava encostado no batente da
porta, com seus cabelos compridos desgrenhados e sangue na
camisa.
Eu respirei fundo, endireitei minha coluna e caminhei até ele.
"Eu, senhor", disse eu, "sou a parteira. Por favor, vá sentar-se."
Não esperei para ver se ele obedecia a essa liminar. Eu tinha
trabalho a fazer.
Minha paciente estava sentada em uma cadeira de parto
toscamente feita perto da lareira, tombada para a frente, os braços
balançando e os cabelos loiro-escuros quase pretos na raiz pelo
suor, as pontas pingando sobre sua barriga imensa. Dois meninos,
de talvez cinco e três anos, agarravam-se a uma de suas pernas,
uivando. Suas pernas e pés estavam muito inchados.

388
Inferno, em gaélico.
798

"Venha aqui, Billy." Agnes, com o rosto pálido, exceto pela


impressão da palma escarlate em sua bochecha, e sua voz não
mais do que um guincho, pegou o maior dos meninos pelo
colarinho e puxou-o para longe. "Georgie, você vem também –
venha, eu disse!" O medo em sua voz os mexeu, e eles se viraram
e se agarraram a ela, choramingando. Agnes olhou para mim,
seus olhos enormes em um apelo mudo.
"Vai ficar tudo bem", eu disse a ela, suavemente, e apertei seu
braço. "Cuide dos pequeninos. Eu vou cuidar da sua mãe."
Ajoelhei-me e olhei para o rosto da mulher. Um olho azul
injetado de sangue olhou para mim através do cabelo molhado e
embaraçado. Um olho vidrado de exaustão – mas ainda um olho
inteligente e consciente; ela me viu.
"Meu nome é Claire", eu disse, e coloquei a mão em sua barriga.
Ela usava uma camisola imunda, tão transparente de suor que seu
umbigo protuberante aparecia. "Eu sou parteira. Vou ajudar
você."
"Jesus", ela sussurrou, seja em oração ou de simples espanto, eu
não poderia dizer. Então seu rosto se contraiu em um nó e ela se
enrolou sobre a barriga com um ruído bestial.
Eu mantive minha mão sobre ela, mas me inclinei para o lado e
olhei para cima através da concavidade do banquinho de parto.
Uma fatia estreita da coroa clara apareceu por um instante
enquanto ela empurrava, então desapareceu.
Senti a onda de excitação que sempre vinha com o nascimento
iminente e minha mão apertou sua barriga. Outro surto veio, este
de medo repentino.
Algo estava errado. Eu não sabia dizer o quê, mas algo estava
muito errado. Endireitei-me e, quando a dor diminuiu, levantei-
me e peguei a mulher pelos ombros, ajudando-a a se sentar. Não
havia toalhas à mão. Eu levantei minha saia e limpei seu rosto
799

com minha anágua.


"Há quanto tempo você está empurrando?", eu perguntei.
"Muito tempo", ela disse laconicamente, e fez uma careta. Eu me
inclinei e olhei novamente, e sem sua sombra obstruindo a
situação, eu vi que ela estava completamente certa. O períneo
estava quase roxo e muito inchado. Era isso: a criança ficava
presa, o topo da cabeça batia a cada espasmo, mas não conseguia
ir mais longe.
"Jesus H. Roosevelt Cristo", eu disse, e seus olhos se arregalaram
de espanto. "Não importa", eu disse. "Quando ela aliviar", pois a
próxima dor estava chegando, eu podia ver em seu rosto,
"encoste-se na parede."
Seu marido – presumi que fosse o homem que dera um tapa em
Agnes – parecia ter saído e xingado a noite em uma mistura
incoerente de cherokee e inglês.
"Certo", eu disse, o mais calmamente possível, e tirei a capa e o
xale. "Vamos ver o que temos aqui, vamos, Susannah?"
Havia respingos de sangue no chão de terra, mas estava escuro,
com coágulos grandes e visíveis – apenas uma exibição de
sangue. Ela não estava com hemorragia, embora houvesse uma
mancha de sangue em suas coxas. A bolsa dela havia estourado
algum tempo antes; estava quente e a pequena sala cheirava a um
pântano jurássico, fecundo e fedorento.
As contrações vinham a cada minuto, fortes. Eu tive apenas
alguns momentos entre eles em que sua barriga relaxou o
suficiente para que eu pudesse palpar, mas na segunda tentativa
eu pensei ter sentido... os músculos de sua barriga se contraíram
como uma faixa de ferro, e contei baixinho, as mãos ainda sobre
ela. Relaxamento... eu sabia onde estava a cabeça, a criança
estaria virada para trás? Pressionei com força a barriga relaxada,
tentando encontrar a curva da coluna...
800

"Anhgg!"
"Vai ficar tudo bem. Conte comigo, Susannah... um, dois..."
"Arrrggh!"
Eu contei silenciosamente. Vinte e dois segundos e a contração
diminuiu. Espinha ... havia a ponta rombuda de um cotovelo e,
ali, uma curva que devia ser a espinha da criança... só que não
era.
"Maldito fodido inferno”, eu disse, e Susannah fez um barulho
que pode ter sido um gemido ou uma risada exausta. O resto da
minha atenção estava focado na coisa sob minha mão. Não era a
curva de uma coluna, nem ainda de nádegas. Era a curva de outra
cabeça.
Ela desapareceu com uma nova contração, mas eu mantive minha
mão obstinadamente no local, e assim que o espasmo diminuiu,
eu tateei freneticamente, de um lado para outro. Meu primeiro
pensamento de pânico – a memória de um bebê com duas
cabeças, visto em uma jarra de vinho – desapareceu, seguido por
algo que era em parte alívio, em parte novo alarme.
"São gêmeos", eu disse a Susannah. "Você sabia disso?"
Ela balançou a cabeça de um lado para o outro, lenta como um
boi. "Pensei... talvez. Tem certeza disso?"
"Oh, sim", eu disse, em um tom que a fez rir de novo, embora o
som tenha sido interrompido abruptamente pela próxima
contração.
O alívio causado pelo pensamento de que provavelmente não
estávamos lidando com uma deformidade grosseira foi
desaparecendo rapidamente, substituído pelo próximo
pensamento – se o primeiro bebê não estava se movendo, talvez
estivesse preso em um cordão umbilical, possivelmente morto ou
emaranhado com seu gêmeo de alguma forma.
801

Outras palpações, empurrando quando eu pensava que tinha uma


ideia do que estava empurrando, tateando em busca de uma
imagem mental do que poderia estar acontecendo lá dentro... mas
mesmo a melhor parteira só pode dizer isso, e a única coisa de
que eu estava razoavelmente certa era que a placenta – uma ou
duas? Se fosse uma, ela poderia se soltar com o primeiro parto e
então teríamos um descolamento que mataria a mãe – ainda não
havia se desprendido, embora dada a posição da cabeça do bebê,
poderia facilmente haver litros de sangue acumulados atrás da
criança... Não. Eu olhei para o rosto de Susannah. Não, se ela
estivesse com hemorragia, ela estaria branca e perdendo a
consciência. Mas ela estava vermelha e claramente ainda lutando.
Mas não tínhamos muito tempo. Dois cordões umbilicais,
qualquer um dos quais poderia ser enrolado em um pescoço, ou
escorregar entre a criança e os ossos pélvicos e ser esmagado com
uma contração, deixando uma criança sem oxigênio... e isso era
o menor dos...
Minha mente percorreu rapidamente a lista de problemas em
potencial – alguns eu poderia descartar com base no que eu podia
ver e sentir, alguns (como o leve horror de serem gêmeos
siameses) eu poderia descartar em razão de grandes
probabilidades contra; outros, com o fundamento de que eu não
poderia fazer nada a respeito deles, mesmo se soubesse o que
estava acontecendo. Isso ainda deixava alguns com que me
preocupar.
E a criança não se mexia. Ele estava vivo; eu podia sentir o pulso
quando coloquei meus dedos brevemente na cabeça. E estava
devidamente orientado, voltado para baixo; eu podia sentir as
suturas biparietais no crânio. Mas não estava se movendo!
Meus ombros doeram, assim como meus quadris e joelhos, de
tanto ficar ajoelhada no chão de terra, mas eu senti isso
vagamente, uma observação irrelevante. Eu coloquei uma das
802

mãos em sua vagina, a outra em sua barriga, sondando a parede


de pele e músculos, procurando algum padrão no emaranhado de
membros minúsculos. O suor de Susannah estava escorregadio e
quente sob minhas mãos – isso era bom, a umidade me ajudou a
sentir os movimentos... A contração veio com uma força que
esmagou meus dedos entre o crânio e a pélvis e fez Susannah
gritar e eu morder o lábio para não gritar.
Tal força, em uma mulher que já deu à luz três vezes, deveria ter
lançado o bebê como uma porca untada. Não tinha, e agora eu
tinha certeza do que estava errado.
"Os gêmeos estão emaranhados", eu disse, o mais calmamente
que pude. Pressionei sua barriga e senti o movimento – um dos
gêmeos, pelo menos, ainda estava vivo. Eu estava encharcada de
suor e minha boca estava seca. Alguém colocou um copo d'água
perto de mim; eu não tinha percebido. Eu o peguei e bebi, para
obter umidade suficiente para dizer o que tinha que ser dito a
seguir.
"Susannah", eu disse, inclinando-me para olhar em seus olhos.
"Os bebês não podem sair. Eu não consigo tirá-los. Se
continuarmos fazendo isso, eles vão morrer – e você pode morrer
também." Facilmente. Eu respirei fundo; sua mão desceu para
descansar na minha, em cima de sua barriga rígida.
"Espere", ela sussurrou, e apertou minha mão enquanto todos nós
passávamos pela próxima contração. Quando relaxou, ela estava
ofegante, mas apertou minha mão levemente e a soltou. "O que
mais?", ela disse, entre suspiros.
"Eu posso abrir você e tirar os bebês", eu disse. "Vai ser horrível
e doloroso, mas... "
"Não pode ser pior do que isso", disse ela, e então riu, rouca como
um corvo. Abaixei minha cabeça e descansei minha testa por um
momento contra sua barriga, controlando minhas próprias
803

emoções, me preparando. "Eu morrerei, então?", ela disse, sua


voz bastante natural.
"Muito provavelmente", eu disse, endireitando-me e combinando
com seu tom. Limpei a manga do rosto e afastei o cabelo solto
dos olhos. "Mas pode ser que isso salve os bebês. Eu farei o meu
melhor."
Ela acenou com a cabeça e agarrou meu ombro com força quando
a próxima contração veio.
"Salve-os", disse ela, assim que passou, e baixou a cabeça,
respirando como um cavalo sem fôlego.
A energia da emergência me inundou e me levantei, olhando em
volta da cabana pela primeira vez. Era minúscula e pouco
mobiliada, com uma armação de cama e um catre dobrado aos
pés. Uma mesa e bancos – e um caldeirão no fogo, fumegante,
graças a Deus. E para minha surpresa, Jamie, desenrolando
calmamente o embrulho que continha minhas facas cirúrgicas
sobre a mesa.
"De onde você veio?", eu disse. E acrescentei, olhando ao redor
da cabana: "Onde está o sr. Cloudtree?"

"Frio como uma truta morta", disse ele, acenando com a cabeça
em direção à porta entreaberta. "Bêbado, quero dizer." Eu peguei
um vislumbre de um pequeno rosto branco através da abertura –
Agnes, os olhos arregalados de medo. "Cuide de seus irmãos,
moça", ele disse calmamente para ela. "Vai ficar tudo bem."
Eu produzi algo que esperava ser um sorriso para Agnes e me
aproximei da mesa. Comecei a tirar coisas do meu kit o mais
rápido que pude.
"Você ouviu o que eu disse a ela?", eu perguntei, em voz baixa,
com um aceno de cabeça para a forma grunhida da sra. Cloudtree.
804

"Eu ouvi", disse ele, igualmente em voz baixa, "e também a


menina pequenina." Ele olhou para a porta; Agnes ainda estava
lá. Quando ela me viu olhando, ela entrou furtivamente.
"Os meninos estão dormindo com o pai no galpão", disse ela
apressada. "Eu posso ajudar, por favor, deixe-me ajudar!"
"Agnes?", disse Susannah fracamente, erguendo a cabeça. Antes
que eu pudesse dizer qualquer coisa, Agnes disparou para o lado
da mãe e a abraçou pelos ombros. As lágrimas escorriam por seu
rosto, mas ela dizia: "Vai ficar tudo bem, mãe, o sr. Fraser disse
isso."
Susannah ergueu um braço como se pesasse uma tonelada e
lentamente empurrou o cabelo encharcado para trás com o pulso
para fixar um olho em Jamie.
"Você disse isso, sr. ... Fraser?"
"Sim, eu disse", ele respondeu.
Ela ficou roxa e mordeu o lábio, respirando pesadamente pelo
nariz, a cabeça baixa. Quando a dor passou, ela a ergueu como se
fosse tão pesada quanto um grande caldeirão de ferro.
"Sua esposa disse... que eu vou morrer."
"Sim, bem, tenho mais fé nela do que ela tem, mas suponho que
é sua escolha em quem acreditar." Ele olhou para mim, as mãos
meias fechadas para a ação. "O que você quer fazer, Sassenach?"
"Ela precisa estar deitada." Minha mente estava tomada e o que
eu precisava já estava disposto no banco. "Você pode colocá-la
na cama? Rapidamente."
Susannah estava ofegante, de olhos fechados. Com isso, seus
olhos se abriram e ela se endireitou, segurando a barriga.
"Não a cama! Você não vai estragar meu colchão de penas bom!
Gaaaarrg!" Ela se dobrou como um camarão novamente. Agnes
respirava com tanta dificuldade que pensei que ela fosse
805

desmaiar, mas não havia tempo para me preocupar com isso.


"O chão, então", eu disse secamente. "Depressa. Afaste-se,
Agnes!"
Juntos, Jamie e eu, a levantamos, viramos e deitamos com o
máximo de cuidado que pudemos. Ela estava tremendamente
pesada, muito desajeitada e escorregadia de suor, entretanto, e
caiu na terra batida com um solavanco sólido, no qual ela soltou
um grito selvagem e Jamie disse algo muito blasfemo em gaélico.
"Maldito inferno", eu disse, baixinho, e pegando a garrafa de
álcool diluído, eu empurrei as dobras encharcadas de sua
camisola para cima e derramei sobre a barriga enorme, branca
como peixe e listrada com estrias vermelho-púrpura.
"Tudo bem", eu disse, e agarrei o mais pesado dos meus bisturis
cirúrgicos. "Jamie, segure-a – oh, você a pegou, ótimo."
Murmurando "Jesus, Maria e Santa Brígida, porra me ajudem..."
Eu coloquei a lâmina na base de seu umbigo.
Mas antes que eu pudesse fazer a incisão, ela gritou como se o
toque do metal frio tivesse sido um aguilhão de gado, puxou os
joelhos para cima, em seguida, cravou os calcanhares na terra,
arqueou as costas, desceu novamente e ...
"Que diabo é isso?", Jamie disse, tentando olhar por cima da
obstrução da barriga da sra. Cloudtree.
"É uma cabeça", eu disse. "Jesus H. Roosevelt Cristo. Empurre,
Susannah!"
Ela não esperou por instruções. Com um barulho feroz, ela
empurrou, e o bebê saiu disparado como um porco untado. Eu o
peguei – era ele? Sim, era – no meu avental. Limpei seu nariz e
boca com o polegar, virei-o e bati levemente em suas costas
molhadas. As minúsculas nádegas se apertaram em protesto,
relaxaram e soltaram um pequeno jato de matéria fecal escura,
806

mas ele estava fazendo ruídos regulares de bufar, parecendo


muito com sua mãe, embora não tão alto.
"Agnes!", eu gritei. Ela já estava colada em meu ombro quando
me virei e tirei meu avental, enrolei-o apressadamente em volta
do bebê e o coloquei em seus braços.
"Devo cortar o cordão, Sassenach?" Jamie estava agachado do
meu outro lado, a sgian dubh389 na mão.
"Sim", eu disse sem fôlego, e sem nem esperar que ele o fizesse,
enfiei minha mão no canal do parto, esperando por outra cabeça.
Não tive essa sorte. Membros por toda parte, na escuridão
apertada e escorregadia. Fechei os olhos para ver melhor 390,
tateando com urgência por um pé. Apenas um, eu orei. Apenas
um pé... E então uma contração poderosa veio, bem diferente,
como uma onda do mar rolando pelo corpo de Susannah, mas
devagar o suficiente para que eu conseguisse tirar minha mão do
caminho. E aí estava. Um pé minúsculo, os dedos dos pés flácidos
tingidos de um azul sobrenatural.
"Porra, porra, porra... " Eu percebi que estava murmurando coisas
sem sentido e apertei minha mandíbula com força. Eu sabia que
era tarde demais, não havia mais nada a fazer. Mais uma vez
estendi a mão, tateando no escuro, e desta vez encontrei o outro
pé sem problemas. Sem problemas porque o bebê não estava se
movendo.
Uma sensação de distância tomou conta de mim, fechei os olhos
e engoli em seco, sentindo a imobilidade sólida de um corpo
minúsculo entrar em minhas mãos. Eles chamam de natimorto
porque é. Não porque a criança está morta, mas porque tudo –
tudo – fica quieto. Uma menina pequena e quieta. Eu sabia que

389
Literalmente, faca de único gume escondida, em gaélico.“Dubh” também significa preto, mas essa
palavra também significa escondida. É uma pequena faca que normalmente é escondida na meia ou na
bota e faz parte do traje completo de um Highlander, assim como o kilt.
390
Claire vê com a mente, com a conexão que ela estabelece com o corpo que ela está tratando.
807

ela tinha morrido, mas a teimosia me fez levantá-la e tentar


empurrar a respiração para os pulmões imóveis, meus dedos no
peito minúsculo, esperando contra a esperança... mas ela se foi.
E, no entanto, a alegria vívida do primeiro nascimento ainda
estava borbulhando pelo meu corpo – eu podia ouvir o bebê
gritando de indignação, e a respiração de Susannah, uma
respiração profunda e lenta, vozes baixas e o crepitar do fogo, o
borbulhar da água no caldeirão – mas tudo estava embrulhado no
silêncio, a batida do meu próprio coração, tudo que eu sentia. Era
paz, uma paz profunda, ainda não tristeza, e segurei o corpo
minúsculo e usei minha bainha para enxugar o rostinho dela, de
olhos fechados, que nunca iriam se abrir. Mais um momento, e
então eu a coloquei em um pedaço de pano que Agnes havia
trazido e me virei para cuidar de sua mãe.
"Você tem um filho, Susannah", eu disse suavemente. "Agnes –
traga-o, sim?" Ela o trouxe, mordendo os lábios, concentrada,
para não o deixar cair. Ele tinha um bom tamanho, considerando
sua prematuridade e o fato de ser um gêmeo, mas ainda pesava
menos de 2,2 quilos. Eu o coloquei no peito de Susannah e o
braço dela veio lentamente para segurá-lo, apoiando sua cabeça.
"Vai ficar tudo bem, querido", ela disse a ele, sua voz áspera e
profunda de tanto gritar. "Não lute agora." Seus olhos estavam
fechados, mas ela falou comigo. "O outro?"
"Sinto muito", eu disse suavemente e apertei a mão dela. "Você
tem um filho." Ela respirou tão fundo que desceu até seu ventre
devastado. "Obrigada, senhora", ela sussurrou.
O garotinho ainda estava fazendo barulhos como uma vespa
zangada, mas ela o levou até o peito e colocou o mamilo em sua
boca, e o barulho parou abruptamente.
O suor ardia em meus olhos, escorrendo pelo meu pescoço.
Sentei-me nos calcanhares e limpei o rosto na saia. Susannah fez
808

um som ofegante e profundo e a perna inchada pressionando meu


ombro enrijeceu. A placenta estava chegando. Segurei o cordão
umbilical, este ainda preso ao corpo imóvel na lareira, e a
placenta, bastante grande, caiu para fora como o fígado de um
cervo, escura e ensanguentada. Susannah grunhiu de novo e a
segunda placenta escorregou para fora.
"Tudo bem", eu disse, me recompondo. "Agnes, coloque uma
colcha sobre sua mãe. Susannah, vou massagear sua barriga, para
ajudar seu útero a se contrair e fazer o sangramento parar. É..."
Eu me virei para encontrar um pano menstrual em meu kit e,
quando me virei, vi Jamie. Ele estava de joelhos na lareira,
olhando para a menina morta, com uma expressão no rosto que
fez meu coração parar.
Ele olhou para cima, sentindo meu olhar, e lemos o nome um no
rosto do outro.
Faith. Eu balancei a cabeça, minha garganta fechando com uma
dor tão aguda quanto quando eu a perdi. Jamie abaixou a cabeça
e, estendendo a mão, tocou o corpo minúsculo e enrugado, a mão
quase a cobrindo. Uma lágrima caiu e brilhou nas costas da mão
dele, outra na curva da testa dela, vermelha à luz do fogo.
Movida pelas memórias mais profundas, inclinei-me e a peguei,
segurando-a contra meu seio, a pequena cabeça em minha mão.
Em um instante, eu estava segurando minha filha perdida, a dor
me esfaqueando. Fechei meus olhos, sabendo eu tinha que
colocá-la no chão, tinha que fazer meu trabalho, mas não
conseguia deixá-la ir, sentindo a batida lenta do meu coração
contra o calor desbotado de sua pele frágil.
Eu não podia deixá-la ir. Eu não podia deixar Faith ir; eles a
tinham tirado de meus braços, finalmente. Me deixaram vazia,
sozinha, naquele lugar de pedra fria.
Muco estava escorrendo pelo meu rosto, fazendo cócegas no meu
809

lábio, e eu o esfreguei com a manga, ainda segurando a criança


contra o peito, ouvindo meu coração se partir novamente.
"Deixe-me levá-la, Sassenach", Jamie sussurrou, e estendeu as
mãos. Eu engoli em seco. Eu tinha que deixá-la ir.
"Eu não posso," eu disse. "Eu não posso." E baixei a cabeça sobre
a garotinha que havia ido, embalando-a no meu colo, sentindo
meu coração bater, no peito e nas orelhas e nas pontas dos dedos,
tentando compensar o coração que nunca mais bateria.
Não sei quanto tempo fiquei ali, dobrada em volta da criança,
tentando inutilmente dar a ela meu calor, minha vida. Não houve
nada repentino, nenhum som, nenhum movimento. Mas no meio
da dor lancinante, eu lentamente percebi... algo. Isso não
aconteceu; já estava lá. Mas eu não sentia antes e agora sentia.
"Claire?" A mão de Jamie tocou meu ombro e eu a agarrei com
minha mão livre e a segurei. Calor, força.
"Fique”, eu disse, para ele e para ela, sem fôlego. "Fique."
Meu coração. Eu ainda o estava sentindo, distintamente, lento e
regular. Soltei a mão de Jamie, mas ele não a retirou. Segurando
o bebê em um braço, coloquei minha outra mão em suas costas,
sentindo. Nenhuma sensação, nada que eu pudesse realmente
dizer que senti – mas havia algo ali.
Pressionei levemente as costas dela, esperei o espaço de uma
respiração, pressionei novamente. E de novo. Ouvindo meu
próprio batimento cardíaco em meus ouvidos, na pulsação do
meu sangue. Pressionei meu batimento cardíaco em suas costas,
em seu peito, onde ela se apoiava em mim.
Empurre.
Meus dedos estavam quentes, e a criança também. O fogo, pensei
vagamente. Estalo de fogo e o som do meu coração. Tum-tum,
tum-tum, tum-tum... E de repente ouvi Roger, me contando o que
810

o Dr. McEwan havia feito, uma das mãos no peito de Buck,


batendo lenta e pacientemente, sem parar, no ritmo de um coração
batendo.
Tum-tum... tum-tum... tum-tum...
Havia mais sons na sala agora, vozes suaves, o barulho de um
tronco estalando, o vento sob o beiral do telhado, o som de
pinheiros e o espirrar da água. Movimento, calor, vida. A mão de
Jamie, sólida no meu ombro. Eu ouvia tudo, sentia tudo, mas
estava distante de mim, acontecendo em outro mundo. Tudo o
que eu era se concentrava no som de um batimento cardíaco.
E em uma enormidade de tempo, eu soube que éramos duas
naquele som, uma partilha da batida de um coração, o
conhecimento da vida. Meu dedo batendo, lento e seguro.
Tum-tum... tum-tum...
Malva... eu a vi em minha mente, morta no jardim, e o cheiro de
sangue e o cheiro de nascimento. O garotinho que eu tirei de seu
corpo, quase morto. Uma faísca azul em minhas mãos, que
diminuiu e morreu.
Uma faísca azul. Eu a vi – vi e olhei bem dentro dela, desejando
que ficasse, mantendo-a segura nas palmas das minhas mãos.
Tum... Meu dedo parou, e o pequeno som respondeu.
Tum.
Aos poucos, tomei consciência da minha própria respiração e,
depois disso, senti a solidez de Jamie e percebi que ele estava me
segurando de pé, um braço em volta da minha cintura, a outra
mão no meu seio, acima da cabeça do bebê. Eu levantei minha
própria cabeça, quase cega pela escuridão brilhante em que
estive, e vi a silhueta de uma garota contra o fogo, seu corpo
escuro e magro através do branco de sua camisola.
"Cortei o cordão para você, sra. Fraser", disse Agnes. "E eu
811

massageei a barriga da mamãe como ela me disse. Você quer uma


xícara de cidra? O pai bebeu toda a cerveja."
"Ela vai querer, moça", disse Jamie, e gentilmente me soltou.
"Mas primeiro traga um cobertor pequenino para sua irmã, sim?"
-.-.-

ESTAVA ESCURO LÁ fora; a lua havia se posto e o amanhecer


estava um pouco distante. Estava frio, mas o frio não me tocou.
Eu o deixei levar o bebê, finalmente. Senti suas mãos nas minhas
enquanto a pegava, quente e segura, seu rosto cheio de luz. Ele se
ajoelhou com cuidado e deu o bebê a Susannah, colocando a mão
sobre a criança em uma bênção.
Então ele se levantou e me envolveu em minha capa e me levou
para fora. Eu não conseguia sentir o chão sob meus pés, ou ver a
floresta, mas o ar frio cheirava a pinheiro e caía como um
bálsamo na minha pele aquecida.
"Tudo bem, Sassenach?", ele sussurrou. Eu parecia estar
encostada nele, embora não me lembrasse de ter feito isso. Eu
perdi a noção de onde meu corpo começava e terminava; as peças
pareciam flutuar em uma espécie de nuvem solta de exaltação.
Senti as mãos de Jamie tremerem um pouco quando ele tocou
meu rosto. De exaustão, pensei. O mesmo tremor pequeno e
constante parecia correr através de mim do topo da cabeça à sola
dos pés, como uma corrente elétrica de baixa voltagem.
Na verdade, passei pela exaustão e saí do outro lado, como às
vezes acontece em momentos de grande esforço. Você sabe que
sua energia corporal se esgotou e, ainda assim, há uma sensação
sobrenatural de clareza mental e uma estranha capacidade de se
manter em movimento, mas, ao mesmo tempo, você vê tudo isso
simultaneamente, de fora de você e de seu âmago mais profundo
812

– as camadas usuais de carne e pensamento que se interpõem se


tornam transparentes.
"Estou bem", disse eu, e ri. Deixei minha testa encostar em seu
peito e respirei por um momento, sentindo todas as minhas peças
repousarem, inteiras de novo, enquanto o encantamento da última
hora se desvanecia em paz.
"Jamie", eu disse, alguns momentos depois, levantando minha
cabeça. "Qual é a cor dos meus cabelos?"
Esta era uma pergunta absurda; era a profundidade da noite e
estávamos em uma floresta escura como breu. Mas ele fez um
pequeno ruído de avaliação e ergueu meu queixo para olhar.
"Todas as cores da terra", disse ele, e tirou os cabelos do meu
rosto. "Mas aqui, sobre o seu rosto – é a cor do luar, mo ghràidh."
813

55

O VENENO DO VENTO NORTE391

RACHEL ACORDOU DE REPENTE, TOTALMENTE alerta,


mas sem nenhuma ideia do que a havia acordado. Ela se moveu,
virando a cabeça para ver se Ian estava acordado. Ele estava; sua
mão tapou sua boca e ela congelou. Estava escuro na cabana, mas
havia luz suficiente do fogo para ela ver seu rosto, os olhos
escuros com o aviso. Ela piscou uma vez e, com um leve aceno
de cabeça, ele tirou a mão. Ele ficou imóvel e ela também,
embora seu coração batesse forte o suficiente para que ela
pensasse que isso acordaria Oggy, aninhado entre eles.
Batendo forte o suficiente para que ela também não pudesse ouvir
nada – Ian estava ouvindo, no entanto. Seu longo corpo não havia
se movido, e ainda assim ele parecia ter se enrolado, de alguma
forma, como uma cobra se recolhendo. Ela fechou os olhos,
concentrando-se.
Tinha ventado a noite toda; bagas do grande cedro vermelho que
guardava a casa batiam no telhado em intervalos. Mas Ian teria
reconhecido aquele som...
De repente, Ian se moveu, erguendo-se sobre um cotovelo; ela o
ouviu inspirar, bruscamente, e por reflexo fez o mesmo. Tabaco.
No instante seguinte, ele deslizou para fora da cama e caminhou
nu até a porta.
Ela soltou a respiração com uma sensação de alívio; um amigo,

391
É o mesmo título do cap 49 do livro seis. Nesse capítulo, Brianna encontra uma pequena fogueira com
ossos e, ao descrever o que achou para Mrs Bug, ela reconheceu como sendo parte de um feitiço de amor
chamado “O Veneno do Vento Norte”.
814

então. Vozes suaves na varanda, então Ian enfiou a cabeça para


dentro, sorriu brevemente para ela e agarrou um cobertor dobrado
do topo do baú e fechou a porta atrás dele.
Oggy, perturbado pela sensação de movimento, mexeu-se e
fungou. Ela se levantou com pressa para usar o penico antes que
ele acordasse completamente; ele não era uma criança paciente.
Com o xale pendurado nos ombros e o bebê no colo, ela se
aproximou sorrateiramente da janela perto da porta. Estava
coberta com uma pele oleada, pregada para evitar correntes de ar,
então ela não podia ver nada, mas os sons vinham da varanda
razoavelmente claros.
Não que isso lhe soasse muito bem. Os visitantes – ela distinguiu
pelo menos duas vozes diferentes, além da de Ian – eram índios
e falavam em sua própria língua. Talvez Garça em Pé Bradshaw
e um amigo das aldeias cherokee tivessem vindo ajudar a caçar a
pantera que tinha sido vista perto do riacho. Esse foi um
pensamento misericordioso; quanto mais homens houvesse, mais
seguros eles estariam. Presumivelmente.
Ela estava prestes a ir verificar o mingau na panela, para o caso
de os visitantes precisarem do café da manhã, quando ouviu uma
palavra que a paralisou e a fez apertar Oggy com tanta força que
ele emitiu um pequeno surpreso hoof! e parou de se alimentar por
um instante.
Ele agarrou seu seio novamente com ferocidade instantânea, mas
ela mal percebeu. Não cherokee. De jeito nenhum. Eles eram
mohawks, e a palavra que chamou sua atenção foi
"Wakyo’teyehsnonhsa".
-.-.-

ELA NÃO ESPEROU para colocar a criança para dormir ou se


vestir. Quando ela saiu para a varanda, as tábuas estavam geladas
815

sob seus pés descalços e a luz estava apenas começando a se


elevar à vista. O mesmo aconteceu com os rostos interessados de
não dois, mas de três mohawks, que olharam para ela e acenaram
com a cabeça educadamente.
Um deles disse algo que fez Ian tossir e olhar de soslaio para ela.
Ele estava vestindo o cobertor enrolado na cintura, e a visão de
seu peito nu, os mamilos ficando pequenos e duros de frio, fez
seus próprios mamilos se contraírem em solidariedade, o que fez
Oggy engasgar e tossir, espirrando leite por toda a frente de sua
combinação. Os índios desviaram o olhar como se nada tivesse
acontecido.
"Teus amigos são bem-vindos, Ian", ela disse, tentando não cerrar
os dentes. Ela sorriu para eles. "Eles vão comer com a gente?"
Eles entendiam inglês, pois os três entraram de uma vez na
cabana. Ian fez menção de segui-los e ela agarrou seu braço com
a mão livre.
"O que aconteceu?" ela disse, em voz baixa.
"Um massacre", disse ele, e ela viu agora que ele estava chateado,
seu rosto tenso de preocupação. "Houve um ataque a um
assentamento – apenas algumas casas, mas todas Whigs. Era
Joseph Brant e alguns de seus homens. Mas então alguns
lutadores de Burk Hollow fizeram uma incursão a um
assentamento mohawk. Em vingança." Ele tentou se virar em
direção à porta, mas ela a apertou o suficiente para detê-lo, não
se importando se o machucasse.
"Tua esposa?", ela disse. "Vejo que vieram dar notícias dela. Ela
estava naquele assentamento? Ela está viva?"
Ele não queria responder, mas para seu crédito, ele o fez.
"Eu não sei. Ela estava viva quando Olha para a Lua a viu, mas
isso foi há cerca de cinco meses." Os olhos dele passaram por ela
816

e ela soube que ele estava olhando para o pico da montanha


distante, onde uma leve camada de neve tinha aparecido uma
semana antes. Aquela que Trabalha com as Mãos – e seus filhos
– ficavam bem ao norte. Quão longe? ela se perguntou, e puxou
o xale sobre a cabeça redonda e nua de Oggy.
-.-.-

OLHA PARA A LUA engoliu o resto de seu picadinho de peru e


deu um arroto alto de apreciação na direção de Rachel, em
seguida, entregou-lhe o prato antes de retomar a estória que
contava entre os bocados de comida. Felizmente, foi
principalmente em mohawk, já que as partes que estavam em
inglês pareciam contar como um de seus primos havia sofrido
após um encontro com um alce enfurecido.
Rachel pegou o prato e encheu-o novamente, visualizando a luz
de Cristo brilhando dentro de seus convidados. Devido a uma
infância órfã e empobrecida, ela tinha prática considerável em tal
discernimento e era capaz de sorrir agradavelmente para Lua
enquanto colocava o prato recém-enchido a seus pés, para não
interromper suas gesticulações.
Pelo lado bom, ela refletiu, olhando para o berço, a conversa dos
homens havia embalado Oggy até o estupor. Com um olhar que
chamou a atenção de Ian, e um aceno com a cabeça em direção
ao berço, ela saiu para desfrutar do prazer mais raro de uma mãe:
dez minutos sozinha no banheiro.
Emergindo relaxada de corpo e mente, ela não estava inclinada a
voltar para a cabana. Ela pensou brevemente em descer até a Casa
Grande392 para visitar Claire, mas Jenny havia descido sozinha
quando ficou claro que os recém-chegados mohawks iriam passar
a noite na cabana dos Murray.

392
Às vezes Casa Nova, às vezes Casa Grande.
817

Rachel gostava muito de sua sogra, mas ela adorava Oggy e


amava Ian loucamente – e ela realmente não queria a companhia
de nenhum deles agora.

-.-.-

A NOITE ESTAVA fria, mas não amarga, e ela tinha um xale de


lã grossa. Uma lua minguante estava surgindo em meio a um
campo de estrelas gloriosas, e a paz do céu parecia respirar da
floresta de outono, pungente com coníferas e o cheiro mais suave
de folhas mortas. Ela subiu com cuidado o caminho que levava
ao poço, fez uma pausa para um gole de água fria e continuou,
saindo um quarto de hora depois na beira de um afloramento
rochoso que, de dia, dava vista para montanhas e vales sem fim.
À noite, era como se sentar à beira da eternidade.
A paz infiltrou-se em sua alma com o frio da noite, e ela a buscou,
acolheu-a. Mas ainda havia uma parte inquieta de sua mente e um
ardor em seu coração, em desacordo com o vasto silêncio que a
rodeava.
Ian nunca mentiria para ela. Ele disse isso, e ela acreditou nele.
Mas ela não era tola o suficiente para pensar que isso significava
que ele disse a ela tudo o que ela poderia querer saber. E ela
queria muito saber mais sobre Wakyo’teyehsnonhsa, a mulher
mohawk que Ian tinha chamado de Emily ... e que tinha amado.
Então agora ela talvez estivesse viva, talvez não. Se ela estivesse
viva... quais seriam suas circunstâncias?
Pela primeira vez, ocorreu a ela se perguntar quantos anos Emily
poderia ter e como ela seria. Ian nunca tinha dito; ela nunca tinha
perguntado. Não parecia importante, mas agora...
Bem. Quando ela o encontrasse sozinho, ela perguntaria, isso é
tudo. E com determinação, ela voltou seu rosto para a lua e seu
818

coração para sua luz interior e se preparou para esperar.

-.-.-

TALVEZ UMA HORA depois, quando a escuridão perto dela se


moveu, Ian estava de repente ali ao lado dela, um lugar quente na
noite.
"Oggy está acordado?", ela perguntou, se aconchegando no xale
ao redor dela.
"Não, moça, ele está dormindo como uma pedra."
"E teus amigos?"
"Quase o mesmo. Eu dei a eles um pouco do uísque do tio Jamie.
"
"Quão hospitaleiro de tua parte, Ian."
"Não foi exatamente essa a minha intenção, mas suponho que
devo levar o crédito por isso, se isso te faz ter mais consideração
por mim."
Ele colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha dela, abaixou a
cabeça e beijou a lateral de seu pescoço, deixando clara sua
intenção. Ela hesitou por um breve instante, mas então passou a
mão por baixo da camisa dele e se entregou, recostando-se em
seu xale sob o céu estrelado.
Que sejamos apenas nós, mais uma vez, ela pensou. Se ele pensa
nela, que não faça isso agora.
E foi assim que ela não perguntou como Emily era, até que os
mohawks finalmente partiram, três dias depois.

-.-.-
819

IAN NÃO FINGIU não saber por que ela perguntou.


"Pequena", disse ele, segurando a mão cerca de sete centímetros
acima do cotovelo.
Dez centímetros mais baixa do que eu...
"Formosa, com um... um rosto bonito."
"Se ela é bonita, Ian, tu podes dizer isso", Rachel disse
secamente. "Eu sou uma Amiga; não somos dados à vaidade."
Ele olhou para ela, seus lábios se contraindo um pouco. Então ele
reconsiderou sobre tudo o que estava prestes a dizer. Ele fechou
os olhos por um instante, depois os abriu e respondeu
honestamente.
"Ela era adorável. Eu a encontrei perto da água – uma piscina no
rio, onde a água se espalha e não há nem mesmo uma ondulação
na superfície, mas você sente o espírito do rio movendo-se
através dela da mesma forma." Ele a tinha visto de pé. com água
até as coxas, vestida, mas com a camisa puxada para cima e
amarrada na cintura com um lenço vermelho, segurando uma
lança fina de madeira afiada e procurando peixes.
"Eu não consigo pensar nela em – em partes", ele disse, sua voz
um pouco rouca. "Como eram os olhos dela, o rosto dela..." Ele
fez uma expressão estranha e um gracioso gesto com a mão, como
se ele segurasse a bochecha de Wakyo’teyehsnonhsa, em
seguida, percorresse a linha de seu pescoço e ombro. "Eu só –
quando penso nela..."
Ele olhou para ela e fez um ruído de hem na garganta. "Sim. Bem.
Sim, penso nela de vez em quando. Não é frequente. Mas quando
acontece, só penso nela como uma só peça, e não posso dizer em
palavras como é isso."
"Por que você não pensaria nela?", Rachel disse, o mais
gentilmente que pôde. "Ela era tua esposa, a mãe de... de teus
820

filhos."
"Sim", ele disse suavemente, e abaixou sua cabeça. Emily tinha
dado à luz uma filha natimorta e abortou mais dois bebês. Rachel
pensou que ela poderia ter escolhido um lugar melhor; estavam
no galpão que servia de pequeno celeiro e havia uma porca em
parto em um curral bem na frente deles, uma dúzia de leitões
gordos empurrando e grunhindo em suas tetas, um testemunho de
fecundidade.
"Eu preciso dizer uma coisa, Rachel", ele disse, levantando a
cabeça abruptamente.
"Tu sabes que pode me dizer qualquer coisa, Ian", disse ela, e foi
sincera, mas seu coração pensava algo diferente e começou a
bater mais rápido.
"Os filhos... de Emily. Eu disse a você que os conheci quando a
vi pela última vez. Os dois mais novos – ela os tinha de Alce do
Sol, mas o mais velho, o menino..." Ele hesitou. "Ela me pediu
para dar um nome ao bebê – é uma grande honra", explicou ele,
"mas algo me fez dar um nome ao menino, em vez disso. Eu o
chamei de O Mais Rápido dos Lagartos – ele estava pegando
lagartos quando eu o conheci, pegando-os em sua mão. Nós...
pegamos um", ele disse, e sorriu brevemente com a memória.
"Sinto muito, Rachel, sei que você vai pensar que isso está errado,
mas não sinto muito por ter feito isso."
"Entendo..." ela disse lentamente, embora não entendesse. Ela
estava começando a ter uma sensação de vazio no peito, no
entanto. "Então, o que você está me dizendo é..."
"Eu acho que ele talvez seja meu", Ian deixou escapar. "O
menino. Ele teria nascido na época certa, depois que eu partisse.
A questão é... ken, eu disse a você que os mohawks dizem que
quando um homem se deita com uma mulher, seu espírito luta
com o dela?"
821

"Eu não diria que eles estão errados, mas..." Ela balançou a mão,
interrompendo-se. "Continue."
"E se o espírito dele conquistar o dela, ela ficará grávida." Ele
colocou o braço em volta dela, a mão grande e quente em seu
cotovelo. "Então talvez tia Claire estivesse errada sobre as coisas
no sangue – quero dizer, nosso homenzinho está bem. Talvez
fosse o sangue de Emily que... sim, bem..." E ele abaixou a cabeça
e a apoiou na dela, então eles ficaram frente a frente, olho no olho.
"Eu não sei, Rachel", ele disse calmamente. "Mas..."
"Temos que ir", disse ela, embora seu coração tivesse ficado tão
pequeno que ela mal conseguia sentir suas batidas. "Claro que
devemos ir."
822

56

TU SERIAS UMA BOA AMIGA

"TU SERIAS UMA BOA AMIGA, tu sabes", Rachel comentou,


segurando um galho de louro-das-montanhas para sua sogra, que
estava sobrecarregada por uma grande cesta de retalhos para o
forro de colchas. A própria Rachel estava sobrecarregada com
Oggy, que adormecera pendurado na faixa com ela o carregava.
Janet Murray deu a ela um olhar penetrante e fez o que Claire
descreveu em particular para Rachel como um barulho escocês,
sendo um bufo mesclado e gargarejo que pode indicar qualquer
coisa, desde leve diversão ou aprovação até desprezo, escárnio ou
ação iminente à força. No momento, Rachel achou que sua sogra
estava se divertindo e sorriu para si mesma.
"Tu és franca e direta", Rachel apontou. "E honesta. Ou pelo
menos eu suponho que tu sejas", ela adicionou, provocando
ligeiramente. "Não posso dizer que já te peguei em uma mentira."
"Espere até me conhecer um pouco mais, moça, antes de fazer
julgamentos como esse", Jenny aconselhou. "Eu sou uma ótima
pequena mentirosa, quando surge a necessidade. Mas o que
mais?" Seus olhos azul-escuros se enrugaram um pouco –
definitivamente divertidos. Rachel sorriu de volta e pensou por
um momento, abrindo caminho por um trecho íngreme de
cascalho onde a trilha havia sido lavada, depois estendendo a mão
para pegar a cesta.
"Tu és compassiva. Gentil. E destemida", disse ela, observando
Jenny descer, meio deslizando e agarrando os galhos para se
manter ereta.
A cabeça de sua sogra virou bruscamente, os olhos arregalados.
823

"Destemida?", ela disse, incrédula. "Eu?" Ela fez um barulho que


Rachel teria soletrado como "Psssht." "Eu tenho estado
apavorada até os ossos desde que tinha dez anos, a leannan. Mas
você se acostuma com isso, ken?" Ela pegou a cesta de volta e
Rachel içou Oggy, cujo peso havia dobrado no momento em que
ele adormeceu, para uma posição mais segura.
"O que aconteceu quando tu tinhas dez anos?", ela perguntou,
curiosa.
"Minha mãe morreu”, respondeu Jenny. A expressão e a voz dela
eram prosaicas, mas Rachel podia ouvir o luto nela, tão claro
quanto o chamado agudo e fraco de um tordo eremita.
"A minha morreu quando eu nasci", disse Rachel, após uma longa
pausa. "Não posso dizer que sinto falta dela, já que nunca a
conheci – embora, é claro..."
"Eles dizem que você não pode perder o que nunca teve, mas eles
estão errados sobre isso", disse Jenny, e tocou a bochecha de
Rachel com a palma da mão, pequena e quente. "Cuidado por
onde anda, moça. Está liso sob os pés."
"Sim." Rachel manteve os olhos no chão, afastando-se para evitar
um pedaço de lama onde uma pequena nascente borbulhava. "Eu
sonho, às vezes. Há uma mulher, mas não sei quem ela é. Talvez
seja minha mãe. Ela parece gentil, mas não fala muito. Ela apenas
olha para mim."
"Ela se parece com você, moça?"
Rachel deu de ombros, equilibrando Oggy com a mão sob seu
traseiro.
"Ela tem cabelos escuros, mas não consigo me lembrar do rosto
dela quando acordo."
"E você não saberia como ela era, quando viva." Jenny acenou
com a cabeça, olhando algo por trás de seus próprios olhos. "Eu
824

conheci a minha – e se você quiser saber como ela era, apenas dê


uma olhada em Brianna, pois ela é Ellen MacKenzie Fraser viva
– embora um pouquinho maior."
"Eu vou fazer isso", Rachel garantiu a ela. Ela achava sua nova
prima por afinidade ligeiramente intimidante, embora Ian
claramente a amasse. "Com medo, porém – você disse que ficou
com medo desde então?" Ela não achava que já tinha conhecido
alguém menos assustado do que Janet Murray, a quem vira ontem
enfrentar um enorme guaxinim na varanda da cabana,
expulsando-o com uma vassoura e uma execração escocesa,
apesar das garras enormes e aspecto ameaçador do animal.
Jenny olhou para ela, surpresa, e mudou a cesta pesada de um
braço para o outro com um pequeno grunhido enquanto a trilha
se estreitava.
"Oh, não com medo por mim mesma, a nighean, acho que nunca
me preocupei em ser morta ou algo assim. Não, medo por eles.
De eu não ser capaz de lidar, cuidar deles."
"Eles?"
"Jamie e Pa", disse Jenny, franzindo um pouco a testa ao ver o
solo fofo sob seus pés. Chovera forte na noite anterior e até o
terreno aberto estava lamacento. "Eu não sabia como cuidar
deles. Eu sabia que não poderia ocupar o lugar de minha mãe para
nenhum deles. Veja, eu pensei que eles morreriam sem ela."
E tu ficarias totalmente sozinha, Rachel pensou. Irias querer
morrer também e não saberias como. Parece muito mais fácil
para os homens; eu me pergunto por quê? Eles não acham que
alguém precisa deles?
"Mas tu conseguiste", disse ela, e Jenny deu de ombros.
"Coloquei o avental dela e preparei o jantar. Isso era tudo que eu
sabia fazer. Alimentá-los."
825

"Suponho que essa seja a coisa mais importante." Ela abaixou a


cabeça e roçou a parte superior da touca de Oggy com os lábios.
Sua mera presença fez seus seios formigarem e doerem. Jenny
viu isso e sorriu, de uma forma meio triste.
"Sim. Quando vocês têm filhos, existe aquele pequeno momento
em que você é realmente tudo de que precisam. E então eles
deixam seus braços e você fica apavorada de novo, porque agora
você ken todas as coisas que podem prejudicá-los, e você não é
capaz de mantê-los longe disso."
Rachel acenou com a cabeça, e elas caminharam em silêncio –
embora um tipo de silêncio atento – através do pequeno bosque
de carvalho e contornando a borda do campo de feno menor, para
o pequeno bosque de álamos onde ficava a cabana.
Ela pensou que deixaria para Ian contar à sua mãe, mas o clima
entre elas era de amor, e o espírito a moveu a falar agora.
"Ian pretende ir para Nova York", disse ela. Oggy estava se
mexendo e ela o colocou no ombro, dando tapinhas em suas
pequenas costas firmes. "Para se assegurar com relação ao bem-
estar de... hã... sua..."
"A mulher índia com quem ele foi casado?", Jenny disse sem
rodeios. "Sim, pensei que ele gostaria, quando soube do
massacre."
Rachel não perdeu tempo perguntando como Jenny tinha ouvido
falar sobre isso. Os mohawks haviam ficado três dias, e notícias
de qualquer tipo se infiltravam pela Cordilheira como tinta índigo
em um pano úmido.
"Eu irei com ele", ela disse.
Jenny fez um barulho que poderia ser soletrado como um
glarmph, mas assentiu com a cabeça.
"Sim. Eu pensei que você deveria."
826

"Tu achas?" Rachel ficou surpresa – e talvez um pouco ofendida.


Ela esperava choque e discussão, tentativa de dissuasão.
"Ele contou a você sobre seus filhos com ela, mortos, eu
suponho?"
"Ele contou, sim, antes de nos casarmos." O peso vivo de Oggy
em seus braços era uma bênção dupla; ela sabia o quanto Ian
temia nunca ser capaz de gerar um filho vivo.
Jenny acenou com a cabeça.
"Ele é um homem honesto. E gentil, para começar, mas duvido
que ele algum dia seja um Amigo decente."
"Bem, eu também", Rachel admitiu. "E ainda assim os milagres
acontecem."
Isso fez Jenny rir. Ela parou na beira da varanda e largou a cesta
para tirar a lama das solas dos sapatos, então segurou o cotovelo
de Rachel para equilibrá-la enquanto ela fazia o mesmo.
"Destemida, você disse", disse Jenny, pensativa. "Os Amigos são
destemidos, não é?"
"Não tememos a morte porque pensamos que nossas vidas são
vividas apenas em preparação para a vida eterna com Deus",
explicou Rachel.
"Bem, se a pior coisa que pode acontecer com você é a morte, e
você não tem medo disso... bem, então." Jenny encolheu os
ombros. "Suponho que você esteja certa." Seu rosto se enrugou
de repente e ela riu. "Destemida. Eu vou precisar pensar sobre
isso um pouco – acostumar-me com isso, ken. Mesmo assim..."
Ela ergueu o queixo, indicando Oggy, que havia despertado com
o cheiro da casa e estava se enraizando sonolentamente no seio
de Rachel.
"Não teme por ele? Levando-o no meio de toda a guerra?"
Ela não acrescentou: "Perdê-lo não seria pior do que a morte?",
827

mas ela não precisava.


Rachel desabotoou a blusa e colocou Oggy para sugar, prendendo
a respiração quando ele agarrou seu mamilo, depois relaxou
quando o leite desceu. Jenny estava esperando por ela, os olhos
fixos na cabeça de Oggy. Rachel falou calmamente.
"Tu deixarias teu marido viajar sozinho mais de mil e cem
quilômetros para resgatar a primeira esposa e os três filhos dela –
um dos quais poderia ser dele?"
A boca de Jenny se abriu, mas aparentemente não havia sons
escoceses apropriados para a ocasião.
"Bem, não", ela disse suavemente. "Tu tens393 razão."

393
Aqui é Jenny quem fala e ela usa o discurso simples dos Amigos. Provavelmente, para expressar uma
cumplicidade entre sogra e nora.
828

57

PRONTO PARA TUDO

ELE TERIA QUE DIZER A ELA, mais cedo ou mais tarde. Pelo
menos ele tinha um plano elaborado, gostasse ela ou não.
Estava chovendo, e as gotas pesadas atingiam o telhado de zinco
do galpão das cabras, como disparos de uma arma de fogo. Ian
mergulhou para dentro do galpão e encontrou sua mãe
ordenhando uma das cabras jovens e cantando uma canção de
prensar a lã, chamada "Mile Marbhaisg Air a’Ghaol" a plenos
pulmões. Ela olhou para ele, acenou com a cabeça para indicar
que estaria com ele em breve, e continuou cantando "Mil
Maldições sobre o Amor" e ordenhando.
As cabras também ergueram os olhos para ele, mas o
reconheceram e continuaram mastigando a grama com nada mais
do que uma contração de orelha. Elas pareciam estar gostando da
música; não estavam agitadas pela chuva ou pelo trovão, ainda à
distância, mas ficando cada vez mais alto. Sua mãe soltou o úbere
com um pequeno floreio e concluiu com a’Ghaol! e Ian aplaudiu,
o que assustou todas as cabras em um coro tardio de mééééés.
"Ouça bem, seu pequeno gomerel", sua mãe disse, mas em um
tom tolerante. Ela se levantou, soltou a cabra da escora e pegou o
balde cheio. "Aqui, leve isto para dentro de casa, mas diga a
Rachel para não agitar até que a tempestade passe – eu não sei se
ela sabe que não deve bater durante a trovoada; a manteiga não
virá.394"
"Eu acho que ela sabe o suficiente que não deve ficar na varanda
da frente fazendo isso enquanto a chuva está caindo, mesmo que

394
Talvez seja só um dos muitos usos e costumes populares, escoceses ou não. Ou apenas Jenny, sem
saber se Rachel sabe disso ou não, resolveu reforçar essa informação.
829

não quisesse ser atingida por um raio."


"Pfff", ela disse, e puxou o xale sobre a cabeça. Assim que ela fez
isso, porém, a chuva mudou abruptamente para granizo. "A
Mhoire Mhàthair395!" disse ela, fazendo os chifres. "Não vá
agora, se você tem cérebro."
Ela poderia ter acrescentado algo sobre a qualidade do cérebro
dele, mas era impossível ouvir uma palavra. Pedras de granizo do
tamanho de juntas de porco estavam trovejando no telhado de
zinco, quicando e rolando na grama verde do lado de fora do
galpão aberto.
Ele pousou o balde junto à parede, onde não seria chutado, e,
erguendo uma sobrancelha para a mãe, cruzou os braços e
encostou-se a uma das vigas, preparado para esperar. Ele havia
buscado por isso e não o faria de novo. Uma vez feito, estaria
feito e não era hora de falar bobagens.
As cabras, como cabras que eram, vagaram até ele e começaram
a farejá-lo familiarmente em busca de qualquer coisa solta, mas
além da fralda da camisa, que ele já havia recolhido com a mão,
não havia nada para atraí-las. Apesar da frente aberta do galpão e
do hálito frio da tempestade que passava, estava agradavelmente
quente entre os corpos peludos e curiosos, e ele sentiu sua
ansiedade com a conversa diminuindo um pouco.
Sua mãe aproximou-se do bode que cutucava as nádegas dele
com o focinho e ficou olhando contente para a tempestade,
coçando-o entre as orelhas. Era uma bela vista, com certeza; ela
escolheu o local para seu galpão de cabras e ele o construíra para
que ela pudesse olhar através de uma grande lacuna entre as
árvores e ver a montanha Roan396 à distância, muito dramática no
momento, seu topo desaparecendo sob nuvens negras baixas que

395
Nossa Senhora, em gaélico.
396
Roan Mountain é, na verdade, uma montanha com 5 picos existente na fronteira da Carolina do Norte
e do Tennessee. Faz parte dos Montes Apalaches.
830

se acendiam e cuspiam relâmpagos. Enquanto eles observavam,


um enorme raio cortou o céu e o ar e ele e as cabras recuaram
com o estrondo estonteante.
Como se o relâmpago fosse um sinal, porém, o granizo parou
abruptamente e a chuva recomeçou, mais silenciosamente do que
antes.
"Parece o broche dos MacKenzie, não?", sua mãe comentou,
acenando com a cabeça para a montanha distante. "Fogos por
toda parte. " Na verdade, havia três pequenas nuvens de fumaça
subindo das encostas mais baixas, onde o relâmpago atingiu algo
inflamável. Nada a preocupar; com tanta chuva, eles não
queimariam por tempo suficiente para causar impacto.
"Nunca vi um broche MacKenzie", disse ele. "Uma montanha,
não é? Com fogueiras?"
Ela olhou para ele, momentaneamente surpresa, mas então
assentiu com a cabeça. "Sim, eu estava esquecendo. Tudo isso se
foi antes que você pudesse andar." Sua boca se apertou, mas
apenas por um momento. "Seu pai alguma vez lhe contou o lema
dos Murray?"
"Sim, mas eu não me lembro muito... algo sobre grilhões, não é?"
"Furth, Fortune and Fill the Fetters397," ela disse sucintamente.
"Saia e certifique-se de voltar com ouro e cativos."
Isso o fez rir.
"Um bando guerreiro, não é? Os velhos Murray?"
Ela deu de ombros. "Não que eu tenha percebido, mas ken, seu
pai foi mercenário quando jovem. E seu tio Jamie também." Sua

397
Esse é o lema dos Murrays de Atholl – existe mais de um clã Murray. 'Furth Fortune and Fill the
Fetters' deriva de uma instrução de James III em 1475 para subjugar o Senhor dos Ilhas. A instrução
completa era: Vá contra seus inimigos, tenha boa sorte e volte com os cativos. Talvez ‘fortune’ posso ser
entendido com duplo significado: sorte e fortuna.
831

boca se contraiu. "Tenho certeza de que Jamie disse o lema dos


Fraser mais de uma vez. Je suis prest, sim?"
"Ele disse." Ian sorriu, com um pouco de tristeza. "Estou pronto."
Sua mãe sorriu, olhando para ele. O xale tinha escorregado para
os ombros e seus cabelos presos brilhavam como aço polido à luz
da chuva.
"Sim. Bem, há um segundo lema de Murray – o primeiro foi feito
pelo Duque de Atholl, criatura velha e sanguinária – mas o
segundo é melhor: Tout prest."
"Totalmente pronto? Ou pronto para qualquer coisa?"
"Ambos. Eu pensava nisso, de vez em quando, enquanto eles
estavam na França. Je suis prest… Tout prest. E todas as noites,
eu rezava para a Virgem para que eles estivessem. Prontos, quero
dizer." Ela ficou em silêncio, com a mão apoiada na cabra
marrom de cabeça branca.
Ele não encontraria um momento melhor. Ele tossiu.
"Quanto a estar pronto, mãe..." Ela percebeu a nota em sua voz e
olhou para ele com severidade.
"Sim?"
"Falei com Barney Chisholm. Você é bem-vinda para ficar com
ele e Christina, enquanto – enquanto estivermos fora. Rachel e
eu", ele adicionou, engolindo. "Estamos indo para o Norte, para
averiguar sobre... sobre..."
"Sua esposa índia?", ela perguntou secamente. "Não se preocupe.
Já pedi às moças MacDonald para cuidarem das cabras."
"Você o quê?" Ele sentiu como se ela tivesse esticado um pé e
prendido suas pernas debaixo dele. Ela deu a ele um olhar de leve
exasperação.
"Você não acha que eu deixaria Rachel segui-lo sozinha em uma
832

guerra, e levando aquele meu neto, que nem anda ainda, com
vocês?"
"Mas... " As palavras morreram em sua garganta. Ele conhecia
sua mãe bem o suficiente para ver que ela falava sério. E não
importava o que o lema dos Fraser dizia, ele sabia que poderia
muito bem ser Teimoso como uma rocha. Ele tinha visto aquele
olhar no rosto do tio Jamie com frequência suficiente para
reconhecê-lo agora.
"Além disso", acrescentou ela, empurrando o nariz da cabra para
longe da franja de seu xale, "eu não suponho que você vai
encontrar muito ouro com o mohawks, mas eu preferia que você
não acabasse em grilhões numa prisão dos casacos vermelhos."
Não havia muito a fazer a não ser rir. Ele fez uma última tentativa,
porém, apenas para que ele pudesse dizer a seu pai que ele tinha.
"Você acha que Pa deixaria você fazer uma coisa tão estúpida?"
"Não acho que ele teria muito a dizer", respondeu ela, encolhendo
os ombros. "Aqui, pegue este." Ela entregou o balde cheio e se
curvou para pegar o outro. "Além disso, ele não tentaria me
impedir; o pequeno Oggy é o sangue dele, tanto quanto o meu.
Ian Mòr estará lá comigo, o tempo todo."
Ian engoliu um pequeno nó na garganta, mas sentiu curiosidade
junto com a lembrança da tristeza.
"Você sente Pa com você?", ele perguntou. "Eu sinto. Às vezes."
Sua mãe deu-lhe o segundo balde e abriu o portão na frente do
galpão. A chuva tinha cessado e o ar brilhava ao redor deles,
prateado em meio ao cinza.
"Você não para de amar alguém só porque essa pessoa morreu",
disse ela em tom de reprovação. "Não posso supor que eles parem
de amar você também."
833

-.-.-

"QUAL A IDADE de tua mãe?", Rachel perguntou a Ian. "Eu


agradeço a companhia dela; e ter ajuda com o... bairn seria um
grande alívio, mas tu sabes melhor do que eu como pode ser essa
jornada."
Ian sorriu, não com a pergunta, mas com a maneira como ela disse
bairn, hesitando por um instante antes de dizer isso, como se
temesse que fosse algo que pudesse escapar de um pote antes que
ela pudesse colocar a tampa de volta.
"Não sei ao certo", disse ele, em resposta à pergunta dela. " Mas
ela é dois anos mais velha do que tio Jamie."
"Oh." Seu rosto suavizou um pouco com isso.
"E mal faz um ano que ela deixou a Escócia e veio com o tio
Jamie, atravessou todo o oceano, e então fez o seu caminho por
quilômetros pelo país até a Filadélfia. "Esta jornada pode ser um
pouco mais longa", ele tossiu um pouco, pensando e também um
pouco mais perigosa, "mas teremos bons cavalos e dinheiro
suficiente para pousadas, onde houver.
"Além disso", disse ele, encolhendo os ombros, "ela disse que
vem conosco. Então ela vai."
834

58

REZANDO O ROSÁRIO

JAMIE NÃO SE INCOMODAVA em caminhar suavemente.


Ursos não tinham medo de nada. E provavelmente seria apenas o
acaso que determinaria quem veria quem primeiro.
As sombras que cobriam a trilha para o prado superior que eles
chamavam de Feur-milis398 ainda estavam pretas com o frio da
noite. As árvores amareladas que margeavam o caminho estavam
escorregadias e pesadas com a chuva da noite anterior, e Jamie
puxou a manta xadrex do kilt sobre a cabeça para evitar os pinga-
pinga. Velha e gasta como estava sua manta, ainda era quente e
ainda repelia a água. Eu deveria ter dito a Claire que quero ser
enterrado nela se um urso levar a melhor sobre mim; será
aconchegante contra a umidade da sepultura.
Mas então ele pensou em Amy Higgins e se benzeu. Ele saiu das
sombras para o alto prado, enevoado no início da manhã. Três
corças que pastavam do outro lado olharam para ele, assustadas
com a intrusão, depois desapareceram, trombando contra os
arbustos.
Isso respondia a uma pergunta, então: nenhum urso estava por
perto. Nesta época do ano, um urso provavelmente não se
importaria com veados – os riachos fervilhavam de peixes e a
floresta ainda estava cheia de tudo que um urso considerava
saboroso, de larvas e cogumelos a árvores com colmeias cheias
de mel (e ele esperava que sua presa atual tenha encontrado uma
dessas recentemente; o mel dava um cheiro leve e suave à
gordura) – mas os cervos tinham opiniões muito rígidas sobre os
398
Grama Doce
835

carnívoros em geral e não ficariam por perto para calcular as


probabilidades se um deles aparecesse.
Ele esquartejou a campina, depois caminhou lentamente ao redor
da borda em busca de sinais de urso, mas não encontrou nada
além de uma pilha desintegrada de excrementos velhos sob um
pinheiro e marcas de garras em um grande amieiro – feitas
recentemente, mas a seiva já havia secado. Jo tinha visto um urso
na campina cinco dias atrás, disse ele; claramente não tinha
voltado desde então.
Jamie ficou parado por um momento, erguendo o rosto para a
brisa que agitava a grama. Um leve cheiro no ar: não de urso. Um
cervo por perto, ainda não completamente no cio, mas interessado
nas corças.
Mais batidas o fizeram se virar, mas o coro ansioso de méés-méés
disse a ele quem era muito antes de sua irmã aparecer na beira da
trilha com quatro cabras em uma longa corda. Ela tinha uma arma
pendurada no ombro e estava olhando atentamente em volta.
"E o que você quis dizer com isso, a phiuthair399?" ele perguntou
em tom de conversa. Ela não o tinha visto nas sombras e se virou,
assustada, o cano da arma apontado diretamente para ele.
Ele deu um passo apressado para o lado, apenas no caso de estar
carregada. "Não atire, sou eu!"
"Gomerel", disse ela, baixando a arma. "O que você quer dizer
com isso? Quantas coisas você pode fazer com uma arma?"
"Bem, se você está atrás de urso, acho que sua peça pode causar
um sangramento nasal, mas não muito mais", disse ele,
apontando para a arma caçadeira em sua mão. Seu próprio rifle
ainda estava pendurado no ombro, carregado e preparado. Não
que isso parasse um urso em pleno ataque, mas se a criatura

399
Ó irmã, em gaélico.
836

apenas suspeitasse, um tiro poderia fazê-la manter distância.


"Urso? Oh, é isso que você está fazendo. Claire perguntou." Ela
soltou as cabras ansiosas, e elas mergulharam de cabeça na grama
espessa como patos em um lago de moinho d’água.
"Ela perguntou, então." Ele manteve sua voz casual.
"Ela não disse isso", sua irmã disse francamente. "Mas ela viu
que sua arma havia sumido, enquanto estávamos fazendo o café
da manhã, e parou de repente, apenas por um instante."
Seu coração apertou um pouco. Ele não queria acordar Claire
quando saiu no escuro, mas deveria ter contado a ela na noite
passada que pretendia ver se conseguia seguir a trilha do urso que
Jo Beardsley tinha visto. Houve pouco tempo para a caça
enquanto eles trabalhavam para erguer o telhado antes do inverno
– e eles precisavam muito da carne e da gordura. Além disso, eles
tinham apenas algumas mantas e um cobertor de lã que ele
comprou de um comerciante da Morávia. Um bom tapete de urso
seria um conforto para Claire nas noites frias; ela sentia o frio
mais agora do que da última vez que eles passaram o inverno na
Cordilheira.
"Ela está bem", acrescentou sua irmã, e ele sentiu seu olhar
interessado em seu próprio rosto. "Ela apenas se perguntou, ken."
Ele assentiu com a cabeça, sem palavras. Podia demorar um
pouco ainda antes que Claire pudesse, ao acordar e descobrir que
ele tinha saído com uma arma, não pensar em nada sobre isso.
Ele respirou fundo e ao exalar viu o seu vapor subir branco,
desaparecendo instantaneamente, embora o sol já estivesse
quente em seus ombros.
"Sim, e o que você está fazendo aqui? É uma longa caminhada
para buscar forragem."
Uma das cabras havia erguido a cabeça para respirar e farejava a
837

ponta pendurada de seu cinto de couro de maneira interessada.


Ele colocou-o fora do alcance e afastou a cabra com uma
joelhada.
"Estou engordando-as para suportar o inverno", disse ela,
acenando com a cabeça para a jovem fêmea intrometida. "Talvez
cruzá-las, se elas estiverem prontas. Elas gostam mais da grama
do que da forragem na floresta, e é mais fácil ficar de olho nelas.
"
"Você sabe muito bem que Fanny cuidaria delas para você. O
pequeno Oggy está deixando você louca?" O bebê tinha pulmões
vigorosos. Era possível ouvi-lo na Casa Grande quando o vento
estava bom. "Ou você está deixando Rachel louca?"
"Eu gosto de cabras", disse ela, ignorando sua pergunta e
empurrando de lado um par de lábios questionadores
mordiscando a franja de seu xale. "Teich a 'ghobhair400. Ovelhas
são coisas de bom coração, quando não estão tentando derrubá-
lo, mas não são brilhantes. Uma cabra tem vontade própria."
"Sim, e você também. Ian sempre disse que você gostava das
cabras porque elas são tão teimosas quanto você."
Ela deu a ele um olhar longo e inflexível. "Panela", disse ela
sucintamente.
"Chaleira401", respondeu ele, sacudindo uma haste de grama
arrancada em direção ao nariz dela. Ela a agarrou da mão dele e
deu para a cabra.
"Mmphm", disse ela. "Bem, se você quer saber, eu venho aqui

400
Sai, cabra, em gaélico.
401
O ditado completo em inglês é “The pot calling the kettle black”- traduzindo ‘A panela chamando a
chaleira de preta’. A frase remonta ao início de 1600 , quando a maioria das panelas e chaleiras eram
feitas de ferro fundido, um material que adquire faixas de fumaça preta quando aquecido sobre uma
chama, portanto não tem significado racista. Seria o nosso equivalente “O roto está falando do
esfarrapado”. Este ditado, que personifica a hipocrisia, significa "criticar alguém por uma falha que você
também possui". É interessante conhecer a versão desse ditado em inglês.
838

para pensar, de vez em quando. E orar."


"Oh, sim?" ele disse, mas ela apertou os lábios por um momento
e depois se virou para olhar através da campina, protegendo os
olhos contra o sol da manhã.
Bem, então, ele pensou. Ela vai dizer seja lá o que for quando
estiver pronta.
"Há um urso aqui em cima, é isso?", ela perguntou, voltando-se
para ele. "Devo levar as cabras de volta?"
"Não é provável. Jo Beardsley viu alguns dias atrás, aqui na
campina, mas não há nenhum sinal fresco."
Jenny pensou nisso por um momento, então se sentou em uma
pedra coberta de líquen, espalhando as saias com cuidado. As
cabras voltaram a pastar e ela ergueu o rosto para o sol, fechando
os olhos.
"Só um idiota caçaria um urso sozinho", disse ela, com os olhos
ainda fechados. "Claire me disse isso na semana passada."
"Ela disse?", ele respondeu secamente. "Ela disse a você na
primeira vez que matei um urso, que o fiz sozinho, com meu
punhal? E ela me bateu na cabeça com um peixe enquanto eu
estava fazendo isso? "402
Ela abriu os olhos e olhou para ele.
"Ela não disse que um idiota não pode ter sorte", ressaltou. "E se
você não tivesse a sorte do próprio diabo, já estaria morto seis
vezes agora."
"Seis?" Ele franziu a testa, perturbado, e a sobrancelha dela se
ergueu em surpresa.
"Eu não estava realmente contando", disse ela. "Foi apenas um
palpite. O que é isso, a ghràidh?"

402
Livro 4 capítulo 15
839

Aquele espontâneo "Oh, amor", pegou-o inesperadamente em um


lugar sensível, e ele tossiu para escondê-lo.
"Nada", disse ele, dando de ombros. "Só que, quando eu era
jovem em Paris, uma cartomante me disse que eu morreria nove
vezes antes de morrer. Você acha que eu deveria contar a febre
depois que Laoghaire atirou em mim?"403
Ela balançou a cabeça definitivamente.
"Não, você não teria morrido mesmo se Claire não tivesse voltado
com sua agulha pequenina. Você teria se levantado e ido atrás
dela em um ou dois dias.”
Ele sorriu. "Talvez eu tivesse ido."
Sua irmã fez um pequeno ruído com a garganta que poderia ser
uma risada ou escárnio.
Eles ficaram em silêncio por um momento, ambos com as
cabeças erguidas, ouvindo o bosque. O gotejamento havia
cessado agora, e era possível ouvir um pássaro chamado
trepadeira por perto, com um canto exatamente igual a uma
dobradiça enferrujada se abrindo. Então houve um alto quá-quá
de um pássaro chamando em algum lugar atrás dele, e ele viu
Jenny olhar por cima do ombro com os olhos arregalados.
"Isso é uma pega?", ela disse. Nas Highlands, você sempre dava
ouvidos a pegas, porque eram pássaros agourentos – e se você
ouvia um, esperava ouvir outro. Um para tristeza... dois para
alegria...404
"Não", disse ele, tranquilizando-a. "Não creio que haja pegas de
verdade nestas montanhas. Isso não é senão uma espécie de pica-
pau. Sim, você o vê lá?" Ele acenou com a cabeça, e ela olhou

403
Livro 3 cap 36
404
"One for Sorrow" é uma rima infantil tradicional inglesa sobre pegas. De acordo com uma velha
superstição, o número de pegas vistas diz se alguém terá má ou boa sorte. Há inúmeras variações dessa
rima, sempre variando a quantidade de pegas vistas com coisas boas ou ruins.
840

por cima do ombro para o pássaro acinzentado com uma faixa


escarlate no pescoço, agarrado a um galho de pinheiro
balançando, um olho de contas fixo no chão.
Jenny relaxou e respirou fundo e, retomando a conversa de onde
a havia deixado, perguntou: "Posso ser acusada de ter obrigado
você a se casar com Laoghaire?"
Ele olhou para ela.
"O que faz você pensar que poderia me obrigar a fazer qualquer
coisa que eu não quisesse, sua pequenina metida?”
"O que diabos é uma metida?", ela exigiu, franzindo a testa para
ele.
"Um saco de incômodo, até onde eu posso dizer", ele admitiu.
"Jemmy chama Mandy assim."
Uma covinha repentina apareceu perto da boca de Jenny, mas ela
não riu de verdade. "Sim", ela disse. "Você sabe o que quero
dizer."
"Sim", disse ele. "E eu não. Usaria isso contra você, quero dizer.
Afinal, ela não me matou de verdade."
Uma das cabras se agachou, a alguns metros de distância, e
deixou cair uma chuva delicada de pelotas pretas limpas. Eles
fumegaram brevemente, e ele sentiu o cheiro quente
estranhamente agradável por um instante antes de desaparecer no
frio.
“Eu me pergunto como as cabras são tão limpas com isso”, disse
Jenny, observando também. "Comparado com coos405, quero
dizer."
"Och, você deveria perguntar a Claire sobre isso", disse ele. "Se
for uma questão de entranhas, ela sabe quase tanto quanto Deus

405
Vacas, em scots.
841

sobre isso."
Jenny riu, e ele percebeu tardiamente que não tinha visto nenhum
excremento de cabra em sua pesquisa da campina. Ela não estava
trazendo suas cabritas aqui regularmente, então. E, portanto... ela
veio atrás dele com um propósito. Ela tinha uma coisa para dizer
a ele, talvez, em particular.
Ele limpou a garganta e tocou o peito, onde o rosário de madeira
estava pendurado sob sua camisa.
"Orar, você disse. Vamos rezar o rosário juntos, então? Como nós
costumávamos fazer?"
Ela pareceu surpresa e por um momento em dúvida. Mas então
se decidiu e assentiu com a cabeça, colocando a mão no bolso.
"Sim, eu gostaria. E já que você mencionou... havia uma coisa
que eu queria perguntar a você, Jamie.
"Sim, o quê?"
Para sua surpresa, ela tirou um colar de pérolas cintilantes, com
o crucifixo e a medalha de ouro brilhando ao sol nascente.
"Você trouxe seu rosário bom?", ele perguntou. "Eu não sabia
disso – pensei que você teria deixado para uma de suas garotas."
Bom era falar levianamente. Esse rosário fora feito na França e
provavelmente custava tanto quanto um bom cavalo de sela – se
não mais. Era o rosário da mãe deles – Brian o deu a Jenny
quando deu o colar de pérolas de Ellen a Jamie.
Sua irmã fez uma careta e parecia meio se desculpar. "Se eu desse
a qualquer uma delas, as outras iriam interpretar mal. Não quero
que elas briguem por uma coisa dessas.
"Sim, você está certa sobre isso." Ele se agachou ao lado dela,
estendeu um dedo e tocou suavemente as pequenas contas
onduladas; eram feitas de pérolas escocesas, como o colar que ele
deu a Claire. "Onde Mam conseguiu isso, você ken? Eu nunca
842

pensei em perguntar, quando eu era pequeno."


"Bem, você não perguntaria, não é? Quando você é pequenino,
Mam e Pa são apenas Mam e Pa, e tudo é exatamente o que
sempre foi." Ela juntou as contas na palma da mão, amontoando-
as em uma pequena pilha. "Eu sei de onde esse veio, no entanto;
Pa me disse quando me deu. Você acha que aquela está chegando
no cio?" Ela apertou os olhos de repente para uma das cabras, que
havia levantado a cabeça e soltado um balido longo e penetrante.
Jamie olhou para o animal.
"Sim, talvez. Ela está balançando o rabo. Mas talvez seja só por
que ela sentiu o cheiro do cervo no bosque." Ele ergueu o queixo
para o bosque de bordos de açúcar, já meio escarlate, embora
nenhuma das folhas tivesse caído. "É cedo para o cio, mas se eu
posso sentir o cheiro dele, ela também pode."
Sua irmã ergueu o rosto para a brisa leve e respirou fundo. "Sim?
Não sinto cheiro de nada, mas aceito sua palavra. Pa sempre disse
que você tinha nariz de porco fuçador de trufas."
Ele bufou.
"Sim, certo. Então, o que Pa disse a você? Sobre o rosário de
Mam."
"Sim, bem. Ele estava com ciúme, ele me disse. Ele nunca disse
quem enviou a ela o colar ken."
"Oh, sim – você ken?"
Ela balançou a cabeça, parecendo interessada. "Você ken?"
"Eu sei. Um homem chamado Marcus MacRannoch – um de seus
pretendentes de Leoch e um homem valente; ele o comprou para
ela, na esperança de se casar com ela, mas ela viu Pa e estava à
espera dele antes que MacRannoch pudesse falar com ela. Ele
disse – bem, Claire disse que ele disse", ele se corrigiu, "que
pensara nessas pérolas tantas vezes em torno de seu pescoço
843

bonito, que não conseguia pensar nelas em nenhum outro lugar,


e então as enviou para ela como presente de casamento."
Jenny arredondou os lábios em interesse.
"Oh, então é assim. Bem, Pa sabia que era de outro homem e,
como eu disse, ele disse que estava com ciúmes – eles não
estavam casados há muito tempo, e ele talvez não tivesse certeza
de que ela pensava que tinha feito um bom negócio, aceitando
ficar com ele. Então ele vendeu um bom campo – para Geordie
MacCallum, sim? – e deu o dinheiro para Murtagh, ir comprar
uma pequena joia406 para Mam. Ele pretendia dar a ela quando o
bebê nascesse – Willie, sim?" Ela ergueu o crucifixo e beijou-o
suavemente, abençoando o irmão.
"Só Deus sabe onde Murtagh conseguiu isso..." Ela despejou o
rosário de uma mão para a outra, com um som escorregadio. "Mas
as palavras na medalha são francesas."
"Murtagh?" Jamie olhou para as contas e franziu um pouco a
testa. "Mas Pa deve ter sabido o que ele sentia por ela – por
mamãe."
Jenny assentiu, esfregando o polegar sobre o crucifixo e o corpo
de Cristo lindamente esculpido e torturado. O pica-pau gritou,
fraco e distante, além do bosque de bordo.
"Ele percebeu que eu pensava a mesma coisa – por que ele
enviaria Murtagh para tal missão? Mas ele disse que não
pretendia, apenas disse a Murtagh o que estava pensando, e
Murtagh pediu para ir. Pa disse que não queria deixar, mas não
podia sair e deixar Mam sozinha prestes a explodir com Willie e
nem mesmo um telhado sólido sobre sua cabeça ainda – ele havia
colocado as pedras angulares e ligado as chaminés, mas não mais.
E..." Ela ergueu um ombro. "Ele amava Murtagh também – mais
406
No original, “bawbee”, em scots. Originalmente, significa uma moeda de seis pennies escoceses. Ao
longo do tempo, essas moedas, consideradas de pouco valor, foram sendo usadas para brincos, pingentes
e adereços diversos, assumindo também o significado de uma pequena joia ou bijuteria.
844

do que seu próprio irmão."


"Meu Deus, sinto falta do velho desgraçado", disse Jamie
impulsivamente.
Jenny olhou para ele e sorriu com tristeza. "Eu também. Às vezes
me pergunto se ele está com eles agora – Mam e Pa."
Essa ideia assustou Jamie – ele nunca tinha pensado nisso – e ele
riu, sacudindo a cabeça. "Bem, se estiver, suponho que esteja
feliz."
"Espero que seja assim", disse Jenny, ficando séria. "Sempre
desejei que ele pudesse ter sido enterrado com eles – com a
família – em Lallybroch."
Jamie assentiu, sua garganta de repente apertada. Murtagh jazia
com os caídos de Culloden, queimado e enterrado em alguma
cova anônima naquela charneca silenciosa, seus ossos se
misturavam aos dos outros. Nenhum marco memorial de pedras,
para aqueles que o amaram virem e deixarem uma pedra para
reafirmar esse amor.
Jenny colocou a mão em seu braço, quente através do tecido de
sua manga. "Não se incomode com isso, a bràthair",407 disse ela
suavemente. "Ele teve uma boa morte, e você estava com ele no
final."
"Como você saberia que foi uma boa morte?" A emoção o fez
falar mais rudemente do que pretendia, mas ela só piscou uma
vez, e então seu rosto se acalmou novamente.
"Você me contou, idiota", disse ela secamente. "Várias vezes.
Você não se lembra disso?" Ele a encarou por um momento, sem
compreender.
"Eu disse isso a você? Como? Eu não sei o que aconteceu."

407
Irmão, em gaélico.
845

Agora foi a vez de ela ficar surpresa.


"Você se esqueceu?" Ela franziu a testa para ele. "Sim, bem... é
verdade que você estava fora de si com febre por uns bons dez
dias quando o trouxeram para casa. Ian e eu nos revezamos para
sentar com você – tanto para impedir o médico de tirar sua perna
fora quanto qualquer outra coisa. Você pode agradecer a Ian por
ainda ter essa aqui", acrescentou ela, acenando com a cabeça
bruscamente para a perna esquerda dele. "Ele mandou o médico
embora; disse que sabia que você preferia estar morto." Seus
olhos se encheram de lágrimas abruptamente e ela se virou.
Ele a pegou pelo ombro e sentiu seus ossos, finos e leves como
os de um pequeno falcão sob o pano de seu xale.
"Jenny", ele disse suavemente. "Ian não queria estar morto.
Acredite em mim. Eu queria, sim... mas ele não."
"Não, ele queira no começo", disse ela, e engoliu em seco. "Mas
você não permitiria, ele me disse – e ele também não permitiria."
Ela enxugou o rosto com as costas da mão, rudemente. Ele a
segurou e a beijou, os dedos dela frios em sua mão.
"Você não acha que teve algo a ver com isso?", ele perguntou,
levantando-se e sorrindo para ela. "Em relação a qualquer um de
nós?"
"Hmph", disse ela, mas parecia modestamente satisfeita.
As cabras haviam se afastado um pouco, o dorso marrom liso em
meio à grama desgrenhada. Uma delas tinha uma campainha; ele
podia ouvir o pequeno clank! enquanto ela se movia. Os pica-
paus também haviam se afastado – ele pegou o lampejo de
escarlate quando um voou baixo através do campo e desapareceu
na boca negra da trilha.
Ele deixou passar um momento, dois, e então mudou de posição
e fez um pequeno ruído ameaçador no fundo da garganta.
846

"Sim, sim", disse Jenny, revirando os olhos para ele. "Claro que
vou contar a você. Eu tinha que acalmar minha mente, primeiro,
sabe?" Ela reorganizou as saias e se acomodou com mais firmeza.
"Sim, então – é assim que as coisas são. Como você me disse,
pelo menos."
"Você disse", suas sobrancelhas se juntaram com o esforço de
uma cuidadosa lembrança, "que lutou em seu caminho através do
campo com fúria e quando você parou porque teve que respirar,
você – você estava... desanimado... por não se encontrar morto
ainda."
"Sim", ele disse suavemente, e com uma profunda sensação de
medo, sentiu aquele dia crescer dentro dele. Frio, tinha sido um
frio terrível com o vento e a chuva, mas ele estava em chamas
com a luta; ele não tinha sentido até parar. "O que então? Isso é
o que eu não sei..."
Ela deu um suspiro profundo e audível.
"Você estava atrás das linhas do governo. Havia canhões atrás de
você – apontando para o outro lado, sim? Em direção a... nossos
homens."
"Sim. Eu podia ver – eu podia... vê-los. Caindo e morrendo, nas
leiras."
"Leiras?" Ela parecia um pouco assustada e ele olhou para baixo,
ainda sentindo o frio de Culloden em suas mãos e pés.
"Eles caíram nas linhas", disse ele, sua própria voz soando remota
e razoável, desligada. "As armas inglesas, os mosquetes – eles
têm um alcance de... Não me importo agora, mas foi onde caímos,
no final desse alcance. Havia homens explodidos e esmagados
pelos canhões, mas a maioria eram os mosquetes. Baionetas
depois – eu ouvi isso, não vi." Ele engoliu em seco e, mantendo
a voz firme, perguntou: "O que eu disse que aconteceu então?"
847

Ela exalou pelo nariz, e ele viu que ela havia fechado a mão sobre
o rosário, apertando-o como se quisesse tirar força das contas.
"Você disse que não conseguia pensar no que fazer, mas havia
um canhão por perto e a equipe estava de costas para você. Então
você se virou para ir atrás do homem mais próximo, mas havia
um grupo de casacos vermelhos entre você e o canhão, e quando
você enxugou o suor de seus olhos, viu que um deles era Jack
Randall.” Sua mão livre fez um sinal discreto dos chifres, depois
fechou-se em punho.
Ele lembrou. Lembrou-se e sentiu uma guinada em seu rosto
quando a imagem que vira em sonhos se encontrou e se fundiu
com a memória.
"Ele me viu", ele sussurrou. "Ele ficou imóvel e eu também. O
choque disso – eu não conseguia me mover."
"E Murtagh...", a voz de Jenny veio suave.
"Eu o mandei de volta", ele sussurrou, vendo o rosto de seu
padrinho, enrugado em uma recusa teimosa. "Eu o fiz ir. Fiz com
que ele levasse Fergus e os outros – eu disse que ele deveria levá-
los a salvo para Lallybroch, porque ... porque ... "
"Porque você não poderia", disse ela, em voz baixa.
"Eu não poderia", disse ele, e engoliu o nó que crescia em sua
garganta.
"Mas ele estava lá, você disse", Jenny incitou depois de um
momento. "No campo. Murtagh."
"Sim. Sim, ele estava." Ele viu o movimento repentino, um
movimento brusco da cena congelada à sua frente, ergueu os
olhos do rosto de Jack Randall para olhar e viu Murtagh correndo
...
E mais uma vez o sonho desceu sobre ele e ele estava nele. Com
frio. Tão frio que a voz congelou em sua garganta, a chuva e o
848

suor grudaram em seu corpo o pano úmido, e o vento gelado


cortava seus ossos com a mesma facilidade que suas roupas. Ele
tentou – ele havia tentado – gritar, fazer Murtagh parar antes de
alcançar os soldados ingleses. Mas teria sido necessário mais do
que mosquetes e canhões britânicos para parar Murtagh
FitzGibbons Fraser, quanto mais a voz de Jamie, e ele não parou,
saltando sobre as moitas da grama da charneca, a água estourando
como vidro quebrado sob seus pés.
"O capitão Randall falou com você, você disse..."
"Me mate." Ele ouviu sua própria voz sussurrar as palavras. "Ele
me pediu para matá-lo."
O desejo do meu coração. As palavras pareciam gotas de chumbo
em seu ouvido. O vento assobiava passando por sua cabeça,
puxando os cabelos do laço que os amarrava e batendo em seu
rosto. Mas ele tinha ouvido isso, ele sabia que tinha, ele não tinha
sonhado... Mas seus olhos estavam em Murtagh. Houve
movimento, confusão, alguém veio em sua direção, ele viu a
lâmina escura de uma baioneta, molhada de chuva ou sangue ou
lama, e ele a empurrou de lado e de repente era uma luta, com
dois deles o puxando, batendo, tentando derrubá-lo.
Um som repentino o surpreendeu e ele abriu os olhos,
desorientado, e percebeu que ele próprio tinha feito o barulho, era
o som que ele fez quando algo arrancou sua perna esquerda
debaixo dele, um grunhido de impacto, impaciência, ele teve que
se levantar...
"E o capitão Randall estendeu a mão para você, então, de onde
você estava deitado no chão..."
"E eu estava com meu punhal na mão e..." Ele parou e olhou para
sua irmã, urgente. "Eu o matei? Eu disse que sim?"
Ela o estava observando de perto, um olhar de profunda
preocupação em seu rosto. Ele fez um gesto impaciente e ela
849

lançou-lhe um olhar de reprovação. Não, ela não mentiria para


ele, ele sabia muito bem disso ...
"Você disse que sim. Você disse isso, de novo e de novo..."
"Eu disse que o matei, de novo e de novo?
Apesar de si mesma, ela deu um pequeno estremecimento. "Não.
Disse que estava quente. O sangue dele. Quente, você ficava
dizendo, Deus, estava tão quente..."
"Quente." Por um momento, isso não fez sentido, e então ele teve
um vislumbre: a vaga sensação de escuridão inclinada sobre ele,
o roçar da lã molhada em seu rosto, esforço, tanto esforço para
erguer o braço uma vez mais, tremendo, ele viu gotas de chuva
limpa escorrendo pela lâmina, sobre sua mão trêmula, e esforço,
empurrando, empurrando e sentindo a resistência do pano áspero
e grosso, a dureza momentânea, empurre, maldito, então um calor
profundo e surpreendente que havia derramado sobre sua mão
congelada, seu braço gelado. Ele estava desesperadamente grato
pelo calor, ele se lembrava disso, mas não conseguia se lembrar
do golpe em si.
"Murtagh", disse ele, e a sensação de calor do sangue o deixou
tão repentinamente quanto havia surgido, o vento frio em seus
ouvidos. "Eu disse o que aconteceu com Murtagh?"
Ele deu um suspiro de dor, exasperação, desolação. "Por que você
não foi quando eu disse a você, seu velho desgraçado?"
"Ele foi", Jenny disse, inesperadamente. "Ele levou os homens
até a estrada e os colocou no caminho. Disseram isso quando
voltaram para Lallybroch. Mas então ele voltou – por você."
"Por mim." Ele não precisava fechar os olhos agora, ele viu; ele
sentiu nas próprias costas, ao ver o golpe da faca de Murtagh,
erguendo-se com força, mirando no rim do capitão. Randall havia
caído como uma pedra – não foi? Mas então como ele estava de
850

pé depois... e então os outros estavam todos em cima deles.


Ele foi derrubado de cara no chão e alguém pisou em suas costas,
chutou-o na cabeça, uma coronha o acertou nas costelas e lhe
tirou o fôlego... Houve gritos e a sensação de gelo foi rastejando
por seu corpo – é claro, ele estava gravemente ferido, mas não
sabia disso, estava sangrando lentamente até a morte. Mas tudo
em que conseguia pensar era em Murtagh, que ele precisava
alcançá-lo... Ele rastejou. Ele lembrava de ver a água subir entre
seus dedos enquanto sua mão pressionava e o espinho negro e
duro de urze úmida quando ele a agarrou, puxando a si mesmo
para continuar... seu kilt estava encharcado e o puxava para baixo,
pesado e se arrastando entre as pernas, atrapalhando...
"Eu o encontrei", disse ele, e respirou tão fundo que estremeceu
os pulmões. "Algo aconteceu – os soldados foram embora, não
sei quanto tempo demorou – de uma respiração para a outra, foi
como me senti." Seu padrinho estava deitado a poucos metros
dele, enrolado como um bebê dormindo. Mas ele não estava
dormindo – nem morto. Ainda não. Jamie o pegou em seus
braços, viu a terrível ferida dentada que havia rasgado sua
têmpora, o sangue jorrando preto de um corte em seu pescoço.
Mas também viu a beleza, o brilho do rosto de Murtagh quando
ele abriu os olhos para ver Jamie segurando-o.
"Ele me disse que não doía morrer", disse Jamie. Sua voz estava
rouca e ele pigarreou. "Ele tocou meu rosto e disse para eu não
ter medo."
Ele havia se lembrado disso – mas agora ele se lembrava também,
da sensação de paz repentina e avassaladora. A leveza. A
exultação que voltou tão estranhamente em seu sonho. Nada
importava mais. Tinha acabado. Ele abaixou a cabeça e beijou a
boca de Murtagh, encostou a própria testa no cabelo emaranhado
e ensanguentado e entregou sua alma a Deus.
851

"Mas" Ele abriu os olhos – não se lembrava de tê-los fechado – e


se virou para Jenny, urgente. "Mas ele voltou! Randall. Ele não
estava morto, ele voltou!"
Preto, uma coisa negra, em forma de homem, ereto contra um céu
branco e cego. As mãos de Jamie se fecharam em punhos, tão
repentinamente que as unhas se cravaram em suas palmas.
"Ele voltou!"
Jenny não falava e não se mexia, mas seus olhos estavam fixos
nele, pedindo-lhe silenciosamente que se lembrasse. E ele
lembrou.
Seus membros ficaram fracos e ele perdeu a sensação na perna
por completo. Sem querer, ele caiu no chão, perdendo o controle
sobre o corpo de Murtagh. Estava deitado de costas, ainda capaz
de sentir a chuva em seu rosto, mas nada mais, a visão se fora.
Ele não se importava com o homem negro, com nada. A paz da
morte estava sobre ele. A dor e o medo se foram e até o ódio se
dissipou.
Ele fechou os olhos novamente agora, vendo isso, e imaginou que
sentiu a mão de Murtagh, dura e calejada, ainda segurando a dele
quando estava deitado no chão.
"Eu o matei?", ele sussurrou, mais para si mesmo do que para
Jenny. "Sim ... sei que sim... mas como..."
O sangue. O sangue quente.
"O sangue – derramou pelo meu braço, e então eu... eu não estava
mais lá. Mas quando acordei, meus olhos estavam fechados com
sangue seco e foi isso que me fez pensar que estava morto – eu
não conseguia ver nada além de uma espécie de luz vermelho-
escura. Mais tarde, porém, não consegui encontrar um ferimento
na cabeça. Era o sangue dele me cegando. E ele estava deitado
sobre mim, na minha perna..."
852

Ele abriu os olhos, ainda explicando para si mesmo, e descobriu


que estava sentado no chão, a mão calejada agarrada com força à
sua era a de sua irmã, e as lágrimas escorriam silenciosamente
pelo rosto dela enquanto ela o observava.
"Och", disse ele, e ficando de joelhos a puxou de sua rocha em
seus braços. "Não chore, a leannan. Acabou."
"Isso é o que você pensa, não é?", ela disse, a voz abafada pela
sua camisa. Ela estava certa, ele sabia disso. Mas ela o segurou
com força. E lentamente, lentamente, a manhã voltou.
Eles ficaram sentados por um tempo, sem falar. O sol já estava
bem acima das copas das árvores e, embora o ar ainda estivesse
fresco e agradável, não havia mais frio.
"Sim, bem", disse ele, finalmente, levantando-se. "Você ainda
quer orar?" Ela ainda segurava o rosário de pérolas, pendurado
em uma das mãos. Ele não esperou pela resposta dela, mas enfiou
a mão na camisa e tirou o rosário de madeira que usava no
pescoço.
"Oh, você tem suas contas velhas, afinal", disse ela, surpresa.
"Você não tinha seu rosário na Escócia, então pensei que você o
tivesse perdido. Pretendia fazer um novo para você, mas não
houve tempo, com Ian..." Ela ergueu um ombro, o gesto
abrangendo todos os meses terríveis da longa morte de Ian.
Ele tocou as contas, constrangido. "Sim, bem... eu tinha, por
assim dizer. Eu... dei para William. Quando ele era um
menininho, e eu tive que deixá-lo em Helwater. Eu dei a ele o
rosário para guardar – para... lembrar de mim."
"Mmphm." Ela olhou para ele com simpatia. "Sim. E imagino que
ele o devolveu a você na Filadélfia, não foi? "
"Foi sim", disse Jamie, um pouco conciso, e uma diversão irônica
tocou o rosto de Jenny.
853

"Eu digo uma coisa a você, a bràthair – ele não vai esquecer
você."
"Sim, talvez não", ele disse, sentindo um conforto inesperado no
pensamento. "Bem, então... " Ele deixou as contas correrem por
seus dedos, segurando o crucifixo. "Creio em Deus pai todo
poderoso... "
Eles rezaram o Credo juntos, depois o Pai Nosso, as três Ave-
Marias e o Glória a Deus.
"Gozosos ou Gloriosos?", ele perguntou, os dedos na primeira
conta das décadas. Ele não queria fazer os Mistérios
Dolorosos408, aqueles sobre sofrimento e crucificação, e ele
também não achava que ela queria.
Um pica-pau chamou lá nos bordos, e ele se perguntou
brevemente se era um que eles já tinham visto, ou um terceiro.
Três para um casamento, quatro para uma morte...
"Gozosos" ela disse imediatamente. "A Anunciação409." Então
ela fez uma pausa e acenou para que ele começasse. Ele não
precisava pensar.
"Por Murtagh", disse ele baixinho, e seus dedos se apertaram nas
contas. "E Mam e Pa. Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é
convosco. Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto
do vosso ventre, Jesus."
"Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores agora e na
hora de nossa morte, Amém." Jenny terminou a oração e eles
disseram o resto da década da maneira usual, um em cada turno,
o ritmo de suas vozes suave como o farfalhar da grama.

408
As contas do rosário eram divididas, tradicionalmente em três partes (por isso também é chamado de
terço), cada parte correspondendo a um dos Mistérios da vida de Cristo. As orações são feitas usando
esses Mistérios para reflexão enquanto o penitente realiza suas orações.
409
Também conhecida como Anunciação da Virgem Maria, é a celebração cristã do anúncio pelo Arcanjo
Gabriel para a Virgem Maria que ela seria a mãe de Jesus Cristo.
854

Eles chegaram à segunda década410, a Visitação411, e ele acenou


para Jenny – era vez dela.
"Para Ian Òg", ela disse suavemente, os olhos em suas contas. "E
Ian Mòr. Ave Maria... "
A terceira década foi para William. Jenny olhou para ele quando
ele disse isso, mas apenas acenou com a cabeça e abaixou a
cabeça.
Ele não tentava evitar pensar em William, mas também não
chamava o rapaz deliberadamente à mente; não havia nada que
ele pudesse fazer para ajudar – até ou a menos que William
pedisse –, e não faria bem a nenhum dos dois se preocupar com
o que o rapaz estava fazendo ou o que poderia estar acontecendo
com ele.
Mas... ele disse "William", e pelo espaço de um Pai-Nosso, dez
Ave-Marias e um Glória, William devia necessariamente estar
em sua mente.
Guie-o, ele pensou, entre as palavras da oração. Dê a ele um bom
julgamento. Ajude-o a ser um bom homem. Mostre-lhe o caminho
... e Mãe Santa ... mantenha-o seguro, pelo bem de seu próprio
Filho ... "pelos séculos dos séculos. Amém", disse ele,
alcançando a conta final.
"Para todos aqueles que permaneceram na Escócia", disse Jenny
sem hesitar, depois fez uma pausa e ergueu os olhos para ele.
"Laoghaire também, você acha?"
"Sim, ela também", ele disse, sorrindo apesar de si mesmo.
"Contanto que você coloque aquele pobre bastardo com quem ela
é casada, também."

410
Conjunto de orações acompanhando cada conta do rosário: cada década é composta de um pai-nosso,
dez ave-marias e um glória-ao-pai.
411
A Visitação é a visita de Maria a Isabel e deve ser usada para refletir sobre a caridade para com o
próximo.
855

Na última década, eles pararam por um momento, olhando um


para o outro.
"Bem, o último foi para o povo da Escócia", disse ele. "Vamos
fazer o seu para o povo de outros lugares – Michael e a pequena
Joan e Jared, na França?"
O rosto de Jenny ficou momentaneamente suave – ela não via
Michael desde o funeral de Ian, e o pobre rapaz tinha sido
despedaçado, sua jovem esposa morreu repentinamente, uma
criança foi com ela – e então seu pai. A boca de Jenny tremeu por
um instante, mas sua voz era clara e o sol estava suave no branco
de sua touca quando ela inclinou a cabeça. "Pai Nosso que estais
no céu…"
Houve um silêncio quando eles terminaram – o tipo de silêncio
que uma floresta oferece, feito de vento e os sons da grama
secando e das árvores soltando folhas em uma chuva amarela. O
sino da cabra retiniu do outro lado do prado, e um pássaro que ele
não conhecia tagarelou sozinho no bosque de bordo. O cervo
tinha sumido; ele o ouviu partir em algum momento enquanto ele
orava por William e desejou a seu filho boa sorte.
Jenny respirou fundo como se fosse falar, e ele ergueu a mão;
havia algo em sua mente e era melhor ele dizer agora.
"O que você disse sobre Lallybroch", ele começou, um pouco
sem jeito. "Não se preocupe com isso. Se você morrer antes de
mim, vou cuidar para que você volte para casa em segurança, para
descansar junto a Ian."
Ela assentiu pensativa, mas seus lábios estavam um pouco
franzidos, enquanto os segurava enquanto pensava.
"Sim, eu sei que sim, Jamie. Você não deve fazer um grande
esforço para isso, no entanto.
"Eu não?"
856

Ela soprou o ar pelos lábios e os fixou com firmeza.


"Bem, veja, eu não sei onde posso estar, quando chegar a hora.
Se estiver aqui, então é claro..."
"Onde diabos mais você poderia estar?", ele perguntou, com a
compreensão de que ela poderia não ter vindo aqui para contar a
ele sobre Murtagh, porque ela não sabia que ele precisava
relembrar. Assim...
"Eu vou com Ian e Rachel para encontrar sua esposa mohawk",
disse ela, tão simplesmente como poderia ter dito que estava indo
colher nabos.
Antes que ele pudesse encontrar uma única palavra, ela ergueu o
rosário na frente de seu rosto. "Estou deixando isso com você,
ken – é para Mandy, apenas no caso de eu não voltar. Você sabe
muito bem que tipo de coisas podem acontecer quando você está
viajando", ela acrescentou, com uma pequena careta de
desaprovação.
"Viajando", disse ele. "Viajando? Você pretende – para..." O
pensamento de sua irmã, pequena, idosa e teimosa como um
crocodilo afundado na lama, marchando para o norte no meio de
dois exércitos, no auge do inverno, cercada por salteadores,
animais selvagens e meia dúzia de outras coisas que ele poderia
pensar se tivesse tempo para isso...
"Eu irei." Ela olhou para ele, indicando que não pretendia discutir
por mais tempo. "Onde o Jovem Ian vai, Rachel diz que também
vai, e isso significa que o pequenino também. Você não acha que
eu pretendo deixar meu neto mais novo à mercê de ursos e índios
selvagens, não é? Essa é uma pergunta retórica", acrescentou ela,
com um ar satisfeito por ter terminado com ele. "Isso significa
que não espero que você responda."
"Você não saberia a diferença de uma pergunta retórica ou de um
buraco no chão se eu não tivesse lhe contado o que é!"
857

"Bem, então, você deve reconhecer uma quando ela morde você
no nariz", ela disse, colocando sua língua no ar.
"Eu vou falar com Rachel", disse ele, olhando para ela.
"Certamente ela é mais sensata do que..."
“Você pensa que eu não falei com ela? Ou com o Jovem Ian?"
Jenny balançou a cabeça, meio admirada. "Seria mais fácil mover
sua pequena montanha lá", ela acenou com a cabeça para o
volume da Montanha Roan, assomando verde escura à distância,
"do que fazer aquela moça quacre mudar de ideia, uma vez que
esteja decidida."
"Mas o bairn...!"
"Sim, sim", ela disse, um pouco irritada. "Você acha que eu não
mencionei isso? E ela estreitou os olhos. Mas então ela me disse,
razoável como um domingo, se eu deixaria meu marido viajar
sozinho 1.100 quilômetros para resgatar sua primeira esposa, e os
três pobres bairns dela – um dos quais pode ser de Ian? – e essa
é a primeira vez que ouvi falar disso também", ela adicionou,
vendo o rosto dele. "Eu entendi o argumento dela."
"Jesus."
"Sim." Ela se espreguiçou, gemendo um pouco, e sacudiu as
saias, que agora estavam cheias de sementes de grama
espinhenta. Jamie sentia a picada delas através das meias,
dezenas de agulhas minúsculas. A ideia da partida de Jenny era
um punhal direto em seu coração. Doía respirar.
Ele sabia que ela sabia disso; ela não olhou para ele, mas enrolou
o rosário de pérolas cuidadosamente e, pegando sua mão,
colocou-o em sua palma.
"Guarde para mim", disse ela, com naturalidade, "e se eu não
voltar, dê para Mandy, quando ela tiver idade suficiente."
"Jenny...", ele disse suavemente.
858

"Veja, quando você vier a avaliar sua vida", disse ela


rapidamente, abaixando-se para pegar a corda das cabras, "você
verá que os filhos são o mais importante. Eles carregam o seu
sangue e tudo o mais que você lhes deu, para o futuro." Sua voz
estava perfeitamente estável, mas ela limpou a garganta com um
pequeno som de hem antes de continuar.
"Mandy é a que está mais longe, certo?" ela disse. "Tanto quanto
eu posso saber. A menina mais nova com o sangue de Mam.
Deixe-a assumir, então."
Ele engoliu em seco.
"Eu guardo", disse ele, e fechou a mão sobre as contas, quentes
com o toque de sua irmã, quente com suas orações. "Eu juro,
irmã."
"Bem, eu sei disso, clot-heid412", disse ela, sorrindo para ele.
"Venha e me ajude a pegar essas cabras."

412
Imbecil, em gaélico.
859

PARTE QUATRO

Uma Jornada de Mil


Passos413

413
Uma referência a um antigo provérbio chinês que traduzido seria: Uma jornada de mil passos começa
com o primeiro passo.
860

59

PEDIDOS ESPECIAIS

JAMIE ENTREGOU A IAN uma bolsa pequena e pesada.


"Eu me viro, tio", disse ele, tentando devolvê-la. "Temos cavalos
e tenho dinheiro suficiente para nos alimentar, eu acho."
"Você ficaria feliz em dormir na floresta ao longo do caminho,
e Rachel é jovem e forte, e sem dúvida ela faria isso por amor a
você. Mas se você acha que pode fazer sua mãe viajar mil e cem
quilômetros, dormindo na beira da estrada e comendo o que
puder pegar no caminho... reconsidere, aye?
"Mmphm." Ian reconheceu o motivo disso, embora ele pesasse
a bolsa com relutância na palma da mão.
"Além disso", seu tio acrescentou, e olhou por cima do ombro.
"Há um favor que eu queria pedir a você."
"Claro, tio Jamie." Tia Claire estava no quintal lateral, ajudando
na lavanderia; ele viu os olhos de seu tio pousarem nela, com
um olhar mesclado de afeto e cautela que despertou o interesse
de Ian. "O que é?"
"Rachel disse que você pretende passar alguns dias na Filadélfia
no caminho, para que ela possa visitar alguns de seus amigos
quacres e ir a uma reunião adequada."
"Sim. Então…?"
"Bem. Cerca de oito quilômetros fora da cidade, ao longo da
estrada principal, há uma pequena estradinha – chama-se
Mulberry. Eu desenhei um mapa para vocês, mas vocês também
861

podem perguntar o caminho. Há uma pequena casa caindo aos


pedaços no final da estrada; que pertence a uma mulher chamada
Sílvia Hardman."
"Uma mulher?" Ian olhou involuntariamente para tia Claire
também. Ela estava rindo de algo que Jem havia dito, seu rosto
corado com o calor do fogo e seus cabelos loucos escapando do
lenço que ela tinha amarrado em volta da cabeça.
"Sim", disse seu tio laconicamente, virando-se ligeiramente para
ficar de costas para a lavanderia. "Uma senhora quacre, uma
viúva com três meninas pequenas. Ela me fez um grande
serviço, antes de Monmouth, e já que você estará de passagem,
gostaria que visse qual é a condição dela, e não importa o que
seja, obrigue-a a aceitar isso." Ele procurou em seu sporran e
tirou outra bolsa menor.
Ian aceitou sem questionar, guardando-a em sua própria bolsa.
Tio Jamie estava ligeiramente carrancudo, hesitante.
"Mais alguma coisa, tio?"
"Se, quero dizer, eu não sei se ..."
"Seja o que for, a bràthair-màthar414, sabe que vou fazer isso,
aye?" Ele sorriu para o tio Jamie, que relaxou e sorriu de volta.
"Sim, Ian, e estou grato. A questão é – a Amiga Sílvia é uma
mulher virtuosa, mas seu marido foi morto, talvez pelo exército
britânico, talvez por legalistas, talvez por índios. Ele a deixou
mal, ela não tem parentes e... não há muitas maneiras de uma
mulher sozinha sustentar três meninas."
"Ela é uma prostituta, então?", Ian havia baixado a própria voz,
mantendo um olho no vapor que saía do caldeirão da roupa suja.
O pequeno Orrie Higgins estava cuidando de Oggy e
aparentemente tentando ensinar um jogo de bater palmas com

414
Ó irmão da minha mãe. Meu tio. Em gaélico
862

ritmo, embora o bebê não fizesse mais do que agitar seus braços
gordinhos e gritar.
"Não!" O rosto do tio Jamie ficou sombrio. "Quero dizer, ela às
vezes..."
"Eu entendo", disse Ian apressadamente, de repente se
perguntando sobre a natureza do serviço que a sra. Hardman
poderia ter prestado a seu tio.
"Não eu, pelo amor de Deus!"
"Eu não pensei que fosse, tio!"
"Sim, você pensou", disse tio Jamie secamente. "Mas, além de
esfregar o linimento de raiz-forte e aplicar um cataplasma nas
minhas costas, a mulher nunca colocou a mão em mim – ou eu
nela, certo?"
Ian sorriu para seu tio e ergueu as duas mãos, indicando uma
aceitação completa dessa história.
"Mmphm. Então, como eu disse, quero que veja qual é a
condição dela. Pode ser que ela tenha encontrado um homem
para se casar com ela – e se ela se casou, você tenha muito
cuidado ao lhe dar o dinheiro para que ele não veja. Mesmo se
ele for um bom homem, ele pode assumir coisas que não são
verdade... E aqui ele deu a Ian um olhar duro. "Mas se ela está
recebendo os homens que vêm a sua casa, você descubra isso e
certifique-se de que nenhum deles a esteja ameaçando ou pareça
um perigo para ela ou suas garotas pequeninas."
"E se eles estiverem ...?"
"Tome conta disso."
-.-.-
ENCONTREI IAN na casinha da fonte, cheirando os queijos.
"Pegue aquele", sugeri, apontando para uma forma embrulhada
863

em gaze no final da prateleira de cima. "Tem pelo menos seis


meses de idade, então estará duro o suficiente para viajar com
ele. Oh, mas você pode querer um pouco do queijo mais macio
para Oggy, não é?"
Havia pelo menos uma dúzia de potes de lata de queijo de cabra
macio, alguns aromatizados com alho e cebolinha – uma
experiência aventureira com tomates secos picados de que eu
tinha sérias dúvidas – mas quatro sem sabor, para uso na
alimentação de pessoas com problemas digestivos e para
misturar remédios que eu não conseguiria fazer ninguém engolir
de outra forma.
"Rachel acha que ele pode estar começando a dentição", Ian me
assegurou. "Quando chegarmos a Nova York, ele estará roendo
carne crua até o osso."
Eu ri, mas senti uma pontada aguda ao perceber que ele estava
certo; quando voltássemos a ver Oggy, ele provavelmente
estaria caminhando, talvez conversando, e totalmente equipado
para comer qualquer coisa que desejasse.
"Ele pode até ter um nome adequado nessa época", eu disse, e
Ian sorriu, balançando a cabeça.
"Você nunca sabe quando o nome certo de uma pessoa virá, mas
sempre acontece." Ele olhou para o lado, por reflexo. Para onde
Rollo estaria.
"Irmão do Lobo?", eu disse. Esse foi o nome que os mohawks
lhe deram quando se tornou um deles. Eu estava bastante ciente
– e pensei que Rachel e Jenny sabiam disso muito bem – que ele
de forma alguma tinha deixado de ser um mohawk, embora
tivesse voltado para morar conosco novamente. Ele também não
tinha parado de olhar para baixo em busca de Rollo, também.
"Sim", ele disse, um pouco rispidamente, mas então ele me deu
um meio sorriso e o rapaz escocês apareceu através das
864

tatuagens. "Talvez outro lobo venha me encontrar, algum dia."


"Eu espero que sim", eu disse, sendo sincera. "Ian, eu queria
pedir um favor."
Uma sobrancelha se ergueu.
"Diga, tia."
"Bem... Jamie disse que você planeja parar na Filadélfia. Eu me
perguntei..." Senti-me corando, para minha irritação. Sua outra
sobrancelha se ergueu.
"Seja o que for, tia, eu farei", disse ele, um lado da boca se
curvando. "Eu prometo."
"Bem... eu, hum, quero que você vá a um bordel."
As sobrancelhas baixaram e ele olhou fixamente para mim,
obviamente pensando que não tinha ouvido direito.
"Um bordel", eu repeti, um pouco mais alto. "No Beco de
Elfreth."
Ele ficou imóvel por um momento, depois se virou e colocou o
queijo de volta na prateleira, e olhou para baixo, para a água
marrom do riacho passando por nossos pés.
"Isso parece que pode levar um pouco de tempo para explicar,
aye? Vamos sair para o sol."
865

60

APENAS UM PASSO415

15 de setembro de 1779

APENAS UM PASSO. ISSO É tudo que você precisa, só isso


que você precisa. Às vezes você vê o passo a ser dado, mesmo à
distância. Às vezes, você nunca percebe, até que olha para trás.
Aqui estava, bem na frente dela. A porta de sua cabana – dela,
da sua casa, a casa de seu casamento, dos primeiros meses de
seu bebê, de sua vida mais real – estava aberta para a manhã e
as folhas douradas redondas dos álamos estavam achatadas no
piso de madeira da varanda, brilhando com o orvalho quando o
amanhecer aconteceu.
Um passo além da soleira – que separava seu pequeno tapete de
retalhos, com seus azuis e cinzas tranquilos e caseiros, daquele
abandono pagão de dourados, verdes e vermelhos lá de fora –, e
sua vida aqui estaria acabada. Eles poderiam voltar – Ian tinha
prometido que voltariam, e ela confiava que ele faria tudo o que
pudesse para que isso acontecesse – mas mesmo que eles
voltassem, seria uma vida diferente.
Oggy – talvez já estivesse andando, falando; talvez já tivesse um
nome diferente. Ele não se lembraria desta infância, a
proximidade de acordar encostado a seu corpo na cama, virando-
se imediatamente para seu seio e cedendo sua existência
separada tão facilmente, tornando-se um com ela como ele tinha
sido quando ela o carregou dentro de si, apenas por aqueles
momentos enquanto ele se alimentava dela novamente. Em

415
O passo que complementa o título dessa parte.
866

algum lugar ele seria desmamado, na estrada entre o agora e o


depois. Ele seria uma pessoa diferente quando eles voltassem.
Ela também.
Jenny se aproximou dela, o rosto radiante e um embrulho com
comida e bebida, lenços, panos e meias limpas debaixo do braço.
Ela olhou para o rosto de Rachel, depois para o interior da
cabana, como se estivesse fazendo um inventário. Havia pouco
para anotar: o tapete, a cama e a cama sobressalente de rodízio
onde Jenny dormia, o berço de Oggy. Eles já haviam dado tudo
o mais; o que eles precisassem seria devolvido ou construído
novamente se eles retornassem.
"Bem, então, rapaz", disse Jenny a Oggy. "Esta será sua primeira
viagem para fora de casa, aye? É a minha terceira. Apenas preste
atenção em mim; eu vou cuidar de você."
Oggy prontamente se inclinou para fora dos braços de Rachel,
estendendo a mão para sua avó, que riu e o pegou.
"Você está pronta, m’annsachd?", ela disse a Rachel. "O sentido
da reunião está claro? Vamos sair, então, e ver o que vem pela
frente."
-.-.-

O PRIMEIRO PASSO os levou da cabana à Casa Grande para


se despedirem. Eles já haviam se despedido de Brianna e Roger,
com sua carroça cheia de crianças e chucrute de contrabando três
semanas antes – uma experiência que deixou o coração de
Rachel inquieto. Agora ela estava inexprimivelmente aliviada ao
ver Jamie e ouvir que ele pretendia acompanhar os viajantes na
jornada de três dias até Salisbury, no Piedmont, onde
encontrariam a Great Wagon Road416 – a grande estrada de

416
A Great Wagon Road era uma trilha melhorada que atravessa o Grande Vale Apalacheano e seguia
desde a Pensilvânia (ao norte) até a Carolina do Norte e de lá para Geórgia (ao sul) , na América colonial
867

carroças – que os levaria para o norte.


"Eu preciso encontrar alguns homens lá", Jamie disse, com uma
reserva casual que ela sabia que era para proteger os sentimentos
dela. Ela sabia que seu negócio era a guerra, e ele sabia o quanto
isso a incomodava, mas ela sabia o quanto isso o perturbava e
não o forçaria a dizer as coisas que estava pensando, muito
menos as coisas que ele sabia.
Ela se sentiu impelida a falar sobre isso – a guerra – em geral,
nas reuniões. E então ela falou sobre seu irmão, Denzell. Um
Amigo desde o nascimento, assim como ela era; um homem
piedoso, mas também um médico e um homem de consciência.
"Nem sempre é confortável viver com esses homens", ela disse,
meio se desculpando, mas mais como uma mulher sorrindo com
simpatia, sabendo o que ela queria dizer. "Mas eu não faria de
outra forma, vós sabeis. E ele pensa que Deus o chamou para o
campo de batalha – não para lutar com um mosquete ou espada,
mas para lutar contra a própria Morte, em nome da Liberdade."
Ela respirou fundo e acrescentou: "Disseram que meu irmão foi
capturado e está em uma prisão britânica. Eu gostaria de pedir a
todos vós, por favor, para orar por ele."
Eles assentiram, solenes. E Jamie Fraser se benzeu, o que a
emocionou.
Jamie quase sempre ia às reuniões, mas raramente falava. Ele
entrava em silêncio e se sentava em um banco de trás, a cabeça
baixa, ouvindo. Escutando, como qualquer Amigo, o silêncio e
sua luz interior. Quando as pessoas se sentiam movidas pelo
espírito a falar, ele as ouvia cortesmente também, mas,
observando o afastamento em seu rosto nessas ocasiões, ela
pensava que sua mente estava quieta por si mesma, em uma
busca silenciosa e persistente.
"Suponho que o Jovem Ian não tenha lhe falado muito sobre os
868

católicos", ele disse a ela uma vez, quando parou em sua cabana
para dar a ela um pouco de lã que trouxera de Salem.
"Só quando eu pergunto a ele", disse ela, com um sorriso. "E tu
sabes que ele não é um teólogo. Roger Mac sabe mais, eu acho,
sobre a fé e a prática católicas. Queres me contar algo sobre os
católicos? Eu sei que tu deves te sentir seriamente em
desvantagem numérica a cada Primeiro Dia417."
Ele sorriu com isso, e o coração dela ficou feliz em ver o sorriso.
Ele ficava perturbado com tanta frequência ultimamente, e não
é de admirar.
"Não, moça, Deus e eu nos damos muito bem sozinhos. É só
que, quando venho à sua reunião, às vezes me lembro de uma
coisa que os católicos fazem de vez em quando. Não é uma coisa
formal, mas um penitente senta-se por uma hora diante do
Sacramento, na igreja. Eu fiz isso uma vez ou outra, quando eu
era jovem, em Paris. Chamamos isso de Adoração."
"O que você faz durante essa hora?", ela perguntou, curiosa.
"Nada em particular. Ora, na maior parte. Reza o rosário. Ou
senta-se em silêncio. Lê, talvez, a Bíblia ou os escritos de algum
santo. Eu vi pessoas cantando, às vezes. Lembro-me de uma vez,
entrando na capela de São José nas primeiras horas da manhã,
muito antes do amanhecer – quase todas as velas estavam
queimadas – e ouvi alguém tocando violão, cantando. Muito
suave, não tocando para ser ouvido, entende. Apenas... cantando
diante de Deus."
Algo estranho se moveu em seus olhos com a lembrança, mas
então ele sorriu para ela novamente, um sorriso triste.
"Eu acho que essa pode ser a última música que eu realmente

417
Os quacres repudiam o que chamam de nomes pagãos dos dias da semana. Então simplesmente os
nomeio pela ordem numérica. O domingo (sunday – dia do sol) é chamado de primeiro dia; a segunda-
feira (monday – dia da lua) é o segundo dia, e assim por diante.
869

me lembro de ouvir."
"O quê?"
Ele tocou a nuca, brevemente.
"Fui atingido na heid418 com um machado, há muitos anos. Eu
sobrevivi, mas nunca mais ouvi música. As flautas, violinos,
alguém cantando... Eu sei que é música, mas para mim, não é
mais do que barulho. Mas aquela música... Não me lembro da
música em si, mas sei como me senti quando a ouvi. "
Ela nunca tinha visto uma expressão em seu rosto como quando
ele relembrou aquela música para ela, mas agora, olhando para
suas costas, retas e eretas enquanto ele cavalgava diante deles,
de repente ela sentiu o que ele sentiu nas profundezas daquela
noite distante, e entendeu porque ele encontrou paz em espaços
silenciosos.

418
Cabeça, em scots.
870

61

SE UM CORPO ENCONTRA UM CORPO419

"SOU MAIS VELHA DO QUE ESTE LUGAR", disse Jenny,


olhando em volta com um olhar depreciativo enquanto a carroça
parava em frente a uma estalagem. "Esta cidade parece que foi
expelida ontem."
"Ela está aqui nos últimos vinte e cinco anos", disse Jamie,
envolvendo as rédeas do cavalo no poste de amarração. "É mais
velha que Rachel, aye?" Ele sorriu para sua sobrinha, mas sua
irmã bufou, saindo de seu ninho na carroça.
"Pouca idade para uma cidade", ela disse com desdém.
"Rastejando com os legalistas também", disse o jovem Ian,
segurando sua mãe pela cintura e puxando-a para baixo. "Ou foi
o que ouvi."
"Eu ouvi isso também", disse Jamie, e deu uma olhada na rua
principal, como se os legalistas pudessem sair correndo das
tavernas como ratos. "Mas ouvi dizer que eles não têm armas,
nem uma milícia adequada."
Apesar de sua relativa juventude, Salisbury era a maior cidade
do Condado de Rowan. Era também a sede do condado, a cidade
mais próxima entre a Cordilheira dos Fraser e a Great Wagon
Road – e o feudo militar de um certo Francis Locke420, um

419
’Gin a body meet a body, no original. Verso do poema Comin 'Thro' the Rye, escrito em 1782 por
Robert Burns (1759-1796). Trata-se de um poema com fortes alusões sexuais (há versões bem
explícitas), que foi musicado e serve de referência a muitas obras posteriores.
420
Francis Locke Sênior (1722-1796) foi proprietário de uma fazenda, empresário, político e
participante da Guerra da Independência Norte-Americana, na qual liderou os Patriotas à vitória
decisiva em Ramseur's Mill (17.03.1781) ,o que mudou o rumo da guerra no teatro do sul.
871

patriota. E um com armas e milícia. Assim sendo, Jamie


acomodou Jenny, Rachel e Oggy temporariamente em uma
estalagem de aparência decente, com um caro bule de café forte
e um prato de pãezinhos recheados, mandou Ian comprar
mantimentos para a jornada ao norte e foi ele mesmo em busca
do coronel Locke.
Ao conhecê-lo. Jamie descobriu-se disposto a gostar de Francis
Locke. Irlandês atarracado e de rosto vermelho, mais ou menos
da sua idade, o homem tinha modos diretos que o atraíam. Ele
era um proprietário de terras, um empresário – e o comandante
do Regimento de Milícia do Condado de Rowan.
"Cento e sessenta e sete companhias de milícia é o que temos
em nossas listas”, disse Locke, com uma certa satisfação
sombria. "Atualmente. De todo o condado de Rowan – embora
nenhuma do interior ainda. Eu ficaria feliz em dar as boas-vindas
a você e sua companhia, sr. Fraser, caso queira se juntar a nós."
Jamie deu-lhe um aceno cordial, mas se absteve de se
comprometer, ainda.
"Ainda não tenho minha companhia totalmente equipada,
senhor, embora espere fazer isso antes que a neve caia e esteja
pronta na primavera."
O exército britânico certamente estaria.
Locke deu a ele o mesmo tipo de aceno, com o mesmo olhar de
reserva. Locke sabia perfeitamente bem que Jamie não admitiria
seu verdadeiro estado de prontidão até que tivesse se decidido
sobre Locke e seu regimento.
"Quantos homens você tem?"
"Quarenta e sete, no momento", Jamie respondeu calmamente.
"Acho que teremos mais, assim que a colheita terminar."
Eles estavam sentados na taverna da cidade, com uma jarra de
872

cerveja e uma travessa de peixinhos fritos. Comida saborosa


depois de três dias de bolinho de viagem e ovos cozidos, embora
os peixes estivessem equipados com um número inconveniente
de espinhas.
"Posso perguntar, senhor... talvez você conheça um homem
chamado Partland? Ou Adam Granger?"
As pesadas sobrancelhas cinzentas de Locke se ergueram.
"Nicodemus Partland? Sim, ouvi falar dele. Da Virgínia.
Provocador legalista. Encrenqueiro", acrescentou ele sem
rodeios.
"Ele é isso. Mas talvez um pouco mais do que um provocador."
Jamie deu a Locke um breve relato da aparição de Partland em
suas terras – e sua conexão com o capitão Cunningham – e
depois dos rifles que Claire e o Jovem Ian haviam confiscado.
Jamie não embelezou aquele encontro, mas ele sabia como
contar uma história, e Locke estava rindo no final dela.421
"Você administra a guarnição de seus homens da mesma
maneira, sr. Fraser?"
"Não, senhor. Eu faço bebidas finas e negocio com cavalos onde
eu os encontro."
Locke piscou, tirando conclusões. Jamie dissera a Locke onde a
Cordilheira dos Fraser ficava.
"Índios?"
Jamie inclinou a cabeça alguns centímetros.
"Há alguns anos, eu era um agente indianista da Coroa no
Departamento do Sul – sob o comando do sr. Atkins e depois do
Coronel Johnson. Ainda tenho amigos entre os cherokees."
A expressão divertida voltou ao rosto envelhecido de Locke.
421
Bem... O confisco dos rifles foi com a visita do sr. Summers. Não do Partland e Granger. Esses dois
só encontraram Claire seminua no riacho.
873

"Suponho que você não inclua o coronel Johnson entre seus


amigos agora."
"Uma amizade requer duas partes de mentes semelhantes, não
é?" Quando Jamie renunciou ao cargo, Johnson ameaçou
enforcá-lo como traidor – e foi sincero. Jamie escolheu outro
peixe e o mordeu com cuidado, desembaraçando os pequenos
espinhos com a língua e colocando-os meticulosamente na folha
de papel de jornal gorduroso e respingado de comida que cobria
a mesa em vez de uma toalha de pano. Claire não estava com ele
para lidar com as coisas se ele engasgasse.
O jornal era The lmpartial lntelligencer e o fez pensar em Fergus
e Marsali. Ele fez um movimento instintivo para fazer o sinal da
cruz ao pensar neles e em Germain, mas parou a mão antes que
ela se levantasse. Locke podia muito bem ser um protestante;
não havia necessidade de afastar alguém de que ele podia
precisar como aliado.
Jamie deixou de lado a cabeça e a espinha do primeiro peixe
olhando fixamente e escolheu outro. Ele deveria dar a Locke um
dos sinais maçônicos? Dadas suas origens e situação, o homem
provavelmente teria sido iniciado. Ainda não, decidiu ele,
observando Locke engolir metodicamente seu sexto peixe.
Locke parecia sólido o suficiente, mas Jamie queria conversar
com alguns dos coronéis da milícia atualmente inscritos no
Regimento do Condado de Rowan antes de se decidir se – e
como – faria uma aliança. Havia os homens de Além da
Montanha a serem considerados também; eles eram menos
oficiais, menos armados e menos organizados, mas muito mais
perto da Cordilheira dos Fraser do que Locke, e se ele precisasse
de ajuda urgente, eles poderiam se mover rapidamente.
Ele colocou esse pensamento de lado. Ele faria o que pudesse e
oraria pelo resto.
874

Locke se inclinou para trás, considerando enquanto mastigava


seu último peixe lentamente.
"Bem, acredito que com o tempo possamos ser amigos leais,
coronel. Dados nossos pontos em comum, como você pode
dizer."
Antes que ele pudesse concordar com esse sentimento, a porta
se abriu e o Jovem Ian entrou nas asas de uma corrente de ar frio
que levantou os jornais sobre as mesas. Era melhor que os
Murray partissem rapidamente, antes que o tempo ficasse
úmido, pensou ele.
Ele apresentou seu sobrinho a Francis Locke, que olhou para as
tatuagens de Ian, depois para Jamie com uma expressão
interessada na sobrancelha.
"Eu encontrei para nós um alojamento com uma viúva chamada
Hambly, tio", disse Ian, ignorando o exame de Locke. "Ela diz
que seu jantar estará pronto em uma hora, se você quiser se
sentar à mesa dela."
Locke fez um hem, como um som de alerta na garganta.
"A viúva é uma mulher gentil e sua casa é limpa, mas ela não é
uma cozinheira de verdade, Deus a abençoe. Talvez seja melhor
você trazer sua família para a minha casa para o jantar. Minha
propriedade fica fora de Salisbury ", acrescentou ele, vendo a
sobrancelha de Jamie se erguer, "mas tenho uma pequena casa
na cidade por conveniência, e minha esposa é uma bisbilhoteira
famosa. Ela gosta de nada mais do que conhecer gente nova e
virá-la do avesso."
Jamie encontrou os olhos de Ian e eles trocaram um olhar.
"Cinco para um na minha mãe", o rosto de Ian dizia, e Jamie
concordou com um leve aceno de cabeça.
"Vamos nos juntar a você, senhor, com grande prazer", disse ele
875

formalmente a Locke, e se levantou. "Nós iremos buscar as


mulheres e nos juntaremos a vocês às seis horas, se for
conveniente?"

-.-.-

A SRA. LOCKE era uma mulher de olhos brilhantes que fazia


perguntas diretas com a regularidade de um relógio cuco, mas
ela era uma boa cozinheira, e Jenny a manteve envolvida em
uma discussão sobre fabricação de queijo e as virtudes do leite
de vaca versus o de cabra ou ovelhas, enquanto Rachel
alimentava o bebê e Jamie e Ian faziam perguntas sobre o
regimento, as quais Locke respondia prontamente.
Muito longe da Cordilheira, o olhar de soslaio de Ian disse, e
Jamie olhou para baixo, concordando.
Locke parecia bem organizado, mas, mesmo com o corte para a
recente criação do condado de Burke422, o condado de Rowan
ainda cobria uma vasta área. Se fosse uma questão de grande
batalha, com a milícia auxiliando tropas regulares, como
Monmouth, isso era uma coisa: haveria tempo para convocar
várias das 167 companhias de Locke. Mas alguém enviar um
cavaleiro a Salisbury, apelar a Locke e de lá pedir ajuda das
áreas vizinhas para enfrentar uma ameaça inesperada e iminente
a Cordilheira, a 160 quilômetros de distância? Não.
Ian e Jamie concluíram silenciosamente que a Cordilheira estava
melhor se defendendo, e Ian acabara de levantar uma
sobrancelha para perguntar a Jamie se ele pretendia contar isso
a Locke quando ouviram um som de passos subindo os degraus
da frente e houve uma batida rápida na porta que parou a sra.

422
A região correspondente ao atual condado de Burke pertencia anteriormente ao condado de Rowan. A
divisão ocorreu em 1777.
876

Locke no meio de uma pergunta.


Quem chamava era um menino de cerca de quinze anos, com o
início de uma barba rala rastejando ao longo de sua mandíbula
como um fungo.
"Perdão, senhor", disse ele, curvando-se para Locke. "O policial
Jones me enviou para dizer que ele encontrou um corpo e você
talvez viria para examiná-lo antes que ele comece a apodrecer?"
"Examiná-lo?", disse Rachel, erguendo os olhos com surpresa.
"Sim, senhora", disse Locke, levantando-se da mesa. "Eu sou o
legista do condado, pelos meus pecados. Onde está este corpo,
Josh?"
"No estábulo de Chris Humphreys423, senhor. Mas foi
encontrado atrás da taverna Oak Tree, para começar. A sra. Ford
não deixou que eles o trouxessem para dentro da taverna. "
"Oh." Locke lançou um rápido olhar para o rapaz, que cruzou os
braços e baixou a sobrancelha. “Suponho que o anfitrião tenha
sentimentos semelhantes. Vou ao estábulo e vou dar uma olhada.
Você vai esperar, sr. Fraser? Provavelmente não demorarei
muito."
"Eu irei com você, se puder." Jamie se levantou, fazendo um
pequeno gesto indicando que Ian deveria aproveitar a
oportunidade para se despedir. Jamie estava um pouco curioso
para ver o homem morto, mas sua principal intenção era
encontrar uma desculpa para interromper a reunião. Ele podia
ver Rachel à mesa, curvada de cansaço, Oggy adormecido em
seu colo, e sua irmã, ainda de pé, irradiara ondas de impaciência
em sua direção nos últimos quinze minutos.

423
Veja as notas da autora. Chris Humphreys, de quem ela ‘emprestou o nome” para esse personagem de
ficção, é escritor e amigo dela.
877
878

62

O ROSTO DE UM ESTRANHO

O ESTÁBULO ERA UM GALPÃO RESPEITÁVEL com


quatro baias, cheirando a cavalo, mas no momento vazio, exceto
por um par de cavaletes com uma folha de zinco estendida sobre
eles. O corpo tinha sido colocado sobre ele, um lenço colocado
sobre o rosto pela decência, já que estava frio demais para
moscas.
Jamie benzeu-se discretamente e ofereceu uma oração breve e
silenciosa pela alma do estranho.
"Algum sinal de que ele foi roubado, sr. Jones?" Locke pegou
seu próprio lenço e uma pequena garrafa. Ele pingou várias
gotas sobre o pano e pressionou-o contra o nariz de maneira
experiente. Óleo de gaultéria424; o cheiro forte arrepiou os pelos
dentro do nariz de Jamie, o que foi uma coisa boa. O estranho
estava mesmo apodrecendo.
"Bem, sim", disse o policial, com um toque de impaciência. "Se
bolsos vazios e um crânio rachado são sinais o suficiente para
você."
Locke arrancou o lenço úmido do rosto do homem com dois
dedos e o colocou de lado. Jamie sentiu sua barriga apertar e a
ânsia subir.
O homem tinha um grande ferimento na lateral da cabeça, mas
não era isso que fazia o suor brotar no corpo de Jamie.
"Você conhece este homem, sr. Fraser?", Locke percebeu sua
424
Gaultéria (Gaultheria procumbens) é uma planta nativa da America do Norte (Estados Unidos e
Canadá), usada para aliviar dores e auxiliar tratamento de gripes e resfriados Seu aroma é refrescante,
adocicado e mentolado.
879

reação.
"Não, senhor", disse ele. Seus lábios estavam rígidos, como se
alguém o tivesse acertado na boca. O homem era estranho para
ele, mas a aparência não era. Não era alto, mas grande, um
homem de ossatura pesada que engordou, sua barriga era um
inchaço redondo sob as calças abotoadas pela metade,
afunilando para pés muito pequenos que se achataram e se
espalharam sob o peso que eram obrigados a aguentar e
romperam as costuras dos sapatos usados do homem.
Ele já tinha visto aqueles pés e aqueles sapatos arrebentados
antes – e também o rosto largo e morto, queixo caído sob a barba
e os olhos semicerrados, opacos e pegajosos sob as pálpebras.
Ele o viu coberto de terra enquanto enchia a cova, usando a pá
rápido para não vomitar de novo.

-.-.-

LOCKE, EM SEU escritório de legista, disse ao policial para


inquirir os clientes da taverna e trazer quaisquer testemunhas em
potencial para ver – e, com sorte, identificar – o corpo.
Jones mudou de posição, inquieto. "Quem quer que o tenha
roubado já se foi. Acho que ele deve ter ficado naquele beco por
dois, três dias, pelo menos, por causa do cheiro.”
"Conte-me sobre isso pela manhã, sr. Jones", disse Locke, e
puxou o casaco para mais perto. Estava muito frio no galpão e
sua voz se ergueu em meio a uma nuvem branca. Jamie sentiu o
frio nos ossos doloridos da mão direita mutilada e fechou-a em
um punho, que enfiou no bolso do seu casaco comprido de lã.
"Você tem tais ocorrências com frequência?" ele perguntou a
Locke enquanto eles saíam para a rua escura.
880

"Com mais frequência do que eu gostaria", Locke respondeu


severamente. "E com mais frequência do que costumava ser."
"A guerra traz à tona o que há de pior nas pessoas". Ele não
queria que fosse um gracejo, e Locke não considerou isso como
um – apenas acenou com a cabeça. Ele havia fechado a porta do
galpão atrás deles e eles caminharam em silêncio rua acima.
Jamie recusou a oferta de uma última bebida, despediu-se de
Locke à sua porta e pediu-lhe que agradecesse a sua esposa pelo
excelente jantar. A casa da viúva Hambly ficava duas ruas
adiante; ele passaria pelo estábulo novamente em seu caminho
para lá.

-.-.-

HAVIA UMA LUZ bruxuleante dentro do estábulo; ela


escapava pelas fendas entre as tábuas, criando um contorno
fantasmagórico contra a noite. Jamie parou de repente com a
visão, mas a curiosidade e o medo combinados o fizeram
caminhar suavemente em direção à porta.
A porta estava entreaberta e ele viu uma figura fantástica lá
dentro, uma sombra alongada que se movia bruscamente com o
ruído de seus passos no cascalho.
"Tio Jamie?" Era Ian, segurando uma lanterna, e o coração de
Jamie desacelerou.
"Sim." Ele entrou no galpão. "Rachel e sua mãe foram
acomodadas, então?"
"Bem, elas foram até a viúva Hambly, certo. Assim como a sra.
Locke, que gentilmente foi com elas, para levar um pacote de
comida para amanhã e ficou para contar à viúva tudo o que foi
dito durante o jantar. Eu duvido que elas consigam ir para suas
881

camas antes da meia-noite." Ele retorceu o dedo indicador na


orelha, como ilustração.
"É por isso que você está aqui", disse Jamie. "Você considera
este cavalheiro uma companhia melhor?"
Ian estendeu a mão espalmada e a abanou, indicando que a
diferença entre a sra. Locke e um cadáver arruinado era
insignificante em termos de boa companhia.
"Eu queria ver como ele era." Ele ergueu uma sobrancelha
esboçada para Jamie. "E você está aqui porque...?"
"Eu queria ver como ele se parece, de novo. Talvez eu não tenha
percebido claramente ele antes."
Ian acenou com a cabeça e moveu-se para o lado, segurando sua
lanterna bem acima do corpo. Eles olharam em silêncio. Jamie
fechou os olhos e respirou fundo duas ou três vezes, apesar do
cheiro. Então ele os abriu novamente.
Era isso? O estranho parecia diferente agora do que parecia à
primeira vista. Mais baixo. O pescoço talvez fosse mais longo e
esquelético, apesar da barriga protuberante. O pescoço do outro
estava vincado, duas linhas profundas dividindo a gordura em
anéis. Estúpido gordo, como sua irmã havia chamado o homem
que havia estuprado Claire. A pressão em seu peito diminuiu um
pouco e ele considerou o rosto, desta vez com cuidado.
Não. Não era o mesmo afinal, e sua barriga relaxou de alívio. O
rosto estava com a barba por fazer há algum tempo, mas se ele
desconsiderasse isso, então... não. O nariz e a boca tinham uma
forma totalmente diferente.
"Você pensou que poderia conhecê-lo, tio?" Ian estava olhando
para ele do lado oposto da mesa, interessado. "Eu também pensei
isso."
"Você pensou, de fato", Jamie disse, e a pressão em seu peito
882

estava de volta. Ele resistiu ao impulso de se virar e olhar para


fora. Em vez disso, ele disse em Gàidhlig: "Um homem que
você já deve ter visto à luz do fogo antes?"
Ian concordou com a cabeça, seu olhar firme, e respondeu na
mesma língua.
"O homem cuja sujeira contaminou sua bela mulher? Sim."
Aquilo foi tão chocante quanto encontrar Ian aqui, e deve ter
ficado evidente em seu rosto, pois Ian fez uma careta e depois
pareceu se desculpar. "Janet Murray é sua irmã, bràthair-
mhàthar, mas ela é minha mãe." Voltando ao inglês, ele
acrescentou: "Não direi que ela não consegue guardar segredos,
porque ela consegue. Mas se ela vir razão para falar, então você
vai ouvir o que ela tem a dizer. Ela me disse algumas semanas
atrás, quando vim dizer que estava indo para o entreposto dos
Beardsley e se ela queria alguma coisa. Ela me disse para ficar
de olho no sujeito. "
Isso aliviou Jamie um pouco, e ele olhou para trás, para o
estranho morto.
"Não queremos dizer nada a ela sobre isso."
"Não, não precisamos," Ian concordou, e um leve
estremecimento o dominou com o pensamento.
"Por curiosidade", disse Jamie, voltando para o Gàidhlig, "por
que sua mãe lhe contou sobre o mhic an diobhail425?"
"Se você precisasse da minha ajuda na matança, a bràthair mo
mhàthair", Ian disse, com a sombra de um sorriso. "Ela disse
que eu não devo oferecer, mas se você pedir, devo ir com você.
E eu teria feito isso", ele adicionou suavemente, seus olhos
escuros sob o brilho da lanterna. "Sem hesitar... O que você
acha?", ele disse então, mudando de assunto com um aceno de

425
Filho do diabo. Em gaélico.
883

cabeça para o estranho. "Claramente, não é o mesmo homem.


Aquele homem está morto?"
"Ele está."
Ian acenou com a cabeça, com naturalidade.
"Bom. Achamos que este pode ser parente dele?"
"Eu não sei, mas este também está morto, e eu não acho que sua
morte", Jamie acenou para o cadáver, "pode ter algo a ver com
o outro."
Ian acenou com a cabeça concordando.
"Então eu acho que não tem nada a ver conosco também." Jamie
sentiu o ar em seu peito, leve, frio e fresco.
"Acho isso também", ele concordou. Então, atingido por um
pensamento, perguntou: "Como é que você sabe como o – outro
– era?"
"O mesmo que você, eu espero. Fui até os Beardsley e perguntei
pelo homem com a marca de nascença. Dinna fash", ele
acrescentou. "Eu não fiz isso parecer muito importante; ninguém
se lembraria."
"Não", Jamie disse categoricamente. Ninguém se lembraria,
porque ninguém jamais veria o homem novamente, ou pensaria
em procurá-lo – ele não era o tipo de homem que tinha negócios
de verdade com ninguém. Ele era o tipo de homem que vivia e
morria sozinho. Exceto pela cachorra dele.
E mesmo que alguém pense em visitá-lo, eles não o encontrarão.
Não era incomum que homens solitários desaparecessem no
sertão, sua passagem sem ser notada. Morto por acidente, morto
de doença não tratada, desaparecendo simplesmente...
Eles ficaram juntos por um momento, examinando o rosto do
estranho. Jamie sentiu Ian relaxar, sua decisão tomada, e um
momento depois, Jamie também sacudiu sua cabeça e recuou.
884

"Não", repetiu ele, e Ian acenou com a cabeça e, inclinando-se


para a frente, soprou o pavio da lanterna, deixando-os na
escuridão com o cheiro do homem morto.
"Você tem certeza?", Jamie perguntou, sem se mover. Ian não
tinha perguntado isso a ele, mas ele não conseguia se conter. Ian
tocou seu ombro.
"Tenho certeza de que este homem não é da nossa conta", disse
ele com firmeza. "Devemos deixá-lo com uma bênção,
entretanto? Ele é um estranho."
Eles ficaram próximos um do outro e murmuraram a forma curta
do canto fúnebre. Os olhos de Jamie estavam acostumados agora
com a escuridão do galpão, e ele viu as palavras saírem de suas
bocas em fios brancos, insubstanciais como a alma que eles
abençoaram.
Eles saíram e Jamie fechou a porta do galpão silenciosamente
atrás deles.

-.-.-

O HOMEM AINDA estava em suas mentes, entretanto,


enquanto seguiam pela rua. Não o homem morto que eles tinham
acabado de deixar. O outro.
"Você não foi procurá-lo, foi?", Jamie perguntou a Ian quando
eles entraram na rua principal. "Depois que você descobriu o
nome dele, quero dizer."
"Och, não. Eu sabia que você tinha lidado com ele." Eles
estavam perto da praça, e havia luz suficiente das tavernas para
que ele visse Ian olhar para ele, uma sobrancelha levantada.
"Ken, eu tinha alguns negócios na floresta perto da base da
Cordilheira, e ouvi seu cavalo vindo pela estrada de carroças
885

logo após o amanhecer, então fui e olhei. Você estava com seu
rifle e parecia bastante sério. Eu poderia dizer que você estava
caçando, mas não seria um animal, é claro, não a cavalo." A
cabeça de Ian se virou brevemente em direção a ele.
"Você não parecia precisar de ajuda, mas eu disse a oração por
você, tio – aquela do guerreiro que está partindo."
O nó entre as omoplatas de Jamie relaxou um pouco. Ele achou
estranhamente reconfortante saber que, de fato, não tinha ido
sozinho naquela jornada, embora não soubesse disso na época.
"Agradeço a você, Ian. Foi uma ajuda, tenho certeza." A fria
opressão do galpão havia desaparecido com o advento das
tochas e do barulho da cidade, eles caminharam um pouco em
um consentimento silencioso, dando às mulheres tempo para se
acalmar e colocar o bairn na cama.
A lua estava bem acima dos telhados de Salisbury, mas ainda
havia homens nas ruas, e o lugar tinha um ar inquieto.
Eles passaram por um grupo de homens, de cerca de vinte anos,
os rostos escondidos sob as abas escuras de seus chapéus, mas a
lua iluminou uma nuvem pálida de poeira levantada por suas
botas, então parecia que eles andavam através de uma névoa
crescente até os joelhos. Eles eram escocês-irlandeses, falando
alto, visivelmente bêbados e discutindo entre si, e Jamie e Ian
passaram despercebidos. Francis Locke disse que havia várias
companhias de milícias na cidade; esses homens tinham a
aparência de uma nova milícia – presunçosos e inseguros ao
mesmo tempo, e querendo mostrar que não eram.
Eles atravessaram a praça e as ruas atrás dela e encontraram
silêncio novamente em meio ao pio das corujas das árvores perto
de Town Creek. Ian o quebrou, falando baixo, meio para si
mesmo e meio que não.
"A última vez que caminhei assim – à noite, quero dizer, apenas
886

caminhando, não caçando – foi logo depois de Monmouth”,


disse ele. "Eu estive no acampamento britânico, com Sua
Senhoria, e ele me pediu para ficar, porque eu tinha uma flecha
no braço – você se lembra disso, aye? Você quebrou a haste para
mim, mais cedo naquele dia."
"Eu tinha esquecido", admitiu Jamie.
"Bem, foi um longo dia."
"Sim. Lembro-me de alguns pedaços – perdi meu cavalo quando
ele caiu de uma ponte em um daqueles pântanos infernais, e
nunca vou esquecer o som daquilo", lembrou Jamie, e um
profundo estremecimento endureceu sua wame, lembrando o
gosto de seu próprio vômito. "E então eu me lembro do General
Washington – você estava lá, Ian, quando ele voltou atrás na
retirada depois que Lee fez um collieshangie426 disso? "
"Sim", Ian disse, e riu um pouco. "Embora eu não tenha prestado
muita atenção. Eu tive meu próprio problema para resolver, com
o abenaki. E eu resolvi isso também", ele adicionou, a
severidade marcando sua voz. "Seus homens pegaram um deles,
mas eu matei o outro no acampamento britânico naquela noite,
com sua própria machadinha."
"Eu não tinha ouvido falar disso", disse Jamie, surpreso. "Você
fez isso dentro do acampamento britânico? Você nunca me
contou isso. Como você foi parar lá, por falar nisso? A última
vez que eu vi você foi pouco antes da batalha, e na próxima vez
em que o vi, seu primo William estava trazendo o que eu pensei
ser seu cadáver para Freehold em uma mula."
E a próxima vez que ele viu William foi em Savannah, quando
seu filho veio pedir sua ajuda para salvar Jane Pocock. Eles
tinham chegado tarde demais. Esse fracasso não tinha sido culpa
de nenhum deles, mas seu coração ainda doía pela pobre
426
Uma disputa barulhenta, um alvoroço, briga, perturbação, Em scotts.
887

pequena moça... e por seu pobre rapaz.


"Eu não me importo mais com isso", disse Ian. "Eu fui com lorde
John – fomos presos juntos – mas então eu saí do acampamento,
com a intenção de ir encontrar Rachel ou você, mas eu estava
mal com a febre, a noite rodopiando em volta de mim como se
estivesse respirando e eu estava caminhando através das estrelas
com meu pai ao meu lado, apenas conversando com ele, como
se..."
"Como se ele estivesse lá", Jamie terminou, sorrindo. "Eu acho
que ele estava. Eu o sinto ao meu lado, de vez em quando." Ele
olhou automaticamente para a direita ao dizer isso, como se Ian
Mòr pudesse realmente estar lá agora.
"Estávamos falando do índio que eu tinha acabado de matar – e
eu disse que isso me fez lembrar daquele idiota que tentou
extorquir você, tio – aquele que matei lá perto da fogueira depois
de Saratoga.427 Eu disse algo sobre como parecia diferente,
matar um homem cara a cara, mas pensei que deveria estar
acostumado com essas coisas agora, e não estava. E ele disse
que eu talvez não devesse", Ian disse pensativo. "Ele disse que
não poderia ser bom para a minha alma estar acostumada com
coisas assim."
"Seu pai é um homem sábio."

-.-.-

ELES CAMINHARAM DE VOLTA para a cidade, tranquilos


um com o outro, conversando de vez em quando, mas não sobre
qualquer coisa que importasse.
"Você tem tudo que precisa, Ian?", perguntou Jamie. "Para a

427
Livro 7 cap 68
888

viagem?"
"Se eu não tiver, agora é tarde demais", disse Ian, rindo.
Jamie sorriu, mas as palavras "tarde demais" permaneceram no
fundo de sua mente. Ele se separaria dos viajantes ao amanhecer,
os acompanharia até a Great Wagon Road, e então eles partiriam
– Deus sabe por quanto tempo.
Eles estavam quase na casa da viúva Hambly quando ele parou,
uma das mãos no braço de Ian.
"Eu não ia perguntar e não vou", disse Jamie abruptamente.
"Porque você deve ser livre para fazer o que for preciso. Mas
acho que devo dizer uma coisa a você, antes de ir."
Ian não disse nada, mas fez um ligeiro ajuste de postura que deu
a Jamie toda a atenção.
"Ken, quando Brianna nos trouxe os livros”, Jamie começou
com cuidado, "havia aquele estranho para as crianças, e um
romance para mim sobre... bem, coisas fantasiosas, para dizer o
mínimo. E um livro de medicina para sua tia."
"Sim, talvez eu já tenha visto esse", disse Ian pensativo. "Um
grande azul, muito grosso? Você poderia matar um rato com
aquele."
"É esse, sim. Mas a moça trouxe um livro para ela." Ele hesitou;
ele nunca tinha falado com Ian sobre a vida de Claire longe dele.
"Foi escrito por um homem chamado Randall. Um historiador."
A cabeça de Ian se virou bruscamente para ele.
"Randall. O nome dele era Frank Randall?"
"Sim, era." Jamie sentiu como se Ian o tivesse golpeado na parte
de trás da cabeça e balançou a cabeça para clareá-la. "Como...
Bree lhe contou sobre ele? Sobre o seu..."
"Seu outro pai? Sim. Anos atrás." Ele fez um pequeno
889

movimento com uma das mãos, perturbando a escuridão. "Não


importa."
"Sim, é verdade." Ele parou por um momento; ele nunca tinha
falado sobre Randall com ninguém, exceto Claire. Mas ele tinha
que fazer isso, então ele falou.
"Eu sabia sobre ele, desde o primeiro dia que conheci Claire –
embora eu pensasse que ele estava morto e, na verdade, ele
estava, mas..." Ele limpou a garganta, e Ian alcançou sua bolsa
e entregou-lhe um frasco amassado. Por mais escuro que
estivesse, ele sentiu a flor-de-lis tosca sob seu polegar. Era o
velho frasco de soldado de Ian Mòr, que seu amigo guardara
desde seus tempos na França como jovens mercenários, e a
sensação o firmou.
"A questão é, a bhalaich, ele sabia sobre mim também." Ele
desarrolhou o frasco e bebeu; brandy aguado, mas ajudou.
"Claire disse a ele, quando ela... voltou. Ela pensou que eu
estava morto em Culloden e..."
Ian fez um pequeno ruído que podia ter sido de diversão.
"Sim", Jamie disse secamente. "Eu queria estar morto, na época.
Mas você nem sempre pode escolher o que acontece com você,
não é?"
"Verdadeiro o suficiente. Mas Brianna me disse que seu pai
estava morto, então... ele estava, ele está... realmente morto?"
"Bem, eu penso que sim. Mas o desgraçado escreveu um maldito
livro, não foi? Aquele que Brianna trouxe com ela – para se
lembrar dele. Eu o li."
Ian esfregou o queixo com o polegar; Jamie podia ouvir o
arranhar das cerdas, e isso fez seu próprio queixo coçar.
"O que diabos ele dizia nele?"
Jamie suspirou e viu sua respiração, branca por um instante na
890

escuridão. A lua havia sumido de vista atrás das nuvens. Eles


não podiam ficar ali por muito tempo; Ian precisava dormir antes
da viagem, e a mão ruim de Jamie estava dizendo a ele que a
chuva estava chegando.
"É sobre escoceses, ken? Na América. O que eles – nós –
fizemos, o que faremos, na Revolução. A questão é... sim, bem.
Há muitos homens chamados Jamie Fraser na Escócia, e tenho
certeza de que há muitos aqui também."
"Och, você está no livro dele?" Ian se endireitou e Jamie fez um
gesto negativo.
"Não sei, esse é o problema. Pode ser eu, e pode muito bem não
ser também. Ele menciona meu nome catorze vezes, mas nunca
o faz o suficiente para saber se sou eu ou outra pessoa. Ele nunca
vai ao ponto e diz: Jamie Fraser da Cordilheira dos Fraser ou
Broch Tuarach ou qualquer coisa desse tipo."
"Por que você está preocupado, então, tio?"
"Porque ele diz que vai haver uma batalha perto de nós – em um
lugar chamado Kings Mountain. E Jamie Fraser é morto nela.
Será, quero dizer. Um Jamie Fraser." Dizer isso em voz alta
realmente o acalmou um pouco. Parecia ridículo.
Ian não estava entendendo assim, no entanto. Ele agarrou o
braço de Jamie, bem perto na escuridão.
"Você acha que é você a quem ele se refere?"
"Bem, isso é o diabo, Ian. Não posso dizer, em absoluto. Veja..."
Seus lábios estavam secos, e ele os lambeu brevemente. "O
homem sabia sobre mim, e ele não tinha nenhuma razão para me
amar. Nós – Claire, Bree e eu – achamos que Frank Randall
sabia que a moça voltaria para encontrar sua mãe e eu. E se ele
procurasse, na – na história – ele talvez nos encontrasse."
Ian estalou a língua em consternação – da mesma maneira que
891

seu pai teria feito, e Jamie sorriu involuntariamente.


"E se ele procurou..."
"Nenhum homem é objetivo sobre Claire", disse Jamie. "Quero
dizer, eles simplesmente não são."
Ian fez um pequeno ruído efervescente de assentimento.
"O que não quer dizer que todo mundo a ama..."
"Muitos de nós, tio", seu sobrinho assegurou. "Mas sim, eu sei
o que você quer dizer."
"Sim. Bem, o que quero dizer é – e eu sei que isso soa como se
eu tivesse perdido o juízo e talvez eu tenha – mas... eu li o livro
dele e, por Deus, acho que o homem está falando comigo."
Ian ficou em silêncio por um bom tempo. A forma indistinta de
um bacurau ergueu-se do solo perto de seus pés e disparou para
a escuridão com um zeeek! alto e claro.
"E se ele estiver falando com você?", Ian disse finalmente.
Isso o assustou.
"Se ele estiver – e se o Jamie Fraser que morre em Kings
Mountain for eu... eu só... eu..." Ele não podia perguntar. E pelo
amor de Deus, ele não tinha medo de morrer, não depois de
tantas vezes que ele olhou a Morte no rosto. Era apenas...
A mão de Ian deslizou na sua e a apertou com firmeza.
"Eu estarei lá com você, tio. Quando isso acontece? A batalha,
quero dizer."
O alívio o percorreu, e ele inspirou tão fundo que o ar desceu até
seus pés.
"Em cerca de um ano. Em outubro próximo, será. Ou... é o que
ele diz. "
"Isso vai dar bastante tempo para eu fazer o que precisa ser feito
892

no norte", disse Ian, então apertou sua mão e a soltou. "Dinna


fash."
Jamie assentiu com o coração cheio. Pela manhã, ele se
despediria de todos, mas se despediria de Ian Òg agora.
"Vire-se, Ian", ele disse baixinho, e Ian o fez, olhando para a
casa do outro lado da rua, escura exceto pelo brilho de uma
lareira abafada, visível na borda das venezianas. Ele colocou a
mão no ombro de Ian e falou por ele a bênção para um guerreiro
que partia.
893

63

O TERCEIRO ANDAR

Cordilheira dos Fraser

ERA UMA CASA GRANDE. Roger e Bree haviam partido, e


agora Jamie partira para ver Ian, Rachel e Jenny em segurança
em seu caminho. A casa parecia ainda maior agora, com apenas
duas pessoas e uma cachorra dentro.
Fanny, privada de companhia, agarrou-se a mim como um
pequeno carrapicho, seus passos ecoando atrás de mim – e o
tique-tique de Bluebell atrás dela – enquanto eu ia e voltava do
consultório para a cozinha, para a sala e de volta para o
consultório, nós três sempre conscientes dos quartos vazios
acima e do terceiro andar mais distante, sombrio e vazio bem
acima, suas paredes uma floresta fantasmagórica de vigas, suas
janelas sem vidro ainda cobertas por ripas para impedir a entrada
de chuva e neve até que o mestre desaparecido retornasse para
terminar os trabalhos que deixara por fazer.
Eu a convidei para dividir meu quarto, e puxamos a cama de
rodízio do quarto das crianças. Foi um conforto ouvir a
respiração uma da outra durante a noite, algo quente e rápido,
quase abafando a respiração lenta e fria da casa ao nosso redor
– quase imperceptível, mas definitivamente lá. Especialmente
ao anoitecer, quando as sombras começaram a subir pelas
paredes como uma maré silenciosa, espalhando escuridão no
quarto.
De vez em quando, eu acordava de madrugada para encontrar
894

Fanny na minha cama, aninhada e encostada em mim, para se


aquecer, e dormindo profundamente – e Bluey deitada em um
ninho de colchas a nossos pés. A cachorra olhava para cima
quando eu acordava, batendo suavemente o rabo peludo na
cama, mas não se mexia até que Fanny o fizesse.
"Eles vão voltar", eu assegurava a ela, todos os dias. "Todos eles.
Nós apenas temos que ficar ocupadas até que eles voltem."
Mas Fanny nunca havia vivido sozinha um dia em sua vida. Ela
não sabia como lidar com a solidão, muito menos com a solidão
cheia da ameaça dos próprios pensamentos.
E se...? era o refrão constante de seus pensamentos. O fato de
ser também o refrão – embora silencioso – dos meus não
ajudava.
"Você acha que as casas estão vivas?", Fanny deixou escapar um
dia.
"Sim, tenho certeza", eu disse um tanto distraidamente.
"Você tem?" Os olhos redondos de Fanny me trouxeram de volta
ao presente. Estávamos cerzindo meias em frente ao fogo da
lareira, depois de terminarmos as tarefas da manhã e
almoçarmos. Tínhamos alimentado os porcos, colocado feno
seco para os outros animais e ordenhamos a vaca e as duas
cabras – eu teria que bater a manteiga amanhã, deixar de lado
alguns baldes para fazer queijo e enviar o resto do leite extra
ladeira abaixo para Bobby Higgins alimentar seus meninos.
"Bem... sim", eu disse lentamente. "Acho que qualquer lugar em
que as pessoas vivam por muito tempo provavelmente absorva
um pouco delas. Certamente as casas afetam as pessoas que
vivem nelas – por que não deveria funcionar nos dois sentidos?"
"Em ambos os sentidos?" Ela parecia em dúvida. "Você quer
dizer que deixei parte de mim no bordel – e trouxe parte do
895

bordel comigo?"
"E não trouxe?", eu perguntei gentilmente. Seu rosto ficou
impassível por um momento, mas então a vida voltou a seus
olhos.
"Sim", disse ela, mas ela estava cautelosa agora e não
acrescentou mais nada.
"Quem está cuidando do Bobby e dos meninos esta semana,
você sabe?", eu perguntei a ela. As mulheres vizinhas e suas
filhas – que moravam a uma curta distância a pé – paravam na
cabana dos Higgins a cada poucos dias, para trazer comida,
preparar o jantar e fazer pequenos trabalhos de conserto e
limpeza, para que os Higgins não caíssem irremediavelmente no
desleixo masculino.
"Abigail Lachlan e sua irmã", Fanny respondeu prontamente.
"Elas sempre vêm juntas porque têm ciúmes uma da outra."
"Com ciúmes? Oh, sobre Bobby, você quer dizer?" Ela assentiu
com a cabeça, apertando os olhos para o fio que estava tentando
passar pelo buraco da agulha. A competição para se tornar a
próxima sra. Higgins ainda era discreta, civilizada e silenciosa,
mas estava se tornando um pouco mais definida. Bobby deu
poucos sinais até agora de querer fazer uma escolha – ou de
parecer notar os esforços feitos para atrair sua atenção, embora
sempre agradecesse sinceramente às jovens por sua ajuda.
"O que você disse sobre as casas..." Fanny prendeu a respiração
por um momento, depois soltou um pequeno ah! de triunfo
quando o fio passou pelo buraco da agulha. "Você acha que Amy
Higgins ainda está na cabana? Assombrando, quero dizer, para
manter outras mulheres longe?"
Isso me surpreendeu um pouco – mas a sugestão foi feita sem
qualquer emoção além da curiosidade, e respondi nos mesmos
termos. Logo após a morte de Amy, houve rumores ocasionais
896

sobre ela ser vista no desfiladeiro onde foi morta, ou lavando


roupas no riacho – uma ocupação muito comum para fantasmas
femininos escoceses ou irlandeses, e não é de admirar, pois eles
provavelmente passaram a maior parte de suas vidas fazendo
exatamente isso – mas isso quase cessou quando o pesado
trabalho do outono começou e as pessoas voltaram às suas
próprias preocupações.
"Eu não sei sobre a casa em si. Nunca senti nada de Amy quando
fui lá desde que ela morreu. Mas quando alguém morre,
naturalmente as pessoas que eles deixarem para trás ainda irão
sentir sua presença. Eu não sei se você chamaria isso de
assombração, no entanto. Acho que talvez seja apenas memória
e... saudades."
Fanny assentiu, os olhos fixos no calcanhar da meia que estava
cerzindo. Eu podia ouvir o leve arranhar de sua agulha no ovo
de cerzir de madeira.
"Eu gostaria que Jane me assombrasse." As palavras não
passavam de um sussurro, mas ouvi claramente e meu coração
se apertou.
A memória desse tipo de desejo – a necessidade profunda de ter
contato de qualquer tipo, um desejo que angustiou a alma, um
vazio que nunca poderia ser preenchido – me atingiu com tanta
força que eu não conseguia falar.
Jamie havia me assombrado – apesar de todos os meus esforços
para esquecer, para mergulhar na vida que eu tinha. Eu teria
encontrado forças para voltar, se ele não tivesse permanecido
como uma presença constante no meu coração, nos meus
sonhos?
"Você não vai esquecê-la, Fanny", eu disse, e apertei a mão dela.
"Ela também não vai esquecer de você."
O vento havia aumentado; eu o ouvia correndo por entre as
897

árvores do lado de fora, e a janela de vidro chacoalhou em sua


moldura.
"É melhor fecharmos as venezianas", eu disse, levantando-me
para fazer isso. A janela do consultório era a maior da casa e,
portanto, era dotada de venezianas externas e internas – ambas
para proteger a preciosa extensão das vidraças do mau tempo e
ataques potenciais e para isolar a sala contra o frio terrível.
Quando me inclinei com o gancho da veneziana na mão, porém,
vi uma figura alta e negra correndo em direção à casa, a saia e a
capa voando ao vento.
"Você e seu cachorrinho também428", murmurei, e arrisquei um
olhar para a floresta, procurando os macacos voadores. Uma
rajada de ar frio passou por mim e entrou no consultório,
fazendo barulho com os vidros e virando as páginas do Manual
Merck que eu tinha deixado aberto no balcão. Felizmente, eu
havia tomado a precaução de remover a página de direitos
autorais...
"O que você disse?" Fanny tinha me seguido e estava agora na
porta do consultório, Bluebell bocejando atrás dela.
"A sra. Cunningham está vindo", eu disse, deixando as
venezianas abertas e fechando a janela de vidro. "Vá e deixe-a
entrar, está bem? Coloque-a na sala de estar e diga a ela que já
vou; talvez ela tenha vindo pelo pó de olmo escorregadio429 que
prometi a ela."
No que dizia respeito a Fanny, a sra. Cunningham
provavelmente era a Bruxa Malvada do Oeste, e sua maneira de
convidar a senhora a entrar refletia isso muito. Para minha
surpresa, ouvi a sra. Cunningham se recusando a se sentar na
428
A frase completa: "I'll get you, my pretty, and your little dog too!" é uma ameaça contra Dorothy, fala
da Bruxa Malvada do Oeste, interpretada por Margaret Hamilton, no filme O Mágico de Oz, dirigido por
Victor Fleming (1939). Os macacos voadores referidos logo a seguir também são deste filme.
429
É tido como benéfico em todo o sistema digestivo e urinário quando ingerido. Como cataplasma,
auxilia em feridas e queimaduras.
898

sala de estar e, em segundos, ela estava na porta do consultório,


levada pelo vento como um morcego e pálida como um pedaço
de manteiga fresca.
"Eu preciso..." Mas ela estava caindo em direção ao chão
enquanto falava, e caiu em meus braços antes de sussurrar
"socorro".
Fanny engasgou, mas agarrou a sra. Cunningham pela cintura e,
juntas, a colocamos em minha mesa de cirurgia. Ela estava
segurando firmemente seu xale preto com força com uma das
mãos, apesar da óbvia dificuldade. Ela o segurou contra o vento
com tanta força que seus dedos travaram de frio, e foi difícil
soltar o xale.
"Maldito inferno", eu disse, mas suavemente, vendo qual era o
problema. "Como você conseguiu fazer isso? Fanny, traga-me o
uísque."
"Caí", a sra. Cunningham murmurou, começando a recuperar o
fôlego. "Tropecei no balde, como uma idiota." Seu ombro
direito estava pessimamente deslocado, o úmero arqueado e o
cotovelo virado para as costelas, a aparente deformidade
contribuindo muito para a impressão de bruxa.
"Não se preocupe", eu disse a ela, procurando uma maneira de
soltar seu corpete para que eu pudesse reduzir o deslocamento
sem rasgar o tecido. "Eu posso consertar."
"Eu não teria cambaleado três quilômetros morro abaixo em
meio a amoreiras silvestres espinhentas se não achasse que você
conseguiria", ela retrucou, o calor da sala começando a reanimá-
la. Sorri e, pegando a garrafa de Fanny, desarrolhei-a e entreguei
a Elspeth, que a levou aos lábios e deu vários goles lentos e
profundos, parando para tossir no meio.
"Seu marido... conhece... seu ofício", disse ela com voz rouca,
devolvendo a garrafa a Fanny.
899

"Vários deles", eu concordei. Eu tinha soltado o corpete, mas


não consegui libertar a alça do espartilho e, em vez disso, cortei-
o com um golpe ao estilo górdio430 do meu bisturi. "Segure-a
com força em torno do peito, por favor, Fanny."
Elspeth Cunningham sabia exatamente o que eu estava tentando
fazer e, cerrando os dentes, relaxou deliberadamente os
músculos tanto quanto podia – não muito, dadas as
circunstâncias, mas ajudava muito. Suponho que ela deve ter
visto isso em navios – deve ter sido a fonte da linguagem que
ela estava usando enquanto eu posicionava o úmero no ângulo
correto. Fanny bufou divertida com "filho da puta desgraçado
que penteava a grama!" conforme eu girava o braço e a cabeça
do úmero voltava ao lugar.
"Já faz muito tempo que eu não ouço uma linguagem como
essa", disse Fanny, com os lábios se contraindo.
"Se você lida com marinheiros, minha jovem, você adquire suas
virtudes e seus vícios." O rosto de Elspeth ainda estava branco e
brilhava como osso polido sob uma camada de suor, mas sua voz
estava firme e sua respiração estava voltando. "E onde, posso
perguntar, você ouviu uma linguagem como essa?"
Fanny olhou para mim, mas eu assenti com a cabeça e ela disse
simplesmente: "Eu morei em um bordel por algum tempo,
senhora."
"De fato." A sra. Cunningham puxou o pulso da minha mão e
sentou-se, um tanto trêmula, mas apoiando-se com a mão boa na
mesa. "Suponho que as prostitutas também devem ter virtudes e
vícios, então."
"Eu não sei sobre as virtudes", Fanny disse com dúvidas. "A
menos que você conte ser capaz de ordenhar um homem em dois

430
Referência ao “nó górdio”, tão impossível de ser desfeito, que apenas a lâmima de Aleandre, o Grande
(356 a.C. – 323 a.C.) o soltou.
900

minutos contados no relógio."


Eu mesma tomava um gole de uísque e engasguei com ele.
"Eu acho que isso seria classificado como uma habilidade em
vez de uma virtude", a sra. Cunningham comentou com Fanny.
"Embora valiosa, ouso dizer."
"Bem, todos nós temos nossos pontos fortes", eu disse, querendo
interromper a conversa antes que Fanny dissesse mais alguma
coisa. Meu relacionamento com Elspeth Cunningham havia
melhorado após a morte de Amy Higgins – mas apenas até certo
ponto. Nós nos respeitávamos, mas não podíamos ser amigas,
devido à percepção mútua, mas não reconhecida, de que, em
algum momento, a realidade política poderia obrigar meu
marido e seu filho a tentarem se matar mutuamente.

-.-.-

QUERENDO EVITAR NOVAS revelações de Fanny, mandei-


a para a cozinha para cuidar das codornas que a sra. McAfee
trouxera antes, em pagamento pela pomada de alho que eu havia
dado a ela para os vermes.
"Eu sempre me perguntei", comentei, amarrando a tipoia de
Elspeth. "O que, exatamente, significa pentear a grama? É uma
linguagem imprópria ou apenas descritiva?"
Ela estava prendendo a respiração enquanto eu fazia os ajustes
finais, mas agora soltou com um pequeno suspiro, testando
cuidadosamente a tipoia.
"Obrigada. Quanto a pentear a grama, geralmente significa
alguém que é ocioso ou incompetente. Por que pentear a grama
implicaria em qualquer um dos atributos não está claro, mas na
verdade não é uma linguagem imprópria, a menos que o termo
901

sodomita – às vezes várias vezes – seja anexado. Embora eu não


possa dizer que já ouvi isso sem sodomita anexado", acrescentou
ela de forma justa.
"Eu diria que você já ouviu mais do que isso, se você já esteve
no mar. Acho que você pode ter chocado Fanny. Não a
linguagem em si, mas porque você não parece uma prostituta."
Ela bufou brevemente.
"As mulheres tendem a ser muito mais livres no discurso quando
não há homens presentes, independentemente da profissão; com
certeza você percebeu isso?"
"Bem, sim", eu disse. "Incluindo freiras."
"Você conhece alguma freira? Em uma base pessoal?", ela
perguntou, com um traço de sarcasmo. Seu rosto estava
começando a mostrar um tom de cor e sua respiração estava mais
fácil.
"Sim, antigamente." E, de fato, embora eu raramente tenha
ouvido qualquer uma das irmãs do Hôpital des Anges dizer algo
como sodomita penteador, certamente as ouvi murmurar Merde!
– e mais algumas expressões de sentimentos bem enfáticas –
baixinho enquanto lidavam com os aspectos mais difíceis da
prática da medicina para os pobres de Paris.
E, de repente, tive uma memória vívida de madre Hildegarde,
que raramente dizia até mesmo merde, mas que me disse com
toda a franqueza que o rei da França esperaria se deitar comigo
se eu fosse implorar a libertação de Jamie da prisão. E então ela
me vestiu com seda vermelha e me mandou fazer exatamente
isso431.
"Merde", eu murmurei, baixinho. Elspeth não riu exatamente –
provavelmente porque doeria seu ombro – mas bufou um pouco.

431
Não exatamente mandou. Apenas não exergou outra solução, como está no livro 2 cap 27.
902

"Tenho observado", disse ela, "que ambos os sexos são muito


mais limitados na linguagem quando na presença do outro do
que quando estão apenas na companhia de sua própria espécie.
Exceto talvez em bordéis", acrescentou, olhando para a cozinha,
onde Fanny cantava Frère Jacques para si mesma enquanto
enrolava codornas no barro. "Essa é uma criança notável, mas
você realmente deve tentar persuadi-la a não..."
"Ela sabe que não deve dizer coisas assim em público",
assegurei a Elspeth, e servi um pouco de uísque em uma xícara.
"Mas você estará bastante livre para dizer o que quiser esta noite,
porque não vou deixar você voltar para sua cabana em seu
estado."
Ela me lançou um olhar pensativo, mas depois colocou uma
mecha de cabelo cinza-aço atrás da orelha e aquiesceu.
"Não tenho certeza se por minha condição você quer dizer ferida
ou embriagada, mas em qualquer caso, obrigada."
"Devo mandar Fanny até sua cabana para abafar o fogo?"
"Não. Afoguei antes de sair, com uma jarra de chá frio. É um
desperdício, mas eu não sabia dizer quando deveria estar de
volta."
"Bom." Eu a peguei pelo braço sadio e a ajudei a descer da mesa.
"Vou ajudá-la a subir as escadas para se deitar um pouco."
Ela não discutiu, e vi o quanto o ferimento e a jornada para
chegar até mim a haviam exaurido. Ela ergueu os pés com
cuidado lento, para não tropeçar nas escadas. Eu a aboletei em
uma das camas das crianças, dei-lhe uma colcha, uma jarra de
água fria e um trago forte, depois desci para ajudar Fanny com
os preparativos do jantar.
Brianna tinha mostrado a ela como embalar codornas em argila
para assar nas cinzas, mas esta era a primeira vez que ela fazia
903

isso sozinha, e ela olhava carrancuda para a fileira de torrões


claros e manchas de lama na mesa.
"Você acha que é lama o suficiente?", ela me perguntou, em
dúvida. Havia uma longa mancha de argila descendo por sua
bochecha e bastante nos cabelos. "Se não for o suficiente, diz
Bree, o bloco vai quebrar antes de serem cozidas e queimar a
carne, mas se for muita lama, elas estarão cruas por dentro”.
"Espero que estejamos com muita fome para nos importarmos
muito quando elas estiverem cozidas", eu disse, mas dei um leve
aperto em um dos pequenos pacotes e senti a argila ceder sob
meus dedos. "Acho que podem ter alguns bolsões de ar na argila,
no entanto. Aperte-os – levemente – com as mãos por toda parte,
para ter certeza de que nos livramos de todo o ar. Caso contrário,
quando o vapor atingir uma bolsa de ar, a codorna – bem, o
pacote, não a própria codorna – vai explodir."
"Oh, Senhor", disse Fanny, e começou a apertar com
determinação a codorna incrustada. Eu respirei e esfreguei dois
dedos entre minhas sobrancelhas.
"Você está com dor de cabeça?", Fanny perguntou, animando-
se. "Há casca de salgueiro fresca. Eu poderia preparar um pouco
de chá para você em um momento!"
Eu sorri pra ela. Ela era fascinada por ervas e adorava moer,
ferver e macerar.
"Obrigada, querida" eu disse. "Estou bem. Só estou tentando
pensar que diabos comer com a codorna." As refeições eram a
desgraça diária da minha existência; não tanto o trabalho
constante de colher, limpar, picar, cozinhar – embora essas
atividades fossem bastante nefastas em si mesmas – mas
principalmente a tarefa interminável de lembrar o que tínhamos
em mãos e equilibrar o esforço necessário para torná-lo
comestível com a noção do que poderia estragar se não fosse
904

consumido imediatamente. Preocupada com a nutrição, eu


enfiava maças, passas e nozes nas pessoas mais ou menos
constantemente, e empurrava alguma substância verde em suas
goelas relutantes sempre que tinha chance, e ninguém tinha
morrido de escorbuto ainda.
"Temos muitos feijões", disse Fanny em dúvida. "Ou arroz,
suponho... ou talvez nabos? Hã... couve-nabo432, quero dizer."
"Isso é uma possibilidade. Purê de couve-nabo não é ruim,
contanto que haja manteiga e sal, e eu sei que temos sal." Na
verdade, uns setenta quilos dele, se abrigando no galpão de
defumação. Tom MacLeod o trouxera de carroça de Cross Creek
na semana passada – o suprimento do ano para toda a
Cordilheira, a tempo para a caça, o abate e a preservação. Havia
poucos quilos de açúcar, mas eu tinha mel...
"Certo. Codorna assada com purê de nabos na manteiga e –
ervilhas secas fervidas com cebola? Talvez um pouco de
creme?"
No final, nós três nos sentamos uma hora depois para um jantar
bastante razoável – apenas uma das codornas havia explodido e,
de fato, a carne defumada estava muito saborosa, e as cebolas
ligeiramente queimadas na verdade melhoraram o creme de
ervilhas, eu pensei. Não houve muita conversa, no entanto;
Fanny e eu estávamos cansadas até os ossos e Elspeth
Cunningham estava velha, cansada e com dores.
Ainda assim, ela fez um esforço para ser educada.
"Você quer me dizer", disse ela, olhando em volta da enorme
cozinha, "que só sobraram vocês duas para administrar esta
casa?"
"A casa, o gado e o jardim", concordei, abafando um bocejo com

432
Nabo e couve-nabo são ambas raízes brássicas, mas de famílias diferentes, os neeps escoceses – a
couve-nabo – é maior, de casca mais grossa e polpa amarela.
905

um bannock com geleia espalhada por cima. "E o abate e


limpeza das carnes."
"E as abelhas", Fanny acrescentou, prestativa. "E todos os
remédios da sra. Fraser a serem preparados, e todas as pessoas
que ela reúne... hã... todas as pessoas que ela ajuda", ela
terminou, com mais tato do que tinha começado.
"E a limpeza também, é claro", acrescentou Elspeth, olhando
pensativa para a extensão de piso de madeira marcado por pés
que desaparecia nas sombras na outra extremidade da sala. Ela
olhou para mim de uma forma que reconheci de imediato:
diagnóstico.
O que quer que tenha visto, ela teve o tato suficiente para
guardar para si mesma, mas pegou a garrafa de uísque que
empurrei em sua direção, acenou com a cabeça em
agradecimento e disse: "Devo muito a você, sra. Fraser. Permita-
me retribuir-lhe em parte – enviando um dos tenentes do meu
filho para cuidar das tarefas mais... masculinas, enquanto seu
marido está fora. Dois deles virão na próxima semana, para ficar
conosco por um tempo."
Eu abri minha boca para recusar educadamente, mas então
encontrei seus olhos – firmes, mas gentis – e em seguida os de
Fanny, suplicantes e esperançosos.
"Obrigada", eu disse, e completei sua xícara.

-.-.-

A CONVERSA ERA FRACA e desconexa, e meia hora depois


Fanny começou a bocejar, assim como Bluebell, fazendo um
barulho alto e rangido.
"Acho que a cachorra quer ir para a cama, Fanny", falei,
906

apertando a mandíbula para conter o bocejo contagiante.


"Sim, ela quer", ela murmurou, e pegando o castiçal que
coloquei em sua mão, ela cambaleou lentamente para a cama,
Bluebell caminhando em seu rastro com uma determinação
sonolenta.
Elspeth não fez menção de ir para a cama, embora eu achasse
que ela devia estar caindo de cansaço. Eu certamente estava;
estúpida demais pelo cansaço para pensar em qualquer tipo de
estratagema de conversa. Felizmente, nenhum parecia ser
necessário. Nós apenas ficamos sentadas em paz perto do fogo,
observando as chamas e ouvindo o vento uivar através do sótão
vazio acima.
De repente, uma porta bateu e nós duas nos levantamos.
Nenhum outro barulho desceu as escadas, porém, e depois de
um momento, meu coração parou de martelar.
"Está tudo bem", eu disse.
Elspeth olhou para mim com severidade. "Patrice MacDonald
me disse que seu terceiro andar estava inacabado. O marido dela
pretendia vir trabalhar nisso nesta sexta-feira."
"Verdade."
"Esse barulho não veio do segundo andar. Estou certa disso."
"Não", eu concordei. "Não veio."
Ela olhou para mim, os olhos estreitos. Suspirei, desejando ter
um café.
"Todas as casas fazem sons, Elspeth – especialmente as casas
grandes. Minha filha poderia, sem dúvida, dizer por quê – eu não
posso, embora possa adivinhar de vez em quando. Tudo o que
posso dizer é que quando o vento vem do leste, muitas vezes
ouvimos aquele particular ruído no terceiro andar."
907

"Oh." Ela relaxou um pouco e tomou outro gole de uísque. "Por


que você simplesmente não deixa essa porta fechada, então?"
"Não há portas no terceiro andar", eu disse. "Ainda." Eu tomei
um gole. O uísque não era o especial de Jamie, mas não era de
todo ruim. Eu podia senti-lo se espalhando pela minha barriga
em uma nuvem macia de calor.
"Você está me dizendo", disse Elspeth, alguns momentos
depois, "que você considera assombrado um piso inacabado em
uma nova casa?"
Eu ri.
"Não, eu não estou. Não sei o que faz esse barulho, mas tenho
certeza de que não é algum tipo de porta fantasmagórica. Sério",
eu adicionei, vendo-a ainda em dúvida. "Dezenas de pessoas
trabalharam lá nos últimos meses, e nenhuma delas morreu lá –
nem nenhuma delas viu ou ouviu algo estranho. E você sabe que
isso é verdade", eu terminei, apontando meu dedo mindinho para
ela, "porque se alguém tivesse, todo a Cordilheira já saberia
sobre isso."
Ela estava na Cordilheira há tempo suficiente para perceber a
verdade disso e assentiu, relaxando o suficiente para voltar a
beber uísque. A tensão na sala começou a diminuir,
desaparecendo pela chaminé em uma nuvem branca e ondulante
de fumaça de nogueira.
"O sótão", disse ela, após alguns minutos de silêncio. "Por quê?
É uma casa incrivelmente grande, sem adicionar um terceiro
andar."
"Jamie insistiu nisso", disse eu, com um encolher de ombros.
Ela fez um ruído evasivo de reconhecimento e continuou a
beber. Mas suas esparsas sobrancelhas cinza estavam unidas, e
eu sabia que ela não parava de pensar nisso.
908

"Meu marido é o Fraser da Cordilheira dos Fraser", eu disse. "Se


algum dia houvesse... algum tipo de emergência que obrigasse
alguns dos inquilinos a deixar suas casas, eles poderiam se
refugiar temporariamente aqui. Eu vi isso acontecer antes",
acrescentei. "Tive refugiados na minha cozinha – na velha casa,
quero dizer – por meses. Pior do que baratas."
Elspeth riu educadamente disso, mas ela não se preocupou em
esconder seus pensamentos, e eu sabia que ela considerava
exatamente o tipo de emergência que eu tinha em mente.
"Seu filho", eu disse, sentindo que poderia muito bem ser franca.
"Você acredita nele?"
Ela engoliu em seco e recostou-se, parecendo olhar para mim de
muito longe, como quem olha para um urso no topo de uma
montanha: interessante, mas sem grande ameaça.
"Você quer dizer, é claro, o que ele disse à sua congregação
sobre a morte de seu filho. Sim, eu acredito nele. É um
conforto", ela adicionou suavemente.
Eu balancei a cabeça, aceitando isso. A história foi um conforto
para muito mais pessoas do que ela – incluindo eu, percebi com
uma pequena sensação de surpresa. Mas não era nisso que eu
queria chegar.
"Eu estava pensando especificamente no que seu filho disse, que
ele – o filho dele, quero dizer – o veria novamente em sete anos.
Você acredita nisso? Ou melhor, seu filho acredita nisso?"
Porque um homem que acreditava sem sombra de dúvida que
morreria em uma determinada data poderia se sentir capaz de
correr riscos antes dessa data.
Elspeth não fez segredo de que sabia o que eu queria dizer. Ela
ficou sentada em silêncio, olhando para mim, rolando a xícara
vazia lentamente entre as palmas das mãos, o ar entre nós
909

espesso com os fantasmas de cevada e madeira queimando. Por


fim, ela suspirou e, inclinando-se para a frente, cautelosamente,
colocou a xícara na mesa.
"Sim. Ele acredita. Ele ajustou seu testamento para que eu seja
cuidada – caso eu sobreviva a ele, o que na verdade não pretendo
fazer."
Eu esperei em silêncio. Ela deve, é claro, saber que Jamie – e,
portanto, eu – sabia sobre as tentativas do capitão de formar uma
unidade de milícia legalista. Não achei que o capitão pudesse ter
escondido dela o incidente do tráfico de armas.
"Jamie não vai deixar que ele faça isso", eu disse, e ela olhou
rapidamente para mim.
"Talvez não", disse ela, exagerando da maneira que as pessoas
fazem quando ligeiramente bêbadas. "Mas não vai depender do
seu marido, no final." Um pequeno arroto feminino a
interrompeu, mas ela o ignorou. "O general Cornwallis está
enviando um oficial – um oficial muito eficiente, apoiado pelo
poder da Coroa – para formar regimentos de milícias legalistas
por todas as Carolinas. Para suprimir a rebelião local."
Eu não respondi a isso, mas adicionei uns centímetros de uísque
em ambas as nossas xícaras e levantei a minha aos lábios.
Pareceu passar direto pelos meus tecidos e para o meu núcleo
em processo de dissolução.
"Quem?", eu perguntei.
Ela negou com a cabeça lentamente e jogou fora o uísque.
"E o diabo que os enganava foi lançado no lago de fogo e
enxofre, onde estão a besta e o falso profeta, e será atormentado
dia e noite para todo o sempre."433
"De fato", eu disse, o mais secamente possível para alguém

433
Referência bíblica, Apocalipse 20:10
910

marinado em uísque de single malte434. Eu não tinha certeza se


o diabo que ela tinha em mente era Jamie, George Washington
ou o Congresso Continental, mas provavelmente não importava.
"Sobre esta rocha edificarei minha igreja; e as portas do inferno
não prevalecerão contra ela"435, eu disse, e cerimoniosamente
joguei as últimas gotas de minha xícara no fogo, que chiou e
cuspiu azul por um instante.
"Sabe, realmente acho que devemos ir para a cama, Elspeth.
Você precisa descansar."

434
Uísque de um único tipo de grão – para os puristas, o verdadeiro uísque.
435
Referência bíblica, Mateus 16:18 .
911

64

DEZ PÃES DE AÇÚCAR, TRÊS BARRIS DE


PÓLVORA E DUAS AGULHAS PARA
COSTURAR CARNE

Salisbury

ÀS OITO HORAS DA MANHÃ SEGUINTE, a Great Wagon


Road estava diante deles, um amplo trecho de terra vermelha
pisoteada, salpicada de esterco e restos de lixo, mas vazia de
viajantes no momento.
"Aqui." Jamie puxou uma das pistolas do cinto e entregou-a à
irmã. Que – para a surpresa de Rachel – apenas assentiu com a
cabeça e apontou para uma roda de vagão quebrada deixada ao
lado da estrada, verificando a mira.
"Pólvora?", Jenny perguntou, deslizando a pistola em seu cinto.
"Aqui." Jamie tirou uma cartucheira do pescoço e passou a alça
com cuidado sobre a touca branca de Jenny. "Você tem pólvora
e balas suficientes para matar uma dúzia de homens, e seis
cartuchos já prontos para lhe dar uma vantagem."
Jenny avistou o rosto de Rachel ao ouvir "matar uma dúzia de
homens" e sorriu levemente. Rachel não se tranquilizou.
"Dinna fash, a nighean", disse Jenny, e deu um tapinha em seu
braço antes de colocar a cartucheira no lugar. "Não vou atirar
em ninguém, a menos que eles nos façam mal."
"Eu... preferiria muito que tu não atirasses em ninguém em
qualquer circunstância", disse Rachel com cuidado. Ela não
tinha comido muito no café da manhã, mas seu estômago estava
apertado. "Não em... em nosso nome, certamente." Mas ela
912

segurou a cabeça coberta de Oggy ao pensar nisso,


pressionando-o para perto.
"Tudo bem para você se eu atirar neles em meu próprio nome?",
Jenny perguntou, arqueando uma sobrancelha negra. "Porque eu
não vou ficar parada vendo alguém molestar meu neto."
"Não seja irritante, mãe", disse Ian com tolerância, antes que
Rachel pudesse responder. "Você sabe que se encontrarmos
algum vilão, Rachel vai conversar com ele até levá-lo ao estupor
antes de ter que atirar em um." Ele deu a Rachel um sorriso
privado, e ela respirou um pouco mais facilmente.
Jenny fez um som gutural que pode ter sido um acordo ou mera
polidez, mas não disse mais nada sobre atirar em ninguém.
Eles tinham duas boas mulas e um cavalo, uma carroça robusta
cheia de provisões, uma caixa de roupas e panos e uma dúzia de
garrafas de uísque de Jamie escondidas em um esconderijo sob
o assoalho. Este seria o centro de seu mundo pelas próximas
semanas, e então... o norte do país – e Emily. Desejando de todo
o coração que ela, Ian e Oggy estivessem em sua cabana
confortável na Cordilheira, Rachel fez uma cara de corajosa
quando Jamie se curvou e beijou sua testa em despedida.
"Até logo, filha", ele disse suavemente. "Eu vou vê-la segura
novamente." Um sorriso vincou seus olhos, e por mais breve que
fosse, deu a sua alma paz suficiente para que ela pudesse sorrir
de volta.
Jamie pegou Oggy, ajudou Rachel a se sentar, beijou o bebê e o
entregou também. Jenny pulou na parte de trás e se acomodou
em um aconchegante ninho de cobertores em meio às provisões,
e deu um beijo no irmão, que sorriu para ela. Ian deu um tapinha
no ombro do tio, subiu a bordo e, com um golpe nas rédeas, eles
partiram.
As pessoas diziam que você não devia olhar para trás ao partir
913

de um lugar, que dava azar, mas Rachel se virou sem hesitar,


observando. Jamie também estava observando, como uma
sentinela no meio da estrada. Ele levantou a mão e ela também,
acenando.
Você nunca sabia, ao se despedir de alguém, se poderia ser a
última vez. O mínimo que você podia fazer era dizer que o
amava – e ela gostaria de ter dito. Ela pressionou as pontas dos
dedos nos lábios e, quando eles viraram para contornar a
primeira curva, mandou um beijo para a figura distante, ainda
parada na estrada.
-.-.-
OGGY TINHA FICADO agitado a noite toda, e Jenny ficou
acordada para levá-lo para passear. Consequentemente, assim
que Salisbury e a dor de se separar de Jamie passaram, Jenny se
arrastou para a parte de trás da carroça, enrolada entre as bolsas
e caixas, e adormeceu profundamente. Oggy aninhou-se ao lado
dela, morto para o mundo em seu cobertor.
Esta foi a primeira oportunidade que Ian e Rachel tiveram de
uma conversa privada desde o dia anterior, e ela perguntou a ele
imediatamente sobre o homem morto que o policial Jones havia
encontrado.
"Tu sabes quem ele é?"
"Não, ninguém sabe. Parece que ele era um estranho na cidade."
Ela assentiu e apertou seu braço suavemente.
"Tu demoraste muito para descobrir isso."
"Sim, bem. Tio Jamie pensou a princípio que ele poderia
conhecer o homem, então voltamos para dar outra olhada
nele."436

436
Talvez um erro de continuidade dizer que foram juntos ou apenas uma maneira de Ian amenizar as
coisas para Rachel, já que na cena original eles se dirigem separadamente para onde está o morto.
914

Ele sempre foi sincero com Rachel, e ela com ele – mas ele se
esforçava para não lhe dizer coisas que sabia que ela acharia
angustiante, a menos que ele pensasse ser realmente necessário.
O que Jamie havia contado a ele sobre o livro de Frank Randall
poderia esperar um pouco, ele pensou, mas claramente o
estranho a incomodou, e ele disse a ela por que a visão do
homem morto inquietou Jamie.
"A sra. Fraser437? Sequestrada e estuprada?" Ian podia ver que
ela estava chocada. "E teu tio acha que esse estranho pode ter
alguma relação com o... o homem que fez isso?"
"Não acho provável, nem tio Jamie", disse Ian, com a maior
indiferença que pôde. Afinal de contas, não era uma mentira...
"É só que o estranho tem uma pequena semelhança. Se fosse
assim, ele seria parente do homem, por exemplo..."
"Se este homem fosse um parente dele, então o quê?" O cansaço
obscurecia os olhos de Rachel, mas eles ainda estavam claros
como um riacho de truta.
Bem, essa era uma boa pergunta. Enquanto ele procurava uma
resposta razoável, ela perguntou outra.
"Tu sabes onde o homem – o criminoso – está? Para que tu
possas enviar a ele a notícia de um parente morto?"
Ian escondeu um sorriso. Rachel naturalmente pensaria que
mesmo um violador e estuprador mereceria saber da morte de
um parente – e sem dúvida iria ela mesma contar a ele, se
necessário.
Felizmente, não seria necessário.
"Não sei exatamente o que aconteceu com ele, mas tivemos
certeza de que ele está morto." Ele fez uma nota rápida para ficar
a sós com sua mãe e se certificar de que ela soubesse o que

437
Estranho, já Rachel não usa títulos, ela diria Amiga Claire.
915

estava acontecendo, para que ela não contasse a Rachel


inadvertidamente porque eles tinham certeza de que o
estuprador estava morto.
O suspiro de Rachel ergueu seus seios brevemente, de modo que
o volume deles apareceu acima de sua combinação. Ian teve o
pensamento fugaz de que, quando falasse com a mãe quando
parassem em uma pousada esta noite, ela poderia ser induzida a
levar Oggy para tomar ar em algum momento.
"Que Deus tenha misericórdia de sua alma", Rachel disse, mas
seu rosto havia relaxado. "A sra. Fraser sabe?"
"Sim, ela sabe. Eu não falei com ela sobre isso, mas acho que
ela ficou... melhor consigo mesma por saber disso. "
Rachel acenou com a cabeça sobriamente.
"Seria terrível para ela saber que ele estava vivo. Que ele
poderia... voltar." Um pequeno estremecimento passou por ela,
e ela abraçou o manto em volta dos ombros. "E terrível para
Jamie também. Ele deve estar aliviado porque Deus tirou o fardo
deles."
"Deus trabalha de maneiras misteriosas, com certeza", disse Ian.
Ela olhou atentamente para ele, mas ele manteve o rosto calmo
e depois de um momento, ela acenou com a cabeça, e eles
deixaram o assunto dos homens gordos mortos para trás na
poeira.
-.-.-
JAMIE TINHA POUCOS negócios ainda para conduzir em
Salisbury. Ele havia conseguido o que queria, em termos de
fazer uma conexão com Francis Locke, e descobriu o que
precisava. Mesmo assim, Salisbury era uma cidade grande, com
mercadores e lojas, e Claire lhe dera uma lista. Ele apalpou o
bolso lateral e ficou tranquilo ao ouvir o barulho do papel
916

amassado; ele não o havia perdido. Com um breve suspiro, ele


puxou a lista, desdobrou-a e leu:

1 kg de alume438 (é barato)
Casca dos jesuítas, se alguém a tiver (consiga
tudo ou o quanto pudermos)
250 g de bandagens de Gilead439 (pergunte
no boticário, ou então no cirurgião)
2 litros de óleo doce440 (certifique-se de selar
com cera!)
25 g. cada um: beladona, cânfora, mirra, ópio
em pó, gengibre, ganja, se disponível, e
Cassia alata (é para micose e gosma dos
dedos dos pés)
Um rolo de tecido de linho fino (roupa íntima
para mim e Fanny, camisa para você)
Dois rolos de tecido de algodão resistente
(um azul, um preto)
90 g de alfinetes de aço (sim, precisamos de
tantos)
Linha (para costurar roupas, não velas ou
carne) – quatro bolas brancas, quatro azuis,
seis pretas
Uma dúzia de agulhas, a maioria pequenas,
mas duas muito grandes, por favor, uma

438
Sulfato hidratado de alumínio e potássio, com diversos usos, desde solução medicinal até para curtir e
tingir couro.
439
Bandagens em que linimento ou cataplasmas com medicamentos à base de plantas (especialmente da
resina da árvore bálsamo de Gilead), eram aplicados e usados para combater dores, infecções e
reumatismo, entre outros males.
440
Azeite de oliva
917

curva, uma reta


Quanto à comida:
Dez pães de açúcar441
Vinte e cinco quilos de farinha (ou podemos
obtê-la no Woolam’s Mill, se for muito caro
em Salisbury)
Dez quilos de feijão seco
Dez quilos de arroz
Especiarias! (Se houver e você puder pagar.
pimenta, canela, noz-moscada...?)

Jamie balançou a cabeça de um lado para o outro enquanto


caminhava pela rua, acrescentando mentalmente:

3 barris de pólvora
½ lingote (35 kg) de chumbo
Faca de esfolar decente...

Alguém tinha pegado a dele e quebrado a ponta, e ele suspeitava


fortemente de Amanda, ela sendo a única das crianças que
conseguia mentir de forma convincente.
Sim, bem, ele tinha Clarence e um novo burro, um baio claro,
com um passo suave chamado Abednego, para levar tudo para
casa. E o suficiente em diversas formas de dinheiro e trocas para
pagar por tudo, ele esperava. Ele nem sonharia em exibir ouro
em um lugar como este; malfeitores e aproveitadores o estariam
441
Antes de existirem os açúcares refinados ou em cubos, era assim que o açúcar era vendido, moldados
em formato de cone (chamados sugarloaf, ou loaf of sugar – pão de açúcar em português, daí o nome do
famoso morro do Rio de Janeiro, de formato cônico), secos e bem duros, de tamanhos que variavam
muito, mas em sua maioria eram entre 5 kg e 15 kg.
918

seguindo de volta para a Cordilheira como as abelhas de Claire


atrás dos girassóis. Certificados de armazém442 e uísque
causariam muito menos comentários.
Fazendo cálculos mentalmente, ele quase trombou com o
policial Jones, que saía de uma estalagem com um pãozinho
comido pela metade na mão.
"Perdão, senhor", os dois disseram ao mesmo tempo, e se
curvaram em reflexo.
"Voltando para as montanhas, então, sr. Fraser?", Jones
perguntou educadamente.
"Depois de fazer as compras para minha esposa, sim." Jamie
ainda tinha a lista em mãos e gesticulou com ela antes de dobrá-
la e colocá-la de volta no bolso.
Esta visão, porém, trouxe algo à mente do policial, pois seus
olhos estavam fixos no papel.
"Senhor Fraser?"
"Sim?"
O policial olhou para ele com atenção, mas acenou com a
cabeça, aparentemente pensando que ele era respeitável o
suficiente para ser questionado.
"O homem morto que você foi ver ontem à noite. Você diria que
ele era um judeu?"
"Um o quê?"
"Um judeu", repetiu Jones pacientemente.
Jamie olhou fixamente para o homem. Ele estava desgrenhado e
ainda sem se barbear, mas não havia cheiro de bebida nele, e

442
Um certificado (ou recibo) de armazém é um documento que fornece prova de propriedade de
mercadorias (por exemplo, barras de cobre) que são armazenadas em um armazém, cofre ou depósito para
custódia. A maioria dos recibos de depósito são emitidos em forma negociável, tornando-os elegíveis
como garantia para empréstimos.
919

seus olhos estavam claros, embora vagos.


"Como eu saberia isso?", ele perguntou. "E por que você acha
isso?" Um pensamento tardio lhe ocorreu. "Oh, você olhou para
o pau dele?"
"O quê!?" Jones olhou para ele.
"Você não sabe que os judeus são circuncidados, então?", Jamie
perguntou, tomando cuidado para não parecer que achava que
Jones deveria saber disso. Ele estava se esforçando para não se
perguntar se Claire poderia ter notado se o homem que a tocou...
"Eles são o quê?"
"Hã..." Duas senhoras, seguidas por uma empregada que
cuidava de três crianças pequenas e um rapaz com uma pequena
carroça para embrulhos, vinham em direção a eles, segurando as
saias cuidadosamente acima da lama da rua. Jamie fez uma
reverência para elas, depois apontou com a cabeça para Jones
para segui-lo, virando a esquina da estalagem até um beco, onde
esclareceu o policial sobre o tema.
"Jesus Cristo!", Jones exclamou, com os olhos esbugalhados.
"Por que diabos eles fazem isso?"
"Deus disse a eles", disse Jamie, dando de ombros. "Seu homem
morto, entretanto. Ele é…"
"Eu não olhei", disse Jones, lançando a ele um olhar de repulsa
horrorizada.
"Então por que você acha que ele pode ser um judeu?", Jamie
perguntou, paciente.
"Oh. Bem, isso." Jones apalpou suas roupas e acabou saindo
com um pedaço de papel sujo e muito dobrado, entregando-o a
Jamie. "Estava no bolso dele."
Desdobrado, tinha oito linhas de escrita, feitas cuidadosamente
com uma pena de boa qualidade, para que cada um dos
920

caracteres ficasse claro.


"Não conseguimos descobrir que diabos era isso", disse Jones,
semicerrando os olhos para o papel, como se isso pudesse ajudar
na compreensão. "Mas eu estava mostrando isso para o coronel
na taverna esta manhã, e estávamos estudando e não chegando a
lugar nenhum. Por acaso, o sr. Appleyard estava lá – ele é um
homem educado – e ele disse que achava que poderia ser
hebraico, embora ele tivesse esquecido tanto desde que o
aprendeu que não conseguia entender o que dizia."
Jamie entendeu bem, embora saber o que dizia fizesse pouca
diferença.
"É hebraico443", disse ele lentamente, lendo as linhas. "É parte
de um Salmo... ou talvez um hino de algum tipo."
Isso claramente não soou nada para o policial Jones, que franziu
a testa severamente para o papel, como se quisesse que ele
falasse.
"Qual é a última palavra, então? Pode ser o nome de quem o
escreveu? Parece que está em inglês."
"Sim, é, mas não é o nome de ninguém." A palavra, escrita com
o mesmo cuidado que os graciosos caracteres hebraicos, era
Ambidestro. Ele deixou para o coronel Locke esclarecer o
policial Jones sobre o significado e devolveu a folha, enxugando
os dedos na aba do casaco.
"Dê uma pequena olhada nas calças dele", sugeriu Jamie, e com
um aceno de cabeça despediu-se do policial Jones, de Salisbury,
de Francis Locke, do Regimento de Milícias do condado de
Rowan – e do homem morto.
Apenas 90 gramas de alfinetes, dez pães de açúcar e uma grande

443
Jamie aprendeu hebraico quando estudou na Université de Paris e tinha um conhecimento razoável da
língua. Isso fica bem claro no conto Virgens.
921

quantidade de pólvora o separavam de sua casa.


922

65

GREEN GROW THE RUSHES, O!444

Cordilheira dos Fraser

Eu estava ouvindo a cantoria na cozinha, mas prestando atenção


apenas pela metade, enquanto batia e transformava sálvia,
confrei e goldenseal445 em pó oleoso no consultório. Era fim de
tarde, e enquanto o sol batia quente sobre as tábuas do assoalho,
nas sombras continuava frio.
O tenente Bembridge estava ensinando a Fanny a letra de Green
Grow the Rushes, O. Ele tinha uma voz de tenor verdadeira e
clara que fazia Bluebell uivar quando atingia uma nota alta, mas
eu gostava. Isso me lembrava da época em que trabalhei na
cantina do Hospital Pembroke, enrolando bandagens e fazendo
kits cirúrgicos com as outras estudantes de enfermagem,
ouvindo um canto vindo com a névoa amarela pela estreita fenda
aberta no topo de uma janela. Havia um pátio lá embaixo, e os
pacientes do ambulatório ficavam lá sentados quando o tempo
estava bom – ou até não tão bom –, fumando, conversando e
cantando para passar o tempo.

"Dois, dois, os meninos brancos,


vestidos de verde, O
Um é um e sozinho

444
Os juncos crescem verdes , O (com diveros nomes alternativos), é uma canção folclórica inglesa
popular no países de língua inglesa. Às vezes, é cantada como uma canção de Natal. Os versos são
cumulativos, sempre se referindo a números. A origem é obscura, mas especula-se em sua função de
catequese.
445
Hydrastis canadensis, planta medicinal de origem na América do Norte, usada historicamente para
tratar doenças de pele, úlceras, febres e outras condições.
923

E sempre será assim!"

A música chegava a nós abafada pela névoa, e era


frequentemente interrompida por tosses e palavrões roucos, mas
alguém sempre conseguia levá-la até o fim.
Elspeth Cunningham havia cumprido sua palavra. Os tenentes
Bembridge e Esterhazy tinham dezoito e dezenove anos,
respectivamente, vigorosos e de boa saúde, e com a alegre ajuda
de Bluebell estavam fazendo tanto barulho que não ouvi a porta
da frente se abrindo ou passos no corredor. Fiquei tão surpresa
ao levantar o olhar do almofariz e ver Jamie na soleira da porta,
que deixei cair o pesado pilão de pedra direto no meu pé calçado
apenas de sandália.
"Ai! Ai! Jesus H. Roosevelt Cristo!" Saltei de trás da mesa e
Jamie me segurou pelo braço.
"Você está bem, Sassenach?"
"Eu pareço estar bem? Eu quebrei um metatarso446."
"Vou comprar um novo para você na próxima vez que for a
Salisbury", ele me assegurou, soltando meu cotovelo. "Enquanto
isso, tenho tudo da lista, exceto... Por que há ingleses cantando
na minha cozinha?"
"Oh. Ah. Bem..." Não é que eu não tivesse pensado sobre qual
poderia ser sua reação a dois oficiais da Marinha de Sua
Majestade ajudando na economia doméstica, mas pensei que
teria tempo para explicar antes que ele realmente os encontrasse.
Eu descansei minha bunda contra a borda da mesa, levantando
meu pé ferido do chão.
"Eles são dois jovens tenentes que costumavam velejar com o
capitão Cunningham. Eles foram lançados em terra ou

446
Osso do pé, Jamie. Não, não dá para comprar um, Jamie.
924

abandonados ou algo assim – de qualquer maneira, eles


perderam seu navio e é tão tarde no ano que eles não conseguem
encontrar um outro navio para se juntar antes de março ou abril,
então eles vieram para a Cordilheira para ficar com o capitão.
Elspeth Cunningham os emprestou para mim para tarefas, em
pagamento por eu reduzir seu ombro deslocado."
"Elspeth, não é?" Felizmente, ele parecia mais divertido do que
irritado. "Nós os estamos alimentando?"
"Bem, eu tenho dado a eles um almoço e um jantar leve. Mas
eles estão voltando para a cabana do capitão à noite e descendo
no meio da manhã. Eles consertaram a porta do estábulo", expus,
para atenuar, "cavaram o meu jardim, cortaram mais de sete
metros cúbicos de madeira, carregaram todas as pedras que você
e Roger cavaram do campo superior até a casinhola da fonte,
e..."
Ele fez um leve gesto indicando que aceitou minha decisão e
agora gostaria de mudar de assunto. O que ele fez me beijando
e perguntando o que havia para o jantar. Ele cheirava a poeira
da estrada, cerveja e levemente a canela.
"Acho que Fanny e o tenente Bembridge estão fazendo um
ensopado reforçado que chamam de burgoo. Tem porco, veado
e esquilo – aparentemente você deve ter pelo menos três carnes
diferentes para um burgoo adequado – mas não tenho ideia do
que mais há nele. Mas cheira bem."
O estômago de Jamie roncou.
"Sim, é verdade", disse ele pensativamente. "E o que Frances faz
com eles?"
"Acho que ela está um pouco apaixonada", disse eu, baixando a
voz e olhando para o corredor. "Cyrus veio chamar ontem
enquanto ela estava servindo o almoço aos tenentes e ela pediu
que ele ficasse, mas ele apenas se ergueu nos seus cerca de dois
925

metros, olhou para eles, disse algo rude em gaélico – eu não acho
que ela entendeu, mas ela não precisaria – e foi embora. Fanny
ficou com o rosto rosado – de indignação – e deu a eles a torta
de maçã seca e passas que ela havia preparado para Cyrus."
"Is fheàrr an giomach na bhith gun fhear-taighe", disse Jamie,
com um encolher de ombros filosófico. Melhor uma lagosta do
que nenhum marido.
"Você realmente não acha isso, não é?", eu perguntei, curiosa.
"No caso da maioria das garotas, sim", ele disse. "Mas quero
alguém melhor para Frances e não creio que um marinheiro
britânico sirva. Você diz que eles vão embora na primavera,
entretanto?"
"Assim eu entendi. Ooh!" Eu massageei gentilmente o
hematoma latejante no meu pé. O pilão atingiu bem a base do
meu dedão do pé e, embora a dor original tenha diminuído um
pouco, tentar colocar meu peso no pé ou mesmo dobrá-lo
resultou na sensação de arame farpado quente sendo puxado
entre meus dedos.
"Sente-se, a nighean", disse ele, e empurrou a grande cadeira
acolchoada que Brianna apelidou de Cadeira de Kibitzer447 em
minha direção. "Trouxe algumas garrafas de bom vinho de
Salisbury. Espero que um deles faça seu pé se sentir melhor."
Ele fez. E fez Jamie se sentir melhor, também. Pude ver que ele
havia voltado para casa carregando algo e senti um pequeno nó
abaixo do meu próprio coração. Ele me diria quando estivesse
pronto.
Então, bebemos nosso vinho – era tinto – e sentimos juntos o
toque suave da uva. Eu contei a ele sobre a aparição repentina de

447
Kibtizer é um termo de iídiche para espectador. As cadeiras de espectador são geralmente cadeiras sem
braços, de três pernas, e com o encosto sendo o prolongamento de uma delas e por vezes com uma
prancha mais larga no topo, para descanso dos braços ou apoio de livros.
926

Elspeth e nossa conversa depois do jantar. Ele me contou sobre a


partida de Ian, Rachel e Jenny, aliviando sua clara sensação de
tristeza pela separação deles com o comentário de Jenny sobre
sua pistola.
"Isso surpreendeu Rachel, como você pode supor", ele disse, os
olhos brilhando de diversão. "Mas então o jovem Ian aparece e
diz: Não seja irritante, mãe. Sabe, se encontrarmos algum vilão,
Rachel vai levá-lo ao estupor com sua conversa antes que você
tenha tempo de carregar."
Eu ri, tanto porque a nuvem parecia estar saindo do rosto de Jamie
quanto porque era engraçado.
"Espero que Jenny não se sinta obrigada a atirar na – seja-lá-qual-
for-o-nome-dela – esposa de Ian."
"Wakyo’teyehsnonhsa", Jamie disse pacientemente, e eu abanei
a mão.
"Emily, então. Você não acha que ela tentaria... atrair Ian de
volta?"
"Ela não o queria quando o expulsou de casa", Jamie apontou.
"Por que ela iria querer agora?"
Eu olhei para ele por cima da borda do meu segundo – ou
possivelmente terceiro – copo. "Quão pouco você sabe sobre
mulheres, meu amor", eu disse, balançando a cabeça, com
desânimo simulado. "E depois de todos esses anos."
Ele riu e derramou o resto da garrafa no meu copo.
"Acho que não quero saber nada sobre outra mulher além de
você, Sassenach. Depois de todos esses anos. Por quê, no
entanto?"
"Ela é viúva e tem três filhos pequenos", ressaltei. "Ela colocou
o Jovem Ian para fora porque ele não podia lhe dar filhos vivos,
não porque ele era um marido ruim. Agora que ela tem filhos
927

vivos, ela não precisa de um marido para esse propósito, mas há


muitas outras coisas para as quais um marido é bom. E eu acho
que Ian pode ser muito bom em algumas dessas coisas."
Ele me olhou pensativo e emborcou o resto do vinho em seu copo.
"Você fala como se o jovem Ian não tivesse nada a dizer sobre
isso, Sassenach. Ou Rachel."
"Oh, Rachel terá algo a dizer sobre isso", disse eu, embora não
tivesse certeza sobre o que ela poderia dizer. Rachel não era
tímida nem inexperiente nos caminhos do mundo, mas conhecer
a ex-mulher do cônjuge pode ser mais complicado do que ela ou
Ian pensavam.
"Veja o que aconteceu quando eu encontrei Laoghaire
novamente", eu apontei.
"Sim, ela atirou em mim", ele disse secamente. "Você acha que
Wakyo’teyehsnonhsa provavelmente mataria Rachel, em vez de
deixá-la ficar com Ian? Porque eu acho que minha irmã pode ter
algo a dizer sobre isso."
"Ela é uma mohawk", eu disse. "Eles têm padrões bastante
diferentes, eu acho."
"Eles não têm padrões diferentes de hospitalidade", ele me
assegurou. "Ela não mataria um convidado. E se ela tentasse,
minha irmã colocaria uma bala em sua cabeça antes que você
pudesse dizer... o que é que você poderia dizer?"
"Jack Robinson448", eu disse. "Embora eu sempre tenha me
perguntado quem ele era e por que isso deveria ser mais rápido
de dizer do que Fogarty Simms ou Peter Rabbit449. Há mais desse
vinho?"

448
Antes que se pudesse dizer Jack Robinson é um ditado para expressar um tempo muito curto,
proveniente da fama de um cavalheiro muito volátil com esse nome, que visitava seus vizinhos e ia
embora antes que seu nome pudesse ser anunciado. Porém, sem nenhuma referência histórica, parece que
o referido cavalheiro é apenas uma construção do imaginário popular.
449
Fogarty Simms: personagem do livro 6, cap 56. Peter Rabbit: personagem de livro de estórias infantis.
928

"Sim, bastante." Ele se levantou e foi até a porta do consultório,


onde parou para escutar. A cantoria na cozinha havia parado, e
havia apenas o murmúrio da conversa – interrompido por risadas
ocasionais – e o barulho de pratos.
"Seu pé aguenta subir as escadas, Sassenach?", ele perguntou,
virando-se para mim. "Eu poderia talvez carregá-la, se não."
"Lá para cima?", eu disse, bastante surpresa. Eu olhei
involuntariamente para a cozinha. "O que? Agora?"
"Não isso", disse ele, com um breve sorriso. "Ainda não. Eu quis
dizer o terceiro andar."

-.-.-

OS EFEITOS BENÉFICOS de meia garrafa de vinho foram


suficientes para me fazer subir as escadas com o apoio do braço
de Jamie, e emergi no espaço aberto do terceiro andar com uma
sensação de alegria. Uma brisa forte e fria soprava do leste, e
varreu os últimos restos de comida, cachorra, rapazes suados e
roupa suja demais vindos da casa lá embaixo. Abri os braços e
meu xale se alargou atrás de mim como asas, minhas saias
batendo em minhas pernas.
"Parece que você está pensando em voar para longe, Sassenach",
disse Jamie. "Talvez seja melhor você se sentar." Ele parecia
meio sério, mas estava sorrindo quando me virei para olhar para
ele.
Ele havia trazido um banquinho com ele, junto com a segunda
garrafa de vinho. Ele não se incomodou com os copos, mas tirou
a rolha com os dentes, cheirou o conteúdo avaliando e depois me
entregou a garrafa.
"Não acho que a decantação iria melhorar muito."
929

Eu não estava com humor para sutilezas. O alívio de tê-lo em casa


incluía todas as considerações menores, e eu não me importaria
de beber água. Ainda assim, o vinho estava bom, e segurei um
gole por alguns momentos antes de engolir.
"Isso é maravilhoso", eu disse, gesticulando em direção à vista
com a garrafa. "Não subi aqui desde que vimos Bree e Roger
partirem450." A memória de estar aqui em pé, vendo sua carroça
desaparecer lentamente entre as árvores, torceu meu coração um
pouco, mas a Cordilheira se espalhava ao nosso redor agora em
toda a sua glória – e era mesmo gloriosa, com manchas em
chamas e fagulhas de outono começando a queimar entre o fresco
ondulante de verdes e azuis de espruces, abetos, pinheiros e o céu.
Aqui e ali, eu conseguia distinguir os fios brancos da fumaça de
chaminés, embora as árvores agitadas escondessem as cabanas.
"Sim, é sim", disse Jamie, embora a maior parte de sua atenção
estivesse – naturalmente – voltada para as madeiras da estrutura
ao nosso redor. As paredes eram esqueletos ainda, mas
inegavelmente paredes, e a viga mestra do telhado e as vigas de
suporte e treliças rangiam no alto. Era uma sensação
extraordinária: estar dentro de uma casa e ainda do lado de fora,
as tábuas sólidas sob nossos pés marcadas com manchas de água
das chuvas anteriores e montes de folhas secas presas nos cantos
das vigas de madeira.
Jamie sacudiu dois ou três dos suportes, grunhindo de satisfação
quando eles não se moveram.
"Bem, isso não vai a lugar nenhum", disse ele.
"Você os construiu", eu apontei. "Certamente você não achou que
eles se soltariam?"
Ele fez um barulho indicando ceticismo extremo, embora eu não

450
Claire subiu quando esperavam Cyrus vir pra ajudar na construção e o viu, lá de cima, abençoando as
ferramentas. Isso, depois de Brianna e Roger partirem.
930

soubesse se ele era cético em relação às suas próprias habilidades,


à perversidade do clima ou à confiabilidade dos materiais de
construção em geral. Provavelmente todos os três.
"Talvez eu tenha tempo de colocar o telhado antes que a neve
caia", disse ele, semicerrando os olhos.
"E paredes?"
"Ach. Com dois homens, posso fazer as paredes externas em um
dia. Talvez em dois", ele emendou, quando uma nova rajada de
vento rugiu pela moldura, arrancando fios de cabelo da echarpe
com que eu os havia prendido. "Eu posso gastar meu tempo com
o acabamento com gesso, durante o inverno."
"Não é tão tranquilo quanto o segundo andar quando estava
aberto", eu disse. "Mas um pouco mais emocionante."
"Não quero que o topo da minha casa seja emocionante", disse
ele, mas sorriu e veio ficar atrás de mim, as mãos nos meus
ombros para me impedir de voar.
"Acho que não vamos realmente precisar que ele esteja concluído
antes da primavera", eu disse, quando o vento diminuiu o
suficiente para possibilitar a fala. "Nenhum de nossos andarilhos
estará de volta antes..." Eu parei, porque, na verdade, não havia
como dizer quando – ou se – todos voltariam para casa. A guerra
já havia começado a se mover para o sul, e o frio calmante do
inverno que se aproximava seria apenas um pequeno atraso do
que estava por vir.
"Eles estarão em casa seguros", disse Jamie com firmeza. "Todos
eles."
"Espero que sim", disse eu, e recostei-me nele, querendo sua
firmeza, tanto de fé quanto de corpo. "Você acha que Bree e
Roger já chegaram a Charles Town?"
"Oh, sim", ele disse imediatamente. "São um pouco mais de
931

quinhentos quilômetros, mas o tempo deve ter estado bom na


maior parte do tempo. Se eles não perderem uma roda ou
encontrarem um puma, eles fariam isso em duas semanas ou
mais. Espero que recebamos uma carta em breve; Brianna vai
escrever para dizer que está tudo bem."
Esse foi um pensamento encorajador, apesar dos pumas, mas eu
pensei que a força de sua crença era um pouco menor.
"Vai ficar tudo bem", eu disse, estendendo a mão para trás e
envolvendo a mão em volta de sua perna para tranquilizá-lo.
"Marsali e Fergus ficarão muito felizes em ter Germain de volta."
"Mas...?", disse ele, tendo captado o pensamento não falado que
veio na sequência do meu comentário. "Você acha que há algo
mais que talvez esteja errado com eles?"
"Eu não sei." Olhar para os vastos espaços em que nossa família
havia desaparecido tornou a separação repentinamente
assustadora. "Há tantas coisas que podem acontecer com eles – e
nós não podemos ajudar". Tentei rir. "Isso me lembra do primeiro
dia de Brianna no jardim de infância. Vê-la desaparecer na escola,
segurando sua lancheira rosa... sozinha."
"Ela estava com medo?", ele perguntou baixinho, juntando meus
cabelos esvoaçantes em uma mecha e amarrando-os com seu
lenço.
"Sim", eu disse, minha garganta apertada. "Ela foi muito
corajosa. Mas eu pude ver que ela estava com medo." Inclinei-
me e peguei a garrafa de vinho. "Ela está com medo agora", eu
soltei.
"De que, a nighean?" Ele deu a volta na minha frente e se
agachou para me olhar no rosto. "O que está errado?"
"É o coração dela", eu disse. E respirando fundo, contei a ele
sobre a fibrilação atrial.
932

"E você não pode consertar isso?" Sua testa estava franzida e ele
olhou por cima do ombro, para a floresta sem fim. "Ela poderia
morrer na estrada?"
"Não!" O pânico repentino ficou claro em minha voz e Jamie
agarrou minha mão, apertando com força.
"Não", eu disse, tentando me acalmar novamente. "Não, ela não
vai morrer. Quase nunca é fatal; particularmente não em uma
pessoa jovem. Mas é... imprevisível."
"Sim", ele disse, depois de estudar meu rosto por um momento.
"Como a guerra." Ele acenou com a cabeça em direção às
montanhas distantes, embora seus olhos não tenham deixado os
meus. "Você nunca sabe com certeza o que vai acontecer – talvez
nada, talvez não por muito tempo, talvez não aqui, não agora..."
Seus dedos se apertaram nos meus. "Mas você sabe que está lá, o
tempo todo. Você tenta afastá-la, não pensar nela até que haja
necessidade, mas ela nunca vai embora."
Eu concordei com a cabeça, incapaz de falar. A guerra vivia entre
nós dois; com todo mundo, nos dias de hoje.
O vento tinha diminuído, mas ainda forte o suficiente para que
houvesse uma brisa fria soprando em minhas roupas. O calor do
vinho havia desaparecido do meu sangue, e a mão de Jamie estava
tão gelada quanto a minha – mas seus olhos estavam quentes e
nossos olhos se prenderam um ao outro.
"Não tenha medo, Sassenach", ele disse por fim. "Ainda somos
nós dois."

-.-.-

APESAR DO VENTO FRIO, não voltamos para baixo


imediatamente. Embora fosse um local exposto e vulnerável,
933

havia algo reconfortante em saber que, se algo estivesse vindo em


nossa direção, veríamos a tempo de nos preparar.
"Então, o que mais você fez em Salisbury?", eu perguntei,
encostando-me nele. "Eu sei que você comprou canela, porque eu
posso sentir o cheiro. Encontrou a casca dos jesuítas?"
"Sim, cerca de 250 gramas. Eu peguei tudo, como você me disse.
Não consegui mais do que dois pães de açúcar; estão escassos,
com o bloqueio. Mas eu peguei pimenta também, e..." Ele me
soltou para mexer em seu sporran e apareceu com uma coisa
marrom redonda minúscula, que ele estendeu para mim. "Uma
noz-moscada."
"Oh! Não sinto o cheiro de noz-moscada há anos!" Eu a peguei
dele, com os dedos frios e com cuidado para não deixar cair. Eu
a segurei debaixo do meu nariz e respirei. Meus olhos estavam
fechados, mas eu podia ver claramente os biscoitos de Natal e
sentir o gosto da doçura da gemada. "Quanto foi?"
"Você não quer saber", ele me assegurou, sorrindo. "Valeu a
pena, porém, pela expressão em seu rosto, Sassenach."
"Traga-me um pouco de rum esta noite e vou colocar a mesma
expressão no seu", disse eu, rindo. Devolvi a noz-moscada para
mantê-la segura, percebendo, enquanto ele a colocava de volta,
um pequeno pedaço de papel com a borda irregular se projetando.
"O que é isso? Um comunicado secreto do Comitê de Segurança
de Salisbury?"
"Pode ser, se algum deles for judeu." Ele me entregou o papel e
eu pisquei para ele. Eu não tinha visto a escrita hebraica nos
últimos quarenta e cinco anos, mas reconheci. O que era mais
peculiar, porém, era o fato de que era a letra de Jamie.
"O que significa…?"
"Não sei", disse ele se desculpando, e pegou o bilhete de volta.
934

"Um policial de Salisbury o encontrou – não este, quero dizer,


mas o original – em um cadáver e me perguntou se eu sabia
alguma coisa a respeito. Eu disse a ele que era em hebraico e li
para ele em inglês, mas nenhum de nós sabia se tinha a ver com
alguma coisa. Achei estranho, porém, então eu escrevi para mim
mesmo quando voltei para o meu alojamento."
"Estranho é uma boa palavra para isso." Eu não sabia ler hebraico
– Jamie tinha aprendido em Paris, estudando na Université, mas
havia uma palavra em inglês no final da nota. "O que ambidestro
tem a ver com qualquer coisa, você tem ideia?"
Ele encolheu os ombros e abanou a cabeça, negando.
"A parte em hebraico é uma espécie de bênção para a casa. Eu já
vi isso antes, em casas de judeus em Paris; eles colocavam em
uma coisa pequenina chamada mezuzá perto da porta. Mas
ambidestro...", ele hesitou, olhando para mim de soslaio. "A
única coisa que consigo pensar, Sassenach, é que é uma palavra
longa sem letras repetidas."
A menção de Paris imediatamente me lembrou da casa de seu
primo Jared, onde havíamos vivido no ano anterior ao Levante –
e onde ele passava seus dias vendendo vinho e suas noites – com
muita frequência – em intrigas e...
"Espionagem?", eu disse incrédula. Eu não sabia quase nada
sobre códigos, cifras e escrita secreta – mas ele sabia. Ele parecia
ligeiramente envergonhado.
"Sim, talvez. Me desculpe, Sassenach. Eu não deveria ter trazido
uma coisa dessas para casa. Eu estava apenas curioso."
Não era mais do que um pedaço de papel, e qualquer mensagem
que pudesse conter certamente não era para nós – mas trouxe de
volta aqueles dias e noites ansiosos em Paris, cheios de glamour,
medo e incerteza – e depois de dor, tristeza e raiva. Eu engoli em
seco.
935

"Me desculpe", disse ele novamente, muito suavemente, os olhos


fixos no meu rosto. Ainda olhando para mim, ele abriu a mão e a
estendeu. O vento arrebatou a pequena nota de uma vez e girou
para longe como uma folha, voando do telhado para a floresta
profunda além. E se foi.
Sua mão ainda estava aberta e eu a peguei. Seus dedos estavam
tão frios quanto os meus. "Desculpado", eu disse, tão suavemente
quanto.
A batida de uma porta foi tão repentina que tirei minha mão da
de Jamie e me virei.
"O que foi isso?", eu exigi, olhando descontroladamente de um
lado para o outro.
"Provavelmente uma árvore", ele disse suavemente. "Lá, eu
acho..." Ele gesticulou em direção às árvores distantes. "Eu só
ouvi quando o vento soprou do leste."
"Nunca ouvi uma árvore fazer barulho como uma porta batendo",
disse eu, não convencida.
"Se você passasse muito tempo dormindo na floresta, Sassenach,
você as ouviria fazer tantos sons quantos animais no chão perto
de você – e muitas vezes é difícil dizer a diferença, se o vento
estiver soprando. Elas gemem e gritam e batem ruidosamente
seus membros e sibilam e guincham quando pegam fogo com um
raio, e de vez em quando elas caem com um estrondo poderoso
que sacode o chão. Se você prestasse atenção ao barulho, nunca
dormiria."
"Por um lado, eu não dormiria muito se estivesse em uma floresta,
independentemente. E, por outro, é plena luz do dia agora."
"Eu não acho que isso importa para uma árvore." Ele estava rindo
abertamente de mim, e isso absurdamente me fez sentir melhor.
Ele se abaixou, pegou a garrafa e me entregou. "Aqui, Sassenach.
936

Isso vai acalmar seus nervos."


Eu tomei um gole generoso e foi o que aconteceu. De alguma
forma.
"Melhor agora?", ele perguntou, me observando.
"Sim."
"Bom. Eu disse que tinha algo para contar a você, aye?
"Sim", eu disse, olhando para ele. "Por que eu acho que são más
notícias?"
"Bem, não é exatamente ruim", disse ele, inclinando a cabeça.
"Mas eu não queria falar sobre isso com os marinheiros ao
alcance da voz."
"Oh, apenas perigoso, então. Isso é um alívio."
"Bem, só um pouquinho perigoso." Ele pegou a garrafa de volta,
tomou um gole rápido e me contou sobre seus encontros com o
coronel Locke e suas conclusões a respeito da milícia do condado
de Rowan.
"Então", ele terminou, "eu disse que tinha tudo da minha lista,
exceto uma coisa – pólvora."
"Ah", eu disse. "Então você tem armas – algumas, pelo menos –
cortesia do capitão Cunningham..."
"E com alguma sorte, Roger Mac vai me trazer mais de Charles
Town", ele interrompeu. "Mas mal tenho pólvora suficiente para
nos manter com carne no inverno. Não consegui comprar
nenhuma em Salisbury, pois o coronel Locke requisitou tudo para
uso militar."
"E se você se juntar à super-milícia do condado de Rowan, o
coronel Locke a forneceria. Mas você não quer fazer isso, porque
então você precisaria atender aos seus chamados e receber ordens
dele."
937

"Não me importo em receber ordens, Sassenach", disse ele,


lançando-me um olhar de reprovação. "Mas depende de quem. E
se fosse Locke... ele levará as companhias sob seu comando para
a batalha, Deus sabe onde, mas não perto da Cordilheira. E não
vou deixar minha casa – ou você – desprotegida enquanto cuido
dos negócios de Locke a cento e sessenta quilômetros de
distância."
Sua mente estava decidida e, pela primeira vez, eu estava
totalmente de acordo com ele.
"Eu beberei a isso", disse eu, levantando a garrafa em saudação a
ele. Ele sorriu, pegou e esvaziou.
"Elspeth Cunningham e eu dividimos uma garrafa de seu segundo
melhor uísque", eu disse, pegando a garrafa vazia e colocando-a
embaixo do banquinho. "Nós conversamos sobre o filho dela. Eu
disse a ela que você não deixaria o capitão levantar uma milícia
legalista debaixo do seu nariz, por assim dizer. "
"Não deixaria mesmo."
"Naturalmente não. Mas o que ela disse em resposta – e veja bem,
ela estava exausta, com dor e bastante embriagada àquela altura,
então eu não acho que ela estava mentindo – ela disse que não
dependeria de você, no fim. Porque o general Cornwallis está
enviando um oficial – um oficial muito eficiente, disse ela, e
apoiado pelo poder da Coroa – para formar regimentos legalistas
de milícias por todas as Carolinas. Para suprimir rebeliões
locais."
Ele ficou imóvel por um longo momento, os olhos franzidos
contra o vento, que tinha se levantado novamente.
"Sim", ele disse finalmente. "Então, terão que ser os homens de
Além da Montanha – Cleveland, Shelby e seus amigos."
"Terão que ser eles para quê? "
938

Ele pegou o banquinho e a garrafa vazia e balançou a cabeça de


um lado para o outro, como se estivesse pensando consigo
mesmo.
"Com quem terei que fazer aliança. Eles têm um acordo com a
sra. Patton para fornecer pólvora para eles de seu moinho, e se eu
concordar em apoiá-los em suas necessidades, eles vão deixá-la
saber disso e ela irá me fornecer também. E eles provavelmente
virão em meu auxílio, se eu chamar."
Eu ouvi esse provavelmente e me aproximei dele, sentindo de
repente mais frio do que antes. Ele estava essencialmente
sozinho, sem Roger ou Jovem Ian por perto, e ele sabia disso
muito bem.
"Você confia em Benjamin Cleveland e no resto?"
"Sassenach, há talvez oito pessoas no mundo em quem confio, e
Benjamin Cleveland não é uma delas. Felizmente, você é."
Ele colocou um braço em volta de mim e beijou minha testa.
"Como está seu pé?"
"Não consigo sentir nenhum dos meus pés."
"Bom. Vamos descer e nos aquecer com um pouco do burgoo dos
marinheiros."
"Isso soa di..." A palavra morreu em meus lábios quando vi um
movimento do outro lado da clareira abaixo, no início da estrada
de carroças que descia atrás da cabana de Bobby Higgins. "Quem
é aquele?"
Tateei automaticamente pelos meus óculos, mas os havia deixado
no consultório. Jamie olhou por cima do meu ombro, apertando
os olhos contra o vento, e fez um barulho de interesse.
Era uma pessoa a pé; isso eu podia ver. E uma mulher, movendo-
se lentamente, como quem põe um pé diante do outro por pura
determinação.
939

"É a moça que veio buscar você para o parto de sua mãe", disse
ele. "Agnes Cloudtree, não é?"
"Tem certeza?" Eu apertei os olhos também, mas não ajudou
muito; a figura permaneceu um borrão marrom e branco em
contraste com a terra mais escura da estrada. Uma pontada de
medo passou pelo meu coração, no entanto, com o nome
"Cloudtree". Pensei muitas vezes nos gêmeos que ajudei a nascer,
no heroísmo estoico de sua mãe... e na circunstância muito
peculiar desse nascimento; uma circunstância tornada ainda mais
peculiar pela simplicidade dela. Eu podia reviver a sensação
daquele pequeno corpo em minhas mãos agora. Nada dramático;
sem formigamento ou brilho. Apenas o conhecimento certo e
concreto da vida.
Se fosse mesmo Agnes Cloudtree vindo em nossa direção, eu
esperava contra todas as esperanças que ela não tivesse vindo
para me dizer que sua irmãzinha estava morta.
"Acho que está tudo bem, Sassenach." Jamie continuou
observando a pequena figura obstinada, com o braço ainda em
volta da minha cintura. "Eu posso ver que ela está cansada – e
não é de admirar, se ela caminhou desde a Linha Cherokee – mas
seus ombros estão retos e sua cabeça não está curvada." A tensão
em seu braço relaxou. "Ela não vem com tristeza."

-.-.-

ABRIMOS A PORTA da frente em boas-vindas, mas ficamos


abrigados do vento no saguão da frente até que ela se
aproximasse. Fanny olhou cautelosamente, por trás do cotovelo
de Jamie, para a pequena figura subindo a colina, e de repente
enrijeceu.
940

"Ela está vindo para ficar!", ela disse, e olhou acusadoramente


para mim.
"O quê?", eu disse, assustada, e Fanny relaxou um pouco, vendo
que minha surpresa com esse comentário era genuína.
"E... ela tem suas coisas." Ela acenou com a cabeça para Agnes,
que agora estava perto o suficiente para que eu pudesse ver seus
longos cabelos loiros ralos escapando de uma touca suja. Agnes
estava de fato carregando um saco de farinha, amarrado com um
nó e seu peso balançando como um pêndulo enquanto ela andava.
"Ela provavelmente está nos trazendo algo de sua mãe", eu disse.
"Sim, ela está." Os olhos de Jamie estavam fixos nela,
interessados. "Ela própria." Ele olhou para Fanny, que estava
ligeiramente carrancuda. "Frances está certa, Sassenach. Algo
aconteceu e a moça saiu de casa."
"Agnes!", eu chamei, saí e desci as escadas para encontrá-la.
"Agnes, você está bem?"
Seu rosto estava cansado e sujo, mas seus olhos se aqueceram
quando ela me viu.
"Sra. Fraser", disse ela. Sua voz estava rouca, do jeito de quem
não fala uma palavra em voz alta há horas ou dias, e ela pigarreou
e tentou novamente.
"Eu... é... quero dizer... estou bem."
"Fico feliz em ouvir isso". Estendi a mão e peguei o saco de
farinha dela – Jamie e Fanny estavam certos. Pude perceber, pelo
toque, que continha roupas, em vez de um presunto ou um saco
de cebolas. "Entre, criança, e coma alguma coisa; você parece
faminta."
Fanny olhou para Agnes com cautela, mas foi buscar burgoo
quente e um pouco de pão com manteiga quando pedi a ela.
Agnes comeu vorazmente e nós a deixamos comer até se fartar,
941

sem falar. Quando ela começou a dar sinais de que estava


diminuindo a velocidade, troquei um olhar com Jamie, que
concordou que eu faria as perguntas.
"Como está sua mãe, querida?", eu perguntei. "E você gostaria de
um pedaço de torta de maçã e passas? Acho que sobrou um pouco
no armário de guardar comida, não é, Fanny?"
"Sim, sobrou", disse Fanny. Ela não havia tirado os olhos de
Agnes desde que ela entrou na casa, e ainda a olhava como se
suspeitasse que ela pudesse ter vindo para roubar as colheres, mas
ela se levantou imediatamente e foi pegar a torta.
"Minha mãe está bem", disse Agnes, olhando para mim
diretamente pela primeira vez. Seu rosto estava tenso e ansioso,
porém, e outro calafrio de apreensão passou por mim.
"Seus irmãos? E…"
"Minha irmã está bem", disse ela, seu rosto relaxando um pouco.
"Está crescendo, mamãe disse para lhe contar. Ela está quase tão
grande quanto seu irmão gêmeo agora, e comendo como um dos
leitões. Meus irmãos sempre comem como porcos", acrescentou
ela com desdém.
"Estou tão feliz em ouvir isso", disse eu, e o calor me encheu.
"Sobre sua irmãzinha, quero dizer."
Hesitei, sem saber o que perguntar a seguir, mas suas forças
voltaram com um pouco de descanso e comida, e ela se endireitou
no banquinho, cruzou as mãos sobre os joelhos e olhou para
Jamie.
"Agradeço sua gentileza com a comida e vim pedir trabalho,
senhor."
"Sim, então?" Jamie me lançou um olhar que dizia Está vendo?,
então sorriu para ela. "Que tipo de trabalho você tem em mente,
moça?"
942

Ela parecia um tanto perplexa com isso e estendeu as mãos,


franzindo a testa para elas.
"Bem... qualquer coisa que for preciso fazer, eu suponho.
Lavanderia?", ela se aventurou, olhando de Jamie para mim e
vice-versa. "Ou talvez eu pudesse alimentar seus animais ou
esfregar o chão..." Todos olhamos para o chão da cozinha, que
estava coberto de pegadas secas de lama no momento; havia
chovido intermitentemente durante toda a semana.
"Mmphm", disse Jamie. "Eu imagino que podemos encontrar o
suficiente para você fazer, moça. E nós vamos dar a você uma
cama e muito o que comer. Mas você poderia me dizer, então, por
que você deixou sua família?"
Um rubor opaco subiu em suas bochechas, e eu sabia o que ela
estava prestes a dizer.
"Seu... hum... padrasto, talvez?", eu perguntei delicadamente. Ela
olhou para baixo e o rubor ficou mais profundo. Ela assentiu com
a cabeça, uma vez.
"Ele voltou", ela deixou escapar. "Ele sempre volta. E ele fica
bem, principalmente, por algum tempo; quando ele está sem
bebida e enquanto não houver dinheiro para comprar mais...
então está tudo bem." Ela respirou fundo e olhou para cima,
encontrando os olhos de Jamie diretamente. "Não é o que você
está pensando, senhor; ele não... você sabe."
"Eu sei", Jamie disse suavemente. "E estou feliz que ele não tenha
feito isso. Mas o que ele fez?"
Ela suspirou.
"Quando ele bebe, ele fica com raiva e... tem ideias. Então, desta
vez, sua ideia era que todos nós deveríamos ir para a terra do povo
Overhill451 e viver em uma das aldeias de lá. Minha mãe não se
451
Overhill Cherokee era o termo para designar o povo cherokee localizado em seus assentamentos
históricos no que hoje é o estado americano do Tennessee, no sudeste dos Estados Unidos , no lado oeste
943

importou; ela ficou feliz de ir para um lugar onde haveria outras


mulheres, pessoas para estar com e que podem ajudar."
Ela olhou para mim, mordendo o lábio inferior.
"Mas eu não queria ir. Aaron pretendia me casar com um amigo
dele em Chilhowee452. Ele – nós – não nos damos bem, ele e eu.
Ele me queria fora de casa, e quando eu disse que não iria me
casar, ele disse que isso poderia me servir, mas para ele não. E...
ele me expulsou." Ela havia mantido um controle firme sobre
seus sentimentos até agora, mas uma lágrima escorreu por sua
bochecha com isso, e ela a enxugou apressadamente, como se não
quisesse que nós víssemos.
"Eu... passei dois dias na floresta, senhor. Não querendo deixar a
mamãe e os pequeninos e não sabia mais o que fazer. Meu irmão
Georgie roubou um pouco de comida para mim e, finalmente, Ma
saiu por tempo suficiente para me trazer minhas coisas", ela
acenou com a cabeça para o pequeno saco abandonado no chão a
seus pés. "Ela disse que eu deveria vir até vocês. Vocês foram tão
gentis e bons para nós, talvez... " Ela parou e engoliu em seco,
com força.
"Então eu vim", ela concluiu, em uma voz muito baixa. Ela se
sentou com a cabeça baixa. A sala tinha escurecido agora, e a luz
do fogo tremeluzia suavemente sobre ela, como se o calor a
alcançasse.
Fanny levantou-se de repente, aproximou-se de Agnes e agachou-
se à sua frente. Ela pegou a mão de Agnes nas suas e deu um
tapinha.
"Você sabe cozinhar?", ela perguntou esperançosa.

das Montanhas Apalaches.


452
Chilhowee foi um sítio pré-histórico e histórico dos índios americanos nos condados atuais de Blount e
Monroe no Tennessee. Embora agora submerso pela represa do Lago Chilhowee do rio Little Tennessee ,
o local de Chilhowee era o lar de uma importante cidade Overhill Cherokee do século 18.
944

66

DIÁSPORA

EU CORTEI VÁRIOS PEDAÇOS de açúcar de um dos pães que


Jamie trouxera de Salisbury e os carreguei para o jardim,
embrulhados em meu lenço. Muito antes de chegar ao próprio
jardim, as abelhas começaram a aparecer, circulando-me com
interesse.
"A que distância vocês conseguem sentir o cheiro?", eu
perguntei. "Sejam pacientes; vocês vão fazer seu lanche em um
minuto." Ainda havia flores desabrochando na montanha –
ásteres, sedum, tango, açafrão-do-prado, erva-daninha-roxa –
mas também havia lagartas em maior abundância do que eu
estava acostumada, e aquelas chamadas wolly bears453 estavam
maiores e mais peludas do que o normal; sinal claro de um
inverno rigoroso, de acordo com John Quincy, que devia saber.
Eu queria ter certeza que as abelhas teriam mel suficiente para
mantê-las até a primavera, então aumentei sua dieta com frutas
fatiadas ou água com açúcar a cada poucos dias.
Dentro do jardim – com o portão cuidadosamente fechado contra
intrusões de veados ou guaxinins – despejei a água do barril na
tigela rasa que eu mantinha lá e esmigalhei o açúcar, mexendo
com o dedo. As abelhas imediatamente correram para a tigela,
minhas roupas, o banquinho alto que usei como bancada de
trabalho e, para a minha mão, seus pés fazendo cócegas, com
intenso interesse.
"Com licença?", eu disse, sacudindo-as e escovando

453
A Pyrrharctia isabella, também conhecida como isabella tiger moth (traça-tigre
isabella) ou woollybear, é uma espécie de lagarta peluda existente nos Estados Unidos e no sul do
Canadá. Foi descrita pela primeira vez por James Edward Smith em 1797.
945

cuidadosamente algumas delas de meu rosto. Dessa vez, fui


precavida e enrolei meus cabelos com um pano, tendo tido mais
de uma vez a experiência enervante de tentar separar uma abelha
em pânico dos fios flutuantes.
"Tudo bem, então", eu disse, largando o prato de água com açúcar
com uma sensação de alívio. "Vão!" Elas não precisavam de
incentivo; as abelhas já estavam agrupadas ombro a ombro na
borda do prato, sugando avidamente, então voando de volta para
suas colmeias – eu tinha oito agora, no jardim, e mais três na
floresta, todas prosperando – para serem instantaneamente
suplantadas por outra horda.
"Bem, então." Recuei e as observei por um momento, com uma
sensação de satisfação. O bater de suas asas era um som baixo e
agradável e eu relaxei com a sensação do jardim no início do
outono, com folhas frescas e pungentes, com os aromas agudos
de nabos, vinhas de batata e terra revolvida. Eu cavei uma vala
profunda para as ervilhas de primavera ao longo de um lado do
jardim, e uma para as vagens do outro lado; Jamie ou uma das
meninas precisariam carregar alguns cestos de estrume para que
eu o misturasse com terra antes de enchê-las, para que pudesse se
decompor pacificamente durante o inverno. Alguns tomates
tardios brilhavam na sombra do canto nordeste, e fui colher o que
pudesse ser aproveitável das plantas esfarrapadas; elas não
durariam muito mais tempo.
"Então", eu disse a uma abelha que gentilmente me acompanhou
até a plantação de tomates, "você já sabe sobre Roger, Bree e as
crianças – imagino que você possa sentir o cheiro do chucrute a
quilômetros de distância. Espero que já tenham chegado a
Charles Town e que tudo esteja bem entre Germain e sua família.
Acho que não contei sobre Rachel e Ian, no entanto. Eles saíram
com Jenny – você a conhece, ela tinha cheiro de nozes, leite de
cabra e bannocks da última vez que a vi. Eles foram todos para
946

New York.”
"Sim, é um longo caminho", continuei, desenrolando a pequena
esteira de junco trançado em que me ajoelhei para arrancar as
ervas daninhas. "A única coisa boa é que não haverá mais lutas
no norte – tudo está vindo para cá. Mas houve uma luta lá em
cima, então eles foram ver a ex-mulher de Ian e se certificar de
que ela e seus filhos estão bem. Rachel não está feliz com isso,
naturalmente, mas sua luz interior obviamente vê que Ian tem que
ir, e então ela está indo com ele. Com o bebê", acrescentei, com
uma pontada de apreensão.
"De qualquer forma, é uma pequena diáspora – suponho que você
saiba o que é; você faz isso todos os dias, não é?" Mas então você
volta no final do dia, pensei.
Fiz uma oração rápida para que nossas abelhas ocupadas
sobrevivessem ilesas às suas aventuras e voltassem para nossa
colmeia na primavera. Então me lembrei de Agnes.
"Oh, nós temos alguém novo. Ela se chama Agnes e no momento
ela cheira muito forte a sabão de soda cáustica e hissopo, porque
eu tive que cuidar de seus cabelos, mas tenho certeza de que é
apenas temporário – o cheiro, quero dizer; as lêndeas sumiram.
Vou trazê-la amanhã e apresentá-la a você."
Era reconfortante pensar que Fanny não estava zanzando por
aquela casa grande sozinha. Ela e Agnes se deram bem, depois
de uma breve cautela inicial. Quando saí para ir ao jardim, elas
estavam sentadas na varanda trançando cebolas e alho e
especulando sobre as perspectivas matrimoniais de Bobby
Higgins, já que podiam ver a cabana abaixo e Bobby consertando
uma tábua podre na varanda, Aidan ajudando-o, e os dois
garotinhos perseguindo um ao outro dando voltas e mais voltas
na cabana, gritando.
"Você o aceitaria?", Fanny havia perguntado a Agnes. "Você teve
947

– quero dizer, tem", ela se corrigiu apressadamente, "irmãos mais


novos, então talvez você pudesse lidar com os meninos."
"Eu poderia", disse Agnes em dúvida, colocando uma nova
trança de cebolas no cesto. "Mas eu não sei sobre ele. O sr.
Higgins, quero dizer. Judith MacCutcheon diz que a cicatriz em
sua bochecha é a marca de Assassino. Acho que teria medo de
deitar com um homem que matou alguém."
"É mais fácil do que você pensa, criança", eu disse baixinho,
lembrando disso.
Ainda assim, era verdade que, enquanto a competição para ser a
próxima sra. Higgins continuava, algumas das jovens – e algumas
de suas famílias – na Cordilheira viam Bobby com um olhar
ligeiramente amargo, agora que ele era viúvo e disponível no
mercado para uma esposa. Quando ele se casou com Amy
McCallum – assumindo os filhos dela, Aidan e Orrie, e
rapidamente produzindo o pequeno Rob –, a comunidade
lentamente o aceitou. Mas agora, quando ele poderia estar se
casando com uma de suas filhas, eles o estavam vendo novamente
como um Sassenach e se lembrando de que ele tinha sido um
soldado –um casaco vermelho. E um assassino, com uma marca
no rosto para testemunhar seu crime.
Afastei a pequena pilha de ervas daninhas – eu tinha uma fileira
dessas pilhas ao longo da borda do canteiro de nabos, cada uma
mais murcha e em decomposição do que a outra ao lado. Eu as
guardava para provar a mim mesma que estava, de fato,
realizando algo, embora, se olhasse por cima do ombro, fosse
evidente que o mato estava levando o melhor sobre mim. Jamie
se referia às pequenas pilhas como meus escalpos – o que, embora
ele quisesse que fosse engraçado, na verdade não estava errado.
Porém, havia outras coisas a fazer hoje, então me levantei, com
os joelhos estalando, e enrolei o tapete.
948

Peguei a cesta de tomates, nabos e ervas colhidas e parei no


portão do jardim, olhando para a casa. As meninas haviam
desaparecido da varanda, e o cesto raso também tinha sumido –
provavelmente elas tinham ido para o porão com as cebolas.
Fanny tinha – pensávamos – treze anos agora; Agnes quatorze.
As garotas se casavam nessas idades, mas não iriam se eu – e
Jamie – tivéssemos algo a dizer sobre isso, e nós tínhamos.
Um lampejo de movimento chamou minha atenção por entre as
árvores. Uma mulher... uma jovem, em um corpete xadrez azul e
uma saia cinza com uma anágua bordada apenas aparecendo por
baixo. Sua cabeça apareceu e reconheci Caitriona McCaskill. Ela
também carregava uma cesta e estava descendo a ladeira com um
propósito. Nem todo mundo tinha reservas em relação a Bobby
Higgins.
"E o que vocês acham dela?", perguntei às abelhas, mas se elas
tivessem uma opinião, guardaram para si.
949

67

RÉUNION454

Charles Town, Carolina do Sul

MANDY ESTAVA ATÔNITA e incoerente – mas de forma


alguma silenciosa – sobre tudo o que via, desde as nuvens de
mosquitos flutuando ao redor deles, e bandos de pássaros que
provavelmente comiam os mosquitos, até negros escravizados
que trabalhavam nos campos de arroz.
"Tio Joe!", ela gritou, pendurada meio fora da carroça e acenando
loucamente. "Tio Joe, tio Joe!"
"Esse não é o tio Joe", Jem disse a ela, agarrando a parte de trás
de seu avental. "Ele está em Boston." Ele olhou rapidamente para
sua mãe, que acenou com a cabeça, grata pela intervenção. Ela e
Roger tiveram uma conversa particular com Jem e Germain sobre
escravidão – e uma conversa um pouco mais particular com Jem.
"Olha, Mandy!" Germain agarrou o braço de Mandy, virando-a
para ver uma enorme garça azul olhando com desaprovação para
eles de um arrozal não drenado, e nada mais foi dito sobre os
homens e mulheres que trabalhavam com pequenas foices de mão
do outro lado da estrada, curvando-se e dobrando-se no ar quente
e espesso, colhendo os grãos amarelados que chegavam até os
joelhos.
Nos arredores da cidade, eles viram soldados continentais.

454
Reunião, em francês.
950

"Muitos soldados!" Os meninos agora estavam saindo da carroça,


puxando as mangas uns dos outros para ver uma nova maravilha.
Pequenas tendas de lona, grandes o suficiente apenas para
proteger um homem da chuva, mas centenas delas, parecendo
respirar enquanto uma brisa do rio distante passava por elas. A
brisa trouxe o som de gritos ritmados: homens treinando,
marchando de um lado para outro em um quadrado distante e
limpo de terra pisada, mosquetes nos ombros. E então um par de
canhões, escuros e letais, em suas carretas e prontos para se
mover, com seus baús cheios de caixotes de balas e barris de
pólvora. Os meninos ficaram sem fala.
"Jesus Cristo." Brianna, a menina da escola paroquial que era,
raramente dizia o nome do Senhor em vão, mas esta era uma
oração murmurada. Roger ouviu e olhou para ela.
"Sim", ele disse, vendo o que ela estava olhando. "Eles parecem
inofensivos em um museu, não é?" Sua boca se apertou um pouco
quando ele olhou para os meninos boquiabertos, mas ele deu a
Brianna um sorriso irônico e entregou-lhe as rédeas.
"Distração", disse ele brevemente, e içou Mandy em seu colo,
onde a segurou com firmeza pela cintura e começou a apontar
voos de garças brancas e o que poderiam ser mastros nebulosos
de navios no porto distante.

-.-.-

HÁ QUANTO TEMPO ela não via uma cidade? Brianna ficou


tão tensa quando avistaram Charles Town que mal notou a cidade
em si. Ela sentia o barulho pesado dos barris de chucrute a cada
solavanco na estrada, e quando eles alcançaram as ruas de
paralelepípedos de Charles Town e o barulho virou uma vibração
constante na estrutura da carroça, entre visões de pesadelo de um
951

barril tombando e estourando na estrada e a necessidade de


manter o controle sobre Mandy, ela tinha pouca atenção para dar.
Mas agora, finalmente, eles pararam. Ela se sentia com os joelhos
fracos, como alguém pisando em terra depois de uma longa
viagem marítima, e pensou que poderia cheirar a chucrute pelo
resto da vida, mas tais considerações pouco pesavam contra o
alívio da chegada. Eles tiveram que deixar a carroça no quintal
de uma pousada e seguir a pé até a gráfica. Charles Town tinha
ruas largas e graciosas, mas o estabelecimento de Fergus se
escondia modestamente em uma rua menor, perto da orla do
distrito comercial, arborizada e agradável, com várias pequenas
lojas ao redor – mas não uma rua larga o suficiente para as
carroças passarem uma ao lado da outra.
Roger dera ao cavalariço da pousada alguns centavos para cuidar
da carroça enquanto eles caminhavam até a gráfica, mas ainda se
sentia desconfortável em deixá-la. Por outro lado, o cavalariço
recuou, sentindo o cheiro de chucrute, então cuspiu nas pedras e
olhou para Roger, indicando que três pence mesquinhos não eram
suficientes para isso.
Os MacKenzie há muito haviam deixado de notar o fedor de
repolho fermentado, mas seus narizes estavam se contraindo
agora, ávidos pelos cheiros de uma cidade – particularmente pela
comida da cidade. Estavam perto do rio, e os cheiros de peixe
frito, sopa e o cheiro salgado de ostras frescas misturavam-se ao
cheiro de grãos e flores e aumentavam em um miasma apetitoso
ao redor deles.
"Meu Deus. Camarão e quirera?" O estômago de Brianna deu um
grunhido audível, jogando todas as crianças na risada.
"O que é quirera?", Mandy perguntou, fungando forte. "Sinto
cheiro de peixe!"
"Quirera é o milho moído que foi embebido antes em soda
952

cáustica", Roger disse a ela distraidamente. Por mais faminto que


estivesse, ele se deixou levar pelas casas, pintadas em tons de
azul, rosa e amarelo brilhantes como uma caixa de giz de cera
infantil. "Você coloca manteiga ou molho neles."
"Soda cáustica?455", todas as três crianças gritaram, horrorizadas.
Todas elas foram rotineiramente ameaçadas, desde a infância,
para não chegarem a menos de um metro do balde de soda
cáustica, que irritava os olhos. Ou pior.
"Você lava a soda cáustica antes de triturá-la e comê-la", Brianna
assegurou. "Você já comeu antes." Ela olhou para Mandy e
depois para Roger. "Devemos comer algo antes de..."
"Não", disse ele com firmeza, mal evitando uma explosão de
entusiasmo de suas tropas. Ele estava olhando para Germain, que
parecia prestes a vomitar a qualquer momento. "Precisamos ir
primeiro à gráfica."
Germain não disse nada, mas engoliu em seco visivelmente e
lambeu os lábios. Ele vinha fazendo isso nos últimos dias; seus
lábios estavam secos e rachados nos cantos.
Brianna tocou seu ombro suavemente.
"Je suis prest", disse ela, e a expressão de apreensão sumiu
brevemente de seu rosto.
"Você é uma menina, tia", disse ele, revirando os olhos. "Você
tem que dizer, Je suis preste."
"Você não pode me obrigar", disse ela, e riu.
"Aí está!" Jem disse de repente e parou, apontando. Ficava do
outro lado da rua: um pequeno prédio com tijolos pintados de azul
e as venezianas e a porta de um roxo vivo. Uma grande janela ao
lado da porta exibia uma série de livros e, acima dela, pendia uma
455
Grits, no original, é milho triturado, mas aparentemente passa por um processo de retirada do
pericarpo com o uso de algum produto alcalino. Não temos informação se esse é o mesmo processo usado
no Brasil.
953

placa bem escrita que dizia FERGUS FRASER E FILHOS,


IMPRESSÃO E LIVROS.
"Merde", Germain sussurrou.
"Filhos?" Jem perguntou, confuso.
"Germain e seus irmãos menores, suponho", Roger respondeu.
Ele falou com naturalidade, mas seu próprio coração de repente
se apertou e bateu mais rápido. Ele estendeu a mão para pegar a
mão de Germain. "Vamos, Germain, vamos entrar primeiro."

-.-.-

A DIREÇÃO DA brisa mudou e de repente o cheiro de tinta e


metal quente da porta aberta soprou sobre eles, uma nuvem
invisível quente os cercando. Germain deu uma grande arfada e
tossiu. Tossiu de novo e pigarreou, os olhos lacrimejando –
possivelmente não apenas pelo cheiro acre, Roger pensou. Ele
bateu levemente em Germain nas costas.
"Vai ficar tudo bem, então?", ele perguntou. Germain assentiu
com a cabeça, mas antes que ele pudesse dizer qualquer coisa,
passos vieram batendo nas pedras atrás de Roger e, com um grito
de "Germain!" Fergus lançou os braços em volta do filho e
agarrou-o com força contra o peito.
"Mon fils! Mon bébé!"
"Bébé?", Germain disse. Seu rosto estava se contraindo por meio
de emoções que iam do espanto à alegria e à fingida indignação,
tão rápido que Roger mal conseguia lê-las – mas não havia
dúvidas sobre o que o menino realmente sentia. Sua bochecha
estava pressionada com força contra o colete surrado de seu pai e
agora ele virou a cabeça, enterrou o rosto no coração de seu pai e
soluçou de alívio.
954

"Certamente, bébé", disse Fergus, baixinho, e Roger viu que as


lágrimas escorriam por seu próprio rosto. Ele segurou Germain
um pouco longe dele e disse: "Vejo que você é um homem agora,
mas quando eu olho para você – sempre, sempre – vejo você
como eu o vi pela primeira vez." Ele o soltou, gentilmente, e
pegou um lenço manchado de tinta em seu bolso. "Pequeno,
gordo e coberto de baba", acrescentou ele, limpando o nariz e
sorrindo para o filho.
Todos riram, incluindo – após um breve e atordoado momento –
Germain.
"O que está acontecendo... Germain!" Houve uma enxurrada de
saias e Marsali correu para fora da loja e engolfou seu filho
rebelde.
Roger ouviu um pequeno som de Brianna e, recuando, pegou a
mão dela e segurou-a com força.
"Mãe! O que é... Eeeeeee! Fizzy, Fizzy456, venha ver, é
Germain!" Joan, com o rosto pequeno e redondo em chamas de
excitação, correu de volta para a loja e voltou correndo um
instante depois, com sua irmã carregada pela mão, meio erguida
do chão.
Roger sentiu uma pequena mão puxando sua calça e olhou para
baixo.
"Quem são isso?", Mandy perguntou, agarrando-se à sua perna e
franzindo a testa desconfiada da cena da multidão risonha e
manchada de lágrimas que se desenrolava diante deles.
"Nossos primos", Jem disse tolerantemente. "Você sabe, apenas
mais família."

456
Fizzy, o apelido de Felicité, quer dizer borbulhante. Quando você descreve uma pessoa como
borbulhante, está se referindo a uma personalidade falante e alegre..
955

-.-.-

SANTUÁRIO, FOI O primeiro pensamento de Bree ao avistar a


gráfica, e o sentimento continuou a crescer à medida que a
comoção da chegada gradualmente se atenuou em pequenos
redemoinhos: a breve troca de notícias e a devolução como novas
conversas; água para os viajantes se lavarem; a agitação ordenada
de fazer o jantar; a atividade menos ordenada de comê-lo, com
metade das pessoas sentadas à mesa e as outras principalmente
embaixo dela, rindo sobre suas tigelas de arroz e feijão vermelho;
e então a lavagem e troca de roupas e arrumação de roupas para
as camas, à medida que o calor de muitos corpos ao nível de forja
foi sendo gradualmente dissipado por uma brisa fria e escura que
subia do rio e corria pela casa vinda da porta dos fundos aberta e
indo para a porta da frente aberta, prenúncio de uma noite
pacífica.
Com todas as crianças finalmente na cama, os adultos sentaram-
se na minúscula sala para brindar seu reencontro com uma garrafa
de um excelente vinho francês.
"Onde você conseguiu isso?", Roger perguntou, após o primeiro
gole. Ele ergueu o copo para admirar a cor, brilhando como um
rubi à luz do fogo. “Eu não bebo algo assim desde – desde – bem,
não tenho certeza se alguma vez bebi algo tão bom."
Marsali e Fergus trocaram um olhar conjugal.
"Provavelmente é melhor você não saber", disse ela a Roger,
rindo. "Mas há um pouquinho mais de onde isso veio – não se
contenha!"
"Certainement", concordou Fergus, e ergueu sua taça para Roger.
"Você trouxe para casa nosso filho pródigo. Se você quiser se
banhar nele, basta dizer."
956

"Não me tente." Roger deu um gole longo e lento e fechou os


olhos, o rosto cansado relaxando maravilhosamente.
Bree não havia bebido muito vinho desde a morte de Amy
Higgins; o cheiro de uvas a lembrava muito daquele dia entre os
scuppernongs, e a cor do vinho tinto era muito da cor do sangue,
fresco ao sol. Mesmo assim, este vinho parecia não tanto para ser
engolido, mas sim para dissolver-se através de suas membranas e
em seu próprio sangue doce, e ela sentiu seu corpo amolecer
gradualmente, voltando à sua forma natural conforme a tensão da
viagem a deixava.
Eles conseguiram.
Até agora, disse o cínico fundo de sua mente, mas ela ignorou
isso. No momento, todos estavam seguros – e juntos.
Germain não tinha ido para a cama com Jem e Mandy e suas
irmãs; ele estava aninhado ao lado da mãe no sofá,
profundamente adormecido com a cabeça no colo, e ela passava
a mão suavemente sobre a cabeça loira despenteada dele, com
uma expressão de tanta ternura no rosto que atingiu Bree no
coração.
Ela tocou o esterno levemente com o pensamento, mas tudo
estava em paz por dentro, um suave e regular TUM-tum, TUM-
tum que a acalmaria para dormir em instantes, se ela deixasse.
Um breve grito vindo do berço ao lado da cadeira de Fergus tirou
a ideia de sono de sua cabeça, e ela se sentou reta rapidamente,
uma onda maternal subindo direto da barriga aos seios com força
surpreendente.
"Se um acorda, o outro acorda também", disse Marsali,
suspirando e pegando os cadarços. "Segure meu vinho, sim,
Bree?"
Ela pegou o copo, aquecido pelo fogo e pela mão de Marsali, e
observou, meio com inveja, enquanto Fergus entregava um
957

pacotinho bem embrulhado para sua esposa, depois se curvava


para pegar o outro bebê do berço.
"Este está molhado", disse ele, segurando o menino longe de seu
corpo.
"Eu vou trocá-lo." Bree colocou o vinho na mesa e pegou a trouxa
de Fergus, que soltou o filho com entusiasmo e sentou-se
novamente com sua própria taça, parecendo feliz.
Havia trapos e panos limpos em uma prateleira, e uma pequena
lata de algum tipo de unguento que cheirava a lavanda, camomila
e aveia. Ela sorriu, reconhecendo uma versão do creme para
assaduras da mamãe.
"Quem eu tenho aqui?", ela perguntou, virando o cobertor para
revelar um rosto pequeno, redondo e sonolento e uma mecha de
cabelo castanho-claro no meio da cabeça.
"Charles-Claire", disse Fergus, e acenou com a cabeça para o
pacote de Marsali. "Aquele é Alexandre."
"Olá", ela disse suavemente, e o bebê estalou os lábios de uma
forma pensativa e começou a se mexer dentro de seu embrulho.
"Comment ça va457?"
"Uá-uá!"
"Oh, não tão bem, hein? Bem, vamos ver isso, então..."

-.-.-

APESAR DE CANSADOS como eles estavam, ninguém queria


ir para a cama. Brianna podia sentir o sono subindo suavemente
de seus pés cansados e canelas doloridas, sobre os joelhos como
uma colcha quente. Mas havia muito a ser dito, e depois de muito

457
Como você está? Em francês.
958

se atualizarem sobre o estado atual das coisas na Cordilheira,


além do bem-estar de todas as pessoas e animais de lá, eles
chegaram a uma explicação sobre sua presença em Charles
Town.
"Era principalmente por Germain", disse Roger, sorrindo para o
menino adormecido e depois para Marsali. "Depois que ele
recebeu sua carta, é claro que tivemos que vir. E, hum", ele
lançou um rápido olhar para Bree, "eu acho que Jamie disse que
enviou uma nota?"
Isso fez Marsali olhar severamente para Fergus, que fez um gesto
improvisado do tipo "Não é nada". Roger pigarreou e continuou.
"Mas Charles Town está no caminho, afinal."
"No caminho para onde?", Fergus relaxou e ficou quase
desossado, as pálpebras semicerradas contra a fumaça da fogueira
de madeira flutuante. Brianna pensou que nunca o tinha visto
assim antes – completamente em paz.
"Para Savannah", Roger respondeu, com um toque de orgulho
que aqueceu Brianna mais do que o fogo. "Bree recebeu uma
encomenda para pintar a esposa de um rico comerciante chamado
Brumby."
Uma das sobrancelhas de Fergus se contraiu.
"Parabéns, ma soeur458. Savannah... trata-se de Monsieur Alfred
Brumby?"
"Sim", ela disse, surpresa. "Você o conhece? Ou sabe qualquer
coisa sobre ele?"
"Eu vejo o nome dele pintado em numerosas caixas e barris no
cais, à medida que passam de Savannah para Filadélfia e Boston.
Ele é um importador de melaço das Índias Ocidentais. E muito
rico em consequência, asseguro-lhe. Cobre dele o que quiser pelo

458
Minha irmã, em francês.
959

retrato; ele não piscará."


Brianna rolou um gole de vinho dentro de sua boca, apreciando a
aspereza leve em sua língua.
"Devo presumir que importador é um nome educado para
contrabandista?"
"Bem, não mais do que a metade das vezes", disse Fergus, com
um leve encolher de ombros gaulês. "Ainda é legal importar
melaço para as colônias - mas, naturalmente, há uma taxa para
isso. E onde você tem impostos..."
"Vocês têm contrabandistas", Roger terminou, arrotando
levemente. "Perdoe-me. Então, você está dizendo que o sr.
Brumby está importando melaço e contrabandeando-o?"
"Mais oui"459, disse Marsali, rindo. "Ele paga seus impostos sobre
os barris marcados como melaço, e os barris marcados como
peixe salgado ou arroz passam despercebidos – e sem impostos.
Contanto que o inspetor não sinta o cheiro deles..."
"E como Monsieur Brumby é astuto o suficiente para pagar a ele,
ele não o faz", concluiu Fergus. Ele se abaixou e pescou algo
embaixo da mesa baixa, saindo com outra garrafa, esta sem
rótulo. "Por falar em cheiros", disse ele, semicerrando os olhos
para Roger, "não quero ofender fazendo comentários pessoais,
mas..."
"É chucrute", disse Brianna se desculpando. "Falando em
contrabando..." Ela pigarreou discretamente. Ela esteve nervosa
ao longo da jornada, com medo constante de os barris quebrarem,
vazarem, caírem no chão ou chamarem atenção indevida para si
mesmos, mas seu pai – sem surpresa – estava certo: ninguém
queria se aproximar deles. E agora, tendo chegado em segurança,
bem alimentada e meio bêbada, ela estava inclinada a sentir

459
“Mas sim”, em francês.
960

algum orgulho pelo sucesso deles.


Quando Roger mencionou a quantidade de ouro que Jamie havia
enviado, Fergus franziu os lábios em um assobio silencioso, e ele
e Marsali trocaram um olhar, matizado de advertência.
"Pa sabe que é perigoso", Bree se apressou a dizer. "Ele não
gostaria que vocês se colocassem em perigo. Mas se você..."
"Pfft", disse Fergus, e puxou a rolha. "Nestes tempos, há pouco
que se pode fazer que não seja perigoso. Se vou ser morto por
algo, gostaria que fosse algo que importasse. Se for divertido,
tanto melhor."
Bree, observando o rosto de Marsali enquanto ele fazia essa
declaração jocosa, pensou que Marsali poderia ter mais algumas
dúvidas particulares, mas ela concordou com a cabeça, o rosto
sóbrio.
"Eu vou ajudá-lo", Roger assegurou a Marsali, vendo suas
reservas. "Ninguém vai suspeitar que sou um traficante de armas.
Ou pelo menos eu espero que eles não..."
"Roger está prestes a ser totalmente ordenado", disse Bree, vendo
seus olhares perplexos, e sentiu seu afeto e orgulho habituais,
tingido de medo, quando surgiu a questão do chamado de Roger.
"Esse é o outro motivo de virmos a Charles Town. Ele tem que
se encontrar com um... hã... presbitério de ministros aqui, para
que eles possam examiná-lo e ter certeza de que ele ainda está
apto para ser um deles."
"E tenho certeza de que ser pego de posse de três dúzias de armas
roubadas da Marinha britânica irá tranquilizá-los quanto ao seu
caráter moral", disse Fergus, rindo alto.
"A Marinha britânica?", Bree disse, olhando para a coleção de
garrafas de vinho vazias sobre a mesa.
"Bem, eles são os únicos que provavelmente têm muitas armas
961

que não usam o tempo todo", disse Marsali, em conjunto com o


gaulês – ou deveria ser galício, Bree pensou, seus pensamentos
começando a se complicar – encolher de ombros de Fergus.
"E se não, vamos encontrar alguém que tenha." Fergus encheu
cerimoniosamente todos os copos, largou a garrafa e ergueu sua
própria bebida.
"Para a liberdade, mes chers. Chucrute e mosquetes!"

-.-.-

BRIANNA E AS CRIANÇAS dormiam como mortos,


esparramados no chão do loft como vítimas de alguma praga
repentina, caídos onde jaziam entre os barris de verniz e o negro-
de-fumo460 e as pilhas de livros e panfletos. Apesar do longo dia,
do reencontro emocionante e da impressionante quantidade de
vinho que havia bebido, Roger não tinha vontade de adormecer
imediatamente. Não era incapacidade; ele ainda podia sentir a
vibração da carroça e as rédeas em suas mãos, e uma espécie de
hipnose espreitava no fundo de sua mente, incitando-o a cair em
um redemoinho lento de arrozais e pássaros circulando, ruas de
paralelepípedos e folhas de árvores se movendo como fumaça ao
anoitecer. Mas ele se continha, querendo manter este momento o
máximo que pudesse.
Haviam chegado ao seu destino. Destino, ele começou a pensar
sobre isso. Pessoas normais, pessoas comuns, tinham um destino?
Parecia imodesto pensar que sim – mas ele era um ministro de
Deus; era exatamente nisso que ele acreditava: que toda alma
humana tinha um destino e o dever de encontrá-lo e cumpri-lo.

460
O negro-de-fumo é um dos produtos petroquímicos mais antigos, com registros de seu uso há mais de
5 mil anos, quando chineses e egípcios utilizavam o pó preto – ou fuligem – em tintas para murais e
impressão. Sua composição é basicamente carbono obtido a partir da decomposição térmica de óleos ricos
em hidrocarbonetos.
962

Exatamente neste momento, ele sentiu o peso da confiança


preciosa que possuía, e não queria nunca abandonar a grande
sensação de paz que o preenchia.
Mas a carne era fraca e, sem tomar qualquer decisão consciente
de fazê-lo, ele se dissolveu silenciosamente na noite, com a
respiração de sua esposa e seus filhos adormecidos ao seu lado, o
fogo apagado abaixo e os sons dos pântanos distantes.
963

68

METANOIA461

Tês dias depois…

A ENTREVISTA DE ROGER COM os reverendos Selverson,


Thomas e Ringquist, bispos do Presbitério de Charles Town,
estava marcada para as três horas da tarde. Tempo de sobra para
fazer algumas coisas e escovar seu bom casaco preto.
Por enquanto, porém, ele estava sentado no banco do lado de fora
da gráfica, aproveitando o sol da manhã e saboreando o café da
manhã. Brianna tinha feito rabanadas462 para acompanhar o
mingau normal e o presunto, e embora Fergus tivesse declarado
que nenhum francês jamais teria concebido tal prato, ele admitiu
que era delicioso, rico e com ovos, e coberto com um pouco do
mel que Claire tinha enviado de suas colmeias. De alguma forma
compensava a falta de chá ou café – por ser uma cidade ocupada
pelos americanos, Charles Town tinha muito pouco de ambos.
Por outro lado, havia leite fresco, obtido na base de troca de uma
leiteira que gostava dos impressos de baladas e das confissões
sinistras de criminosos prestes a ser enforcados.
Na noite anterior, Roger tinha lido várias dessas arengas que
Fergus reservava para seus clientes e ficara fascinado, levemente
repelido – e um tanto inquieto.

461
A palavra existe em português, vem do grego e significa "uma mudança transformadora do coração;
especialmente: uma conversão espiritual” “deixar de seguir ou acreditar em determinada coisa para
vivenciar um novo modo de enxergar a vida, por exemplo.”
462
Em inglês, a guloseima chama-se french toast (torrada francesa), por isso a indignação do muito
francês Fergus Claudel.
964

Todos vocês que vêm para ver meu fim fatal


Às minhas palavras finais eu rezo para atender
Que meu infortúnio agora seja um aviso
Para todos de alto ou baixo grau.
Uma pilha desses folhetos havia sido deixada na mesa do café da
manhã; ele teve um vislumbre de uma manchete enquanto
Germain as juntava e batia as páginas ordenadamente antes de
colocá-las em sua bolsa:

O JULGAMENTE E A EXECUÇÃO DE HENRY


HUGHES
Que morreu no dia 12 de junho, Anno Domini 1779
Na prisão do condado, Horsemonger Lane, Southwark
Por violar EMMA COOK, uma menina de apenas 8 anos

Sem estranhar os excessos da imprensa diária – as coisas que


Fergus imprimia na verdade não eram tão diferentes em caráter
ou intenção dos tabloides de seu próprio tempo – ele foi atingido
por um fator peculiar desta época: o fato de que os homens
condenados (e algumas mulheres, por vezes) estavam sempre
acompanhados por um clérigo em sua jornada em direção à forca.
Não apenas uma visita privada de pré-execução para dar orações
e conforto, mas sim escalando o Calvário ao lado dos
condenados.
O que eu diria a ele, ele se perguntou, se fosse chamado para
acompanhar um homem até sua execução? Ele tinha visto
homens mortos, visto pessoas morrerem, certamente; com muita
frequência. Mas essas foram mortes naturais – às vezes súbitas e
965

catastróficas. Certamente era diferente, um homem são, de corpo


sadio, cheio de vida, e diante da perspectiva iminente de ser
privado dessa vida por decreto do Estado. Pior, ter a morte
apresentada como um espetáculo público moralmente elevado.
Roger percebeu de repente que ele próprio havia sido executado
publicamente, e o leite e a rabanada pesaram com a memória
repentina.
Sim, bem ... Jesus também, não foi? Ele não sabia de onde esse
pensamento tinha vindo – parecia algo que Jamie diria, lógico e
razoável – mas o inundou imediatamente com um sentimento
inesperado.
Uma coisa era conhecer a Cristo como Deus e Salvador e todas
as outras letras maiúsculas que vinham com isso. Outra era
perceber com chocante clareza que, exceto pelos pregos, ele sabia
exatamente como Jesus de Nazaré se sentiu. Sozinho. Traído,
apavorado, arrancado daqueles que amava e desejando com cada
átomo de seu ser permanecer vivo.
Bem, agora você sabe o que diria a um homem condenado a
caminho da forca, não é?
Ele estava sentado ali sob o sol quente, tentando digerir tudo,
desde rabanadas até as revelações da memória, quando a porta da
gráfica se abriu ao lado dele.
"Comment ça va?" Fergus emergiu com Germain e Jemmy a
reboque e ergueu uma sobrancelha para Roger, que rapidamente
removeu a mão ainda fechada sobre seu estômago.
"Tudo bem", disse ele, levantando-se. "Para onde você vai esta
manhã?"
"Germain está levando os jornais e folhetos para as tavernas",
Fergus disse, dando tapinhas nas costas do filho e sorrindo para
ele. "E, se você concordar, Jem irá com ele. Uma grande
966

assistência, e uma da qual senti muita falta, mon fils", disse ele ao
filho. Germain corou, mas parecia satisfeito, e se endireitou com
o peso do saco de lona em seu ombro, cheio de cópias de
L'Oignon e feixes de folhetos e panfletos anunciando de tudo,
desde o desejo de um capitão de navio para marinheiros de se
juntarem a uma Rentável e Feliz Viagem ao México, até uma lista
dos Numerosos Benefícios do Famoso Elixir do dr. Hobart,
Garantido para Fornecer Alívio de uma longa lista de
reclamações, começando com Constipação e Inchaço dos
Tornozelos. Roger percebeu Inflamação, mas a lista de partes
inflamadas desapareceu nos recessos da bolsa de Germain,
deixando Roger imaginar a extensão dos poderes do dr. Hobart.
"Posso ir, pai?" Jem tinha uma bolsa menor no ombro e estava
rosa de empolgação, embora se esforçasse muito para ser adulto
e digno para o trabalho.
"Sim, claro." Roger sorriu para o filho e engoliu todas as palavras
de advertência e bons conselhos que lhe chegaram aos lábios.
"Bonne chance, mes braves463", Fergus desejou aos meninos
seriamente, e Roger ficou ombro a ombro com ele, observando-
os afastar-se com passos firmes, cada um com um braço envolto
protetoramente em torno de sua bolsa pesada para evitar que
balançasse. Jem, apesar de ser mais alto do que o primo, ainda
era um menino – mas Germain parecia ter dado um daqueles
saltos misteriosos pelos quais as crianças de alguma forma
mudam dentro do período de uma noite e se levantam como uma
versão diferente de si mesmas. O Germain desta manhã não
estava crescido, mas você podia ver o jovem nascente começando
a emergir através de sua pele clara e macia.
Fergus suspirou profundamente, os olhos fixos em seu filho
enquanto Germain desaparecia na esquina.

463
Boa sorte, meus corajosos. Em francês.
967

"É bom tê-lo de volta?", Roger perguntou.


"Mais do que você pode imaginar", Fergus disse calmamente.
"Obrigado por trazê-lo para nós."
Roger sorriu, encolhendo um pouco os ombros. Fergus sorriu de
volta, mas então seu olhar pareceu se alongar, olhando por cima
do ombro de Roger.
Roger se virou para olhar, mas a estrada estava vazia.
"Quando você deve encontrar seus inquisidores, mon frère?464",
ele perguntou.
A palavra inquisidores deu a Roger uma pequena sensação de
ansiedade, mas ele não achava que Fergus a tivesse usado em algo
além do que seu sentido mais literal.
"Três horas", respondeu ele. "Há algo que você gostaria que eu
fizesse nesse meio tempo?"
Fergus o examinou com atenção, mas acenou com a cabeça,
evidentemente achando sua aparência em mangas de camisa,
colete surrado e calça um pouco gasta, aceitável para qualquer
atividade que tivesse em mente.
"Venha", disse Fergus, com um movimento de cabeça em direção
à água distante. "Eu posso possivelmente ter encontrado as armas
de milord. Traga uma pequena quantidade de ouro."
Ele e Fergus tinham – com muito cuidado e uma pequena ajuda
de Jem e Germain – despejado o chucrute em uma variedade de
potes, tigelas e jarros para recuperar o ouro - "Bem, não queremos
desperdiçá-lo, queremos?"- Marsali tinha dito, razoavelmente. E
então escondido o ouro em vários lugares da casa. Ele entrou na
cozinha e tirou uma tira de ouro debaixo de um grande e
fedorento queijo guardado em cima do armário, hesitou por um
momento, então pegou mais duas, só para garantir.

464
Meu irmão. Em francês.
968

-.-.-

Um grande navio dinamarquês, que fazia a rotas das Índias


Ocidentais, embarcava sua carga ao pé da Tradd Street quando
eles passaram. Caixas de peixes salgados, enormes barris de
tabaco, fardos de algodão cru, um estranho baú, um carrinho de
mão, engradados de galinhas espalhando penas pelo caminho,
tudo subia pelo estreito passadiço nas costas de homens seminus
suados, para desaparecer na boca negra de uma escotilha com a
ganância esporádica de uma jibóia engolindo ratos.
A visão fez Roger de repente querer escapar e se esconder no
armazém atrás deles. Ele se lembrava muito bem de como era
fazer isso – repetidamente, continuamente, as mãos com bolhas a
ponto de sangrar, a pele esfolada de seus ombros, músculos
queimando e o cheiro de peixe morto e tabaco forte o suficiente
para fazer sua cabeça rodar sob o sol quente. E ele se lembrava
dos olhos sarcasticos de Stephen Bonnet, observando-o fazer
isso.
"Carregue aquela barcaça, levante aquele fardo – fique um
pouco bêbado e você vai parar na prisão465", Roger citou para
Fergus, tentando amenizar a memória. Fergus semicerrou os
olhos para a procissão cambaleante e agitada e encolheu os
ombros.
"Só se você for pego."
"Você já foi pego?"
Fergus olhou casualmente para o gancho que usava no lugar da

465
Versos da canção Ol' Man River (música de Jerome Kern, letra de Oscar Hammerstein II), do musical
Show Boat de 1927, que contrasta as lutas e dificuldades dos afro-americanos com o fluxo infinito e
indiferente do rio Mississippi. É cantada do ponto de vista de um estivador negro em um showboat –
teatro flutuante que percorria os rios dos Estados Unidos, especialmente o Mississippi e o Ohio, para levar
cultura e entretenimento aos habitantes das fronteiras fluviais.
969

mão esquerda que faltava.


"Não por roubar fardos, non."
"E quanto a armas?"
"Não por roubar nada", Fergus respondeu com altivez. "Venha,
queremos ir até o desembarcadouro Prioleau; é onde ele está
ancorado."
"Ele?", Roger perguntou, mas Fergus já estava na metade da rua
estreita e ele foi obrigado a andar rápido para alcançá-lo.
O Prioleau era um cais longo e estreito e muito movimentado,
principalmente com pequenos barcos ancorando para descarregar
peixes – o mercado de peixes da cidade ficava próximo, e eles
foram obrigados a se desviar de pequenas carroças e carrinhos de
mão empilhados com corpos prateados reluzentes – alguns dos
quais ainda se agitando em uma última negação desesperada da
morte. O ar estava denso e úmido, o cheiro de peixe fresco e
sangue era visceral e excitante, e as memórias de Roger dos
porões úmidos do Gloriana e do Constance desapareceram.
Fergus caminhava de maneira casual e Roger fez o mesmo,
olhando em volta – embora não tivesse ideia de quem ou o que
eles estavam procurando.
"Bonjour, mon ami!", Fergus saudava amigos e conhecidos ao
longo de todo o cais – ele parecia conhecer todo mundo, e muitos
dos homens que cumprimentava acenavam ou respondiam,
embora poucos parassem de trabalhar. Ele ia falando em inglês,
francês – embora um francês de um patoá que Roger mal entendia
– e algo que poderia ser alguma língua crioula, que ele entendia
ainda menos. Ele percebeu, porém, que eles estavam em busca de
um homem chamado Faucette.
Negações de cabeça se sucederam às perguntas de Fergus, na
maior parte, mas um homem negro atarracado, quase tão largo
970

quanto alto, fez uma pausa no ato de estripar um peixe – ainda


vivo e batendo as barbatanas – e respondeu afirmativamente, a
julgar pelos seus gestos, que terminavam em apontar para o mar
com sua faca ensanguentada.
"Ali está ele." Fergus acenou em agradecimento ao pescador e,
pegando no cotovelo de Roger, conduziu-o ainda mais fundo no
cais.
O "ele" em questão era um barco pequeno, de aparência ágil, com
uma única vela, que acabara de aparecer do outro lado da Ilha
Marsh.
Era um barco de pesca trazendo sua captura – um único peixe,
mas um peixe que fazia com que todos nas proximidades
largassem o que estavam fazendo e corressem para vê-lo assim
que o barco baixou a vela e deslizou ao lado do cais.
Era um tubarão enorme – bem morto, graças a Deus – e mais
comprido do que o barco; o grande corpo cinza dobrado no meio,
cabeça e cauda projetando-se sobre a proa e a popa, a terrível
cabeça – pois era um tubarão-martelo – arregalando os olhos
como uma horrível figura de proa. O barco navegava tão baixo
na água que as ondas do cais batiam nas laterais de vez em
quando. A tripulação – eram apenas dois homens, um negro e um
mestiço – foi cercada, tanto por curiosos quanto por peixeiros
empenhados em obter o prêmio.
"Bem, isso vai demorar um pouco", comentou Fergus,
descontente com o rebuliço. "Por outro lado, talvez torne
Monsieur Faucette comunicativo – se ele não estiver bêbado
demais para falar quando eu conseguir encontrar com ele
sozinho." Ele exalou audivelmente pelo nariz, pensando, então
olhou para o sol e balançou a cabeça.
"Vai demorar horas. Você vai ter que ir, se quiser ter tempo de
971

trocar de roupa antes de encontrar os pres-bíteros.466"


"Os... ah, sim", Roger disse, escondendo um sorriso. Afinal, de
que mais você chamaria os membros de um presbitério? "Bem,
então..." Ele alcançou o bolso do colete e tirou um lenço dobrado,
escondendo as tiras de ouro dentro dele.
"Gesundheit. Er ... quero dizer, À vos souhaits. "
"À tes amours467", Fergus respondeu educadamente,
delicadamente enxugou o nariz e enfiou o lenço no bolso. "Bonne
chance, mon frère."

466
Uma brincadeira e jogo de palavras em inglês intraduzível. No original press-biters – que poderia ser
traduzido como vigaristas da imprensa, quando Fergus, obviamente, queria se referia aos presbiterians...
467
Duas bençãos para quem espirra. A primeira em alemão, que significa Saúde! A segunda em francês,
mais poética, tanto para quem fala: Aos seus sonhos, quanto para quem responde: Aos seus amores. Uma
maneira pitoresca de enganar qualquer curioso que observasse a entrega do lenço com ouro.
972

69

MAIS DIVERTIDO QUE LAVAR


ROUPA

BRIANNA PUXOU A ALAVANCA – Pa estava certo, era


preciso um pouco de força – e assistiu o papel assentar nos tipos
lambuzados com tinta. Ela percebeu que estava prendendo a
respiração e soltou deliberadamente ao empurrar a barra para trás.
Marsali levantou a moldura e sorriu para a página com suas letras
pretas nítidas.
"Aí está você", disse ela, com um aceno de cabeça para Brianna.
"Nem uma mancha. Você tem talento natural."
"Oh, aposto que você diz isso para todos os diabos da
impressora468." Apesar disso, Brianna sentiu um leve brilho de
realização. "Isto é divertido."
"Bem, é sim", concordou Marsali, retirando o papel e levando-o
com cuidado para as cordas que cruzavam a sala, onde as novas
folhas impressas eram penduradas para secar. "As primeiras cem
vezes mais ou menos. Depois disso..." Ela já estava colocando
uma nova folha de papel no lugar. "... é ainda mais divertido que
lavar roupa, se é que posso dizer."
"E você com um filho quase adulto e um marido que é ex-batedor
de carteira. Eu vi alguma diversão na lavagem de roupas,
revirando os bolsos dos homens... Jem tinha um rato morto no
seu, anteontem. Ele disse que estava morto quando o pegou –
acrescentou ela sombriamente, puxando a barra novamente.
"Falando em lavanderia – você sabe onde Roger e Fergus foram?
468
Diabos de impressora é a forma como são chamados os aprendizes nessa arte.
973

Acabei de escovar e passar uma esponja no casaco preto de Roger


para que ele possa usá-lo esta tarde, para falar com os bispos
presbiterianos, mas ele precisa voltar a tempo de se trocar."
Marsali negou com a cabeça.
"Eu ouvi Fergus dizer algo sobre armas do milord para Roger
Mac, mas nada sobre onde ele pretendia encontrá-las."
O coração de Bree deu um pulo ao ouvir a palavra "armas".
"Espero que Fergus não conduza Roger a maus hábitos que o
levem a ser excomungado antes mesmo de ele ser ordenado",
disse ela levemente, esperando que soasse como se estivesse
brincando.
"Dinna fash", Marsali disse confortavelmente esticando-se para
pendurar outra folha recém-impressa. "Os ministros protestantes
não vestem hábitos469, para começar." As duas riram, e a folha
limpa, apanhada por uma brisa vinda da porta, de repente oscilou,
se soltou e dobrou sobre si mesma, no momento em que Bree
puxava a alavanca.
"Ah, que droga!", ela disse.
Marsali se inclinou e puxou o papel úmido amassado de sua
moldura com dois dedos.
"Mais um para acender o fogo", ela comentou, jogando-o em uma
grande cesta, meio cheia de folhas estragadas. "Alguma vez
pareceu estranho para você ser casada com um pastor?"
"Bem, sim. Quer dizer, eu meio que não esperava por isso. Não
que eu me importe", ela acrescentou apressadamente. "Quero
dizer, não é como se ele fosse ser um... um..."
"Ladrão?", Marsali sugeriu, e seu sorriso se alargou. "Eu sabia o

469
“Protestant ministers dinna wear frocks to start with” é a frase original. Na frase anterior, foi usada
a palavra ”defrocked” que significa excomungar, ou seja, privar Roger de seus direitos eclesiásticos.
Wear frocks, na resposta de Marsali, significa vestir túnica, hábito de religiosos. Na tradução, esse jogo
de palavras (defrocked, frocks) acaba se perdendo.
974

que Fergus era desde o início – ele me disse – e não me importei


nem um pouco. Eu o teria agarrado mesmo se ele tivesse dito que
era um salteador de estrada e assassinado pessoas por causa de
suas moedas."
Brianna pensou que sua mãe havia mencionado que Fergus fora
um salteador de estrada em certo momento, mas parecia mais
diplomático não dizer isso. Afinal, ele não estava fazendo isso
agora – pelo que ela sabia.
"Entenda", disse Marsali, puxando uma nova folha de papel da
pilha e colocando-a na impressora, "eu não tinha mais que quinze
anos na época e, além disso, ele estava ajudando Pa, e eu não me
importava que ele fosse o que quer que fosse. Ken, agora que sei
o que os dois estavam fazendo em Edimburgo, não tenho certeza
de que não seria mais seguro para ele continuar contrabandeando
bebidas alcoólicas, em vez de seguir com a impressão. Embora
eu suponha que qualquer uma dessas atividades pode levar um
homem à forca, atualmente."
A prensa era uma coisa sólida, mas o baque firme quando ela
puxava a alavanca enviava uma vibração através do metal e da
madeira e direto para sua espinha dorsal.
"Chamamos isso de cauda do diabo, você sabia disso?", Marsali
disse, acenando para a alavanca. Um pio vindo do grande berço
dos gêmeos perto da lareira fez as duas mulheres olharem para
ele, suspendendo seus movimentos por um instante, mas nenhum
ruído adicional veio, e elas retomaram o ritmo de seu trabalho.
Marsali sorriu quando Félicité correu pelo quintal, com os
cordões do avental voando e rindo, perseguida de perto por uma
Joanie de rosto vermelho, gritando coisas em uma mistura de
francês e gaélico, e Mandy, gritando alegremente enquanto
fechava a retaguarda. Elas desapareceram pela porta da frente
para a rua, e Marsali balançou a cabeça de um lado para o outro.
975

"Não faça perguntas para as quais não queira ouvir a resposta",


disse ela em resposta à pergunta silenciosa no olhar de Brianna.
"Ninguém está sangrando e eu não acho que a casa está pegando
fogo. Ainda."
"Meu pai me disse que as almofadas de tinta são feitas de pele de
cachorro", disse Brianna, mudando de assunto gentilmente. "Isso
é verdade?"
"É, sim. Sabia que os cachorros não suam?"
"Sim. Cães sortudos." Ela estava suando muito, assim como
Marsali. Mesmo sendo setembro, o ar estava espesso como um
cobertor encharcado, e sua roupa grudava nela como cola.
"Bem, então. Você tem pequeninos poros na pele, de onde sai o
suor, e como os cães não tem, eles não suam; então a pele é mais
fina e lisa – por isso é melhor para colocar a tinta."
Brianna virou uma das grandes almofadas de polimento
manchadas de tinta para olhar, embora nunca tendo visto um
implemento feito de pele humana, ela não tinha certeza se seria
capaz de notar a diferença. O pensamento fez uma onda de
arrepios explodir em seus antebraços, no entanto.
"É importante?", Marsali perguntou, consertando a página no
lugar. "Essa reunião que Roger vai? Quero dizer, ele tem
ministrado ao povo há algum tempo, na Cordilheira, certamente
eles não o fariam parar."
"Bem, espero que não", Brianna disse em dúvida. "Da última vez,
eles fizeram dele um Ministro da Palavra – significa que ele
poderia batizar bebês e enterrar pessoas, e ele certamente fez isso.
Ele estava pronto para ser ordenado, mas então... coisas
aconteceram. Tecnicamente, ele provavelmente não deveria ter
casado pessoas, mas ele casou. Quero dizer, não havia ninguém
mais para fazer isso, e se ele não fizesse, elas – as pessoas que
queriam se casar – estariam... hã... vivendo em pecado. Então ele
976

fez isso", ela acrescentou.


"Mas eles meio que o tinham certificado da última vez; ele se
qualificou para ser um Ministro da Palavra e do Sacramento. É só
que ele sentia falta de ser propriamente ordenado porque Stephen
Bonnet me sequestrou. E ele, hum..." Ela sentiu uma sensação
desagradável crescendo sob sua pele, algo quente e frio juntos.
Roger havia contado a ela – uma vez – sobre o homem que ele
matou, mas nunca mais mencionou isso. Nem ela470.
"Eu me lembro", disse Marsali, com simpatia. "Mas não vejo
como ajudar a pegar um vilão como aquele tornaria Roger Mac
inadequado para ser um ministro."
"Bem, tenho certeza de que eles também verão dessa maneira." É
melhor mesmo, ela pensou ferozmente. Ela tinha um medo oculto
de que uma esposa católica pudesse ser um obstáculo maior para
a ordenação de Roger do que o caso de Stephen Bonnet havia
sido. Por outro lado, Roger contara ao primeiro presbitério sobre
ela e, embora tivessem hesitado bastante, finalmente decidiram
que ser casado com uma católica não era tão ruim quanto ter uma
esposa reconhecidamente assassina ou uma prostituta ativa. Ela
sorriu um pouco com o pensamento.
Sua eventual aceitação foi conseguida pela persuasão de Davy
Campbell, que tinha um certo carinho por ela e Roger, tendo sido
ele a realizar o casamento deles e depois ensinado Roger em sua
famosa "Log College471", para preencher as lacunas em sua
educação clássica. Mas Davy estava lá em sua faculdade na
Carolina do Norte e, portanto, era de pouca utilidade na situação
atual, além da carta de apoio que ele havia enviado.
Para ser honesta, porém, estava menos preocupada com os bispos

470
Fatos que ocorreram no livro 6.
471
Em 1767, David Caldwell estabeleceu o que ficou conhecido como Dr. Caldwell's Log College, no que
se tornaria o condado de Guilford. Este colégio era uma escola teológica e clássica para jovens.
Atualmente, o local onde funcionou esse centro de estudos está listado no Registro Nacional de Locais
Históricos, dos Estados Unidos. Localiza-se próximo a Greensboro, na Carolina do Norte.
977

do que com sua própria capacidade de ser uma boa esposa para
um ministro. Até agora, estava quase tudo bem; ela poderia
manter Roger alimentado, vestido e com um teto sobre sua
cabeça, mas além disso... que tipo de ajuda ela poderia dar a ele?
"Você pode parar agora, a nighean."
"O quê?" Absorvida em seus pensamentos, ela trabalhava na
prensa como um autômato. Olhando para cima, ela viu as linhas
grossas com páginas novas penduradas, e Marsali sorrindo
enquanto estendia a mão sobre a prensa para puxar a bandeja de
tipos.
"Terminamos com a primeira página. Por que você não vai e vê
se os weans se mataram, enquanto eu preparo a próxima? E me
traga um pouco de cerveja enquanto faz nisso, aye?"
978

70

UMA ESPADA EM MINHA MÃO

ROGER VOLTOU À GRÁFICA PARA encontrar sua esposa e


Marsali cobertas de tinta e enredadas em uma teia de aranha de
páginas secas penduradas nas cordas entrecruzadas estendidas ao
longo da parte de trás da loja. Brianna fez menção de tirar o
avental escuro para vir ajudá-lo a se vestir, mas ele acenou de
volta e subiu a escada para o loft, onde encontrou seu casaco –
um tanto gasto nas bordas e com a ponta do bolso cerzida, mas
definitivamente preto – e um lenço de pescoço branco, limpo,
engomado e novinho em folha pendurado em um gancho.
Ele se vestiu devagar e com cuidado, ouvindo as conversas e
risadas das mulheres lá embaixo, e o eco agudo das três meninas,
que estavam brincando na cozinha enquanto ficavam de olho em
seus irmãos menores. Isso lhe deu uma sensação de calor e
ternura, e um desejo repentino de uma casa própria. Quando
voltarmos para a Cordilheira, ele pensou, talvez...
Convinha a todos morar juntos na Casa Nova após seu retorno, e
era muito mais fácil cuidar das crianças quando havia crianças
mais velhas e outros adultos por perto para ajudar – mas talvez
depois que ele fosse ordenado... E com o pensamento, ele
supersticiosamente cruzou os dedos, então riu para si mesmo.
Mas pode ser melhor. Uma grande parte do que ele estaria
fazendo seria conversar com as pessoas, e embora ele ainda
pretendesse fazer visitas de casa em casa na Cordilheira, ele
deveria ter um lugar, talvez, com um quartinho para estudos, onde
ele pudesse falar com as pessoas em particular e onde ele poderia
manter registros de nascimentos, casamentos e mortes...
979

Pensar no futuro distante diminuiu sua apreensão em relação ao


futuro mais imediato, e ele desceu a escada rapidamente, no
momento em que o sino de uma igreja próxima bateu duas vezes.
"Você está adiantado", observou Brianna, parando para limpar o
suor da testa. "Mas você está ótimo!"
"Sim, você está", Marsali entrou na conversa. "Bem como um
ministro, só que mais bonito. Todos os ministros presbiterianos
que eu conheço são velhos e crepitantes e cheiram a cânfora."
"Eles cheiram?", Roger perguntou, divertido. "Quantos você
conhece?"
"Bem, um", ela admitiu. "E ele tem noventa e sete anos. Mas
ainda assim..."
"Não chegue muito perto. Você não tem outra camisa limpa."
Mas Brianna ainda assim estava perto, e com as mãos cruzadas,
por segurança, atrás das costas, inclinou-se para beijá-lo.
"Boa sorte", disse ela, e sorriu olhando em seus olhos. "Vai tudo
ficar bem."
"Sim. Obrigado", ele disse, sendo sincero, e sorriu de volta. "Eu...
acho que vou sentar do lado de fora um pouco. Reunir meus
pensamentos."
"Isso é bom", disse Marsali com aprovação. "Se você fosse
caminhar por cerca de uma hora, estaria totalmente molhado
quando chegasse lá."

-.-

ELE ESTAVA SENTADO em um dos dois bancos do lado de


fora – aquele sob a sombra irregular de um palmetto472 – por um
quarto de hora, tentando muito não pensar demais, quando Jem
472
É uma pequena palmeira nativa da América do Norte.
980

veio vagando pela rua, cutucando preguiçosamente com uma vara


na mão.
Quando ele viu seu pai, no entanto, ele largou a pedaço de pau e
veio se sentar ao lado dele, balançando os pés. Eles ficaram
sentados juntos por um tempo, apenas ouvindo o zumbido das
cigarras e os gritos dos peixeiros de um cais distante.
"Pai", Jem disse, acanhado.
"Sim?"
"Você vai ser diferente? Depois de ser ordenado?" Jem ergueu os
olhos para isso, a preocupação apertando os cantos de sua boca
larga e macia. Deus, ele se parece com Bree.
"Não, companheiro", disse Roger. "Eu sempre serei seu pai, não
importa o que aconteça. E eu ainda serei apenas eu ", acrescentou
ele, como uma reflexão tardia.
"Oh. Bem, eu não pensei que você fosse parar, exatamente..." Um
sorriso tocou o rosto de Jem como um raio de sol perdido. "É
apenas... o que é diferente? Porque se nada é diferente - por que
você quer fazer isso? Por que isso é importante?"
"Ah." Roger recostou-se um pouco, as mãos nos joelhos. A
verdade é que ele esperava ser diferente de uma forma
indefinível, embora ele também soubesse com certeza que ele
seria o mesmo.
"Bem", disse ele lentamente, "parte disso é que é formal. Você
conheceu Mairi e Archie MacLean, na volta para casa, na
Cordilheira, aye? "
"Sim." Jem estava olhando para ele em dúvida, se perguntando se
isso faria sentido. Roger também se perguntou isso, mas era uma
pergunta legítima – e que ele achava que poderia precisar de uma
resposta mais de uma vez.
"Bem, veja, nós tivemos o casamento deles na Páscoa, mas eles
981

vieram com seu filho pequenino, que nasceu no outono do ano


passado. Então, eles viviam como marido e mulher há mais de
um ano, embora não fossem casados. "
"Eles não eram casados pelo handfast473?" A sobrancelha de Jem
enrugou, tentando se lembrar.
"Sim, eles eram. Esse é o meu ponto de vista. Eles fizeram um
contrato um com o outro quando ataram as mãos. Você entende
os contratos?"
"Oh, sim. Vovô me mostrou a escritura de terra que o antigo
governador deu a ele para a Cordilheira, e ele explicou por que
era um contrato. Duas... hã... partes? Acho que foi isso que ele
disse. As partes prometem algo uma à outra e assinam seus
nomes."
"Sim." Roger sorriu e ficou feliz em receber um sorriso de volta.
"Então. Mairi e Archie tinham aquele contrato, embora não
estivesse escrito, e o que dizia – você viu alguma vez um
handfast? Não? Bem, quando duas pessoas estão juntas por
handfast, elas prometem viver juntas como marido e mulher por
um ano e um dia, e... fazer as coisas que um homem e uma mulher
fazem, na maneira de cuidar um do outro. E isso é um contrato
entre eles. Mas... quando o ano e o dia acabarem, eles podem
decidir se querem continuar a viver como marido e mulher ou se
não podem viver um com o outro e querem seguir caminhos
separados. Então, se eles quiserem ficar um com o outro... eles
ficam, mas se houver um ministro disponível para casá-los, eles
fazem isso, e é o mesmo tipo de contrato, mas mais... detalhado...
e é permanente. Eles prometem continuar casados."
"Oh, é isso que isso significa, até que a morte os separe?"
"Exatamente."

473
O modo que Roger e Brianna se casaram no livro 4.
982

Jem ficou em silêncio por um momento, pensando nisso. Ao


longe, o sino de uma igreja tocou duas vezes e depois silenciou:
o sino de meia hora.
"Então você fez handfast com os presbiterianos e agora vai se
casar com eles?", Jem perguntou, franzindo um pouco a testa.
"Mamãe não vai se importar?"
"Não, ela não vai", Roger assegurou, esperando que fosse
verdade. Outro exemplo ocorreu a ele.
"Você viu seu avô cavalgando com seus homens de vez em
quando, aye?"
"Oh, sim!" Os olhos de Jem brilharam com a lembrança. "Ele diz
que eu posso ir com eles quando eu tiver treze anos!"
Roger engoliu seu automático o inferno que você vai e pigarreou
em vez disso. Jamie Fraser partiu em sua primeira incursão de
gado aos oito anos; em sua visão da vida, desde que os pés do
menino alcançassem os estribos, por que um garoto de treze anos
não seria capaz de manter a ordem pública, socializar-se com os
índios e enfrentar as milícias legalistas?
Ele tem que aprender algum dia, ele podia ouvir Jamie dizendo,
com aquele tom suave que desmentia a convicção teimosa por
trás das palavras. Melhor cedo do que tarde demais.
"Mmphm. Bem. Você viu quando eles cavalgam, seu avô levanta
sua espada ou seu rifle como o sinal para começar? "
Jem acenou com a cabeça com entusiasmo e Roger foi obrigado
a admitir que ver Jamie fazendo isso enviou um pequeno arrepio
em sua própria espinha.
"Bem, veja, esse é o sinal de que os homens devem segui-lo e ir
aonde ele os levar. Se eles chegarem a um lugar onde precisam ir
em uma determinada direção, rapidamente, ele puxará sua espada
e apontará no caminho que eles devem seguir, para que todos
983

possam seguir ao mesmo tempo e não se perder.


"Ele ainda é quem ele é – seu avô, e o pai de sua mãe, e um bom
homem – mas ele também tem que ser um líder, e quando ele faz
isso, ele usa seu colete de couro e ele tem sua espada em sua mão,
assim todos sabem que ele é o líder. Ele não tem que parar e
explicar a ninguém."
Jem acenou com a cabeça novamente, ouvindo atentamente.
"Então, para mim é mais ou menos assim ser ordenado. As
pessoas saberão que sou... uma espécie de líder. Ser ordenado é...
minha espada, de certa forma." E com sorte, eles podem prestar
atenção ao que eu digo a eles, de vez em quando...
"Ohh...", Jem disse, compreendendo o que estava acontecendo.
"Eu entendo."
"Bom." Ele queria dar um tapinha na cabeça de Jem, mas em vez
disso pegou sua mão brevemente e apertou-a, então se levantou.
"Eu preciso ir agora, mas estarei de volta na hora do jantar."
O cheiro de gumbo474 cheio de camarão, ostras e linguiça estava
vazando da gráfica, estranhamente misturado com os cheiros de
tinta e metal, mas o suficiente para agitar o suco gástrico mesmo
assim.
"Pai?", Jem disse, e Roger se virou para olhar por cima do ombro.
"Sim?"
"Eu acho que eles deveriam dar a você uma espada de verdade.
Você pode precisar de uma."

474
Gumbo é um prato típico da Louisiana (culinária cajun), por influência dos negros escravizados, que
introduziram o quiabo (o nome do prato, dizem, deriva da palavra em bantu "(ki)ngombo"), especiarias
e muita pimenta nesse ensopado que leva camarão, frutos do mar, linguiças. Tendo em vista a grande
quantidade de escravos na região, é possível que esse prato também fosse conhecido nessa área..
984

71

CABEÇAS ROLANTES

ELAS CONCLUÍRAM AS IMPRESSÕES mais urgentes e


alimentaram todo mundo com o almoço – Germain e Jem
voltaram de suas rondas com dois pães amanhecidos da padaria e
uma tigela de fricassê de camarão da estalagem da sra. Wharton.
"A sra. Wharton diz que quer a tigela de volta, mãe", disse
Germain, consciente de sua dignidade e responsabilidades como
portador da palavra impressa.
"Estou pensando que teremos melão esta noite – eles estão na
época – e se eles estiverem bons, eu comprarei um extra para você
levar de volta para ela com a tigela", Marsali assegurou a ele.
"Agora – aqueles pequeninos lá acabaram de ser alimentados;
eles vão dormir por uma ou duas horas. Você e Jem cuidam de
Mandy enquanto fazemos compras, e eu farei bridies475 para o
seu jantar. "
Mandy ficou zangada por não ter permissão de ir ao mercado com
as Garotas Grandes, mas ficou substancialmente apaziguada ao
receber seu próprio bloco de composição e um saco de letras para
soletrar palavras, junto com a garantia de que tia Marsali
imprimiria o que quer que fosse ela fizesse em uma folha de papel
que ela poderia guardar.

475
Um tipo de pastelão de carne (tradicionalmente de cordeiro), que lembra, no formato, as empanadas
típicas do Chile ou da Argentina. Também pode ser apresentada como uma torta fechada recheada única,
para ser repartida, mas é mais comum como peças individuais. Originária de Forfar, na Escócia, o nome
pode ter duas origens: devido a uma vendedora de alimentos, Margaret Bridie, que as vendia em meados
do século XIX (o que impossibilitaria que Marsali conhecesse o nome) ou por ser um tipo de alimento
geralmente feito nas comemorações de casamento (bride – noiva).
985

"E se qualquer um de vocês tentar fazê-la soletrar palavrões, direi


a seus pais e vocês não se sentarão por uma semana", disse
Brianna a Jem e Germain. Germain parecia piedosamente
ofendido com a ideia. Jem não se incomodou, apenas erguendo
as sobrancelhas para sua mãe.
"Ela já conhece cada palavra ruim que eu digo", ele ressaltou.
"Ela não deveria saber como soletrá-las direito?"
Familiarizada com as técnicas de Jem, ela se recusou a ser atraída
para uma discussão filosófica e, em vez disso, deu um tapinha na
cabeça dele.
"Só não dê ideias a ela."
-.-.-

"VAMOS COMPRAR OS peixes por último", disse Marsali


enquanto desciam em direção à orla marítima. "Vegetais e frutas
costumam vir de manhã cedo, então teremos que pegar o que
pudermos a esta hora do dia – mas os pescadores não têm o
mesmo horário que os fazendeiros, então os barcos chegam a
qualquer hora que tenham uma pesca decente e nossas chances
ainda são boas. Além disso, não queremos carregar peixes por
mais tempo do que o necessário, não neste tempo."
Fergus trouxera para casa um saco de batatas e uma trança de
cebolas antes do café da manhã, esses itens dados em pagamento
de alguns de seus clientes. Feijão e arroz ficavam em grandes
quantidades na despensa. Por enquanto, elas pretendiam
vasculhar os mercados de produtos agrícolas em busca de
qualquer coisa fresca disponível, aproveitando o ar fresco e o sol
enquanto isso.
Já era tarde, mas o mercado ainda estava cheio, embora não
lotado como provavelmente estaria ao amanhecer. Elas seguiram
986

por entre barracas, carroças e gritos de vendedores que tentavam


se livrar do que restava de suas mercadorias e ir para casa,
farejando a mistura de aromas de flores aquecidas pelo sol, alho,
abobrinha e milho fresco na espiga.
"Quanto você está pedindo pelo seu quiabo?", Marsali perguntou
a um jovem, recém-saído da fazenda, a julgar por seu jaleco e
avental.
"Um punhado por um centavo", respondeu ele, pegando um
monte amarrado junto e segurando-o sob o nariz dela. "Colhido
fresco esta manhã!"
"E andou aqui sob um carregamento de batatas, ao que parece",
disse Marsali, cutucando criticamente um legume verde
machucado. "Ainda assim, eles dariam um gumbo... Vou dizer
uma coisa, vou pegar três por um centavo, e você vai voltar para
casa mais cedo."
"Três por um centavo, ela diz!" O jovem fazendeiro cambaleou,
as costas da mão pressionando dramaticamente a testa. "Senhora,
você me quer arruinado?"
"A escolha é sua, não?", Marsali disse, claramente gostando do
show. "É um centavo a mais do que você receberá se não vender
nada, e eu não acho que você vai, pelo menos amassado como
está."
As meninas, que claramente já tinham visto a mãe barganhar
antes, estavam mudando de um pé para o outro e procurando por
algo mais interessante.
Félicité de repente se animou.
"Mãe! Há uma nova carroça chegando! E ela tem melões!"
Marsali imediatamente largou o quiabo questionável e correu
atrás das filhas, que se apressaram para conseguir um bom lugar
perto da carroça no momento em que ela parou.
987

"Desculpe", Bree disse se desculpando com o jovem fazendeiro.


"Talvez mais tarde."
"Hmph", disse o jovem, mas ele já havia se virado, levantando
um monte de cebolinhas murchas no alto em uma mão, quiabo na
outra, gritando: "Gumbo hoje à noite!" para um par de
compradores que se aproximava com cestas pela metade.
As pessoas – na maioria mulheres, embora houvesse alguns
homens, aprendizes ou cozinheiros por causa de seus aventais
manchados de gordura – estavam se reunindo rapidamente, se
empurrando para serem os primeiros a colocar as mãos nos
melões. Joanie e Félicité haviam conseguido um bom lugar na
plataforma traseira, no entanto, onde o filho do fazendeiro de
melão estava cuidando das mercadorias. Marsali e Bree
alcançaram as meninas bem a tempo de evitar uma grande mulher
com um gorro de empurrá-las para fora do caminho.
Brianna se equilibrou com o traseiro pressionado firmemente
contra a carroça e se preparou para repelir a competição,
enquanto as meninas ficavam na ponta dos pés ao lado dela,
farejando em êxtase. Bree respirou fundo e deu um pequeno
gemido involuntário de prazer. O cheiro de uma centena de
melões recém-colhidos foi o suficiente para deixá-la tonta.
"Humm." Marsali inalou fortemente e balançou a cabeça,
sorrindo para Brianna. "Suficiente para derrubá-la, não?" Ela não
perdeu mais tempo em revolver-se sensualmente, no entanto,
colocou a mão no ombro ossudo de Joanie.
"Você se lembra de como eu disse para você escolher um melão
maduro, a nighean?"
"Você bate nele", disse Joanie, mas em dúvida. No entanto, ela
estendeu a mão e bateu cuidadosamente em uma forma
arredondada. "Esse é bom?"
Marsali bateu no mesmo melão, bruscamente, e balançou a
988

cabeça. "É um que você compraria se quisesse mantê-lo por


alguns dias, mas se você quiser um digno para comer no jantar..."
"Nós queremos!", disseram as meninas em coro. Marsali sorriu
para elas e bateu levemente os nós dos dedos na testa de Félicité.
"Deve soar assim", disse ela. "Não é oco - mas o interior é mais
macio do que o exterior."
Joanie riu e disse algo em gaélico que Brianna interpretou como
uma especulação se a cabeça de sua irmã estava cheia de mingau.
Com seus próprios reflexos maternos, ela inseriu um quadril entre
as irmãs antes que o caos pudesse acontecer, e ela enfiou a mão
na carroça ao acaso e pegou um melão, convidando Joanie a
experimentá-lo.
Dez minutos de pechincha e caos controlado depois, elas saíram
do meio da confusão, carregando oito melões de primeira entre
elas. O resto dos vegetais e frutas foram adquiridos com
relativamente poucos incidentes, e depois de lançar seus olhos
sobre seu grupo acalorado e visivelmente murcho, Marsali
declarou que elas se sentariam à beira do rio e comeriam um dos
melões, como recompensa por seu trabalho.
Brianna, que tinha uma faca no cinto, fez as honras e um bendito
silêncio desceu, quebrado apenas por ruídos de sucção e
cusparadas de sementes. A atmosfera estava úmida, quase
líquida; suas roupas agarravam-se a ela e o suor escorria de seus
cabelos enrolados, descia pela nuca e pingava de seu queixo.
"Como é que alguém mora aqui no verão?", ela perguntou,
enxugando o rosto em uma manga e pegando outra fatia de melão.
Marsali encolheu os ombros filosoficamente.
"Como é que alguém vive durante o inverno nas montanhas?",
ela rebateu. "O suor é melhor do que o congelamento. E aqui, há
bastante comida o ano todo; você não vive seis meses atrás de
989

caça; e catando excrementos de camundongo do milho que você


salvou dos esquilos."
"Isso é um argumento a seu favor", admitiu Brianna. "Embora eu
ache que o exército come uma boa parte do que está disponível,
não é?" Ela acenou com a cabeça em direção a uma coluna de
soldados continentais em marcha, descendo a rua em direção ao
campo de treinamento na periferia da cidade, com mosquetes
sobre os ombros.
"Mmphm." Marsali acenou para o oficial à frente da coluna, que
tirou o chapéu e fez uma mesura para ela quando eles passaram.
"Sinto-me muito mais segura com eles aqui, e eles são bem-
vindos para o que precisarem."
Algo em seu tom fez o couro cabeludo de Brianna coçar, e ela de
repente pensou no incêndio na Filadélfia. A mãe dela disse que
ninguém sabia se tinha sido um acidente ou...
Ela sufocou esse pensamento.
"Vocês tem muitos problemas? Com legalistas, quero dizer?"
"Podemos abrir outro, mãe? Por favor?" Joan e Félicité tinham o
rosto reluzente de suco de melão, mas olhavam avidamente para
a pilha restante.
"Falando do diabo", Marsali murmurou, mas não para suas filhas.
Seus olhos estavam fixos em dois homens que saíram de uma
taverna do outro lado da rua. Eram jovens, mas adultos, pareciam
operários, as roupas eram ásperas e sujas nas pontas, e um deles
carregava um saco de lona no ombro. Eles pararam do lado de
fora da taverna, olhando para cima, e Brianna viu que eles
estavam inspecionando a placa, sendo este um pedaço de lona
pregado sobre a placa original.
A placa exibia uma representação pouco especializada de um
soldado de peruca branca e dragonas enormes exibindo enormes
990

laçadas de renda amarela, e uma legenda informando aos


transeuntes que esta taverna se chamava General Washington.
Bree mal teve tempo de se perguntar qual teria sido o nome
original do lugar, anterior à ocupação da cidade, antes que o
jovem enfiasse a mão no saco e tirasse um punhado de tomates
maduros. Ele os colocou nas mãos de seu companheiro, pegou
outro punhado de tomates para si e os jogou contra a placa acima,
gritando: "Deus salve o Rei!" a plenos pulmões.
"Deus salve o rei!" seu amigo ecoou. Sua pontaria era menos
certeira que a do primeiro jovem, e dois de seus tomates
espirraram contra a parede da frente da taverna, enquanto outro
caiu na estrada e se espatifou nas pedras do calçamento. Um canto
da placa de lona se soltou sob o ataque e agora caiu, revelando o
suficiente da placa embaixo para torná-la uma boa aposta que o
lugar já fora conhecido como The King’s Head – a Cabeça do
Rei.
"Vou descobrir seus nomes, mamãe. Então você pode colocá-los
no jornal", Joanie disse em uma voz profissional, e pulando de pé
começou propositalmente a atravessar a rua.
"Joanie! Thig air ais a’ seo!", Marsali mandou-a voltar, em
gaélico, e também se levantou de um salto, bem a tempo de
agarrar Félicité pelo braço e impedi-la de seguir a irmã. "Joanie!"
Joanie ouviu e hesitou, olhando por cima do ombro, mas os
jovens vândalos, que haviam se armado com mais tomates,
perceberam também. Corados de excitação, eles atravessaram a
rua correndo, jogando tomates loucamente em Joanie, que gritou
de pânico e correu para sua mãe.
"Saia de perto!" Brianna gritou o mais alto que podia, bem a
tempo de pegar um tomate bem no meio de seu peito, onde
explodiu em uma mancha de suco vermelho e sementes
pegajosas. "O que vocês idiotas pensam que estão fazendo?"
991

Marsali empurrou as meninas para trás e se manteve firme, os


punhos cerrados ao lado do corpo, branca de fúria.
"Como você ousa atacar minha filha?", ela gritou.
"Você não é a esposa do impressor?", perguntou um jovem. Ele
tinha perdido o boné e seus cabelos estavam arrepiados em pontas
emaranhadas, o suor escorrendo pelo rosto de calor e excitação.
Ele estreitou os olhos para Marsali, depois para as meninas dela.
"Sim você é! Eu a conheço, maldita cadela rebelde! "
"Malditas vagabundas de rua", disse seu amigo, ofegante. Ele
enxugou a sobrancelha com uma manga, depois puxou a manga
para cima, mostrando um braço razoavelmente musculoso.
"Vamos jogar todas no rio. Ensinar o impressor a cuidar de suas
maneiras."
Bree endireitou-se em toda a sua estatura – ela tinha uns bons
dezoito centímetros sobre os dois rapazes – e deu um passo à
frente.
"Seus pequenos inúteis de merda vão embora", ela disse, o mais
ameaçadoramente que pôde. Eles olharam para ela, surpresos, e
caíram na gargalhada.
"Outra vadia rebelde, hein?" Um dos jovens agarrou-a pelo braço,
rápido e com força, e no mesmo momento, o jovem com a bolsa
deixou-a cair do ombro e, agarrando na alça, balançou-a e
acertou-a na lateral da cabeça.
Ela perdeu o equilíbrio, cambaleou e caiu. Apesar do conteúdo
mole, a bolsa estava pesada e seu nariz e olhos começaram a
escorrer com o impacto repentino. Os jovens estavam
gargalhando. As duas garotas gritavam e Marsali tentava mantê-
las atrás dela, pairando na esperança óbvia de poder chutar um
dos canalhas. Ela não foi capaz de chegar perto deles antes que
um deles tivesse se abaixado e agarrado os tornozelos de Brianna,
puxando suas pernas para cima.
992

"Segure os ombros dela!", ele gritou para o seu amigo, que


prontamente fez exatamente isso.
Eles meio que a arrastaram, meio que a carregaram encosta
abaixo, atrás da cortina de salgueiros que margeava o rio. Ela
estava lutando, mas não conseguia respirar. Seus pulmões não
funcionavam e ela não conseguia encontrar apoio com as mãos
ou pés para atacá-los.
"Buinneachd o’ n teine ort476!" Foi um grito agudo e o homem
que a segurava pelos ombros a deixou cair.
Seus pulmões se encheram e ela puxou os pés livres e rolou para
longe, lutando para ficar de joelhos, tateando por uma pedra, um
galho, qualquer maldita coisa para atingir alguém.
Marsali estava respirando com dificuldade, os dentes cerrados, a
faca de Brianna na mão. Os olhos de Brianna ainda estavam
lacrimejando, mas ela viu Joanie e Fizzy na margem acima, cada
uma com um melão nas mãos, e enquanto ela lutava para se
levantar, Félicité arremessou seu melão o mais forte que pôde.
Atingiu o solo bem perto dos rapazes, mas rolou lentamente
morro abaixo, parando ao pé de algum tipo de arbusto.
Os vândalos caíram na gargalhada, um deles dançando na direção
de Marsali, fintando como se fosse pegar a faca, fingindo bater
nela com a outra mão enquanto ela hesitava.
Bree tinha o controle de seu corpo de volta e se levantou, uma
pedra sólida em uma mão, e a jogou nas costas do idiota que
segurou seus tornozelos, o mais forte que pôde. A pedra acertou
o alvo e ele fez um barulho agudo e caiu de joelhos, praguejando
sem fôlego.
Seu amigo olhou para Brianna e de volta para Marsali e então se

“Que você sofra de diarreia do fogo”, em gaélico. Essa tradução foi encontrada num post sobre o livro
476

“Naughty Little Book of Gaelic” (Pequeno Livro Irreverente de Gaélico), de Michael Newton. Se
pensarmos que diarreia pode se parecer com algo queimando, dá para entender o xingamento.
993

afastou, descuidado.
"É melhor você dizer ao seu marido para consertar seu
pensamento e cuidar do que ele imprime naquele jornal, senhora",
disse ele a Marsali. A alegria da destruição o havia deixado,
embora a raiva não. Ele acenou com a mão para as meninas,
agarradas juntas na sombra de um salgueiro. "Você tem um
monte de jovens com cabeça de melão. Pode ser que você possa
dispensar um deles, hein? "
Sem aviso, ele disparou para frente e chutou o melão no chão,
estourando-o em suco, sementes e pedaços quebrados.
Brianna estava congelada de novo, assim como todo mundo
também. Depois de um longo, longo momento, o jovem que ela
havia atingido com a pedra se levantou e deu a ela um olhar
maligno, então acenou com a cabeça para o amigo. Eles se
viraram e saíram, parando apenas para pegar a sacola de lona e
sacudir a polpa dos tomates esmagados no chão.
994

72

UMA PRECE PARA SÃO DIMAS477

ROGER SAIU DA CASA DO REVERENDO Selverson ao som


de tambores. Ele estava tão agitado que por um momento não teve
noção do que estava ouvindo, nem por quê. Mas enquanto ele
piscava sob a luz, ele viu um soldado continental dobrar a esquina
e caminhar em sua direção, sem marchar, apenas caminhando de
um jeito prático, um grande tambor pendurado ao lado, para não
impedir seu passo, e sua cadência tão prosaica quanto seu
aspecto.
Uma sensação de movimento nas ruas, passos sem pressa, e
quando o baterista passou por ele sem olhar, ele viu homens
virando a mesma esquina, alguns uniformizados, passeando e
conversando em pequenos grupos, e ele percebeu que eles
vinham do Half-Moon Street, das tabernas e restaurantes. Este
era o tambor noturno – certamente não é chamado de "alvorada"
à noite? Ah não; é uma "retirada" – que convocava os soldados
para voltar aos seus aposentos, comer e descansar no final do dia.
A gráfica ficava no distrito de St. Michael, enquanto a casa do
reverendo Selverson ficava do outro lado da cidade. É por isso
que ele não tinha notado o tambor da noite antes; o acampamento
do exército ficava deste lado.
Mesmo com essa explicação, ele sentiu uma certa agitação ao
som do tambor. E por que não deveria? ele pensou. Ele também

477
Também conhecido como o Bom Ladrão, São Dimas foi um dos ladrões crucificados junto com Jesus
Cristo, que se reconheceu como pecador e crente em Deus. É considerado o padroeiro dos prisioneiros,
dos condenados, dos ladrões arrependidos e também daqueles que se arrependem dos pecados nos últimos
momentos de vida.
995

estava sendo convocado. Sorrindo com o pensamento, ele


colocou o chapéu e saiu para a rua.
Ele não voltou para a gráfica imediatamente, embora estivesse
ansioso para contar suas boas notícias a Bree. Ele precisava ficar
sozinho um pouco, para abrir seu coração transbordante para
Deus e fazer as promessas de um ministro.
No final da tarde, o calor do dia havia se abatido sobre a cidade.
Só sua alegria poderia tê-lo deixado alheio; mesmo assim, o ar
era como respirar manteiga derretida e ele caminhou até a orla,
esperando uma brisa. A orla nunca ficava deserta, a qualquer hora
do dia ou da noite, mas a essa hora do dia, a maioria dos navios
fundeados no porto havia sido descarregado, suas mercadorias
recebidas, a alfândega paga e os estivadores suados retiravam-se
para o local de refrigério mais próximo – que por acaso era a
taverna Meia-Lua. Ele foi tentado a saciar sua sede antes de
embarcar em suas devoções privadas – ele não estivera
descarregando navios com este calor, graças a Deus, mas ele não
estava acostumado com a costa e seus crustáceos tropicais
também – mas havia prioridades.
Suas prioridades mudaram repentinamente quando ele viu
Fergus, que estava no final do cais, olhando para a água que
brilhava sob o sol baixo como a superfície de um espelho mágico.
Ele ouviu os passos de Roger e se virou para cumprimentá-lo,
sorrindo.
"Comment ça va?"
"Ça va", Roger respondeu com indiferença, mas então abriu um
enorme sorriso involuntário.
"Ça va très bien?", Fergus perguntou.
"Melhor do que você pode imaginar", Roger assegurou, e Fergus
deu um tapinha em seu ombro.
996

"Eu sabia que ia ficar tudo bem", disse ele, e então, enfiando a
mão no bolso, saiu com um punhado de moedas e certificados de
armazém dobrados. "Metade disso é seu – para comprar um novo
casaco preto", disse ele, olhando criticamente para a roupa atual
de Roger. "E um lenço branco com o..." Sua mão e gancho
alisaram a parte superior do peito, indicando a presença de lapelas
brancas de um ministro presbiteriano.
Roger olhou para o dinheiro, depois para Fergus. "Você fez uma
aposta sobre a minha aprovação na entrevista? Quais eram as
chances?"
"Cinco para três. Pas mal. Você será ordenado aqui, então?" Ele
franziu a testa ligeiramente. "Deve estar tudo bem se for logo."
"Acho que será na Carolina do Norte, talvez na igreja de Davy
Caldwell – ou talvez aqui, se conseguirmos que o número de
bispos venha. Mas o que você acha que vai acontecer?"
"Eu sou um journaliste", disse Fergus, com um leve encolher de
ombros. Seus olhos estavam fixos nos mastros de um navio
distante, ancorado no porto além do rio. "As pessoas falam
comigo. Sei algumas coisas que não colocaria no jornal."
"Tais como?" O coração de Roger, ainda feliz, deu uma batida
extra.
Fergus deu as costas para a água cintilante e deu uma olhada
rápida e casual no cais.
"Eu consegui finalmente pegar Monsieur Faucette mais ou menos
dono de si mesmo, e embora ele estivesse um pouco alto, ele
ainda falava coisas com sentido. Você já ouviu falar da ilha de
Saint Eustatius?"
"Vagamente. Está lá fora em algum lugar." Ele acenou com o
braço na direção do que ele pensava ser as Índias Ocidentais.
"Oui", disse Fergus pacientemente. "É dos holandeses. E os
997

holandeses fabricam e vendem armas – em Saint Eustatius.


Monsieur Faucette nasceu na ilha e a visita regularmente. A mãe
dele é holandesa e ele ainda tem família lá."
"Então você encontrou Monsieur Faucette, e ele..."
"Non." Fergus balançou a cabeça. "Encontrei um pescador de
tubarões da Martinica. Ele foi pego por uma forte tempestade e
seu barco danificado; um dos mercadores o pegou e o trouxe
aqui."
A alegria de espírito de Roger não desapareceu, mas sumiu
rapidamente de sua mente. Ele e Brianna haviam discutido a
necessidade de dizer a Fergus e Marsali o que o futuro reservava
– o que poderia acontecer, ele se corrigiu. Ele se sentia
desconfortável – e quando poderia ser o melhor momento para
fazer isso. Na alegre agitação do reencontro e na iminência
ansiosa de sua entrevista com o presbitério (a memória fez seu
coração pular, apesar da conversa iminente), nenhum dos dois
quis se aventurar no terreno perigoso da previsão... mas
claramente, estava na hora.
"Quando?", Roger perguntou com cautela. Ele estava tentando se
lembrar da sequência exata de eventos que Frank Randall havia
descrito. O Cerco de Savannah478 iria acontecer em breve – no
início de outubro – mas iria fracassar, permanecendo nas mãos
dos britânicos. Mas então viria o Cerco de Charles Town479, e
esse teria sucesso – deixando a cidade também nas mãos dos
britânicos.
"Falei com ele há uma semana", disse Fergus, e sorriu. "Comprei
a história de suas aventuras por seis pence e ficamos amigos.
Comprei rum para ele e nos tornamos frères de coeur480. Ele

478
O Cerco de Savannah (23 de setembro a 18 de outubro de 1779) refere-se à tentativa fracassada das
forças americanas e francesas de retomar a cidade portuária de seus ocupantes britânicos. Foi uma das
batalhas mais caras da Guerra Revolucionária em termos de baixas..
479
O Cerco de Charles Town ocorreu entre 29 de março e 12 de maio de 1780.
480
Irmãos de coração. Em francês.
998

falava apenas francês, sabe, e embora isso não seja incomum


aqui, os verdadeiros franceses são. Ele não falava livremente com
ninguém por seis meses."
"E o que ele disse livremente para você?" A efervescência de
Roger tinha diminuído novamente, empurrada para segundo
plano pela curiosidade e uma pequena sensação de pavor.
"Que ele falava de um navio em algum lugar das Ilhas de
Barlavento – um saveiro, disse ele, um barco particular. Eles
haviam transportado para – você está impressionado com o meu
conhecimento de termos náuticos?"
"Muito", disse Roger, sorrindo.
"Bem, bebemos muito rum." Fergus olhou melancolicamente
para a taverna Meia-Lua, mas ele também tinha prioridades e se
voltou para Roger.
"De qualquer forma, eles pararam para pescar; havia cardumes
de... atuns, creio que ele disse. O dono do saveiro também bebeu
rum com ele e disse-lhe que os franceses mandavam uma frota
em apoio aos americanos; ele tinha visto a frota e ouvido falar
deles em um bar em Barbados..." Ele acenou com o gancho,
vendo a expressão de Roger. "Não me pergunte como a notícia
chegou lá; você sabe como a fofoca funciona."
"E", ele continuou, "que o plano deles era ir para New York, mas
que eles estavam cientes das maquinações dos britânicos, para
cortar a comida da Filadélfia, Boston e New York, por assim
dizer". Ele gesticulou para os armazéns próximos e para um
trecho de campos maduros do outro lado do rio.
"Então, se acontecer de os britânicos já estarem vindo para o sul,
D'Estaing – ele é o almirante francês", explicou ele, "D'Estaing
navegará imediatamente para o sul. E se o que ele me disse estiver
correto, os navios franceses virão para cá."
999

Roger engoliu em seco e desejou ter ouvido seus desejos mais


básicos e beber primeiro.
"Na verdade", disse ele, "eles estão indo para Savannah. Os
americanos vão atacar Savannah. Muito em breve."
Ambas as sobrancelhas escuras de Fergus se arquearam com isso.
Roger tossiu.
"Então é para lá que os franceses estão indo”, disse Roger. "Para
apoiar as tropas do General Lincoln em..."
"Mas o General Lincoln está aqui!"
Roger acenou com a mão, ainda tossindo. "Por enquanto", ele
concordou. "E ele vai deixar uma guarnição aqui, é claro. Mas ele
está levando muitos homens para Savannah. Eles não terão
sucesso, no entanto", ele finalizou, sentindo-se arrependido.
"Mas então eles voltarão aqui. E então o general Cornwallis –
acho que é Cornwallis – virá de New York. Clinton e Cornwallis
sitiarão a cidade e a tomarão. E... hã... estou pensando que talvez
você e Marsali possam pensar em não estar aqui quando isso
acontecer, aye?"
Os olhos de Fergus estavam tão redondos quanto eles poderiam
ficar.
"Quero dizer", disse Roger. "Não é como se você pudesse se
esconder facilmente."
Isso fez Fergus sorrir, só um pouco.
"Não esqueci como ficar invisível", garantiu a Roger. "Mas é
muito mais difícil fazer uma esposa e cinco filhos desaparecerem.
E não posso deixar que Marsali publique o jornal sozinha, não
com duas crianças para amamentar e a cidade cheia de soldados."
Ele passou a manga pelo rosto suado, estufou as bochechas e se
sentou em uma pilha de engradados com poeira branca, com uma
1000

etiqueta grosseira em que se lia Guano481 escrito com uma letra


descuidada.
"Assim." Ele deu a Roger um olhar de soslaio. "Você está me
dizendo que os britânicos vão se apossar tanto de Savannah
quanto de Charles Town?"
"Por um tempo. Não permanentemente – quero dizer, vocês, hã,
nós de fato venceremos a guerra. Mas só daqui a dois anos."
Ele viu a garganta de Fergus se mover enquanto ele engolia e os
pelos de seus antebraços se arrepiarem, descobertos pelas mangas
dobradas para trás.
"Você... hum... Bree disse que achava que você... hã... sabia",
disse ele com cuidado. "Sobre – Claire, quero dizer. E, hum, nós."
Ele se sentou ao lado de Fergus na caixa, tomando cuidado para
erguer a aba de seu casaco preto para longe da poeira branca.
Fergus balançou a cabeça – não em negação, mas como alguém
tentando sacudir seu conteúdo em algum padrão que fizesse
sentido.
"Como eu disse", respondeu ele, o sorriso voltando brevemente
aos olhos, "Eu sei muitas coisas que não publico no jornal." Ele
se endireitou, a mão – e o gancho – sobre os joelhos.
"Estive com milord e milady durante o Levante, e você sabe", ele
levantou uma sobrancelha em dúvida, "que milord me contratou
em Paris, para roubar cartas para ele? Eu as li – e ouvi milord e
milady conversando. Em particular." Um breve sorriso contraiu
sua boca e desapareceu.
"Eu realmente não acreditei nisso, claro. Não até a manhã antes
da batalha, quando milord me deu a Escritura de Sasine482 para

481
Guano é o estado das fezes de aves e morcegos quando estas se acumulam. Pode ser usado como um
excelente fertilizante devido aos seus altos níveis de nitrogênio.
482
Sasine na lei escocesa é a entrega de propriedade feudal, normalmente terras. Propriedade feudal
significa o imóvel e inclui tudo o que naturalmente vai com a propriedade – como edifícios, árvores e
minerais subterrâneos. Um herdeiro pode autorizar a doação da posse de sua propriedade a outra pessoa
1001

Lallybroch e me pediu para levá-la para a irmã dele. E então, é


claro... milady desapareceu." Sua voz era suave, e Roger podia
ver o que ele não havia percebido antes – a profundidade dos
sentimentos de Fergus por Claire, a primeira mãe de que ele se
lembrava. "Mas milord nunca disse que ela estava morta. Ele não
falava sobre ela, mas quando alguém o forçava..."
"A irmã dele?" Pensar em Jenny fez Roger sorrir. Fergus também.
"Sim. Ele nunca dizia que ela estava morta. Só... que ela se foi."
"E então ela voltou", Roger disse baixinho.
"Oui." Fergus olhou para ele, examinando seu rosto
pensativamente, como se quisesse se certificar do homem com
quem estava falando. "E, claramente, Brianna e você são... o que
milady é." Um pensamento o atingiu e seus olhos se arregalaram.
"Les enfants483. Eles são…?"
"Sim. Ambos."
Fergus disse algo em francês que estava muito além da
capacidade de tradução de Roger e depois ficou em silêncio,
pensando. Ele enfiou a mão distraidamente entre os botões de sua
camisa, e Roger percebeu que ele estava tocando a pequena
medalha de São Dimas que sempre usava. O santo padroeiro dos
ladrões.
Roger virou-se para lhe dar um pouco de privacidade e olhou para
o outro lado do rio, depois para mais longe, para o próprio porto
e para o mar invisível além. Curiosamente, a sensação de paz com
a qual ele havia deixado a casa do reverendo Selverson ainda
estava com ele, imanente nas nuvens flutuantes do céu, formando
ondas e mais ondas brancas ficando rosa nas bordas, e o barulho
silencioso da água batendo nas estacas abaixo deles.
Também imanente na figura imóvel de Fergus, o gancho
por meio de um documento conhecido como "preceito de sasine".
483
As crianças.
1002

brilhando em seu joelho e sua sombra crescendo no cais. Meu


irmão. Obrigado por ele, Roger pensou em Deus. Obrigado por
todas as almas que você colocou em minhas mãos. Me ajude a
cuidar delas.
"Bem, então." Fergus endireitou-se e estendeu a mão ao seio para
pegar um grande lenço manchado de tinta, com o qual enxugou o
rosto. "Wilmington, você acha? Ou New Bern?"
"Não tenho certeza." Roger sentou-se ao lado dele na caixa e tirou
seu próprio lenço, recém-lavado ainda esta manhã, agora sujo
com os esforços do dia. "Não havia muitos escoceses lá..." Ele
parou e limpou sua garganta. Foi duro falar tanto hoje, e explicar
Frank – quanto mais seu livro – estava muito além de seus
poderes no momento. "Acho que talvez os britânicos tenham se
movido para New Bern – algum oficial chamado Craig, ele era
escocês – mas se for assim, será bem no fim da guerra."
"Escocês?" Fergus ergueu uma sobrancelha para isso, então a
afastou. "C’est bien faite484. Talvez Wilmington, então. Você
sabe quando os britânicos chegarão aqui?"
Roger balançou a cabeça.
"Em algum momento da primavera, maio, talvez. Não me lembro
exatamente quando." Fergus chupou o lábio inferior por um
momento, então acenou com a cabeça, a decisão tomada. Ele
tirou a mão da medalha.
"Talvez Wilmington, então. Mas ainda não." Ele se levantou e se
espreguiçou, o corpo esguio arqueado em direção ao céu.
O ar ainda estava como melado, mas o espírito de Roger estava
revigorado.
"Então vamos beber alguma coisa e você pode me dizer onde
estão as armas."

484
´É bem feito. Bem merecido.
1003

"Você está sentado em cima delas. Mas, com certeza, vamos


tomar uma bebida."
1004

73

FIQUE COMIGO

A CHEGADA DE ROGER À GRAFICA com Fergus, parecendo


um pouco atordoado, mas enormemente feliz, causou tanta
comoção que demorou algum tempo até que as pessoas pudessem
parar de fazer perguntas por tempo suficiente para que ele
respondesse algumas delas.
"Sim", disse ele por fim, o lenço branco retirado e
cuidadosamente pendurado em uma das cordas de secagem da
gráfica, para evitar perda ou a possibilidade de impressões
digitais sujas. "Sim", disse ele novamente, e aceitou uma taça de
xerez de cozinhar – sendo essa a bebida mais festiva disponível
no momento. "É oficial. Todos os três concordaram. Serei
ordenado formalmente em uma igreja, e isso pode precisar
esperar até a primavera, mas fui aceito como adequado para ser
um Ministro da Palavra e do Sacramento."
"Isso é tão bom quanto ser o papa?", Joanie perguntou, olhando
para seu tio com admiração recém-descoberta.
"Bem, eu não ganho um chapéu chique ou um cajado de pastor",
disse Roger, ainda sorrindo, "mas fora isso ... sim. Tão bom.
Slàinte!" Ele brindou a Joanie e depois aos outros, e engoliu o
xerez.
"Veja", disse ele, com a voz rouca e os olhos um pouco
marejados, "quase que não deu certo." Ele tossiu e afastou para
longe a garrafa de xerez oferecida. "Obrigado, não, é o suficiente.
Tudo correu bem, desde o latim, hebraico e grego, conhecimento
das Escrituras e evidência de bom caráter – mesmo ter uma
1005

esposa católica não lhes deu mais do que um momento de pausa."


Ele sorriu para Brianna. "Contanto que eu pudesse jurar, em sã
consciência, que nunca deveria permitir que me persuadisse a
práticas romanistas."
Brianna riu. Ela ainda estava tremendo por dentro com a
experiência na margem do rio, mas parecia trivial, afogada por
sua alegria pela felicidade de Roger. A luz do fogo brilhava em
seus cabelos pretos e dava a seus olhos uma centelha verde. Ele
brilhava, ela pensou, ele realmente brilhava. Como um vaga-lume
dançando sob as árvores.
"Que práticas romanistas eles tinham em mente?", ela perguntou.
Ela estava bebendo conhaque e agora entregou a ele seu copo.
"Matar crianças no altar e beber seu sangue?"
"Não, apenas conspirar com o papa, principalmente."
"Para fazer o quê?"
"Você teria que perguntar ao papa", disse ele, e riu. "Não,
realmente", disse ele, "a única coisa que era um problema sério
para eles era o canto".
"O canto?", ela perguntou, intrigada. "É verdade que os católicos
cantam, mas você também."
"Sim, esse era o problema." Sua diversão caiu um pouco, mas
ainda estava lá. "Eu não sei como eles descobriram, mas eles
ouviram dizer que eu cantava hinos durante os cultos na igreja na
Cordilheira."
"E eles pensaram que você não deveria?", Marsali disse,
franzindo a testa. "Presbiterianos não cantam?"
"Não na kirk, eles não. Agora não."
Houve uma breve perturbação no ar com as palavras "agora não".
Brianna viu Fergus e Marsali olharem um para o outro e nenhum
deles mudou suas expressões de diversão tolerante, mas ela sentiu
1006

isso, como a picada de um espinho.


Eles sabem. Ela e Roger nunca haviam discutido isso, mas é claro
que sabiam. Fergus morou com seus pais antes do Levante e em
Lallybroch depois de Culloden – quando sua mãe se foi. E é claro
que o Jovem Ian e Jenny sabiam. Rachel também?, ela imaginou.
Roger agia como se nada tivesse acontecido; ele estava contando
o que vários ministros haviam falado sobre a prática pecaminosa
de cantar aos domingos, quanto mais na kirk! Com imitações dos
pronunciamentos de cada um dos ministros.
"Então, como você respondeu a essas observações?", Fergus
perguntou. Seu rosto estava vermelho de tanto rir, e seus cabelos
haviam perdido a fita e estavam quase todos soltos da trança,
escorrendo por cima do ombro em ondas escuras com listras
prateadas. De traços afiados e olhos fundos, ele parecia a Brianna
como um mago de algum tipo – talvez um jovem Gandalf485,
antes de ficar grisalho.
"Bem, eu disse que devido ao estado da minha voz – e contei a
eles como isso aconteceu..." Ele tocou a cicatriz branca da corda,
ainda visível em sua garganta. "Eu admiti ter cometido um erro,
mas disse que não achava que nada do que fiz na igreja pudesse
ser qualificado como música. E eu admiti fazer canto alinhado, a
chamada e a resposta, mas isso é uma coisa legítima de se fazer
em uma kirk presbiteriana. E no final, era realmente apenas o
reverendo Selverson que estava realmente preocupado com isso,
e os outros o dominaram. Curiosamente", acrescentou ele,
estendendo o copo para o que quer que estivesse sendo servido
no momento, "foi o seu pai que fez a diferença".
"Como ele sempre faz", disse Brianna secamente. "O que diabos
ele fez desta vez?"
"Apenas sendo quem ele é." Roger se recostou, relaxado, e seus
485
Personagem de O Senhor dos Anéis.
1007

olhos encontraram os dela, ainda divertidos, mas mais calmos,


com uma suavidade em suas profundidades que dizia que ele
gostaria de ficar sozinho com ela. "O reverendo Thomas
observou que, como eu era genro do coronel Fraser, o fato de eu
ser um ministro totalmente ordenado teria uma influência
benéfica sobre o coronel e, portanto, indiretamente, sobre muitas
outras almas, sendo seu pai o senhorio. E o reverendo Selverson,
ao que parece, realmente conhece seu pai e pensa bem dele,
apesar de ele ser um papista, então... " Ele estendeu a mão,
espalmada, e inclinou-a para mostrar a mudança de opinião em
seu favor.
"Bem, Pa é um homem que precisa de um padre, mais do que a
maioria", disse Marsali. Todos riram, assim como Brianna, mas
ela não pôde deixar de se perguntar o que sua mãe poderia ter a
dizer sobre isso.

-.-.-

"SÃO APENAS DUAS dúzias de armas", disse Roger, tirando o


casaco preto no loft antes do jantar. "Mas eles são rifles, não
mosquetes. Não tenho ideia de sua qualidade, porque eles estão
revestidos com graxa e embrulhados em lona e enterrados sob
mais ou menos cento e cinquenta quilos de guano de morcego
jamaicano, mas – não ria, não estou brincando."
"Eu não estou", disse ela, rindo. "De onde diabos elas vieram?
Aqui, me dê isso, vou tirá-lo e pendurá-lo no armário de
ventilação – cheira a..."
"Guano de morcego", disse ele, balançando a cabeça enquanto
entregava a ela o casaco úmido e mole. "E suor. Muito suor."
Ela olhou seu torso e a camisa branca agora colada nele, e se virou
para pegar uma camisa limpa – bem, pelo menos seca – no baú.
1008

"As armas?", ela perguntou, entregando-a a ele.


"Ah." Ele tirou a camisa molhada com um suspiro de alívio e
parou por um momento, os braços estendidos, deixando a leve
brisa do rio inundar sua pele nua com o frescor. "Oh Deus.
Armas... bem. Você se lembra de Fergus nos contando sobre seu
sr. Brumby importando metade de seu melaço e contrabandeando
a outra metade?”
"Eu lembro."
"Bem, parece que melaço não é a única coisa que o sr. Brumby
contrabandeia."
"Você está brincando!" Ela o encarou, a meio caminho entre o
deleite e o desânimo. "Ele é um traficante de armas?"
"E provavelmente de qualquer outra coisa que lhe dê lucro", ele
garantiu, encontrando seu caminho para dentro das dobras da
camisa limpa. "O seu potencial empregador parece ser um dos
maiores contrabandistas das Carolinas, de acordo com um certo
Monsieur Faucette, que também está envolvido.”
"Mas lorde John pensa que ele é um conservador leal – Brumby,
quero dizer."
"Ele pode realmente ser um conservador", disse Roger, dobrando
um punho da camisa. "Embora sua lealdade seja muito
possivelmente aberta a questionamentos. Não sabemos o que ele
estava planejando fazer com as armas, uma vez que as obteve –
mas não é provável que o exército britânico esteja dependendo de
Brumby para obtê-las."
Bree despejou água no jarro e entregou-lhe uma toalha, depois
fechou a tampa do baú e sentou-se sobre ele, observando
enquanto ele limpava areia, sal e poeira de Charles Town do rosto
e secava os cabelos soltos e encharcados de suor.
"Então você está dizendo que as armas que você e Fergus
1009

acabaram de adquirir vieram de Saint Eustatius?"


"É o que diz Monsieur Faucette, sob a influência de uma generosa
oferta de rum e ouro. Não sei quão confiáveis podem ser as
informações obtidas por suborno, mas sei – ou melhor, Fergus
sabe – que a maioria dos contrabandistas profissionais são apenas
isso. Profissionais, quero dizer; a maioria deles não estão fazendo
isso a fim de apoiar um lado da guerra contra o outro; eles
ganham dinheiro onde podem, e com frequência suficiente, de
ambos os lados. E, por acaso, dei a Fergus ouro suficiente para
que ele pudesse engraxar Monsieur Faucette, que... hã... facilitou
um encontro entre Fergus e o proprietário de um pequeno navio
comercial, que acabara de trazer as armas para Charles Town de
Saint Eustatius via Jamaica. Et voilà", ele terminou, sacudindo a
toalha com um floreio.
"Cerrrrto", disse Bree, sorrindo. "Então, se o sr. Brumby está
realmente vendendo armas para os americanos, pelo menos não
o estamos prejudicando ao roubá-las para entregá-las a Pa."
"Estou tentando muito não levar em consideração a moralidade
da situação em qualquer profundidade", disse ele secamente,
deixando cair a toalha dobrada no baú ao lado dela. "Eu gostaria
de pelo menos passar pela ordenação antes que o Presbitério de
Charles Town descubra isso."
Sua esposa fez um gesto engraçado, passando os dedos pelos
lábios em um movimento de fechar um zíper.
"Então, o que você e Marsali fizeram hoje?", ele perguntou, para
mudar de assunto.
Para sua surpresa, foi o rosto dela que mudou.
"Isso – eu não sei como dizer exatamente." Ela lançou-lhe um
olhar de soslaio, meio perplexa, meio envergonhada. Ele se
sentou sobre um barril de verniz, inclinou-se para a frente e pegou
a mão dela, de dedos longos e frios, prendendo-a entre as suas.
1010

Ele não tentou dizer nada, mas seus olhos sorriam.


Depois de um momento, ela sorriu de volta, embora fosse apenas
uma breve sombra no canto de sua boca. Ela desviou o olhar, mas
os dedos elegantes e manchados de tinta se viraram e se uniram
aos dele.
"Fiquei envergonhada", disse ela, por fim. "Faz muito tempo que
não tenho medo de um homem."
"Um homem? Quem? O que ele fez?" Sua mão apertou a dela
com o pensamento de alguém a machucando.
Ela balançou a cabeça, desviando o olhar. Suas bochechas
estavam vermelhas.
"Apenas um par de jovens... idiotas. Idiotas legalistas, nada
menos." Ela contou a ele sobre os idiotas que desfiguraram a
placa da taverna e atacaram a ela e a Marsali.
"Eles realmente não nos machucaram. Eles me derrubaram – um
deles puxou meus pés debaixo de mim, o bastardo, e então eles
começaram a me arrastar em direção ao rio, dizendo que eles
iriam – me jogar lá dentro." A voz dela engrossou de repente, e
ele ouviu a raiva nela.
"Havia dois deles, Bree. Você não poderia ter impedido eles,
juntos assim." Jesus. Se eu estivesse lá, eu teria...
Ela estremeceu brevemente e apertou sua mão com força.
"Isso...", ela começou, mas teve que parar e engolir. "Isso é o que
Pa me disse. Depois que Stephen Bonnet me estuprou. Que eu
não poderia tê-lo impedido, mesmo se eu tivesse lutado."
"Você não poderia", disse ele imediatamente. Ela olhou para sua
mão, e ele viu que ele a apertou com tanta força que os dedos
dela, que estavam segurando os dele, se soltaram e se projetaram
como um feixe de giz de cera. Ele pigarreou e a soltou.
"Desculpe."
1011

Ela deu uma risadinha, mas não com nenhum senso de humor.
"Sim", ela disse depois de um momento. "Isso é basicamente o
que Pa fez, só que muito mais áspero e propositalmente." A cor
havia subido em suas bochechas, e seus olhos estavam fixos em
suas mãos, agora entrelaçadas em seu colo. "Eu queria matá-lo."
"Stephen Bonnet?"
"Não, Pa." Ela deu a ele um meio sorriso irônico. "Ele não se
importou. Isso é o que ele estava tentando que eu fizesse – tentar
matá-lo – então eu acreditaria que não poderia fazer isso, e por
fim eu teria que acreditar que não poderia ter feito, mesmo que
tivesse tentado. Ele me humilhou e me assustou e não se importou
que eu o odiasse por isso, contanto que eu entendesse que não era
minha culpa.486 E também entendo o que você está me dizendo",
disse ela, "realmente entendo." E encontrou seu olhar
diretamente. "A questão é, porém, que eu geralmente posso fazer
até mesmo os homens recuarem um pouco, ou pelo menos parar
por um momento, e então posso direcioná-los para outra coisa ou
fazê-los ir embora. Quero dizer..." Ela olhou para baixo em seu
corpo e acenou com a mão. "Eu sou mais alta do que a maioria
dos homens e sou forte. Quando eu tive problemas com algum
homem na Cordilheira, eu fui capaz de enfrentá-lo. Então,
quando isso não funcionou esta tarde, eu estava – eu não esperava
por isso", ela terminou abruptamente.
Não era uma situação em que o tato ajudasse. Ele controlou sua
própria fúria; ele não podia fazer nada sobre os meninos – a
menos que visse os pequenos bastardos, e Deus os ajudasse se os
visse – mas Brianna... ele talvez pudesse fazer algo por ela.
"Na Cordilheira", disse ele com cuidado, "não é apenas a sua
própria presença física – por mais intimidante que seja para
alguns homens", disse ele, com um breve sorriso. "Quando um

486
Livro 4 cap 48
1012

homem recua, às vezes recua por sua causa mesmo, tudo bem –
mas às vezes é porque seu pai está parado atrás de você." Ele
encolheu os ombros, com cuidado para não adicionar ou a mim.
"Metaforicamente, quero dizer."
Ela ficou vermelha, seu rosto se contraindo, e ele fez um esforço
consciente para não recuar. Um Fraser de temperamento
descontrolado era uma substância a ser tratada com cautela, fosse
Mandy ou Jamie. Mais fácil se eles fossem pequenos o suficiente
para que você pudesse pegá-los e levá-los para algum lugar
sossegado, é claro, ou talvez ameaçar bater em suas nádegas...
Felizmente, enquanto Jamie e Claire eram tão distintos quanto a
noite e o dia em termos de personalidade, ambos eram lógicos e
justos, e sua filha havia herdado esses dois traços.
Ela fez um ruído suave retumbando em sua garganta e respirou
fundo, seu rosto relaxando.
"Eu sei disso", disse ela, e ergueu as sobrancelhas em um breve
pedido de desculpas. "Eu sabia, quero dizer. Eu não tinha pensado
nisso, no entanto."
"Você matou Stephen Bonnet", ressaltou ele, abrandando o tom.
"Ele não tinha medo do seu pai."
"Sim, depois que você e Pa o pegaram e amarraram para mim e
os bons cidadãos de Wilmington o colocaram numa estaca no
rio." Ela bufou. "Não teria importância se eu estivesse com muito
medo."
"Você estava", disse ele. "Eu estava lá." Ele remou para ela, sobre
a água marrom cintilante, no início da tarde, em um pequeno
barco manchado com escamas de peixe e a lama que tornava o
rio marrom.
Ela se sentou em frente a ele, a pistola em seu bolso, e ele podia
ver seu braço na memória, rígido como ferro enquanto ela
1013

segurava a arma, e o pequeno pulsar em sua garganta, batendo


como um colibri. Ele queria urgentemente dizer a ela novamente
que ela não precisava fazer isso; que se ela não pudesse suportar
a ideia de Stephen Bonnet se afogando, ele faria isso por ela. Mas
ela se decidiu, e ele sabia que ela nunca desertaria de um trabalho
que pensava ser dela. E então eles remaram para o porto, em um
silêncio mais alto do que os gritos dos pássaros aquáticos e o bater
da maré enchendo e o eco de um tiro ainda não disparado.487
"Obrigada", disse ela suavemente, e ele viu que seus olhos
brilhavam com lágrimas que ela não deixaria cair porque odiava
ser fraca. "Você não tentou me impedir."
"Eu teria, se achasse que havia alguma chance de você ouvir",
disse ele rispidamente, mas os dois sabiam que não era verdade,
e ela apertou a mão dele, depois a soltou e respirou fundo.
"Então havia Rob Cameron", disse ela, "e os malucos que
estavam à espreita em Lallybroch, querendo levar as crianças. Eu
não poderia ter lutado contra os malucos sozinha – e graças a
Deus por Ernie Buchan e Lionel Menzies! Mas eu bati na cabeça
de Rob com um taco infantil de críquete e o derrubei." Ela olhou
para ele com o brilho de um sorriso verdadeiro. "É isso aí."
"Muito bem", ele disse suavemente, e conseguiu com algum
esforço suprimir sua raiva ressurgente por Cameron e sua culpa
por não estar lá. "Minha garota corajosa."
Ela riu e enxugou o nariz com as costas da mão livre.
"Eu já sabia que você era um bom marido", disse ela. "Mas você
será um grande ministro."
Ela se inclinou para frente e ele a tomou nos braços, sentindo o
peso quente e sólido de sua confiança.
"Obrigado", ele disse suavemente, encostado nos cabelos dela.

487
Livro 6
1014

Era suave e quente em seus lábios. "Mas eu não posso ser


nenhuma dessas coisas sozinho, aye?"
Por um momento, ela ficou em silêncio. Então ela se afastou o
suficiente para olhar para ele, seu rosto coberto de lágrimas, mas
agora solene e lindo.
"Você não estará sozinho", disse ela. "Mesmo que Deus não
esteja lá quando você precisar Dele, eu estarei lá – de pé, bem
atrás de você."
1015

74

A FACE DO MAL

ROGER SUBIU A ESCADA ATÉ O LOFT, surpreendendo a


esposa, que rastejava de gatinhas no chão.
"O que você está procurando?" ele perguntou.
"Uma das meias de Mandy", respondeu ela, sentando-se nos
calcanhares com um pequeno gemido. "Você sabe como as
pessoas dizem que uma coisa ou outra é um trabalho árduo? Isso
não é exagero quando se trata de lavar roupas. O que você está
procurando?"
"Você." Ele olhou por cima do ombro, mas a gráfica abaixo
estava vazia no momento, embora ele pudesse ouvir vozes na
cozinha. "Fergus me pediu para ir com ele em uma missão, e para
levar uma faca. Então, pensei em dar isso a você por segurança –
você sabe, no caso de encontrarmos um ladrão de estrada e a
história da vida dele acabar na primeira página", acrescentou ele,
tentando fazer uma piada fraca. Sua esposa não estava com
nenhum senso de humor, e levantou-se com a mão em um barril
de verniz, os olhos fixando nele um olhar de suspeita azul-escuro.
Ela manteve os olhos nele enquanto pegava o papel de sua mão e
o desdobrava, desviando o olhar apenas para lê-lo.
"O que é isso?"
"É um certificado de armazém. Você já os viu antes, certo? Seu
pai tem um punhado deles em seu cofre."
"Eu vi", ela disse, dando a ele um olhar aguçado. "Por que você
tem um certificado de armazém de um armazém em Charlotte?"
1016

"Porque, tanto quanto eu ou Frank Randall sabemos, não haverá


nenhuma luta significativa em Charlotte. Foi para lá que enviei o
guano. Achei que ninguém notaria e ninguém notou."
Ela deu uma olhada cuidadosa no certificado, e ele viu que ela
havia anotado o nome dela, além do dele. Dadas as
circunstâncias, ela não parecia achar isso reconfortante.
"Então", disse ele com entusiasmo, "estaremos de volta antes do
jantar. Oh – a meia de Mandy está ali, sob o apagador de velas. "

-.-.-

SENTINDO QUE NÃO convinha a um ministro não muito


ordenado andar por aí com um casaco preto e uma grande faca no
cinto à vista de todos, Roger vestiu seu segundo melhor casaco,
sendo um tipo de marrom bastante surrado, com uma costura
visível na manga e botões de madeira. Fergus viu isso com
aprovação.
"Sim, muito bom", disse ele. "Você parece que pode fazer
negócios." O tom de sua voz deixou claro a que tipo de negócio
ele se referia, mas Roger presumiu que fosse uma piada.
"Oh, então eu devo ser seu capanga?" Ele acertou o passo ao lado
de Fergus, que estava vestindo as mesmas roupas que usava para
imprimir, mas com um casaco azul um pouco melhor do que o de
Roger por cima.
"Esperamos que não chegue a esse ponto", disse Fergus
pensativo. "Mas é bom estar preparado."
Roger parou abruptamente e agarrou a manga de Fergus,
fazendo-o parar.
"Você se importaria de me dizer quem vamos ver? E quantos
deles?"
1017

"Apenas um, até onde eu sei", Fergus garantiu. "O nome dele é
Percival Beauchamp.”
Isso não soava como a versão do século XVIII de um gangster,
um pirata perigoso ou um contrabandista de mercadorias
estranhas, mas os nomes podem enganar.
"Um soldado me trouxe um bilhete na semana passada", disse
Fergus, provavelmente como explicação. "Ele não estava de
uniforme, mas eu percebi. E acho que ele era do exército
britânico, o que eu considerei incomum."
Muito incomum. Embora houvesse soldados casacos vermelhos
ocasionais em Charles Town, geralmente mensageiros com
destino ao quartel-general do general Lincoln – presumivelmente
com mensagens ameaçadoras para ele reconsiderar sua situação.
Fergus dispensou com a mão o assunto do soldado portador de
notas por enquanto.
"A nota era de Monsieur Beauchamp, dizendo que ele estava
residindo em Charles Town por um curto período e que solicitaria
a honra de uma breve visita minha a seu hôtel."
"Você conhece este Beauchamp?", Roger perguntou curioso. O
nome tocou uma campainha fraca. "Ele não pode ser um parente
de Claire, pode?"
Fergus lançou-lhe um olhar assustado.
"Certamente não", disse ele, embora seu tom não fosse tão certo.
"Não é um nome francês incomum. Mas, sim, eu o conheço."
"Suponho que não seja uma amizade totalmente cordial?" Roger
tocou a faca em seu cinto; era o punhal das Terras Altas que Jamie
lhe dera, uma arma impressionante com 30 centímetros de
comprimento, com um punho esculpido com o nome de São
Miguel e uma pequena imagem do arcanjo. Ele admirava bastante
a capacidade dos católicos de buscar sinceramente a paz, ao
1018

mesmo tempo em que reconheciam pragmaticamente a


necessidade de violência ocasional.
Uma breve expressão de diversão cruzou as feições sisudas de
Fergus.
"Non", disse ele. "Mas deixe-me dizer a você. Este Beauchamp
tentou falar comigo várias vezes, oferecendo várias coisas, mas
principalmente, oferecendo-me a verdade – ou o que ele diz ser a
verdade – sobre meus pais."
Roger olhou para ele.
"Até mesmo um órfão deve ter tido pais uma vez", disse Fergus,
dando de ombros. "Nunca soube nada sobre os meus, e tenho
dúvidas de que Monsieur Beauchamp também saiba."
"Mas se for esse o caso, por que fingir que sim?"
"Não sei, mas acho que estamos prestes a descobrir." Fergus
parecia severamente resignado com a perspectiva. Ele endireitou
os ombros, antes de continuar, mas a mão de Roger ainda não
havia deixado sua manga.
"Por quê?", Roger disse baixinho. "Por que falar com ele afinal?"
O pomo de adão balançou na garganta magra de Fergus enquanto
ele engolia, mas ele encontrou os olhos de Roger diretamente.
"Se irei perder meu sustento aqui, se não poderei mais ser um
impressor, então devo encontrar um novo lugar, ou uma nova
maneira de sustentar minha família, de protegê-los", ele disse
simplesmente. "Pode ser que Monsieur Beauchamp me mostre
esse caminho."

-.-.-

O ENDEREÇO DO misterioso Monsieur Beauchamp era uma


1019

grande casa na Hasell Street, e a batida de Fergus na porta foi


atendida por um mordomo cujo uniforme provavelmente custou
mais do que a impressora Bonnie. O vistoso mordomo não deu
nenhum sinal de se perguntar por que dois vagabundos teriam
aparecido na porta de seu mestre, mas ao ouvir o nome de Fergus,
curvou-se e os conduziu para dentro.
Estava um dia quente lá fora, e as grossas cortinas de veludo nas
janelas estavam fechadas para manter o máximo possível de calor
do lado de fora. Elas mantinham toda a luz do dia de fora também,
e a sala para a qual foram conduzidos estava tão escura que a
única luz em uma mesa perto da janela brilhava como uma pérola
dentro de uma ostra.
Roger achou que era como estar dentro de uma ostra: rodeado por
uma umidade opressiva e escorregadia, o toque constante de
muco na pele. Certo, o cômodo em que eles foram fechados não
era tão abrasador quanto os paralelepípedos ofuscantes do lado
de fora, mas também não era muito mais fresco.
"Como ser escaldado, em vez de frito", ele sussurrou para Fergus,
enxugando o rosto com o lenço com bordas de renda que se
esquecera de trocar por uma bandana de operário. Fergus piscou
para ele em confusão momentânea, mas antes que Roger pudesse
explicar, a porta se abriu e Percival Beauchamp entrou, sorrindo.
Roger não sabia o que estava esperando, mas não era esse
camarada. Beauchamp não era francês, para começar. Quando ele
os cumprimentou – com grande cortesia – aceitou a apresentação
de Roger por Fergus e os agradeceu efusivamente por terem
vindo, sua voz era a de um inglês culto – mas não de um educado
em Eton ou Harrow. Roger pensou que os traços de um sotaque
oculto vinham de algum lugar próximo às margens do Tâmisa -
Southwark ou talvez Lambeth? Ele estava vestido no auge do
estilo parisiense – ou pelo menos Roger presumiu que devia ser
isso, com punhos de quinze centímetros, um colete de seda
1020

amarela bordado com andorinhas e muita renda. Ele, no entanto,


usava o próprio cabelo, escuro e muito encaracolado, amarrado
casualmente para trás com uma fita de seda cor de ameixa.
"Agradeço sua atenção, messieurs", ele disse novamente.
"Permita-me mandar buscar vinho."
"Non", disse Fergus. Ele tirou um lenço manchado de tinta do
bolso e enxugou o suor que se acumulava nas órbitas profundas.
"Este lugar é como um banho turco. Vim ouvir o que tem a dizer,
monsieur. Diga."
Beauchamp franziu os lábios como se fosse assobiar, mas depois
relaxou, ainda sorrindo, e gesticulou para um par de cadeiras de
brocado ornamentado perto da lareira vazia. Ele também foi até
a porta e, apesar da recusa de Fergus, ordenou que trouxessem
alguns lanches.
Quando uma bandeja de biscoitos com uma garrafa de negus488
gelado foi entregue, ele pediu ao mordomo que servisse um copo
para cada um e sentou-se de frente para eles. Seus olhos se
voltaram para Roger, mas toda sua atenção estava voltada para
Fergus.
"Eu lhe disse em uma ocasião anterior, monsieur, que gostaria de
informá-lo dos fatos de seu nascimento. Estes são... um tanto
dramáticos, e temo que você possa achar alguns deles
angustiantes. Peço desculpas."
"Tais-toi489", disse Fergus asperamente. Roger não entendeu tudo
o que ele disse em seguida, mas parecia um convite para
Beauchamp cagar uma coisa ou outra – possivelmente a verdade?
– pelo traseiro.
Beauchamp piscou, mas se recostou, tomou um gole de vinho e

488
Negus é o nome de uma bebida feita com vinho, geralmente vinho do Porto, misturada com água
quente, laranjas e limões, especiarias e açúcar.
489
Cale a boca, em francês.
1021

deu um tapinha nos lábios.


"Você é o filho do conde de Saint Germain", disse ele, e fez uma
pausa, enquanto esperava uma reação. Fergus apenas olhou para
ele. Roger sentiu um pequeno filete de suor escorrer pela costura
de suas costas como a água de um cubo de gelo derretido.
"E o nome da sua mãe era Amélie Élise LeVigne Beauchamp."
Roger ouviu a inspiração repentina de Fergus.
"Você conhece esse nome?", Beauchamp parecia surpreso, mas
ansioso. Ele se inclinou para frente, o rosto intenso, rosado à luz
da lamparina.
"J’ai connu une jeune fille de ce nom Amélie", disse Fergus.
"Mais elle est morte."490
-.-.-

HOUVE UM MOMENTO de silêncio, quebrado apenas pelo


zumbido distante e agitado dos empregados domésticos da casa.
"Ela está morta." A voz de Beauchamp era gentil, mas Fergus
estremeceu um pouco, como se tivesse sido picado por uma
vespa. Beauchamp deu um longo e cuidadoso suspiro e se
inclinou para a frente.
"Você a conhecia, você disse."
Fergus assentiu com a cabeça, uma vez, um movimento
espasmódico bastante incomum para ele.
"Eu a conhecia pelo nome. Eu não sabia que ela era minha mãe."
Ele percebeu o olhar de surpresa de Roger com o canto do olho e
se virou para encará-lo, virando os ombros para Beauchamp, o
portador de notícias indesejáveis.
"Muitas crianças nascem em bordeis, mon frère, apesar das

490
Conheci uma jovem chamada Amélie. Mas ela está morta.
1022

tentativas incessantes de evitá-las. As que são bonitas o suficiente


para serem vendidas dentro de alguns anos são mantidas."
"E as outras?", Roger perguntou, não querendo ouvir a resposta.
"Eu era bonito o suficiente", Fergus respondeu laconicamente. "E
já que eu não me machucava facilmente, eu pude cuidar de mim
mesmo nas ruas." Olhando para baixo, Roger pôde ver que as
pontas dos sapatos de Fergus estavam cravadas com força no
tapete.
"Porque se há crianças, há prostituta com leite. Aquelas que
tinham... perdido um filho... às vezes amamentavam outros
bébés. Se uma prostituta fosse chamada para atender um cliente
e seu filho estivesse com fome, ela o entregaria a outra jeune fille.
Os pequenos chamavam qualquer prostituta de Maman", disse ele
baixinho, olhando para os pés. "Qualquer uma que os
alimentasse."
Ele não parecia disposto a dizer mais alguma coisa. Roger
pigarreou e Beauchamp olhou para ele como se estivesse surpreso
por encontrá-lo ainda ali.
"Como – e quando – Amélie Beauchamp morreu?", Roger
perguntou educadamente. "Durante um surto de dor de garganta
mórbida491", disse Beauchamp, no mesmo tom. "Eu – nós – não
sabemos exatamente quando."
"Eu entendo." Roger olhou para Fergus, que ainda estava olhando
para o padrão ramificado do tapete estampado, sem dizer nada.
"E, hum, Monsieur le Comte?"
Percival Beauchamp pareceu relaxar um pouco com a pergunta.
"Nós também não sabemos disso. Monsieur le Comte costuma
desaparecer de Paris por períodos variados de tempo: às vezes
dias, às vezes meses – de vez em quando por um ano ou mais,

491
Difteria.
1023

sem nenhuma pista de onde ele esteve. Mas a última vez que ele
foi visto foi há mais de vinte anos, e as circunstâncias de seu
desaparecimento são tão notáveis que a probabilidade de que ele
realmente esteja morto desta vez é suficiente para que um
magistrado indubitavelmente o declarasse morto, caso uma
petição para esse efeito fosse apresentada por seu herdeiro."
Mesmo com os cabelos úmidos de suor, Roger ainda o sentiu se
arrepiar no pescoço. Provavelmente também Fergus, que olhou
atentamente ao ouvir esta notícia.
"A menos que meu entendimento da lei na França tenha mudado
ultimamente, um bastardo não pode herdar propriedade. Ou
quando você diz herdeiro, você está falando de outra pessoa? "
Beauchamp sorriu para ele, um sorriso de felicidade
evidentemente genuíno e, pegando um pequeno sino de prata da
bandeja de refrescos, tocou-o. Dentro de instantes, a porta se
abriu, deixando entrar uma lufada de ar bem-vinda e luz do
corredor, bem como um cavalheiro alto em um terno cinza fino –
mas um terno de corte inglês, não francês. Roger achou que ele
devia ser advogado; ele parecia o personagem, com uma pasta de
couro enfiada debaixo do braço.
"Senhor Beauchamp", disse ele, com um aceno de cabeça para
Percival. "E você, senhor, deve ser Claudel, se posso usar seu
nome original."
"Você não pode, senhor." Fergus estava sentado com as costas
retas e posicionando os pés, claramente com a intenção de ir
embora. Roger achou que provavelmente era uma boa ideia e
começou a se levantar, apenas para ser interrompido pelo recém-
chegado, que estendeu uma das mãos e, com a outra, largou a
pasta e abriu-a.
Dentro havia apenas um documento, antigo, por sua aparência
manchada e amarelada. No entanto, tinha um grande selo de cera
1024

vermelha e várias assinaturas, assinadas com tantos floreios que


parecia que um polvo minúsculo havia mergulhado as pernas em
tinta e caminhado pela página.
No início do documento, porém, a escrita – em francês – era clara
e burocrática.

Contrato de casamento
Realizado neste dia, 14 de agosto, Anno Domini
Mil Novecentos e Trinta e Cinco, entre Amélie
Élise LeVigne Beauchamp, solteira, e Leopold
George Simòn Gervase Racokzì, le Conde St.
Germain492

"Você não é um bastardo", disse Percival Beauchamp, sorrindo


calorosamente para Fergus. "Permita-me parabenizá-lo, senhor."

-.-.-

FERGUS UNIU AS sobrancelhas, olhando para o documento,


depois olhou de soslaio para Roger. Roger fez um pequeno ruído
hem na garganta, significando vontade de seguir qualquer pista
que Fergus escolhesse, mas por outro lado permaneceu imóvel.
Ele olhou para o negus gelado; o decantador e os vidros estavam
cobertos de condensação e gotas de água começavam a deslizar
pelo vidro curvo. Teria sido uma delícia neste banho de vapor.
Beauchamp e o advogado seguravam, cada um, um copo do porto
gelado com açúcar, os olhos fixos na expectativa em Fergus,

492
No livro 7 cap 58, o nome que consta na certidão é Robert François Quesnay de St. Germain. Em
Espaço, o conde de St. Germain se apresenta como Paul Racokzi. Muitos nomes para uma mesma pessoa.
É proposital ou foi erro de revisão?
1025

prontos para brindar à revelação.


Fergus se endireitou e firmou os pés sob si.
"Posso ser um bastardo ou não, senhores, mas certamente não sou
uma criança."
Roger achou que era uma boa linha de saída e também conseguiu
se equilibrar, mas Fergus não se levantou. Inclinou-se para a
frente e pegou deliberadamente um copo de negus, que passou
debaixo do nariz com o ar de um rei obrigado a inspecionar um
penico.
"Aqui", disse ele a Beauchamp, que estava assistindo a isso com
a boca ligeiramente aberta. "Troque os copos comigo, s’il vous
plaît493." Apesar da polidez aberta, não era um pedido, e
Beauchamp, com as sobrancelhas quase tocando a linha do
cabelo, atendeu. Fergus silenciosamente indicou que Roger
deveria também trocar bebidas com o advogado e isso foi feito,
Roger se perguntando – não pela primeira vez – que diabos?
Fergus recostou-se na cadeira, relaxou e ergueu o copo.
"Para a honestidade, senhores, e a honra entre os ladrões."
Beauchamp e o advogado trocaram um olhar perplexo, mas então
piscaram e murmuraram o brinde, os copos levantados cerca de
um centímetro. Roger não se preocupou com o brinde, mas tomou
um gole e achou o negus tão bom quanto ele pensou que poderia
ser. Deslizou sedutoramente por sua garganta ressecada, frio e
quente ao mesmo tempo.
"Regardez494", disse Fergus, enquanto os copos baixavam. O ar
estava perfumado com Porto Rubi e as especiarias usadas no
negus; a atmosfera no salão sufocante tornou-se um pouco mais
tolerável.

493
Por favor.
494
Olhem.
1026

"Já que vocês estão tão familiarizados com meus assuntos


pessoais, senhores, presumo que saibam que lorde Broch Tuarach
me contratou por um período em Paris, para obter para ele uma
variedade de documentos úteis. Portanto, tenho visto muitas
coisas assim." Ele ergueu o copo para indicar o contrato de
casamento sobre a mesa, infundindo em sua voz um toque de
desprezo.
"Milord Broch Tuarach também produzia tais documentos, de
vez em quando, conforme surgiam situações que os exigiam. Eu
já vi isso acontecer, senhores, uma vez após outra, então vocês
me darão permissão para expressar algumas dúvidas a respeito
da... véracité deste documento em particular."
Uma parte da mente de Roger estava admirando o desempenho
de Fergus, enquanto outra estava observando de uma forma
abstrata que Jamie Fraser nunca poderia ter sido um falsificador:
canhoto, mas forçado desde a infância a escrever com a mão
direita – e essa mão recentemente esmagada, no momento a que
Fergus devia estar se referindo. Por outro lado, o próprio Fergus
era um falsificador muito talentoso, mas ele supôs que isso não
era algo para o qual Fergus queria chamar a atenção da sociedade
de Charles Town ...
O advogado parecia ter sido taxidermizado495 por alguém que o
odiava, mas Beauchamp cuspia negus enquanto balbuciava e
começava a protestar. Fergus olhou para Roger, que gentilmente
abriu o casaco para mostrar a faca e colocou a mão no cabo,
mantendo o rosto impassível.
Beauchamp congelou. Fergus acenou com a cabeça em
aprovação.
"Então, sim. E assim, senhores... digamos, para fins de

495
Taxidermia é a arte de montar ou reproduzir animais para exibição ou estudo. O termo ‘empalhar’ para
demonimar essa arte não é mais usado porque não se usam mais os modelos de palha para esse fim, mas é
ainda uma palavra mais conhecida.
1027

argumentação, que pessoas – menos perspicazes do que eu –


poderiam aceitar a veracidade deste documento. O que vocês
propõem fazer, caso eu estivesse disposto a aceitar isso?
Obviamente, vocês tinham algo em mente – algo que o herdeiro
de Monsieur le Comte poderia realizar por vocês, hã?"
A cor estava voltando ao rosto de Beauchamp, e o advogado
perdeu um pouco do estofo; eles trocaram olhares e alguma
decisão foi tomada.
"Tudo bem." Percival Beauchamp endireitou-se e tocou os lábios
manchados de vinho com um guardanapo de linho. "Esta é a
situação."
A situação, conforme explicada por Beauchamp com pequenas
interrupções do advogado, era que o conde St. Germain, um
homem muito rico, possuíra – bem, ainda possuía, tecnicamente
– a maioria das ações de um sindicato que investia em terras no
Novo Mundo. O principal ativo desse sindicato era um grande
pedaço de terra em uma área conhecida como Território do
Noroeste.
Fergus conseguiu parecer que sabia exatamente o que era, e muito
provavelmente sabia, mas soou apenas leves sinos de
reconhecimento para Roger. Era um monte de terra no extremo
norte e fazia parte do motivo pelo qual a Guerra Franco-
Indígena496 havia ocorrido. E os britânicos haviam vencido, ele
tinha certeza disso.
Evidentemente, os franceses – ou alguma porção dos franceses, a
quem Beauchamp se referia indiretamente como "nossos
interesses" – não estavam tão convencidos.
E agora que a França havia oficialmente entrado na guerra em
aliança com os americanos, os "interesses" de Beauchamp tinham
496
A Guerra Franco-Indígena foi um conflito ocorrido entre 1754 e 1763 entre os britânicos e os
franceses suas colônias na América do Norte. O livro Costume, da série de Lord John tem como pano de
fundo este conflito.
1028

em mente dar os primeiros passos para garantir pelo menos uma


posição segura no Território.
"Ao estabelecer a reivindicação do sr. Fraser sobre isso?", Roger
não tinha dito nada até este ponto, mas o puro espanto o compeliu.
O advogado lançou-lhe um olhar austero, mas Beauchamp
inclinou a cabeça graciosamente.
"Sim. Mas a reivindicação de um indivíduo sozinho
provavelmente não seria suficiente contra a voracidade dos
americanos. Portanto, nossos interesses ajudarão o sr. Fraser a
estabelecer colonos em suas terras – colonos de língua francesa,
que assim forneceriam substância para uma reivindicação da
França, uma vez que a guerra acabasse.
"Com isso", concluiu Beauchamp, "nossos interesses
comprariam o terreno de você – por uma quantia significativa."
"Se os americanos vencerem", disse Fergus, parecendo cético.
"Se não o fizerem, temo que seus interesses estejam em uma
posição precária. Assim como eu."
"Eles vão vencer." O advogado não tinha falado desde que os
cumprimentou, e sua voz assustou Roger. Era profunda e segura,
em contraste com o charme leve de Beauchamp.
"Você é um rebelde, não é, sr. Fraser?" O advogado levantou uma
sobrancelha para Fergus. "Essa é certamente a impressão que o
seu jornal dá. Você não tem fé em sua própria causa?"
Fergus ergueu o gancho e coçou delicadamente atrás de uma
orelha.
"Suponho que você tenha notado que as ruas estão cheias de
soldados continentais, senhor. Devo colocar minha família em
perigo ao expor confusão deles em letras impressas?"
Ele não esperou por uma resposta a esta pergunta, mas levantou-
se repentinamente.
1029

"Bonjour, messieurs", disse ele. "Vocês me deram muito em que


pensar."

-.-.-

ROGER SENTIA UM forte desejo de estar em qualquer outro


lugar e, portanto, não questionou Fergus quando ele mergulhou
de repente em um beco estreito entre duas casas, correndo por
ele, e ziguezagueando através de um portão para o quintal do que
parecia ser um bordel, a julgar pelas roupas penduradas
frouxamente no ar úmido. Ele ficou um tanto surpreso quando
Fergus, com uma palavra cordial a duas criadas negras dobrando
lençóis, subiu a escada dos fundos e entrou na casa sem bater.
"Senhor Fergus!", gritou uma jovem, vindo pelo corredor em sua
direção. A garota – meu Deus, ela não podia ter mais de doze
anos, não é? – se jogou afetuosamente nos braços de Fergus,
beijou-o na bochecha e depois virou a cabeça de maneira coquete
para Roger.
"Oh, você trouxe um amigo!"
"Permita-me apresentar meu irmão, o reverendo, mademoiselle.
Reverendo – mademoiselle Marigold."497
"Claro que é", Roger disse, recuperando o juízo bem a tempo de
fazer uma reverência à senhora, que recebeu sua homenagem com
um movimento recatado de suas pálpebras sombreadas.
"Recebemos um bom número de reverendos, senhor", assegurou
ela, rindo alegremente. "Não seja tímido. Lembre-se, todas nós
vimos um antes."
"Um... ", ele começou, bastante atordoado.
497
“Marigold” (tradução literal, ouro de Maria) é conhecida no Brasil como calêndula, malmequer ou
cravo-de-defunto. É bastante usada para decorar altares em diversas religiões e era usada como oferta à
Virgem Maria, ao invés de moedas de ouro.
1030

"Ora, um clérigo", disse ela, com um sorriso de covinhas. "Ao


menos um!"
Ela estava vestida com decência – para um bordel, corrigiu sua
mente. O que quer dizer que ela estava coberta, até os pés, que
estavam calçados com botas de couro elegantes. Ele não teve
tempo de considerar qual poderia ser a função dela no
estabelecimento – vestida com roupas caras demais para ser uma
empregada doméstica – antes que Fergus a colocasse de pé
gentilmente, mas com firmeza.
"A sala do segundo andar está disponível, chérie?"
Roger teve um momento para notar que a garota era negra, de cor
café com leite claro e com cabelos que pareciam cachos lisos de
caramelo de melaço. Ela também era um pouco mais velha do
que ele pensava – talvez no final da adolescência e com um brilho
astuto por trás do ar brincalhão.
"Se você não precisar de mais de uma hora", disse ela. "Alguém
está chegando às quatro horas."
"Isso será suficiente", Fergus assegurou-lhe. "Precisamos apenas
de um lugar para sentar e nos recompor. Embora eu suponha que
uma taça de vinho não esteja fora de questão, não é?"
Ela olhou para ele por um momento, a cabeça inclinada para o
lado como um pássaro avaliando se aquela folha caída poderia
esconder um verme suculento, mas então acenou com a cabeça,
com naturalidade.
"Vou mandar Bárbara com isso. Adieu, mon brave", disse ela, e,
beijando as pontas dos dedos, aplicou-os em seguida de surpresa
na bochecha de Roger antes de saltitar pelo corredor – que, ele
viu, não era diferente da casa de onde eles tinham acabado de sair,
embora a arte em exibição fosse consideravelmente melhor.
"Venha", Fergus murmurou, tocando seu braço.
1031

A sala do segundo andar era pequena e charmosa, com portas


francesas que se abriam para uma pequena varanda e longas
cortinas de renda que mal se mexeram no ar pesado quando eles
entraram.
"Eu sou um filho da casa, por assim dizer", disse Fergus,
sentando-se com um breve aceno de mão em direção à porta.
"Eu não perguntei", Roger murmurou, e Fergus riu.
"Você também não precisa perguntar se Marsali sabe sobre este
lugar", assegurou a Roger. "Não vou dizer que não tenho
segredos para minha esposa – acho que todo homem deve
necessitar de alguns segredos – mas este não é um deles."
O coração de Roger estava começando a desacelerar, e ele pescou
um lenço semi-limpo para enxugar o rosto. Ele se viu evitando o
pequeno ponto em que os dedos da senhorita Marigold haviam
tocado e o esfregou rapidamente antes de guardar o lenço.
"Os homens que acabamos de deixar", disse Fergus, enxugando
o próprio rosto. "Eu os reconheço.”
"Sim?"
"O almofadinha – este é Percival Beauchamp, embora eu acredite
que ele tenha usado outro nome – talvez mais de um. Ele se
aproximou de mim mais de uma vez com uma lenga-lenga
semelhante – que eu era filho de um homem nobre, tinha título
de terras..."498 Ele fez uma careta de desdém bem francesa, e
Roger, já entretido com as frases de efeito dele, fez uma careta
semelhante para não rir.
"Agora", Fergus continuou, inclinando-se mais perto e abaixando
a voz, "naquela época, ele estava atendendo o conde de La
Fayette como uma espécie de ajudante de campo. Eu o dispensei
– já o havia conhecido uma vez antes disso, e me recusei a falar

498
Fergus se encontrou com Percival Beauchamp nos livros 7 e 8.
1032

com ele – e ele chegou a me ameaçar. Chienne", acrescentou ele,


com desprezo.
"Chienne?", Roger perguntou, cuidadoso com a pronúncia.
"Você acha que ele é uma cadela?"
Fergus pareceu surpreso.
"Bem, há outras palavras", disse ele, e franziu a testa como se
tentasse convocar algumas, "mas com certeza você percebeu...?"
"Hã..." Uma onda de calor que não tinha nada a ver com a
atmosfera subiu por trás das orelhas de Roger. "Na verdade, não.
Eu só pensei que ele era um, hum, francês. Enfeitado, sabe?"
Fergus começou a rir.
Roger tossiu. "Assim. Você está dizendo que Percival, como quer
que se chame, é o que as pessoas na Escócia chamam de Nancy-
boy. Você acha que isso tem alguma coisa a ver com... a situação
presente?"
Fergus ainda fervilhava de alegria, mas balançou a cabeça.
"Oui, mas talvez apenas porque um homem com tais gostos –
quando eles são conhecidos, e claramente o são – não é confiável,
porque ele está sempre sujeito à ameaça de exposição pública.
Você deve olhar para o homem que o controla."
Roger sentiu um certo mal-estar. Bem, para ser sincero, ele estava
inquieto desde que entraram na casa da Hasell Street.
"Quem você acha que é?"
Fergus olhou para ele surpreso, depois balançou a cabeça em uma
leve reprovação.
"Eu lhe digo, mon frère, você precisa de muito mais experiência
nos campos do pecado, se deseja ser um bom ministro."
"Você está sugerindo que eu mande chamar a Srta. Marigold e
peça aulas?"
1033

"Bem, não", disse Fergus, rindo levemente. "Sua esposa iria...


mas não foi isso o que eu quis dizer. Só que a sua própria
bondade, que é inegável", ele sorriu para Roger, com um calor
em seus olhos que tocou Roger profundamente, "é uma coisa,
mas para ajudar aqueles do seu rebanho que carecem dessa
bondade, você precisa entender algo do mal e, portanto, da luta
que os aflige."
"Eu não diria que você está errado", disse Roger com cautela.
"Mas eu conheço mais de um clérigo que se meteu em sérios
problemas enquanto buscava esse tipo de educação."
Fergus ergueu um ombro, rindo.
"Você pode aprender muito com as prostitutas, mon frère, mas
concordo que talvez você não deva fazer essas perguntas sozinho.
Ainda assim", disse ele, sério, "não é isso que eu quis dizer com
mal."
"Não. Mas você disse que já cruzou com esse Percival antes. Ele
não me pareceu como -"
"Ele não é. Ele é uma prostituta; ele provavelmente sempre foi
uma durante toda a vida." Vendo a expressão de Roger, ele não
sorriu, mas um canto de sua boca se ergueu. "O que é que eles
dizem? É preciso um para reconhecer o outro."
Roger sentiu uma contração repentina dos músculos do
estômago, como se tivesse levado um soco leve. Ele sabia que
Fergus tinha sido uma criança prostituta em Paris, antes de
encontrar Jamie Fraser, que o contratou como um batedor de
carteira – mas ele havia esquecido.
"Monsieur Beauchamp está muito velho para vender a bunda, é
claro, mas ele vai se vender. Por necessidade", Fergus
acrescentou desapaixonadamente. "Uma pessoa que vive assim
por muito tempo deixa de acreditar que tem qualquer valor além
daquilo que alguém pagaria."
1034

Roger ficou em silêncio, pensando não tanto no recém-conhecido


Percival Beauchamp, mas em Fergus – e em Jane e Fanny
Pocock.
"Quando você diz mal, no entanto...", ele começou lentamente.
"Havia apenas dois homens naquela sala", Fergus disse
simplesmente. "Além de nós, quero dizer."
"Jesus." Ele tentou pensar no que o homem alto havia dito ou
feito que poderia ter dado a Fergus a convicção – e era uma
convicção, ele podia ver isso no rosto de Fergus – de que o
homem era mau. "Não consigo nem lembrar como ele era."
"Pela minha experiência, o Diabo raramente aparece e se
apresenta a você pelo nome", disse Fergus secamente. "Tudo o
que posso dizer é que reconheço o mal quando o vejo – e o vi
naquele homem."
Fergus se levantou e foi até a janela, puxando a cortina de renda
para olhar para fora. Ele tirou um grande lenço preto do bolso e
enxugou o rosto com ele. "Para que as manchas de tinta não
apareçam", disse ele brevemente, vendo Roger notar.
"Então o que você planeja fazer sobre... isso? Se é que vai fazer
alguma coisa?"
Fergus exalou fortemente pelo longo nariz francês.
"Você me diz que a cidade em breve cairá nas mãos dos
britânicos. Esses crétins me oferecem devaneios ridículos. Mas",
ele ergueu o gancho de forma a impedir Roger de interpor alguma
palavra, "eles têm dinheiro e são sérios. Eu simplesmente não sei
que tipo de negócio, e o anjo da guarda no meu ombro acha que
eu não quero descobrir."
"Homem sábio, seu anjo da guarda."
Fergus acenou com a cabeça e ficou imóvel, olhando para o rio à
distância enquanto ele cuidava de seus negócios tenebrosos.
1035

Depois de um momento, ele olhou para Roger.


"Brianna disse a Marsali que lorde John Grey havia prometido a
ela uma escolta militar para levá-la em segurança para
Savannah."
"Sim. Mas não precisamos disso. Ninguém vai incomodar uma
carroça cheia de crianças e chucrute."
"Não obstante." Fergus se levantou e tirou o casaco, puxando o
linho encharcado da camisa do peito. "Você pode pedir a sua
esposa para enviar um bilhete para lorde John imediatamente, por
favor? Peça a ele para enviar sua escolta o mais rápido possível.
Nós iremos com vocês. Acho que a impressora pode chamar a
atenção."
1036

75

NÃO HÁ
FUMAÇA SEM FOGO

BRIANNA ACORDOU DE REPENTE, no estado de


desorientação que ocorre quando você vai dormir em um lugar
estranho e não se lembra imediatamente de onde está. Ela estava
sonhando – sobre o quê? Seu coração estava disparado, e a
qualquer minuto iria...
Droga! As asas começaram a bater em seu peito, como um bando
de morcegos agitados presos em sua roupa. Ela se sentou,
praguejando baixinho, e bateu com força no peito, na esperança
de fazer seu batimento cardíaco voltar à regularidade; às vezes
funcionava. Não dessa vez. Ela colocou os pés para fora da cama,
plantou-os nas tábuas do piso frio e úmido e respirou fundo,
apenas para tossir e soltar um suspiro.
"Roger!" ela sussurrou o mais alto que pôde, tentando não
acordar as crianças para o pânico, e sacudiu-o pelo braço. "Roger!
Levante-se – estou sentindo cheiro de fumaça!"
Ela se lembrou agora de onde eles estavam. Eles estavam
dormindo no sótão, e com os olhos não mais nublados pelo sono,
agora ela podia ver a fumaça que estava sentindo, fios brancos
deslizando pela borda do sótão como fantasmas, movendo-se
silenciosamente, mas com uma velocidade horrível.
"Jesus Cristo!" Roger estava de pé, nu e desgrenhado; ela podia
vê-lo na luz fraca das nuvens pelas aberturas. "Maldito inferno!
Desça e desperte todo mundo. Eu vou pegar as crianças." Ele
estava se movendo no momento em que disse isso, arrebatando
uma camisa de uma pilha de Bíblias baratas.
1037

Um grito de puro terror vindo de baixo cortou o ar, seguido por


um instante de silêncio atordoante, e então muitos gritos, em
francês, inglês e gaélico, além de gritos agudos dos bebês.
"Eles estão acordados", disse ela, e empurrando Roger correu
para pegar Mandy, que estava sentada em seu ninho de colchas,
com os olhos semicerrados e zangada.
"Você é muito barulhenta", disse ela em tom de acusação para a
mãe. "Você me acordou!" Brianna reprimiu a vontade de dizer:
"Você pode dormir quando estiver morta" e em vez disso agarrou
Esmeralda e empurrou-a nos braços de Mandy. Ela podia ouvir
Roger, atrás dela, tentando despertar Jemmy, que estava morto
para o mundo e planejava ficar assim. "Vamos lá", disse ela para
Mandy, que estava lentamente tirando algum tipo de penugem de
sua roupa. "Você pode fazer isso mais tarde. Segure firme!"
Com Mandy gemendo e se agarrando ao pescoço como um gibão
esquisito e Esmeralda um pedaço sólido esmagado entre elas, ela
desceu a escada com uma mão para trás, os dedos dos pés
descalços se curvando para manter o equilíbrio nos degraus
desgastados por inúmeros pés. O cheiro de fumaça estava mais
forte agora, mas não sufocando, ainda não... Gavinhas passaram
por ela em direção ao teto, enrolando-se em nuvens de
crescimento lento sob as vigas enquanto ela olhava para cima.
"Saia, saia! ", alguém estava berrando, mais alto do que o resto,
e quando ela atingiu o pé da escada e se virou, viu Germain, louco
de medo e furioso com isso, puxando uma de suas irmãs – pelos
cabelos – e gritando em direção à porta, chutando a outra que
estava cambaleando no chão, evidentemente procurando por
alguma coisa. "Va-t’en, j’ai dit!499", ele estava gritando. “Mova-
se salope500! MOVA-SE!"

499
Saia (vá embora), eu disse.
500
Vagabunda
1038

"Germain!"
Marsali, de rosto branco, tinha os dois bebês nos braços, uma
bolsa de couro pressionada entre eles. Germain a ouviu e se virou,
seu rosto dez anos mais velho do que ele próprio, esculpido com
terror e determinação.
“Je ne laisserai pas ça se reproduire501”, disse ele a Marsali, e
empurrou Félicité com força em direção à porta, então se curvou
e puxou Joanie do chão, lutando com ela para fora enquanto ela
gemia e se debatia. Houve um estalo alto repentino e um baque;
Brianna se virou para ver Roger e Jem amontoados no chão, a
escada inclinada para o lado, um degrau solto onde cedeu sob
seus pesos combinados.
"Levante-se, Pa! Mama, mama!" Jem correu para ela e se
agarrou. Ela o agarrou com um braço e o abraçou com força,
então o soltou e o empurrou em direção à porta aberta. O ar úmido
da noite soprou no quarto, um frescor bem-vindo – e um perigo
instantâneo, Bree viu, observando a fumaça girar em um frenesi
quando o ar frio a tocou. Roger estava agachado sobre um joelho
ao pé da escada, tentando se levantar.
"Leve Mandy para fora", ela disse para Jem, que estava parado
no meio do chão, parecendo perdido. "Agora." E empurrando
Mandy e Esmeralda em seus braços, ela correu para Roger e
agarrou seu braço, colocou um ombro embaixo dele e de alguma
forma conseguiu colocá-lo de pé, e então eles estavam se
arrastando e cambaleando como pessoas em uma corrida de três
pernas, batendo em balcões e derrubando mesas, livros, papéis ...
Meu Deus, todo o lugar vai arder como uma tocha...
E então eles estavam lá fora, na rua, todos eles tossindo,
chorando, se tocando, contando cabeças sem parar.

501
Eu não vou deixar que aconteça de novo.
1039

"Onde está Fergus?", Roger perguntou, com voz rouca.

-.-.-

ROGER ENCONTROU FERGUS alguns momentos depois, nos


fundos da gráfica, apagando os últimos fragmentos de um
pequeno incêndio que havia sido aceso encostado à porta dos
fundos. A porta em si estava carbonizada na parte inferior, mas
os únicos vestígios restantes do fogo eram uma grande mancha
preta no chão, alguns pedaços espalhados de brasa acinzentada e
uma pequena nuvem de cinzas e pedaços de papel meio queimado
que voavam como uma nuvem de mariposas pretas e brancas ao
redor dos pés de Fergus, que os batia forte.
"Merde", disse Fergus, notando Roger.
"Mais oui", Roger respondeu, tossindo levemente com a fumaça
que se espalhava. "Um de seus concorrentes?" Ele acenou com a
cabeça para a porta meio queimada, onde alguém havia pintado
as palavras DA PRÓXIMA VEZ com cal gotejante.
Fergus balançou a cabeça, os dentes cerrados. Seus cabelos
estavam em pé e, como Roger, ele vestia apenas uma camisa de
dormir, embora tivesse tido a presença de espírito de calçar as
botas antes de sair correndo. O fogo estava apagado, mas Roger
sentiu o calor da porta fumegante em suas pernas nuas.
"Legalistas", disse Fergus brevemente, e tossiu com força. Roger
sentiu as cócegas da fumaça na própria garganta e pigarreou na
esperança de sufocá-la; tossir ainda doía.
"Marsali e Bree e os pequeninos estão bem", disse Roger. Fergus
acenou com a cabeça, pigarreou e cuspiu nas cinzas.
"Eu sei", disse ele, com um leve relaxamento de seu rosto
enrugado. "Eu as ouvi xingando. Les femmes sauvages."
1040

Roger não tinha percebido os xingamentos, mas não duvidou.


"Eles já tentaram antes?", ele perguntou, erguendo o queixo para
a porta manchada de tinta. Fergus ergueu um ombro em um dar
de ombros gaulês.
"Cartas. Sujeira. Uma sacola cheia de ratos mortos. Outra bolsa
com uma serpente viva –felizmente era uma cascavel e não uma
cobra boca-de-algodão. Marsali a ouviu antes de pegar a sacola."
"Jesus Cristo." Era algo entre uma maldição e uma oração, e
Fergus acenou com a cabeça, apreciando ambas.
"Les enfants savent qu’il ne faut rien toucher près de la porte502",
disse ele com naturalidade. Ele respirou fundo e lentamente e
bateu a cabeça na porta. "Este é..." Seus lábios se apertaram e ele
olhou para Roger. "Você sabe, milady e milord lhe disseram,
espero. O que... aconteceu ao nosso pequeno. Henri-Christian."
O nome veio hesitante, como se já tivesse passado muito tempo
desde que Fergus o falara em voz alta.
"Eu soube", disse Roger, um nó na garganta fazendo as palavras
saírem baixas e sufocadas. Ele limpou com força. "Idiotas
covardes do caralho!"
"Se você quiser chamá-los assim." Fergus estava com a boca
branca. "Covardes, certamente. Canaille!" Ele chutou a porta
com tanta força que ela estremeceu no batente. Recuperando-se
do choque e do pânico, Roger percebeu que sua raiva aumentava.
"Esses merdas! Atear fogo onde sua família mora, seus filhos!"
E os meus…
"Como um aviso, é muito mais eficaz do que notas anônimas
empurradas por debaixo da porta." Fergus respirava pesadamente
e parou para tossir, balançando a cabeça. Ele olhou para Roger,
os olhos injetados de sangue. "Se eu descobrir quem fez isso, vou

502
As crianças sabem que não devem tocar em nada perto da porta.
1041

amarrá-los em um saco, remar para o mar e jogá-los vivos aos


tubarões, juro em nome de Deus e da Virgem."
"E eu vou ajudá-lo a fazer isso." Ele teria que fazer isso, ele
pensou; Fergus não conseguia remar com uma só mão.
"Merci." Fergus olhou desolado para o canto da casa; os gritos e
choro das crianças assustadas na rua do outro lado haviam
diminuído, abafados pelos sons de passos correndo e
exclamações. "Eu vou descobrir", ele disse, repentinamente
calmo. "Mas agora devo ir até Marsali."
Jesus, o que a ideia de outro incêndio teria feito com ele e
Marsali... as meninas ... Ele sentiu o sangue gelar nas veias com
o pensamento. Fergus estava observando seu rosto. Ele acenou
com a cabeça, seu próprio rosto sóbrio agora, e juntos foram
encontrar suas esposas e filhos.

-.-.-

HAVIA MUITO CLISHMACLAVER503 acontecendo do lado de


fora da gráfica. Faltava uma hora para o amanhecer e mal havia
luz suficiente para ver Marsali, Bree e todas as crianças, levadas
para o outro lado da rua e amontoadas no escuro como uma
manada de pequenos bisões.
Germain, com Jemmy fortemente ao seu lado, estava parado na
frente das mulheres e crianças, os punhos cerrados e seus rostos
também, parecendo não conseguir decidir se choravam ou batiam
em alguém. Fergus exalou por entre os dentes, deu um tapinha no
ombro de Germain e foi pegar um dos gêmeos de Marsali, que os
segurava com força. Fergus disse algo muito baixo para ela em
francês, e Roger voltou-se com tato para Bree, que se sentou na
calçada de madeira e reuniu as três meninas ao seu redor. Fizzy
503
Fofoca, falatório em scots.
1042

estava se agarrando à roupa de Bree e fungando, e Joanie, que


costumava ser prática, estava trançando os cabelos de Mandy.
"Tudo bem com vocês?", Roger disse, e apoiou a mão na cabeça
de Brianna, os cabelos dela frios e úmidos na névoa da manhã
vinda do porto.
"Ninguém morreu", disse ela, e deu uma risadinha trêmula. "Sabe
o que aconteceu?"
"Mais ou menos. Mas contarei mais tarde. "
Outras pessoas estavam chegando, algumas em suas roupas de
dormir, outras a caminho (ou vindo) do trabalho: padeiros,
taberneiros, trabalhadores, pescadores. Duas prostitutas estavam
agrupadas sob uma árvore, cochichando uma com a outra e
olhando da gráfica para a família.
Para surpresa de Roger, Fergus não fez nenhuma tentativa de
manter o sigilo. Ele contou a todos exatamente o que havia
acontecido – e o que pretendia fazer com os maudit chiens504 que
haviam atacado sua família e seu sustento.
Roger, percebendo, vasculhou os rostos enquanto a luz começava
a se infiltrar lentamente no nevoeiro, procurando por alguém que
parecesse maliciosamente satisfeito ou sabido demais. Todos
pareciam honestamente chocados, no entanto. Uma mulher meio
alta e bonita de meia-idade que, pelo seu vestido, não poderia ser
outra coisa senão a dona de uma próspera taverna, foi até Marsali
e pediu-lhe que trouxesse os bebês e viesse comer alguma coisa
no café da manhã.
"Por conta da casa", acrescentou ela, olhando para as crianças e
obviamente calculando o custo de seus apetites.
"Bem, agradeço gentilmente, senhora Kenney", disse Marsali.
Ela olhou para Fergus e tossiu um pouco. "Se você nos der um

504
Malditos cachorros.
1043

momento para ir colocar algumas roupas?"


O comentário fez Roger perceber que estava parado na rua,
descalço, vestindo apenas uma camisa. Ele ajudou a recolher as
crianças e, quando elas começaram a se arrastar de volta pela rua
em direção à casa ameaçada, ele viu que Marsali carregava várias
bolsas de letras tipográficas, evidentemente tiradas da caixa de
tipos, debaixo do braço. Pareciam pesados e ela o deixou tirá-los
dela, suspirando de alívio ao fazê-lo.
"Você sabe o que levaria se a casa estivesse em chamas", disse
ele, tentando ser engraçado.
"Sim, bem", disse Marsali, dobrando o cobertor enrolado em
torno do gêmeo que ela estava segurando. "Cheira um pouco
melhor do que chucrute, certo?"
Quatro dias depois...

BRIANNA pegou um bocado do vestido que pretendia usar e o


levou com cautela ao nariz. Ela o havia pendurado em um gancho
no armário de ventilação, junto com o vestido e o avental de
trabalho de Marsali, esperando pelo melhor. O armário em si não
era mais do que um caixão de pé, construído encostado na parede
do quarto e perfurado com dezenas de orifícios na parede externa,
para deixar o ar noturno dissipar o máximo do cheiro de fuligem,
verniz, tinta, gordura de cozinha e regurgitação infantil quanto
possível, antes que as roupas fossem retomadas na manhã
seguinte.
"Tudo bem?", Marsali perguntou, a cabeça loira desgrenhada
emergindo de seu traje noturno.
"Bem, não cheira muito a chucrute", disse Bree, inalando com
força, e Marsali deu uma risada e enfiou a mão no armário,
agarrando seu vestido de trabalho, um vestido caseiro cinza e
amarelo pálido com um corte severo que fez Brianna pensar, em
1044

particular, em um uniforme da Guerra Civil.


"Você estará bem ao ar livre até chegar a Savannah," Marsali
assegurou-lhe. "E os soldados não vão se importar." Ela entregou
a Brianna um par de anáguas e continuou a se vestir, seus dedos
rápidos com fitas, laços e botões. Era um pouco antes do
amanhecer e elas falavam em sussurros, para não acordar as
crianças antes do necessário. Lá embaixo, batidas e risadinhas
abafadas e embaralhadas sinalizaram os preparativos de Roger e
Fergus para o dia.
Os soldados que lorde John havia enviado já estavam do lado de
fora; Brianna os tinha visto do loft onde os MacKenzie estavam
dormindo, um pequeno grupo de homens postados juntos no beco
atrás da loja. Eles haviam assumido posição a uma pequena
distância da casa, fumando cachimbos que brilhavam brevemente
no escuro enquanto se moviam, e murmuravam uns para os
outros, figuras sombrias perceptíveis como soldados apenas pelas
longas formas pretas de seus mosquetes, empilhados contra uma
parede que tinha começado a emergir da noite.
Ela não podia vê-los do quarto – as taxas de impostos sobre
janelas sendo o que eram, as únicas janelas da casa eram as
grandes vidraças da frente da gráfica – mas um leve cheiro de
tabaco a alcançou através dos orifícios do armário de ventilação
e ela exalou nitidamente. Levaria muito tempo antes que ela
parasse de cheirar chucrute, mas pelo menos os barris fedorentos
não a acompanhariam e as crianças até Savannah.
Tanto o uísque quanto o ouro restante, cuidadosamente
reembalados como uma caixa de peixe salgado, foram
discretamente levados para um armazém cujo dono era um Filho
da Liberdade. E, embora ela ainda tivesse algumas das tiras finas
de ouro costuradas em suas roupas, não era o suficiente para se
tornar realmente suspeito, mesmo que alguém descobrisse uma
das tiras.
1045

Muito insuficiente para comprar armas, ela pensou, e


estremeceu, embora Marsali tivesse acabado de acender o fogo
do quarto. Um grito abafado do cômodo ao lado fez Marsali
largar o atiçador e se apressar, afrouxando o espartilho recém-
vestido enquanto o leite subia em seus seios. Bree viu as manchas
úmidas brotando na combinação de Marsali; ela podia sentir isso
como uma memória simpática, seus próprios mamilos inchando
contra o espartilho.
"Mãe?", disse Jemmy, enfiando a cabeça para dentro da sala. O
fogo recém-aceso deu brilho aos seus cabelos e sombreou seus
ossos, e de repente ela viu como ele seria, quando crescido.
Humor rápido e uma ferocidade latente transpareceram em seu
rosto, e a visão disso a atingiu no coração.
Guerreiro. Oh Deus…
Ela fechou os olhos e enviou um rápido apelo apaixonado à
Virgem Mãe. Por favor! Mantenha-o fora disso!
Um pensamento calmante veio, talvez em resposta. Dois anos.
Quase exatamente dois anos para a Batalha de Yorktown e o fim
da guerra. Apenas dois anos. Jem tinha nove anos e aos onze
ainda seria muito jovem para lutar. Ela afastou a visão repentina
de um menino soldado com seu tambor...
"Sim querido?", ela disse, colocando as pontas de seu lenço para
dentro do corpete. "Você e Mandy estão prontos?"
Ele encolheu os ombros. Como ele poderia saber?
"Papai quer saber se você vai precisar de uma das pistolas." Ele
falou casualmente; não era grande coisa. Ela estava viajando
armada desde a Cordilheira e pensou pouco nisso – mas agora
havia soldados do lado de fora, soldados inimigos, esperando
para levá-la e a seus filhos embora.
"Diga a ele que sim", disse ela. "Acho melhor eu ficar com uma."
1046
1047

76

UM LADRÃO NA NOITE

Cordilheira dos Fraser

JAMIE ACORDOU DE SUPETÃO, seu coração batendo forte e


sua mente cheia de sonhos despedaçados. Havia uma vaga
lembrança de fúria; ele estava lutando, querendo lutar contra
alguém... mas não era a raiva pulsando por ele, ou não
inteiramente... Ainda estava escuro, as venezianas fechadas e o ar
quente e amargo com o cheiro das cinzas da lareira fumegante.
"Hummf..." Claire se mexeu brevemente ao lado dele, então
relaxou e voltou a dormir com um suspiro.
"Sassenach", ele sussurrou, e colocou a mão em seu quadril
quente. Ele se sentiu culpado por despertá-la, mas sua
necessidade por ela era esmagadora.
"Anng?"
"Eu preciso...", ele sussurrou, já deslizando atrás dela, remexendo
nos lençóis, sua camisola, sua camisa – ele se levantou e arrancou
a camisa, jogou-a no chão, e então se deitou novamente, puxou
para cima a camisola dela e colocou um braço sobre ela,
apertando-a junto a ele, urgente.
Ela deu um suspiro sonolento de surpresa, mas então fez um
pequeno movimento acomodando seu traseiro nu e relaxou
novamente, se abrindo para ele.
1048

Ela estava surpreendentemente escorregadia, como se ela tivesse


compartilhado seu sonho lascivo, e talvez ela... Ele entrou nela o
mais devagar que pôde, mas não podia esperar.
"Sinto muito", ele sussurrou em seu cabelo, movendo-se nela,
incapaz de pensar, de falar... "Eu tenho que..." Ela não estava
completamente acordada, ele poderia dizer, mas seu corpo era
complacente, cedendo à sua importunação. Ele parou de falar e
enterrou o rosto nos cabelos dela, segurando-a firme e
balançando-se com força, as costas dela quentes contra seu peito
e sua pele fria se arrepiando quando sentiu a onda vir e cedeu a
ela, estremecendo e ofegando enquanto ela pulsava por ele.
"Sinto muito", ele sussurrou novamente, alguns momentos
depois. Ela estendeu a mão para trás, tateando às cegas, encontrou
a perna dele e deu-lhe um tapinha breve. Ela bocejou,
espreguiçou-se um pouco e voltou a dormir, seu traseiro nu
aconchegante e quente na curva úmida de suas coxas.
Ele adormeceu como se tivesse sido jogado de cabeça para baixo
em um poço e dormiu sem sonhar até acordar um pouco antes do
amanhecer – antes dos galos.
Ele ficou quieto, observando a luz fraca começar a brilhar entre
as venezianas e desfrutando da sensação momentânea de paz
profunda. Claire ainda estava dormindo, sua respiração lenta e
regular e seus cabelos caindo sobre o travesseiro como fumaça.
A visão de seu ombro, descoberto onde sua roupa noturna havia
escorregado, trouxe de volta a sensação de urgência da meia-
noite, e ele sentiu uma mistura de sensações – de vergonha e
exultação.
Ele não se preocupou em procurar sua camisa durante a noite, e
seus próprios ombros estavam frios, o fogo abafado ainda não
havia sido avivado. Movendo-se com cuidado, para deixá-la
dormir enquanto podia, ele puxou a colcha sobre os dois e ficou
1049

imóvel, os olhos semicerrados.


Sua mente parecia tão preguiçosa quanto seu corpo, não
formando pensamentos reais, mas permitindo que fragmentos
ociosos de fantasia e memória vagueassem como folhas
carregadas pela corrente de uma burn505 nas Terras Altas. E entre
as lembranças de sonhos lembrados, ele viu um rosto. Óculos de
aro preto, um rosto aberto e perscrutador na parte de trás de um
livro...
Um rosto que se ergueu acima do seu, sem óculos, procurando,
tentando fixar seu olhar, para fazê-lo olhar, olhar o que...
Seus olhos se abriram em choque. Lá fora, o primeiro galo
começou a cantar.
-.-.-

"POR QUE VOCÊ nunca me disse que Frank Randall se parecia


com Black Jack506?", Jamie perguntou abruptamente.
"O quê?" Eu me perguntei o que o estava incomodando; ele tinha
saído antes que eu estivesse vestida e sem seu café da manhã.
Agora já passava do meio-dia, ele não tinha almoçado ainda e
entrou no meu consultório sem hesitação ou saudação para me
perguntar isso?
"Bem... " Eu tentei organizar meus pensamentos o suficiente para
formular uma resposta coerente; obviamente, ele precisava de
tanta verdade quanto eu pudesse lhe dar. "Bem, para começar –
ele não era, realmente. Quer dizer – a primeira vez que vi Jack
Randall, fiquei surpresa com a semelhança", e algumas vezes
depois disso, "mas isso pareceu passar. É – era", eu me corrigi,
"apenas uma semelhança física superficial, e uma vez que
conheci Jack Randall..." Uma sensação surpreendentemente fria
505
Fonte de água, nascente ou pequeno curso d’água. Em scots.
506
Isso já foi comentado no cap 20.
1050

se concentrou na minha nuca, como se o cavalheiro em questão


estivesse parado atrás de mim, os olhos fixos em mim. "Ele não
me lembrava o Frank em absoluto."
Eu o examinei cuidadosamente. Ele estava como de costume na
noite anterior – ou mais; ele fez amor comigo durante o sono,
silenciosa, rápida e vigorosamente, e então me agarrou em seu
peito e caiu no sono instantaneamente com um murmúrio "Taing,
mo ghràidh. Eu sinto muito."
Eu também caí no sono, quase imediatamente, sentindo uma
fricção agradável e um brilho em minhas partes internas e a batida
lenta e constante de seu coração contra minhas costas. Não que
ele nunca tivesse feito nada parecido antes, mas já fazia algum
tempo que não acontecia.
"Além disso", eu disse lentamente, "você viu aquela foto de
Frank no livro. Você não viu a semelhança por si mesmo então?"
"Não." Ele pareceu perceber que estava pairando sobre mim e,
com um gesto impaciente, puxou um dos meus banquinhos e se
sentou.
"Não", ele repetiu. "E agora estou me perguntando por que não.
É talvez o que você diz – que o que... Frank é – o que ele era",
ele se corrigiu, "se mostra em seu rosto. Jack Randall se escondia,
mas uma vez que você o via olhar para você como... o que ele
era... você nunca o veria de outra forma, não importa quão
elegantes fossem suas roupas ou quão civilizados fossem seus
modos."
"Sim." Estremeci involuntariamente e peguei meu xale verde,
envolvendo-o nos ombros como se pudesse ser uma proteção
contra a memória do mal. "Mas – por que a semelhança de família
impressionou você agora?"
"Mmphm." Três dos dedos restantes de sua mão direita
tamborilaram silenciosamente em seu joelho, e eu podia sentir
1051

sua luta para colocar o que sentia em palavras.


"Aconteceu... alguma coisa?", eu perguntei com cautela,
pensando naquele apressado acasalamento da meia-noite. Esse
parecia o único evento ligeiramente incomum de que eu
conseguia me lembrar, mas falhei totalmente em ver qualquer
conexão.
Jamie suspirou.
"Sim. Pode ser. Não sei ao certo. É só que... eu estava sonhando."
Ele me viu reagir a isso e fez um leve gesto para eu me acalmar.
"Não um dos ruins. Apenas pedaços de bobagem. Sonhei que
estava lendo um livro e... bem, eu estava lendo um pouco antes
de ir para a cama."
"O livro de Frank, você quer dizer."
"Sim. O que eu estava lendo no sonho não fazia sentido, mas...
entrava e saía, entende, como os sonhos fazem? E começou a
parecer que o livro estava falando comigo, e então era o próprio
homem – apenas pequenos pedaços de conversa e então eu estava
lendo novamente, ou... eu estava em outro lugar."
Ele esfregou a mão com força no rosto. Eu não sabia se ele estava
tentando apagar o sonho ou trazê-lo à superfície.
"Eu estava olhando para o rosto dele, vendo seus olhos por trás
dos óculos. Gentil. Decente. Me contando coisas sobre história.
E então eu vi Jack Randall, sentado atrás de sua mesa, olhando
para mim, suave e civilizado, como se ele pudesse estar
perguntando se eu queria açúcar no meu chá, mas o que ele estava
perguntando era se eu preferia ser estuprado ou açoitado até a
morte."
Inclinei-me para a frente e peguei sua mão; seus dedos se
curvaram ao redor dos meus de uma vez e os apertaram
levemente para me tranquilizar. Não tinha sido "um dos ruins",
1052

os sonhos que o deixavam suando e incapaz de ser tocado.


"Você sabia que era um sonho, então?", arrisquei. "Você não
estava... hã... vivendo lá, quero dizer?"
Ele balançou a cabeça, negando, os olhos no chão.
"Não, mas foi então que de repente percebi o quanto eles eram
parecidos e acordei me perguntando por que você nunca
mencionou isso."
"Francamente, eu... " Eu sorri, apesar de tudo, e comecei de novo.
"Quer dizer, no início não vi necessidade e, depois, achei que
você pudesse ficar... chateado. Ou preocupado. Saber que o
homem com quem fui casada se parecia tanto com Jack Randall."
Ele assentiu com a cabeça um pouco, considerando isso.
"Eu poderia ter ficado. E como você diz – sem motivo, afinal.
Você era minha."
Ele ergueu a cabeça ao dizer isso e, embora houvesse calor em
seus olhos, sua boca havia se firmado de uma forma muito
determinada.
"Oh!", eu disse, de repente cara a cara com exatamente o que eu
experimentei cegamente nas profundezas almiscaradas da noite
anterior. Ele acordou com Frank em sua mente e prontamente me
reivindicou. "Então é por isso que você ficava dizendo que sentia
muito!"
Ele me lançou um olhar no qual o acanhamento se misturou a um
certo desafio.
"Bem, eu me senti mal por acordá-la, mas... eu tive que... que..."
Ele fez um gesto breve, mas muito explícito, com o polegar na
palma da minha mão, o que trouxe sangue quente inundando meu
rosto.
"Oh", eu disse novamente. Percebi que ele não estava
perguntando se eu tinha me importado. Um ponto discutível, já
1053

que eu não tinha. Eu cruzei meus dedos em torno de seu polegar


grande e quente. "Bem."
Ele sorriu para mim, se inclinou e beijou minha testa.
"Claire", ele disse suavemente. "Você é minha vida. Fuil m 'fhuil,
cnàmh mo chnàimh." Você é o sangue do meu sangue e o osso do
meu osso, ele disse em gaélico. "Se Frank sentia tanto por você e
por saber que eu a tirei dele – e ele sabia que eu tinha – então ele
teria um bom motivo para tentar me machucar ou matar."
Puro espanto me silenciou por um momento.
"Você acha – quero dizer... não." Eu neguei com a cabeça com
força. "Não. Mesmo se você estiver certo sobre esse livro – e eu
não acho que você esteja – como ele poderia saber que Brianna o
traria para o passado e que você o veria? Além disso... como algo
em um livro pode matar você?"
"E, além disso", acrescentei com firmeza, sentando-me ereta e
cruzando as mãos sobre o joelho, "qualquer que seja a
semelhança que seu sonho tenha mostrado a você, Frank não era
nada como Jack Randall. Ele era um homem muito bom. Mais
importante, ele era um historiador. Ele não poderia – ele
realmente não poderia – escrever algo que sabia ser falso."
Jamie estava me olhando com um leve sorriso.
"Percebi que você não está dizendo que ele não valorizava você
tanto quanto eu."
Eu teria dado muito para ser capaz de fazer um barulho escocês
apropriado em resposta a isso, mas algumas coisas estavam além
de minhas capacidades. Em vez disso, estendi a mão e peguei sua
mão mutilada entre as minhas, traçando levemente a cicatriz
grossa e branca onde seu quarto dedo tinha estado. Eu limpei
minha garganta.
"Você me mandou de volta para ele", eu disse, tentando impedir
1054

minha voz de falhar. "Quando você pensou que seria perigoso


para mim e para o bebê ficarmos. Ele sabia que você não estava
morto e não me contou." Eu levantei sua mão e a beijei.
"Vou queimar aquele maldito livro."
1055

77

CIDADE DO AMOR FRATERNAL507

Filadélfia

IAN ENCONTROU A CASA que tio Jamie lhe pedira, no final


de uma estradinha de terra irregular fora da estrada principal da
Filadélfia. Tio Jamie havia dito que era uma família pobre, e a
casa parecia isso mesmo. E também parecia deserta. Alguns dos
primeiros flocos de neve caíam de forma irregular, mas não havia
fumaça na chaminé. O quintal estava coberto de vegetação, o
telhado caído, metade das telhas rachadas ou curvadas, e a porta
tinha a aparência de que quem morava lá tinha o hábito de entrar
na casa chutando-a.
Ele desceu do cavalo, mas parou por um momento, pensando. As
instruções de seu tio foram claras o suficiente, mas pelas coisas
que o tio Jamie não disse, também ficou claro que a sra. Hardman
poderia receber visitantes ocasionais do sexo masculino de uma
disposição possivelmente perigosa, e Ian não queria entrar em
nada inesperado.
Ele amarrou o castrado frouxamente a uma pequena árvore de
olmo que se inclinava como um bêbado sobre a estrada e
caminhou silenciosamente pelo mato além dela. Ele pretendia ir
até a casa pelos fundos e ouvir os sons de ocupação, mas ao
dobrar a esquina da casa, ele ouviu o som fraco do choro de um
bebê. Não estava vindo de casa, mas de um galpão dilapidado nas
proximidades.

507
Philia, em grego antigo, significa amor fraternal ou entre amigos, algo parecido com amizade. Delphi é
uma cidade grega antiga, conhecida pelo oráculo localizado no templo dedicado ao deus Apolo. Na
origem, a palavra significa “útero”. Philadelphia, então, significa cidade ou recinto do amor fraternal.
1056

Assim que ele se virou naquela direção, o grito cessou


abruptamente, interrompido no meio de um lamento. Ele já sabia
o suficiente sobre bebês para ter certeza de que a única coisa que
calaria uma criança infeliz de forma tão abrupta seria algo enfiado
em sua boca, fosse um seio, um pedaço de açúcar ou o polegar de
alguém. E ele não achava que a sra. Hardman estaria alimentando
sua wean no galpão.
Se alguém parou o choro do bebê, provavelmente já o teria visto.
Ele havia tomado a precaução de carregar e preparar sua pistola
no final da pista e agora a sacou.
"Não atire! Não atire!"
As palavras não foram gritadas, mas sibiladas, em algum lugar
perto do nível de seus joelhos. Ele olhou para baixo, assustado, e
viu uma jovem, agachada sob um arbusto, um xale esfarrapado
em volta dos ombros para se aquecer.
"Ah... suponho que você seja a srta. Hardman?", perguntou ele,
colocando a pistola de volta no cinto. "Ou uma delas?"
"Eu sou Patience Hardman." Ela se curvou com cautela, mas
encontrou seus olhos diretamente. "Quem és tu?"
Ele tinha encontrado o lugar certo, então. Ele se agachou
amigavelmente na frente dela.
"Meu nome é Ian Murray, moça. Meu tio Jamie é amigo de sua
mãe – se o nome de sua mãe é Sílvia, é isso?"
Ela ainda estava olhando para ele, mas seu rosto congelou em
uma expressão de antipatia quando ele mencionou o tio Jamie.
"Vai-te embora", disse ela. "E digas ao teu tio para parar de vir
aqui."
Ele a examinou cuidadosamente, mas ela parecia estar em seu
juízo perfeito. Rústica como uma cerca de madeira, mas bastante
sensata.
1057

"Acho que podemos estar falando de homens diferentes, moça.


Meu tio é Jamie Fraser, da Cordilheira dos Fraser, na Carolina do
Norte. Ele ficou com sua família por um ou dois dias faz uns..."
Ele contou para trás em sua cabeça e encontrou uma
aproximação. "Teria sido talvez duas semanas antes da batalha
em Monmouth; você já ouviu falar disso?"
Evidentemente que sim, pois ela saiu do arbusto com tanta pressa
que este se agarrou aos seus cabelos castanhos e flácidos e ao xale
surrado e ela saiu dele coberta de folhas mortas.
"Jamie Fraser? Um homem escocês muito grande, de cabelos
ruivos e costas ruins?"
"É esse mesmo", disse Ian, e sorriu para ela. "Sua mãe estará em
casa, talvez? Meu tio me enviou para cuidar de seu bem-estar."
Ela ficou parada como se tivesse se transformado em pedra, mas
seus olhos se voltaram para a casa atrás dele e depois para o
galpão, com algo entre a excitação e o pavor.
"Com quem você está falando, Patience?", disse a voz de outra
menina – que, por sua semelhança com Patience, deveria ser
Prudence Hardman – apontando com uma cabeça coberta para
fora do galpão, apertando os olhos com a miopia. "Chastity já
comeu todas as maçãs e ela não ficará quieta. "
Chastity não ficou; houve outro grito agudo vindo do galpão e a
cabeça de Prudence desapareceu abruptamente.
Não era um bebê, então; se o tio Jamie tivesse conhecido Chastity
em sua visita, ela poderia ter quase dois anos agora.
"Sua mãe está em casa, então?", Ian perguntou, decidindo que ele
poderia esperar para conhecer Chastity.
"Ela está, Amigo", disse Patience, e engoliu em seco. "Mas ela
está... está ocupada."
"Vou esperar, então."
1058

"Não! Apenas – quero dizer – tu deves ir embora. Mas, tu deves


voltar – por favor, volta – mas vai agora."
"Sim?" Ele olhou para a casa com curiosidade. Ele pensou ter
ouvido sons vagos lá dentro, mas o farfalhar da brisa nas árvores
ao redor tornava difícil dizer o que estava acontecendo. Não que
eu não pudesse adivinhar, com as moças aqui tremendo no
galpão...
Mas se Sílvia Hardman estava recebendo uma visita, talvez fosse
melhor esperar até que o homem fosse embora. Ainda assim, o
incomodava ir embora e deixar as meninas em tal estado. Talvez
ele pudesse alimentá-las, pelo menos...
Enquanto ele pensava, no entanto, Chastity tomou as coisas com
as próprias mãos, gritando como um gato do mato e
aparentemente chutando Prudence nas canelas, pois Prudence
gritou também.
"Ai! Chastity! Tu me mordeste!"
Patience estremeceu e correu para o galpão, gritando: "Fica
quieta, fica quieta!", com uma voz urgente, olhando
freneticamente por cima do ombro.
A porta da casa foi aberta, batendo contra a parede interna, e um
homem grande vestindo nada além de calça desabotoada saiu, um
cinto de couro na mão e fúria no rosto.
"Malditas pivetes! Venham aqui! Eu vou dar a vocês tudo o que
merecem e eu falo sério!"
"Senhor Fredericks! Por favor, volta! As meninas não queriam..."
Sem hesitar um segundo, o sr. Fredericks se virou e deu uma
lambada no rosto da mulher atrás dele com o cinto.
Atrás de Ian, Patience soltou um grito de pura raiva e se lançou
para a varanda. Ian a pegou com um braço em volta de sua cintura
e a colocou atrás dele.
1059

"Vá para suas irmãs", disse ele, e empurrou-a em direção ao


galpão. "Agora!"
"Quem diabos é você?" Fredericks tinha saído da varanda e
estava avançando para Ian, os cabelos ruivos despenteados como
a juba de um leão e uma expressão em seu rosto vermelho e largo
que deixava suas intenções claras.
Ian sacou sua pistola e apontou para o homem.
"Vá embora", disse ele. "Agora."
Fredericks bateu o cinto tão rápido que Ian mal o viu; apenas
sentiu o golpe que arrancou a arma de sua mão. Ele não se
preocupou em tentar pegá-la, mas agarrou a ponta do cinto
quando ele se ergueu para outro golpe e puxou Fredericks em sua
direção, acertando-o no rosto enquanto ele tropeçava. Ian errou o
nariz, no entanto, e a mandíbula de Fredericks bateu em sua testa,
fazendo seus olhos lacrimejarem.
Ele tropeçou em Fredericks, mas o homem estava com os braços
em volta do corpo de Ian e os dois caíram, com um baque entre
as folhas mortas. Ian agarrou um punhado e as acertou no rosto
do homem, cravando-as em seus olhos, e levantou sua própria
perna a tempo de evitar levar uma joelhada nas bolas.
Havia muitos gritos ao redor. Ian segurou a orelha de Fredericks
e fez o possível para torcê-la enquanto chutava e se contorcia. Ele
se levantou e rolou e ficou por cima, e colocou as mãos em volta
da garganta de Fredericks, mas era um pescoço gordo,
escorregadio de suor, e ele não conseguia agarrar bem, não com
o homem batendo em suas costelas com um punho como uma
pedra. Chega dessa tolice, disse a parte mohawk dele, e ele tirou
a mão da garganta de Fredericks, agarrou um pedaço de pau
resistente no meio do lixo caído no chão e o enfiou direto no olho
do homem.
Fredericks abriu os braços, ficou rígido, engasgou uma ou duas
1060

vezes e morreu.
Ian saiu de cima do corpo do homem, lentamente, seu próprio
corpo pulsando com os batimentos cardíacos. Seu dedo doía – ele
o havia deslocado – e sua mão estava pegajosa. Ele enxugou-a
nas calças, lembrando-se tarde demais que eram suas calças boas.
A gritaria parou abruptamente. Ele ficou quieto, respirando. Os
flocos de neve estavam caindo mais rápido agora e derreteram
quando tocaram sua pele, pequenos beijos frios em seu rosto.
Seus olhos estavam fechados, mas ele vagamente percebeu
passos e os abriu para ver a mulher agachada ao lado dele.
Havia um grande vergão vermelho em seu rosto; seu lábio
superior estava partido e um fio de sangue manchava seu queixo.
Seus olhos estavam injetados e horrorizados, mas ela não estava
gritando, graças a Deus.
"Quem...", ela disse, e parou, colocando o pulso na boca ferida.
Ela olhou para o homem morto no chão, balançou a cabeça de um
lado ao outro, como se não pudesse acreditar e olhou para Ian.
"Tu não deverias ter feito isso", disse ela, em voz baixa e urgente.
"Você tinha uma sugestão melhor?", Ian perguntou, recuperando
um pouco o fôlego.
"Ele teria ido embora", disse ela, e olhou por cima do ombro
como se esperasse que seu nêmesis508 aparecesse. "Quando ele –
quando ele tivesse terminado."
"Ele terminou," Ian assegurou-lhe e, movendo-se lentamente,
ficou de joelhos. "Você deve ser a sra. Hardman, então."
"Eu sou Sílvia Hardman." Ela não conseguia tirar os olhos do
homem morto.
"Ele é sobrinho do Amigo Jamie, mamãe", disse uma voz baixa

508
Nêmesis é a deusa da vingança em grego. Nesse caso, como se a vingança se personificasse atrás dela.
1061

e clara atrás dele. Todas as três meninas estavam agrupadas atrás


de sua mãe, todas parecendo chocadas. Até a pequena estava com
os olhos arregalados e calada, o polegar na boca.
"Jamie", disse Sílvia Hardman, e balançou a cabeça. A expressão
atordoada estava desaparecendo de seu rosto, e ela enxugou o
lábio inchado com uma dobra do roupão esfarrapado que usava.
"Jamie... Fraser?"
"Sim", Ian disse, e se levantou. Ele estava machucado e rígido,
mas não estava doendo muito ainda. "Ele me enviou para cuidar
do seu bem-estar."
Ela olhou incrédula para ele, depois para Fredericks, de volta para
ele – e começou a rir. Não era uma risada normal; era um som
agudo, fino e histérico, e ela colocou a mão sobre a boca para
detê-lo.
"Acho que é melhor me livrar disso..." Ele deu uma cutucada com
o pé no corpo de Fredericks, na coxa. "Alguém virá procurá-lo?"
"Eles devem vir." Sílvia estava recuperando o fôlego. "Este é
Charles Fredericks. Ele é um juiz. Juiz Fredericks, do Tribunal
da Cidade de Filadélfia."

-.-.-

IAN CONSIDEROU O juiz morto por um momento, então olhou


para a sra. Hardman. Exceto aquele momento de risada
descontrolada, ela não tinha estado histérica e, embora estivesse
mais pálida do que a roupa suja que usava, estava composta. Não
apenas composta, ele notou com interesse; ela estava
severamente concentrada, seu olhar focado no corpo.
"Tu vais me ajudar a escondê-lo?", ela perguntou, olhando para
cima.
1062

Ele assentiu.
"Alguém viria procurá-lo? Viria aqui, quero dizer?"
A casa era isolada, a pelo menos um quilômetro e meio de
qualquer outra habitação e uns bons sete quilômetros fora da
cidade.
"Eu não sei", disse ela com franqueza, encontrando seus olhos.
"Ele tem vindo uma ou duas vezes por semana nos últimos dois
meses, e ele é – ele era", ela se corrigiu, com um leve tom de
alívio em sua voz, "um tagarela. Uma vez que ele tinha o seu – o
que ele veio buscar – ele bebia e ele falava. Principalmente sobre
si mesmo, mas de vez em quando ele mencionava homens que
conhecia e o que pensava deles. Não muito bem, como regra."
"Então você acha que ele pode ter... se gabado de ter vindo aqui?"
Ela soltou uma risada curta e assustada.
"Aqui? Não. Ele pode ter falado sobre a viúva quacre que ele
estava usando, no entanto. Algumas... pessoas... sabem sobre
mim." Manchas vermelhas opacas surgiram em seu rosto e
pescoço – e olhando para elas, Ian viu as marcas mais escuras de
hematomas em seu pescoço.
"Mamãe?" As meninas estavam todas tremendo. "Podemos entrar
agora, mamãe? Está um frio terrível."
A sra. Hardman se sacudiu e, endireitando-se, deu um passo na
frente do homem morto, bloqueando pelo menos parcialmente a
visão das meninas de seu corpo.
"Sim. Entrem em casa, meninas. Acendam o fogo. Há um pouco
de comida em uma valise. Vão em frente e comam; alimentem a
Chastity. Eu estarei lá em... em breve." Ela engoliu visivelmente;
Ian não sabia dizer se era de náusea repentina ou simples fome
com a menção de comida; a sombra de seus ossos aparecia em
seu peito.
1063

As meninas passaram pelo corpo, Patience com as mãos sobre os


olhos de Chastity, e desapareceram dentro de casa, embora
Prudence permanecesse na porta até que sua mãe fez um gesto de
enxotar, ao que ela também desapareceu.
"Acho que não podemos simplesmente enterrá-lo", disse Ian. "Se
alguém viesse aqui procurando por ele, uma sepultura nova não
seria tão difícil de encontrar. Você pode vesti-lo, você acha? "
Seus olhos se arregalaram e ela olhou para o corpo, depois de
volta para Ian. Sua boca se abriu e depois fechou.
"Eu posso", disse ela, parecendo sem fôlego.
"Faça isso, então", disse ele. Ele olhou para o céu; era da cor de
peltre manchado e ainda cuspia alguns flocos de neve aleatórios.
Ele podia sentir mais vindo, entretanto; havia uma sensação do
Vento Norte na nuca.
"Estarei de volta antes que a noite chegue", disse ele, voltando-se
para o cavalo. "Empacote o que puder. Esse cavalo é dele,
suponho?" Havia um belo cavalo baio castrado contraindo as
orelhas sob o abrigo esparso de uma grande tulipeira sem folhas;
que claramente não pertencia à família Hardman.
"Sim."
"Vou precisar usar esse para mover o corpo. Mas vou trazer outro
para ajudar a carregar você e suas filhas. "
Sílvia piscou e empurrou uma mecha de cabelo para trás da
orelha. "Aonde estamos indo?"
Ele sorriu para ela – de forma tranquilizadora, ele esperava.
"Vou levar vocês para conhecerem minha mãe."

-.-.-
1064

IAN DEMOROU UM pouco cavalgando em direção à Filadélfia.


Não faltavam lugares adequados para o que ele tinha em mente,
mas era mais do que provável que ele teria que fazer isso no
escuro. Assim que o encontrou – um bosque de carvalhos e
pinheiros misturados, com um único pinheiro imponente atrás
dele que seria visível até mesmo contra o céu noturno – ele
desmontou e remexeu até encontrar o que queria. Ele enfiou isso
em seu alforje e esporeou o cavalo ao longo da estrada da
Filadélfia.
Ele conseguiu alugar um cavalo robusto com um olhar gentil em
uma fazenda a três quilômetros e voltou com ele para encontrar
as Hardman vestindo tudo o que possuíam, com o restante de seus
escassos pertences embrulhados em uma colcha velha amarrada
com barbante. A sra. Hardman, ele notou, tinha uma faca de
fabricação tosca com um cabo enrolado em um barbante enfiado
em seu cinto. Isso parecia um pouco estranho para uma Amiga
professa, mas então ele percebeu que provavelmente era a única
faca dela, usada para picar legumes, matar animais e cavar no
jardim. Provavelmente ela nunca considerou esfaquear alguém
com isso.
Se ela tivesse, ele pensou, grunhindo com esforço enquanto ele e
Sílvia manipulavam o juiz para colocá-lo sobre a sela de seu
próprio cavalo, este sujeito teria morrido muito antes de agora.
"Tudo bem", disse ele, puxando a corda que prendia o cadáver
com força. "Sra. Hardman..."
"Me chame de Sílvia, Amigo", ela disse. "E tu és Ian?"
"Eu sou", disse ele, e deu um tapinha no ombro dela gentilmente.
"Ian Murray. Você sabe montar, Sílvia? "
"Não, já faz muitos anos", disse ela, mordendo o lábio enquanto
examinava o cavalo que ele pretendia para ela. "Mas eu vou."
"Sim. Este companheiro não parece ser do tipo ruim, e você não
1065

vai galopar, então não se preocupe muito com isso. Assim. Você
vai montá-lo, com Prudence atrás de você e Chastity à frente."
Ele pensava que as três juntas não igualavam o seu peso, e ele
não era um homem corpulento.
"Espere um momento. Você deveria levar isso, eu acho." Sílvia
se abaixou e pegou uma valise de couro do chão. Não era nova,
mas tinha sido claramente uma peça de alguma qualidade em seu
auge. Cheirava a maçãs.
"Och", disse ele, percebendo. Ele olhou para o cavalo do juiz, que
não estava nada feliz com sua carga, mas não estava disposto a
criar uma confusão – ainda não, pelo menos. "É dele?"
"Sim. Ele – nos trazia comida. Cada vez que ele vinha."
Seu olhar permaneceu na forma estranha, mas seu rosto estava
ilegível.
"Esse não é um epitáfio ruim", disse ele, pegando a valise.
"Quando meu tempo vier, espero que o meu seja tão bom. Monte.
Eu vou cuidar disso."
Ele a ajudou a se subir, depois ergueu Prudence, que gritou de
excitação, e Chastity, que apenas ficou olhando, com os olhos
arregalados, e chupou o polegar com força.
"Patience, você vem comigo, aye?" Ele amarrou o pacote de
pertences na parte de trás da sela, impulsionou Patience na frente,
em seguida, saltou atrás dela, uma corda para o freio do cavalo
do juiz em uma das mãos. Ele estalou a língua para os cavalos e
a pequena caravana sombria seguiu cambaleante pela neve que
caía levemente. Nenhuma das Hardman olhou para trás.
Ian o fez, sentindo vagamente que um lugar onde as pessoas
moraram por muito tempo merecia pelo menos uma palavra de
despedida.
A casa era pequena, cinzenta e castigada, a lareira fria e o fogo
1066

há muito tempo apagado. E, no entanto, abrigou uma família,


testemunhou uma reunião dos generais continentais, deu refúgio
ao tio Jamie quando ele precisou.
"Bidh failbh ann a sith", disse ele baixinho para a casa. "Volte
para a terra em paz. Você se saiu bem."
Patience agarrava bem apertado a cabeça da sela e ele podia senti-
la estremecer encostada nele, apesar das várias camadas de
roupas frágeis que ela usava.
"Você já montou em um cavalo antes, moça?"
Ela assentiu com a cabeça, sem fôlego.
"Papai colocava a mim e a Pru em seu pequeno cavalo de vez em
quando. Mas nunca fizemos mais do que andar pelo quintal."
"Bem, isso é alguma coisa. Hã... seu pai está morto, suponho?"
"Talvez", ela disse tristemente. "Mamãe acha que a milícia atirou
nele porque pensaram que ele era um legalista. Eu e Pru achamos
que talvez os índios o tenham levado. Mas ele se foi desde antes
de Chastity nascer, então provavelmente está morto. Caso
contrário, tu não achas que ele teria ficado livre e voltado para
nós?"
"Eu acho", Ian assegurou a ela. "Mas, claro, os índios podem ser
boas pessoas. Eu também sou um mohawk."
"Tu és?" Ela se virou na sela para olhá-lo fixamente, com uma
combinação de interesse e horror.
"Eu sou." Ele bateu nas linhas tatuadas que percorriam suas
maçãs do rosto. "Eles me adotaram e eu morei com eles por
algum tempo. Fiquei com eles de boa vontade, veja, mas
finalmente voltei para minha família. Talvez seu pai faça o
mesmo."
E se o fizesse, ele se perguntou, olhando para as formas
fantasmagóricas de Sílvia Hardman e suas filhas no cavalo à sua
1067

frente, o que ele faria quando descobrisse as mudanças que sua


ausência havia causado em sua esposa?
E a que mudanças Emily teria sido submetida, sem um homem?
Ela teria sua gente, no entanto... Uma mulher mohawk nunca
estaria sozinha da maneira como Sílvia Hardman estava sozinha,
e esse pensamento o confortou ligeiramente.
Quando chegaram à estrada da Filadélfia, ele desmontou com
cuidado, conduziu seu cavalo até o de Sílvia e amarrou uma corda
no punho da sela de ambos os cavalos, para o caso de Patience
perder o controle das rédeas.
"Vão em frente", disse ele a Sílvia, e apontou para a estrada, que
era ampla, clara e vazia na luz minguante. "Vocês não devem
estar em nenhum lugar perto de mim enquanto estou cuidando do
sr. Fredericks."
Ela estremeceu com o nome, lançando um olhar assombrado para
a forma curvada no dorso do terceiro cavalo.
"Com sorte, vou alcançá-las em meia hora", disse ele. "Não há
lua, mas o céu está iluminado pela neve. Acho que você será
capaz de ver a estrada, mesmo depois de totalmente escuro. Se
alguém se oferecer para molestar você, diga a eles que seu marido
está atrás de você e siga em frente. Dê a eles o seu pacote se eles
quiserem, mas não os deixe tirá-las dos cavalos."
"Sim." Sua voz estava alta de medo, e ela tossiu para abaixá-la.
"Vamos. Não vamos, quero dizer. Obrigada, Ian."

-.-.-

ELE AS SEGUIU POR mais oitocentos metros pela estrada da


Filadélfia, para ter certeza de que conseguiriam cuidar dos
cavalos. Elas estavam apenas andando, mas você nunca percebia
1068

quando algo poderia acontecer, e ele as avisou sobre prestar


atenção e segurar as rédeas.
Os olhos de Patience estavam redondos como pires quando ele
deslizou e colocou as rédeas em suas mãos.
"Sozinha?", ela disse, em uma voz muito baixa. "Eu vou
cavalgar... sozinha?"
"Não por muito tempo", ele assegurou a ela. "E sua mãe estará
segurando a corda. Eu estarei de volta, o mais rápido que puder."
Ele desamarrou o cavalo de Fredericks e conduziu o cavalo
castrado na outra direção, bem além da estrada que levava à
cabana de Hardman. Estava começando a nevar para valer, mas
os flocos eram pequenos e duros e apenas deslizavam pela estrada
acidentada, o vento formando finas linhas brancas na terra.
Estar ao ar livre, na posse de um cadáver fresco, nunca era
confortável, mas era um trabalho particularmente difícil quando
na vizinhança de pessoas brancas, que estavam inclinadas a
pensar que os assuntos privados de todos também eram deles.
Felizmente, o tempo frio impediu que o corpo inchasse e ainda
não estava fazendo ruídos estranhos.
Lá estava: o pinheiro alto, preto contra o céu iluminado pela neve.
Ele havia pisoteado um pedaço de mato em sua visita anterior e
agora conduzia o cavalo com cuidado para dentro dele, e entre
duas árvores jovens próximas. O cavalo estava desconfiado, mas
o seguiu, e uma das pequenas árvores cedeu com um estalo.
"Bom, a charaid", ele murmurou. "Não vai demorar mais de um
minuto, certo?"
Além da parede de árvores de carvalho e pinheiro, a terra
mergulhava em uma pequena ravina. Ele contou os passos até a
borda em sua primeira visita, e uma coisa boa; a luz era fraca e a
ravina cheia de arbustos e pequenas árvores esparsas.
1069

Ele amarrou o cavalo a uma distância segura da borda, depois


desamarrou Fredericks e puxou-o para longe, jogando-o no chão
com um baque surdo como um búfalo morto. Ian arrastou o
falecido Juiz até a beira da ravina, em seguida, voltou para o pé
do grande pinheiro para recuperar o galho morto quebrado que
ele havia selecionado antes. A vara que ele usou antes era
claramente de uma árvore frutífera; ele a puxou e colocou em sua
bolsa para descarte posterior.
Ele se perguntou se havia um feitiço ou oração gaélica para cobrir
a eliminação do corpo de alguém que você assassinou, mas se
houvesse, ele não sabia. Os mohawks tinham orações, claro, mas
eles não se importavam muito com os mortos.
"Vou perguntar ao tio Jamie mais tarde", disse ele a Fredericks,
em voz baixa. "E se houver uma, eu a direi por você. Por
enquanto, porém, você está por conta própria."
Ele tateou o rosto frio e duro, localizou a órbita ocular vazia e
enfiou a ponta afiada de seu galho nela o mais forte que pôde. O
raspar da casca e da madeira no osso e, em seguida, a repentina
cedência arrepiou os pelos dos ombros e desceu pelos braços.
Então ele arrastou o corpo até a beira da ravina e o empurrou. Por
um momento, ele temeu que não se mexesse, mas escorregou nas
agulhas do pinheiro e, depois de um longo momento, rolou quase
preguiçosamente, uma, duas vezes, e desapareceu no mato do
fundo com um estalo abafado que mal chegava a ser ouvido
acima do vento crescente.
Ele foi tentado a ficar com o cavalo; se alguém notasse, ele
poderia apenas dizer que o encontrou vagando na estrada. Mas se
ele – e o cavalo – ficassem na companhia de Sílvia Hardman e
suas filhas na Filadélfia, seria muito perigoso, e ele levou o
cavalo de volta à estrada e se despediu com um tapa na anca. Ele
o observou ir, então se virou e começou a correr pela estrada na
1070

neve cada vez mais densa.


1071

78

TU CHEIRAS A SANGUE

IAN TINHA ENTRADO EM SILÊNCIO – como um índio,


Rachel pensou – em algum momento depois da meia-noite,
agachando-se ao lado da cama e soprando suavemente em seu
ouvido para acordá-la, para que ele não a assustasse e acordasse
Oggy. Ela rapidamente verificou o bebê, depois pôs os pés para
fora da cama e levantou-se para abraçar o marido.
"Tu cheiras a sangue", ela sussurrou. "O que tu mataste?"
"Uma fera", ele sussurrou de volta, e segurou sua bochecha em
sua palma. "Eu tive que fazer, mas não sinto muito por isso."
Ela assentiu com a cabeça, sentindo uma pedra afiada se
formando em sua garganta.
"Pode vir comigo, mo nighean donn? Eu preciso de ajuda."
Ela assentiu novamente e se virou para encontrar a capa que
usava como robe. Havia uma sensação de severidade sobre ele,
mas algo mais também, e ela não sabia o que era.
Ela esperava que ele não tivesse trazido o corpo para casa com a
expectativa de que ela o ajudasse a enterrá-lo ou escondê-lo, seja
o que for – ou quem quer que fosse –, mas ele acabara de matar
algo que considerava mau e talvez se sentisse perseguido.
Ela ficou, portanto, surpresa quando o seguiu até a minúscula sala
de seus quartos e encontrou uma mulher esquelética com o rosto
machucado e três crianças sujas e famintas vestidas em trapos,
pressionadas juntas no sofá como uma fileira de corujas
aterrorizadas.
"Amiga Sílvia," Ian disse suavemente, "esta é minha esposa,
1072

Rachel."
"Amiga?", Rachel disse, surpresa, mas animada. "Tu és uma
Amiga?”
A mulher concordou com a cabeça, incerta. "Eu sou", ela disse, e
sua voz era suave, mas clara. "Nós somos. Eu sou Sílvia
Hardman, e estas são minhas filhas: Patience, Prudence e a
pequena Chastity."
"Elas vão precisar de algo para comer, mo chridhe. E então
talvez..."
"Um pouco de água quente?", Sílvia Hardman deixou escapar.
"Por favor. Para... para lavar." As mãos dela estavam cerradas
sobre os joelhos, amassando o tecido caseiro desbotado e Rachel
deu uma olhada rápida nas mãos – possivelmente ela ajudou Ian
nessa morte? A pedra estava dura em sua garganta novamente,
mas ela assentiu com a cabeça, tocando a menor das meninas,
uma bebê bonita de rosto redondo com algo entre um e dois anos,
meio adormecida no colo de uma das irmãs.
"Imediatamente", ela prometeu. "Ian – busque sua mãe."
"Estou aqui", disse Jenny atrás dela. Sua voz estava alerta e
interessada. "Vejo que temos companhia."

-.-.-

RAQUEL FOI IMEDIATAMENTE ao aparador e encontrou pão


com queijo e maçãs, que distribuiu às duas meninas mais velhas;
a pequena tinha adormecido profundamente, então Rachel a
ergueu gentilmente e a levou para o quarto, onde a colocou ao
lado de Oggy. A menina estava suja e magra, seus cachos escuros
emaranhados, mas fora isso ela estava em boas condições, e seu
doce rosto redondo tinha uma inocência que Rachel pensava que
1073

suas irmãs haviam perdido há muito tempo.


O porquê disso ficou claro diretamente.
Jenny ignorou a comida e trouxe água quente, sabão e uma toalha
para Sílvia Hardman. Sílvia estava se lavando, lenta e
completamente, as sobrancelhas franzidas em concentração,
olhando para o nada.
Ian olhou brevemente para ela e então explicou a situação para
Rachel e sua mãe de forma simples e direta, apesar da presença
das filhas. Rachel olhou para as meninas e ergueu as sobrancelhas
para o marido, mas ele apenas disse: "Elas estavam lá", e
continuou.
"Então, eu me livrei dele", concluiu. "Você não precisa saber
como ou onde." Uma das garotas soltou um pequeno suspiro do
que pode ter sido alívio ou pura exaustão.
"Sim", Jenny disse, descartando isso. "E você não poderia deixá-
las onde estavam, caso alguém viesse procurar o homem e o
encontrasse muito perto delas."
"Em parte isso, sim." Apesar da hora e do fato de ter passado o
dia anterior e metade da noite envolvido no que deve ter sido uma
atividade muito extenuante, Ian parecia bem acordado e em plena
posse de seu intelecto. Ele sorriu para sua mãe. "Tio Jamie me
disse que se a Amiga Sílvia estivesse em alguma dificuldade, eu
deveria cuidar disso."
Sílvia Hardman começou a rir. Muito baixinho, mas com uma
ponta distinta de histeria. Jenny sentou-se ao lado dela, colocou
o braço em volta dos ombros de Sílvia, e Sílvia parou de rir
abruptamente. Rachel viu que suas mãos, ainda molhadas e
escorregadias de sabão, tremiam.
"Você acredita em anjos, Rachel?", Sílvia perguntou. Sua voz
estava baixa e ligeiramente distorcida por causa do lábio inchado.
1074

"Se tu estás te referindo a Ian ou Jamie, eles renunciariam


firmemente a tal descrição", disse Rachel, sorrindo de forma
tranquilizadora e tentando não desviar o olhar do grande
hematoma que cortava o rosto de Sílvia e fazia seus olhos
parecerem estranhamente desconectados do resto de suas feições.
"Mas, tendo-os conhecidos já há algum tempo, acho que Deus
ocasionalmente encontra alguma utilidade para eles."
1075

79

MULHERES DEMAIS

PELA MANHÃ, JENNY SE ENCARREGOU das crianças para


que Rachel pudesse ir com Sílvia Hardman conversar com os
"Amigos de peso" – que era o limite a que um quacre iria para
atribuir status a qualquer um – que estavam atualmente
encarregados da Reunião Anual da Filadélfia, e ver se alguma
provisão de moradia, trabalho ou dinheiro podia ser arranjada
para o socorro das Hardman. Ian as teria acompanhado, mas
Rachel e Sílvia expressaram dúvidas de que sua presença seria
útil.
"Não pretendo mencionar a fera que tu mataste", Rachel disse a
ele em particular. "Portanto, é provável que o teu testemunho
cause mais problemas, não menos. Além disso, tu tens negócios
próprios, não é? "
"Não são meus, não", ele disse, e a beijou brevemente. "Mas eu
prometi à tia Claire que faria uma visita a um bordel em nome
dela."
Ela não mostrou nenhum abalo em seu rosto bonito.
"Não tragas uma prostituta para casa", ela aconselhou a ele. "Tu
já tens mulheres demais."
O beco de Elfreth não era ruim, como eram os becos de uma
cidade. Dificilmente um beco era adequado, Ian pensou,
contornando uma pequena pilha de vômito nos tijolos. Era largo
o suficiente para que se pudesse dirigir uma carroça e várias das
casas tinham maçanetas de latão polido. Madame Abbott
providenciou uma, embora fosse a porta dos fundos do
estabelecimento. Mas, naturalmente, a porta dos fundos de um
1076

bordel seria usada tanto – senão muito mais do que – a da frente.


Havia duas jovens prostitutas sentadas nos degraus de trás,
envoltas em mantos, e ele se perguntou se elas estavam ali como
propaganda ou apenas respirando fundo. Era nítido e suas
respirações aumentaram em fios brancos, desaparecendo
enquanto conversavam. Uma delas o viu e elas pararam.
A mais alta olhou para ele rapidamente, então se inclinou para
trás, um cotovelo no degrau atrás dela, e deixou sua capa cair de
um ombro, mostrando um vislumbre de pele rosada acima de seu
vestido, e o peso arredondado de seu seio através dele. Ele sorriu
para ela.
O rosto dela mudou, e ele percebeu que ela acabara de notar suas
tatuagens. Ela parecia desconfiada, mas não desviou o olhar.
"Bom dia para você, senhora", disse ele, e as sobrancelhas dela
se ergueram com o sotaque escocês. Sua amiga endireitou-se e
olhou fixamente para ele. Ele parou na frente delas, inclinou a
cabeça para trás e olhou para cima. A casa se erguia acima dele,
três andares de tijolos vermelhos sólidos.
"Uma boa casa, não é?", ele perguntou. As prostitutas trocaram
olhares e ele viu a baixinha encolher os ombros ligeiramente,
entregando-o à companheira mais alta, que se endireitou, mas
deixou a capa pendurada descuidadamente aberta. O frio fez seus
mamilos se eriçarem, redondos e duros sob o algodão fino.
"Muito boa, senhor", disse ela, e deu-lhe um sorriso experiente.
Ela ficou ereta, preparando-se para se levantar. "Você quer entrar
e tomar uma bebida para espantar o frio?"
"Talvez", disse ele, sorrindo para ela. "Mas eu quis dizer, se é um
bom lugar para vocês, senhoras?"
Seus rostos ficaram impassíveis, e elas olharam para ele,
boquiabertas de espanto. A baixinha, com cabelos loiros
1077

desgrenhados, se recuperou primeiro.


"Bem, é melhor do que fazer em uma carruagem, ou ter um
cafetão que manda você para celeiros e ringues de boxe, eu diria
isso."
"Trixie!" A moça alta de cabelos castanhos chutou sua
companheira e se levantou, sorrindo para ele. "Eu sou Meg. É
uma casa boa e limpa, senhor, e as meninas estão todas limpas.
Saudáveis... e bem alimentadas." Ela colocou a mão em concha
sob o seio muito saudável para ilustrar.
Ele acenou com a cabeça e enfiou a mão no saco que carregava,
retirando uma pequena bolsa, cheia de moedas.
"Eu também estou saudável, moça."
A baixinha sacudiu a cabeça. "É assim que deve ser. Todo mundo
diz que os escoceses são maus.509"
Sua amiga alta a chutou novamente, com mais força.
"Ai!"
"Os escoceses são astutos, moça, não são maldosos", disse Ian,
ignorando essa brincadeira. "Damos valor ao dinheiro, sim – mas
se damos valor ao que queremos..." Ele jogou a bolsa levemente,
pegando-a na palma da mão para que o dinheiro tilintasse.
A moça alta desceu os degraus e parou na frente dele, perto, seus
mamilos frios perto o suficiente para que ele os imaginasse
pressionando contra seu peito nu e sentisse os pelos lá arrepiarem.
Me perdoe, Rachel, ele pensou.
"Oh, eu posso prometer que você irá valorizar, senhor", disse ela,
sorrindo através de sua respiração. "Seja lá o que você desejar."
Ele acenou com a cabeça amigavelmente, olhando-a francamente
de cima a baixo. "O que eu quero, moça, é uma garota com um

509
No original ,“Scotchmen are mean”. A brincadeira com a semelhança dos sons se perde na tradução.
1078

bom bocado de experiência."


Seu rosto mudou com isso, e ele viu que a assustou um pouco.
Talvez isso não fosse uma coisa ruim.
"Você tem alguma garota que tenha trabalhado na casa por... ah,
digamos, cinco anos, pelo menos?"
"Cinco anos?", a mais baixa deixou escapar. Ela se levantou com
dificuldade e, a princípio, ele pensou que ela fosse fugir, mas ela
só queria olhar para ele mais de perto. Ela o olhou com a mesma
franqueza que ele havia demonstrado com sua amiga, mas
também com um ar de fascínio.
"O que diabos uma prostituta pode fazer que leva cinco anos para
aprender?" Ela parecia realmente querer descobrir, e ele olhou
para ela com mais interesse. Ela poderia pensar que ele era um
pervertido, mas ela estava no jogo, e ele ficou um pouco chocado
ao descobrir que isso o excitava mais do que os mamilos de Meg.
Ele limpou a garganta.
"Eu gostaria de saber a resposta para isso também, moça", disse
ele, sorrindo para ela. "Mas o que eu quero agora é uma garota
que conheceu Jane Pocock."
1079

80

UMA PALAVRA PARA ISSO

AS RUAS DA FILADÉLFIA estavam cheias de comida – pelo


menos quando o exército britânico não estava ocupando a cidade.
No momento ele não estava por perto, então havia tortas à venda,
tanto de carnes quanto de frutas, grandes pretzels alemães,
salpicados de sal empilhados em varas como um jogo de argolas
na vareta, peixe frito, rosquinhas polvilhadas com açúcar, folhas
de repolho recheadas e baldes de cerveja, tudo isso disponível a
poucos passos do prédio onde a Reunião Anual da Sociedade de
Amigos da Filadélfia conduzia a maior parte de seus negócios.
Infelizmente, a maior parte da comida disponível não tinha um
estilo ou formato que tornasse muito satisfatório jogá-la contra a
parede. Furiosa, Rachel olhou para todo o lado até encontrar um
vendedor de maçãs.
"Aqui", ela disse, entregando uma das frutas amarelas e rosadas
para Sílvia Hardman. Sílvia olhou para ela com surpresa, então a
ergueu incerta em direção à boca.
"Não", Rachel disse. "Faça assim!" E girando nos calcanhares,
ela levou o braço para trás e jogou a maçã o mais forte que pôde
contra o tronco de um enorme carvalho que estava no parque
onde eles foram se reunir. A maçã explodiu em pedaços e suco, e
Rachel respirou satisfeita.
"Imagina que é a cabeça do Amigo Sharpless", aconselhou para
Sílvia. "Ou talvez aquele idiota do Phineas Cadwallader."
"Oh, ele. Com certeza!" O rosto de Sílvia estava tão corado
quanto a maçã, e com um pequeno humph! ela atirou a fruta na
árvore, mas errou.
1080

Rachel correu para pegá-la de volta e guiou Sílvia para mais perto
da árvore.
"Põe teus dedos assim", disse ela, "então puxa teu braço para trás
e fixa o olho firmemente no local que escolheste. Então joga, mas
não deixa teu olho se desviar."
Sílvia acenou com a cabeça e, pegando de novo na maçã, encarou
a árvore com o fogo que deveria ter mostrado ao Amigo
Cadwallader e disparou.
"Oh." Ela fez um pequeno som de surpresa satisfeita. "Eu não
pensei que pudesse." Ela riu, mas sem graça, olhando por cima
do ombro. "Suponho que isso seja um desperdício pecaminoso,
mas..."
"Pergunta aos esquilos se eles pensam assim", aconselhou
Rachel, acenando com a cabeça em direção a uma dessas
criaturas, que havia descido pelo tronco da árvore segundos após
o primeiro impacto e agora estava no chão, se enchendo com os
fragmentos de seu bombardeio. Sílvia olhou, então espiou ao
redor. Pelo menos mais uma dúzia estava saltando pela grama, as
caudas cheias de propósito.
"Bem, então", ela disse, e respirou fundo. "Tu estás certa. Me
sinto muito mais calma."
"Bom. Tu queres comer?", Rachel perguntou. "Estou esfomeada.
Talvez possamos comer uma torta e discutir o que fazer a seguir."
A calma imediatamente desapareceu do rosto de Sílvia,
substituída por uma apreensão pálida, mas ela balançou a cabeça
concordando e obedientemente seguiu Rachel de volta para a rua.
"Eu não deveria ter ido", disse Sílvia, fazendo uma pausa após
uma ou duas mordidas em sua torta de carne com cebola. "Eu
sabia o que eles diriam."
"Sim, tu me disseste, mas eu não queria acreditar." Rachel
1081

mordeu sua própria torta, franzindo a testa. "Como é possível


alguém que professa a caridade e o amor de Cristo falar assim!
Não é de admirar que teu marido tenha dado as costas a eles."
"Gabriel não suportava o que considerava interferência",
concordou Sílvia com tristeza. "Mas tu podes ver o que eles
querem dizer, certo? Na verdade, sou exatamente o que eles
disseram: uma prostituta."
Rachel quis contradizê-la na hora, mas, depois de abrir a boca
para fazê-lo, fez uma pausa e deu outra mordida na massa folhada
com molho.
"Tu não tiveste escolha", disse ela, depois de mastigar e engolir.
"O sr. Cadwallader parecia pensar que sim", disse Sílvia, um
pouco asperamente. "Eu deveria ter casado de novo..."
"Mas tu não sabias se o teu marido estava morto! Como tu
poderias se casar?"
"... ou vir para a cidade e dedicar minhas mãos à lavanderia ou
bordado..."
"O que não te pagaria o suficiente para te alimentares, muito
menos às tuas filhas!"
"Talvez o amigo Cadwallader não tenha encontrado ocasião para
descobrir como é a vida de uma lavadeira", disse Sílvia. Ela
terminou a torta e seus ombros ossudos desceram um pouco,
relaxando ao sol do fim da tarde. "Suponho que devemos procurar
a luz dentro dele e do Amigo Sharpless, não é?"
"Sim", Rachel disse relutantemente. "Mas posso querer mais
algumas maçãs e uma garrafa de cerveja antes que essa procura
seja eficaz."
Sílvia riu e o coração de Rachel disparou ao ouvir isso. Sílvia
Hardman estava machucada, sem dúvida – mas ainda não
quebrada.
1082

"Ainda assim, teria sido bom fazer parte de uma reunião mais
uma vez", disse Sílvia melancolicamente. "Não tenho essa
companhia ou apoio há muitos anos."
Rachel engoliu sua última mordida e segurou a mão de Sílvia. Era
esguia, calejada e maltratada, com as queimaduras e as cicatrizes
do trabalho implacável e de muitos pequenos desastres
domésticos.
"Onde quer que dois ou mais de vocês estejam reunidos em meu
nome, aí estou eu", Rachel disse, e apontou para Sílvia, depois
para si mesma. "Um. Dois."
Sílvia sorriu, apesar de si mesma, e sua verdadeira natureza –
gentil e bem-humorada – espiou por trás da cautela em seus olhos.
"Então, tu és a minha Reunião, Rachel. Eu sou abençoada."

-.-.-

IAN VOLTOU DE sua visita ao Beco Elfreth em uma espécie de


estado de espírito altamente absorto, alheio aos gritos das leiteiras
e dos vendedores de cerveja.
Ele pensou que poderia ter que gastar um tempo e dinheiro
consideráveis a fim de fazer os habitantes do bordel falarem, mas
a simples menção do nome de Jane Pocock abriu as comportas da
fofoca, e ele se sentiu como se fosse levado para o mar em um
navio e carregado para terra em uma enxurrada de espuma e
detritos pontiagudos.
Agora ele gostaria de ter prestado mais atenção ao desenho de
Fanny de sua irmã.
A opinião expressada em voz alta pela sra. Abbott, a madame, era
que Jane Pocock era estranha, claramente muito estranha,
demente e provavelmente uma praticante de Artes Estranhas, e
1083

como foi que nem ela nem nenhuma de suas meninas foram
assassinadas em suas camas, ela não sabia. Ian se perguntou por
que uma jovem com tais habilidades estaria trabalhando como
prostituta, mas não disse isso, dadas as circunstâncias.
Demorou algum tempo para que a conversa sobre o assassinato
do capitão Harkness morresse, mas Ian Murray conhecia bem um
bordel e, quando o fluxo diminuiu, ele imediatamente pediu mais
duas garrafas de champagne a preços exorbitantes.
Isso alterou o ar de acomodação para algo mais concentrado, mas
menos injurioso, e em meia hora, a sra. Abbott se retirou para seu
santuário e as prostitutas alcançaram suas acomodações
silenciosas entre si. Ele se viu no sofá de veludo vermelho comum
nesses estabelecimentos, com Meg de um lado e Trixabella do
outro.
"Trix era amiga de Arabella – Jane, quero dizer", Meg explicou.
Trix acenou com a cabeça, triste.
"Gostaria de não ter sido", disse ela. "Aquela garota não teve
sorte alguma, e esse tipo de coisa pode afetar você, sabe. O que
são essas coisas no seu rosto?"
"Posso?" Ian tocou sua bochecha. "É uma tatuagem mohawk."
"Ooh", disse Trix, com um pouco mais de interesse. "Você foi
capturado por índios?" Ela riu com o pensamento.
"Não, eu fui por minha própria conta", ele disse calmamente.
"Bem, eu também", disse Trix, com o queixo erguido e um aceno
de mão, provavelmente com a intenção de chamar sua atenção
para a natureza relativamente luxuosa de seu local de trabalho.
"Mas não Arabella. A sra. Abbott a tirou – e sua irmã – de um
capitão do mar que não tinha grana para pagar a conta dele. Essas
meninas eram servas contratadas."
"Sim? E há quanto tempo foi isso? Você não pode estar aqui há
1084

mais de um ou dois anos." Na verdade, ela parecia ter estado no


comércio por uma década, pelo menos, mas galanteios menores
faziam parte do esperado pourparlers510, e ela riu e piscou os
olhos para ele de uma maneira experiente.
"Calculo que deve ter sido seis – talvez sete – anos atrás. O tempo
voa quando você está se divertindo, ou é o que dizem."
"Tempus fugit511." Ian encheu o copo dela e bateu o seu contra
ele, sorrindo.
Ela fez covinhas profissionalmente, bebeu e continuou.
"Sabe, eu não passava de dois anos mais velha do que Jane...!",
disse ela entre o bater dos copos. "A sra. Abbott não se importava
com elas, exceto que eram bonitas, as duas, e Jane tinha idade
suficiente para... hum... começar."
Ian estava contando para trás; seis anos atrás, Jane teria mais ou
menos a idade que Fanny tinha agora. Velha o bastante…
Depois de alguns relatos de experiências iniciais angustiantes no
comércio, ele conseguiu arrastar a conversa de volta para Jane e
Fanny.
"Você disse que um capitão do mar vendeu as meninas para a sra.
Abbott. Alguma de vocês por acaso lembra o nome dele?"
Meg negou com a cabeça.
"Eu não estava aqui", disse ela. "Trix...?" Ela ergueu uma
sobrancelha para a amiga, que franziu um pouco a testa e apertou
os lábios.
"Ele voltou aqui desde então?", Ian perguntou, observando-a de
perto. Ela parecia assustada.
"Eu, bem... sim. Eu só o vi duas vezes, veja, e já faz um bom
tempo, então talvez eu não me lembre do nome dele com certeza."
510
Conversa entre as partes para chegar a um acordo.
511
Frase em latim do poeta romano Virgílio.”O tempo voa.”
1085

Ian suspirou, deu-lhe um olhar direto e entregou-lhe um guinéu


de ouro512. "Vaskwez", ela disse sem hesitação. "Sebastian
Vaskwez."
"Vas – ele era espanhol?", Ian perguntou, sua mente tendo
suavemente transmutado sua tradução em Sebastiàn Vasquez.
"Não sei", disse Trix com franqueza. "Eu nunca tive um espanhol
– sei lá, quero dizer – não saberia como eles soam.”
"Todos parecem iguais na cama", disse Meg, olhando para Ian.
Trix lançou um olhar fulminante para a amiga.
"Ele parecia estrangeiro, sem dúvida. E nada de falar pelo nariz
ou aquele tipo de coisa que os franceses fazem. Eu tive três
franceses", ela explicou a Ian, com uma pequena demonstração
de orgulho. "Alguns deles estavam na Filadélfia enquanto o
exército britânico estava aqui."
"Quando foi a última vez que Vasquez veio aqui?", ele perguntou.
"Dois... não, talvez perto de três anos atrás."
"Ele foi com Jane, então?" Ian perguntou.
"Não", Trix disse inesperadamente. "Ele foi comigo." Ela fez
uma careta. "Ele cheirava a pólvora – como um artilheiro. Ele não
era um, no entanto; porque esses ficam com a pólvora entranhada
na pele e suas mãos ficam pretas. Mas ele estava limpo, embora
cheirasse a uma pistola disparada."
Um pensamento ocorreu a Ian – embora pensar estivesse se
tornando difícil. Ele não se incomodava com o fato de que seu
corpo estava prestando muita atenção nas garotas, mas a
excitação raramente fazia muito pelas faculdades mentais.
"Você poderia dizer se ele ainda era um capitão do mar?", ele
perguntou. Ambas as meninas pareciam ignorar isso.

512
Moeda que valia 20 xelins, ou uma libra.
1086

"Quero dizer, ele mencionou algo do navio, ou talvez disse que


estava contratando uma tripulação, algo assim? Ele cheirava a
mar, ou... peixe?"
Isso fez as duas rirem.
"Não, só pólvora", disse Trix, se recuperando.
"Mãe Abbott o chamou de capitão, no entanto", acrescentou Trix.
"E ficou claro que ele não era um soldado."
Mais algumas perguntas esvaziaram as duas garrafas, e ficou
claro que as meninas lhe contaram tudo o que sabiam, por pouco
que fosse. Pelo menos ele tinha um nome. Havia sons na casa,
portas abrindo, passos pesados, vozes de homens e saudações de
mulheres; já passava da hora do chá e os clientes estavam
começando a chegar.
Ele se levantou, deu uma ajeitada em si mesmo, sem vergonha e
curvou-se diante deles, agradecendo a gentil ajuda.
Na parte inferior da escada, ele ouviu Trix chamá-lo e olhou para
cima para vê-la inclinada sobre o corrimão do patamar acima.
"Aye?", ele disse. Ela olhou em volta para se certificar de que não
havia ninguém por perto, então desceu correndo as escadas e o
segurou pela manga.
"Eu sei mais uma coisa", disse ela. "Quando a Mãe Abbott foi
vender a virgindade de Arabella, ela não tinha uma, então eles
tiveram que usar uma bexiga de sangue de galinha."

-.-.-

SÍLVIA ENVIOU SUAS meninas, com uma bandeja cheia de


comida, para o quarto. Em seguida, ela se sentou à mesa, onde
Jenny e Rachel colocaram fatias grossas de pão para servir o
bacon e o feijão, pois elas não tinham mais do que dois pratos de
1087

madeira empenados que haviam sido fornecidos com seus


quartos.
Ian achou que o cheiro de comida poderia ser o suficiente para
derrubá-lo; ele não conseguia se lembrar da última vez que tinha
comido – ele pensava que poderia ter sido ontem em algum
momento, mas ele estava muito ocupado para notar. Ele partiu
um pedaço de pão com um bom bocado de feijão cozido com
bacon e cebola, enfiou na boca e fez um som involuntário que fez
com que todas as mulheres olhassem para ele.
"Você parece um lobo faminto, rapaz", disse sua mãe, erguendo
as sobrancelhas. Rachel riu e Sílvia sorriu, muito cautelosamente.
Ela comia desse mesmo jeito, devido ao lábio partido, e ele
pensou, pela forma hesitante como ela mastigava, que alguns de
seus dentes também poderiam ter se soltado. Se ele alguma vez
teve algum escrúpulo em matar o juiz Fredericks – e ele não teve
– isso teria desaparecido na hora.
Ele sentia o mesmo em relação à chamada Reunião de Amigos
do Ano. Rachel havia lhe contado um bom tanto sobre a natureza
das reuniões quacres, e ele entendeu que, embora qualquer um
fosse bem-vindo para se sentar e adorar com eles, fazer parte da
reunião era uma coisa diferente: as pessoas eram aceitas apenas
após consideração e conferência.
Nisso, havia algo parecido com a maneira como um clã
trabalhava; havia uma expectativa de obrigação entre os dois
lados. Então ele podia entender, ele supôs, por que os Amigos da
Filadélfia simplesmente não acolheram Sílvia em sua reunião.
Ainda assim, ele se ressentiu com eles por isso.
"O ideal é que os amigos sejam compassivos, pacíficos e
honestos", disse Rachel, franzindo a testa. "Isso não significa que
eles não façam julgamentos, nem que não possuam opiniões
fortes, as quais são, é claro, bem-vindas para expressar."
1088

"E eles fofocam?", Ian perguntou. Rachel suspirou.


"Nós fofocamos. Quero dizer", ela acrescentou, "nós
desencorajamos qualquer coisa na forma de fofoca mal-
intencionada, espalhando escândalo ou depreciação pessoal –
mas pela natureza de uma reunião, todo mundo sabe da vida dos
outros."
"Aye." Ian raspou um último pedaço de pão na borda da panela,
recuperando o resto do caldo suculento. "Bem, o negócio da
Amiga Sílvia não é deles. Você tem uma ideia do que gostaria de
fazer ou para onde quer ir, moça?", perguntou ele, dirigindo-se à
Sílvia. "Nós vamos ajudá-la a fazer isso, de qualquer maneira."
"Eu gostaria de ir com vocês", Sílvia deixou escapar. Uma onda
vermelha subiu por seu pescoço fino e manchou suas bochechas.
"Eu sei que não tenho o direito de pedir a vocês, mas eu peço."
Rachel imediatamente olhou para Ian, e sua mãe também. Bem,
ele era o homem, e era sua culpa que elas estivessem aqui, então
ele supôs que tinha o direito de decidir com quantas mulheres ele
poderia fazer malabarismos razoavelmente. Ainda assim…
"Não desejo permanecer na Filadélfia", disse Sílvia. Ela se
controlou e sua voz estava firme. "Já que a Reunião Anual sabe
quem eu sou – tanto pelo nome quanto pela reputação", ela
acrescentou, com uma leve nota de amargura, "eu não encontrarei
aceitação aqui. Qualquer reunião que me acolhesse logo
perceberia seu erro. E embora eu pudesse ganhar a vida como
uma prostituta de verdade, não vou expor, de forma alguma,
minhas filhas a essa vida."
"Aye", Ian disse relutantemente. "Suponho que você esteja certa,
mas... estamos indo para Nova York, moça, e para o país dos
Hodeenosaunee513."

513
“Pessoas que constroem casas” Haudenossaunee foram um grupo nativo norte-americano que vivia em
torno da região dos Grandes Lagos, primariamente no sul de Ontário, uma província do Canadá, e no
1089

"Essa é a Liga Iroquesa", Rachel acrescentou. "Mais


especificamente, estamos indo para uma pequena cidade
chamada Canajoharie, habitada pelos mohawks."
"Acho que posso encontrar um lugar em algum ponto antes de
chegarmos a Canajoharie. Mas se não, o mohawk tem alguma
objeção às prostitutas?", Sílvia perguntou, uma pequena carranca
vincando a carne entre as sobrancelhas.
"Eles não têm realmente uma palavra para isso", disse Ian. "E se
eles não têm uma palavra para alguma coisa, não é importante."
Oggy, que estava tendo uma conversa séria com o dedão do pé,
olhou para cima neste ponto, disse Pa muito claramente, e então
voltou para os dedos dos pés.
Ian sorriu, então suspirou profundamente e se dirigiu ao filho.
"Três mulheres e três meninas pequeninas. Tenho certeza que
você vai me ajudar tanto quanto puder, a bhalaich, mas não será
suficiente. Vou precisar de outro homem."

nordeste dos Estados Unidos.


1090

81

AINDA IMINENTE

TINHA SIDO UM DAQUELES LINDOS DIAS de outono em


que o sol está forte e quente no zênite, mas um friozinho chega
ao amanhecer e ao anoitecer e as noites são frias o suficiente para
tornar mais do que bem-vindos um bom fogo na lareira, uma boa
e espessa coberta na cama, e um bom homem com muito calor
corporal na mesma cama ao seu lado.
O bom homem em questão espreguiçou-se, gemendo, e recaiu no
luxo do descanso com um suspiro, uma das mãos na minha coxa.
Eu dei um tapinha nela e rolei em direção a ele, desalojando
Adso, que havia pousado ao pé da cama, mas saltou com um
breve mirp! de aborrecimento com esta indicação de que não
pretendíamos cair na imobilidade ainda.
"Então, Sassenach, o que você fez o dia todo?", Jamie perguntou,
acariciando meu quadril. Seus olhos estavam semicerrados no
prazer sonolento do calor, mas focados em meu rosto.
"Oh, Senhor..." O amanhecer parecia uma eternidade atrás, mas
eu me estiquei e relaxei confortavelmente ao seu toque. "Apenas
tarefas de rotina, na maior parte... mas um homem chamado
Herman Mortenson veio de Woolam’s Mill no final da manhã
para um cisto pilonidal514 na base de sua coluna fosse lancetado
e esvaziado. Eu não sentia um cheiro tão ruim desde que Bluebell
rolou em uma carcaça de porco em decomposição. Mas então",
eu acrescentei, sentindo que este podia não ser o tom certo para
começar um agradável encontro numa noite de outono, "eu passei

514
O cisto pilonidal é uma uma variante do cisto dermatológico, que ocorre, na maioria das vezes, na
região subcutânea que fica entre as nádegas. Pilonidal significa ninho de pelos e é isso o que a gera: o
encravamento de pêlos debaixo da pele ou pela inflamação de folículos pilosos.
1091

a maior parte da tarde no jardim, arrancando arbustos de


amendoim e colhendo os últimos feijões. E falando com as
abelhas, é claro."
"Elas têm algo interessante a dizer a você, Sassenach?"
A carícia se transformou em uma massagem agradável em meu
traseiro, que teve o efeito colateral salutar de me fazer arquear as
costas e pressionar levemente meus seios contra seu peito. Usei
minha mão livre para afrouxar minha camisola, levantar um dos
meus seios e esfregar meu mamilo contra o dele, o que o fez
agarrar minha bunda e dizer algo baixinho em gaélico.
"E, hum, como foi o seu dia?", eu perguntei, desistindo.
"Se você fizer isso de novo, Sassenach, não vou responder pelas
consequências", disse ele, coçando o mamilo como se tivesse sido
picado por um grande mosquito. "Quanto ao que fiz, construí um
novo portão para o chiqueiro de parto. Falando em porcos."
"Falando em porcos..." eu repeti, devagar. "Hum... você entrou
no chiqueiro lá de cima?"
"Não. Por quê?" Sua mão moveu-se um pouco mais para baixo,
envolvendo a minha nádega esquerda.
"Eu tinha esquecido de dizer a você, porque você foi ao
Tennessee para falar com o sr. Sevier e o coronel Shelby e não
voltou por uma semana. Mas eu subi lá" – o chiqueiro era uma
pequena caverna no penhasco de calcário acima da casa – "uma
semana atrás, para buscar um pote de terebintina que eu tinha
esquecido lá quando fiz a desparasitação, e... sabe como a caverna
se curva para a esquerda?"
Ele acenou com a cabeça, os olhos fixos na minha boca como se
lesse meus lábios. "Bem, eu virei a esquina e lá estavam elas."
"Quem?"
"A própria Porca Branca, com o que presumo que fossem duas de
1092

suas filhas ou netas... as outras não eram brancas, mas tinham que
ser parentes dela porque todas as três eram do mesmo tamanho –
imensas."
A média de um porco selvagem era de cerca de um metro na
altura do ombro e entre noventa e cento e trinta quilos. A Porca
Branca, que não era ela própria um porco selvagem, mas o
produto de uma linha de suínos domésticos criada para a
produção de muita carne e gordura, era muito mais velha, mais
gananciosa e mais feroz do que a média, e embora eu não fosse
tão boa quanto Jamie em estimativas de peso dos animais, eu teria
estimado seu peso em uns 270 quilos, sem um momento de
hesitação. Seus descendentes não eram muito menores.
A sensação de plácida malignidade me congelou no lugar, e
minha pele se arrepiou instantaneamente com a memória
daqueles pequenos olhos inteligentes vermelho-escuros, fixos em
mim, pertencentes à massa pálida nas sombras da caverna.
"Ela foi atrás de você?" Jamie passou a mão preocupada sobre a
curva do meu ombro, sentindo os arrepios. Eu neguei com a
cabeça.
"Eu pensei que ela viria. Cada segundo que eu estava lá, e cada
segundo que levava para voltar lentamente para a luz e sair da
caverna, pensei que ela fosse se levantar – elas estavam todas
meio... reclinadas na palha emaranhada – e me atropelar, mas elas
apenas... olharam para mim." Eu engoli, e uma nova onda de
arrepios desceu pelos meus braços.
"De qualquer forma", eu terminei, me aproximando de seu calor,
"elas não me comeram. Talvez ela se lembre de que eu costumava
alimentá-la com restos – mas não sei se ela se sentiria tão gentil
com você."
"Vou levar meu rifle quando for lá em cima", prometeu. "Se eu
as vir, teremos carne para o inverno."
1093

"Você tome cuidado", falei, e mordi a pele de seu ombro. "Eu não
acho que você conseguiria pegar as três antes que uma delas
pegasse você. E eu prefiro pensar que matar a Porca Branca pode
dar azar."
"Bah", disse ele confortavelmente, e rolou, prendendo-me no
colchão com uma lufada de penas. Ele abaixou a cabeça e
mordiscou minha orelha, fazendo-me contorcer e abafar um grito.
"Conte-me sobre as abelhas", disse ele, respirando calorosamente
em meu ouvido. "Pode acalmar você o suficiente para fixar sua
mente onde pertence, em vez de nos porcos."
"Você perguntou", eu disse, com dignidade, recusando-me a
abordar a questão de onde minha mente pertencia. "Quanto às
abelhas... Eu pensava que elas hibernariam, mas Myers diz que
não, embora elas fiquem dentro de suas colmeias quando fica frio.
Mas ainda há flores tardias no jardim, e elas ainda estão no
trabalho. Pouco antes de descer hoje à noite – estava começando
a escurecer – eu encontrei duas delas, enroladas juntas no cálice
de uma malva-rosa, cobertas de pólen e segurando os pés uma da
outra."
"Elas estavam mortas?"
"Não." Ele se afastou de mim, mas era ainda iminente515. Seus
cabelos estavam soltos, macios e despenteados, cintilando em
vermelho e prata à luz do fogo, e eu coloquei uma mecha atrás de
sua orelha. "Achei que estivessem, a primeira vez que as vi, mas
já vi várias vezes desde então, e elas estão apenas dormindo entre
as flores. Elas acordam quando o sol as aquecem e voam. Não sei
se é algo como acampar para eles, ou se simplesmente ficam
muito cansadas para voltar à colmeia ou são apanhados pela
escuridão e se deitam onde podem", acrescentei. "Você
geralmente vê abelhas sozinhas fazendo isso, no entanto. Ver

515
Iminente: prestes a acontecer. Veja as notas da autora.
1094

duas delas juntas assim... foi muito doce."


"Doce", ele ecoou, e enfiando seus dedos nos meus, beijou-me
suavemente, com gosto de fumaça e cerveja e pão com mel.
"Você sabe por que a malva-rosa é chamada de hollyhocks em
inglês?"
"Não, mas suponho que você vai me dizer." Uma grande mão
desceu pelo lado do meu pescoço e delicadamente segurou meu
mamilo. Eu devolvi o favor, apreciando a sensação áspera dos
pelos ao redor dele.
"Os cruzados a trouxeram para a Inglaterra, porque você pode
fazer uma pomada de sua raiz que é particularmente boa para
ferimentos nos jarretes – os tendões – de um cavalo.
Aparentemente, viajar com os cruzados era difícil para os
jarretes."
"Humm... eu não duvido."
"Então," eu sussurrei, esfregando minha unha levemente, "Holly
é uma grafia antiga de Santo – uma referência para a Terra
Santa?"
"Mmphm…"
"E hocks – bem, é para o jarrete. O que você acha disso?"
Um tremor subterrâneo percorreu seu corpo, ele se deitou em
cima de mim e colocou as duas mãos sob meus quadris. Sua
respiração fez cócegas calorosamente em meu ouvido.
"Acho que eu gostaria de dormir em uma flor com você,
Sassenach, segurando seus pés."
Estendi a mão para apagar a vela e minha mente se acomodou
onde ela pertencia, no coração quente da escuridão iluminada
pelo fogo.
1095

-.-.-

Dormi o sono dos jardineiros, o cansaço físico fermentado pela


tranquilidade e sonhei – não é de admirar – com ervas daninhas.
Eu estava arrancando-as do chão ao pé de um vasto maciço de
vinhas em flor, jogando as ervas daninhas por cima do meu
ombro e ouvindo-as cair no chão como moedas, então
percebendo que estava chovendo...
Eu me ergui lentamente do meu sonho de lesmas e vegetais
molhados pela chuva para perceber que Jamie havia se levantado
e estava usando o penico de lata, tendo se afastado da janela para
fazer isso a uma distância educada. Sabendo que seu avô, a Velha
Raposa, tinha sofrido de aumento da próstata516, eu estava
inclinada a ouvir – com o máximo de tato possível — em caso de
quaisquer indicações adversas, mas o som era
reconfortantemente forte e bem definido. Fechei os olhos e fingi
ter acabado de acordar quando ele voltou para a cama.
"Hummm?", eu disse, e acariciei seu braço. Ele se deitou,
suspirando, e pegou minha mão.
"O que é hoje?", ele disse. "Ou o que será, quando o sol nascer?"
"O que é – oh, você quer dizer qual é a data? É dia sete de outubro.
Eu estou certa disso, porque escrevi seis de outubro em meu
caderno preto quando fiz minhas anotações depois do jantar. Por
quê?"
"Mais alguns dias, então. Será o décimo primeiro."
"O que acontece no dia 11?"
"De acordo com o seu maldito primeiro marido, é quando os
americanos vão levantar o cerco a Savannah." Ele fez um ruído
baixo e descontente no fundo da garganta. "Eu nunca deveria ter

516
Livro 2 cap 41
1096

deixado Brianna ir!"


Parei por um minuto antes de responder, sem ter certeza do
terreno.
“A cidade não será invadida", eu disse, embora também estivesse
inquieta. Se acreditarmos no livro de Frank, e eu acreditava que
devíamos... "E você não poderia tê-la impedido, você sabe."
"Eu poderia", ele disse teimosamente. "Ou", ele acrescentou de
forma mais justa, "eu poderia ter impedido Roger Mac. E ela não
iria sem ele. E agora toda a família está lá, droga." Ele moveu as
pernas inquieto, farfalhando sob as cobertas.
"Sim", eu disse, respirando fundo. "Eles estão. Incluindo
William."
Ele parou de se mexer abruptamente e respirou pelo nariz um
pouco.
"Sim", ele disse por fim, relutantemente. "Eu não deveria ter feito
isso, entretanto – coloquei Bree em perigo. Nem mesmo pelo bem
de William."
Um grito gutural de uma pomba sonolenta nas árvores do lado de
fora anunciou que o amanhecer estava chegando. Não adiantava
tentar acalmar Jamie de volta ao sono, mesmo que fosse possível,
e não era. Sua inquietação era contagiosa. Eu sabia que ele estava
apenas se questionando; tudo isso já fora discutido de antemão.
Roger e Bree sabiam quando a batalha aconteceria – e que a
cidade não seria tomada. Mesmo assim, eles teriam tido tempo
suficiente para deixar a cidade, se as coisas parecessem muito
perigosas. E... apesar de seu atual nervosismo, Jamie na verdade,
confiava em John Grey para mantê-los seguros – ou tão seguros
quanto qualquer um poderia estar, em uma época como esta.
"Jamie", eu disse suavemente, finalmente, e toquei sua mão
levemente. "Nenhum lugar é seguro agora. Nem Savannah. Nem
1097

Salisbury ou Salem. Nem aqui."


Ele ficou quieto. Nem aqui.
"Não", ele disse suavemente, e apertou minha mão. "Nem aqui."
1098

82

JF SPECIAL

JAMIE ENTROU NO CONSULTÓRIO COM TRÊS garrafas de


uísque aninhadas em um braço e outra agarrada na sua mão livre.
"Oh... presentes?", eu perguntei, sorrindo.
"Bem, este é seu – ou para seus pacientes, pelo menos." Ele
colocou a garrafa de sua mão no meu balcão, em meio a uma
confusão de ervas secas, almofariz e pilão, garrafas de óleo e
pilhas de quadrados de gaze. Limpei migalhas de goldenseal de
minhas mãos, peguei a garrafa, puxei a rolha e cheirei.
"Presumo que este não seja o Jamie Fraser Special", eu disse,
tossindo um pouco, e coloquei a rolha de volta. "Tem cheiro de
removedor de tinta."
"Eu poderia ficar ofendido com isso, Sassenach", disse ele,
sorrindo. "Exceto que não fui eu quem o fez."
"Quem fez?"
"O sr. Patton. Marido de Mary Patton, que fabrica pólvora no
Condado de Tennessee."
"Mesmo?" Eu olhei para a garrafa, que era baixa e quadrada.
"Bem, suponho que alguém possa precisar de uma dose no final
do dia, se você passou o referido dia moendo pó que pode levá-
lo ao reino dos céus a qualquer momento. Espero que ninguém lá
esteja bebendo para acalmar os nervos antes de ir para o
trabalho."
"O próprio homem não bebe uísque", Jamie me informou,
colocando as outras garrafas na mesa. "Só cerveja. O que explica
1099

o gosto disso, suponho. Ele está vendendo para o povo que vem
buscar o pó de sua esposa. Ou pelo menos é o que ele diz."
Eu olhei para ele.
"Você acha que ele está vendendo para os índios?" O braço do
rio Wautauga, onde a fábrica de pólvora Patton estava localizada,
ficava muito perto da Linha do Tratado Cherokee. Jamie ergueu
um ombro brevemente.
"Se ele não estiver agora, em breve estará. A menos que sua
esposa o impeça. Ela é um pouco mais sábia do que ele – e a
maior parte do dinheiro é dela. Ela compra terras com ele."
"Bem, isso parece prudente." Eu olhei para os três frascos na
minha mesa de cirurgia. "São também do sr. Patton?"
"Não", disse ele, em um tom de mistura de orgulho e pesar. "Estas
são as Jamie Fraser Special – as últimas três garrafas. Há mais
dois barris pequenos na caverna, e talvez mais um ou dois nas
rochas – mas isso é o fim, até que eu possa preparar a maltagem
novamente."
"Oh céus."
O galpão de maltagem foi destruído pela gangue que atacou a
Cordilheira, e pensar nisso fez meu estômago dar um nó. O
destilador em si também havia sido danificado, mas Jamie o
estava colocando em ordem517, nos breves intervalos da
construção da casa. "E então ele ainda precisa ser envelhecido."
"Ach, dinna fash", disse ele, pegando uma das garrafas especiais,
desarrolhou-a e serviu um gole em um dos meus copos de
remédios, que me entregou. "Aproveite enquanto pode,
Sassenach."
Sim, embora meu prazer com a bebida tenha sido diminuído pelo

517
Isso ocorreu no livro 6, há bastante tempo. Depois disso já diversas vezes houve descrição de nova
maltagem, de nova destilação.
1100

conhecimento de que o uísque era nossa principal fonte de renda.


Certo, ele provavelmente tinha mais safras menores – o uísque
tinha safra? Possivelmente não...
Jamie interrompeu essas reflexões enfiando a mão no sporran, de
onde retirou um pequeno objeto de madeira.
"Eu quase esqueci. Aqui está o pequenino que você me pediu. "
Era um cilindro com cerca de cinco centímetros de diâmetro e
sete de altura e era mais largo na parte superior. Ele havia sido
cuidadosamente lixado e esfregado com óleo, as laterais lisas e
brilhantes e as bordas chanfradas e alisadas também.
"Oh, isso é adorável, Jamie – obrigada!"
Ele tinha sido feito de um pedaço de bordo, e a textura dos veios
girava lindamente em torno da curva da madeira.
"Sim, nenhum incômodo, Sassenach", disse ele, claramente
satisfeito por eu admirá-lo. "Mas para que serve isso? Você não
me disse. É um brinquedo para Amanda ou um mordedor para o
filho de Rachel?"
"Ah. Não. É..."
Eu parei abruptamente. Eu tinha virado o objeto em minha mão e
vi que ele tinha – como costumava fazer com todas as coisas que
produzia – marcado suas iniciais, JF, na parte inferior da peça.
"O que há de errado, a nighean?"
Ele veio olhar e, pegando minha mão, virou-a de modo que o
cilindro ficasse exposto em minha palma.
"Hã... nada. É só... Hum. Bem." Eu podia sentir minhas orelhas
esquentando. "É um, uh, presente para Auld Mam."
"Sim?"
Ele olhou para ele, perplexo.
"Por acaso você se lembra que Roger me disse que ele a tinha
1101

visitado e conversado com ela e ela contou a ele que quando ela,
hã, ia até a privada, seu... útero... caía em sua mão?"
Ele olhou para mim, assustado. Então seus olhos voltaram para a
coisa em minha mão.
"É, hum, chamado de pessário518. Ele deve ser inserido na..."
"Pare por aí, Sassenach."
Ele respirou fundo e soltou o ar lentamente, os lábios franzidos.
"É realmente lindo", assegurei. "E vai ser perfeito. É apenas – eu
pensei – talvez ter sua marca nele a faria se sentir...
constrangida?" Também me ocorreu que Auld Mam, não sendo
muito certa da cabeça, poderia, ao contrário, se sentir especial, se
fosse escolhida por Ele Mesmo. O que era muito bom, mas
poderia facilmente levá-la a remover o pessário para exibi-lo.
Ele me deu uma olhada, estendeu a mão e delicadamente pinçou
o pessário da minha palma com dois dedos.
"Não tão constrangida quanto eu ficaria, Sassenach, eu lhe digo.
Eu vou lixar."

518
O único tratamento eficiente para o prolapso (o decaimento de órgãos internos devido ao afrouxamento
de tecidos – que é algo relativamente comum nas mulheres mais velhas com múltiplas gestações e partos –
a mais comum sendo a “bexiga caída”) é a cirurgia. Mas, claro, tratando-se de uma idosa comprometida de
outras doenças. Claire pensaria em uma solução não-cirúrgica. Os pessários são um paliativo, mas
temporários. Seguram os órgãos no lugar, mas sua estrutura rígida pode causar ferimentos, com o tempo
prolongado de uso.
1102

83

A PENA DIANTEIRA519 DE UM
CORUJÃO-ORELHUDO

Colônia Real de Nova York

Início de outubro de 1779

OS DEDOS DE RACHEL TREMIAM, ao atar o nó da fralda de


Oggy, e a ponta escorregou de sua mão esquerda, as dobras da
fralda se desfizeram e o pequeno pênis de Oggy, exposto ao ar
frio, instantaneamente enrijeceu e enviou um jato de urina
fumegante a cerca de um metro de altura, quase acertando seu
rosto.
Ian, sentado na cama meio vestido ao lado de seu filho, riu como
um louco. Rachel deu a ele um olhar de aborrecimento, e ele
parou de rir, embora o sorriso permanecesse em seu rosto quando
ele tirou o pano úmido de sua mão. Ele se pôs de pé e começou a
limpar, dizendo algo para Oggy em mohawk. As palavras
pareciam enterrar-se debaixo de sua pele, coçando.
Ele vinha conversando com Oggy em mohawk mais e mais
conforme eles se aproximavam de Nova York, cada vez mais
perto de Canajoharie. Não que ela o culpasse. Patience e
Prudence ficaram encantadas com o som da língua e agora
podiam dizer uma série de coisas úteis, incluindo "Não me mate",
"Dê-me comida", "Não, não quero deitar com você" e "Eu
pertenço ao Irmão do Lobo, do clã do Lobo de Kahnyen'kehaka,
e ele vai castrar você se você me molestar".

519
A palavra aqui usada, “forefeather”, também significa ancestral,
1103

Ela podia ouvi-las praticando solenemente esses comentários na


sala ao lado, onde Jenny estava ajudando Sílvia a vestir todos com
o que parecia ser o melhor que possuíam. Porque hoje eles
chegariam a Canajoharie.
Ela sentiu como se tivesse engolido meio litro de balas de
mosquete, estas rolando pesadamente em seu estômago. Eles
ficaram preocupados – bem, ela ficou – de encontrarem soldados
errantes, batalhas aleatórias ou os homens que a guerra liberava
da sociedade, mas com a ajuda de Deus, a habilidade de Ian em
ver as coisas chegando e evitá-las, e – sem dúvida – sorte
completamente cega, eles haviam cruzado mais de mil e cem
quilômetros sem encontrar problemas sérios. Mas hoje eles
alcançariam Canajoharie – e, possivelmente, conheceriam
Trabalha Com Suas Mãos. "Ela era adorável. Eu a conheci perto
da água – uma piscina no rio, onde a água se espalha e não há
nem mesmo uma ondulação na superfície, mas você sente o
espírito do rio movendo-se através dela da mesma forma. "
As balas de mosquete caíram uma a uma em suas entranhas
enquanto ela se lembrava das palavras de Ian. "Ela era
adorável..."
E ela tinha três filhos, um dos quais podia ser de Ian.
Ela fechou os olhos e fez uma oração breve e feroz de desculpas,
com um pedido de quietude de mente e paz de espírito. Ela apoiou
a mão no corpo contorcido de Oggy, dizendo isso, e a paz de
espírito veio imediatamente. Ele era filho de Ian, sem dúvida,
nem ela podia duvidar do amor de Ian por ele – ou por ela.
"Ifrinn!", Ian exclamou. Ela sentiu uma umidade repentina e
quente florescer contra a palma de sua mão, e um fedor terrível
encheu o ar. "Nós nunca iremos embora assim, rapaz!"
Enquanto ele limpava e recolhia apressadamente Oggy e Rachel
enxugava o excesso, Ian se virou de repente, beijou sua testa e
1104

sorriu para ela, seus olhos ternos acima de suas tatuagens.


Obrigada, ela pensou em Deus, e sorriu de volta para o marido.
"Eu te disse que os Amigos não têm doutrinas, não disse, Ian?"
"Sim, você disse." Ele inclinou a cabeça, esperando, e ela ergueu
uma sobrancelha para ele e entregou-lhe um dos fechos de arame
que Brianna chamava de alfinetes de segurança, com os quais
prendia a fralda.
"Isso não significa que aprovamos todo tipo de comportamento,
simplesmente porque é a prática normal de outros."
"Mmphm. E, hum, que comportamento normal é esse que você
tinha em mente e que não vai aprovar?"
"Eu tinha em mente a poligamia."
Ele riu, e o espírito dela floresceu novamente.

-.-.-

ELES ALCANÇARAM CANAJOHARIE à tarde, e Ian


encontrou dois quartos em uma pequena pousada relativamente
limpa e, em seguida, enviou uma mensagem, escrita em mohawk,
para Joseph Brant, um dos mais poderosos líderes militares dos
mohawks – e parente de Emily – apresentando-se e pedindo uma
audiência. Antes do anoitecer, voltou uma resposta, em inglês:
Venha à tarde e tomaremos o chá. Terei prazer em conhecê-lo.
"Ele fala bem", observou Jenny, absorvendo não apenas a
mensagem, mas o papel em que estava escrito, que era bonito – e
preso com um selo de cera.
"Thayendanegea esteve em Londres, mãe", respondeu Ian. "Ele
provavelmente fala inglês melhor do que você."
"Sim, bem, veremos sobre isso", disse ela, mas Patience e
1105

Prudence riram e começaram a cantar: "Gatinha, gatinha, onde


você esteve? Eu estive em Londres para visitar a rainha!"520
"Ele foi a Londres para visitar a rainha?", Patience perguntou,
interrompendo.
"Sua mãe pode perguntar a ele por você", Ian respondeu, fazendo
Sílvia ficar corada até as orelhas.
Oggy teria que acompanhá-los, já que Rachel explodiria se fosse
obrigada a ficar sem ele por muito tempo, mas Sílvia garantiu a
Rachel que Prudence e Patience poderiam facilmente cuidar de
Chastity – e se algo desagradável acontecesse, como a pousada
pegando fogo de repente ou uma invasão de ursos, elas eram
rápidas e podiam ser confiáveis para levar sua irmã junto
enquanto escapavam.
Sílvia e Jenny se ofereceram para ficar para trás – assim como
Rachel – mas Ian foi firme: todas deveriam ir com ele.
"Não seria apropriado para mim me mostrar sozinho, como se eu
não tivesse família. Thayendanegea me consideraria um
indigente."
"Oh", disse Jenny, levantando uma sobrancelha em interesse.
"Então é isso, não é? Se você pode sustentar um grupo de
mulheres e crianças, isso prova que você deve ter um pouquinho
de moedas guardadas em seu colchão?"
"É isso", ele concordou. "Um pouco de terras, pelo menos. Use
seu relógio de prata, mãe, aye? E você se importaria de usar a
outra capa de Rachel, Amiga Sílvia? "
Nenhuma das mulheres tinha roupas brilhantes, Jenny ainda
estava com o preto de viúva, Sílvia possuindo apenas um vestido
sem buracos e o modesto guarda-roupa de viagem de Rachel
520
"Pussy cat, Pussy cat" é uma popular cantiga infantil inglesa, cujo registro mais antigo da rima foi a
publicação em Songs for the Nursery , em 1805. No entanto, como rimas folclóricas costumam ter um
tempo longo de vida antes de seu registro formal, estima-se que a rainha referenciada é Elizabeth I (1533
- 1603).
1106

ostentando nada mais ornamentado do que um forro de pele em


sua melhor capa, Ian tendo insistido nisso como questão de
sobrevivência em vez de vaidade. Mas estavam todos limpos e
decentes, os tecidos eram de boa lã – e o corpete de Jenny era de
seda negra e grossa, pelo menos.
"E não temos terra ou restos de animais sob nossas unhas",
observou Jenny. "E temos boas toucas, pois um pouco de renda
não é impróprio."
Ian balançou a cabeça com bom humor e colocou três pulseiras
nas mangas de sua jaqueta, duas de prata e uma de cobre polido.
Ele se abaixou para espiar no minúsculo espelho de barbear que
a senhoria havia fornecido, a fim de fixar em seu cabelo as
espetaculares penas azuis e vermelhas que John Quincy Myers
trouxera para ele – de uma "arara", disse Myers, embora não
conseguisse descrever como poderia ser esse pássaro, sem nunca
ter visto nada dele, exceto um punhado de penas.
"Tu podes me dizer novamente como pronunciar o nome do
cavalheiro, sim, Ian?", Rachel disse, os nervos levando o melhor
sobre ela.
"T'ay'ENDan'egg-e-a", Ian respondeu, olhando para o espelho, as
mãos ocupadas atrás da cabeça. "Mas não importa; seu nome em
inglês é Joseph Brant."
"Brant", Rachel repetiu, e engoliu em seco.
"E minha – a mulher que viemos ver – é Wakyo’teyehsnonhsa",
acrescentou ele, com aparente casualidade. Ele sorriu para Rachel
no espelho. "Só para você saber quando estivermos falando sobre
ela."
Jenny fungou e levou Rachel para a sala externa, para deixar
espaço para Ian e sua toalete, o quarto era pequeno e apertado.
"Eu não imaginaria que vamos falar com ela", disse ela para
1107

Rachel baixinho quando elas emergiram na pequena sala. "Ou eu


estaria perguntando a ele como dizer Vá embora, sua vadia de
cara de bronze, em mohawk. Embora isso talvez não seja
educado..."
"Possivelmente não", Rachel disse, sentindo seu espírito se
iluminar um pouco. "Se você descobrir, no entanto, me diga.
Apenas por precaução."
Jenny a olhou de soslaio.
"E você é uma Amiga", disse ela em desaprovação simulada.
"Embora eu suponha que ter a luz de Cristo dentro dela não
impede necessariamente uma mulher de ser uma vagabunda de
cara de bronze..." Ela apertou o pulso de Rachel com a mão livre.
"Dinna fash, moça. O rapaz ama você. Certamente você sabe
disso?"
"Não tenho dúvidas", garantiu ela a Jenny. E ela não tinha –
realmente não. Eram as crianças que a incomodavam. Os filhos
de Emily.
Mas esta era uma escolha de Ian; tinha que ser. Ele saiu do quarto
então, resplandecente. Ele estava externamente sério, mas ela
quase podia ouvir a excitação zumbindo em seu sangue. Ela
pegou sua capa, mas ficou segurando-a, olhando para ele.
"Talvez eu deva ficar com as crianças. Certamente você deve ir
sozinho, primeiro?", ela perguntou. "Para... para..."
"Não", disse ele, em um tom que indicava que não pretendia
discutir sobre isso, e ergueu Oggy nos braços. "Fomos
convidados para o chá. "

-.-.-

PARA SUA INTERMINÁVEL surpresa, era chá. Um chá


1108

formal, em uma elegante sala de estar, em uma casa que poderia


ter sido construída por um comerciante de Boston de sucesso
moderado. Joseph Brant também estava vestido como um
comerciante, em um bom casaco azul – embora usasse uma ampla
pulseira de prata que prendia o tecido azul logo acima do cotovelo
e tinha o cabelo trançado alinhado e amarrado com uma renda da
qual pendiam duas pequenas – mas brilhantes – penas vermelhas.
Rachel pensou que ninguém o teria confundido com nada além
do que ele era, não importava como estivesse vestido. Ele não era
um homem alto, mas tinha grande presença, com seus ombros
largos e um rosto largo de queixo quadrado, com uma boca firme
e carnuda e sobrancelhas negras pesadas.
"Agradeço a tua gentileza em nos receber", disse ela, olhando-o
nos olhos enquanto sorria. Os Amigos não se curvavam nem
faziam reverência, mas ela lhe deu a mão e ele se curvou sobre
ela e se levantou com um olhar de interesse no rosto.
"Você é uma Amiga", ele disse.
"Eu sou", respondeu ela, e acenando com a cabeça em direção a
Sílvia, "assim como minha amiga, Sílvia Hardman."
"Sejam bem-vindas", respondeu ele, curvando-se para cada
senhora, e mais ainda para Jenny. "Senhora, estou honrado."
"Bem, eu mesma não sou uma Amiga, senhor", disse ela. Ela
olhou para suas penas e joias. "Mas eu sou amigável." No
momento, seu rosto dizia claramente.
Brant sorriu para isso – um sorriso genuíno que alcançou seus
olhos.
"Estou aliviado em ouvir isso, senhora. Acho que não gostaria de
ter você como inimiga."
"Não, você não gostaria", Ian assegurou-lhe, o rosto sério. "Mas,
por sorte, todos viemos em paz. Meu tio lhe envia um símbolo de
1109

sua amizade. " Jamie e Ian decidiram sobre o presente para Brant,
e Ian mandou fazer na Filadélfia: um belo tinteiro cujo cristal
pesado tinha uma faixa de prata, estampado com os quatro
triângulos que simbolizavam ar, terra, fogo e água, e tinha na
tampa dois triângulos colocados um em cima do outro, apontando
em direções diferentes, que representavam "tudo o que é". Com
ele estava uma pena de escrever, também com faixas de prata,
saída da asa de um grande corujão-orelhudo, fornecida por Jamie.
Brant olhou para a pena com interesse, depois para Ian. Era a
primeira pena da asa, as farpas mais curtas de um lado, de forma
que a pena tinha uma longa curva recortada na ponta, enquanto
as farpas na ponta traseira eram serrilhadas, como um pente. Era
isso que deixava uma coruja voar silenciosamente, sem nenhum
indício de sua presença, até que subitamente saía da noite para
agarrar sua presa. Como um presente, essa pena poderia ser
considerada um elogio – ou um aviso. As corujas eram um
símbolo de sabedoria – mas também podiam ser arautos de algo
terrível ou perigoso.
Uma mulher apareceu na porta larga atrás de Brant, sorrindo. Ela
tinha cabelos escuros e era bonita, usando um vestido europeu de
algodão, com raminhos vermelhos, com um fichu branco preso
por um broche de ouro em forma de borboleta.
"Minha querida", disse Brant, curvando-se diante dela com uma
elegante suposição das maneiras de Londres, "posso apresentar a
você Okwaho, iahtahtehkonah521, e sua esposa e mãe? E sua
companheira", ele acrescentou, com outra reverência em direção
a Sílvia. "Minha esposa, Catherine", ele terminou, com o que
parecia um floreio bastante casual para a mulher de vermelho,
que lhe deu um olhar penetrante, mas retomou o sorriso enquanto

521
No livro 4, Ian é nomeado como Irmão do Lobo, mas seu nome em mohawk nunca é revelado. No
livro 6, Okwaho era o nome mohawk de Rollo. Não encontramos tradução para “iahtahtehkonah”, esse
complemento do nome Okwaho, que parece ser também o nome mohawk de Ian.
1110

fazia uma reverência aos viajantes.


Ela ficou surpresa quando nenhuma das mulheres retribuiu a
saudação, e ela olhou para o marido, como se perguntasse se ele
notou sua grosseria.
"Elas são quacres", disse ele, com um pequeno encolher de
ombros e os ombros dela relaxaram.
E Jenny Murray não faria uma reverência ao rei da Inglaterra,
muito menos a um homem que ela pensa ser um assassino
monarquista, Rachel pensou, mas manteve o rosto
agradavelmente inexpressivo.
Catherine olhou em dúvida para Jenny, que podia parecer
inescrutável quando queria, mas não estava fazendo isso no
momento. A sra. Brant decidiu que as mulheres mais jovens
poderiam ser mais acessíveis e voltou-se para elas, chamando-as
para a mesa onde o chá estava servido e pedindo-lhes que se
sentassem.
"Algum de vocês por acaso é um pacificador?" ela perguntou,
sorrindo enquanto se sentava.
"Eu duvido", Rachel disse cautelosamente, e olhou para Sílvia,
que balançou a cabeça.
"Não sou", disse ela, "mas ouvi falar deles". Ela se virou para
Rachel em uma explicação. "Visto que os Amigos são conhecidos
por serem imparciais e dedicados à paz, alguns foram convidados
para conduzir negociações entre... pessoas em conflito?", ela
terminou, com um olhar de dúvida para Catherine Brant.
"Sim, está certo." A sra. Brant derramou o chá em uma peneira
de prata com detalhes de flores em volta da borda, e um vapor
perfumado e meio familiar subiu como um fantasma.
"Chá!" Rachel disse, involuntariamente, então corou.
Thayendanegea sorriu para ela através do vapor.
1111

"É", ele disse, e ergueu uma sobrancelha. "Devo presumir que


você não encontra chá há algum tempo?"
Essa foi uma questão delicada. Ian estava pronto para isso; ele
disse a Rachel que pretendia ignorar a política, já que não havia
como saber o quanto Thayendanegea já sabia sobre eles.
"Nós não encontramos", Ian disse facilmente, pegando um
pãozinho do prato de porcelana florido oferecido a ele por um
criado. "Isso faz meu tio espirrar."
Os olhos de Brant se enrugaram com humor.
"Já ouvi falar do seu tio", disse ele. "Nove-Dedos, ele é chamado
entre alguns dos iroqueses?"
Rachel não tinha ouvido essa, mas ou Ian ouviu ou escondeu a
surpresa. "Sim. Os Tsalagi o chamam de Matador de Urso."
"Um homem de muitos nomes", disse Brant, divertido. "E o
general Washington o chama de amigo, eu acredito."
"Ele é um amigo da liberdade", disse Ian, com um encolher de
ombros.
"É um bom chá, com certeza", disse Jenny à sra. Brant, embora
ela pousasse a xícara sem beber. "E uma bela casa. Você já mora
aqui há algum tempo?"
Rachel não sabia se a palavra "liberdade" era um sinal combinado
entre mãe e filho, ou apenas o ritmo natural de uma conversa que
devia necessariamente pairar entre política e polidez, mas
Catherine Brant respondeu à pergunta de Jenny, e as mulheres
passaram facilmente a falar sobre a casa, os móveis e então – por
meio dos padrões de porcelana – sobre comida, ponto em que a
conversa se tornou verdadeiramente cordial.
Apesar de um interesse genuíno por sopa de milho e pão frito,
Rachel manteve um ouvido na conversa dos homens, que variava
facilmente entre inglês e mohawk. Ela pegava um nome de vez
1112

em quando – ela reconheceu o nome mohawk de Olha para a Lua


e Ounewaterika, o nome que os índios davam ao general Lee. E
então seu ouvido captou o nome que ela estava esperando.
Wakyo’teyehsnonhsa.
Ela tentou não ouvir e se forçou a não olhar para Ian. Ela sentiu,
em vez de ver, o olhar penetrante de Jenny para ele.
Não durou muito, o que quer que tenha sido dito sobre a mulher,
pois depois de um tempo, Brant voltou-se para ela para perguntar
por seu irmão, Denzell, que ele conhecera brevemente em
Albany, e os remoinhos da conversa da mesa convergiram para
uma corrente suave.
Suavemente leve, agora que o tema de Trabalha Com Suas Mãos
tinha sido momentaneamente resolvido, para que Rachel pudesse
respirar e considerar as peculiaridades desta mesa e do homem
que a possuía, que conversava agora da maneira mais amigável
com Sílvia Hardman, sobre perus.
Como eles poderiam estar sentados aqui, envolvidos nos tipos de
conversa mais comuns, em frente a um homem de quem se dizia
que havia matado, e ordenado que fossem mortas, várias pessoas?
Você não apenas se senta para jantar com Jamie Fraser, como
também o ama e respeita, destacou sua luz interior. E ele não fez
as mesmas coisas?
Não com pessoas inocentes, ela pensou teimosamente. Embora
com toda a justiça, ela sabia muito bem que qualquer coisa
poderia ser dita sobre um homem, sem necessariamente ser
verdade.
E os dois fizeram o que fizeram porque é uma guerra, suponho...
Sua luz interior era cética, mas recuou com uma mudança
repentina na conversa.
Brant tinha dito algo para Ian em mohawk, em um tom casual,
1113

mas com um olhar de soslaio para Rachel que fez os cabelos de


seu couro cabeludo arrepiarem. Ian deliberadamente se virou para
o lado, para que ela não pudesse ver seu rosto, e disse algo na
mesma língua que fez Brant rir.
Ela percebeu que Jenny, ao lado dela, lançava um olhar muito
penetrante para Brant. E que Catherine Brant os estava
observando por cima da xícara de chá, uma sobrancelha
levantada. Vendo que Rachel havia notado, ela largou a xícara e
se inclinou um pouco para frente.
"Ele disse que o Irmão do Lobo deve achar que não poderia
manter duas esposas, ele deve saber que Trabalha Com Suas
Mãos tem trinta e quatro hectares de terras férteis em seu próprio
nome – ela é muito boa na agricultura. Mas o Irmão do Lobo não
deve temer pelo seu futuro", ela sorriu para Rachel, "porque uma
boa pregadora da paz seria bem-vinda em qualquer lareira e o
próprio Thayendanegea se ofereceria para mantê-la."
Apesar de suas melhores intenções, o queixo de Rachel caiu.
"Oh, não desse jeito", Catherine assegurou-lhe. "Ele quer dizer
que iria mantê-la como um membro valioso de sua família, não
sua cama."
"Oh", disse Rachel, fracamente.
Antes que ela pudesse pensar em uma rejeição cortês de qualquer
uma das propostas, houve uma corrente de ar frio vinda do
corredor quando a porta da frente se abriu, e passos suaves no
corredor.
Todos se viraram para olhar, e Rachel viu um homem mohawk
mais velho, ainda esguio e ereto, mas com cabelos grisalhos –
estes finamente adornados com botões de prata e um par de asas
de pombo-passageiro penduradas em um fio de linha azul
trançada – e um semblante profundamente envelhecido, cujas
linhas e olhos escuros mostravam um homem de autoconfiança e
1114

humor profundo. Ele curvou-se para as senhoras, os olhos


vincados com interesse.
"Ah, aí está você", disse Joseph Brant, parecendo divertido. "Eu
deveria saber que você não poderia ficar longe de tais visitantes."
Ele se levantou e se curvou da mesma forma para as mulheres.
"Madame Murray, Outra Madame Murray e Madame...
Hardman? Sério, que estranho... Posso apresentar-lhe o Sachem,
meu tio."
"Encantado, mesdames", disse o Sachem, cujo sotaque oscilava
entre o inglês instruído e o francês. "E você será Okwaho,
iahtahtehkonah, é claro", acrescentou ele, com um aceno cordial
para Ian. "Sim, obrigado", acrescentou ele à criada que trazia
outra cadeira e para outra que trazia pratos, talheres e
guardanapos de linho. Ele se sentou entre Rachel e Jenny,
sorrindo de uma para a outra.
Rachel se perguntou se a aparição do Sachem tinha sido calculada
para entreter as mulheres enquanto Ian falava de política com
Brant, mas sua conversa teria agraciado qualquer sala de estar e,
após alguns momentos, sua ponta da mesa estava animada por
observações, elogios e histórias de todos os tipos.
Rachel estava acostumada a observar as pessoas e ouvi-las, e
ficou impressionada com o Sachem: ele fazia perguntas
inteligentes e prestava atenção às respostas, mas quando
pressionado a expor seus próprios detalhes era suficientemente
espirituoso e divertido a ponto de – quase – impedi-la de insistir
nas implicações das observações de Brant a respeito de várias
esposas.
"Você tem um nome, senhor?" Jenny perguntou. "Ou você nasceu
sachem522, e é isso?" Rachel deu a sua sogra um olhar

522
Aqui, Jenny dá a entender que sachem não é um simples nome: Um sachem era um líder na tribo,
escolhido de cada clã para representar a nação mohawk na Liga das Cinco Nações, que constituía os
Iroqueses.
1115

interrogativo. Ela sabia muito bem que Jenny sabia o que era um
sachem; Ian passou os quilômetros entre Filadélfia e Canajoharie
em explicações e descrições dos mohawk e seus costumes. Ela
havia observado o rosto dele, iluminado com a memória e
expectativa, e passou os mesmos quilômetros dividida entre o
prazer por sua excitação e um desejo indigno de que ele não
parecesse tão encantado com a ideia de voltar para essas pessoas
– que eram, ela se lembrou severamente, seu povo, afinal...
"Oh, certamente uma pessoa tem direito a mais de um nome",
respondeu o Sachem, seus olhos se enrugando de diversão. "Você
tem mais nomes do que Murray, tenho certeza – pois, afinal,
aquele deve ter pertencido a seu marido."
Jenny pareceu surpresa, mas então percebeu, como Rachel, que o
Sachem conhecia bem o costume europeu a ponto de tê-la
reconhecido pelo vestido de viúva. Ou isso, Rachel pensou,
divertida, ou ele é um bom adivinhador.
Sua diversão desapareceu no instante seguinte quando o Sachem
pegou a mão de Jenny e disse, bastante casualmente: "Ele ainda
está com você – seu marido. Ele pediu para lhe dizer que anda
sobre duas pernas."
O queixo de Jenny caiu e o de Rachel também.
"Sim, nasci com isso", disse o Sachem, sorrindo ao soltar a mão
de Jenny. "Mas o meu nome masculino– se você preferir usá-lo –
é Okàrakarakh'kwa. Significa Sol Brilhando na Neve",
acrescentou ele, seus olhos se enrugando novamente.
"Abençoado Michael, defenda-nos", Jenny disse baixinho em
gaélico. "Aye", ela disse em uma voz mais alta, e endireitando-
se, conseguiu o fantasma de um sorriso gracioso. "Sachem vai
ficar bem por enquanto. Meu nome é Janet Flora Arabella Fraser
Murray. Você pode me chamar de Sra. Janet, se quiser."
1116
1117

84

SARDINHAS FRITAS E MOSTARDA


FORTE

SE O SACHEM SABIA DE ALGUMA COISA de natureza


perturbadora, ele guardou para si mesmo, em vez disso disse a
elas – em resposta às suas perguntas – que tinha ido com seu
sobrinho a Londres, como companheiro e conselheiro, daí sua
familiaridade com o inglês e seu apreço pelo chá e sardinhas fritas
com mostarda forte.
Foi uma refeição longa e elaborada, e quando chegaram ao pudim
de milho com morangos secos, os seios de Rachel começaram a
formigar, empurrando seu espartilho com urgência cada vez
maior. Agora que Oggy podia comer um pouco de comida sólida,
ele mamava com menos frequência, e essa sensação de estar
prestes a explodir não acontecia há algum tempo.
Ela empurrou o pensamento de lado; pense em Oggy por mais um
minuto, e seu leite descerá. Ela dobrou pedaços de pano dentro
do espartilho como precaução, mas eles não resistiriam ao jorro
por muito tempo. Ela chamou a atenção de Catherine e fez um
breve olhar questionador com um aceno de cabeça em direção à
porta.
Catherine se levantou imediatamente e, tocando o ombro do
marido com breve afeto, acenou para Rachel com um aceno de
cabeça para segui-la.
"Oggy – meu bebê", Rachel disse, no corredor. "Onde ele está
agora?" Ela havia sido induzida a deixar uma jovem mohawk
cuidar de Oggy enquanto eles tomavam chá, mas não tinha ideia
de para onde a garota poderia tê-lo levado.
1118

"Oh", disse Catherine, com uma pequena carranca. "Eu vi Bridget


levá-lo para fora um pouco atrás. Não se preocupe", ela adicionou
gentilmente, vendo o rosto de Rachel. "Ele está bem embrulhado
e tenho certeza que voltarão em breve."
"Em breve" não seria breve o suficiente; os seios de Rachel
estavam começando a vazar só de pensar em Oggy.
"Nesse caso", disse ela, tentando preservar sua dignidade, "posso
incomodá-la para me mostrar a casa das necessidades?"
A casa das necessidades era do lado de fora, uma estrutura de
tijolos bem cuidada, e Catherine deixou Rachel lá com um
sorriso. Rachel agradeceu e foi rapidamente para trás da latrina.
A privacidade era necessária, mas ela não pretendia extrair seu
leite em uma fossa.
Ela abriu seu espartilho mal a tempo. Bastou pensar em seu filho,
pesado e mole em sua absorção, o puxão repentino e forte de sua
sucção, e o leite jorrou de ambos os seios, respingando entre as
trepadeiras vermelhas esfarrapadas que cresciam na parede da
latrina. Ela fechou os olhos, suspirando de alívio, depois os abriu
quase imediatamente, ouvindo o ranger da porta da latrina do
outro lado do prédio, depois passos no caminho.
Ela mal teve tempo de apertar as roupas contra os seios expostos
antes que um homem dobrasse a esquina da casa de necessidades,
parando estático quando a viu.
"Uéé!", disse ele, arregalando os olhos para ela. Ele era um
homem branco, embora muito bronzeado pelo sol, como Ian. Ele
não tinha tatuagens, mas usava roupas que eram uma combinação
de trajes indígenas e europeus, como Joseph Brant, embora suas
roupas fossem de qualidade muito inferior. Ele mancava muito,
ela percebeu, e andava com uma bengala.
"Se você não se importa, Amigo, eu ficaria grata por um
momento de privacidade", disse ela, com a dignidade possível.
1119

"O que?" Ele tirou os olhos de seus seios e a olhou no rosto. "Oh.
Oh, certamente. Meu perdão. Hã... senhora." Ele recuou
lentamente, embora parecesse incapaz de tirar os olhos do peito
dela.
Ele virou-se apressadamente na quina da casa das necessidades e
quase imediatamente colidiu com alguém vindo rapidamente na
direção oposta. Rachel ouviu o impacto, um clamor feminino,
outra execração mohawk do homem e então...
"Gabriel!", a voz de Sílvia Hardman disse em espanto.
"Sílvia!"
Rachel ficou congelada, o leite quente pingando em seus dedos.
Ambas as vozes disseram, em tons de acusação: "O que tu estás
fazendo aqui?"
"Senhor, tenha misericórdia", disse Rachel, baixinho, e deu dois
passos para o canto da casa de necessidades, espiando
cautelosamente ao redor.

-.-.-

"EU...EU... " O ROSTO de Gabriel estava pálido de choque, mas


Rachel podia ver que ele carregava os sinais do trabalho, longos
meses de exposição ao sol e as marcas da fome há não muito
tempo. "Eu... Sílvia? És tu? Realmente tu?"
Os ombros de Sílvia tremiam sob sua capa cinza. Ela levou a mão
trêmula ao rosto, como se perguntando se realmente era ela.
"Sim... sou", disse ela, parecendo em dúvida, mas a mão caiu, e
ela deu alguns passos em direção ao marido e parou, olhando para
ele. A cabeça dela se inclinou enquanto ela olhava para baixo, e
Rachel viu que além da bengala que ele havia deixado cair, ele
tinha uma muleta debaixo do braço, e a perna e o pé daquele lado
1120

estavam estranhamente torcidos.


"O que aconteceu contigo?", Sílvia sussurrou, e sua mão foi em
direção a ele. Ele fez um pequeno movimento convulsivo como
se fosse pegar a mão dela, mas então recuou.
"Eu fui tomado. Por shawnees523. Eles me trouxeram para o norte;
uma noite eu escapei. Isso os deixou com raiva, e eles – cortaram
meu pé ao meio." Ele engoliu em seco. "Com um machado."
"Oh, Jesus Cristo, tenha misericórdia!"
"Ele teve", disse Gabriel, reunindo um sorriso muito pequeno de
algum lugar. "Eles não me mataram. Eu ainda tinha valor como
escravo. O que..."
"Tu és um escravo aqui?" Sílvia estava começando a controlar
suas emoções; sua voz continha indignação tanto quanto choque.
Gabriel balançou a cabeça, negando.
"Não. O Senhor me protegeu; os shawnees me venderam para um
bando de mohawk que tinha com eles um padre jesuíta – eles o
estavam escoltando para uma missão no Canadá. Ele falava
apenas francês, e eu sabia um pouco da língua, mas ele cobriu e
fez cataplasma em minha ferida e eu lhe mostrei que sabia
escrever e calcular, e ele convenceu meus captores de que eu
valeria mais para um homem de propriedade do que trabalhando
nos campos de alguém."
"O sr. Brant?" Sílvia parecia totalmente horrorizada, e Rachel
também. "Finalmente." Gabriel parecia repentinamente cansado,
e as rugas se mostrando em seu rosto austero. "Eu não sou... um
escravo aqui, no entanto. Eu sou livre."
Livre.

523
A tribo Shawnee é uma tribo da floresta oriental norte-americana. No final do século 18, a invasão
europeia-americana lotou as terras dos shawnee no leste, e uma banda migrou para o Missouri.
Atualmente, sobrevivem três grupos reconhecidos como herdeiros dos originais shawnee, todos em
Oklahoma: Loyal Shawnee, Absentee-Shawnee e a Tribo Shawnee Oriental de Oklahoma.
1121

A palavra pairou no ar frio da manhã, cintilante e nítida como um


pingente de gelo. Ninguém falou por um momento, mas as
palavras não ditas foram tão claras para Rachel como se tivessem
sido gritadas.
Então por que não voltaste para casa? Ou pelo menos mandasse
avisar que não estavas morto?
"Tu... tu estás bem, Sílvia?" Gabriel ficou parado, apoiado na
muleta. Ele não usava peruca e o vento frio ergueu seus cabelos
finos e ralos que cintilaram por um momento, como uma auréola
fugaz.
Sílvia riu disso, uma risadinha alta, meio histérica.
"Não", ela disse, parando abruptamente. "Não, eu não estou. Não
tinha dinheiro e nem ajuda. Mas tenho mantido minhas filhas
alimentadas, o melhor que posso."
"As meninas. Pru e Patience, elas estão contigo? Aqui?" A
emoção em sua voz era sincera e os ombros de Rachel relaxaram
um pouco. Talvez ele tenha sido impedido de partir, embora não
fosse mais um escravo.
"Prudence, Patience e a pequena Chastity", disse Sílvia, com uma
nota em sua voz que o desafiava a perguntar. "Sim, elas estão
comigo."
Ele congelou por um momento, olhando atentamente para o rosto
dela. Mesmo de costas, Rachel pode facilmente imaginar qual
deve ser a expressão de Sílvia: vergonha, desafio, esperança... e
medo.
"Quatro de fevereiro, em 1778", Sílvia respondeu claramente, o
desafio maior, e o rosto de Gabriel endureceu.
"Suponho que tu te casaste de novo", disse ele. "O teu... marido...
está contigo?"
"Eu não me casei", disse ela entre dentes.
1122

Ele parecia chocado. "Mas, mas..."


"Como eu te disse. Eu mantive minhas filhas alimentadas."
Rachel sentiu que realmente não devia ser testemunha de tais
intimidades dolorosas entre os Hardman. Mas uma madressilva
seca havia grudado em suas roupas e seus pés estavam enterrados
nos restos de tomateiros mortos; o vento cessou repentinamente
e não havia como ela se mover no meio daquele silêncio horrível
sem ser detectada.
"Entendo", Gabriel disse finalmente. Sua voz estava sem cor, e
ele ficou parado por vários momentos, as mãos atadas diante dele,
claramente se decidindo sobre alguma coisa. Seu rosto mudou
enquanto ele pensava, e as emoções de raiva, pena, vergonha e
confusão suavizaram em uma dura superfície de decisão.
"Eu me casei", ele disse calmamente. "Uma mulher mohawk,
sobrinha do Sachem. Ele é..."
"Eu sei quem ele é." A voz de Sílvia parecia fraca e distante.
Outro longo momento de silêncio e Rachel ouviu o minúsculo
clique enquanto Gabriel lambia os lábios.
"Os... mohawks têm uma noção diferente de casamento", disse
ele.
"Eu diria que sim." Sílvia ainda parecia estar a cem quilômetros
de distância, participando dessa conversa por meio de sinais de
fumaça.
"Eu poderia – eu poderia... ter duas esposas." Ele não parecia
achar que a perspectiva do matrimônio duplo era agradável.
"Não, tu não podes", disse Sílvia friamente. "Não se tu achas que
eu seria uma delas."
"Eu não deveria pensar que tu irias me julgar", Gabriel disse
rigidamente. "Não pronunciei nenhuma palavra de reprovação
para..."
1123

"O olhar em teu rosto enganoso é reprovação suficiente!" O


choque passou e a voz de Sílvia quebrou com fúria. "Como te
atreves, Gabriel! Há quanto tempo tu estás aqui, com todas as
facilidades para escrever e se comunicar, e não mandou nenhuma
palavra? Se eu fosse uma viúva respeitável e tu não tivesse nos
separado da Reunião Anual e de outros Amigos na Filadélfia, eu
poderia ter me casado novamente, embora estivesse
profundamente triste por ti". Sua voz falhou e ela respirou
audivelmente, tentando recuperar o controle.
"Mas ninguém sabia se tu estavas morto, detido ou... ou o quê!
Eu não poderia me casar. Fiquei sem nada... nada... exceto aquela
casa. Um teto sobre nossas cabeças. O exército pegou minhas
cabras e pisotearam meu jardim, e eu vendi tudo menos uma cama
e uma mesa. E depois disso…"
"Chastity", Gabriel disse, em um tom desagradável.
Sílvia estava ereta como uma muda de carvalho, os punhos
cerrados ao lado do corpo e tremendo de raiva. Quando ela falou,
porém, sua voz estava calma e vibrante.
"Eu me divorcio de ti", ela disse. "Casei-me contigo de boa-fé,
amei-te e confortei-te, dei-te tuas filhas. E tu me abandonaste, tu
me trataste de má fé e tencionas continuar a fazê-lo. Não existe
casamento entre nós. Eu me divorcio e te rejeito."
Gabriel parecia completamente pasmo. Rachel sabia que o
divórcio era possível entre Amigos, mas nunca havia conhecido
ninguém que o tivesse feito. Será que tal coisa realmente
aconteceu na frente dela?
"Tu. Divorciar-te de mim?" Pela primeira vez, a raiva inundou
seu rosto. "Se alguém declarasse a união entre nós vazia..."
"Eu não enganei meu esposo. Eu não cometi bigamia. Mas eu
declararei que nosso casamento acabou, e você não tem como me
impedir."
1124

Rachel sumiu de vista por reflexo, a palma da mão cobrindo a


boca, como se ela pudesse exclamar em protesto pela cena diante
dela. Ela estava se preparando para fugir quando Gabriel falou
novamente.
"Claro, vou ficar com Patience e Prudence", garantiu ele a Sílvia,
e Rachel congelou. Ela se sentiu obrigada a espiar
cautelosamente ao redor do prédio novamente, apenas para ter
certeza de que o silêncio de Sílvia não significava que ela caíra
morta de choque ou fúria.
Ela não tinha, embora tivesse se virado ligeiramente, e estava
claro em seu rosto congestionado que apenas a incapacidade de
escolher entre as palavras que inundavam sua garganta a impedia
de falar.
"Eu senti falta delas cruelmente", disse Gabriel, e pelo olhar em
seu rosto, ele provavelmente era sincero.
"Tu naturalmente não sentiste falta de Chastity", disse Sílvia,
com a voz trêmula – de raiva, Rachel tinha certeza, embora pela
expressão no rosto de Gabriel, um olhar misto de pena e
exasperação, ela não achava que ele tinha diagnosticado o humor
da esposa corretamente.
"Eu... não te condeno", disse ele. "Quer tenha sido... estupro, ou...
ou escolha, tu..."
"Oh, com certeza escolha," Sílvia sibilou. "A escolha entre abrir
minhas pernas ou ver minhas filhas morrerem de fome! A escolha
que tu me deixaste!"
Gabriel ficou tenso. "O que... qualquer que seja a causa de seu
nascimento, a criança não pode ser condenada ou considerada
culpada", disse ele. "Ela mantém a luz de Cristo dentro dela,
assim como todos os homens, mas..."
"Mas tu não estás disposto a reconhecer o Cristo nela – ou em
1125

mim, suponho!"
A mandíbula de Gabriel cerrou-se com força e ele lutou por um
momento, claramente procurando controlar suas fortes emoções.
"Tu me interrompeste agora mesmo", disse ele uniformemente.
"Eu disse que manterei Patience e Prudence comigo. Elas serão
felizes, seguras e bem cuidadas. Mas eu te darei uma quantia em
dinheiro para te manteres e a criança."
"O nome dela é Chastity", Sílvia disse, tão uniformemente quanto
ele. "E tu sabes por quê, embora ela nunca saberá, se Deus
quiser." Ela respirou fundo e soltou uma lenta respiração clara
como a de um dragão. "Eu devo seguramente ficar com ela – e
suas irmãs também. Não vou falar mal de ti a elas; elas merecem
pensar que o pai as amava." Houve apenas uma ligeira ênfase em
"pensar".
"Tu não tens o direito de tirá-las de mim", disse Gabriel. Ele não
parecia zangado agora; apenas prático. "Os filhos são do pai; é a
lei."
"A lei", repetiu Sílvia, com desprezo. "Lei de quem? Tua? Do
rei? Do Congresso?" Pela primeira vez, ela olhou ao redor, para
os campos escuros que se espalhavam e as árvores sem folhas, as
casas ao longe, nubladas pela fumaça. "Tu não me disseste que
os mohawks têm uma visão diferente do casamento? Bem,
então." Ela fixou seu olhar nele novamente, os olhos duros como
pedra. "Vou falar com o teu mestre, e veremos."

-.-.-

COM ESSE ULTIMATO, Sílvia se virou e caminhou com


determinação em direção à casa. Gabriel Hardman a perseguiu,
sua muleta batendo em sua ansiedade para alcançá-la, mas se ela
1126

ouviu suas importunações, elas não surtiram efeito.


Encontrando-se sozinha, Rachel se sacudiu violentamente,
tentando desalojar sua memória dos últimos minutos, de modo a
permitir que seus sentimentos se acomodassem em alguma
direção. Ela foi para a latrina e, apesar de sua natureza úmida e
fedorenta, largou a trava e sentiu uma sensação bem-vinda de
privacidade e silêncio ao seu redor. O delicado funcionamento de
seu próprio corpo a aliviou também, com sua tranquila garantia.
Seu irmão, Denny, havia lhe dito uma vez que os judeus – uma
raça muito dada à oração – tinham orações breves especiais a
serem recitadas em ocasiões privadas como esta, agradecendo ao
Criador pelo funcionamento tranquilo da bexiga e dos intestinos.
Isso a fez rir a princípio, mas agora pensava que havia bom senso
nisso.
O formigamento de seus seios voltando e eles inchando
lentamente a tornou ciente de outros funcionamentos, e ela
agradeceu rapidamente pela existência de seu filho quando saiu
para o ar cortante.
"E pela pequenina Chastity e suas irmãs também", acrescentou
ela em voz alta, percebendo de repente que a cena terrível que
acabara de testemunhar entre os Hardman certamente atrairia três
crianças inocentes para seu vórtice. "Senhor, elas nem mesmo
sabem sobre seu pai ainda!"
Ela olhou ansiosamente para a casa, mas nem Sílvia nem o ex-
marido de Sílvia estavam à vista. A porta se abriu, porém, e seu
próprio marido saiu, seu rosto iluminando-se ao vê-la.
"Aí está você!" Ele alongou seu passo para alcançá-la mais cedo
e a apertou em seus braços. "Eu pensei que talvez você tivesse
encontrado uma cobra na privada, você demorou tanto. Você está
bem?", ele perguntou, olhando para o rosto dela com preocupação
repentina. "Você comeu algo que lhe deu indigestão?"
1127

"Não a comida", disse ela. Ela queria se agarrar a ele, mas seus
seios estavam tão sensíveis no momento que ela se separou.
"Ian..."
"O homenzinho está rugindo por você", disse ele, inclinando a
cabeça em direção à casa. Ele estava; Rachel podia ouvir Oggy
berrando de onde eles estavam, e seus seios imediatamente
começaram vazar. Ela correu para a porta, Ian em seus
calcanhares.
"Veja", Ian disse a Oggy enquanto ela o pegava. "Eu disse a você
que Mammaidh não o deixaria morrer de fome. Eles estavam no
quarto de hóspedes que Catherine lhes dera quando Brant
entregou a mensagem de Wakyo'teyehsnonhsa524, e Rachel
afundou na cama, mexendo no espartilho com uma das mãos.
Oggy se lançou sobre ela, agarrou o mamilo disponível como um
crocodilo faminto, e os gritos pararam abruptamente.
"O Sachem gostou da minha mãe", disse Ian, no silêncio
repentino. "Ele a desafiou para uma competição – pistolas a dez
passos."
"Uma competição ou um duelo?" Rachel perguntou, fechando os
olhos na felicidade do alívio enquanto seu leite descia. O seio
livre estava pingando, mas ela não se importou.
"De qualquer maneira, coloquei cinco contra um na mamãe",
disse Ian, rindo. "O pai dela a ensinou a atirar, e tio Jamie e meu
pai a levaram aos pântanos para caçar coelhos e perdizes quando
eram meninos. Ela pode atingir seis pence a dez passos, desde
que a pistola tenha a mira ajustada."
"Com quem é a tua aposta? Joseph Brant ou o Sachem?"
"Oh, Thayendanegea, com certeza. O que está errado, moça? "
Ela abriu os olhos para ver o rosto dele a alguns centímetros do

524
Não existe informação anterior de mensagem de Wakyo'teyehsnonhsa.
1128

dela; ela podia sentir o calor de seu corpo na sala fria e se aninhou
mais perto.
"Presumo que não saibas que o marido da Amiga Sílvia está
aqui?"
Ian piscou.
"O que ... o homem que deveria estar morto?"
"Infelizmente, ele não está. Mas ele está aqui. Eles se
encontraram, agora mesmo, do lado de fora da latrina."
"Infelizmente", ele repetiu lentamente, e ergueu uma
sobrancelha. "Por que seria melhor para ele estar morto?"
Rachel deu um suspiro que fez Oggy grunhir e se agarrar mais
ferozmente.
"Ai! Não tenho nenhuma objeção ao pobre homem continuar a
viver, é o aqui que é o problema." Ela contou a ele brevemente o
que havia acontecido.
"E quanto a Patience e Prudence?" ela exigiu, reassentando Oggy
em seu colo. "Pelo que você me contou sobre o seu primeiro
encontro com elas, elas estão bem cientes das dificuldades em
que sua mãe se encontrava e como ela lidou com a situação delas.
Elas claramente a amam e são leais a ela, de qualquer maneira.
Mas agora seu pai voltou, e elas o amam também!"
"Mas elas ainda não sabem – que ele não está morto e está aqui?"
"Elas não sabem isso." Rachel fechou os olhos e beijou a pequena
cabeça redonda de Oggy, macia com sua camada de cabelos
escuros e sedosos. "Tenho pensado em como nós podemos ajudá-
las e a amiga Sílvia, mas não vejo um bom caminho a seguir. Tu
tens algumas idéias?"
"Eu não", disse ele. Ele levantou e olhou pela janela. "Eu não vejo
nenhuma delas. Não que eu saiba como o homem se parece,
mas..."
1129

"Ele manca muito e anda com muletas. O shawnee que o capturou


cortou metade de seu pé com um machado."
"Jesus. Não admira que ele não tenha ido para casa, então."
"Sílvia disse que falaria com o mestre de seu marido – suponho
que ela se referia a Joseph Brant. Talvez eles estejam com ele?"
Ian balançou a cabeça.
"Não, eles não estão. Isso é o que eu vim dizer a você –
Thayendanegea se foi. Eu disse a ele logo por que tinha vindo, e
quando terminamos de comer, ele disse que iria pessoalmente a
Wakyo’teyehsnonhsa e providenciaria para que eu a visse." Ele
ergueu o queixo em direção à janela, onde a luz pálida da tarde
estava entrando. "São 13 quilômetros, ele disse, mas ele voltaria
para o jantar, se saísse imediatamente."
"Oh." A notícia foi um choque, só porque ela havia se esquecido
completamente do pequeno problema da ex-esposa de Ian. "Isso
é... muito bom da parte dele."
Ian ergueu um ombro.
"Sim, bem, é uma boa educação mandar recado, se for uma visita
formal – e esta é", acrescentou ele, olhando para ela. "Mas você
está certa, é bom que ele vá sozinho. Não sei se é respeito pelo
tio Jamie ou por Wakyo’teyehsnonhsa..."
"Ele a tem em alta estima, então." Rachel tentou fazer uma
declaração e não uma pergunta, mas Ian era sensível a tons de
voz.
"Ela é uma de seu povo, sua família", disse ele simplesmente.
"Ela estava com ele em Unadilla, a última vez que a vi. Muito
antes de você e eu nos casarmos." Ele se virou para a janela
novamente, protegendo os olhos da luz.
"Onde você acha que Sílvia foi?"
Não mais do que um momento de pensamento forneceu a
1130

resposta.
"Ela foi buscar as filhas", disse Rachel, com certeza. Ian a olhou
fixamente.
"Ela está em condições de cavalgar?"
"Absolutamente não." A agitação fez Rachel ficar rígida, e Oggy
cravou os dedos em seu seio para segurá-la. "Ai!"
"É melhor eu ir procurá-la então. Dê à sra. Brant minhas
desculpas sobre o jantar."
1131

85

A MOONLICHT FLICHT525

IAN FEZ UMA PAUSA PARA COLOCAR SUA jaqueta de pele


de urso – havia apenas uma névoa no céu, no entanto era de cor
lilás, que previa neve, e o ar estava esfriando rápido – mas não se
preocupou em se armar além da faca em seu cinto. Mesmo que
Gabriel Hardman fosse um quacre decaído, ele não achava que
um homem mutilado e de muletas seria uma dificuldade. Ele
estava feliz por não ter untado, espetado e adornado os cabelos
com pele de veado, no estilo do penteado mohawk tradicional
para esta visita; se ele tivesse que cavalgar até Canajoharie e
voltar no frio e na neve, sua própria pele lhe serviria muito bem.
Ele saiu da casa em direção ao celeiro onde haviam deixado seus
cavalos. Sílvia não era uma boa cavaleira, e mesmo se ela tivesse
conseguido selar e colocar os arreios em seu cavalo sozinha, ela
não teria ido muito longe.
Ele tinha ouvido os estrondos aleatórios de tiros de pistola, mas
não prestou atenção. Sua mãe o saudou, porém, e ele viu que ela
e o Sachem haviam realizado a disputa entre eles: um lenço sujo
estava preso a um enorme carvalho nu, perfurado com buracos
chamuscados e enegrecidos.
Jenny estava corada de frio e sua touca tinha caído quando ela
jogou para trás o capuz de sua capa. Ela estava tateando atrás da
cabeça em busca dela e rindo de algo que o Sachem havia dito a
ela e, apesar de seus cabelos cinza-prata, Ian, bastante assustado,
achou que ela parecia uma menina.
"Okwaho, iahtahtehkonah", disse o Sachem ao ver Ian. Ele sorriu

“Fuga ao Luar” ou “Fuga à luz da Lua”, em scots. A autora já utilizou esse mesmo título em Prisioneiro
525

cap 41 e no livro 6 cap 89.


1132

amplamente, olhando para Jenny. "Sua mãe é perigosa."


"Se você quer dizer com uma pistola, espero que sim", Ian
respondeu, com os olhos ligeiramente semicerrados. "Ela não é
ruim com um alfinete de chapéu, também – se alguém lhe der um
motivo."
O Sachem riu e, embora Jenny não risse, ela fungou de uma forma
que indicava diversão. Ela arqueou uma sobrancelha para Ian,
virou-se – e então se virou de volta, tendo visto algo em seu rosto.
"O que aconteceu?", ela disse, seu próprio rosto mudando em um
instante.
Ele disse a eles, brevemente. Ocorreu a ele que o velho Sachem
não era apenas tio de Thayendanegea, mas claramente tinha
influência sobre ele.
O Sachem não interrompeu ou fez perguntas e preservou uma
atitude de atenção respeitosa, mas Ian achou que ele considerou
o relato com certo entretenimento. Ao encerrar a história, porém,
ocorreu-lhe também que muito provavelmente o Sachem
conhecia bem Gabriel Hardman e poderia sentir lealdade por ele.
Sua mãe estivera cuidadosamente limpando sua pistola enquanto
ele falava, enfiando um pano no cano com sua vareta minúscula.
Agora ela colocou a pistola de volta no cinto, dobrou o pano
manchado e o enfiou na cartucheira.
"Fizemos uma aposta, não é?", ela perguntou ao Sachem. Ele
balançou um pouco para trás, um sorriso ainda espreitando nos
cantos de sua boca.
"Nós fizemos."
"E você admite que eu ganhei, suponho. Você sendo um homem
honesto?" O sorriso ficou claro.
"Eu não posso dizer o contrário. Que privilégios você exige?"
Jenny acenou com a cabeça na direção da casa. "Que você vá com
1133

minha amiga Sílvia, para falar com o sr. Brant. E que você veja a
justiça ser feita", acrescentou ela, como se pensasse
posteriormente.
"Você não ganhou com tanta vantagem", disse o Sachem, com
leve reprovação. "Mas, como ela é sua amiga, claramente você
irá com ela aonde quer que ela vá. E como você também é minha
amiga – você é?", ele se interrompeu, levantando uma
sobrancelha branca.
"Se isso fizer você ficar ao lado dela, sim", disse Jenny com
impaciência.
"Eu irei com você", disse o Sachem, fazendo uma reverência.
"Aonde você desejar ir."

-.-.-

ESTA TROCA PERTURBOU Ian, mas ele não teve tempo de


fazer mais do que dar ao Sachem um breve olhar do tipo
"incomode minha mãe e eu vou te estripar como um peixe" em
seu caminho para o celeiro. Sua mãe percebeu o olhar e pareceu
achar engraçado, embora o Sachem mantivesse uma expressão
decentemente séria.
Sílvia estava de fato no celeiro, com o cavalo castrado chamado
Henry que ela havia montado desde a Filadélfia, encostada em
seu corpo quente, o rosto enterrado em seus braços, enquanto ele
calmamente arrancava bocados de feno de uma rede pendurada e
mastigava com um som reconfortante de baba. A sela e a brida
do cavalo estavam no chão a seus pés.
Sílvia olhou para cima ao som dos passos de Ian. Seu rosto estava
manchado de choro, sua touca torta e seus cabelos castanhos
desgrenhados de um lado e pendurados ao lado da orelha, mas ela
1134

se abaixou imediatamente para agarrar a brida no chão a seus pés.


"Eu estava... estava esperando... ele estava comendo, eu não
consegui controlá-lo enquanto..." Ela gesticulou
desamparadamente para os apetrechos de Henry e as mandíbulas
que se moviam lentamente.
"E aonde você pretende ir?", Ian perguntou educadamente,
embora isso fosse bastante claro. A pergunta clareou a mente de
Sílvia, no entanto, e ela se endireitou, os olhos turvos, mas
ferozes.
"Pegar minhas garotas e levá-las embora. Tu vais me ajudar?"
"E ir para onde, moça?" Ian agarrou o freio, mas ela se agarrou a
ele, desesperada.
"Embora!", ela disse. "Não importa, vou encontrar um lugar!"
"Rachel disse que você pensava em levar o assunto para
Thayendanegea."
"Eu disse, sim. Eu estava tentando decidir", disse ela, colocando
a mão no pescoço do cavalo. "Se esperava seu retorno e pedia seu
julgamento entre mim e Gabriel, ou cavalgaria até a pousada,
pegaria as meninas e fugiria." Ela própria respirava como um
cavalo em fuga e agora parou para enxugar o rosto e engolir. "Se
eu esperasse... Gabriel pode conseguir ajuda para nos perseguir,
e se ele nos pegar... Eu... eu duvido que pudesse impedir que ele
tomasse as meninas de mim. E... e se Brant ficasse do lado de
Gabriel?" Um pensamento tardio a atingiu.
"Os mohawks acreditam que as crianças são propriedade do pai?"
"Não", Ian disse calmamente. "Se uma mulher tirar o marido de
casa, ou ele sair, seus filhos ficam com ela."
"Oh." Ela se sentou de repente na sela e ergueu a mão trêmula
para puxar os cabelos pendurados para trás. "Oh. Aí talvez…?"
"Talvez não seja da conta de Thayendanegea", disse Ian com
1135

naturalidade. "O que se passa entre um homem e sua esposa é...


o que se passa entre um homem e sua esposa, a menos que esteja
causando uma confusão que incomoda outras pessoas. Eu quero
dizer, se você atirar em seu marido, isso pode causar um pouco
de incômodo, mas eu não suponho que você queira fazer isso,
sendo uma Amiga e tudo."
"Oh", ela disse novamente. Ela se sentou um pouco, olhando para
o chão coberto de feno entre seus pés, e ele a deixou sentar.
"Eu gostaria de atirar em Gabriel", ela disse, e olhou um pouco
mais, seus lábios apertados. Então ela balançou a cabeça,
negando, e se levantou com dificuldade. "Mas tu estás certo. Eu
não vou."
Ela respirou fundo e pegou a brida na mão dele.
"Mas eu devo ter minhas meninas comigo agora. Tu vais me
ajudar a ir buscá-las? "
A luz estava diminuindo rapidamente e um vento com o sopro
frio da noite entrou no celeiro e agitou os pedaços de palha
espalhados pelo chão de terra batida. Ian apenas assentiu com a
cabeça e se curvou para erguer a sela.
"Vá buscar sua capa, moça. Senão, você vai congelar."

-.-.-

A VIAGEM ATÉ a pousada demorou menos de uma hora, mas o


sol se pôs, engolido por uma nuvem repentina que se ergueu das
árvores como pão preto fermentado. Começou a nevar.
Ian colocou Sílvia diante dele, dizendo que ela poderia ficar presa
na corda que conduzia seu segundo cavalo. O que era muito
verdade. Era mais verdade que, embora ela não estivesse mais
esfomeada, ela ainda era magra como um pingente de gelo e tão
1136

frágil quanto, e ele sentiu uma necessidade urgente de protegê-la.


O vento havia diminuído, graças a Deus, mas a neve caía densa e
silenciosa, silenciando todos os sons e sobrecarregando os galhos
dos pinheiros e abetos. Era um bom caminho, mas ele estimulou
Henry a ir mais rápido um pouco, para que a rota não
desaparecesse sob os cascos do cavalo. Esta não era a sua região,
e ele não queria se perder e acabar passando a noite na floresta
com Sílvia.
"Eu conheci Gabriel na Filadélfia", ela disse, inesperadamente.
"Meus pais ainda estavam vivos na época e pertencíamos à
mesma Reunião. Eles escolheram outra pessoa para mim – um
ferreiro que possuía sua própria forja. Dez anos mais velho do
que eu, bem estabelecido. Um homem gentil", ela adicionou após
uma pausa. "Com uma casa e uma propriedade. Gabriel era um
escriturário, da minha idade, e ganhava apenas o suficiente para
se manter, quanto mais uma esposa,"
"Bem, eu não era mais do que um batedor índio do exército
quando conheci Rachel", disse Ian, observando o hálito nebuloso
de Henry fluir de volta para o pescoço do cavalo enquanto eles
cavalgavam. "E um homem de sangue, além do mais. Eu possuía
algumas terras, no entanto", ele acrescentou para ser justo.
"E você tinha uma família", ela disse suavemente. "Meus pais
morreram em um ano – varíola – e não sobrou ninguém além de
mim. Eu não tinha irmãos ou irmãs. Gabriel rompeu com seu
povo quando se tornou um Amigo – ele não nasceu para isso,
como eu."
"Então vocês só tinham um ao outro."
"Sim", ela disse, e ficou em silêncio por um momento.
"E então tivemos as meninas", disse ela, tão baixinho que ele mal
a ouviu. "E éramos felizes."
1137

-.-.-

A NEVE PAROU quando chegaram à estalagem, embora tudo à


vista estivesse ligeiramente gelado, ouro brilhante onde a luz da
lamparina entrava pelas janelas, prata nas rajadas espasmódicas
do luar rompendo as nuvens. Sílvia deixou que ele a levantasse
do cavalo, mas quando ele fez menção de entrar com ela, ela
colocou a mão em seu peito para detê-lo.
"Eu te agradeço, Ian," ela disse calmamente. “Eu preciso falar
com minhas filhas sozinha. Tu deves voltar para Rachel e seu
filho."
Ele podia ver seu rosto magro e gasto na luz mutável, um
momento suavizado pelas sombras, o próximo tenso pela
ansiedade.
"Eu vou esperar", disse ele com firmeza.
Ela riu, para sua surpresa. Foi uma risada pequena e cansada, mas
verdadeira.
"Eu te prometo que não vou agarrar as meninas e sair cavalgando
sozinha em meio a uma nevasca", disse ela. "Tive paz para pensar
enquanto cavalgávamos e para orar – e também te agradeço por
isso. Mas ficou claro para mim que devo deixar Patience e
Prudence ver seu pai. Eu preciso falar com elas primeiro, porém,
e explicar o que aconteceu com ele." Sua voz vacilou um pouco
em "aconteceu" e ela limpou a garganta com um pequeno hem.
"Vou ficar na taverna, então."
"Não",” ela disse, tão firmemente quanto ele. "Eu posso sentir o
cheiro do jantar da dona da casa cozinhando; as meninas e eu
comeremos juntas, conversaremos e dormiremos – e pela manhã,
vou pentear seus cabelos e vesti-las com roupas limpas e pedir ao
1138

estalajadeiro que providencie para que sejamos levadas de volta


em uma carroça. Tu não precisas se preocupar comigo, Ian", ela
acrescentou suavemente. "Eu não estarei sozinha."
Ele a estudou por um momento, mas ela era sincera. Ele suspirou
e retirou sua bolsa.
"Vocês vão precisar de dinheiro para a carroça."
1139

86

PROFECIA INDESEJADA

ESTAVA FRIO, MAS O AR DA MADRUGADA era claro


como vidro quebrado e igualmente afiado nos pulmões. Ian
estava caçando com Thayendanegea esta manhã, e eles estavam
seguindo um glutão526. Seguindo, não. Caçando. Neve fresca
tinha caído durante a noite – ainda estava caindo, embora
levemente no momento – e o animal era visível, uma pequena
mancha preta na neve cinza a esta distância, mas movendo-se no
modo imperturbável e ondulante que indicava uma longa
paciência, mais do que o gracioso salto do mergulho da
perseguição. O glutão também estava seguindo alguma coisa.
"Ska’niònhsa", disse Thayendanegea, acenando com a cabeça
para um pedaço de neve lamacenta, em que a curva de uma
pegada apareceu.
"Ferido, então," Ian respondeu, balançando a cabeça em
concordância. Um glutão não pegaria um alce saudável – poucos
predadores o fariam – mas seguiria um ferido por dias, esperando
pacientemente que a fraqueza colocasse o ska'niònhsa de joelhos.
"É melhor ele torcer para que os lobos não o encontrem
primeiro."
"Tudo é uma questão de oportunidade", Thayendanegea disse
filosoficamente, e tirou seu rifle da alça. Apesar do rifle, Ian
achou que a observação não era inteiramente filosófica. Ian
inclinou a cabeça para um lado e para o outro.
"Meu tio é um jogador", disse ele, embora a palavra mohawk que

526
Glutão também conhecido como carcaju, é um mamífero carnívoro que mede no máximo um metro e
pesa até 30 quilos. Vive no Hemisfério Norte, nas zonas frias da Sibéria, Escandinávia, Alasca e Canadá.
1140

ele usou não tivesse exatamente o mesmo significado que a


inglesa. Significava algo mais como "aquele que agarra com
ousadia" ou "aquele que é descuidado com sua vida", dependendo
do contexto. "Ele diz que é preciso correr riscos, mas só um tolo
corre riscos sem saber quais são."
Thayendanegea olhou para ele, ligeiramente divertido. E um
pouco cauteloso também, Ian pensou.
"E como saber, então?"
"Um fala e o outro escuta."
"E você veio me ouvir?"
"Eu vim ver Wakyo’teyehsnonhsa", disse Ian cortesmente, "mas
seria um desperdício sair de novo sem ouvir um homem com sua
experiência e sabedoria, já que você é gentil o suficiente para
falar comigo."
A risada que veio em resposta a isso foi de Joseph Brant, não de
Thayendanegea, e então foi o olhar conhecedor que veio com ela.
"E seu tio, é claro, pode estar interessado no que tenho a dizer?"
"Talvez", disse Ian, igualmente. Ele estava carregando seu velho
mosquete; Bom o suficiente para qualquer coisa que eles
provavelmente encontrassem. Eles estavam passando por um
bosque de abetos enormes, e a neve era esparsa sob os galhos
espinhosos, a espessa camada de agulhas escorregadia sob os pés.
"Ele me disse para julgar se devo dizer a você o que ele sabe."
"Suponho que você tenha decidido fazer isso, então", disse Brant,
o olhar divertido se aprofundando. "O que ele sabe? Ele disse
isso? Não é o que ele pensa?"
Ian encolheu os ombros, os olhos no glutão distante.
"Ele sabe." Ele e o tio Jamie haviam discutido o assunto, e o tio
Jamie finalmente deixou que ele decidisse como contá-lo. Seja
para passar por conhecimento obtido na época de Jamie como um
1141

agente indigenista e suas conexões com o governo britânico e o


Exército Continental – ou dizer a verdade. Brant era o único
comandante militar a quem essa verdade em particular poderia
ser contada, mas isso não significava que ele acreditaria. Ele
ainda era um mohawk, apesar de sua esposa meio irlandesa e
educação universitária.
"A esposa do meu tio", disse Ian, observando as palavras deixá-
lo em pequenas nuvens de névoa branca. "Ela é uma
arennowa’nen527, mas é mais. Ela caminhou com um fantasma
do Kahnyen’kehaka e caminhou no tempo."
Thayendanegea virou a cabeça bruscamente como uma coruja
caçadora. Ian não tinha nada a esconder e não se moveu. Depois
de um momento, Thayendanegea acenou com a cabeça, embora
os músculos de seus ombros não relaxassem.
"A guerra", Ian disse sem rodeios. "Você até agora jogou sua
sorte com os britânicos, e por um bom motivo. Mas dizemos
agora que os americanos vão vencer. Você irá, é claro, decidir o
que é melhor para seu povo à luz desse conhecimento."
Os olhos escuros piscaram e um sorriso cínico tocou o canto de
sua boca. Ian não pressionou as coisas, mas caminhou
tranquilamente. A neve rangeu sob suas botas; estava ficando
mais frio.
Ian ergueu a cabeça para farejar o ar; apesar da clareza do ar, ele
sentiu uma sensação de mais neve, a vibração fraca de uma
tempestade distante. Mas o que ele pegou na brisa foi o cheiro de
sangue.
"Lá!", ele disse baixinho, agarrando a manga de Thayendanegea.
O glutão tinha desaparecido momentaneamente, mas enquanto
observavam, eles o viram pular de rocha em rocha, como água

527
Não encontrei o significado (procurei em três dicionários online da língua dos Kanienkeha). Mas o que
Claire é? O que caberia no contexto? Uma curadora? Uma mulher sábia? Uma mulher com a Visão?
1142

fluindo colina acima, e parar em um ponto alto, de onde olhou


atentamente para baixo.
Os homens não disseram nada, mas começaram a correr
rapidamente, com a respiração branca fluindo.
O alce caiu de joelhos ao abrigo de um aglomerado de pinheiros
escuros; o forte cheiro de seu sangue se misturou com a
terebintina das árvores, rodopiando ao redor deles. Os lobos
estariam aqui em breve.
Thayendanegea fez um breve gesto para Ian, para ir em frente.
Não era uma questão de bravura ou habilidade, apenas
velocidade. O animal havia quebrado uma pata traseira - ela se
projetava em um ângulo perturbador, o osso branco estilhaçado
aparecendo através do pelo, e a neve ao redor estava salpicada e
manchada de sangue.
Enfraquecido como estava, ergueu o peito sem medo de ameaças
na neve gelada – um jovem macho, em seu primeiro inverno.
Bom. A carne seria bastante macia.
Mesmo jovem e enfraquecido, ainda era um alce adulto e muito
perigoso. Ian descartou qualquer ideia de cortar sua garganta e
despachou-o rapidamente com um tiro de mosquete entre os
olhos. O alce soltou um grito estranho e oco e balançou os olhos
vazios para o lado antes de desabar com um baque.
Thayendanegea acenou com a cabeça uma vez, então se virou e
gritou para o vazio atrás deles. Alguns homens saíram com eles,
saindo para caçar e deixando-os sozinhos para conversar, mas
provavelmente ainda estariam ao alcance da voz. Eles precisavam
cortar e limpar a carcaça antes que os lobos aparecessem.
"Vá procurá-los", Thayendanegea disse brevemente para Ian,
puxando sua faca. "Vou cortar a garganta e manter o glutão
longe." Ele ergueu o queixo, indicando a rocha alta onde o glutão
mantinha sua vigilância, com olhos arregalados.
1143

Quando Ian se virou para ir embora, ele ouviu Thayendanegea


dizer, quase sem cerimônia: "Você vai contar isso para o
Sachem."
Então ele estava levando a sério, pelo menos. Ian estava
terrivelmente satisfeito com isso, mas não esperançoso.
Antes de correr cem metros, ele ouviu o barulho dos cascos de
um animal de montaria e, ao fazer uma curva na trilha, viu-se cara
a cara com quem devia ser Gabriel Hardman, montando uma
grande mula ossuda com um olhar rebelde. Ian deu um passo para
trás, fora do alcance da mordida.
"Eu matei um alce", Ian disse brevemente, e apontou seu polegar
para trás. "Vá ajudá-lo." Hardman acenou com a cabeça, hesitou
por um momento como se quisesse dizer algo, mas engoliu e
puxou as rédeas do pescoço da mula.

-.-.-

OS HOMENS VOLTARAM juntos, carregados de carne e


animados com frio e sangue. Era meio da manhã quando eles
voltaram para a casa, e Rachel estava procurando por eles,
espiando pela janela da frente. Ela acenou e desapareceu.
Ian viu Hardman sair do celeiro, onde o homem ajudara a
terminar a descarnação.
"Posso perguntar", Hardman disse, dando a Ian um olhar direto,
"como é que você528 estava viajando com minha... com Sílvia e
as... garotas? Suponho que você não estava ciente de que eu
estava aqui, como obviamente Sílvia não estava."
"Não. Vim visitar a mulher que já foi minha esposa", Ian

528
Aqui, Gabriel não usa o discurso simples quacre. Isso é uma dica de sua falsidade, que ele se adapta à
situação e não mantém seus princípios.
1144

respondeu. Não adiantava ser reservado; toda Canajoharie


saberia sobre isso nesta tarde, se é que já não sabiam. "Eu soube
que ela e seus filhos estavam em Osequa quando o ataque
aconteceu, e que seu marido havia sido morto – mas nenhum de
meus amigos sabia nada de sua condição. Então pensei em vir e
ver."
"De fato." Gabriel Hardman olhou para ele, uma sobrancelha
levantada.
"Eu tenho uma nova esposa", Ian disse calmamente, em resposta
à sobrancelha. "Ela está comigo, e nosso filho também."
"Eu entendo", disse Hardman. "Ouvi dizer que ela é uma
Amiga?"
"Ela é, e ela me disse que os Amigos não aceitam a poligamia",
disse Ian. "Eu não tinha isso em mente, mas se tivesse, não a teria
trazido comigo."
Hardman lançou-lhe um olhar penetrante e uma risada curta.
"Sílvia contou a você, então. Por que ela está com você? Por que
você a trouxe aqui? "
Ian parou e lançou um olhar para Hardman.
"Ela prestou um grande serviço ao meu tio, que me enviou para
cuidar de seu bem-estar. Se você quiser ouvir o estado em que eu
a encontrei e suas filhas, eu vou lhe dizer, homem, e seria muito
útil para você se eu o fizesse."
Hardman recuou como se tivesse levado um soco no peito.
"Eu... eu não poderia... eu não poderia voltar para a Filadélfia",
disse ele, furioso. "Eu era um prisioneiro – um escravo!"
Ian não respondeu a isso, mas olhou deliberadamente ao seu redor
– para a casa, o bosque e a estrada aberta.
"Eu vou deixar você aqui. Vá com Deus", disse ele, e foi embora.
1145
1146

87

NO QUAL RACHEL PINTA SEU


ROSTO

BRANT HAVIA VISTO Trabalha Com Suas Mãos na noite


anterior e disse a Ian que receberia sua visita hoje, à tarde.
"Você estará comigo", Ian disse com firmeza para Rachel. "Você
e o homenzinho. Eu vim para cuidar do seu bem-estar, não para
cortejá-la; é certo que minha família esteja comigo. Além disso",
ele acrescentou, abrindo um sorriso repentino, "eu não quero você
de volta aqui sozinha, atirando com o Sachem e imaginando que
sou eu amarrado à árvore. "
"E por que eu deveria fazer isso?", ela perguntou, escondendo seu
próprio sorriso. "O que há sobre você visitar sua ex-esposa
sozinho que deve me dar um momento de inquietação?"
"Nada", disse ele, e beijou-a levemente. "Esse é meu argumento."
Ela estava feliz que ele queria que ela fosse, e na verdade ela não
sentiu nenhum mal-estar em conhecer essa mulher que
compartilhou a cama e o corpo de seu marido – e um bom pedaço
de sua alma também, pelo pouco que ele lhe contou sobre seus
filhos mortos.
A-há, ela pensou. Portanto, devo caminhar até essa mulher,
carregando o filho grande, saudável e bonito de Ian.
Obviamente, ele quer que ela veja isso – e tenho vergonha de
admitir que também quero isso, mas quero. Não é certo que ela
veja meus sentimentos íntimos, no entanto. Não vim triunfar
sobre ela – nem fazê-la duvidar de sua sabedoria em dispensar
Ian.
1147

Considerar o que ela deveria vestir para esta ocasião não era
vaidade, ela se assegurou. Era uma vontade de parecer...
apropriada.
Ela tinha apenas dois vestidos; teria que ser o índigo. Além
disso... Catherine a levou para o Sachem, que considerou
atentamente seu pedido e olhou para ela com o tipo de interesse
aguçado que ela vira no rosto de Claire Fraser – e de Denny, nesse
caso – quando apresentado a algum fenômeno médico como um
teratoma, um tumor oco cheio de dentes ou cabelo. Mas o Sachem
assentiu com a cabeça e, com muito cuidado, mostrou-lhe como
fazer a tinta com argila branca e um punhado de frutas secas
escuras, embebidas no que provavelmente era urina de cervo por
causa do cheiro, depois moídas em uma pasta azul e misturadas
com um pouco da argila branca.
Catherine tinha observado o processo e, quando os pigmentos
foram preparados e aprovados pelo Sachem, ela levou Rachel
para seus aposentos particulares para que ela pudesse usar o
espelho para aplicá-las perfeitamente com uma escova de pé de
coelho.
Rachel havia penteado e amarrado os cabelos com cuidado para
trás, depois pintado apenas a parte superior do rosto, da linha do
cabelo até logo abaixo dos olhos, de um branco sólido, e abaixo
disso – depois de pensar um pouco – uma estreita faixa azul que
cruzava a ponte de seu nariz. Ian havia dito a ela há alguns meses
– e Catherine Brant, embora um tanto divertida com sua intenção,
confirmou – que pintar seu rosto de branco dessa maneira
significava que você viria em paz, e que o azul significava
sabedoria e confiança.
Rachel queria perguntar a Catherine se ela achava sábio seguir
este curso, mas não perguntou. Ela sabia muito bem que não era,
mas a faixa azul era uma exortação para aqueles que a veriam,
assim como para quem a usava.
1148

"Está pronto?", Rachel perguntou; ela havia perguntado antes, e


perguntou agora apenas para ouvir a garantia. "As mulheres
pintam o rosto, assim como os homens?"
"Oh, sim", Catherine assegurou-lhe. "Não é uma pintura de
guerra, é claro, mas para comemorar uma ocasião – um
casamento, a visita de um chefe, o Festival do Morango..."
"Uma ocasião", Rachel disse, com certeza. "Sim, é isso o que é."
"Notável", disse Catherine feliz, olhando por cima do ombro de
Rachel para seu reflexo completo no espelho. "Com essas
sobrancelhas e cílios escuros, seus olhos são... surpreendentes.
No bom sentido, com certeza", acrescentou ela apressadamente,
dando um tapinha no ombro de Rachel.
-.-.-

WAKYO'TEYEHSNONHSA TINHA uma modesta, mas boa


casa de fazenda em suas terras e, como Thayendanegea, tinha
uma maloca – a casa comunitária529 – atrás dela, situada na borda
da floresta, então a madeira e as peles, e as correias de couro que
as uniam, pareciam derreter e se misturar com as árvores.
Como um grande animal à espreita, pensou Rachel.
Ela os encontrara no quintal antes da casa da fazenda, convidou-
os a entrar e ofereceu-lhes leite e uísque, com bolachas doces.
Admirou Oggy com o que parecia grande sinceridade e, embora
ela tivesse piscado ao ver a pintura de Rachel, tratou-a com um
respeito delicado, embora nunca encontrasse seus olhos.
Ela era adorável. Vestida no estilo mohawk com camisa e calça
de pele macia de veado, com diversos pequenos anéis de prata
adornando seus dedos – pequenos e ainda flexível, apesar de ter
529
Uma casa no formato de edifício longo, proporcionalmente estreito e um edifício construído por povos
em várias partes do mundo, incluindo Ásia, Europa e América do Norte. Muitos foram construídos de
madeira e frequentemente representam a forma mais antiga de estrutura permanente em muitas culturas.
1149

dado à luz três filhos vivos e Yeksa'a, a filha natimorta de Ian.


Rachel achava que eles tinham a aparência apropriada para sua
idade, embora Trabalha Com Suas Mãos tivesse as marcas do
tempo e da tristeza em seu rosto. Seus olhos ainda eram quentes,
porém, e vivos, e ela encontrava o olhar de Ian frequentemente e
completamente.
As crianças apareceram rapidamente, trazidas por uma mulher
mais velha que sorriu para Ian. As duas mais novas, meninas de
talvez quatro e dois anos, eram adoráveis, com os olhos escuros
e suaves de sua mãe e rostos bonitos e sólidos que talvez se
parecessem com o de seu falecido pai. Rachel se absteve de olhar
muito de perto para o filho mais velho – talvez sete ou oito – e
lutou com sucesso contra a tentação de olhar do rosto do menino
para o de Ian.
Ele se parecia com suas irmãs, mas não se parecia tanto com elas
quanto elas se pareciam, ela pensou. Seu rosto era alegre, mas
charmoso em vez de bonito, e seus olhos não pareciam com os de
sua mãe. Escuros, mas com um brilho de avelã que os outros não
tinham. Ele era alto para sua idade, mas magro.
"Este é meu filho mais velho", disse Emily, apresentando as
crianças com um sorriso de orgulho. "Nós o chamamos de
Tòtis530."
Tòtis olhou com curiosidade para os visitantes, mas parecia mais
interessado em Oggy e perguntou seu nome, em inglês.
"Ele ainda não tem um nome verdadeiro", disse Ian, sorrindo para
o menino. "Nós o chamamos pelo nome do governador da
Geórgia, um homem chamado Oglethorpe, até que seu nome
verdadeiro seja divulgado."
As crianças foram levadas embora e conversaram sobre a comida.
Encontramos “Tò:tis” ou “Tòtis” Em um dos dicionários online encontramos a tradução como lagarto,
530

ou salamandra ou camaleão. No livro 7, Ian deu nome a ele como “O Mais Rápido dos Lagartos”.
Aparentemente, o nome foi encurtado.
1150

Depois de comerem, Trabalha Com Suas Mãos disse que ela


deveria ir para a maloca por alguns momentos – e convidou Ian
para vir, dizendo que talvez já tivesse passado muito tempo desde
que ele estivera em um lugar assim. Ela não disse nada sobre
Rachel, deixando que ela também viesse, mas Rachel assentiu
educadamente e disse que alimentaria Oggy e talvez os seguisse.
"Confesso que tenho curiosidade", disse ela, sorrindo diretamente
para Trabalha Com Suas Mãos. "Eu gostaria de ver o tipo de lugar
que meu marido chamou de casa por tanto tempo."
Ela teve uma ideia muito boa quanto ao motivo de
Wakyo’teyehsnonhsa ao convidar Ian para acompanhá-la na
maloca. Este foi o cenário em que Ian sentiu-se atraído por ela
pela primeira vez, o tipo de lugar em que viveram juntos. O
pensamento fez seu coração bater mais rápido.
Pela primeira vez, ela se perguntou se Ian havia desejado que ela
fosse com ele como uma forma de proteção.
"Deus sabe", disse ela a Oggy, desfazendo os seus cadarços. "Mas
faremos o nosso melhor, não é? "
-.-.-

IAN PODERIA SENTIR o cheiro da casa muito antes de ela


puxar a pele de urso que pendia sobre a porta da maloca. Fumaça
e suor, um traço de urina e merda. Mas principalmente o cheiro
de fogo e comida, carne e milho assado e abóbora, o cheiro de
cerveja – e o cheiro de peles. Ele fizera o possível para esquecer
o toque do inverno frio em sua pele e o cheiro de seu calor
almiscarado suave nas peles. Ele empurrou a memória de lado
agora, com a facilidade de um longo hábito, e entrou. Mas o ar
pesado o tocou e o seguiu na escuridão como uma mão pousada
de leve em suas costas.
1151

Era uma casa pequena, apenas dois fogos. Duas mulheres


estavam sentadas ao lado de um deles, cuidando de algumas
panelas, enquanto três crianças pequenas brincavam nas sombras
e o grito de um bebê foi interrompido por sua mãe colocando-o
em seu peito.
O grito arrepiou os cabelos de seu pescoço em reflexo. Outra
memória, e uma que ele havia esquecido: as lágrimas silenciosas
de Emily na escuridão, após a perda de cada um de seus filhos,
quando ela ouvia o choro de novos bebês na maloca à noite. Mas
Oggy era mais velho e mais barulhento. Muito mais barulhento.
Forte, e o pensamento o confortou.
Ela o conduziu ao compartimento de dormir e se sentou na
plataforma, gesticulando para que ele se sentasse ao lado dela,
encostado na massa escura e macia das peles enroladas.
Eles estavam longe o suficiente das mulheres de fora para não
serem ouvidos, a menos que gritassem, e ele não achava que
chegaria a esse ponto. O brilho das fogueiras foi o suficiente,
porém, para ver seu rosto. Era bonito; ainda jovem, mas sério, e
sombreado por algo que ele não conseguia nomear. Isso o deixou
inquieto, no entanto.
Ela olhou para ele por um longo momento, sem falar.
"Você não conhece mais essa pessoa?", ele disse baixinho em
mohawk. "Essa pessoa é uma estranha para você?"
"Sim", disse ela, mas com o traço de um sorriso. "Mas um
estranho que eu acho que conheço. Você acha que conhece essa
pessoa?" Sua mão tocou o seio, pálida e graciosa como uma
mariposa na penumbra.
"Wakyo’teyehsnonhsa", ele sussurrou, segurando a mão entre as
suas. "Eu sempre conhecerei o trabalho de suas mãos." Era rude
perguntar a alguém diretamente o que eles estavam pensando,
exceto quando eram homens planejando guerra ou caça, e ele
1152

colocou a mão dela de volta em seu joelho e esperou, paciente,


enquanto ela reunia seus pensamentos ou sua coragem.
"O que é, Okwaho, iahtahtehkonah", disse ela por fim, usando
seu nome formal e dando-lhe um olhar direto, "é que essa pessoa
casará com John Whitewater. Na primavera." Bem, então.
Claramente ela já tinha levado Whitewater para sua cama; o fedor
de um homem era perceptível nas peles atrás dele. Isso lhe deu
uma pontada absurda de ciúme – seguida de culpa ao pensar em
Rachel – e ele se perguntou por um instante por que deveria ser
pior agora que ele sabia o nome do homem?
"Esta pessoa deseja a você felicidade e boa saúde", disse ele. Foi
uma declaração formal, mas ele foi sincero e deixou transparecer.
Ela respirou fundo, relaxou um pouco e de repente sorriu de volta
para ele – um sorriso verdadeiro, que continha o reconhecimento
do que havia sido verdade entre eles e o lamento pelo que não
poderia mais ser verdade.
Ela estendeu a mão, impulsivamente, e ele a pegou, beijou - e a
devolveu.
"O que é", ela repetiu, seu sorriso tornando-se sério, "é que John
Whitewater é um bom homem, mas ele sonha com meu filho."
"Com Tòtis? O que ele sonha?" Estava claro que os sonhos não
eram bons.
"Ele sonhou que quando a lua começa a crescer, ele vê um
menino parado ali", ela ergueu o queixo para apontar para a
entrada de seu compartimento de dormir, "contra o luar que vem
do buraco de fumaça, e o rosto do menino não é visto, mas
claramente é Tòtis. Esperando. Ele sonha que a criança vem,
noite após noite, a luz cada vez mais forte atrás dele e a criança
cada vez maior. E John Whitewater sabe que quando a lua estiver
cheia, um homem que é meu filho virá para matá-lo."
"Bem, esse não é um sonho bom, não", disse Ian, em inglês.
1153

"Você já teve esse sonho?"


Emily fez uma careta e balançou a cabeça, negando, e a coisa viva
tremendo na espinha de Ian se acalmou. Ele não perguntou se ela
acreditava que Whitewater tinha de fato sonhado isso; porque
estava claro. Mas se ela tivesse sonhado a mesma coisa, isso seria
muito sério. Não que não fosse, assim mesmo.
"Eu não compartilhei o sonho dele", ela disse, tão baixo que ele
mal a ouviu. "Mas quando ele me contou... Na noite seguinte, eu
também tive um sonho. Sonhei que ele matou Tòtis. Ele quebrou
o pescoço do meu filho, como um coelho."
A coisa viva saltou direto para a garganta de Ian, o que foi uma
coisa boa, pois o fez parar de falar.
"Este sonho aconteceu duas vezes e esta pessoa orou”, disse ela
suavemente, voltando para o Kahnyen’kehaka.
"Esta pessoa orou", ela repetiu, olhando para o seu rosto, "e você
está aqui."
Ele ficou um pouco surpreso por não ter ficado chocado. O Mais
Rápido dos Lagartos havia dito a ele que a velha Tewaktenyonh
havia lhe falado que ele era o filho do espírito de Ian.
Obviamente, ela teria dito a mesma coisa a Wakyo’teyehsnonhsa
– ou Emily disse à velha.
"Achei que talvez tivesse de mandar meu filho para minha irmã,
em Albany", disse ela. "Mas ela não tem marido agora, e três
filhos para alimentar. E eu me preocupo", ela disse simplesmente.
"As coisas são muito perigosas. Thayendanegea diz que a guerra
logo terminará, mas os olhos de sua esposa dizem que ele não
acredita."
"A esposa dele está certa." Os dois estavam sussurrando agora,
embora ele pudesse ouvir o murmúrio das mulheres conversando
no final da casa. "A esposa do meu tio é uma..." Havia palavras
1154

para magia e predição, como ele havia usado com


Thayendanegea, mas nenhuma delas parecia muito certa agora.
"Ela vê o que vai acontecer. É por isso que vim. Encontrei Olha
para a Lua e Caça como um Glutão no lugar onde moro, e eles
me contaram sobre o massacre em Osequa e a morte de seu
marido. Eles não sabiam se você ainda estava com o povo de
Thayendanegea, nem como você e seus filhos se saíram. E assim
eu vim ver", ele terminou simplesmente.
Ele não percebeu que ela estava prendendo a respiração, até que
ela soltou um suspiro longo e profundo que tocou seu rosto.
"Obrigada", ela disse. "Agora que você sabe – você levará Tòtis?"
"Eu levarei." Ele disse isso sem hesitar, mesmo enquanto se
perguntava como diabos ele contaria a Rachel sobre isso.
O alívio de Emily o tocou, e ela também se emocionou, apertando
sua mão com força contra seu seio.
"Se sua esposa não quiser que ele fique sob seu fogo", disse ela,
uma nota de ansiedade rastejando em sua voz mais uma vez,
"tenho certeza que você encontrará uma mulher que cuidará dele,
sim?"
Isso era feito às vezes; se a esposa de um homem morresse e ele
se casasse com alguém que não se dava bem com seus filhos, ele
iria de um lado para outro e procuraria até encontrar uma mulher
que seria sua segunda esposa ou, se ela fosse casada, que cuidaria
de seus filhos em troca de ele lhe dar carne e peles.
"Talvez sua mãe?", Emily disse, esperança misturada com dúvida
em sua voz.
"Nem minha esposa nem minha mãe veriam nenhum bairn
morrer de fome", assegurou-lhe ele, embora sua imaginação fosse
incapaz de imaginar o que qualquer uma delas diria. Ele apertou
a mão dela suavemente e a soltou. Ele já sabia que não poderia
1155

explicar Emily para Rachel; agora ele percebeu que nunca


poderia explicar Rachel para Emily, também, e sorriu
ironicamente para si mesmo.
"Minha esposa é uma Amiga, ken? E ela pintou o rosto com
sabedoria."
"Tenho um pouco de medo dela", disse Emily com sinceridade.
"Você vai dizer a ela – pedir a ela – agora?"
"Venha comigo", disse ele, e se levantou. Não foi até que eles
saíram para a luz pálida de neve e neblina que algo ocorreu a ele,
e ele se virou para ela.
"Você disse que orou, Emily", ele disse, e ela piscou ao som de
seu nome por ela. "Para quem você estava orando?", ele
perguntou por curiosidade; alguns mohawks eram cristãos e
podiam orar a Jesus ou a Sua mãe, mas ela nunca tinha sido cristã,
quando ele a conheceu.
"Para todo mundo", ela disse simplesmente. "Eu esperava que
alguém ouvisse."

-.-.-

IAN VIU RACHEL caminhando em direção à casa comunitária


com Oggy quando eles empurraram a pele da porta, e Emily saiu
imediatamente, convidando-a a entrar.
Rachel parou por um momento, piscando na escuridão; então
seus olhos encontraram Ian e ela viu o que queria em seu rosto,
pois sorriu. O sorriso diminuiu, mas ainda persistiu, quando ela
se virou para Emily. Desapareceu quando Ian contou a ela sobre
Tòtis, mas apenas por um instante. Ele a viu engolir em seco e a
imaginou alcançando sua luz interior.
"Sim, claro", ela disse a Emily, e se virou para o menino, com
1156

doçura em seus olhos. "Ele sempre será seu filho, mas estou
honrada por ele ser meu também. Eu certamente irei alimentá-lo
em minha lareira – tudo o que ele quiser, sempre."
Ian não tinha percebido que seu abdomem estava contraído com
força, até que ele relaxou, e ele respirou fundo. Tòtis estava
olhando Rachel com curiosidade, mas sem medo. Ele olhou para
sua mãe, que assentiu, e ele foi até Rachel e, pegando sua mão,
beijou sua palma.
"Oh", Rachel disse suavemente, e acariciou sua cabeça.
"Tòtis", disse Emily, e o menino se virou e foi até ela. Ela o
abraçou e beijou sua cabeça, e Ian viu o brilho das lágrimas que
ela não iria derramar até que seu filho realmente tivesse partido.
"Dê a ele agora", ela sussurrou em Mohawk, e ergueu o queixo
em direção a Ian.
Ele estivera muito concentrado na conversa para notar qualquer
coisa sobre a mobília, além das peles de dormir e suas memórias,
mas quando Tòtis acenou com a cabeça e correu em direção a
uma grande cesta com tampa que estava no canto do
compartimento, meio escondida sob a saliência, ele teve uma
noção repentina do que ela continha.
"Acorde!", disse Tòtis, empurrando a tampa e inclinando-se na
direção da cesta. Uma batida suave veio das profundezas, e o
longo ruído rangente de um bocejo. E então Tòtis se levantou com
um cachorrinho grande, cinza e peludo nos braços e um sorriso
no rosto, faltando dois dentes.
"Um dos muitos netos de seu lobo, Okwaho, iahtahtehkonah",
disse Emily, com um sorriso sincero como o do filho. "Nós
pensamos que você deveria ter alguém para segui-lo novamente.
Vá em frente", ela encorajou Tòtis. "Dê a ele."
Tòtis ergueu os olhos para Ian, ainda sorrindo. Mas quando ele se
aproximou, ele se virou e, segurando o cachorrinho na frente de
1157

Oggy, disse: "Ele é seu, meu irmão." Ele tinha falado em


mohawk, mas Oggy entendeu o gesto, se não as palavras, e gritou
de alegria, saindo dos braços de Rachel na ânsia de tocar o
cachorro. Ian o agarrou e se sentou no chão com ele, e Tòtis
soltou o cachorrinho que se contorcia. Ele saltou sobre Oggy e
começou a amassá-lo com as patas, lambendo seu rosto e
abanando o rabo, tudo ao mesmo tempo. Oggy não chorou, mas
riu, chutou as pernas e gritou à luz do fogo. Tòtis não resistiu e
entrou na briga, rindo e empurrando.
Emily ficou impassível por um momento, mas quando Ian disse:
"Obrigado, moça", ela sorriu novamente.
"Então", ela disse, "você deu o nome de meu filho para mim;
deixe-me fazer o mesmo com o seu." Ela falou gravemente, em
inglês, e olhou do rosto de Ian para o de Rachel e vice-versa.
Ian sentiu Rachel enrijecer e temeu que isso pudesse ser demais
para a luz interior. A tinta azul tinha começado a derreter com o
suor no calor da casa grande e estava espalhando pequenos
tentáculos azuis e caindo por suas bochechas como videiras
brotando. Sua boca se abriu, mas ela não parecia capaz de formar
palavras. Ele viu os ombros dela se endireitarem, no entanto, e
ela acenou com a cabeça para Emily, que assentiu de volta,
seriamente, antes de voltar sua atenção para Oggy.
"O nome dele é Hunter531", ela disse.
"Oh", Rachel disse, e seu sorriso floresceu lentamente entre as
vinhas.

531
Hunter, em inglês, quer dizer caçador, um nome apropriado e honrado, no universo mohawk. E como
Emily não teria como saber o sobrenome de solteira de Rachel, (originalmente Hunter), a coincidência
mostra o quanto estão interligados os dois mundos.
1158

88

NO QUAL COISAS NÃO SE SOMAM

IAN RECUSOU O CONVITE PARA PASSAR a noite na


maloca, para o alívio muito aparente de Rachel. Ele apertou a
mão dela e, quando ninguém estava olhando, levou-a aos lábios.
"Tapadh leat, mo bhean, mo ghaol532", ele sussurrou. Ela
conhecia o gaélico o suficiente, e seu rosto, um pouco tenso sob
as listras azuis e brancas, relaxou em sua beleza normal.
Ela apertou a mão dele de volta e sussurrou: "Hunter James, e o
que quer que seja o mohawk para Pequeno Lobo."
"Ohstòn’ha Ohkwàho", disse ele. "Feito." Ele se virou para se
despedir.
Tòtis ficaria com sua mãe até a partida dos Murray para a
Cordilheira e, assim, apenas os três voltaram para a casa de
Joseph Brant, viajando na carroça, atravessando a escuridão fria
e silenciosa. A tempestade precoce havia passado e a neve havia
derretido; a lua lançava luz suficiente para tornar visível a estrada
lamacenta diante deles.
Ele agradeceu novamente por concordar em levar Tòtis, mas ela
dispensou o agradecimento, balançando a cabeça. "Eu cresci
como uma órfã na casa de pessoas que me abrigaram por dever,
não amor. E embora eu tivesse Denzell por alguns daqueles anos,
eu queria mais do que tudo ter uma grande família, uma família
só minha. Eu ainda quero isso. Além disso", ela acrescentou
casualmente, "como eu poderia não amá-lo? Ele se parece
contigo. Tens um lenço limpo? Temo que minha tinta esteja

532
Obrigado, minha esposa meu amor. Em gaélico.
1159

escorrendo pelo meu pescoço."


A casa parecia acolhedora, todas as janelas iluminadas e fagulhas
voando da chaminé.
"Você acha que Sílvia e suas filhas já chegaram?", Rachel
perguntou. "Eu as tinha esquecido completamente."
Ian sentiu seu coração apertar. Ele também as tinha esquecido.
"Sim, elas chegaram", disse ele. "Mas a casa ainda está de pé.
Espero que seja um bom sinal."

-.-.-

TODOS PARECIAM ESTAR nos fundos da casa; havia


conversas e risos à distância e o cheiro do jantar pairava
apetitosamente no ar, mas apenas a criada que os deixou entrar
estava à vista.
Rachel pediu que ele apresentasse suas desculpas; ela queria
apenas alimentar Oggy – que, tendo dormido em seus braços
como um pequeno tronco pesado durante todo o caminho de
volta, agora dava sinais de vida –, e ir para a cama.
"Vou pedir para que mandem um lanche pequenininho, certo?
Sinto o cheiro de salmão assado e cogumelos."
"Os cogumelos não têm cheiro, a menos que estejam bem debaixo
do seu nariz", disse ela, bocejando. "Mas sim, por favor."
Ela desapareceu subindo as escadas e Ian se virou para anunciar
sua chegada. Ao fazer isso, porém, ele ouviu passos no patamar
acima e se virou para ver Sílvia, com Prudence e Patience, as
garotas brilhando de limpeza, os cabelos trançados firmemente
sob suas toucas.
"Muito apresentáveis, Amigas", disse ele, sorrindo para as
1160

meninas. Elas lhe desejaram-lhe boa noite, mas estavam


claramente agitadas, assim como sua mãe.
"Posso ajudar?", ele disse baixinho, quando ela desceu e ficou ao
lado dele. Ela negou com a cabeça, e ele viu que ela estava tensa
como a corda de um arco.
"Estamos bem", disse ela, mas ela engoliu nervosamente, e
apertava uma dobra da saia firmemente. "Nós... vamos encontrar
Gabriel. Na sala de visitas."
Patience e Prudence estavam claramente se esforçando para
preservar algum senso de decoro, mas estava claro que estavam
fervilhando de uma mistura de excitação e apreensão.
"Aye?", disse Ian. Ele olhou para Sílvia e disse, em voz baixa:
"Você falou com elas, é claro?"
Ela acenou com a cabeça e colocou a mão na touca para se
certificar de que estava reta. "Eu disse o que aconteceu com o pai
delas e como ele veio parar aqui", disse ela. Seu longo lábio
superior pressionou-se com força por um momento. "Eu disse que
ele vai contar a elas... todo o resto."
Ou talvez não, Ian pensou, mas ele fez uma reverência para elas,
conduzindo-as em direção à sala de estar. Uma risadinha escapou
de Prudence, e ela tapou a boca com a mão.
Para a surpresa de Ian, Sílvia abriu a porta da sala e fez sinal para
as meninas entrarem, mas prontamente fechou-a atrás delas. Ela
se encostou na parede ao lado dele, com o rosto pálido e os olhos
fechados. Ele pensou que seria melhor não deixá-la e encostou-
se na parede oposta, os braços cruzados, esperando.
"Papa?", uma das garotas disse dentro da sala, quase em um
sussurro. Sua irmã disse, mais alto: "Papa", e então as duas
gritaram "Papa, Papa, Papa!" e houve o som de pés trovejando no
chão de madeira e o barulho das pernas de uma cadeira quando
1161

corpos a atingiram.
"Prudie!" A voz de Gabriel estava embargada, cheia de alegria.
"Pattie! Oh, minhas queridas, oh, minhas queridas meninas!"
"Papa, Papa!" elas ficavam dizendo, suas exclamações
interrompendo as perguntas e observações feitas uns aos outros,
e Gabriel dizia seus nomes continuamente, como um
encantamento contra o desaparecimento delas. Todo mundo
estava chorando.
"Eu senti tanto a falta de vocês", disse ele com voz rouca. "Oh,
meus bebês. Meus queridos bebês."
Sílvia também chorava, mas silenciosamente, um lenço branco
amassado pressionado junto à boca. Ela acenou para Ian, e ele a
segurou pelo braço, ajudando-a a seguir pelo corredor, pois ela
caminhava como se estivesse bêbada, esbarrando nas paredes e
nele. Ela queria sair, e ele agarrou uma capa do gancho perto da
porta e enrolou-a apressadamente em volta dela, guiando-a pelos
degraus de madeira.
Ele a levou para a árvore que sua mãe e o Sachem tinham usado
para seu treino de tiro, observando distraidamente que eles – ou
alguém – estivera lá de novo, pois a ponta rasgada de um lenço
de algodão rosa esvoaçava por um prego, as bordas inferiores
esfarrapadas e de um marrom chamuscado. Havia um banco, no
entanto, e ele sentou Sílvia e sentou-se ao lado dela, seu ombro
tocando o dela enquanto ela chorava, tremendo.
Ela parou depois de alguns minutos e ficou quieta, torcendo o
lenço molhado entre as mãos.
"Eu continuo tentando pensar em uma maneira", disse ela com
voz rouca. "Mas eu não posso."
"Uma maneira para...?", ele começou com cautela. "Para deixar
as meninas ficarem com o pai?"
1162

Ela assentiu com a cabeça, lentamente. Seus olhos estavam fixos


no chão, onde a neve fina tinha sido pisoteada e marcas de pés a
haviam arrastado, deixando um monte de sujeira, neve e manchas
de água derretida meio congelada.
"Mas eu não posso", disse ela novamente, e assoou o nariz. Ian
não gostou da aparência dolorosa do lenço molhado aplicado em
seu nariz vermelho e em carne viva, e entregou-lhe um lenço
seco, embora manchado de tinta, de sua manga. "Duas das minhas
filhas são dele. Mas eu tenho três. Mesmo se..."
Ian fez um pequeno ruído com a garganta, e ela o olhou
atentamente. "O quê?"
"Tenho certeza de que ele mesmo diria a você, se vocês se
falassem", disse Ian. "Mas Thayendanegea me disse esta manhã,
que ele tem dois filhos pequeninos com a mulher que ele...
ahem..." Ela teria descoberto de qualquer maneira, ele
argumentou silenciosamente, e ela iria, mas ele ainda se sentia
como um sapo culpado, um sentimento não melhorado pelo olhar
de traição nua em seu rosto.
"Será que ajuda, amaldiçoar em voz alta?", ela disse finalmente.
"Bem... Aye. Ajuda, um pouco. Você não conhece nenhuma
maldição, não é?"
Ela franziu a testa, considerando.
"Eu sei algumas palavras", ela disse. "Os homens que... vinham
à minha casa costumavam dizer coisas selvagens, especialmente
se trouxessem bebida ou... ou se houvesse mais de um, e eles...
brigassem."
"Mac na galladh", ele murmurou.
"Isso é uma maldição escocesa?", ela perguntou, e se endireitou,
o lenço ainda torcido em suas mãos. "Talvez eu ache mais fácil
dizer palavrões em outro idioma."
1163

"Não, amaldiçoar em Gàidhlig é uma coisa diferente. É... bem,


você faz uma maldição para a ocasião, pode-se dizer. Nós
realmente não temos palavrões, mas você pode dizer algo como:
Que vermes se reproduzam em sua barriga e sufoquem você ao
sair. Essa não é uma boa maldição", disse ele se desculpando. "Só
no impulso do momento, ken? Tio Jamie pode criar uma maldição
que enrolaria seus cabelos, mesmo sem pensar nisso, mas eu não
sou tão bom assim."
Ela fez um pequeno som de ho-ho que não chegou perto de uma
risada, mas também não estava chorando.
"O que foi que tu disseste, então?", ela perguntou, após um
momento de silêncio. "Em gaélico."
"Oh, mac na galladh? Isso é apenas filho da puta. Algo que você
poderia dizer por meio da descrição, talvez. Ou se você não
consegue pensar em nada melhor para dizer, e você tem que dizer
algo ou explodir."
"Mac na galladh, então", ela disse, e ficou em silêncio.
"Você não precisa ficar comigo", acrescentou ela, depois de
alguns momentos.
"Não seja idiota", disse ele amigavelmente, e eles ficaram
sentados juntos por algum tempo. Até que a porta dos fundos se
abriu e a forma negra de um homem de muletas apareceu por um
momento contra a luz. A porta se fechou e Ian se levantou.
"Deus te abençoe, Sílvia", disse ele suavemente, e apertou o
ombro dela brevemente em despedida.
É claro que ele não foi longe. Apenas para as sombras sob um
lariço próximo.
"Sílvia?", Gabriel chamou, olhando para a escuridão. "Estás
aqui? A sra. Brant disse que tinhas saído."
"Estou aqui", disse ela. Seu tom era perfeitamente neutro, e Ian
1164

achou que custou um pouco para ela fazê-lo.


Seu marido cambaleou pela lama espalhada junto com feno até a
árvore-alvo e se curvou para olhá-la na sombra.
"Posso sentar?", ele perguntou.
"Não", ela disse. "Diz o que tu deves dizer."
Ele bufou brevemente, mas colocou as muletas no chão e se
endireitou.
"Bem então. Desejo que as meninas permaneçam aqui. Elas
também desejam isso", acrescentou ele, após uma pausa.
"Claro que sim", ela disse, sua voz sem cor. "Elas te amavam.
Elas têm corações constantes; eles ainda te amam. Tu disseste a
elas que casou de novo, que tem outra família?"
Houve silêncio e, após um momento, ela riu. Amargamente.
"E tu disseste a elas que não teria nada a ver com a irmã delas?
Ou tu mudaste de ideia em relação à Chastity?"
"Tu mudaste de ideia em relação ao nosso casamento? Posso ter
duas esposas, como disse. Talvez tu pudesses encontrar um lugar
próximo, onde fosses morar com a... a criança, e Prudence e
Patience poderiam visitá-la. E eu, claro", acrescentou.
"Eu não mudei de ideia", ela disse, sua voz fria como a noite.
"Não serei tua concubina, nem permitirei que Patience e
Prudence permaneçam aqui."
"Estou longe de ser rico, mas posso – vou – administrar as
despesas", ele começou, mas ela o interrompeu, levantando-se de
um salto, agora visível à luz fraca da casa.
"Maldita seja a despesa", disse ela, furiosa. "Depois do que tu
disseste, tu esperas que eu..."
"O que foi que eu disse?", ele demandou. "Se eu falei em estado
de choque..."
1165

"Tu disseste que eu era uma prostituta."


"Eu não usei essa palavra!"
"Tu não precisavas! O significado foi claro o suficiente."
"Eu não pretendia...", Gabriel começou, e ela se virou para ele,
os olhos brilhando.
"Oh, mas tu pretendias. E não importa o que tu dizes agora, tu
ainda tens essa pretensão. Se eu fosse para a tua cama, você
murcharia de pensar nos homens que vieram antes de ti e seria
consumido com ainda mais raiva contra mim por causar a tua
desgraça."
Ela bufou, o vapor subindo repentinamente de suas narinas.
"E tu te perguntarias se aqueles homens eram preferíveis a ti.
Preocupado, se eu pensava em algum deles quando tocasse em
teu corpo, pensando que tu fosses fraco e nojento. Eu te conheço,
Gabriel Hardman, e a esta altura, também sei muito sobre outros
homens. E tu ousas... tu ousas!..."
Ela estava gritando agora e podia ser ouvida do celeiro, com
certeza. "Tu te atreves a me dizer que é bom e aceitável que tu
leves mais de uma mulher para a tua cama, apenas porque tu vives
com pessoas que fazem essas coisas!"
Gabriel estava pálido de raiva, mas se controlou. Ele queria suas
filhas.
"Peço desculpas pelo que falei", disse ele, entre os dentes
cerrados. "Eu falei em estado de choque. Como tu podes me
culpar por falar descontroladamente? "
"Tu não estavas falando descontroladamente quando disse que
tiraria Prudence e Patience de mim", ela respondeu.
"Eu sou o pai delas e vou mantê-las!"
"Não, tu não vais," ela disse calmamente, e se virou para a árvore
1166

de Ian. "Ele vai?"


Ian saiu de trás da árvore. "Não", ele disse suavemente. "Ele não
vai."
Gabriel lambeu os lábios e soltou um grande suspiro branco.
"O que vamos fazer, então, Sílvia?", disse ele, claramente lutando
para manter a calma. "Tu sabes que as meninas querem estar
comigo tanto quanto eu desejo estar com elas. O que quer que tu
penses de mim no momento – como tu podes ser tão cruel a ponto
de tirá-las de mim?"
"Quanto a ti, espero que teus outros filhos te consolem", Sílvia
disse, no tom mais desagradável que Ian já tinha ouvido dela.
Ela esfregou a mão no rosto, com força, também lutando para se
acalmar.
"Não. Tu estás certo nisso, pelo menos. Eu sei o quanto elas te
amam e eu nunca direi nada a elas que iria depreciar-te aos olhos
delas. Eu acho que tu deverias contar a elas, porém, sobre teus
filhos aqui. Elas vão entender isso, mas não vão entender por que
tu escondes a verdade delas – e elas estão fadadas a descobrir
mais cedo ou mais tarde, embora não de mim."
Gabriel também se moveu para a luz, arrastando o pé coxo. Ele
havia assumido uma aparência estranha e mosqueada, como uma
velha bétula cuja casca está descascando.
"Não irei deixá-las aqui", disse Sílvia, tendo recuperado o
controle de suas emoções. "Mas eu te escreverei quando
encontrarmos uma casa, e tu poderás ir visitá-las. Vou ajudá-las
a escrever para ti, e talvez elas possam vir aqui para ver-te
novamente, se parecer seguro." Ela endireitou as costas e alisou
o avental.
"Eu te perdoo, Gabriel", ela disse calmamente. "Mas eu nunca
serei tua esposa novamente."
1167
1168

89

A FIAÇÃO

Savannah
30 de setembro de 1779

ALFRED BRUMBY NÃO SE PARECIA com um


contrabandista, ou pelo menos não com a noção de Brianna sobre
um. Por outro lado, ela foi forçada a admitir que as únicas pessoas
que ela conhecia que eram – ou tinham sido – contrabandistas
profissionais eram seu pai e Fergus. O sr. Brumby era um
cavalheiro de estatura mediana, confortavelmente sólido e bem
vestido, que, ao conhecê-la, inclinou a cabeça para trás,
protegendo os olhos enquanto a olhava, e então riu e fez uma
reverência para ela.
"Vejo que lorde John conhece o valor de um bom artista", disse
ele, sorrindo. "Você cobra sua comissão por centímetro, senhora?
Porque, se for assim, posso ser obrigado a vender minha
carruagem para poder pagar a você."
"Eu realmente cobro por centímetro, senhor", ela disse a ele
educadamente, e acenou para sua esposa diminuta. "Mas a base
seria o tamanho da pintura, e não o artista. "
Ele riu muito, assim como sua jovem esposa. Meu Deus, Brianna
pensou, ela mal tem dezoito anos, se tanto!, e então se virou para
Roger, apertando as mãos e puxando-o para uma conversa
animada, enquanto sua esposa, Angelina, ajoelhou-se no chão,
sem se importar com seu vestido elegante, e conversou com
1169

Mandy e Jem, então se levantou e os convidou para virem ver o


estúdio de sua mãe.
O arranjo oferecido pelo hospitaleiro sr. Brumby era que os
MacKenzie viveriam em sua casa durante a duração da missão de
Brianna e seriam tratados como membros da família. Na hora do
jantar, todos haviam sido perfeitamente absorvidos pela casa dos
Brumby, que era grande e alegre, com muitos criados, uma
excelente cozinheira e Henrike, uma grande e capaz criada alemã
que fora a babá e aia de Angelina e insistiu em acompanhá-la após
seu casamento com o sr. Brumby.
"E como pretende passar o seu tempo, sr. MacKenzie, enquanto
sua esposa trabalha com pintura?", o sr. Brumby perguntou por
cima de um delicioso assado de porco com molho de maçã com
conhaque.
"Tenho várias tarefas a cumprir, senhor", disse Roger. "Em nome
do Presbitério de Charles Town, que me confiou várias cartas
para entregar – e também alguns pequenos recados para realizar
em nome de meu sogro, o coronel Fraser."
"Oh, de fato." Os olhos do sr. Brumby brilharam através de seus
óculos. "Já ouvi falar do coronel Fraser – quem não? Eu não sabia
que ele fazia uísque dessa qualidade." Ele acenou com a cabeça
para a garrafa que Roger tinha apresentado a ele antes do jantar;
ele a trouxe para a mesa e continuou a tomar pequenos goles de
um copo de prata que o mordomo reabastecia – frequentemente
– no decorrer da refeição. "Ele deve estar interessado em vendê-
lo para um mercado mais amplo..."
Roger sorriu e garantiu ao sr. Brumby que Jamie fazia uísque
apenas para seu uso pessoal, fazendo o sr. Brumby rir alto e dar
a Roger uma piscadela exagerada e um dedo ao lado do nariz.
"Muito sensato", disse ele, "muito sensato mesmo. Sendo os
impostos alfandegários e de consumo o que são, dificilmente
1170

valeria a pena oferecê-lo comercialmente, exceto por um preço


exorbitante – e isso, é claro, tem suas próprias dificuldades."
Brianna apreciou o jantar e ficou encantada com a casa, que fora
construída por um excelente arquiteto. O esforço de acenar com
a cabeça em agradecimento para cada um dos Brumbys, por sua
vez – pois os dois falavam incessantemente e frequentemente ao
mesmo tempo – estava desgastando-a, no entanto, e ela
aproveitou a entrada de charutos e conhaque para os cavalheiros
como sua deixa para levantar-se e pedir licença para ir ver se as
crianças ainda estavam onde ela as havia colocado.
Elas foram colocadas em camas de rodízio que foram montadas
no confortável quartinho anexo ao quarto de hóspedes bem
equipado que havia sido designado para os MacKenzie, e quando
ela foi olhar, elas estavam limpas e dormindo profundamente,
tendo sido alimentadas antes pela cozinheira, a sra. Upton.
"Eu poderia me acostumar com isso", disse Roger, bocejando ao
entrar mais tarde, tirando o casaco. "Você não pensaria que
estaria acontecendo um cerco armado do lado de fora, não é?"
A casa dos Brumbys ficava na Reynolds Square, em frente à
fiação – uma instalação para criar bichos-da-seda – e a
abundância de árvores, incluindo o grande bosque de amoreiras
brancas necessárias para a dieta dos referidos bichinhos, dava
uma sensação de isolamento e paz pastoral.
"Você está acompanhando o calendário, não é? ", Bree colocou a
roupa de dormir pela cabeça, notando pelo cheiro que ela deveria
falar com a lavadeira dos Brumbys amanhã. "Quantos dias até o
inferno irromper?"
"Menos de três semanas", ele disse, mais sobriamente. "Seu pai
não deu muitos detalhes sobre a batalha, mas sabemos que os
americanos vão perder. O cerco será levantado no dia 11 de
outubro."
1171

"E você estará aqui dentro e em segurança, certo?" Ela ergueu as


sobrancelhas para ele, e ele sorriu e pegou a mão dela.
"Eu vou", disse ele, e beijou-a.
1172

90

A RAPOSA DO PÂNTANO

Savannah
8 de outubro de 1779

ROGER HAVIA SE VESTIDO PARA seus compromissos.


Felizmente, o mesmo conjunto de tecido preto resistente, de
casaco longo e abotoado de estanho, serviria para ambos, já que
era o único que ele possuía.
Brianna havia trançado e penteado seus cabelos severamente, e
ele estava tão barbeado que sua mandíbula parecia em carne viva.
Um alto lenço branco enrolado em seu pescoço completava a
imagem – ele esperava – de um respeitável clérigo. As sentinelas
britânicas na barricada de White Bluff Road não lhe deram mais
do que um olhar desinteressado antes de acenar para que ele
passasse. Ele só podia esperar que as sentinelas americanas fora
da cidade sentissem a mesma falta de curiosidade sobre os
ministros.
Ele cavalgou uma boa distância da cidade antes de virar para o
leste e começar a circular de volta em direção às linhas de cerco
dos americanos, e era pouco depois do meio-dia quando ele os
avistou.
O acampamento americano era acidentado, mas ordeiro, cerca de
um acre de tendas de lona tremulando ao vento como gaivotas
presas e os navios de guerra franceses incrivelmente grandes
visíveis no rio além, dos quais de vez em quando uma salva de
tiros de canhão irrompia com jorros de chamas, soltando vastas
nuvens de fumaça branca para vagar pelos pântanos com as
nuvens dispersas de gaivotas e de pássaros ostraceiros alarmados
1173

com o barulho.
Havia piquetes de sentinelas entre os arbustos de chá-dos-
apalaches, um dos quais apareceu como se saído de uma caixa de
surpresa e apontou um mosquete para Roger de maneira
profissional.
"Pare!"
Roger puxou as rédeas e ergueu a bengala, o lenço branco
amarrado na ponta, sentindo-se um tolo. Funcionou, no entanto.
A sentinela assobiou entre os dentes para um companheiro, que
apareceu ao lado, e ao aceno do primeiro homem, avançou para
pegar o freio de seu cavalo.
"Qual é o seu nome e o que você quer?", perguntou o homem,
semicerrando os olhos para Roger.
Ele usava calças comuns de um pioneiro do sertão e camisa de
caça, mas tinha botas do exército e um boné de uniforme ímpar,
em forma de mitra de bispo amassada.
Um distintivo de cobre em sua gola dizia sargento Bradford.
"Meu nome é Roger MacKenzie. Sou um ministro presbiteriano
e trouxe uma carta ao general Lincoln, da parte do general James
Fraser, no comando do general Washington, em Monmouth. "
As sobrancelhas do sargento Bradford se ergueram sob seu
chapéu.
"General Fraser", disse ele. "Monmouth? Aquele sujeito que
abandonou suas tropas para cuidar de sua esposa?"
Isso foi dito com um tom zombeteiro, e Roger sentiu as palavras
como uma pancada no estômago. Foi assim que a renúncia
reconhecidamente dramática de Jamie à sua patente foi
comumente percebida no Exército Continental? Nesse caso, sua
própria missão atual poderia ser um pouco mais delicada do que
ele esperava.
1174

"O general Fraser é meu sogro, senhor", Roger disse em voz


neutra.
"Um homem honrado – e um soldado muito corajoso."
O olhar de desprezo não saiu do rosto do homem, mas se moderou
em um breve aceno de cabeça, e o homem se virou, sacudindo o
queixo em uma indicação de que Roger poderia segui-lo, se ele
se sentisse inclinado.
A tenda do general Lincoln era uma grande lona verde, mas muito
gasta, com um mastro de bandeira do lado de fora do qual as
listras vermelhas e brancas da bandeira Grand Union533
tremulavam ao vento que soprava da água. O sargento Bradford
murmurou algo para o guarda na entrada e deixou Roger com um
breve aceno de cabeça.
"Reverendo MacKenzie, não é?", disse o guarda, olhando-o de
cima a baixo com ar de ceticismo. "E uma carta do general James
Fraser, entendi direito?"
Cristo. Jamie sabia das fofocas sobre ele? Roger lembrou-se do
momento de hesitação quando Jamie lhe entregou a carta. Talvez
ele soubesse, então.
"Sou eu, sim, e você entendeu", Roger disse com firmeza. "O
general Lincoln pode me receber?" Ele pretendia deixar a carta e
voltar para pegar a resposta – se houvesse uma – depois de falar
com Francis Marion, mas agora ele pensou que seria melhor
descobrir se Benjamin Lincoln compartilhava essa visão
aparentemente negativa das ações de Jamie.
"Espere aqui." O soldado – ele era um Continental regular, um
cabo uniformizado – abaixou-se sob a aba da tenda, mantida
533
A "Bandeira da Grande União" é considerada a primeira bandeira nacional dos Estados Unidos da
América. Possuía 13 listras vermelhas e brancas alternadas, representando as Treze Colônias . O canto
interno superior, ou cantão , exibia a bandeira do Reino da Grã-Bretanha , do qual as colônias haviam
sido súditas . Foi instituída em 3 de dezembro de 1775 e foi substituída em 14 de junho de 1777, já sendo,
portanto, obsoleta nessa época da história.
1175

fechada para barrar a brisa fria. Através da lacuna momentânea,


Roger avistou um homem grande de uniforme, enrolado em uma
cama, suas largas costas azuis voltadas para a porta. Um leve
zumbido de ronco chegou aos ouvidos de Roger, mas
aparentemente o cabo não tinha intenção de tentar acordar o
general Lincoln, e depois de um minuto – por uma questão de
plausibilidade, Roger assumiu – o cabo reapareceu.
"Temo que o general esteja ocupado no momento, sr. ...?"
"Reverendo", Roger repetiu com firmeza. "Reverendo Roger
MacKenzie. Como o general Lincoln não está disponível, posso
falar com", merda, qual é a patente de Marion agora?, " com o
capitão Francis Marion, talvez?"
"Tenente-coronel Marion, imagino que você queira dizer." O
cabo o corrigiu com naturalidade. "Você talvez o encontre no
cemitério judeu; eu o vi ir para lá, junto com alguns chasseurs534
um tempo atrás. Você sabe onde é?" Ele gesticulou em direção
ao oeste.
"Eu o encontrarei. Obrigado." O guarda pareceu aliviado por se
livrar dele e Roger caminhou na direção indicada, segurando o
chapéu de aba larga contra a força do vento.
A atmosfera agitada do acampamento contrastava muito com a
breve visão de seu comandante adormecido. Os homens se
moviam de um lado para outro com um propósito; à distância, ele
viu muitos cavalos – a Cavalaria, ele percebeu com interesse.
O que eles estavam fazendo?
Estavam em formação. Ele sentiu como se Jamie tivesse falado
em seu ouvido, com naturalidade, como sempre, e seu estômago
se contraiu. Preparando-se.
Hoje era em 8 de outubro. De acordo com o livro de Frank

534
Caçadores. em francês.
1176

Randall, o cerco de Savannah começou em 16 de setembro e seria


levantado em 11 de outubro.
E qual vantagem saber disso traz a você, cabeça-dura? Pela
milésima vez, ele se repreendeu por não saber mais, por não ter
lido tudo que havia para ler sobre a Revolução Americana – mas
sabendo, mesmo enquanto ele se censurava, que as chances de
qualquer conhecimento de livro alguma vez se assemelhar à
realidade de sua experiência seriam muito pequenas.
Um pequeno esquadrão de pelicanos desceu em compasso único
sobre as águas distantes e navegou serenamente logo acima das
ondas, ignorando navios, canhões, cavalos, homens gritando e o
céu rapidamente nublado.
Deve ser bom, ele pensou, observando-os. Nada em que pensar,
a não ser de onde virá seu próximo peixe...
Um mosquete disparou em algum lugar atrás dele, uma nuvem de
penas explodiu de um dos pelicanos e caiu como uma pedra, asas
soltas, na água. Vivas e assobios vieram atrás dele, interrompidos
abruptamente pela voz de um oficial furioso, castigando o
atirador por desperdiçar munição.
Ok, ponto tirado.
Como se apoiasse o atirador, houve um estrondo distante, seguido
por outro. Canhão de cerco, ele pensou, e um arrepio
incontrolável de excitação percorreu sua espinha com o
pensamento. Calculando o alcance.
Ele se perdeu por alguns instantes, mas um cabo que passava o
colocou no caminho certo e o acompanhou até o cemitério,
marcado por um grande portal de pedra.
"Esse é o coronel Marion, reverendo", disse sua escolta, e
apontou. "Quando você terminar de fazer negócios com ele, um
de seus homens o levará de volta à tenda do general Lincoln." O
1177

homem se virou para ir embora, mas voltou para adicionar uma


advertência. "Não fique vagando sozinho, reverendo. Não é
seguro. E não tente deixar o acampamento também. Os piquetes
receberam ordens para atirar em qualquer homem que tentasse
sair sem um passe do general Lincoln."
"Não", disse Roger. "Eu não vou." Mas o cabo não esperou pela
resposta; ele já estava correndo de volta para o corpo principal do
acampamento, as botas esmagando conchas brancas de ostra.
Estava perto – muito mais perto do que ele pensava. Ele podia
sentir todo o acampamento zumbindo, uma sensação de energia
nervosa, homens se preparando. Mas certamente era muito cedo
para...
Em seguida, atravessou o alto portão de pedra do cemitério, com
o lintel decorado com a estrela de Davi, e viu imediatamente
quem devia ser o tenente-coronel Francis Marion, de chapéu na
mão e casaco de uniforme azul e amarelo jogado solto sobre os
ombros, em uma conversa profunda com três ou quatro outros
oficiais.
A infeliz palavra que veio à mente de Roger foi "marionete".
Francis Marion era o que Jamie chamaria de um homem
pequenino, medindo não mais que um metro e sessenta e dois,
pela estimativa de Roger, esquelético e de canelas em forma de
fuso, com um nariz francês muito proeminente. Não exatamente
o que o apelido romântico "Raposa do Pântano" conjurava.
Sua aparência tornou-se mais cativante por seu penteado, com
finas mechas de cabelo arranjadas em uma madeixa cuidadosa
sobre uma cabeça calva e dois pompons bem maiores de cada
lado da cabeça, como protetores de ouvido. Roger foi consumido
pela curiosidade sobre como deveriam ser as orelhas do homem,
para exigir esse tipo de disfarce, mas ele descartou isso com um
esforço de vontade e esperou pacientemente que o tenente-
1178

coronel terminasse seu assunto.


Chasseurs – caçadores, dissera o cabo. Tropas francesas, então,
e pareciam isso mesmo, muito arrumadas em casacos azuis com
tiras verdes e calças brancas, com vistosos adornos de penas
amarelas projetando-se da frente de seus chapéus armados como
faíscas de quatro de julho. Eles também falavam francês
inegavelmente, muitos deles ao mesmo tempo.
Por outro lado... eles eram homens negros535, o que ele não
esperava.
Marion levantou a mão e a maioria parou de falar, embora
houvesse muitas mudanças de posição e um ar geral de
impaciência. Ele se inclinou para frente, falando na cara de um
oficial que o ultrapassava por uns bons quinze centímetros, e os
outros pararam de se mexer e se esticaram para ouvir.
Roger não conseguia ouvir o que estava sendo dito, mas estava
fortemente ciente da corrente elétrica correndo pelo grupo – era
a mesma corrente que ele sentiu correndo pelo acampamento,
mas mais forte.
Jesus Cristo Todo-Poderoso, eles estão se preparando para
lutar. Agora.
Ele nunca esteve em um campo de batalha ao vivo, mas caminhou
em alguns históricos com seu pai. O reverendo Wakefield foi um
historiador de guerra perspicaz e um bom contador de histórias;
ele foi capaz de evocar a sensação de uma luta confusa e em
pânico em campo aberto em Sheriffmuir, e a sensação de
condenação e massacre na terra assombrada de Culloden.
Roger estava tendo a mesma sensação, erguendo-se da terra
silenciosa do cemitério através de seu corpo, e fechou os punhos,

535
“Les Chasseurs Volontaires de Saint Domingue” (Saint Domingue era o nome Haiti na época) era uma
grande companhia de soldados negros, descendentes ou escravos recém libertados, que lutaram como
voluntários, sob ordens de oficiais franceses.
1179

desejando com urgência sentir uma arma em sua mão.


O ar estava frio, mas úmido, com um leve estrondo de um trovão
sobre o mar e o suor condensava-se em seu corpo. Ele viu Marion
enxugar o próprio rosto com um lenço grande e sujo, depois o
guardar com um gesto impaciente e se aproximar do oficial
chasseur, erguendo a voz e acenando a cabeça em direção ao rio
atrás deles.
O que quer que ele tenha dito – ele falava francês e a distância
era muito grande para Roger entender mais do que uma frase aqui
e ali – pareceu acalmar os caçadores, que grunhiram e acenaram
com a cabeça entre si, então se reuniram atrás de seu oficial e
seguiram, em meio trote, em direção aos navios. Marion
observou-os partir, depois suspirou visivelmente e sentou-se em
uma das lápides.
Parecia ridículo abordar Marion com suas perguntas nessas
circunstâncias, mas o homem o avistou e ergueu o queixo
interrogativamente. Não havia muita escolha a não ser dizer olá,
pelo menos.
"Boa tarde, senhor", disse ele, curvando-se ligeiramente. "Peço
desculpas por interromper você. Posso ver que..." Na falta de
palavras suficientes, ele acenou com a mão em direção ao
acampamento distante.
Marion riu, um som baixo de diversão honesta.
"Bem, sim", disse ele, com um sotaque que parecia levemente
tingido com o francês que ele acabara de falar. "É claro, não é?
Suponho que você não sabia, ou...?" Uma sobrancelha se ergueu.
"Ou eu não estaria aqui", concluiu Roger. Marion encolheu os
ombros.
"Você pode ter vindo para se voluntariar. O exército continental
não é exigente, embora eu deva dizer que o ministro que
1180

ocasionalmente recebemos geralmente não usa suas melhores


roupas para lutar." A expressão de diversão se aprofundou
enquanto ele olhava Roger de cima a baixo. "Então, por que você
está aqui, senhor?"
"Meu nome é Roger MacKenzie, e sou genro do general James
Fraser, o ex-..."
"Realmente." Ambas as sobrancelhas foram levantadas o mais
alto que podiam. "Fraser o mandou como enviado ao general
Lincoln, e eles o enviaram a mim porque Benjamin está
dormindo?"
"Não exatamente." Era melhor ele simplesmente colocar isso sem
rodeios. Qualquer que fosse a reputação de Jamie com o Exército
Continental, seu negócio com Marion era bastante direto.
"Suponho que você saiba que o general Fraser renunciou à sua
patente após a Batalha de..."
"Monmouth, sim." Marion moveu suas nádegas esqueléticas na
pedra. "Todo mundo já sabe, eu acho. É verdade que ele escreveu
sua carta de demissão nas costas de um alferes e a enviou a Lee
em uma camisa enlameada?"
"Foi escrito com o sangue de sua esposa", disse Roger, "mas
sim."
Isso tirou o olhar divertido dos olhos de Marion. Ele acenou com
a cabeça um pouco, o tufo magro de cabelos grisalhos no topo de
sua cabeça se mexendo com a brisa crescente, como se
perturbado pelos pensamentos por trás dele.
"Não conheço Monsieur Fraser como homem", disse ele, "mas
conversei com aqueles que o conhecem." Ele olhou para Roger,
a cabeça inclinada para o lado. "O que ele quer comigo?"
"Ele está montando uma milícia", Roger respondeu, com a
mesma franqueza. "Uma partisan band. Ele não quer ter mais
1181

nada a ver com o Exército Continental – e imagino que o


sentimento seja mútuo – mas ele pretende lutar."
"Suponho que ele terá que fazer isso." Foi uma declaração de fato,
feita sem emoção alguma, mas falada aqui, com o ar ao redor
deles vivo e perigoso como uma tempestade de raios, atingiu
Roger como um golpe no peito.
"Sim."
"E ele quer uma – uma liaison536 com o Exército, talvez? Uma
conexão, mas não uma ligação formal. Apenas." Os lábios de
Marion eram finos e sem sangue; apertados um contra o outro,
eles desapareceram, fazendo-o parecer uma marionete com uma
mandíbula entalhada e articulada.
"Ele também sabe algo sobre você", Roger disse cuidadosamente.
"Que você tem experiência na formação de unidades de milícia
e... em empregá-las efetivamente em um... contexto militar
formal, talvez?"
"É muito mais eficaz empregá-las fora desse contexto", disse
Marion, olhando para o muro do cemitério. Havia um barulho
crescente de cavalos e homens, audível agora que as armas
haviam silenciado. Seus grandes olhos escuros se voltaram para
trás, focalizando o rosto de Roger. "Diga-lhe isso. Ele deve
manter distância do Exército. Eles vão usar sua milícia,
certamente, eles precisam de todos os homens que puderem
conseguir. Mas o risco para ele – ele, pessoalmente – é muito
grande. Se não fosse pelo julgamento de Lee e as boas palavras
de La Fayette, Fraser teria sido levado à corte marcial depois de
Monmouth; talvez até enforcado."
Marion falou casualmente, mas Roger sentiu a cicatriz em sua
garganta apertar e queimar oculta sob seu alto lenço branco, e ele
teve o desejo repentino e incontrolável de jogá-lo fora, explodir
536
Conexão, ligação, elo. Em francês
1182

a memória da corda e do desamparo.


Ele engoliu em seco e tentou falar, mas nenhuma palavra saiu.
Em vez disso, ele girou violentamente sobre os calcanhares,
agarrou uma pedra do chão e jogou-a no muro de pedra. Ele
acertou com um estalo como uma bala, e uma gaivota que estava
sentada no muro levantou-se com um grito agudo e voou para
longe, deixando cair um grande respingo úmido de fezes no chão
entre os dois homens.
Marion olhou para ele com preocupação.
Roger pigarreou e cuspiu no chão. Ele não se desculpou; não
havia nada que ele pudesse dizer.
"Eu direi a ele", disse ele, rouco e formal. "Obrigado por seu
conselho, senhor."
Ele estava tremendo. A sensação de que algo estava chegando
não tinha ido embora; estava crescendo. O solo parecia vibrar,
mas devia ser apenas ele.
Um jovem tenente passou pelo portão sob a Estrela de Davi, o
rosto iluminado de medo e empolgação.
"Eles estão esperando por você, coronel."
Marion acenou com a cabeça para o menino e se levantou.
"Você não pode ir embora, infelizmente", disse ele se
desculpando com Roger. "Vai começar em breve. Você quer
lutar? Posso lhe dar um bom rifle."
"Eu - não." Roger tocou o lenço em sua garganta. A atenção de
Marion estava voltada para os sons por trás do muro do cemitério.
Não, não era sua imaginação; o chão estava vibrando. Cavalos.
Os cavalos... "Mas eu... eu gostaria de ajudar. Se eu puder."
"Bon", disse Marion suavemente, quase distraidamente. Ele
deslizou os braços nas mangas do casaco e puxou-o pelos
ombros, os dedos fechando os botões inferiores sem olhar. Mas
1183

sua atenção voltou-se para Roger, apenas por um momento.


"Volte para o acampamento, então", disse ele. "E espere. Se as
coisas derem errado, você pode ajudar a nos enterrar. Ou se
derem certo, eu espero."
Marion olhou para o portão e balançou a cabeça ligeiramente.
"Não tenho um bom pressentimento sobre isso, não", disse ele,
como se para si mesmo, e saiu, o jovem tenente dando um passo
atrás dele.
Roger hesitou por uma fração de segundo, depois o seguiu,
esticando as pernas para alcançá-lo.
"Não sou bom com um rifle", disse ele. "Mas se você puder me
dar uma espada, eu irei com você."
Marion lançou-lhe o mais breve dos olhares, assentiu e fez um
pequeno gesto para o tenente.
"Bon", disse ele. "Venha, então."
1184

91

SITIADOS537

BRIANNA estava cortando um pedaço de frango frito na cozinha


para Mandy quando ouviu alguém batendo na janela. Ela ergueu
os olhos com surpresa ao ver lorde John do lado de fora, de
uniforme. Ele fez uma careta e acenou com a cabeça, indicando
que gostaria de sair da chuva.
"O que você está fazendo aqui?", ela perguntou, abrindo a porta,
que dava para o jardim dos fundos. Ela já havia ido tomar chá
com ele duas vezes desde sua chegada, mas não esperava uma
visita informal.
"Queria vê-la por um momento", respondeu ele, entrando e
pegando a toalha que ela lhe oferecia, "mas não posso perder
tempo sendo gentil com o sr. ou a sra. Brumby. Obrigado, minha
querida." Ele tirou o chapéu, enxugou o rosto e alisou os ombros
de sua capa azul, depois devolveu a toalha.
"Eu vim dizer a vocês que o cerco em breve chegará ao fim", ele
disse cuidadosamente, olhando para Jem, Mandy e a sra. Upton,
a cozinheira.
"Mesmo? Isso é... ", ela parou abruptamente, vendo seu rosto. "O
que o faz pensar isso?", ela perguntou cuidadosamente, e ele deu
um breve sorriso.
"Os americanos começaram a mover suas armas", disse ele.
"Oh, eles começaram? Já não era sem tempo!", a sra. Upton disse,
os olhos nos ovos que ela estava batendo. "O mestre disse que
pensava que os franceses e seus navios partiriam em breve, eles

537
O título desse capítulo (Besieged) é o mesmo de um conto da série de lorde John.
1185

não queriam ser destruídos por furacões."


"Furacões?", disse Jem, se animando. "Eles têm furacões aqui?"
"Sim, sim, mestre Jem”, a sra. Upton disse, acenando atentamente
para a janela respingada de chuva. "Você vê essa chuva? Você
pode dizer o quão forte o vento está soprando – vê as gotas
escorrendo obliquamente pelo vidro? Nesta época do ano, o vento
aumenta – e às vezes não diminui. Por dias."
"Sei que você não tem muito tempo", disse Bree, olhando para
John, "mas venha para o meu estúdio, está bem? Eu gostaria da
sua opinião sobre algo."
"Seria um prazer. Bonsoir, monsieur, mademoiselle." Ele acenou
com a cabeça para Jemmy, então solenemente pegou a mão
gordinha de Mandy – garfo, frango, e tudo – curvou-se sobre ela,
e deu-lhe um beijo discreto que a fez gritar e rir.
"A sra. Upton está correta, até certo ponto", ele disse a Bree, uma
vez que eles estavam em segurança no corredor. "D'Estaing não
quer perder metade de sua frota em um furacão. Mas também não
quer partir sem tentar obter o que veio buscar."
"O que significa…?"
"O que significa que os americanos estão de fato movendo suas
armas menores – mas não de volta aos navios. Um grande número
de tropas parece estar se movendo para o sul da cidade,
circulando pelos pântanos, o que não é algo que eu pessoalmente
faria, mas os estilos de comando variam."
Ela apertava as mãos sem perceber; agora ela notou e as abriu
com um pequeno esforço.
"Você quer dizer que eles vão tentar – tomar a cidade? Agora?"
"Eles certamente vão tentar", garantiu ele. "Não acho que eles
vão conseguir, mas eles têm alguns homens a mais do que nós, o
que sem dúvida lhes dá uma sensação de otimismo. Só por
1186

precaução..." Ele empurrou a capa para trás a fim de alcançar a


mochila que pendurava no ombro e puxou um pequeno embrulho
de tecido, dobrado em um pacote e amarrado com um barbante.
"É uma bandeira americana", disse ele, entregando-a a ela. "Hal
a tirou de um prisioneiro. Se – e eu quero dizer no evento
extremamente improvável – os americanos realmente entrarem,
pendurem isto em uma janela ou preguem na porta da frente."
Roger. Ela engoliu em seco. Ele tinha ido visitar um pastor
presbiteriano idoso aposentado que vivia no pequeno
assentamento de Bryan Neck. Com sorte, ele não estava em
nenhum lugar perto de Savannah no momento. Mas ele
mencionou que talvez fosse ver Francis Marion em nome de
Jamie, se a Raposa do Pântano estivesse no acampamento
americano... mas... não era para ir agora... Seu coração estava
começando a bater de forma irregular, e ela colocou a mão em
seu peito para acalmá-lo.
"Eles têm mais homens, você disse." Ele estava recolocando sua
capa, pronto para ir, mas olhou para ela. "Quantos eles são?"
"Oh, algo entre três e quatro mil", disse ele. "Acho que sim."
"E quantos você tem?"
"Não tantos", disse ele. "Mas nós somos o Exército de Sua
Majestade. Nós sabemos fazer esse tipo de coisa." Ele sorriu e,
levantando-se ligeiramente na ponta dos pés, beijou a bochecha
dela. "Não se preocupe, minha querida. Se algo drástico
acontecer, eu virei buscá-la, se puder."
"Lorde John!"
Ele se virou imediatamente, as sobrancelhas levantadas, e ela
pensou por um instante como ele parecia jovem. Animado com a
proximidade da batalha. Roger. Oh senhor, Roger...
"Meu marido", ela conseguiu dizer, sem fôlego. "Ele está
1187

voltando para casa, de... de uma missão. Ele pensou que chegaria
para o jantar..."
Lorde John abanou a cabeça, negando.
"Se ele não está aqui agora, não estará no horário do jantar." Ele
viu a expressão em seu rosto e acrescentou: "Quero dizer, ele não
poderá entrar na cidade. A estrada está fechada e a cidade está
cercada por abatis. Mas vou mandar uma mensagem ao capitão
da guarda da cidade. Lembre-me: qual é o nome do seu marido e
como ele se parece?"
"Roger", disse ela, com o nó na garganta. "Roger MacKenzie. Ele
é alto e moreno e parece... um ministro presbiteriano." Graças a
Deus você usou roupas boas hoje, ela pensou apaixonadamente
sobre seu marido ausente.
Lorde John estava totalmente concentrado em suas palavras, mas
isso o fez sorrir.
"Nesse caso, tenho certeza de que ninguém atirará nele", disse
ele, e erguendo a mão dela, beijou-a brevemente. "Au revoir,
minha querida."
"Bom... ", ela começou a dizer por reflexo, mas então congelou.
Ele educadamente fingiu não notar, tocou a bochecha dela
gentilmente, depois se virou e saiu, puxando o chapéu para se
proteger da chuva.

-.-.-

A LUZ SUAVE a acordou na manhã seguinte. Ela ficou deitada


por um momento, confusa. O que estava errado?
"Mamãe, mamãe!"
Uma pequena cabeça preta e encaracolada com olhos castanhos
brilhantes apareceu na altura dos olhos, e ela piscou, tentando se
1188

concentrar.
"Mamãe! A sra. Upton disse que tem panquecas e picadinho de
carne com batatas para o café da manhã! Se apresse! "
Mandy desapareceu, e Bree ouviu as duas crianças descendo as
escadas trovejando, ambas evidentemente já vestidas e calçadas.
Era verdade: cheiros atraentes de comida e café subiam da sala
de jantar lá embaixo.
Ela se sentou e colocou os pés para fora da cama, e então tudo a
atingiu. Estava silencioso. As armas pararam. Depois de cinco
dias sendo acordada na escuridão da madrugada pelos distantes
navios franceses praticando bombardeios, hoje o dia na casa
estava nascendo pacificamente, o sol da manhã se infiltrando
através da névoa, calmo como o mel.
"Graças a Deus", ela murmurou, e benzeu-se, com uma rápida
oração por Roger e outra por seu pai, seu primeiro pai. Ela
acreditou no que ele disse no livro; o cerco de Savannah iria
falhar. Mas era difícil ter fé total na história quando ela estava
explodindo ao seu redor.
"Obrigada, papai", disse ela, pegando o espartilho.
1189

92
COMO ÁGUA QUE SE ESPALHOU PELA TERRA, QUE
NÃO PODE SER RECOLHIDA NOVAMENTE538

Nos pântanos ao largo de


Savannah
Uma hora após a meia-noite
9 de outubro de 1779

A PENA ERA UM POUCO MAIS DO QUE UM TOCO,


gordurosa e mutilada por mãos obstinadas determinadas a
mandar uma última palavra. Roger tinha escrito mais de uma
dessas cartas esta noite, para homens que não sabiam escrever ou
não tinham ideia do que dizer. Agora o acampamento estava
dormindo – levemente – ao seu redor, e ele enfrentava o mesmo
problema.
Querida Bree, ele escreveu, e parou para respirar antes de
continuar. Havia apenas uma coisa a dizer e ele escreveu: Eu sinto
muito. Mas ela merecia mais e, lentamente, ele encontrou suas
ideias.

Eu não queria estar aqui, mas tenho a


forte sensação de que aqui é onde eu
deveria estar. Não era muito " Quem
devo enviar? Quem deve ir por nós?" –,
mas algo próximo, e assim foi a minha
resposta.

538
Referência bíblica; 2 Samuel 14:14
1190

Se Deus quiser, vejo você em breve. Por


enquanto e para sempre, sou o seu
marido e eu te amo.
Roger

As últimas palavras foram apenas fantasmas no pedaço de papel


áspero e manchado de chuva; com o resto da tinta. Seu nome não
passava de arranhões, mas ele supôs que estava tudo bem; ela
saberia quem o escreveu.
Ele deixou a tinta secar e dobrou o pedaço de papel com cuidado.
Então percebeu que não tinha como enviar a carta – nem restava
tinta para escrever o endereço de Bree nele. As outras cartas
foram entregues ao funcionário da companhia de Marion, agora
roncando debaixo de um cobertor perto de uma das muitas
fogueiras de vigia, anônimo entre as ovelhas adormecidas
amontoadas.
Com as mãos lentas, ele a enfiou no bolso da frente do casaco. Se
ele morresse de manhã, alguém poderia descobri-la com ele.
Francis Marion sobreviveria a esta batalha; Roger podia confiar
nele para enviá-la – para Jamie, pelo menos.
Ele se deitou no chão úmido, encomendou sua alma a Deus e
adormeceu.

-.-.-

Duas horas antes do amanhecer


9 de outubro de 1779

HAVIA UM BRILHO de luz no céu oriental, mas a névoa estava


tão densa nos pântanos que a cidade não era visível. Era fácil
1191

acreditar que não estava lá, que eles haviam perdido o rumo no
escuro e agora estavam voltados para o interior, longe de
Savannah. Que, quando a ordem fosse dada, eles atacariam,
gritando como demônios, direto para terras agrícolas pacíficas,
assustando vacas adormecidas e homens escravizados em seu
trabalho.
Mas o ar úmido e lento se agitou e, de repente, Roger sentiu o
cheiro de pão assando nos fornos públicos em Savannah; fraco,
mas tão inebriante que seu estômago vazio roncou.
Brianna. Ela estava lá, em algum lugar na névoa com o pão recém
assado.
Alguém murmurou algo em francês, baixo demais para entender
as palavras, mas evidentemente espirituoso, pois houve uma onda
de risos e a tensão relaxou por um momento.
Eles estavam agrupados em colunas agora, quatro colunas, cada
coluna com oitocentos soldados. Não havia necessidade de ficar
quieto; os britânicos certamente sabiam que eles estavam aqui.
Ele podia ouvir gritos vindos de um dos redutos na orla da cidade
agora, ecoando estranhamente na névoa. Spring Hill, como o
chamavam. Havia outro reduto, em algum lugar à esquerda, mas
ele não lembrava como aquele se chamava.
Estava frio, tão cedo, mas o suor escorria pelo lado de seu rosto
e ele o enxugou, a barba da manhã raspando sob a palma da mão.
Todos os oficiais haviam se barbeado antes do amanhecer,
vestindo seus melhores uniformes, como toureiros preparando-se
para a arena, mas os soldados comuns haviam se levantado de
seus cobertores e sacos de dormir parecendo espantalhos. Bem
acordados, no entanto. E prontos.
É o dia errado. Certamente é o dia errado...
Ele balançou a cabeça violentamente. Ele também era um
historiador – ou tinha sido. Ele, mais do que ninguém, deveria
1192

saber como a história realmente era imprecisa. Mas aqui estavam


eles, engolidos pela névoa rodopiante, enfrentando uma cidade
armada invisível ao amanhecer. No dia errado.
Ele respirou fundo, trêmulo.
Nós vamos perder esta.
Frank Randall disse isso.
Seu estômago se apertou, a fome esquecida.
Senhor, ajude-me a fazer o que Você quer que eu faça – mas em
nome de Cristo, Seu filho, deixe-me viver isso.
"Porque se Você não fizer isso, terá que responder para minha
esposa", ele murmurou, e tocou o punho de sua espada
emprestada.
O general Marion estava se abaixando da sela, falando francês
com dois dos oficiais de Saint-Domingue – turvo como estava,
ele estava perto o suficiente para ver o amarelo brilhante das
lapelas e cravos de oficial. Pica-pau de peito amarelo, ele
pensou.
Eles podiam também estar aliviando a tensão com piadas, pelo
tanto de sua fala quanto ele entendia. Teoricamente, Roger falava
francês, mas ele não falava esse tipo de francês, cheio de silvos e
paradas glóticas.
Ninguém estava tentando ficar quieto. Todos sabiam o que estava
para acontecer, incluindo a guarnição britânica. Os americanos e
seus aliados haviam desistido de sua posição diante da cidade e –
arrastando seus canhões pesados através dos pântanos, no escuro
– circundaram Savannah, o exército se reunindo novamente antes
dos dois pontos onde poderiam romper as defesas da cidade, ao
sul da estrada de Louisville.
Senhor, ajude-os. Ajude-me a ajudá-los. Por favor, nos guie.
E ele sabia que era uma oração em vão e ainda assim orou de todo
1193

o coração.
"Les abatis sont en feu!" Ele ouviu o grito acima do estrondo e
murmúrio e o tilintar do exército, e sentiu uma sacudida de
esperança como um golpe de relâmpago em seu coração.
Alguém conseguiu colocar fogo nos abatises! A notícia estava
disparando em torno dos pântanos e Marion levantou-se nos
estribos para espiar através da névoa.
Roger lambeu os lábios, sentindo o gosto de sal. Os britânicos
sabiam se defender contra um cerco; a cidade inteira era cercada
do lado da terra por trincheiras generosamente cravadas com
abatis, troncos afiados cravados na terra, as pontas para fora.
Ele podia sentir o cheiro da fumaça, diferente do cheiro dos
fornos ou da fumaça das chaminés da cidade – um tipo de fumaça
mais selvagem e áspera.
Mas então o vento mudou e a fumaça morreu. Houve gemidos e
maldições em várias línguas; evidentemente o fogo havia se
apagado, ou sido apagado pelos ingleses, talvez não conseguira
se segurar na umidade, quem saberia?
Mas os abatises permaneceram, e também o canhão, mirando do
solo entre os redutos. Ele olhou fascinado enquanto eles
desapareciam lentamente à vista. A névoa estava começando a se
dissipar e as ordens eram gritadas. O leve ruído de uma gaita de
foles flutuou no ar; havia Highlanders no reduto. Os focinhos
pretos dos canhões cutucavam a névoa cada vez mais fina, e agora
havia outro tipo de fumaça que ele sabia ser de partida lenta 539,
para iniciar o canhão.
Estava na hora, e seus batimentos cardíacos ecoaram em seus
ouvidos.

539
Pavio de fósforo lento, também chamado de cordão de fósforo, é o cordão de queima lenta usado para
acender mosquetes de fósforo, canhões, projéteis e petardos: eram usados acender cargas de pólvora
(também usados em perfuração de rochas e minas.)
1194

"Volte se quiser, reverendo." Era Marion, curvando-se do cavalo,


a respiração visível no ar frio. "Você não jurou nem foi pago para
estar aqui."
"Eu vou ficar." Ele não sabia dizer se havia dito isso ou apenas
pensado, mas Marion se endireitou e puxou a espada da bainha,
apoiando a lâmina em sua coxa. Ele tinha um tricorne azul na
cabeça, mas havia gotas de orvalho nas mechas de cabelo que
cobriam suas orelhas.
Roger pegou sua espada emprestada, embora sabe lá Deus o que
ele faria com ela. Deus saberia. Esse foi, de fato, um pensamento
reconfortante, e por um momento ele foi capaz de respirar fundo.
"Poderá salvar sua vida, talvez", disse o tenente Monserrat, ao
entregá-la ontem. "Mesmo que você não tenha a intenção de
lutar."
Eu não quero lutar. Por que estou aqui?
Porque eles estão aqui. Os homens ao seu redor, suando de frio,
cheirando a morte com o cheiro de pão recém assado.
Ouviu-se um rugido da primeira coluna que se espalhou pelo
campo e ele foi tomado pelo pânico.
Eu não sei o que fazer.
Morteiros próximos dispararam com um repentino bomb! e ele
descobriu que seus joelhos e suas mãos tremiam e ele precisava
urinar com urgência.
Você não sabia o que fazer quando o urso matou Amy Higgins,
uma voz que poderia ser sua disse dentro de sua cabeça. Mas você
fez algo de qualquer maneira.
As coisas teriam sido piores se eu não tivesse feito nada, disso eu
sei. Eu tenho que ir.
A primeira coluna de repente começou a correr, não em linhas
ordenadas, mas uma multidão, avançando em direção ao reduto e
1195

ao estalar do fogo de mosquete, gritando com os pulmões para


fora, alguns atirando, alguns apenas correndo e gritando, uma
faca em uma das mãos, arranhando seu caminho sobre os
abatises, e eles caíam quando as balas os atingiam; os mais
distantes derrubados como pinos de boliche por balas de canhão
quicando. Um sapo em pânico irrompeu repentinamente de um
pedaço de grama amarela perto do pé de Roger e caiu em uma
poça, onde desapareceu.
"Eu não gosto disso", disse Marion, em um breve momento entre
as explosões. Ele balançou sua cabeça. "Não, não gosto nada
mesmo." Ele ergueu sua espada. "Deus esteja com você,
reverendo."

-.-.-

NÃO FOI DEUS quem ele encontrou, mas a próxima melhor


coisa. A memória trouxe o major Gareth Barnard, um dos amigos
de seu pai, um ex-capelão militar. Barnard era um homem alto e
de rosto comprido que usava o cabelo grisalho repartido ao meio
de uma maneira que o fazia parecer um velho cão de caça, mas
ele tinha um senso de humor negro e tratava Roger, aos treze
anos, como um homem.
"Você já matou alguém?", Roger perguntou ao major quando eles
estavam sentados ao redor da mesa depois do jantar uma noite, os
velhos contando histórias sobre a Guerra.
"Sim", respondeu o major sem hesitar. "Eu não seria útil para
meus homens, morto."
"O que você fez por eles?", Roger perguntou, curioso. "Quero
dizer – o que um capelão faz em uma batalha?"
O major Barnard e o reverendo trocaram um breve olhar, mas o
1196

reverendo assentiu e Barnard se inclinou para frente, os braços


cruzados sobre a mesa à sua frente. Roger viu a tatuagem em seu
pulso, uma espécie de pássaro, asas abertas sobre um pergaminho
com algo escrito em latim.
"Eu fiquei com eles", disse o major baixinho, mas seus olhos
encontraram os de Roger, profundamente sérios. "Os tranquilizei.
Disse a eles que Deus estava com eles. Que eu estava com eles.
Que eles não estavam sozinhos."
"O capelão os ajuda quando puder", disse seu pai, baixinho, os
olhos fixos no oleado cinza gasto que cobria a mesa. "Segura suas
mãos e ora, quando não puder fazer mais nada."
Ele viu – realmente viu – a explosão de um canhão. Uma faísca
de flores vermelho brilhante do tamanho de sua cabeça que
piscou na névoa com um BOOM! de fogos de artifício e então
desapareceu. A névoa soprou para trás com a explosão e ele viu
tudo claramente por um segundo, não mais – o casco preto da
arma, a boca redonda escancarada e destruída, a fumaça mais
densa do que a névoa rolando sobre ela, a névoa caindo no chão
como água, o vapor subindo desde o metal quente para se juntar
à névoa turbulenta, os artilheiros enxameando sobre o canhão,
formigas azuis e marrons frenéticas engolidas no instante
seguinte em um turbilhão branco.
E então o mundo ao seu redor enlouqueceu. Os gritos dos oficiais
vieram com a explosão do canhão; ele só sabia disso porque
estava perto o suficiente de Marion para ver sua boca aberta. Mas
agora um rugido geral subiu dos homens atacando em sua coluna,
correndo como o inferno para a forma escura do reduto diante
dele.
A espada estava em sua mão e ele corria, gritando coisas sem
palavras.
Tochas brilhavam fracamente na névoa – soldados tentando
1197

escalar novamente os abatises, ele pensou vagamente.


Marion se foi. Ouviu-se um grito estridente de algum tipo que
podia ser do general, mas podia não ser.
O canhão – quantos? Ele não sabia dizer, mas mais do que dois;
os disparos continuaram a um ritmo tremendo, o estrondo
sacudindo seus ossos a cada meio minuto ou quase.
Ele se obrigou a parar, curvar-se, as mãos nos joelhos, ofegando.
Ele pensou ter ouvido tiros de mosquete, estalos abafados e
ritmados entre os disparos dos canhões. Os voleios disciplinados
do exército britânico.
"Carga!"
"Fogo!"
"Recuar!" Os gritos de um oficial ecoaram repentinamente no
batimento cardíaco do silêncio entre uma batida e a próxima.
Você não é um soldado. Se você for morto ... ninguém estará aqui
para ajudá-los.
Recue, idiota.
Ele estava na retaguarda das linhas, com Marion. Mas agora ele
estava cercado por homens, surgindo de uma vez, empurrando,
correndo em todas as direções. Ordens estavam sendo gritadas e
ele pensou que alguns dos homens lutavam para obedecer; ele
ouviu gritos aleatórios, viu um menino negro que não poderia ter
mais de 12 anos lutando severamente para carregar um mosquete
mais alto do que ele. Ele usava um uniforme azul escuro e um
lenço amarelo brilhante apareceu quando a névoa se dissipou por
um instante.
Roger tropeçou em alguém caído no chão e caiu de joelhos, a
água salobra escorrendo por suas calças. Ele pousou com as mãos
no homem caído, e o calor repentino em seus dedos frios foi um
choque que o trouxe de volta a si mesmo.
1198

O homem gemeu e Roger puxou as mãos, então se recuperou e


tateou em busca da mão do homem. Ele se foi, e sua própria mão
foi preenchida com um jorro de sangue quente que fedia como
um matadouro.
"Jesus", disse ele, e, enxugando a mão na calça, lutou com a outra
dentro da bolsa, ele tinha panos... puxou algo branco e tentou
amarrá-lo... procurou desesperadamente um pulso, mas o perdeu
também. Ele pegou um fragmento da manga e tateou para cima o
mais rápido que pôde, mas alcançou o braço ainda sólido um
momento depois que o homem morreu – ele podia sentir a
fraqueza repentina do corpo sob sua mão.
Ele ainda estava ajoelhado ali com o pano não usado na mão
quando alguém tropeçou nele e caiu de cabeça com um respingo
tremendo. Roger levantou-se e caminhou agachado até o homem
caído.
"Você está bem?", ele gritou, curvando-se para a frente. Algo
assobiou sobre sua cabeça e ele se jogou em cima do homem.
"Jesus Cristo!", o homem exclamou, socando Roger
violentamente. "Tire o diabo de cima de mim, seu desgraçado!"
Eles lutaram na lama e na água por um momento, cada um
tentando usar o outro como alavanca para se levantar, e o canhão
continuou disparando. Roger empurrou o homem para longe e
conseguiu rolar de joelhos na lama. Gritos de socorro vinham de
trás dele, e ele se virou naquela direção.
O nevoeiro estava quase acabando totalmente, expulso por
explosões, mas a fumaça da arma flutuava branca e baixa pelo
terreno irregular, mostrando-lhe breves flashes de cor e
movimento enquanto se despedaçava.
"Socorro, me ajude!"
Ele viu o homem então, apoiado nas mãos e nos joelhos,
1199

arrastando uma perna, e espirrou nas poças para alcançá-lo. Não


havia muito sangue, mas a perna estava claramente ferida; ele
colocou um ombro embaixo do braço do homem e o colocou de
pé, empurrou-o o mais rápido possível para longe do reduto, fora
do alcance...
O ar se estilhaçou novamente e a terra pareceu se inclinar sob ele;
ele estava deitado no chão com o homem que estava ajudando em
cima dele, a mandíbula do homem derrubada e sangue quente e
pedaços de dentes encharcando seu peito. Em pânico, ele lutou
para se livrar do corpo se contorcendo – Oh, Deus, oh, Deus, ele
ainda estava vivo – e então ele estava ajoelhado ao lado do
homem, escorregando na lama, pegando-se com uma mão no
peito onde ele podia sentir o coração batendo no mesmo ritmo do
sangue jorrando, Oh, Jesus, ajude-me!
Ele procurou as palavras, frenético. Tudo se foi. Todas as
palavras reconfortantes que ele reuniu, todas as suas ações...
"Você não está sozinho", ele ofegou, pressionando com força o
peito arfante, como se pudesse ancorar o homem na terra em que
estava se dissolvendo. "Estou aqui. Eu não vou deixar você. Vai
ficar tudo bem. Você vai ficar bem." Ele repetia isso, mantinha
as mãos pressionando com força e então, em meio à carnificina
que jorrava, sentiu a vida deixar o corpo.
Desaparecendo.
Ele sentou-se sobre os calcanhares, ofegante, congelado no lugar,
uma das mãos no corpo imóvel como se estivesse colado ali, e
depois ouviu a bateria.
Um leve latejar através dos sons rítmicos de tiros. Seus ossos
haviam absorvido isso sem que ele percebesse; ele podia sentir a
vazante quando a primeira fileira de mosquetes recuou e a onda
quando a segunda fileira alcançou a borda do reduto e disparou.
Algo na parte de trás de sua cabeça estava contando... um... dois...
1200

"Que diabos", disse ele com voz rouca, e se levantou, balançando


a cabeça. Havia três homens perto dele, dois ainda no chão, o
terceiro lutando para se levantar. Ele se levantou e cambaleou até
eles, deu ao homem vivo sua mão e puxou-o para cima, sem
palavras. Um dos outros estava obviamente morto, o outro quase
isso. Ele largou o homem que estava segurando e caiu de joelhos
ao lado do moribundo, segurando o rosto frio do homem entre as
mãos, os olhos escuros turvos de medo e sangue vazando.
"Estou aqui", disse ele, embora o canhão disparasse e suas
palavras não fizessem nenhum som.
A bateria. Ele os ouvia claramente agora, e uma espécie de grito,
um monte de homens gritando juntos. E então um estrondo,
esmagando, espirrando, e de repente havia cavalos por toda parte,
correndo... Correndo pelos malditos redutos cheios de armas.
Um estrondo de armas e a cavalaria se dividiu, metade dos
cavalos girando, para trás e para longe, o resto se espalhando,
dançando por entre os homens caídos, tentando não pisar nos
corpos, cabeças grandes sacudindo enquanto lutavam contra as
rédeas.
Ele não correu; ele não podia. Ele caminhou para frente,
lentamente, a espada balançando ao lado do corpo, parando onde
encontrava um homem caído. Alguns ele poderia ajudar, com
uma bebida ou usando a mão para pressionar uma ferida enquanto
um amigo amarrava um pano em volta dela. Uma palavra, uma
bênção onde ele pudesse. Alguns já haviam partido e ele colocava
a mão sobre eles em despedida e recomendava suas almas a Deus
com uma oração apressada.
Ele encontrou um menino ferido e o pegou, carregando-o de volta
através da fumaça e poças, para longe do canhão.
Outro rugido. A quarta coluna veio correndo pelo terreno
acidentado, para se lançar à luta no reduto. Ele viu um oficial com
1201

uma bandeira de algum tipo correr gritando e cair com um tiro na


cabeça. Um garotinho, um garotinho preto vestido de azul e
amarelo, agarrou a bandeira e os corpos o esconderam da vista.
"Jesus Cristo", disse Roger, porque não havia mais nada que ele
pudesse dizer. Ele podia sentir o coração do menino batendo sob
sua mão através do pano encharcado de seu casaco. E então
parou.
A carga da cavalaria foi totalmente interrompida. Cavalos eram
montados ou levados embora, alguns deles caídos, enormes e
mortos no terreno pantanoso, ou lutando para se levantar,
próximo ao pânico.
Um oficial em um uniforme espalhafatoso estava rastejando para
longe de um cavalo morto. Roger colocou o corpo do menino no
chão e correu pesadamente para o oficial. O sangue escorria pela
coxa e pelo rosto do homem, e Roger remexeu no bolso, mas não
havia nada lá. O homem se dobrou, as mãos pressionando sua
virilha e dizendo algo em um idioma que Roger não reconheceu.
"Está tudo bem", disse ao homem, segurando-o pelo braço. "Você
vai ficar bem. Eu não vou deixar você."
"Bóg i Marija pomóżcie mi540", ofegou o homem.
"Sim, certo. Deus esteja com você." Ele virou o homem de lado,
puxou a fralda da camisa e a arrancou, em seguida, enfiou-a nas
calças do homem, pressionando a umidade quente. Ele se apoiou
na ferida com as duas mãos e o homem gritou.
Então, havia vários cavaleiros lá, todos falando ao mesmo tempo
em vários idiomas, e eles empurraram Roger para fora do
caminho e pegaram o oficial ferido no colo, levando-o embora.
A maioria do tiroteio havia parado agora. O canhão estava
silencioso, mas seus ouvidos pareciam como se sinos de fogo

540
Deus e Maria me ajudem. Em polonês.
1202

estivessem tocando em sua cabeça; e doía.


Ele sentou-se lentamente na lama e percebeu que a chuva escorria
por seu rosto. Ele fechou os olhos. E depois de algum tempo,
percebeu que algumas palavras voltaram para ele.
"Das profundezas clamo a ti, Senhor. Ó, Senhor, ouve minha
voz."
O tremor não parou, mas algum tempo depois, ele se levantou e
cambaleou em direção aos pântanos distantes, para ajudar a
enterrar os mortos.
1203

93

RETRATO DE UM HOMEM MORTO

O AR AINDA CHEIRAVA A QUEIMADO, e o vento da noite


na costa havia acrescentado um leve fedor de morte ao cheiro
usual dos pântanos. Mas a batalha havia acabado, os americanos
derrotados. Lorde John apareceu à tarde, manchado de fumaça de
pólvora, mas alegre, para lhe garantir que tudo acabara e que tudo
estava bem.
Ela não achava que tivesse gritado com ele, mas tudo o que ela
disse fez o rosto dele ficar rígido sob a mancha de pó preto, e ele
apertou sua mão com força e disse: "Eu vou encontrá-lo." E saiu.
No dia seguinte, ela recebeu uma nota de lorde John dizendo
simplesmente: Eu caminhei por todo o campo, com meus
auxiliares. Não o encontramos, nem morto nem ferido. Cerca de
cem prisioneiros foram feitos, e ele não está entre eles. Hal
enviou um questionamento oficial ao general Lincoln.
"Não o encontramos, nem morto nem ferido". Ela sussurrava
baixinho, repetidamente, ao longo do dia, como um meio de
evitar sair para revirar ela mesma aquele campo maldito,
remexendo cada grão de areia e folha de grama. E à noite, lorde
John voltou, cansado e esgotado, mas com um rosto limpo e um
sorriso.
"Você disse que seu marido pretendia falar com um capitão
Marion, então fui para o acampamento americano com uma
bandeira de trégua, procurando por ele. Ele agora é um tenente-
coronel, ao que parece, mas ele falou com Roger – ele me disse
que Roger saiu do campo com ele, ileso, e foi ajudar no enterro
dos americanos caídos."
1204

"Oh Deus." Seus joelhos cederam e ela se sentou, seus


sentimentos um caos. Ele não está morto, ele não foi ferido. E a
sensação de alívio com isso foi enorme – mas instantaneamente
repleta de dúvidas, perguntas e um medo permanente. Se ele está
vivo, por que não está aqui?
"Onde?", ela conseguiu perguntar, depois de um momento.
"Onde ... eles os enterraram?" "Eu não sei", disse Lord John, sua
testa franzida um pouco. "Vou descobrir, se você quiser. Mas eu
acho que os enterros certamente já devem ter sido concluídos –
houve uma carnificina considerável no campo, mas o tenente-
coronel Maitland acha que não houve mais de duzentos mortos.
Ele estava comandando o reduto", ele acrescentou, vendo seu
olhar vazio. Ele pigarreou.
"Eu acho que talvez", disse ele timidamente, "ele pudesse ter ido
com os cirurgiões do exército, para ajudar com os feridos?"
"Oh." Ela conseguiu respirar e encher completamente seus
pulmões; pela primeira vez nos últimos três dias. "Sim. Isso...
parece muito razoável." Mas por que diabos ele não me mandou
um bilhete?
Ela reuniu forças suficientes para se levantar e agradecer a lorde
John por toda a sua ajuda. Ele pegou a mão dela, puxou-a e
abraçou-a, os braços envolvendo-a com o primeiro calor que ela
se lembrava de sentir desde que Roger partira.
"Vai ficar tudo bem, minha querida", ele disse suavemente, deu
um tapinha nela e deu um passo para trás. "Tenho certeza de que
vai ficar tudo bem."
-.-.-

BRIANNA VACILAVA ENTRE ter certeza e também não ter


certeza de nada – mas o equilíbrio das evidências parecia indicar
1205

que Roger provavelmente estava (A) vivo e (B) razoavelmente


intacto, e essa semi-convicção era pelo menos o suficiente para
deixá-la voltar ao trabalho, buscando afogar suas dúvidas em
terebintina.
Ela não conseguia decidir se pintar Angelina Brumby era mais
como tentar pegar uma borboleta sem rede ou ficar esperando a
noite toda perto de um poço, esperando que alguma fera selvagem
apareça por alguns segundos, durante os quais você pode – se
tiver sorte – tirar sua foto.
"E o que eu não daria pela minha Nikon541 agora..." ela murmurou
baixinho. Hoje foi o primeiro dia de cabelo. Angelina havia
passado quase duas horas sob as mãos do cabeleireiro mais
popular de Savannah, emergindo finalmente sob uma nuvem de
cachos e caracóis meticulosamente elaborados, empoados
esplendidamente e decorados por uma dúzia ou mais de
brilhantes esfaqueados aleatoriamente. Toda a construção era tão
vasta que dava a impressão de que Angelina estava carregando
sua própria tempestade pessoal, completa com relâmpagos.
A ideia fez Brianna sorrir, e Angelina, que parecia bastante
apreensiva, se animou em resposta.
"Você gosta disso?", ela perguntou esperançosa, cutucando
cuidadosamente sua cabeça.
"Sim", disse Bree. "Aqui, deixe-me ajudá-la..." Angelina, incapaz
– ou sem vontade – de dobrar sua cabeça adornada o suficiente
para olhar para baixo, estava prestes a colidir com a pequena
plataforma em que estava a poltrona preparada para acomodá-la.
Uma vez acomodada, Angelina tornou-se a mesma de sempre,
tagarela e distraída – e sempre em movimento, com as mãos
acenando, virando a cabeça, olhos arregalados, perguntas e
especulações constantes. Mas se ela era difícil de capturar na tela,
541
Marca famosa de máquinas fotográficas.
1206

ela também era encantadora de assistir, e Bree estava


constantemente dividida entre a exasperação e o fascínio,
tentando pegar algo da alegre borboleta sem ter que enfiar um
alfinete de chapéu em seu tórax para fazê-la ficar quieta por cinco
minutos.
Ela havia passado quase duas semanas lidando com Angelina,
entretanto, e agora colocava um vaso de flores de cera na mesa,
com instruções firmes de que Angelina deveria fixar os olhos nele
e contar as pétalas. Ela então virava uma ampulheta de dois
minutos e pedia à sua modelo que não falasse ou se mexesse até
que a areia acabasse.
Esse procedimento – repetido em intervalos – permitia que ela
circulasse Angelina, o bloco de desenho na mão, fazendo esboços
toscos da cabeça e do pescoço, com rápidas notas visuais de um
anelzinho de cabelo descendo pela curva do pescoço, uma onda
profunda sobre uma das orelhas rosa-concha de Angelina... o sol
da manhã entrando pela janela, brilhando docemente através da
orelha. Ela queria tentar pegar aquele rosa...
Havia tempo, talvez, para trabalhar nos braços e nas mãos... Ela
tinha o que precisava dos cabelos por enquanto, e Angelina estava
usando um robe de seda cinza suave que deixava seus braços nus
até o cotovelo.
"Ooh! Você está me pintando agora?" Angelina se endireitou,
franzindo o nariz com o cheiro de terebintina fresca.
"Eu estarei, em breve", Bree garantiu a ela, colocando a paleta e
os pincéis. "Se você quiser relaxar por alguns minutos, porém,
este seria um bom momento."
Angelina desceu para o chão, uma das mãos segurando seu cabelo
balançante e a outra abanando para se equilibrar, e desapareceu
sem insistir. Brianna podia ouvi-la saindo para o sol na parte de
trás da casa, chamando Jem e Mandy, que estavam jogando bola
1207

no quintal com o garotinho Henderson da porta ao lado.


Bree respirou fundo, saboreando a solidão momentânea. Havia
um claro toque de outono no ar, embora o sol estivesse forte
através da janela, e uma única abelha atrasada zumbiu
lentamente, circulando as flores de cera decepcionantes e saindo
novamente.
Logo seria inverno nas montanhas. Ela sentiu uma pontada de
saudade das rochas altas e do cheiro limpo de abeto balsâmico,
neve e lama, o cheiro quente próximo de animais abrigados.
Muito mais por seus pais, pelo sentido de sua família em relação
a ela. Movida por um impulso, ela virou a página de seu caderno
de desenho e tentou captar um vislumbre do rosto de seu pai –
apenas uma ou duas linhas de perfil, o nariz longo reto e a testa
forte. E a pequena linha curva que sugeria seu sorriso, escondida
no canto da boca.
Isso era o suficiente por agora. Com a sensação reconfortante da
presença dele perto dela, ela abriu a caixa onde guardava os
pequenos tubos de folha de chumbo que havia feito, as pontas
dobradas para fechá-los e os pequenos potes de pigmento moído
à mão, e compôs sua paleta simples. Branco-chumbo, um toque
de negro-de-fumo e um pouco do vermelho profundo da raiz de
garança. Um momento de hesitação e ela acrescentou uma linha
fina de chumbo-estanho amarelo e uma mancha do azul intenso
de smalt542, a coisa mais próxima que ela poderia obter – até
agora, ela pensou com determinação – da cor cobalto.
Com a cor das sombras em sua mente, ela foi até a pequena
coleção de telas encostadas na parede e, descobrindo o retrato
inacabado de Jane, colocou-o sobre a mesa, onde pegaria a luz da
manhã.

542
Uma tinta de azul profundo e pigmento cerâmico produzidos pela pulverização de um vidro feito de
sílica, potássio e óxido de cobalto.
1208

"Esse é o problema", ela murmurou. "Talvez..." A luz. Ela tinha


feito isso com uma fonte de luz imaginária, caindo da direita, de
modo a realçar a delicada linha da mandíbula. Mas o que ela não
tinha pensado em imaginar era que tipo de luz era. As sombras
lançadas pela luz da manhã às vezes tinham um leve tom de
verde, enquanto as do meio-dia eram escuras, um leve
escurecimento dos tons naturais da pele e as sombras da noite
eram azuis e cinza e às vezes um lilás profundo. Mas que hora do
dia convinha à misteriosa Jane?
Ela franziu a testa para o retrato, tentando sentir a garota, saber
algo sobre ela através das palavras de Fanny, de suas emoções.
Ela era uma prostituta. Fanny disse que seu desenho original fora
feito por um dos... clientes... do bordel. Certamente, então, tinha
sido feito à noite? Luz do fogo, então... ou luz de velas?
Suas ruminações foram interrompidas pelo som da risada e
passos de Angelina no corredor. A voz de um homem, divertida
– o sr. Brumby. E o que ele está pensando agora? Ele está
satisfeito com a batalha ou desanimado?
"O sr. Salomon está no meu escritório, Henrike", dizia ele por
cima do ombro ao entrar. "Leve algo para ele comer, está bem?
Ah, sra. MacKenzie. Muito bom dia para você, senhora. " Alfred
Brumby parou na porta, sorrindo para ela. Angelina se agarrou a
seu braço, sorrindo para ele e derramando pó branco na manga de
seu casaco verde-garrafa, mas ele não pareceu notar. "E como
está o trabalho, posso perguntar?"
Ele foi cortês o suficiente para soar como se realmente estivesse
pedindo permissão para inquirir, em vez de exigir um relatório de
progresso.
"Muito bem, senhor", disse Bree, e deu um passo para trás,
gesticulando, para que pudesse entrar e ver os esboços que ela
havia feito até agora, dispostos em leques sobre a mesa: a cabeça
1209

e pescoço de Angelina completo, em vários ângulos, visão de


perto da linha do cabelo, lateral e frontal, pequenos detalhes
variados de cachos, ondas e brilhantes.
"Lindo, lindo", ele exclamou. Ele se curvou sobre eles, tirando
um pequeno óculos de aumento do bolso e usando-o para
examinar os desenhos. "Ela capturou você exatamente, minha
querida – algo que eu não deveria ter pensado possível sem o uso
de algemas em suas pernas, eu confesso."
"Senhor Brumby!", Angelina deu um tapa nele, mas riu, corando
como uma rosa de junho.
Senhor, essa cor! Mas não havia chance de durar o suficiente para
estudar – ela só tinha que fixa-la em sua mente e tentar mais tarde.
Ela lançou um olhar ansioso para o tentador toque de garança em
sua nova paleta.
O sr. Brumby tinha a devida consideração pelo seu próprio
tempo, entretanto. Portanto, pelo dela também, e depois de mais
alguns comentários lisonjeiros, ele beijou a mão da esposa e saiu
para encontrar o sr. Salomon, deixando Angelina ainda com um
tom encantador de rosa.
"Sente-se", disse Bree, oferecendo rapidamente a mão. "Vamos
ver o quanto podemos fazer antes de nosso lanche das onze
horas."
A admiração pelas tintas a óleo verdadeiras – talvez auxiliada
pelos vapores de terebintina e óleo de linhaça – pareceu acalmar
Angelina, e enquanto ela ficou sentada com uma rigidez
incomum, o que realmente não importava no momento, o estúdio
foi temporariamente preenchido por uma atmosfera pacífica
silenciosa feito de pequenos ruídos: crianças do lado de fora,
cachorros arranhando e fungando, batidas de panela abafadas e
conversas da cozinha, um baque de pés e murmúrio de vozes
enquanto as criadas limpavam as lareiras, esvaziavam os penicos
1210

e arejavam os lençóis, o tilintar e clop-clop das carroças que


passavam na rua.
Um único estrondo distante veio com a brisa da janela e ela
enrijeceu por um momento, mas como nada mais aconteceu, ela
relaxou de volta ao trabalho, embora agora com a ideia de Roger
pairando sobre seu ombro esquerdo, observando-a pintar. Ela
imaginou por um momento o braço dele em volta de sua cintura
e os cabelos de sua nuca se arrepiaram, em antecipação ao hálito
quente.
O relógio da lareira na sala de estar no final do corredor bateu
onze em um carrilhão imperioso, e Bree sentiu seu estômago
roncar de ansiedade. O café da manhã fora às seis, e ela gostaria
de uma fatia de bolo e uma xícara de chá.
"Vo..e st.. trab...ando m mais al..uma oisa?", a sra. Brumby disse,
movendo os lábios o mínimo possível, apenas por precaução.
"Não, você pode falar", Brianna assegurou, suprimindo um
sorriso. "Não mova as mãos, entretanto."
"Ah, claro!" A mão que havia subido inconscientemente para
mexer em seus cachos densamente esculpidos caiu como uma
pedra em seu colo, mas então ela deu uma risadinha. "Posso
deixar Henrike me alimentar com meu lanche das onze? Eu a
ouço chegando."
Henrike pesava quase noventa quilos e podia ser ouvida
chegando por um tempo considerável antes de ela aparecer, os
saltos de madeira de seus sapatos batendo nas tábuas nuas do piso
do salão com passos medidos como o baque de um bombo.
"Tenho que pintar aquele tapete você pediu", disse Bree, sem
perceber que tinha falado em voz alta até Angelina rir.
"Oh, faça isso", disse ela. "Eu queria dizer a você, o sr. Brumby
diz que prefere o desenho com os abacaxis, e você poderia tê-lo
1211

pronto na quarta-feira da semana? Ele quer fazer um grande jantar


para o general Prévost e seus oficiais. Em agradecimento, você
sabe, por sua corajosa defesa da cidade." Ela hesitou, sua pequena
língua rosa se lançando para tocar seus lábios. "Você acha... hã...
eu não desejo ser – isto é..."
Brianna fez uma pincelada longa e lenta, um toque de rosa-pálido
mesclado com creme refletindo o brilho da luz na forma
arredondada do antebraço delicado de Angelina.
"Está tudo bem", disse ela, mal prestando atenção. "Não mova os
dedos."
"Não, não!", Angelina disse, contraindo os dedos com culpa, em
seguida, tentando lembrar-se de como eles estavam.
"Tudo bem, não se mova!"
Angelina congelou, e Bree conseguiu fazer uma sugestão cinza
de sombra entre os dedos enquanto Henrike entrava. Para sua
surpresa, porém, não houve nenhum som de bandeja de café
chacoalhando, nem qualquer indício do bolo que ela sentiu o
cheiro assando esta manhã enquanto se vestia.
"O que é, Henrike?" Angelina ainda estava sentada rigidamente
ereta e, embora tivesse recebido permissão para falar, ela
manteve os olhos focados no vaso de flores. "Onde está o nosso
lanche da manhã?”
"Da ist ein Mann", informou Henrike à patroa, claramente
baixando a voz como se quisesse evitar ser ouvida.
"Alguém na porta, você quer dizer?", Angelina arriscou um olhar
curioso para a porta do estúdio antes de colocar os olhos de volta
no seu foco. "Que tipo de homem?"
Henrike franziu os lábios e acenou com a cabeça para Brianna.
"Ein Soldat. Er will sie sehen."
"Um soldado?" Angelina abandonou sua pose e olhou para
1212

Brianna com espanto. "E ele quer ver a sra. Mackenzie? Tem
certeza disso, Henrike? Você não acha que ele pode querer o sr.
Brumby? "
Henrike gostava de sua jovem senhora e absteve-se de revirar os
olhos, em vez disso apenas acenou com a cabeça novamente para
Bree.
"Ela", disse ela. "Ele diz, a senh-ora pin-tora." Ela cruzou as
mãos sob o avental e esperou com paciência por mais instruções.
"Oh." Angelina estava claramente confusa – e com a mesma
clareza havia perdido todo o sentido de sua pose.
"Devo ir falar com ele?", Bree disse preocupada. Ela passou o
pincel de pelo de esquilo na terebintina e o enrolou em um pedaço
de pano úmido.
"Oh, não... traga-o aqui, sim, Henrike?" Angelina claramente
queria saber do que se tratava essa visita. E, Bree pensou com um
sorriso interno, vendo Angelina cutucar o cabelo apressadamente,
ser vista na posição emocionante de ter seu retrato pintado.
O soldado em questão provou ser um homem muito jovem – com
o uniforme do exército continental. Angelina engasgou ao vê-lo
e largou a luva que segurava na mão esquerda.
"Quem é você, senhor?", ela exigiu, sentando-se o mais ereto que
pôde. "E como é que você está aqui, posso perguntar?"
"Vim sob bandeira de trégua, para trazer uma mensagem. Tenente
Hanson, seu criado, senhora", o jovem respondeu, curvando-se.
"E o seu, senhora", voltando-se para Brianna. Ele retirou um
bilhete lacrado do peito do casaco e fez uma reverência para ela.
"Se eu puder tomar a liberdade de perguntar – você é a sra. Roger
MacKenzie?"
Ela se sentiu como se tivesse caído abruptamente em um abismo
glacial, com um frio congelante e cega pelo gelo. Memórias
1213

confusas de telegramas amarelos vistos em filmes de guerra, a


memória de armas de cerco, e onde está Roger?
"Eu... sou", ela resmungou. Angelina e Henrike olharam para ela,
compreenderam a situação imediatamente e Angelina correu para
apoiá-la.
"O que aconteceu?", Angelina exigiu ferozmente, abraçando
Bree pela cintura e olhando para o soldado. "Conte-nos
imediatamente!"
As mãos de Henrike apertaram os ombros de Bree, e ela pôde
ouvir o sussurro de uma oração alemã atrás dela. "Mein Gott,
erlöse uns vom Bösen...543"
"Hã..." O jovem – ele não poderia ter mais de dezesseis anos,
Bree pensou vagamente - parecia pasmo. "Eu... hã..."
Bree controlou os músculos da garganta e engoliu em seco.
"Ele foi morto em batalha?", ela perguntou, com a calma que ela
conseguiu reunir. Oh, Deus, eu não posso dizer às crianças, eu
não posso fazer isso... Oh, Deus...
"Bem, sim, senhora", disse o soldado, piscando. "Mas como você
sabia?"
O bilhete ainda estava em sua mão, meio estendido. Ela se
libertou das mulheres e arrancou-o dele, lutando freneticamente
para quebrar o selo.
Por um momento, as palavras, escritas com uma caligrafia
desconhecida, dançaram diante de seus olhos, e seu olhar desceu
para a assinatura. Um médico, meu Deus ... E então seus olhos se
ergueram para a saudação.
Amiga MacKenzie
"O quê?", disse ela, olhando para o jovem soldado. "Quem diabos

543
Meu Deus, livrai-nos do mal. Em alemão.
1214

escreveu isso?"
"Ora, dr. Wallace, senhora", disse ele, chocado com a linguagem
dela. Então, percebendo: "Oh. Ele é um quacre, senhora."
Ela não estava prestando atenção, porém, tendo retornado ao
texto da carta.
Teu marido pede que mande a ti os melhores votos e que te diga
que ele estará contigo em Savannah em três dias, se Deus quiser.
Ela fechou os olhos e respirou tão fundo que a deixou tonta. Ele
teria escrito para dizer isso de sua própria mão, mas sofreu um
pequeno deslocamento do polegar que o impede de escrever
confortavelmente.
Ele partiu para uma missão breve, mas urgente, para o tenente-
coronel Marion. Nesse ínterim, ele pergunta se você viria ao
acampamento americano em Savannah (o soldado que traz isso
sob uma bandeira de trégua irá acompanhá-la), a fim de realizar
um serviço artístico de generosidade e compaixão.
Um dos mais estimados comandantes da cavalaria americana foi
morto na batalha, e o general Lincoln deseja ter alguma
lembrança concreta do general Pulaski544. O amigo Roger
ofereceu consolo aos amigos do general e, ao ouvir a lamentação
do general Lincoln por não haver um memorial duradouro,
sugeriu que, como você estava por perto, você poderia estar
disposta a vir e fazer um desenho do cavalheiro, antes de seu
enterro.
Nesse ponto, o espanto começou a superar o choque e ela
começou a respirar mais devagar. Ela ainda estava tonta e seu
coração batia forte – ela colocou a mão espalmada no peito por
reflexo – mas as palavras na página se firmaram.

544
Kazimierz Michał Władysław Wiktor Pułaski de Ślepowron, conhecido como Casimir Pulaski (1745
- 1779) foi um nobre polonês, soldado e comandante militar que lutou na guerra revolucionária norte-
americana. Junto com o nobre húngaro Michael Kovats de Fabriczy, são considerados os "pais da
Cavalaria Norte-americana ".
1215

Pulaski. O nome era vagamente familiar para ela; ela deve ter
ouvido isso na escola. Um dos voluntários europeus que veio para
se juntar à causa americana. Havia algo em Nova York com o
nome dele, não era? E agora – agora, hoje, não duzentos anos no
passado – ele havia morrido.
Ela percebeu Angelina, Henrike e o jovem soldado, todos
olhando para ela com vários graus de preocupação e ansiedade.
"Está tudo bem", ela disse. Sua voz tremia, ela limpou a garganta
e balançou a cabeça para dissipar a tontura. "Está tudo bem",
disse ela novamente, com mais firmeza. "Meu marido está bem."
"Oh..." O rosto de Angelina relaxou e ela apertou as mãos. “Oh,
eu estou tão feliz, sra. Mackenzie!"
Pelas costas de Angelina, Henrike fez o sinal da cruz
solenemente, o medo desaparecendo de seus olhos. O soldado
tossiu.
"Sim, senhora", disse ele se desculpando. "Eu deveria ter dito,
direto. Só que nunca pensei..."
"Está tudo bem", disse Bree. Suas mãos estavam úmidas e ela
pegou um pano relativamente limpo para secá-las, depois dobrou
o bilhete com cuidado e o enfiou no bolso. O coração dela estava
lento e seu cérebro estava começando a funcionar novamente.
"Sra. Brumby ... Angelina ... eu preciso ir com este cavalheiro.
Apenas por algumas horas", ela acrescentou rapidamente, vendo
a ansiedade florescer novamente nos grandes olhos castanhos de
Angelina. "É um pedido do meu marido; algo urgente que tenho
que fazer por ele. Mas voltarei o mais rápido que puder. Você
acha que talvez... as crianças? " Ela olhou para Henrike se
desculpando, mas a governanta assentiu vigorosamente.
"Ja, eu vou cuidar delas. Eu... " O barulho da aldrava de latão a
interrompeu, e ela se virou bruscamente. "Ach! Mein Gott!" Ela
1216

se moveu com determinação, murmurando algo baixinho que


Brianna não conseguiu interpretar, mas presumiu ser do tipo "Se
não é uma maldita coisa, é outra..."
"Vou pedir à cozinheira para embalar um pouco de comida para
você. E a senhora MacKenzie precisa de um cavalo?" Angelina
se voltou bruscamente para o jovem soldado, que corou.
"Trouxe uma boa mula de montaria para ela, senhora", disse ele.
"É... não é uma grande distância do... do acampamento."
"O acampamento?", Angelina disse inexpressivamente,
interrompida em seus preparativos mentais. "Para o…
acampamento americano? Tem certeza que não quer dizer atrás
das linhas do cerco? "
Bem, isso pode ficar complicado...
"É uma questão de amizade, Angelina", disse Bree com firmeza.
"Meu marido é ministro; ele conhece muitas pessoas em ambos
os lados desta guerra, e é um amigo dele, um cirurgião chamado
dr. Wallace, que me pediu para vir."
"Dr. Wallace... oh! Você não quer dizer o dr. Wallace, que operou
o governador?" Angelina estava com os olhos arregalados a essa
altura, alarmada, mas animada com a sensação de emergência.
"Eu... possivelmente", disse Brianna, surpresa. "Eu não o conheci
ainda. Tenho certeza que..."
"Desejo falar com a sra. MacKenzie", uma voz masculina
profunda dizia de algum lugar no corredor. "Meu amigo deseja
contratá-la para um retrato. Lorde John Grey recomendou que a
chamássemos – um conhecido em comum. Por favor, informe a
ela que eu trouxe uma carta de apresentação, e..."
"Mein Gott", Brianna disse baixinho. John Grey? O que na
Terra..."
O cavalheiro – sua voz era inglesa, educada – estava encontrando
1217

resistência de Henrike. Brianna já estava pegando lápis, palitos


de carvão, embalando uma caixa de coisas que ela poderia
precisar para fazer a imagem de um homem morto. Não havia
tempo...
"Angelina", ela disse, por cima do ombro. "Você poderia dizer a
este homem que fui chamada para uma missão urgente? Ele pode
voltar amanhã – ou... ou talvez no dia seguinte", ela acrescentou
em dúvida. Não há como dizer quanto tempo pode demorar.
"Claro!" Angelina se dirigiu propositalmente para o corredor e
Brianna fechou os olhos e tentou pensar. As crianças, primeiro.
Pelo menos ela poderia dizer a eles que papai viria vê-las em
breve. Então... o que vestir para uma missão deste tipo? Teria que
ser seu vestido de pintura rústico, para montar uma mula e
quaisquer que fossem as condições em um acampamento de
cerco... Eles teriam trincheiras?, ela imaginou.
As vozes no corredor aumentaram e havia mais delas. Angelina
e Henrike estavam discutindo com o que parecia ser dois homens
agora, os quais pareciam decididos a ver a sra. MacKenzie, a
qualquer custo.
Não havia tempo para isso. Impaciente, ela saiu para o corredor,
com a intenção de mandar os visitantes embora. O sol da manhã
inundou a porta da frente aberta, destacando o que parecia ser
uma multidão de sombras, corpos negros, cabeças sem rosto,
membros delineados por uma luz brilhante enquanto se moviam.
Foi uma daquelas visões repentinas e lindas que acontecem sem
aviso, e ela parou por um único segundo para fixar isso em sua
mente. Então uma das figuras mais altas se moveu, virando-se, e
ela viu no contorno o mesmo nariz longo e reto, a mesma
sobrancelha alta que seus dedos haviam desenhado tão
recentemente.
"Espere!", ela disse. Ela não tinha memória de caminhar pelo
1218

corredor, mas de repente estava cara a cara com ele e não havia
mais sombra obscura, mas o sol da manhã iluminando um par
assustadoramente familiar de olhos azuis e oblíquos fixos nos
dela.
"Maldito inferno", disse ele, completamente assustado. "É você!"

-.-.-

"SEU IRMÃO?" ANGELINA estava muito animada. "E você


não sabia que ele estava aqui, nem ele? Que incrível!"
"Sim", disse Bree. "Sim ... incrível." Atordoada, ela estendeu a
mão tateante em direção a ele. William piscou uma vez, agarrou
a mão e se curvou sobre ela, beijando-a levemente. A sensação
de sua respiração em sua mão gelada de terebintina levantou os
pelos de seu antebraço e ela apertou os dedos nos dele. Ele se
endireitou, mas não se afastou; seus dedos se viraram e cobriram
os dela.
"Eu não queria incomodá-la", disse ele, e ela podia ver – e sentir
– seus olhos procurando seu rosto, do jeito que ela estava
procurando o dele.
"Oh, de jeito nenhum", ela disse, querendo dizer exatamente o
oposto. Ele percebeu, sorriu um pouco e largou a mão dela. "Eu...
você disse que lorde John o enviou?"
"Sim, ele o fez, o velho imbecil conivente. Hã... imploro por sua
desculpa, senhora." Ele tirou o olhar dela por um momento,
voltando-se para o outro cavalheiro. Este era um jovem alto,
muito largo, de sangue misto, com um notável capacete de cachos
curtos cortados rente de um marrom avermelhado suave.
"Permita-me apresentar meu amigo, sr. John Cinnamon", disse
William. Angelina e Henrike fizeram uma reverência
1219

imediatamente com um floreio de saias. O sr. Cinnamon parecia


bastante horrorizado, mas depois de um rápido olhar para
William, ele se curvou profundamente e murmurou: "Seu servo
mais obediente... senhora. E... hã... senhora."
"Hã... senhora? Sra. Mackenzie?" O tenente Hanson, bastante
eclipsado por William e o sr. Cinnamon, que eram cada um deles
uns bons trinta centímetros mais alto do que ele, lutou virilmente
para recuperar a atenção de Brianna. "Precisamos ir, senhora, ou
não chegaremos a tempo para que você... hã... faça a encomenda."
Ele pigarreou.
"E quem é você, posso perguntar?", William estava carrancudo
para o uniforme azul e amarelo do tenente. "O que diabos você
está fazendo aqui?"
Bree pigarreou alto.
"O tenente Hanson veio me buscar para uma missão urgente",
disse ela. "Eu... ele está certo. Precisamos ir embora, assim que
eu tiver arrumado minhas coisas e trocado de roupa. Falar com as
crianças. Você vai... vir comigo, de volta ao meu estúdio?
Podemos conversar enquanto eu organizo as coisas."

POR CONSENSO IMPLÍCITO, William veio sozinho, deixando


seu amigo e o tenente Hanson à mercê de Angelina e Henrike,
que já estava tagarelando sobre bolos, café e talvez fatias de
presunto frio...
O estômago de Brianna borbulhava ao pensar em sanduíches de
presunto, mas ela o suprimiu por enquanto e se virou para
William. Meu irmão.
"Eu queria dizer a você", ela disse de uma vez, fechando a porta
e ficando de costas encostada nela. "Quando nos conhecemos.
1220

Você se lembra? No cais em Wilmington. Roger – meu marido –


estava comigo, e Jem e Mandy. Isso foi – eu queria que você os
conhecesse, os visse, mesmo que você não soubesse que
éramos... seus."
Ele desviou o olhar e colocou a mão na mesa, tocando a madeira
apenas com a ponta dos dedos. Ela sentia a porta sólida contra
suas omoplatas e entendeu a necessidade de apoio físico.
"Meus?", ele disse suavemente, olhando para a pilha de papéis e
pincéis sobre a mesa.
"Eu provavelmente deveria dizer algo educado sobre apenas se
você nos quiser", disse ela. "Mas é..."
"Um pouco tarde para isso", ele terminou, e olhou para ela, seus
olhos cautelosos, mas diretos. "Para mentir sobre a verdade,
quero dizer." A boca dele se curvou um pouco para o lado, mas
ela não tinha certeza se era um sorriso. "Particularmente quando
é tão simples quanto o nariz em seu rosto. E no meu."
Ela tocou o próprio nariz por reflexo e riu, um pouco nervosa. O
nariz dele era o dela, e os olhos também. Ele era bronzeado,
porém, com cabelo castanho escuro preso em uma rabo e, embora
seu rosto fosse muito parecido com o dela – o de seu pai, sua boca
viera de outro lugar.
"Bem. Eu peço desculpas, no entanto. Por não ter contado a
você."
Ele olhou para ela, sem expressão, pelo espaço de quatro
batimentos cardíacos; ela sentiu cada pequeno baque
distintamente.
"Eu aceito suas desculpas", ele disse secamente. "Embora, com
toda a honestidade, esteja feliz que você não tenha me contado."
Ele fez uma pausa, então, aparentemente pensando que isso
poderia soar indelicado, acrescentou: "Eu não saberia como
1221

reagir a tal revelação. Naquele momento."


"E você sabe agora?"
"Não, eu não sei", disse ele com franqueza. "Mas, como meu tio
apontou recentemente, pelo menos eu não estourei meus miolos.
Quando eu tinha dezessete anos, talvez tivesse."
Um rubor quente subiu em suas bochechas. Ele não estava
brincando.
"Que lisonjeiro", disse ela, e para evitar olhar para ele, ela se
virou e retomou os arranjos de sua caixa de desenho. Ela o ouviu
bufar um pouco, baixinho, e então seus passos, logo atrás dela.
"Eu peço desculpas", ele disse calmamente. "Eu não quis dizer
isso com qualquer referência depreciativa a – a você ou sua
família..."
"Sua família, você quer dizer", disse ela, sem se virar. O lápis de
prata545? Não, carvão e grafite; a ponta de prata era delicada
demais para isso.
Ele pigarreou. "Eu quis dizer isso apenas em relação à minha
própria situação", disse ele formalmente. "Que não tem nada a
ver com..."
Ele parou abruptamente. Ela se virou para olhá-lo e o encontrou
olhando para o retrato de Jane, encostado na parede, como se
tivesse literalmente visto um fantasma. Ele estava pálido sob o
bronzeado e suas mãos estavam meio cerradas.
"Onde você conseguiu isso?", ele disse. Sua voz estava rouca e
ele pigarreou violentamente. "Aquela pintura. Aquela... garota."
"Eu estou pintando", ela disse simplesmente. "Para Fanny."

545
Antes da popularização do grafite como meio para desenhar (e escrever) artistas usavam lápis feitos
de tiras finas de metal amarrados juntos, para desenhar traços delicados: prata, ouro, cobre, estanho ou
chumbo eram usados e chamados lápis de prata. O lápis de prata mais comum era uma mistura de estanho
e chumbo.
1222

Ele fechou os olhos por um instante, depois os abriu, ainda fixos


na pintura. Ele se virou, no entanto, e ela viu o movimento de seu
pomo de adão quando ele engoliu em seco.
"Fanny", disse ele. "Frances. Você a conhece, então. Onde ela
está? Como ela está?"
"Ela está bem", disse Bree com firmeza e, cruzando os poucos
metros de chão entre eles, colocou a mão em seu braço. "Ela está
com meus pais, na Carolina do Norte."
"Você a viu?"
"Sim, claro – embora, na verdade, eu não a tenha visto desde o
início de setembro. Paramos um pouco em Charleston – Charles
Town", ela corrigiu, "para visitar meu... bem, suponho que ele
seja meu irmão adotivo e Marsali, bem, ela é meio que minha
irmã adotiva, mas eles não são exatamente..."
A cautela voltou aos olhos de William. Ele não se afastou dela,
no entanto, e ela sentiu o calor de seu braço através do tecido de
seu casaco.
"Essas pessoas também são meus parentes?", perguntou ele,
como se temesse que a resposta fosse sim.
"Eu acho. Pa adotou Fergus – ele é francês, mas... bem, isso não
importa. Ele era um órfão, em Paris. Então, mais tarde, Pa se
casou... bem, isso também não importa, mas Marsali – ela é a
esposa de Fergus – e sua irmã, Joan, são enteadas de Pa, então...
hum. E os filhos de Fergus e Marsali – eles têm cinco agora, então
eles seriam..."
William deu um passo para trás, afastando-se e ergueu a mão.
"Chega", disse ele com firmeza. Ele apontou um longo dedo
indicador para ela. " Com você eu posso lidar. Nada mais. Hoje
não."
Ela riu e pegou o xale surrado que mantinha no estúdio para
1223

trabalhar durante as horas frias da manhã.


"Hoje não", ela concordou. "Eu tenho que ir, William.
Devemos..."
"Sua missão", disse ele, e balançou a cabeça como se quisesse se
acalmar. "O que você deve fazer?"
"Bem, se você quer saber, estou indo para o acampamento do
cerco americano para fazer desenhos de um comandante de
Cavalaria morto."
Ele piscou – e então ela viu seus olhos se erguerem, seu olhar
indo para o retrato de Jane. O sol havia se movido e a imagem
estava na sombra. Ela parou, o xale a meio caminho de seus
ombros, assustada com a expressão no rosto dele. Mas não durou
mais do que um momento, e então ele se virou e pegou a caixa de
desenho dela, colocando-a debaixo do braço.
"Retratos de mortos são uma especialidade sua?", ele perguntou,
com um leve nervosismo.
"Ainda não", respondeu ela, com uma igual sensação. "Dê-me
minha caixa de desenho."
"Eu vou carregá-la", ele disse, e estendeu a mão para abrir a porta
para ela. "Vou com você."
1224

94

BATEDORES

A NÉVOA DO RIO FINALMENTE se dissipou e o sol estava


quente.
Para seu alívio, a mula que o tenente Hanson trouxera para ela
era alta e esguia; de ossatura forte e orelhas de coelho, mas de
temperamento amigável. Ela teve visões de si mesma montando
um burro enrugado, seus pés se arrastando na poeira, cercada por
grandes homens em grandes cavalos, elevando-se acima dela.
Mas afinal, William e John Cinnamon possuíam castrados
sólidos, mas nada notáveis, e o próprio tenente cavalgava outra
mula menor. O tenente não estava feliz.
"Não vou permitir que minha irmã vá desacompanhada a um
acampamento do exército", disse William com firmeza,
desamarrando seu próprio cavalo do lado de fora da casa dos
Brumbys.
"Mais oui ", disse o sr. Cinnamon, e se curvou para apoiar o pé
de Brianna e colocá-la na sela.
"Mas... eu irei acompanhá-la! O general Lincoln está esperando
que eu leve para ele a sra. MacKenzie!"
"E ele vai ter a sra. MacKenzie", ela assegurou ao tenente,
ajeitando as saias e pegando as rédeas. "Embora aparentemente
com uma escolta de batedores."
O tenente Hanson dirigiu a William um olhar de profunda
suspeita, e não é de admirar, ela pensou. William sentava-se ereto
na sela e usava um casaco surrado e manchado pela viagem que
não estava na moda para começar, mas alguém com muito menos
1225

experiência do que o tenente Hanson o teria reconhecido à


primeira vista como um soldado – e não apenas um soldado. Um
oficial acostumado a comandar. O fato de que o sotaque e o porte
de William estavam em desacordo com seu vestuário comum era
provavelmente ainda mais perturbador.
Os pensamentos do tenente estavam claros para ela – e, ela
pensou, provavelmente para William também, embora seu rosto
estivesse educadamente impassível. Ele era um soldado britânico
em roupas civis? Um espião? Ele era um soldado britânico
procurando virar a casaca e assumir uma patente com os
Continentais? Ela viu o olhar do sr. Hanson disparar para a massa
de John Cinnamon, e para longe. E quanto a ele?
Mas não havia escolha. O tenente Hanson fora enviado para
buscar uma artista e não poderia voltar sem ela. Com os ombros
encolhidos, ele virou a cabeça de sua mula em direção a White
Bluff Road.
"Fale-me sobre o general Pulaski", sugeriu Brianna,
aproximando-se dele. "Foi apenas esta manhã que ele foi morto?"
"Oh. Hã... não, senhora. Quer dizer", Hanson disse, obviamente
se esforçando para ser exato, "ele morreu esta manhã, no navio.
Mas ele..."
"Que navio?", ela perguntou, assustada.
"O Wasp546, eu acho que se chama." Hanson lançou um rápido
olhar por cima do ombro e baixou a voz. "O general foi baleado
dois dias atrás, liderando sua Cavalaria entre duas baterias,
mas..."
"Ele liderou uma carga de Cavalaria... contra canhões?"
Evidentemente, o tenente Hanson não havia baixado a voz o
suficiente, pois a pergunta veio de William, cavalgando logo

546
Vespa, em inglês
1226

atrás. Ele parecia incrédulo e ligeiramente divertido, e Bree se


virou e olhou para ele.
Ele ignorou o brilho, mas incitou seu cavalo na direção da mula
de Hanson. O tenente carregava sua bandeira de trégua e, com
isso, moveu-a instintivamente, apontando-a para William como
se fosse uma lança de luta.
"Não quis insultar o general", disse William suavemente,
levantando uma das mãos em uma defesa negligente. "Parece
uma manobra arrojada e corajosa."
"Foi", Hanson respondeu brevemente. Ele ergueu um pouco a
bandeira e deu as costas para William, deixando irmão e irmã
cavalgando lado a lado, John Cinnamon na retaguarda. Bree
lançou a William um olhar apertado que sugeria fortemente que
ele deveria manter a boca fechada. Ele a olhou por um momento,
então desviou o olhar com um semblante patentemente brando.
Ela queria rir quase tanto quanto queria cutucá-lo com algo
afiado, mas sem sua própria bandeira de trégua, ela se contentou
com um bufo audível.
"À vos souhaits", disse o sr. Cinnamon educadamente atrás dela.
"Merci", ela disse, com igual educação. William bufou.
"À tes amours", disse o sr. Cinnamon, parecendo divertido. Nada
mais foi dito até que eles chegaram, alguns minutos depois, aos
limites da cidade. Um destacamento de escoceses das Terras
Altas estava guardando o final da rua, embora a própria rua fosse
guardada por dois grandes redutos cavados pelos britânicos,
visíveis na lateral em direção ao rio. A visão dos soldados com
kilt e o som de suas vozes falando gaélico umas com as outras
deu a ela uma sensação peculiar de torção por dentro. Uma
chaleira de acampamento estava fervendo em um pequeno fogo,
e o cheiro de café e pão torrado a deixou com água na boca. Já
fazia muito tempo desde o café da manhã e, na pressa de partir,
1227

eles deixaram para trás o pacote de comida de Henrike.


Ela deve ter olhado avidamente para alguns homens que comiam
perto do fogo, pois William cutucou seu cavalo mais perto e
murmurou: "Vou conseguir comida pra você assim que
chegarmos ao acampamento."
Ela olhou para ele e acenou com a cabeça em agradecimento. Não
havia nada divertido ou improvisado em suas maneiras agora. Ele
sentou-se relaxado na sela, as rédeas soltas na mão enquanto o
tenente Hanson falava com o oficial escocês no comando, mas
seus olhos nunca deixaram os soldados.
Eles passaram pelo posto de controle em silêncio. Ela podia sentir
os olhos dos soldados em sua pele, e seus cabelos se arrepiaram
em seu couro cabeludo. O inimigo…
As linhas de cerco americanas ficavam a não mais de
quatrocentos metros de distância, o acampamento talvez a 400
metros adiante, mas o tenente Hanson os conduziu imediatamente
para o interior, a fim de circundar os redutos americanos e a
artilharia francesa, arrastada para a terra, vinda dos navios. As
armas estavam silenciosas – graças a Deus – mas ela podia vê-las
claramente, formas escuras começando a emergir da névoa da
manhã, ainda espessa aqui perto do rio.
"Você estava me contando sobre o general Pulaski", disse ela,
colocando-se ao lado do tenente. Ela não queria olhar para o
canhão e pensar em Jem e Mandy na cidade – ou nos buracos e
telhados queimados que ela tinha visto nas casas de Savannah
mais próximas do rio. "Ele estava em um navio, você disse?"
O tenente havia relaxado um pouco, uma vez fora de Savannah,
e ficou feliz em lhe contar sobre a morte terrível, mas galante, de
Casimir Pulaski.
"Sim, senhora. Foi no Wasp, como eu disse. Quando o general
caiu, seus homens o pegaram de volta diretamente, é claro, mas
1228

era óbvio que ele estava gravemente ferido.


O dr. Lynah – ele é o cirurgião do campo, senhora – tirou a
metralha547 dele, mas então o general Pulaski disse que queria
embarcar. Eu não sei porque..."
"Porque os franceses não vão demorar muito", William
interrompeu. "É temporada de furacões; D’Estaing ficará
nervoso. Imagino que Pulaski também sabia disso e não queria
correr o risco de ser deixado para trás, ferido, se – quando, quero
dizer – os americanos abandonarem o cerco."
Hanson se virou na sela, pálido de raiva.
"E o que você saberia sobre esses assuntos, seu... seu dândi
idiota?"
William olhou para ele como se ele fosse um mosquito zumbindo,
mas respondeu com educação suficiente.
"Eu tenho olhos, senhor", disse ele. "E se eu entendi bem, o
general Pulaski é – era – o comandante da Cavalaria de todo o
exército americano. Isso está certo?"
"Está", Hanson respondeu, entre dentes cerrados. "E daí?"
Até Bree percebeu que isso era puramente retórico, e William
apenas deu de ombros.
"Eu quero ouvir sobre a carga de cavalaria do general", disse John
Cinnamon, interessado. "Tenho certeza de que ele deve ter tido
um bom motivo", acrescentou com tato, "mas por que ele fez
isso?"
"Sim, também gostaria de ouvir isso", Bree acrescentou
apressadamente.
O tenente Hanson olhou ferozmente para William e John

547
Tipo de munição usado em canhões para combates a curta distância. Consiste num invólucro de metal
fino contendo um grande número de balas ou outros pequenos projéteis, tais como esferas, pedras ou
pedaços de aço. Estes rompem o invólucro imediatamente após o disparo e seguem trajetórias individuais.
1229

Cinnamon, mas depois de um comentário murmurado no qual ela


entendeu apenas as palavras "... bom par de jogadores de
gamão..." Ele enrijeceu os ombros e ficou um pouco para trás,
para que Brianna pudesse cavalgar ao lado dele na estrada
estreita. O campo aqui era plano e aberto, mas a terra era arenosa
e densamente cultivada com uma espécie de grama áspera que
ficava presa nos pés dos cavalos.
Ela podia ver que a estrada, entretanto, tinha sido muito usada
recentemente. Pegadas de cascos, pegadas humanas, excrementos
de cavalos, rodas de carroças... a estrada estava agitada e
lamacenta, as margens pisadas por tropas em marcha, movendo-
se rapidamente. Um arrepio repentino percorreu suas costas
quando o vento mudou e ela sentiu o cheiro do exército. Um
cheiro selvagem de suor e carne, metal e gordura, tingido com o
fedor de sabão de soda cáustica, esterco, comida meio queimada
e pólvora.
O tenente Hanson relaxou um pouco, vendo que tinha toda a
atenção do público, e estava explicando que os americanos e seus
aliados franceses planejaram e executaram um ataque às forças
britânicas no reduto de Spring Hill. "Você pode ver isso daqui,
senhora", apontando para o mar. Como parte desse ataque, a
Cavalaria do General Pulaski deveria seguir o ataque inicial da
Infantaria, "de modo a causar confusão, você vê, entre o inimigo."
A carga de Cavalaria evidentemente alcançou aquele objetivo
modesto, mas o ataque geral falhou, e o próprio Pulaski foi
abatido quando foi pego no fogo cruzado entre duas baterias
britânicas.
"Uma grande pena", disse William, sem nenhum senso de
sarcasmo. O tenente Hanson olhou para ele, mas aceitou a
observação com um breve aceno de cabeça.
"Foi. Ouvi dizer que o capitão do Wasp pretendia enterrar o
1230

general no mar – mas um de seus amigos que tinha ido a bordo


com ele disse que não, eles não deveriam, e veio à terra com seu
corpo logo após o amanhecer desta manhã, em um escaler."
"Por que o amigo dele não queria que ele fosse enterrado no
mar?", ela perguntou, cuidando para não implicar qualquer crítica
com a pergunta.
"Seus homens", disse William, antes que o tenente Hanson
pudesse responder. Ele falou com uma certeza sóbria. "Ele é o
comandante. Eles precisarão se despedir dele. Devidamente."
O tenente havia se levantado ligeiramente nos estribos, pronto
para ficar indignado com a interrupção, mas ao ouvir isso,
acalmou-se e fez uma breve reverência a Brianna.
"Exatamente, senhora", disse ele.

-.-.-

PASSANDO A ARTILHARIA, eles abriram caminho através de


quatro mil metros quadrados de tendas e soldados salpicados de
lama, o ar ao redor deles uma estranha combinação de cheiro do
mar, o fantasma acre da pólvora e um sopro de podridão outonal
dos campos colhidos além. Brianna respirou fundo, curiosa, e
soltou o fôlego apressadamente. Trincheiras de latrinas.
Eles estavam indo em direção a um aglomerado de grandes tendas
– este deve ser o quartel-general de campo do general Lincoln –
que ondulava e se movia suavemente no ar da manhã, como um
grupo de amigos com as cabeças juntas, conversando. Essa ilusão
agradável foi destruída no instante seguinte, quando uma bateria
de canhões disparou atrás deles.
Brianna se assustou e puxou as rédeas. Sua mula, evidentemente
acostumada a esse tipo de coisa, recuou impacientemente com
1231

um movimento da cabeça. A mula do tenente Hanson e os cavalos


estavam menos fleumáticos com o barulho e recuaram
violentamente, com as narinas dilatadas.
"Começou bem tarde esta manhã, não é?", William disse a
Hanson, levando seu cavalo em um círculo para acalmá-lo. E
quem o ensinou a cavalgar, irmão?, ela pensou, observando-o.
Lorde John era um bom cavaleiro, mas Jamie Fraser tinha sido
cavalariço na propriedade onde William crescera.
"O nevoeiro", Hanson respondeu brevemente. "O fogo do canhão
o dispersa." Ele virou a cabeça de sua mula em direção a uma das
grandes tendas. "Venha. Você deve ver o capitão Pinckney.548"
Ela se viu ao lado de William, enquanto eles retomavam seu
avanço lento, e se inclinou para falar com ele em voz baixa.
"Você disse que eles haviam começado tarde – o fogo de
artilharia, é o que você quis dizer?"
"Sim." Ele olhou para ela, uma sobrancelha escura levantada.
"Você não precisa se preocupar; é apenas um gesto."
"Eu não estava..." ela começou, mas parou. Ela estava
preocupada, preocupada que talvez seu pai tivesse se enganado,
que o cerco continuasse... "Bem, tudo bem, eu estava", ela
concedeu. "O que você quer dizer com um gesto?"
"Eles perderam", disse William, com um rápido olhar para o
tenente Hanson. "Mas eles não levantaram o cerco oficialmente.
Provavelmente o general Lincoln está discutindo com D'Estaing
sobre isso."
Ela o encarou.
"Você parece saber muito sobre isso, para um cara que acabou de
entrar na cidade."
548
Thomas Pinckney (1750 - 1828) foi um dos primeiros estadistas, diplomatas e soldados norte-
americanos na Guerra Revolucionária Norte-americana. Mais tarde, também lutou na Guerra de 1812 e
foi governador da Carolina do Sul e ministro dos Estados Unidos na Grã-Bretanha.
1232

"Um cara?" A sobrancelha ergueu-se mais, mas relaxou quando


ele descartou isso. "Eu era um soldado, você sabe. E eu sei como
é um acampamento militar, como deve ser. Este está..." Ele
ergueu a mão em direção às fileiras irregulares de tendas. "Eles
não estão admitindo – daí o bombardeio – mas... Aperte as rédeas;
está vindo de novo."
E veio, outra saraivada de artilharia desafiadora, mas as mulas e
cavalos apenas dançaram e bufaram desta vez, não pegos de
surpresa.
"Mas?", disse ela, voltando ordenadamente ao seu lugar ao lado
dele. Ele deu a ela um sorriso de lado.
"Mas eles sabem que o fim está chegando", finalizou. "Mas
quanto ao meu conhecimento da situação, admito que é mais do
que observação. Meu pai", uma breve e feroz careta cruzou seu
rosto e desapareceu. "Lorde John me contou sobre a batalha. Ele
não tinha dúvidas quanto ao resultado, nem eu."
"Então, o cerco está prestes a acabar?", ela persistiu, querendo
certeza.
"Sim."
"Oh, bom", disse ela, e deixou seus ombros caírem de alívio. Ele
deu a ela um olhar estranho e interessado, mas não disse mais
nada e apressou seu cavalo a andar mais rápido.

-.-.-

O CAPITÃO PINCKNEY tinha talvez trinta anos e era


provavelmente bonito, embora a insônia e a derrota o tivessem
deixado abatido. Ele piscou quando Bree desceu de sua mula sem
ajuda e se virou para cumprimentá-la; ela o ultrapassava por dez
ou doze centímetros. Ele fechou os olhos por um instante, abriu-
1233

os novamente e fez uma reverência para ela com uma cortesia


impecável.
"Seu muito obediente, sra. MacKenzie, e eu devo dar-lhe os
maiores cumprimentos em nome do general Lincoln e suas
tropas. Também devo transmitir seu profundo senso de obrigação
e gratidão por sua gentil ajuda."
Ele falava como um inglês, embora ela achasse que havia uma
suavidade sulista em suas vogais. Ela não tentou fazer uma
reverência, mas curvou-se em troca.
"Estou muito feliz em ajudar", disse ela. "Eu entendo que pode
haver alguma urgência na... hã... situação. Talvez você possa me
mostrar onde general Pulaski está no momento?"
O capitão Pinckney olhou para William e John Cinnamon, que
haviam desmontado e entregado as rédeas ao ordenança que
acompanhava o capitão. "William Ransom, senhor, seu servo."
William curvou-se e, endireitando-se, acenou com a cabeça para
Cinnamon. "Meu amigo e eu viemos para acompanhar minha
irmã. Nós permaneceremos e a levaremos de volta quando sua
missão terminar."
"Sua irmã? Oh, bom." O capitão Pinckney parecia
substancialmente mais feliz com a revelação de que ele não seria
o único responsável por ela. "Seu servo, senhor. Sigam-me."
As armas dispararam novamente, uma rajada irregular. Desta vez,
ela não saltou.

-.-.-

O GERAL MORTO estava deitado em uma pequena tenda verde


gasta na margem do rio, longe do acampamento. Esse
posicionamento pode ter sido um sinal de respeito, mas também
1234

havia um aspecto prático, como Brianna descobriu quando o


capitão Pinckney tirou um lenço amassado, mas limpo, de sua
manga e o entregou a ela antes de levantar cortesmente a aba da
tenda para ela.
"Obrigada... Oh, meu Deus." Algumas moscas tardias ergueram-
se vagarosamente do cadáver, soprando em um fedor crescente
que o envolvia mais completamente do que o lençol limpo sobre
seu rosto e parte superior do corpo.
"Gangrena", disse William atrás dela, baixinho. "Jesus." John
Cinnamon tossiu fortemente uma vez e ficou em silêncio.
"Eu peço desculpas, sra. MacKenzie", Pinckney estava dizendo.
Ele segurou seu cotovelo, como se temesse que ela pudesse fugir
ou desmaiar.
"Eu... está tudo bem", ela conseguiu dizer, através das dobras do
lenço. Não estava, mas ela enrijeceu a coluna, tensionou os
músculos do estômago e se aproximou do esquife improvisado
em que colocaram Casimir Pulaski. William se aproximou dela
imediatamente. Ele não disse nada ou a tocou, mas ela estava feliz
com sua presença.
Com um olhar de soslaio para se certificar de que ela não ia
desmaiar, o capitão Pinckney puxou o lençol.
O general estava pálido, de olhos fechados, sua pele levemente
manchada com tons arroxeados e uma tonalidade esverdeada ao
redor do queixo. Ela teria que ajustar isso; eles podem querer um
retrato da morte, mas ela tinha certeza de que não queriam que
ele parecesse realmente morto – apenas... romanticamente morto.
Ela engoliu em seco e sentiu o gosto do ar denso e doce, mesmo
através do pano. Ela tossiu, respirou fundo pelo nariz e se
aproximou.
"Romântico" é a palavra, ela pensou. Ele tinha uma sobrancelha
alta (e uma linha ligeiramente recuada...), um pequeno bigode
1235

escuro, cuidadosamente raspado para fazer as pontas aparecerem,


e suas feições eram uma interessante mistura de força e
delicadeza. Ele não tinha expressão; ele deve ter ficado
inconsciente antes de morrer (e uma coisa boa se morreu assim,
pobre homem...).
"Ele... ele tem uma esposa?", ela perguntou, lembrando-se de
seus próprios sentimentos quando ela pensou por um instante que
Roger...
"Não", disse Pinckney. Seus olhos estavam fixos no rosto de
Pulaski. "Ele nunca se casou. Sem dinheiro, claro. E nenhum
interesse, realmente, em mulheres."
"A família dele na Polônia?", Brianna se aventurou. "Talvez eu
deva fazer um retrato para eles também?"
O capitão Pinckney ergueu o olhar então, mas apenas para trocar
um breve olhar com o tenente Hanson.
"Ele não falava sobre eles, senhora", disse o tenente, e mordeu o
lábio, olhando para o homem morto. "Ele..." Hanson engoliu,
audivelmente. "Ele era gentil o suficiente em dizer que nós... nós
éramos sua família."
"Entendo", ela disse baixinho. "Para todos vocês, então."
Ela olhou para o corpo, distraidamente observando os detalhes do
uniforme de gala limpo com o qual o vestiram e se perguntando
morbidamente exatamente onde e como ele foi ferido. Ela
poderia perguntar?
Havia um corte profundo na cabeça de Pulaski, começando logo
acima de uma têmpora, a ferida era de um preto avermelhado,
com pequenas migalhas de pele enegrecida ao longo das bordas.
Olhando mais de perto, onde o corte desaparecia sob os cabelos
do general, ela pensou ter percebido... sem pensar, ela estendeu
um dedo e sentiu o crânio frio ceder sob seu toque, por mais leve
1236

que fosse. Ela ouviu o capitão Pinckney respirar fundo e


rapidamente removeu o dedo.
"Munição de metralha?", William perguntou, parecendo
levemente interessado.
"Sim, senhor", respondeu o capitão Pinckney, com um ar de
repreensão sombria que ela sentiu ser dirigida a ela. "Ele foi
atingido em vários lugares – no corpo e na cabeça."
"Pobre homem", Brianna disse suavemente. Ela sentiu uma forte
necessidade de tocá-lo novamente – colocar a mão suavemente
em seu peito, coberto pelo revestimento vermelho com faixas
prateadas de seu uniforme – o uniforme tinha um colarinho alto,
feito de algum tipo de pele branca ... não, era lã de cordeiro,
forrada com veludo rosa imundo – mas sentiu que não podia, sob
o olhar de censura do capitão.
"O médico – nosso médico – achou que ele poderia ser salvo."
Pinckney havia baixado a voz discretamente, falando diretamente
com William. "Ele estava consciente, falando... mas insistiu em
ser levado a bordo do Wasp e do médico da marinha..." Ele
limpou a garganta de forma explosiva e respirou fundo. "Foi o
ferimento na virilha que piorou, ou pelo menos foi o que me
disseram."
"Uma grande pena, senhor", disse William, e claramente foi
sincero. "Um cavalheiro muito galante."
"Sim, senhor", disse o capitão, e ela poderia dizer que ele tinha
sido afetuoso com William.
"Eu entendo que minha irmã deve fazer um retrato do general",
disse William, e ela ergueu os olhos. Ele acenou com a cabeça
para ela, então inclinou a cabeça em direção ao capitão. "Você
poderia dizer ao capitão Pinckney quais coisas você precisa para
a tarefa, irmã?"
1237

Ouvir a palavra irmã em sua voz novamente deu a ela uma


pequena flor de calor no meio de seu peito.
"E enquanto as coisas estão sendo preparadas", acrescentou ele,
antes que ela pudesse falar, "talvez ela possa comer algo – viemos
imediatamente em resposta ao pedido do General Lincoln."
"Oh. Claro. Certamente." O capitão olhou por cima do ombro.
"Tenente Hanson – você cuidará de encontrar algo para a senhora
e seus acompanhantes?"
"Para ser comido em outro lugar", disse William com firmeza.

-.-.-

LUZ. ESSA ERA a principal coisa. E um lugar para sentar. Um


lugar para colocar seus implementos. Um copo d'água.
"Isso é realmente tudo que eu preciso", disse ela, com um olhar
para trás em direção à barraca silenciosa. Ela hesitou por um
momento. "Eu não sei se você estava pensando que gostaria – no
fim, quero dizer – de uma pintura do general, ou... ou você estava
pensando apenas em um desenho, ou desenhos? A mensagem
dizia de uma representação, quero dizer, e posso fazer o que
quiser, embora tudo o que possa fazer hoje seja fazer esboços e
notas para um... retrato mais formal."
"Oh." O capitão Pinckney respirou fundo, franzindo a testa, e ela
viu seus olhos deslizarem para o lado por um instante, então de
volta para ela. Ele endireitou os ombros. "Não acredito que isso
tenha sido decidido ainda, sra. MacKenzie. Mas eu lhe asseguro
que... que você será compensada adequadamente por qualquer...
forma que a representação possa assumir. Vou garantir isso
pessoalmente."
"Oh. Eu não estava preocupada com isso." Ela corou ligeiramente
1238

de vergonha. "Eu não esperava ser paga... hã... quero dizer... eu


pretendia desde o início fazer isso apenas como um gesto de...
boa vontade. Em apoio ao... ao exército, quero dizer."
Todos os quatro homens olharam para ela, com vários graus de
espanto. Seu rubor ficou mais quente.
Não havia ocorrido a ela que lorde John não havia dito a William
que ela era uma rebelde. O dr. Wallace sem dúvida conhecia sua
lealdade política, mas talvez tivesse achado mais discreto não
mencioná-la. E ela estava hospedada em uma família legalista em
uma cidade sob ocupação britânica, empregada por um legalista
muito proeminente.
Bem, o gato saiu do saco agora. Ela deu a William um olhar
neutro e levantou uma sobrancelha. Ele ergueu uma de volta para
ela e desviou o olhar.
Era o meio da tarde; a luz já estava indo; ficaria escuro em
algumas horas. Haveria velas, o capitão Pinckney assegurou-lhe,
tantas quantas ela quisesse. Ou uma lanterna, talvez?
"Talvez", ela disse. "Vou fazer o máximo de esboços que puder.
Hã... quanto tempo...?" Dado o fedor do homem morto, ela
imaginou que eles queriam colocá-lo sob o solo o mais rápido
possível.
"Vamos enterrá-lo com as devidas honras amanhã de manhã",
disse o capitão Pinckney, interpretando corretamente sua
pergunta. "Os homens virão esta noite, depois do jantar, para
apresentar seus respeitos. Hum... isso vai ficar bem, para você?"
Ela ficou surpresa, mas apenas por um momento, imaginando
esse processo de visitação.
"Sim, perfeitamente bem", disse ela com firmeza. "Vou desenhá-
los também."
1239
1240

95

POZEGNANIE549

ELA ESTAVA SENTADA, NAS SOMBRAS, mas com a visão


desobstruída. A cabeça inclinada, o suave barulho do sibilo de
seu carvão perdido no pigarro das gargantas, no farfalhar de suas
roupas. Mas ela os assistia, em um, dois e três, como eles se
abaixavam sob a aba da tenda aberta e iam para o lado do general.
Lá, cada homem parava para olhar em seu rosto, calmo à luz das
velas, e ela captava o que podia das correntes flutuantes que
cruzavam seus próprios rostos: sombras de tristeza e dor, olhos
às vezes sombrios de medo ou vazios de choque e cansaço.
Frequentemente, eles choravam.
William e John Cinnamon estavam ao lado dela, ficando um
pouco atrás de cada lado, silenciosos e respeitosos. O ordenança
do general Lincoln lhes ofereceu banquinhos, mas eles recusaram
cortesmente, e ela achou suas presenças de apoio estranhamente
reconfortantes.
Os soldados vinham em companhias, mudando os uniformes (em
alguns casos, apenas emblemas da milícia). John Cinnamon
mudava de posição de vez em quando e, ocasionalmente,
respirava fundo ou limpava a garganta. William não.
O que ele estava fazendo? ela imaginou. Contando os soldados?
Avaliando a condição das tropas americanas? Eles estavam
maltrapilhos; sujos e desleixados e, apesar de seu comportamento
respeitoso, poucas companhias pareciam ter qualquer noção de
ordem.

549
Até a próxima ou adeus. Em polonês.
1241

Pela primeira vez, ocorreu a ela se perguntar qual tinha sido o


motivo de William ter vindo. Ela ficou tão feliz em encontrá-lo
que aceitou sua declaração de que ele não deixaria sua irmã ir
desacompanhada a um acampamento militar pelo valor nominal.
Mas era verdade? Pelo pouco que lorde John havia dito, ela sabia
que William havia renunciado à sua patente no exército, mas isso
não significava que ele havia mudado de lado. Ou que ele não
tinha interesse no estado do cerco americano, ou que não tinha a
intenção de passar nenhuma informação que obtivesse durante
esta visita. "Eu era um soldado", ele disse. Obviamente, ele ainda
conhecia pessoas do Exército Britânico.
A pele de seus ombros se arrepiou com o pensamento, e ela queria
se virar e olhar para ele. Um momento de hesitação e ela fez
exatamente isso. Seu rosto estava sério, mas ele estava olhando
para ela.
"Tudo bem?", ele perguntou em um sussurro.
"Sim", ela disse, confortada por sua voz. "Eu só queria saber se
você adormeceu em pé."
"Ainda não."
Ela sorriu e abriu a boca para dizer algo, desculpar-se por manter
ele e seu amigo fora a noite toda. Ele a parou com uma pequena
contração de dedos.
"Está tudo bem", disse ele suavemente. "Faça o que veio fazer.
Vamos ficar com você e levá-la para casa pela manhã. Eu falei a
sério; eu não vou deixar você sozinha."
Ela engoliu em seco.
"Eu sei que você foi sincero", ela disse, tão suavemente quanto
ele. "Obrigada."
Houve uma agitação audível do lado de fora. A procissão de
soldados embaralhados havia parado. Ela se endireitou e sentiu
1242

os dois homens atrás dela se mexerem. Ela captou um murmúrio


baixo de William.
"Este deve ser o general Lincoln, eu imagino."
John Cinnamon soltou um bufo inquisitivo, mas não disse nada,
e um instante depois a aba da tenda foi puxada para trás e um
homem muito gordo e atarracado em uniforme continental
completo, com chapéu armado, entrou mancando, seguido por
um grupo bem apinhado de oficiais em uma variedade de
uniformes. Tinha começado a chover e uma lufada de ar fresco e
úmido entrou com eles.
Ela deslizou seus esboços na escrivaninha e tirou algumas folhas
novas, mas não voltou ao trabalho imediatamente; ela não queria
chamar atenção para si mesma. Isso... isso era história, bem na
frente dela.
Seu coração tinha ficado quieto durante a noite, mas agora
acelerou e começou a bater forte, de uma forma desagradável que
a fez se preocupar que estivesse prestes a ficar descontrolado. Ela
pressionou a mão com força contra a abertura de seu espartilho e
mentalmente proferiu um forte Parado!, como se seu coração
fosse um cachorro grande e indisciplinado.
O general parou ao lado do corpo, tossiu – todo mundo tossiu, o
cheiro estava piorando, apesar da noite fria – e lentamente tirou
o chapéu. Ele se virou para murmurar algo para o homem ao seu
lado – um francês? Ela pensou que Lincoln estava falando
francês, embora de forma muito estranha – e ela sentiu outro
cheiro de chuva e noite, e viu as gotas que ele sacudiu de seu
chapéu fazendo manchas na poeira sombreada.
Lincoln acenou para que três dos homens avançassem.
Franceses, disse o observador objetivo no fundo de sua mente, e
seu lápis fez traços rápidos, indicações grosseiras de bordados,
dragonas, casacos azuis compridos, coletes e calças vermelhos...
1243

Os três homens – oficiais da Marinha? – deram um passo à frente,


um na frente, o chapéu ricamente rendado a ouro preso
solenemente ao peito. Ela ouviu William fazer um zumbido baixo
com a garganta; era o próprio almirante d’Estaing?
Ela se inclinou um pouco para a frente, sem esboçar agora, mas
memorizando, armazenando o jogo da luz do fogo através da
parede da tenda no rosto do oficial, o barulho da chuva na lona
acima. O almirante – se é que era mesmo – era esguio, mas de
rosto redondo, queixo pequeno, com olhos arregalados
estranhamente infantis e uma boquinha rechonchuda... Ele
murmurou algumas palavras em francês formal, inclinou-se para
a frente e colocou a mão sobre o peito do general Pulaski.
O general peidou.
Foi um longo e alto peido estrondoso, e a noite se encheu de um
fedor tão terrível que Brianna bufou todo o ar de seus pulmões
em um esforço vão por escapar.
Alguém riu de puro choque. Foi uma risadinha estridente e, por
um momento, ela pensou que tinha feito isso sozinha e levou a
mão à boca. A tenda se dissolveu em uma risada envergonhada e
meio abafada pontuada por suspiros e asfixia enquanto toda a
essência podre das entranhas do General Pulaski enchia a
atmosfera. O almirante d'Estaing virou-se rapidamente para o
lado e vomitou no canto.
Ela precisava respirar... Ela grunhiu, como se o cheiro a tivesse
esmurrado, e seu estômago se contraiu. Era como respirar banha
rançosa, uma sujeira gordurosa que deslizava pelo interior do
nariz e da garganta.
"Vamos." William a agarrou por um braço, John Cinnamon pelo
outro, e eles a tiraram da tenda em um instante de forma rude,
empurrando o general Lincoln para fora de seu caminho.
Estava chovendo forte lá fora agora e ela engoliu ar e água,
1244

respirando o mais fundo que podia.


"Oh, Deus, oh, Deus, oh, Deus..."
"Isso foi pior, você acha, do que o urso morto na floresta acima
de Gareon?", John Cinnamon perguntou a William, com uma voz
meditativa.
"Muito", William assegurou-lhe. "Oh, Jesus, vou ficar enjoado.
Não, espere..." Ele se curvou, os braços cruzados sobre o
estômago, engoliu em seco por um momento e se endireitou.
"Não, está tudo bem. Você está enjoada?", ele perguntou a
Brianna. Ela negou, balançando a cabeça. Água fria escorria por
seu rosto e suas mangas estavam coladas em seus braços, mas ela
não se importou. Ela teria pulado por um buraco no gelo ártico
para se limpar disso. Um limo de cebolas podres parecia grudar
em seu palato. Ela pigarreou com força e cuspiu no chão.
"Minha caixa de desenho", disse ela, limpando a boca e olhando
para a tenda. Houve um êxodo geral apressado, e os homens
estavam se espalhando em todas as direções. O almirante
d'Estaing e seus oficiais estavam seguindo por uma trilha em
direção a uma grande tenda verde iluminada que brilhava como
uma esmeralda bruta à distância. O general Lincoln, com o
chapéu cheio de chuva, olhava em volta, impotente, enquanto
seus ajudantes e auxiliares tentavam em vão manter uma tocha
acesa. O local de descanso do general Pulaski, em contraste,
estava deserto e escuro como breu.
"Ele apagou as velas", disse William, e deu um risinho breve.
"Que bom que a barraca não explodiu."
"Isso teria sido muito divertido", disse Cinnamon, com óbvio
arrependimento. "E apropriado, também, para um herói. Ainda
assim, os desenhos de sua irmã ... Vou jogar com você para ver
quem entra para pegá-los." Ele enfiou a mão no bolso e retirou
um xelim.
1245

"Coroa", disse William imediatamente. Canela atirou, pegou a


moeda nas costas da mão com um tapa e olhou para ela.
"Não consigo ver. " Se havia lua, ela estava coberta por nuvens
de chuva, e a noite torrencial era escura como um cobertor preto
úmido.
"Aqui." Brianna estendeu a mão e correu as pontas dos dedos
sobre a face úmida e fria da moeda. E era um rosto, embora ela
não soubesse de quem. "Cara", ela disse.
"Stercus", William disse brevemente, e, desenrolando seu lenço
molhado, enrolou-o ao redor de seu rosto e mergulhou no
caminho em direção à tenda escura.
"Stercus?", Bree repetiu, voltando-se para John Cinnamon.
"Significa merda em latim", explicou o grande índio. "Você não
é católica, é?"
"Eu sou", ela disse, surpresa. "E eu sei um pouco de latim. Mas
tenho certeza de que stercus não está na missa."
"Nenhuma que eu já ouvi", ele assegurou a ela. "Eu pensei que
você não seria católica, no entanto. William, não é."
"Não." Ela hesitou, perguntando-se o quanto este homem sabia
sobre William e as complicações de sua paternidade
compartilhada. "Você... hã... você está viajando com William há
algum tempo?"
"Um par de meses. Ele não me contou sobre você, no entanto."
"Suponho que ele não teria contado." Ela fez uma pausa, sem
saber se deveria perguntar sobre o que – se é que havia alguma
coisa – William conversara com ele.
Antes que ela pudesse decidir, o próprio William estava de volta,
ofegando e engasgando, a caixa de desenho debaixo do braço. Ele
empurrou para ela, arrancou o lenço do rosto, virou-se de lado e
vomitou.
1246

"Filius scorti550", disse ele, sem fôlego, e cuspiu. "Aquilo foi o


pior..."
"Sra. Mackenzie?", uma voz familiar veio da escuridão,
interrompendo-o. "É você, senhora?" Era o tenente Hanson,
encharcado até a pele, mas segurando uma lanterna furta-fogo,
com um de seus painéis deslizantes aberto. A chuva batia no
metal e o vapor d'água flutuava pela fenda de luz.
"Por aqui!", ela chamou, e a lanterna girou na direção deles, a
chuva de repente visível como agulhas de prata caindo através da
luz.
"Venha comigo, senhora", disse o tenente Hanson, alcançando-
os. "Eu encontrei um abrigo para você e seu... hum..."
"Graças a Deus", disse William. "E obrigado, também, tenente",
ele adicionou, curvando-se.
"Claro. Senhor". Hanson disse incerto. Ele ergueu a lanterna,
mostrando o caminho, e Bree agradeceu e começou a descer,
seguida por William e Cinnamon. Ela ouviu um pequeno barulho
vindo de um deles, porém, e se virou. O tenente Hanson havia
parado, olhando na direção da tenda onde Casimir Pulaski jazia
na escuridão.
Hanson ergueu um pouco a lanterna, em saudação e em voz baixa
e clara disse: "Pozegnanie." Então ele se virou decidido e foi em
direção a seus guardas que o aguardavam.
"Significa Até a próxima, adeus em polonês", disse ele a Brianna,
com naturalidade. "Ele costumava nos dizer isso quando nos
deixava à noite."

550
Filho de uma puta. Em latim
1247

96

UMA COISA DE VALOR

A PEQUENA ESTRUTURA DE MADEIRA para a qual o


tenente Hanson os escoltou poderia originalmente ter sido um
galinheiro, Brianna pensou, abaixando-se sob o frágil lintel.
Alguém estava morando lá, entretanto; havia dois estrados
rústicos com cobertores no chão, uma jarra de cerâmica com uma
bacia, lascadas e manchadas, e um penico esmaltado em muito
melhor estado.
"Peço desculpas, senhora", disse o tenente Hanson, pela décima
segunda vez. "Mas metade de nossas tendas explodiu e os homens
estão segurando o resto." Ele ergueu a lanterna, olhando em
dúvida para as manchas escuras que vazavam das tábuas de uma
das paredes. "Parece não estar vazando muito. Ainda."
"Está perfeitamente bem", Brianna assegurou-lhe, saindo do
caminho para que seus dois grandes acompanhantes pudessem se
espremer atrás dela. Com quatro pessoas dentro do galpão,
literalmente não havia espaço para se virar, muito menos deitar,
e ela agarrou sua caixa de desenho sob a capa, não querendo que
fosse pisoteada.
"Nós somos gratos a você, tenente." William estava quase
dobrado sob o teto baixo, mas conseguiu acenar com a cabeça na
direção de Hanson. "Comida?"
"Imediatamente, senhor", Hanson assegurou. "Lamento que não
haja fogo, mas pelo menos você estará fora da chuva. Boa noite,
sra. MacKenzie – e obrigado novamente."
Ele contorceu-se ao passar pela massa de John Cinnamon e
desapareceu na noite tempestuosa, segurando o chapéu agarrado
1248

à cabeça.
"Pegue aquele", disse William para Brianna, apontando com o
queixo para o improvisado colchão mais distante da parede
vazando. "Cinnamon e eu vamos ficar com a outra nos turnos."
Ela estava cansada demais para discutir com ele. Ela largou a
caixa de desenho, sacudiu o cobertor e, quando nenhum
percevejo, piolho ou aranha caíram, sentou-se, sentindo-se como
uma marionete cujos fios acabaram de ser cortados.
Ela fechou os olhos, ouvindo William e John Cinnamon negociar
seus movimentos, mas deixando as vozes baixas passarem sobre
ela como o vento e a chuva lá fora. Imagens aglomeravam-se
atrás de seus olhos, a grama pisoteada da trilha costeira, os rostos
suspeitos dos Highlanders nos limites da cidade, a luz sempre
mutante no rosto do homem morto, seu irmão sacudindo o queixo
exatamente do jeito que o seu – o deles – pai fazia... estrias
escuras de água e estrias brancas de cocô de galinha em placas
prateadas à luz da lanterna... luz... parecia mil anos desde que ela
havia visto o sol da manhã brilhar em cor-de-rosa através da
pequena e linda orelha de Angelina Brumby... e Roger... pelo
menos Roger estava vivo, onde quer que estivesse agora...
Ela abriu os olhos na escuridão, sentindo a mão de alguém em
seu ombro.
"Não adormeça antes de comer alguma coisa", disse William,
parecendo divertido. "Eu prometi ver você alimentada e não
gostaria de quebrar minha palavra."
"Comida?" Ela balançou a cabeça, piscando. Um brilho repentino
surgiu atrás de William, e ela viu o grande índio colocar um
fogareiro de barro ao lado da vela curta que ele acabara de
acender. Ele inclinou a vela sobre o fundo do penico virado para
cima e a enfiou na cera derretida, segurando-a até a cera
endurecer.
1249

"Desculpe, eu deveria ter perguntado se você queria mijar


primeiro", Cinnamon disse, olhando para ela se desculpando. "Só
que não há outro lugar para colocar a vela."
"Não", ela disse, e balançou a cabeça para clarear as coisas. "Está
tudo bem. Tem alguma coisa para beber?" Ela não tinha bebido
quase nada durante o dia e à noite e parecia seca como uma casca
de inverno, apesar da umidade predominante.
O tenente Hanson conseguira encontrar várias garrafas de
cerveja, algumas fatias de porco assado frio, untadas com
gordura, um pão escuro e seco, um pote de mostarda forte e um
grande pedaço de queijo esfarelado. Ela nunca tinha comido nada
melhor em sua vida.
Eles não conversaram; os homens comiam com a mesma
obstinação que ela e, terminada a última migalha, ela se deitou no
cobertor, enrolou-se na capa e adormeceu sem dizer uma palavra.
Ela sonhou, apanhada no frio inquietante entre o sono e a vigília.
Ela sonhou com homens. Homens como sombras, lentos de
tristeza. Homens trabalhando, seu suor escorrendo pelos braços
nus, costas cheias de cicatrizes... Homens andando em fileiras,
seus uniformes pretos molhados, salpicados de lama, sem saber
quem eram... um menininho fuçando em seu peito com grande
determinação, sem saber que estava indefeso.
Ela emergia do sono profundo de vez em quando, brevemente,
mas raramente quebrava a superfície do sonho e caía lentamente
no sono de novo, com os cheiros de homens e galinhas
emprestando asas curtas e estranhas a um homem voando para o
sol...
Ela acordou lentamente com a sensação de asas batendo em seu
peito.
"Merda", ela disse, mas suavemente, e pressionou a palma da
mão com força contra o esterno. Como de costume, isso não
1250

resultou em nada, e ela ficou imóvel, respirando o mais


superficialmente possível, esperando que parasse. Ela estava
deitada de lado, e o rosto de seu irmão estava a trinta centímetros
do dela, sombreado, mas visível enquanto ele dormia no outro
catre.
A chuva havia parado, o vento diminuíra e ela podia ouvir a água
pingando do beiral do galpão. A luz da lua filtrada por rachaduras
nas placas, piscando e apagando conforme as nuvens passavam
rapidamente. E a vibração em seu peito diminuiu e seu coração
bateu forte duas ou três vezes, depois retomou o ritmo normal.
Ela respirou cautelosamente e se sentou devagar, para não
acordar William, mas ele estava morto de sono, o corpo comprido
esparramado de exaustão.
"Tem água", disse uma voz suave à sua direita. "Você quer um
pouco?"
"Por favor." Sua língua estalou com a secura e ela alcançou a
vasta sombra que devia ser John Cinnamon. Ele estava sentado
no penico revirado; se inclinou para frente e colocou um pequeno
cantil na mão dela.
A água era fresca e leve, com um agradável sabor metálico da
lata, e ela bebeu com sede, conseguindo parar sem esvaziar
totalmente o cantil. Ela o devolveu, relutantemente, e enxugou a
boca com as costas da mão.
"Obrigada." Ele fez um pequeno grunhido em resposta e se
recostou; as tábuas da parede do galpão rangeram em protesto.
Agora ela realmente precisava mijar, percebeu. Bem, de algum
jeito.
Ela se levantou desajeitadamente e Cinnamon levantou-se
também, com muito mais graça, e agarrou-a pelo braço para
impedi-la de cair.
1251

"Eu... só... vou sair por um momento."


"Oh." Ele soltou o braço dela, hesitante, e meio que se virou para
o penico de cabeça para baixo como se para endireitá-lo.
"Não, está tudo bem. A chuva parou." A porta do galpão estava
emperrada, inchada com a umidade; ele passou por ela e a liberou
com um golpe de sua palma. O ar frio fresco entrou no galpão e
ela ouviu um farfalhar quando William se mexeu.
"Eu vou primeiro." Cinnamon sussurrou em seu ouvido quando
ele de alguma forma passou por ela. "Espere até eu chamar."
"Mas..." Mas ele se foi, deixando a porta entreaberta. Ela lançou
um rápido olhar para William, mas ele havia caído no sono; ela
podia ouvir um ronco fraco na escuridão e sorriu com o som.
O mais silenciosamente que pôde, ela empurrou a porta em ruínas
e colocou a cabeça para fora. A noite se espalhava sobre ela uma
corrida silenciosa, nuvens de bordas brilhantes passando por uma
meia-lua brilhante.
Ela podia ouvir o gotejar de água com mais clareza ali, caindo
das folhas de uma grande árvore que ficava perto do galinheiro.
Ela também podia ouvir um barulho mais constante de água e
sorriu de novo. John Cinnamon aproveitou a oportunidade para
um alívio discreto por conta própria.
Voltou-se na outra direção e retirou-se à sombra da grande
árvore, apesar das gotas, onde realizou sua própria tarefa sem
cerimônia.
"Eu estou aqui", disse ela, emergindo a tempo de evitar que
Cinnamon a chamasse. Ele se virou bruscamente da porta do
galpão, então acenou com a cabeça, vendo-a.
Ele fez um ligeiro movimento inquisitivo em direção ao galpão,
mas ela balançou a cabeça.
"Ainda não. Eu preciso de um pouco de ar." Ela inclinou a cabeça
1252

para trás e respirou, grata pelo frescor da noite e pelas estrelas


aparecendo e desaparecendo no alto, vivas nas manchas da noite
negra varridas pelas nuvens que passavam.
John Cinnamon lhe fez companhia, embora não falasse. Ela podia
sentir sua presença, grande e reconfortante.
"Você conhece meu... meu irmão há muito tempo?", ela
perguntou finalmente. Ele ergueu um ombro de forma dúbia.
"Sim e não", disse ele. "Passamos um inverno juntos em Quebec,
quando? Há talvez três anos. Eu era um guia para ele, um batedor
índio. Então nos encontramos novamente por acidente... três
meses atrás? Mais ou menos isso."
"Onde vocês se encontraram dessa vez?", ela perguntou, curiosa.
"No Canadá?"
"Oh. Não. Na Virgínia." Ele virou a cabeça para conferir um
estalo repentino, mas depois o dispensou. "Um galho quebrado
caindo. Era um lugar chamado Monte Josiash. Você conhece?"
"Já ouvi falar. O que o levou para lá?"
Ele fez um pequeno zumbido, mas acenou com a cabeça,
decidindo contar a ela. "Lorde John Grey. Você conhece Sua
Senhoria?"
"Sim, muito bem", disse ela, sorrindo com a memória. "Ele estava
na Virgínia, então?"
"Não," Cinnamon disse pensativamente, "mas seu irmão estava."
"Oh. Ele estava procurando por lorde John também?"
"Acho que não." Ele ficou em silêncio por um momento, depois
acrescentou: "Ele estava procurando por outras coisas. Talvez ele
diga a você. Eu não posso."
"Entendo", ela disse, imaginando. Chocada – e comovida – por
encontrar William, ela não teve tempo para se perguntar, muito
1253

menos perguntar a ele, o que o levou a Savannah, por que ele


renunciou à sua patente do exército, o que ele pensava sobre seus
dois pais, o que ele pensava dela. Quem ele era.
Seu pai não disse quase nada sobre William, e ela não perguntou.
Haveria tempo suficiente, ela sentiu. Mas o momento
evidentemente havia chegado.
Ainda assim, ela não queria se intrometer ou desconcertar John
Cinnamon perguntando se – ou o quê – ele sabia sobre Jamie
Fraser.
"William disse que ele – ou melhor, você – queria fazer um
retrato", disse ela, mudando para um local que parecia mais
seguro. "Eu ficaria muito feliz em fazer isso. Hã... é para alguma
senhora de sorte?"
Isso o surpreendeu, e ele riu, um som baixo e quente.
"Não, eu não tenho mulher. Pretendo mandar para meu pai", disse
ele.
"Seu pai? Onde ele está?"
As nuvens se fragmentaram e a luz de uma lua poente mostrou a
ela seu rosto largo, de olhos suaves agora e pensativo. Ele seria
maravilhoso de pintar.
"Londres", disse ele, surpreendendo-a. Ele viu que a havia
surpreendido e abaixou a cabeça, envergonhado.
"Eu sou um bastardo, é claro", ele disse, com um tom de
desculpas. "Meu pai era um soldado britânico; ele me teve com
uma mulher índia no Canadá."
"Eu entendo." Não parecia haver mais nada que ela pudesse dizer,
e ele deu um pequeno sorriso tímido.
"Sim. Eu pensei – por muitos anos, pensei que lorde John fosse
meu pai. Foi ele quem me levou quando minha mãe morreu – eu
1254

era uma criança – e me deu aos santos padres da missão em


Gareon. Ele mandava dinheiro para me manter, sabe."
"Isso... parece muito com ele", ela disse, embora na verdade ela
nunca tivesse pensado que ele faria uma coisa dessas.
"Ele é um homem bom. Muito gentil", ele acrescentou com
firmeza. "William me trouxe a Savannah para falar com ele –
William achava que lorde John era meu pai também – e foi Sua
Senhoria quem me disse a verdade. Meu verdadeiro pai me
abandonou; essas coisas são comuns."
Sua voz era natural; provavelmente essas coisas eram mesmo
comuns.
"Isso não significa que esteja certo", disse ela, zangada com o pai
desconhecido.
Ele encolheu os ombros.
"Mas lorde John me disse seu nome e um endereço. Eu sei
como... enviar um retrato para ele."
"Você quer enviar um retrato para um homem que o abandonou?
Mas por quê?", ela falou com cautela. Esse jovem era
evidentemente um realista; como ele realmente acharia que um
retrato de seu filho mestiço, agora crescido, comoveria o tipo de
idiota egoísta e de coração frio que...
"Eu não acho que ele vai me dar seu reconhecimento", ele
assegurou a ela. "Eu não quero que ele faça isso. Eu não quero
dinheiro ou qualquer coisa que ele tenha de valor. Mas ele tem
uma coisa que eu quero, e espero que se ele vir meu rosto, ele me
dê."
"O que raios é isso?"
Até mesmo o gotejamento das árvores havia cessado agora. A
noite estava tão quieta que ela podia ouvi-lo engolir em seco.
"Eu quero saber meu nome", ele disse, tão baixo que ela mal o
1255

ouviu. "Eu quero saber o nome que minha mãe me chamou. Ele
é o único que sabe isso."
Sua garganta estava muito apertada para falar. Ela deu um passo
em direção a ele e colocou os braços em volta dele, segurando-o
como sua mãe o teria feito, se ela tivesse vivido para vê-lo
crescer.
"Eu prometo a você", ela sussurrou quando ela pode falar. "Seu
rosto vai partir o coração dele."
Ele deu um tapinha nas costas dela, muito gentilmente, e deu um
passo para trás. "Você é muito gentil", disse ele. "Você deveria ir
dormir agora."
1256

97

UMA EXCELENTE PERGUNTA

JOHN CINNAMON, COM MUITO TATO, deixou William e


Brianna a sós, logo depois de terem passado pelos escombros da
linha de abatis, entrando na cidade, dizendo que tinha negócios
no beira-rio e veria William mais tarde na casa de lorde John.
"Gosto muito do seu amigo", disse Brianna, observando as costas
largas de Cinnamon desaparecerem na luz do sol em uma praça
cujo nome ela não sabia.
"Eu também. Só espero...", William se controlou, mas sua irmã
se virou para ele com uma expressão simpática no rosto.
"Eu também", ela disse. "Você quer dizer Londres e este Matthew
Stubbs?"
"Malcolm, mas sim."
"Que tipo de homem é ele?", ela perguntou, curiosa. "Você o
conheceu?"
"Sim, eu o encontrei duas vezes, pelo que me lembro. Uma vez
em Ascot e uma vez em um dos clubes do meu p... de lorde John."
Ele olhou para ela para ver se ela tinha notado, mas é claro que
ela tinha.
"Tá tudo certo – quero dizer, está tudo bem – chamar lorde John
de seu pai", disse ela, a expressão de simpatia se transferindo para
ele. "Pa não se importaria."
1257

O sangue subiu em suas bochechas, mas ele foi salvo de dizer o


que pensava sobre as preferências de Jamie Fraser no assunto por
Brianna instantaneamente retornar ao assunto Malcolm Stubbs.
"Então, como ele é, esse Stubbs?"
Ele não pôde evitar um sorriso ao ouvir o tom suspeito de "esse
Stubbs".
"Na aparência, muito apropriadamente nomeado551. Curto e
grosso – com cabelos iguais ao de Cinnamon, embora seja uma
espécie de ruivo arenoso. Pode estar cinza agora, no entanto", ele
acrescentou. "Ele sempre usa peruca em público."
Ela ergueu as sobrancelhas para ele – sobrancelhas grossas, para
uma mulher, e vermelhas ainda por cima, mas muito expressivas.
"Eu não sei", disse ele honestamente, em resposta à pergunta das
sobrancelhas. "Há uma coisa que pode ajudar. Pa – Papa, quero
dizer ", disse ele, dando um breve olhar que a desafiou a
comentar, "me disse que ele tem uma esposa negra. Stubbs tem,
quero dizer", ele emendou. "Não Papa."
Ela piscou. "Em Londres?"
Ela parecia tão chocada que ele riu.
"Por que o lugar deveria fazer a diferença? Eu imagino que ela
seria tão surpreendente quanto aqui", ele acenou com a mão para
as imponentes casas destruídas ao redor da St. James Square, "se
não mais."
"Hum!", ela disse. Então, curiosa, "Ele a libertou da escravidão e
depois se casou com ela?"
"Ela não era uma escrava", disse William, um tanto surpreso.
"Meu pai disse que ele – ele e Stubbs, ele quis dizer – a
conheceram em Cuba. A primeira esposa de Stubbs tinha acabado

551
Stub, em inglês, significa um pequeno pedaço restante de alguma coisa, um pedaço de galho partido,
um toco de lápis etc. – algo curto e atrofiado.
1258

de morrer de algum tipo de febre, e ele trouxe esta mulher –


Inocencia552, esse é o nome dela, eu sabia que era algum tipo de
virtude em espanhol – a levou para Londres com ele quando ele
voltou e se casou com ela. De qualquer forma", disse ele,
trazendo a conversa de volta ao assunto," tenho certeza de que
Papa disse que Stubbs teve filhos com essa mulher."
"Você quer dizer que ele não necessariamente viraria as costas
para John Cinnamon por ser..." Ela acenou com a mão, indicando
a notável origem índia de Cinnamon.
"Sim." William ficou em dúvida, apesar da firmeza de sua
resposta. Ter filhos de uma cor incomum causaria comentários,
mas não era necessariamente uma coisa escandalosa, desde que
fossem legítimos, o que os Stubbs mais novos certamente eram.
Ter um índio adulto enorme e obviamente nascido fora da
legalidade do casamento aparecendo e alegando sua linhagem
poderia ser muito diferente. E ele descobriu que queria muito que
John Cinnamon não se machucasse.
Brianna fez um barulho de clique e seu cavalo moveu-se
obedientemente para fora da sombra dos carvalhos e entrou na
Jones Street. Havia um grande número de pessoas fora das casas,
William percebeu. A sensação de terrível opressão havia
desaparecido, durante a noite, junto com o cerco, e embora o
cheiro de queimado ainda tingisse o ar e galhos de árvores
quebrados estavam espalhados por toda parte, as pessoas tinham
que comer e os negócios precisavam ser feitos. A maré normal da
vida diária estava chegando rapidamente.
"Você irá com ele? Para Londres?", Brianna perguntou por cima
do ombro. Ela cutucou seu cavalo com os dois calcanhares,
afastando-o do caminho de uma carroça que se aproximava, cheia
de barris e com um cheiro adocicado de cerveja.

552
Esses são fatos relatados no conto Sitiados.
1259

"Londres?", William repetiu. "Eu não sei." Ele não sabia, e


deixou tanta incerteza transparecer em sua voz que sua irmã
parou um pouco para esperá-lo, então acenou com a cabeça em
direção a uma alameda que passava atrás da igreja batista,
indicando que ele deveria segui-la.
"Não é da minha conta", disse ela, enquanto eles passavam pela
sombra fria da igreja, "mas... o que você está planejando fazer?
Quero dizer, agora que o cerco foi levantado, suponho que você
pode ir para onde quiser..."
Excelente pergunta.
"Eu não sei", disse ele honestamente. "Sinceramente, não sei."
Ela assentiu com a cabeça.
"Bem, você tem opções, não é?"
"Opções?", ele disse. Ele parecia achar graça, mas a palavra ainda
lhe dava a sensação de que havia engolido uma enguia viva. Você
não tem ideia, minha irmã...
"Lorde John disse que você é dono de uma pequena plantação na
Virgínia", ela ressaltou. "Se você não quisesse voltar para a
Inglaterra, suponho que poderia morar lá?"
"É possível, suponho." Ele podia ouvir a dúvida em sua própria
voz, e ela também; ela olhou bruscamente para ele, a sobrancelha
erguida.
"O lugar está uma ruína", disse ele, "embora os campos tenham
sido mantidos em boas condições. Mas a guerra..." Ele apontou
para a casa mais próxima, marcada por balas de canhão e sua tinta
azul brilhante chamuscada e enegrecida pelo fogo de um lado.
"Eu acho que as coisas podem não fluir ao meu redor. como uma
pedra na água, você sabe."
Algo estranho se moveu no rosto dela e ele olhou para ela com
considerável surpresa.
1260

"Você já pensou em algo?", ele perguntou.


"Sim, mas não é – quero dizer – não é relevante neste minuto."
Ela acenou para longe qualquer que fosse o pensamento. "Eu sei
que lorde John e seu tio, o duque ainda se considera seu tio, eu
sei..."
"Eu também", disse William, ironicamente, mas com uma
pequena sensação de alívio com o pensamento. O tio Hal era
realmente uma rocha, sobre a qual muitas vezes passavam
inundações e torrentes, deixando-o impassível.
"Eles querem que você volte para a Inglaterra", disse Brianna.
"Eu mesma estava me perguntando – você é um conde; isso não
significa que você tem... pessoas? Terra? Coisas que precisam ser
cuidadas?"
"Existe uma propriedade, sim", ele disse laconicamente. "Eu...
que diabos?" Seu cavalo tinha parado de obedecer, e a montaria
de Brianna estava tentando virar numa viela, bufando com algum
cheiro perturbador.
Então, seu fraco sentido olfativo percebeu também – um fedor de
morte. Uma carroça estava parada no final da viela, suas laterais
cobertas com um pano preto, este puído e desbotado pelo tempo
em dobras enferrujadas. A carroça fora desatrelada e não havia
cavalos nem mulas à vista, mas um pequeno grupo de homens
vestidos de maneira grosseira, tanto negros quanto brancos,
estavam em uma mancha de sol logo além da entrada da viela,
em atitudes de expectativa vigilante.
Ouviu-se um som de vozes ao longe, abafadas, mas várias delas,
um murmúrio que foi interrompido abruptamente por um lamento
agudo que fez os homens que esperavam se encolherem e
desviarem o olhar, os ombros curvados.
Brianna se virou na sela, olhando por cima do ombro e
recolhendo as rédeas, evidentemente querendo voltar – mas havia
1261

pessoas entrando na pequena rua atrás deles, pranteadores em


véus escuros e braçadeiras. Bree olhou para William, e ele
balançou a cabeça e empurrou seu cavalo na direção do dela,
manobrando para a lateral da passagem para dar espaço aos
recém-chegados. Eles fizeram isso, alguns lançando um olhar
para os cavaleiros – um ou dois com os olhos arregalados ao ver
Brianna montada com as saias levantadas e uma extensão
indecente de panturrilha à mostra – mas a maioria tão focada na
dor presente que era indiferente ao espetáculo.
O movimento perto da carroça chamou a atenção de William de
volta; eles estavam trazendo o corpo – corpos.
Ele tirou o chapéu, pressionou-o contra o coração e baixou a
cabeça. Para sua surpresa, Brianna fez o mesmo.
Não havia caixões; este era um funeral de pobres. Dois pequenos
corpos envoltos em mortalhas ásperas foram carregados em
pranchas e gentilmente levantados para a carroça.
"Não! Não!" Uma mulher, que devia ser a mãe das crianças,
escapou dos braços de seus apoiadores e correu para a carroça,
tentando subir, gritando: "Nãããão!" a plenos pulmões. "Não, não!
Deixe-me ir com eles, não os tire de mim, não!"
Uma onda de amigos horrorizados e abatidos se fechou em torno
da mulher, puxando-a para trás, tentando por pura força de
compaixão acalmá-la.
"Oh, querido Deus", disse Brianna em uma voz embargada.
William olhou para ela e viu que as lágrimas escorriam por seu
rosto, seus olhos fixos na cena lamentável, e ele se lembrou com
um choque das crianças que ouvira brincando do lado de fora da
casa dos Brumby – as dela.
Ele estendeu a mão e agarrou o braço dela – ela largou as rédeas
com aquela mão e agarrou a dele como se estivesse se afogando,
agarrando-se para salvar sua vida, uma força notável para uma
1262

mulher. Vários homens vieram para pegar as hastes, e as rodas da


carroça rangeram em movimento, a pequena procissão iniciando
sua jornada triste. A mãe havia parado de chorar; ela se movia
como se fosse uma sonâmbula atrás da carroça, tropeçando
quando seus joelhos cediam a cada poucos passos, apesar do
apoio de duas mulheres que a seguravam.
"Onde está o marido dela?", Brianna sussurrou, mais para si
mesma do que para William, mas ele respondeu.
"Ele provavelmente estará com o exército." Muito mais
provavelmente, ele também estava morto, mas sua irmã
provavelmente sabia disso tão bem quanto ele.
Seu próprio marido... Deus sabia onde ele estava. Ela evitou
responder quando ele perguntou, mas era evidente que
MacKenzie era um rebelde. Se ele esteve na batalha recente –
mas não, ele sobreviveu a isso, pelo menos, William lembrou a si
mesmo. Ela não perguntou sobre ele, enquanto estávamos no
acampamento... por que diabos não? Ainda assim, ele podia sentir
um pequeno tremor constante percorrendo a mão de sua irmã e
apertou de volta, tentando tranquilizá-la.
"Monsieur?" Uma voz estridente em seu estribo esquerdo o
assustou e ele deu um solavanco na sela, fazendo seu cavalo se
mexer e bater os cascos.
"O quê?", ele disse, olhando para baixo incrédulo. "Quem diabos
é você?"
O pequeno menino negro – Cristo, ele estava usando os restos de
um uniforme azul-escuro, então ele deve ser, ou recentemente
tinha sido um baterista – curvou-se solenemente. Seu rosto,
orelha e mão estavam pretos com fuligem de um lado, e havia
muito sangue em suas roupas, mas ele não parecia estar ferido.
"Pardon, monsieur. Parlez-vous Français?"
1263

"Oui", William respondeu, surpreso. "Pourquoi?"


A criança – não, ele era mais velho do que parecia; ele se
endireitou e olhou William nos olhos, talvez com onze ou doze
anos – tossiu um punhado de catarro preto e cuspiu, depois
balançou a cabeça como se estivesse endireitando o juízo.
"Votre ami a besoin d'aide. Le grand lndien", ele acrescentou
como uma reflexão tardia.
"Ele está dizendo algo sobre John Cinnamon?", Brianna
perguntou, franzindo a testa. Ela enxugou as lágrimas escorrendo
pelo rosto e se endireitou, recuperando-se.
"Sim. Ele diz – presumo que você não fala francês?"
"Alguma coisa." Ela olhou para ele.
"Certo." Ele se virou para o menino, que estava balançando
suavemente para frente e para trás, olhando para algo invisível,
claramente dominado pela exaustão. "Dites-moi. Vite!"
Isso o menino fez, com admirável simplicidade.
"Stercus"” William murmurou, então se virou para sua irmã. "Ele
diz que uma gangue de navios franceses ouviu Cinnamon falando
francês com alguém na costa; eles o seguiram e tentaram levá-lo.
Ele fugiu deles, mas está se escondendo – diz o menino em uma
caverna, embora isso pareça improvável... de qualquer maneira,
ele precisa de ajuda."
"Vamos então." Ela juntou as rédeas e olhou para trás, avaliando
o espaço de giro.
Ele quase desistiu de ser surpreendido por ela, mas
evidentemente não exatamente. "Você está louca?", ele
perguntou, o mais educadamente possível. "Steh", acrescentou
ele firmemente ao seu próprio cavalo.
"Que língua você está falando agora? ", disse ela, parecendo
impaciente.
1264

"Steh significa fique quieto em alemão – ao falar com um cavalo


– e stercus significa merda", ele a informou secamente. "Você
tem filhos, senhora – como aqueles pelos quais você acabou de
chorar. Se você não quer que os seus sofram da mesma forma,
sugiro que vá para casa e cuide deles."
O sangue subiu em seu rosto como se alguém tivesse acendido
um fogo sob sua pele e ela olhou para ele, juntando as pontas
soltas de suas rédeas em uma mão de uma maneira que sugeria
que ela estava pensando em açoitá-lo no rosto com elas.
"Seu pequeno bas...", ela começou, e então apertou os lábios,
cortando a palavra.
"Bastardo", ele terminou por ela. "Sim, eu sou. Vá para casa." E
virando as costas para ela, ele estendeu a mão para o menino e o
ergueu até que ele pudesse colocar o pé no estribo e subir atrás.
"Où allons-nous?", ele perguntou brevemente, e o menino
apontou para trás deles, em direção ao rio.
Uma grande mão feminina agarrou o freio de seu cavalo. O
cavalo bufou e balançou a cabeça em protesto, mas ela o segurou.
"Alguém já te disse que ser imprudente vai matar você?", ela
perguntou, imitando seu tom educado. "Não que eu me importe
muito, mas você provavelmente fará com que este garoto, assim
como John Cinnamon, sejam mortos também."
"Criança?", foi tudo o que ele conseguiu pensar em dizer, para a
colisão de palavras tentando sair de sua boca.
"Criança, menino, rapaz, ele!", ela retrucou, apontando o queixo
em direção ao pequeno baterista atrás dele.
"Quel est le problems de cette femme?", o menino exigiu
indignado.
"Dieu seul sait, je ne sais pas", disse William brevemente por
cima do ombro.
1265

Deus sabe, eu não.


"Você me deixaria ir?", ele disse para sua irmã.
"Em um minuto, sim", disse Brianna, fixando-o com um brilho
azul escuro. "Escute-me."
Ele revirou os olhos, mas deu a ela um aceno curto e afiado e um
olhar de volta.
Ela se recostou um pouco na sela, mas não a soltou.
"Bom", disse ela. "Eu caminhava para cima e para baixo naquela
costa quase todos os dias, antes que os americanos aparecessem,
e meus filhos cutucavam cada fenda naquelas falésias. Existem
apenas quatro lugares que poderiam ser chamados de cavernas, e
apenas um deles é profundo o suficiente para que alguém do
tamanho de Cinnamon possa ter uma esperança de se esconder."
Ela fez uma pausa para respirar e passou a mão livre sob o nariz,
olhando-o para ver se ele estava prestando atenção.
"Eu estou ouvindo você", ele disse irritado. "E?"
"E aquela não é uma caverna de jeito nenhum. É o fim de um
túnel." A onda de raiva o deixou abruptamente.
"Onde está a outra extremidade?"
Ela sorriu ligeiramente e soltou o freio.
"Viu? Você pode ser imprudente, mas eu sabia que você não era
estúpido. A outra ponta fica no porão de uma taverna na Broad
Street. Eles a chamam de Casa dos Piratas e, pelo que sei pelo
que falamos na cidade, há um bom motivo para isso. Mas se eu
fosse você..."
Ele bufou brevemente e juntou as rédeas. O fim da viela estava
livre agora, sem carroças, pessoas em luto ou pequenos corpos
envoltos em mortalhas.
"Você é minha irmã, senhora", disse ele, e com não mais do que
1266

um instante de hesitação, acrescentou, "e estou feliz por isso. Mas


você não é minha mãe. Na verdade, eu não sou estúpido, nem
John Cinnamon." Ele fez uma pausa por um instante e
acrescentou: "Mas, obrigado".
"Boa sorte", disse ela simplesmente, e ficou olhando enquanto ele
se virava e partia.

-.-.-

BRIANNA NÃO SAIU da ruazinha imediatamente. Ela


observou William cavalgar para fora, as costas rígidas de
determinação, o garoto agarrado à cintura. Ao que parece, a
criança nunca tinha montado em um cavalo antes, estava
apavorada mas jamais admitiria. Entre ele e William, ela pensou
que John Cinnamon poderia ter escolhido pior, em termos de
aliados. Ela estremeceu com o desejo de seguir William, de não
deixá-lo ir sozinho, mas ele estava – maldito seja! – certo. Ela
não podia arriscar que algo acontecesse com ela, nem com Jem e
Mandy...
Ela juntou as rédeas e estalou a língua; mais pessoas vinham pela
praça, em direção à igreja. Vestidos com sobriedade, caminhando
juntos. Esta igreja não tinha sino, mas um estava tocando,
dobrando, em algum lugar da cidade. Mais funerais, ela pensou,
e seu coração se apertou com força em seu peito. Lentamente, ela
cavalgou entre os enlutados e entrou na Rua Abercorn.
Com quantas pessoas você pode se preocupar de uma vez?, ela
imaginou. Jem, Mandy, Roger, Fanny, seus pais, agora William
e John Cinnamon... Ela ainda estava abalada pelos filhos mortos
e sua mãe; isso, além de uma noite passada nos pântanos com
Casimir Pulaski, a fez sentir como se sua pele estivesse prestes a
se descascar. Uma súbita memória de sua última visão do general
1267

surgiu em sua mente, e uma risada alta e completamente


desequilibrada escapou dela. De repente, a bile subiu em sua
garganta e seu estômago embrulhou. "Oh Deus."
Ela lutou contra a onda de náusea, mas viu que as pessoas a
olhavam e percebeu que, além de rir como uma louca, ela ainda
segurava o tricorne com uma das mãos, o cabelo solto e as pernas
arranhadas e mordidas de mosquitos, nua dos joelhos às pontas
dos sapatos absurdamente elaborados – ela havia tirado as meias
molhadas na noite anterior e se esquecido de encontrá-las pela
manhã. De repente, envergonhada pelos olhares de esguelha e
sussurros, ela se endireitou em desafio, ombros para trás. Uma
grande mão agarrou a panturrilha nua de sua perna, e ela gritou e
deu um tapa em quem quer que fosse com o chapéu, fazendo o
cavalo se encolher violentamente.
Que era Roger, que também se assustou com a violência.
"Cristo!"
"Mer... quero dizer palavra com M!", disse ela, agarrando seu
cavalo de volta sob controle. "Por que você fez isso?"
"Eu chamei, mas você não me ouviu." Ele deu um tapa amigável
na cernelha do cavalo e estendeu a mão para ela. Ele parecia
cansado e seus olhos estavam enrugados de preocupação. "Desça
e me diga o que diabos tem acontecido. Você foi para o
acampamento americano? Eu não deveria ter pedido a você
para... Deus, você parece com a morte."
Suas mãos estavam tremendo, e de fato, ela percebeu, ela se
sentia como a morte. Quando seus pés tocaram o chão, ela quase
caiu em seus braços, abraçando-o, e começou a viver novamente.
1268

98

MINERVA JOY

LORDE JOHN VOLTOU DE UMA VISITA ao hospital local,


onde os britânicos feridos – junto com os habitantes de Savannah
feridos por estilhaços ou incêndios domésticos – estavam sendo
tratados, para encontrar seu irmão sentado em sua mesa no
escritório, parecendo ter sido atingido por um raio.
"Hal?", John disse, alarmado. "O que aconteceu?"
A boca de Hal se abriu, mas apenas um pequeno ruído sibilante
saiu. Havia uma carta aberta sobre a escrivaninha, parecendo ter
viajado alguma distância através da chuva e lama e possivelmente
sendo pisoteada por um cavalo no caminho. Hal empurrou-a
silenciosamente em sua direção, e ele a pegou.

Amigo Pardloe,

Eu escrevo com tormento de mente e espírito,


o que é aumentado pelo conhecimento de que
devo obrigá-lo agora a compartilhá-lo. Me
perdoe.
Dorothea deu à luz uma menina saudável, a
quem batizamos de Minerva Joy. Ela nasceu
no recinto da prisão de Stony Point, porque
eu estava confinado lá e não confiaria o bem-
estar de Dorothea à parteira local, de cuja
competência duvidei.
Mina (como a chamávamos) prosperou e
1269

floresceu, assim como sua mãe.


No entanto, houve um surto de febre na
prisão e, temendo por sua saúde, mandei-as
para a cidade, onde se refugiaram com uma
família quacre. Infelizmente, não mais de
uma semana após sua partida, recebi uma
nota do marido desta família, com a terrível
notícia de que dois membros de sua própria
família haviam adoecido com uma desinteria
sangrenta553 e que meus próprios entes
queridos mostravam sinais da mesma
doença.
Solicitei licença imediata para ir cuidar de
minha família e (relutantemente) obtive uma
liberdade condicional temporária para esse
propósito. (O comandante da prisão,
valorizando meus serviços aos doentes, não
queria que eu fosse embora por muito
tempo.)
Eu cheguei a tempo de segurar minha filha
nas horas finais de sua vida. Agradeço a
Deus por esse presente e pelo presente que
ela foi para seus pais.
Dorothea estava gravemente doente, mas foi
poupada pela misericórdia de Deus. Ela
ainda está viva, mas está profundamente
oprimida tanto no corpo quanto na mente –
e ainda havia muita doença na cidade. Eu
não poderia deixá-la.

553
Mesmo nos dias de hoje, em caso de disenteria sanguinolenta, medidas médicas devem ser tomadas de
imediato. Nessa época, sem grandes conhecimentos do funcionamento de contaminação por bactérias ou
amebas, as perspectivas eram limitadas.
1270

Eu conheço o seu senso de honra militar,


mas os Amigos não consideram as leis do
homem acima das de Deus. Enterrei minha
filha e depois rompi minha condicional,
levando Dorothea para um lugar de maior
segurança, onde eu poderia, com a bondade
de Deus, tentar curá-la.
Não me atrevo a escrever o nome do lugar
onde estamos, com medo de que esta missiva
seja interceptada. Não tenho ideia da pena
que sofrerei por quebrar minha liberdade
condicional se for capturado – nem me
importo – mas se for preso, enforcado ou
baleado, Dorothea ficará sozinha e ela não
está em condições de ser deixada sozinha.
Eu conheço o teu amor por ela e, portanto,
confio que enviarás toda a ajuda possível.
Tenho um amigo que sabe de paradeiro dela
e tem sido de grande ajuda para nós. Teu
irmão, eu acho, vai discernir seu nome e
localização.
Denzell Hunter

John largou a carta como se estivesse pegando fogo.


"Oh, Jesus. Hal…"
Seu irmão havia se levantado da mesa e cambaleava, o rosto
inexpressivo de choque e com o mesmo branco encardido e
amarrotado da carta.
John agarrou seu irmão, segurando-o o mais forte que pôde. Hal
se sentia como um manequim de alfaiate em seus braços, exceto
1271

por um tremor profundo que pareceu passar por ele em ondas


longas e sincopadas.
"Não", Hal sussurrou, e seus braços se apertaram ao redor dos
ombros de John com uma força repentina e convulsiva. "Não!"
"Eu sei", John sussurrou. "Eu sei." Ele esfregou as costas do
irmão, sentindo as omoplatas ossudas sob o tecido vermelho,
repetindo: "Eu sei", em intervalos, enquanto Hal estremecia e
tentava recuperar o fôlego.
"Shh", disse John, balançando-se lentamente de um pé para o
outro, levando consigo o peso relutante de seu irmão. Ele não
esperava que Hal se calasse, é claro; foi apenas a única coisa
vagamente reconfortante que ele conseguiu pensar em dizer. A
próxima coisa natural seria dizer: "Vai ficar tudo bem", mas,
naturalmente, nunca ficaria.
Ele já tinha estado nessa posição antes, pensou vagamente. Não
em um escritório bagunçado; tinha sido na sala de uma velha casa
em Havana, um anjo pintado com asas abertas desbotando na
parede de gesso, que assistia com compaixão enquanto ele
segurava sua mãe e ela chorava pela morte de sua prima Olivia e
de sua filha pequena.554
Sua garganta tinha um nó do tamanho de uma bola de golfe, mas
ele não podia ceder agora, como não cedera em Havana.
Hal estava começando a ofegar de verdade; John podia ouvir o
suspiro de sua respiração inalada, o leve assobio quando saiu.
"Sente-se", disse John, e o conduziu até uma cadeira. "Você tem
que parar agora. Continue assim e você não será capaz de respirar
e eu não sei o que fazer sobre isso. Então você simplesmente tem
que parar", ele acrescentou com firmeza.
Hal se sentou, os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça entre

554
Fatos ocorridos em Sitiados.
1272

as mãos. Ele ainda estava tremendo, mas o primeiro choque da


dor havia passado, e John o ouviu soltar a respiração e puxá-la
para dentro de uma forma rítmica e medida que devia ser a técnica
que Claire Fraser lhe ensinara para não morrer de asma. John
estava – não pela primeira vez em seu relacionamento em comum
– grato a ela.
Ele puxou outra cadeira e sentou-se, sentindo como se suas
próprias entranhas tivessem sido arrancadas. Por alguns
segundos, ele não conseguiu pensar. Sobre qualquer coisa. Sua
mente estava completamente em branco. Ele estava olhando além
de Hal para uma pequena mesa, no entanto, e sobre ela estava
uma garrafa de alguma coisa. Ele se levantou e pegou a garrafa,
puxou a rolha com os dentes e deu um gole no conteúdo, sem se
importar com o que era.
Era vinho. Ele engoliu, respirou, então pegou a mão de Hal e
envolveu a garrafa.
"Dottie está viva", disse ele, e se sentou. "Lembre-se, ela está
viva."
"Ela está?", Hal disse, entre respirações. "Ela estava – está –
doente. Muito doente. Ele disse isso."
"Hunter é um médico e um bom médico", disse John com
firmeza. "Ele não vai deixá-la morrer."
"Ele deixou minha neta morrer", disse Hal apaixonadamente,
esquecendo-se de respirar. Ele tossiu e engasgou, sua mão
apertada embranquecendo no gargalo da garrafa de vinho.
"A criança era filha dele", disse John, pegando-a dele. "Ele não a
deixou morrer. Pessoas morrem, e você sabe disso. Pare de falar
e respire, sim? "
"Eu sei... melhor... do que qualquer..." Hal conseguiu dizer, e
sucumbiu a um acesso de tosse. Uma mecha de cabelo se soltou
1273

e alguns fios grudaram em seu rosto. Os cabelos escuros estavam


raiados de branco; John não sabia dizer quanto disso era pó.
Hal sabia, é claro. Seu primeiro filho morrera ao nascer, junto
com sua mãe. Isso acontecera muitos anos atrás, mas essas coisas
nunca iam embora completamente.
"Respire", disse John bruscamente. "Temos que buscar Dottie,
não é? Não posso encontrá-la e, em seguida, a primeira coisa que
disser a ela é que você está morto."
Hal fez um som que não era uma risada, mas poderia ter sido se
ele tivesse mais fôlego. Ele franziu os lábios e soprou, embora o
ar resultante fosse apenas um fio. Então seu peito relaxou; não
era mais do que uma fração, mas era visível, e John respirou
fundo por conta própria. Hal estendeu a mão em direção à carta
sobre a mesa e John a pegou para ele.
Ele a pegou e a alisou com cuidado, sobre a mesa.
"Por que... ele, porra, ... não escreveu a maldita... data?" Hal
exigiu, endireitando-se e passando a mão rudemente pelo rosto.
"Não temos... ideia de quanto tempo... se passou desde que
aconteceu. Dottie pode estar morta bem agora!"
John se absteve de apontar que, se fosse esse o caso, o fato de Hal
saber a data da carta de Hunter não faria diferença. Não era um
momento para lógica.
"Bem, precisamos ir buscá-la de qualquer maneira, não é?"
"Sim, e já!" Hal se virou ao redor, ofegando ruidosamente e
olhando ferozmente para as coisas no entorno, como se desafiasse
qualquer uma delas a ficar em seu caminho.
Talvez apenas um pouco de lógica...
"Não sei o que o exército faria com Hunter se o pegassem", disse
John. "Mas eu sei muito bem o que eles fariam com você, se você
for. E você também sabe", ele adicionou desnecessariamente.
1274

Hal se controlou. Ele olhou para a carta, a boca apertada e olhos


úmidos queimando, então olhou para John. Ele franziu, soprou e
engasgou, "Bem, o que ele quis dizer... que você pode discernir
o... nome do amigo? Por que você?"
"Eu não sei. Deixe-me ver de novo." Ele pegou a carta,
delicadamente, sentindo o peso da tristeza que ela carregava. Ele
tinha visto cartas manchadas de lágrimas o suficiente – às vezes
suas próprias lágrimas – para saber a profundidade da angústia de
Hunter.
Ele tinha uma boa ideia do que Hunter queria dizer com
"discernir". O homem tinha viajado na companhia de Jamie
Fraser, ele sabia disso – e ele sabia que Fraser tinha sido um
espião jacobita em Paris, entre outras coisas. A palavra "espião"
deu-lhe um eco perturbador de Percy, mas ele o empurrou de
lado, segurando o papel contra a luz, para o caso de haver uma
escrita secreta em vinagre ou leite – às vezes você podia ver a
ligeira diferença no reflexo da superfície do papel, mesmo que as
palavras só aparecessem quando aquecidas.
Era mais simples do que isso. Havia palavras escritas no verso da
carta, escritas levemente com um lápis. Parecia um breve
parágrafo escrito em latim. As palavras eram de fato em latim,
mas encadeadas sem significado. Até Hal poderia ter reconhecido
isso como uma mensagem codificada, embora ele não soubesse o
que fazer com ela.
Ele sorriu um pouco, apesar da gravidade da situação. Era uma
cifra, com "amigo" como chave.
Cinco minutos de trabalho deram-lhe o nome: um tal sr.
Elmsworth, em Wilkins Corner, Virginia.
"Vamos enviar William", disse ele a Hal, com o máximo de
confiança que conseguiu. "Não se preocupe. Ele vai trazê-la de
volta. "
1275

-.-.-

WILLIAM sentiu como se tivesse sido atingido no peito por uma


bala de canhão. Sua boca abria e fechava – ele podia sentir isso,
automaticamente como as mandíbulas de madeira de uma
marionete – mas nada saiu por um momento.
"Isso é muito terrível", ele conseguiu dizer finalmente, em um
grasnido estrangulado. "Sente-se, Papa. Você vai cair."
Seu pai parecia como se alguém tivesse cortado seus cordões.
Branco e paralisado; e sua mão tremia quando William colocou
um copo de conhaque nela. Ele olhou em volta dentro do pequeno
abrigo, quase um galpão, que William dividia com John
Cinnamon como se nunca o tivesse visto antes, então se sentou e
bebeu o conhaque.
"Bem", disse ele, tossiu e pigarreou. "Bem."
"Não muito bem", disse William, olhando para ele. "Como está o
tio Hal?"
Sua própria sensação de choque estava começando a diminuir,
embora ainda houvesse um peso de ferro em seu peito.
"Como se poderia esperar", seu pai disse, e respirou fundo na
atmosfera úmida. "Fora de controle", acrescentou ele com mais
clareza, depois de dar outro grande gole. "Querendo ir ele próprio
buscar Dottie. Não que eu o culpe." Ele tomou outro gole. "Eu
quero fazer isso também. Mas duvido que sir Henry veja as coisas
dessa forma. A guerra, você sabe."
A guerra, de fato. Metade do regimento deveria se mover na
terça-feira, para se juntar às tropas de Clinton em Charles Town.
O peso havia mudado para baixo em seu corpo e ele podia respirar
agora.
1276

"Eu irei, é claro", disse William, e em um tom mais suave,


acrescentou: "Não se preocupe, papai. Eu vou trazê-la de volta."
1277

99

ISAÍAS 6:8555

"EU SINTO MUITO MESMO", ROGER DISSE por fim. "Eu


precisei…"
"Está tudo bem", disse ela, mantendo a voz firme. "Você voltou.
Isso é tudo que importa."
"Bem, talvez não seja tudo o que importa", disse ele, o fantasma
da risada em sua voz. "Não como desde o café da manhã de ontem
e estou com cheiro de uma fogueira de lixo."
Seu estômago roncou alto em concordância e ela riu, soltando-se
dele.
"Vamos", ela disse, voltando-se para seu cavalo. "Quando
chegarmos em casa, é só dizer oi para as crianças e se lavar. Vou
dizer a Henrike que precisamos de comida..."
"Muita comida."
"...muita comida. Vamos!"
Ela encontrou Henrike e Angelina na cozinha com a cozinheira,
zumbindo animadamente. Elas se lançaram sobre Brianna no
mesmo momento, com os olhos arregalados e cheios de
perguntas. O sr. MacKenzie tinha visto a batalha? Ele foi ferido?
O que ele disse sobre a luta? Ele tinha visto o general Prévost lá,
ou lorde John?
Ela se sentiu como se Angelina tivesse dado lhe um soco no

555
Referência Bíblica, a passgem completa será citada no capítulo.
1278

estômago. Ela sabia que lorde John tinha estado na batalha, com
seu irmão. Ela simplesmente não tinha pensado o que isso
significava. Claro que eles lutaram. Mesmo que nenhum dos
Greys tivesse disparado uma arma ou uma espada, eles sem
dúvida deram ordens, ajudaram a acender o pavio que explodiu e
matou os americanos cercados.
Ela ouviu a voz de lorde John na memória, leve e reconfortante:
"Nós somos o Exército de Sua Majestade. Nós sabemos fazer esse
tipo de coisa."
Todo o sangue havia sumido de seu rosto e ela se sentia fria e
úmida. Não havia ocorrido a ela que eles pensariam que Roger
tinha estado com o Exército Britânico. Mas é claro que eles
pensariam isso.
Não havia ocorrido a ela que homens que ela conhecia, gostava e
admirava haviam matado outros homens por quem ela sentia o
mesmo, apenas alguns dias atrás. Ela sentiu o frio, a escuridão
fedorenta da tenda onde Casimir Pulaski jazia morto à luz da
lanterna, e sua mão direita cerrada, sentindo os músculos
doloridos e a película de suor entre o lápis e sua pele enquanto
ela desenhava durante a noite, capturando tristeza, dor, raiva, e
amor quando os soldados vieram se despedir.
Pozegnanie.
Ela conseguiu pedir que mandassem comida, que alguém
preparasse um banho para Roger, e subiu para o seu quarto,
colocando cada pé cuidadosamente nos degraus ao subir as
escadas. As roupas descartadas de Roger estavam no chão perto
da janela, e o cheiro acre de guerra pairava no ar.
Cautelosamente, ela recolheu os restos do conjunto preto de
Roger. Estava imundo, o casaco e as calças sujos de lama dos
ombros aos joelhos, e areia cinza peneirada das abas quando ela
o sacudiu. Havia uma grande mancha áspera no peito do casaco
1279

onde algo havia secado, quase da mesma cor do pano preto, mas
quando ela o enxugou com um pano úmido, o pano saiu vermelho
e com um leve cheiro de carne e sangue.
Havia algo pequeno e duro no bolso do peito. Ela enfiou um dedo
lá dentro e retirou um caroço amarronzado que provou ser um
dente, rachado, cariado e com metade da raiz faltando.
Com uma pequena bufada de desgosto, ela o colocou sobre a
mesa e voltou para o casaco - havia algo mais no bolso, algum
tipo de papel.
Era uma nota pequena, dobrada uma vez e colada com o sangue
que havia saturado o casaco, mas o sangue havia secado e ela foi
capaz de separar as dobras por meio de uma intromissão delicada,
descamando o sangue com a lâmina de seu canivete.
Ela não deveria ter ficado surpresa; ela sentiu o cheiro da fumaça
da pólvora quando o abraçou. O de sangue veio muito mais
direto, entretanto. Ele não apenas esteve perto da batalha, ele
esteve nela, e ela não tinha certeza se estava mais brava ou mais
assustada com o pensamento.
"O que há de errado com você?", ela murmurou baixinho. "Por
que, pelo amor de Deus?"
Ela tinha o papel meio aberto –o suficiente para ver seu próprio
nome. Com muito cuidado, ela quebrou o resto do sangue seco e
espalhou o papel manchado e amassado sobre a mesa.

Querida Bree,
Eu sinto muito. Eu não queria estar
aqui, mas tenho a forte sensação de que
aqui é onde eu deveria estar. Não era
muito "Quem devo enviar? Quem deve ir
por nós?" –, mas algo próximo, e assim
1280

foi a minha resposta.


Lentamente, ela se sentou na cama, com sua colcha limpa e
segura e travesseiros imaculados, e leu novamente. Ela ficou
sentada por alguns minutos, respirando lenta e profundamente,
acalmando-se.
Ela não era de forma alguma uma estudiosa da Bíblia, mas
conhecia essa passagem; aparecia pelo menos uma vez por ano
nas leituras da missa, e o jovem padre que ensinava religião em
sua escola a usava para falar com os alunos da oitava série sobre
vocações.
Era de Isaías, a história em que o profeta é despertado do sono
por um anjo, que leva aos seus lábios uma brasa quente para
purificá-lo, para torná-lo capaz de falar a palavra de Deus. Ela
pensou que sabia o que viria a seguir, mas se levantou e caminhou
pelo corredor silencioso até a biblioteca, onde sabia que tinha
visto uma Bíblia nas prateleiras. Estava lá, um belo livro
encadernado em couro preto fresco, e ela se sentou e encontrou o
que estava procurando sem problemas.
Isaías, capítulo 6, versículo 8:
Então ouvi a voz do Senhor, conclamando:
"Quem enviarei? Quem irá por nós?" E eu
respondi: "Eis-me aqui. Envia-me!"

Ela podia sentir seus lábios se movendo, repetindo "envia-me",


mas eles se moveram silenciosamente e as palavras soaram
apenas em seus próprios ouvidos.
Envia-me.
Ela se sentou, o livro aberto pesando em seu joelho. Suas mãos
suavam, mas seus dedos estavam frios e ela se atrapalhou,
virando a página.
1281

Então eu perguntei: Até quando, Senhor?


E ele respondeu: Até que as cidades estejam
em ruínas e sem habitantes, até que as casas
fiquem abandonadas e os campos estejam
totalmente devastados556

"Jesus Cristo", ela sussurrou. Roger tinha ouvido aquele chamado


e atendeu. Ela engoliu em seco, sentindo o nó na garganta.
"Você é tão idiota", ela sussurrou, mas ela falava com ela mesma,
não com ele. Ela disse a ele que faria tudo o que pudesse para
ajudá-lo, se ele tivesse certeza de que ser ministro era realmente
sua vocação. Ela tinha sido educada por padres e freiras; ela sabia
o que era uma vocação. Só que ela não sabia, realmente.
Eu sinto muito, ele escreveu na mensagem para ela.
"Não, eu sinto muito", disse ela em voz alta e, fechando o livro,
sentou-se por alguns minutos, olhando para o fogo. A casa estava
quieta ao seu redor, envolvida naquela hora de paz antes de
começarem os preparativos para o jantar.
Ela havia imaginado Roger fazendo o que havia feito antes, na
Cordilheira, embora mais oficialmente: ouvir pessoas que
precisavam de alguém para ouvi-los, aconselhar os perturbados,
confortar os moribundos, batizar crianças, casar as pessoas e
enterrá-las... mas ela não tinha imaginado ele confortando
homens morrendo em um campo de batalha, no meio de tiros de
canhão, nem enterrando-os depois e voltando para casa
ensanguentado, com os dentes quebrados de um estranho no
bolso. Mas algo o chamou, e ele respondeu a isso.
E ele, graças a Deus, voltou para ela. Veio necessitando dela. Ela

556
Isaías 6:11
1282

soltou um suspiro longo e lento e, levantando-se, começou a


colocar a Bíblia de volta no lugar.
Quem enviarei? Quem irá por nós?
"Bem, essa é uma pergunta retórica", disse ela. "Não há ninguém
mais que possa fazer isso por ele, não é?" Ela respirou fundo e o
ar puro do mar entrou pela janela aberta.
"Envia-me."
1283

100

O PODER DA CARNE
Savannah

O CERCO FOI LEVANTADO, a cidade praticamente intocada


pela batalha, exceto por buracos de bala de canhão e pequenos
incêndios nas casas mais próximas aos combates. Savannah era
uma cidade graciosa, e sua graça era ainda evidente, pois as
pessoas retomaram suas vidas com muito pouco barulho.
John Grey pegou o lenço que a sra. Fleury acabara de deixar cair
pela segunda vez e o devolveu, novamente com uma reverência.
Ele não achava que era flerte – se fosse, ela era muito ruim nisso.
Ela também era um bom quarto de século mais velha e, embora
ainda tivesse olhos e língua afiados, ele notou como a colher
chacoalhou em seu pires quando ela pegou sua xícara de chá no
início da tarde.
Suas mãos podiam estar trêmulas, porém, sua mente não estava.
"Aquela garota", disse ela, franzindo os lábios em direção a
Amaranthus, que estava do outro lado da sala, conversando com
um jovem que ele não conhecia. "Quem é ela?"
"É a viscondessa Grey, senhora", Grey disse cortesmente. "Nora
do meu irmão."
Os olhos ligeiramente vermelhos da sra. Fleury se estreitaram em
uma inspeção mais próxima. "Onde está o marido dela?"
Grey sentiu a habitual onda de emoção em suas entranhas ao
mencionar Ben, mas respondeu suavemente.
"Meu sobrinho teve a infelicidade de ser capturado pelos rebeldes
em Brandywine, senhora. Recebemos poucas notícias dele desde
1284

então, mas esperamos que ele volte logo para nós." Mesmo se
estiver em um caixão... Hal não aguentaria muito mais incertezas
– e ele teria que escrever para Minnie em breve.
"Hmph." A velha senhora ergueu seus óculos de aumento
interrogativamente – sim, definitivamente havia tremores nas
mãos; ele podia ver a corrente tremendo contra seu seio – e lançou
a Amaranthus um olhar feroz através dela.
"Aquela jovem não parece agir como se estivesse sofrendo por
ele, não é?"
Francamente, ela não parecia, mas Grey não queria discutir sobre
sua sobrinha-por-afinidade com a sra. Fleury, que aproveitava a
viuvez e era obviamente uma fofoqueira talentosa.
"Ela suporta corajosamente", disse ele. "Permita-me buscar outra
xícara de chá, senhora."
Enquanto cumpria essa missão, ele planejou passar a uma
distância de saudação de Amaranthus e William, que estavam
conversando sob um grande retrato do falecido sr. Fleury, de
peruca e vestido de veludo cor de ameixa. Esta boa impressão de
um comerciante de sucesso tinha sido ligeiramente prejudicada
pelo esforço do artista em adicionar uma pança próspera a uma
figura esguia; a alteração exigiu um ajuste apressado na postura
do sr. Fleury, repintura descuidada fazendo com que parecesse
que o cavalheiro possuía uma terceira perna fantasmagórica, que
pairava incerta atrás da orelha esquerda de William.
Não havia nenhuma impropriedade em suas poses, mas ele estava
fortemente ciente de uma atmosfera carregada entre eles. Era
visível no esforço que faziam para não se tocarem.
Quando Grey se aproximou deles, Amaranthus aceitava um prato
de bolo de William com tal delicadeza de toque que ele poderia
ter acabado de cair em uma privada, enquanto William tinha nos
olhos um sorriso com uma expressão que qualquer pessoa que o
1285

conhecesse poderia ter lido, e que Amaranthus certamente lia.


Jesus Cristo. Certamente eles não ... talvez não, mas eles estão
pensando sobre isso. Ambos.
Isso era perturbador em vários níveis. Ele gostava bastante de
Amaranthus, para começar. E, como padrasto de William, ele
gostaria de pensar que o menino tinha sido criado bem o
suficiente para não ser capaz de fazer avanços de sedução para
uma mulher casada, muito menos para a esposa de seu próprio
primo.
Mas ele conhecia muito bem o poder da carne. Forte o suficiente
para ser visível para a sra. Fleury, de qualquer maneira.
"John", disse uma voz suave atrás dele, e ele enrijeceu.
"Perseverance", disse Grey, balançando a cabeça quando seu
antigo irmão adotivo apareceu ao lado dele, sorrindo. "Nunca um
homem foi tão bem nomeado."
"Você está parecendo bem, John", disse Percy, ignorando a
provocação. "Veludo azul sempre combina com você. Você se
lembra dos ternos que usamos no casamento de nossos pais?" O
sorriso era real, profundo naqueles olhos castanhos suaves, e
Grey ficou surpreso e irritado ao senti-lo correr direto por sua
espinha e apertar suas bolas.
Sim, ele se lembrava daquele casamento557 e daqueles ternos. E
– como Percy tão claramente pretendia – ele se lembrou de estar
ao lado de Percy na igreja enquanto sua mãe se casava com o
padrasto de Percy, sua mão e a de Percy se tocando, escondidas
sob as abas do veludo azul royal, os dedos se entrelaçando
lentamente, o toque de uma promessa. Uma promessa que Percy
tinha quebrado, porra.
"O que você quer, Perseverance?", ele perguntou sem rodeios.

557
Irmandade cap 17.
1286

"Oh, um monte de coisas", Percy respondeu, o sorriso agora


alcançando seus lábios. "Mas principalmente ... quero falar com
Fergus Fraser."
"Você já falou", disse Grey, colocando seu copo meio vazio na
bandeja de um criado que passava. "Em Coryell. Eu ouvi você. E
eu ouvi... ele", acrescentou. "Ele não estava querendo nada com
você na época, e eu duvido que ele tenha mudado de ideia. Além
disso, o que diabos você acha que eu poderia fazer sobre isso,
mesmo se eu quisesse?"
O sorriso de Percy permaneceu, mas seus olhos se enrugaram de
uma forma que indicava que ele considerava a resposta de Grey
engraçada.
"Tive o prazer de conhecer seu filho no verão, no almoço da sra.
Prévost."
Não. Pelo amor de Deus, não.
"E embora eu realmente tenha encontrado o sr. Fergus Fraser de
novo, brevemente, em Charles Town, pouco tempo atrás, eu
também tive o privilégio de ver o general Fraser de perto durante
o pourparlers558 antes de Monmouth."
"E daí?" Grey manteve seu próprio sorriso fixo suavemente no
lugar, embora estivesse bem ciente de que Percy podia ler em
seus olhos o que ele estava pensando.
Percy piscou, tossiu uma vez e desviou o olhar, fixando-o na
perna fantasma do sr. Fleury.
"Cai fora, Percy", disse Grey, sem ser indelicado, e foi buscar o
chá da sra. Fleury.
A sensação de calor e leve excitação sexual permaneceu com ele,
no entanto, junto com uma sensação estimulante e perturbadora
dos olhos de Percy nas costas dele. Passaram-se muitos anos

558
Conversas, em francês.
1287

desde que ele sentira o toque de Percy, mas ele se lembrava disso.
Vividamente.
Ele afastou o sentimento com firmeza. Não era provável que ele
sucumbisse aos encantos físicos de Percy, nem ainda à sua
chantagem desajeitada. E se Percy decidisse sair por aí dizendo
ao mundo que achava a semelhança de William com um general
rebelde escocês bastante impressionante? Isso poderia estimular
a fofoca por um breve período, mas William havia deixado o
exército e havia permanecido conde. Sua posição realmente não
poderia estar em perigo. Tudo o que William precisaria fazer,
caso alguma pergunta fosse feita a ele, era dar ao consulente um
olhar frio e ignorá-los.
Ele teria que descobrir o que Percy estava fazendo e por quê. Um
fio de calor desceu por suas costas novamente, como se alguém
tivesse derramado café quente em sua nuca.
Do outro lado da sala, ele viu o dedo indicador de Amaranthus
esticando-se para pousar suavemente no peito de William,
apontando algo óbvio.

-.-.-

O DEDO DELA pousou – por pouco tempo – no maior dos


besouros de seu colete, um monstro de cinco centímetros de seda
amarelo brilhante com chifres de pontas pretas. E, claro,
pequenos olhos vermelhos.
"Dynastes tityus559", disse ela, com aprovação. "O besouro-
Hércules-do-leste."
"Mesmo?" William disse, rindo. "Dynastes tityus significa, se não

559
Besouro-unicórnio, entre diversos outros nomes: um dos mairoes besouros do mundo, chegando a
medir 26 centímetros.
1288

me engano, rebelde Titã. Hércules não era um titã? "


"Um titã, não era?" Amaranthus inclinou a cabeça, levantando
uma sobrancelha. Suas sobrancelhas eram suaves, mas bem
marcadas, de um loiro mais escuro que seus cabelos.
"Sim. Talvez seja isso que a pessoa que deu o nome a essa coisa
quis dizer, mas por que se rebelar? Este sujeito é conhecido por
ser rebelde?" Ele olhou para baixo para seu peito – e para o dedo
indicador longo e fino de Amaranthus. A aliança de casamento
dela brilhou no quarto dedo, e ele respirou fundo, o que fez o dedo
indicador dela afundar ligeiramente na seda ocre. Ela sorriu para
ele e lentamente retirou o dedo.
"Quanto ao besouro, eu não sei. Mas você é, não é?"
"Eu? O que você quer dizer?"
"Quero dizer que você não pretende viver sua vida para agradar
às expectativas de outras pessoas, não é?"
Isso foi muito mais direto do que ele esperava, mas na verdade,
ela era surpreendentemente direta.
"As suas expectativas?", ele perguntou.
"Oh, não", disse ela, com um sorriso. "Não espero nada, William.
De você ou de qualquer outra pessoa." Ela parou por um instante
e seus olhos se fixaram nos dele. Eles estavam cinza agora que
ela usava cetim violeta, e translúcidos como a chuva em uma
vidraça. "A menos que você se refira à modesta proposta que lhe
fiz?"
Apesar da luta interna acontecendo dentro dele, ele sorriu com a
referência dela a Jonathan Swift560 – embora, na verdade, sua
própria proposta tenha sido quase tão chocante quanto o ensaio
satírico de Swift defendendo o canibalismo infantil como um
560
“A Modest Proposal” (1729), nome encurtado de um panfleto satírico de Jonathan Swift. A obra tornou-
se hoje uma das referência da sátira e a frase corrente "uma modesta proposta" (comum em inglês) provém
dela.
1289

remédio para a pobreza.


"Isso era o que eu tinha em mente, sim."
"Fico feliz em saber que você está considerando isso", disse ela,
e embora as covinhas tivessem deixado sua bochecha junto com
o sorriso, este era claramente audível em sua voz.
Ele abriu a boca para negar que estivesse fazendo tal coisa – mas
embora tivesse se recusado firmemente a pensar sobre a sugestão
ultrajante dela, ele estava ciente de que seu corpo já havia
realizado suas considerações e estava fazendo suas conclusões
igualmente firmes se tornarem conhecidas por ele.
Ele tossiu e olhou casualmente ao redor da sala. Papai estava
conversando com o diplomata francês e não olhando em sua
direção, graças a Deus.
"Bem." Ele limpou a garganta e cruzou as mãos atrás das costas.
"Não sei se consideração é a palavra certa, precisamente, mas o
assunto é irrelevante no momento. Eu vim esta tarde para ver
você..."
"De fato?" Ela parecia satisfeita.
"Para lhe dizer que vou embora de manhã e não sei quanto tempo
pode demorar até eu voltar."
Ela parou de parecer satisfeita e ele se arrependeu disso, mas não
havia nada a ser feito a respeito.
"Venha", disse ele, e tocou a mão dela, acenando com a cabeça
em direção às portas francesas, abertas para o jardim. "Eu vou lhe
dizer por quê."
Ela percebeu seu humor imediatamente e deu um leve aceno de
cabeça.
"Não juntos", disse ela. "Eu vou primeiro. Vá tomar uma bebida,
depois saia pela porta da frente e dê uma volta."
1290

-.-.-

ELE A ENCONTROU, afinal, na outra extremidade do enorme


jardim da sra. Fleury, contemplando uma pequena gruta, na qual
um putto561 de pedra urinava em um sapo que estava sentado no
meio de uma bacia de pedra esculpida, seus olhos redondos
brilhando negros sob o riacho.
"É um sapo de verdade", ela comentou, olhando brevemente para
ele antes de voltar sua atenção para o anfíbio em questão. "Algum
tipo de Scaphiopus. Eles vivem principalmente no subsolo, mas
gostam de água."
"Obviamente", disse William, mas não estava deixando que ela o
distraísse e, sem delongas, contou a ela sobre a carta que Denzell
Hunter havia enviado ao tio Hal. Ela ficou branca e puxou a capa
bem junto ao corpo, como se tivesse um frio súbito.
"Ah não. Não. Oh, pobre mulher!" Para sua surpresa, os olhos
dela estavam cheios de lágrimas. Mas então ele se lembrou de
que ela também tinha um filho e deve ter imaginado a perda de
Trevor dessa maneira.
"Sim", disse ele, com um nó na garganta. "É muito terrível. Tio
Hal naturalmente quer Dottie aqui, onde ele pode cuidar dela,
certificando-se de que ela esteja segura. Então, eu vou buscá-la"
"Claro." A voz de Amaranthus estava estranhamente rouca e ela
pigarreou com um pequeno e preciso "hem", em seguida, soltou
sua capa, endireitando-se. "Estou feliz que sua prima será
restaurada para sua família – estar sozinha, com uma perda tão
terrível... Quanto tempo você acha que a viagem vai demorar?"
"Não sei", disse William. "Se tudo correr bem, talvez um mês,
seis semanas... Se não... doença, mau tempo, acidentes de
561
Putto (do italiano, menino) é um termo que, no campo das artes, se refere a pinturas ou esculturas de um
menino nu, geralmente gordinho e representado frequentemente com asas.
1291

viagem, movimentos de tropas..." Como de costume, ele sentiu


uma leve pontada ao pensar no exército e a sensação do constante
propósito que incorporava. "Pode demorar mais."
Amaranthus acenou com a cabeça. O sapo de repente inflou sua
garganta e soltou um enorme e ressonante whonk! Ele repetiu este
grito várias vezes, com William e Amaranthus observando-o
espantados, depois lançou a eles um olhar acusador e arrastou-se
para fora da bacia e para longe, sob a folhagem de alguma coisa
verde.
Amaranthus deu uma risadinha e William sorriu, encantado com
o som. A tensão entre eles havia se dissipado, e ele estendeu a
mão para puxar a capa de volta ao redor dos ombros dela, muito
naturalmente. Com a mesma naturalidade, ela deu um passo e
entrou em seus braços, e ninguém poderia dizer, então ou depois,
de quem foi a ideia do beijo, nem o que se seguiu.
1292

101

NA ESTRADA NOVAMENTE

JOHN CINNAMON COLOCOU OS ALFORJES de William


sobre a égua, então a examinou cuidadosamente, circulando-a
com os olhos semicerrados, tentando agarrar seu pé, tentando
apertar a cilha (e afrouxando-a no processo) e, no geral, irritando
a montaria. Cinnamon ficou um tanto constrangido por ter sido
resgatado da marinha de Saint-Domingue e estava tendo um
cuidado especial para não ser um incômodo desde aquela
aventura.
"Ela é uma boa moça, mas provavelmente vai chutá-lo se você
não parar de importuná-la." William achava graça, mas também
se emocionava com a solicitude desajeitada de Cinnamon. Ele
sabia que John Cinnamon queria ir com ele – provavelmente não
confiando em William para lidar com a tarefa de resgatar Dottie
sozinho sem ser preso, enforcado por acidente ou morto por
salteadores de estrada – mas não o suficiente para partir antes que
seu retrato fosse concluído.
"Vai ficar tudo bem", disse ele, batendo no ombro de Cinnamon
e se curvando para reapertar a cilha. "Será quase inverno quando
eu chegar à Virgínia. Os exércitos não lutam no inverno. Eu
estive no exército; eu sei."
"Sim, imbécile", Cinnamon respondeu suavemente, "eu sei. Você
não me disse que da última vez que esteve no exército, foi
atingido na cabeça por um desertor alemão e jogado em uma
ravina, onde quase morreu e teve de ser resgatado por seu primo
escocês que você odeia?"
"Eu não odeio Ian Murray", disse William, com alguma frieza.
1293

"Eu devo minha vida a ele, afinal."


"É por isso que você o odeia", Cinnamon disse, com naturalidade,
e entregou a William sua melhor faca, com a bainha de contas.
"Isso, e você quer a esposa dele. Não me diga que vai ficar tudo
bem. Eu vi em que tipo de problema você se mete quando está
comigo. Vou acender uma vela para a Santíssima Virgem todos
os dias até que você volte com sua prima."
"Merci beaucoup", disse William, com elaborado sarcasmo.
"Você não tem muito dinheiro para velas." Mas ele foi sincero no
agradecimento, e Cinnamon sorriu para ele.
"Você tem uma capa boa e grossa? E roupas de baixo de lã para
manter suas bolas aquecidas?"
"Você cuida das suas próprias bolas", William o aconselhou,
colocando o pé no estribo. "Cuide-se e faça o que minha irmã
mandar."
Cinnamon arregalou os olhos e fez o sinal da cruz.
"Você acha que eu ousaria fazer o contrário?", ele disse. "Essa é
uma mulher temível. Linda", acrescentou ele pensativo, "mas
grande e perigosa. Além disso, quero que meu retrato se pareça
comigo. Se eu a deixasse com raiva..." Ele fez uma careta,
entortando os olhos e colocando a língua no canto da boca.
William riu e, enfiando a faca no cinto, deu um tapinha e pegou
as rédeas.
"Será bem feito pra você, gonze. Adieu!"
Cinnamon balançou a cabeça, de um lado para o outro.
"Au revoir", corrigiu ele sobriamente. "Et bon voyage!"
1294

102

OS VENTOS DO INVERNO

EXCETO POR ALGUNS AGUACEIROS e um dia inteiro de


chuva forte, o tempo manteve-se firme e as estradas não estavam
más. Quanto aos exércitos, entretanto...
Seu trabalho era recuperar Dottie e trazê-la para casa. Ninguém
havia mencionado seu marido, que provavelmente ainda era um
prisioneiro de guerra fugitivo. Certo, Denzell Hunter poderia
estar com Dottie na Virgínia, mas se ele não estivesse... Ele
conhecia bem sua prima; ele conhecia Denzell Hunter bem
também e pensava que, assim que Dottie estivesse segura, Hunter
provavelmente retornaria ao Exército Continental, por uma
questão de crença pessoal e também por dever militar. O tio Hal
mostrou-lhe os despachos oficiais e disse-lhe o que o general
Prévost supunha estar realmente acontecendo, tanto no que se
referia às disposições das tropas britânicas como das americanas.
O inverno estava chegando e todas as hostilidades haviam
basicamente cessado no norte. Sir Henry Clinton estava à espreita
em New York desde Monmouth, e George Washington – de
acordo com os despachos de Hal, que seu tio achava
provavelmente precisos – ainda mantinha o corpo principal de
seus homens em alojamentos de inverno em New Jersey.
Um dos generais de Washington, entretanto – Lincoln, o homem
que montou o cerco malsucedido de Savannah – foi para o norte
com suas tropas e estava atualmente segurando a cidade de
Charles Town, e Clinton a queria.
"Então, de acordo com o último despacho, sir Henry pretendia
enviar cerca de quatorze mil soldados costa abaixo para tomar o
1295

lugar, uma vez que os sapos562 de D'Estaing deixassem New


York, mas ele se atrasou por precisar ir proteger Newport, que é
onde os sapos foram a seguir"
Tio Hal folheou a pequena pilha de despachos, espiando por entre
os óculos de meia-lua. "E então os malditos sapos aparecem aqui!
Você disse que achava que tinha visto o próprio D’Estaing? "
"Com meus próprios olhos", William assegurou a seu tio, que
bufou brevemente.
"E sabemos que Lincoln saiu daqui depois que o cerco falhou e
subiu para segurar Charles Town, o que coloca uma espécie de
obstáculo no caminho de Clinton", disse lorde John.
"Como o inverno está chegando, as intenções de sir Henry podem
ter sido adiadas pelo tempo – e pelo pequeno problema de abrigar
seus quatorze mil soldados, no caso de Benjamin Lincoln não
obedecer imediatamente, rendendo Charles Town. Sendo assim,
não tenho ideia do que você pode encontrar se passar por Charles
Town – ou em qualquer lugar perto dali – mas..."
"Mas seria muito mais rápido atravessar Charles Town do que
circular", William terminou, sorrindo. "Não se preocupe, tio Hal.
Vou chegar à Virgínia o mais rápido que puder."
O rosto do tio Hal, sombreado pelo cansaço e preocupação,
relaxou em um daqueles raros e charmosos sorrisos que faziam
você sentir como se tudo estivesse bem, porque certamente o
mundo não poderia resistir a ele.
"Eu sei que você vai, Willie", ele disse, com afeto. "Obrigado."
William, portanto, partiu em sua missão com um coração quente,
botas robustas, um bom cavalo e uma bolsa cheia de ouro, tio Hal
querendo garantir que não lhe faltasse nada ao transportar
Dorothea de volta para os braços de seu pai. Por acaso, tio Hal

562
Sapos era a maneira como se referiam aos franceses, por seu hábito de comer rãs.
1296

não mencionou nenhum papel para Denzell Hunter nessas


transações, mas lorde John acabou mencionando.
"Ele é um quacre, é claro", disse a William, em particular, "mas
também é um cirurgião do Exército Continental. E um prisioneiro
de guerra fugitivo – ele quebrou a liberdade condicional, diz ele.
Ele pode estar com Washington agora, o que significa que
provavelmente está em New Jersey. Se estiver, deixe-o lá e traga
Dottie de volta com você imediatamente, não importa o que ela
diga ou faça para você."
"Ela é uma quacre agora, não é?" William perguntou. "Ela não
fará nada violento."
Lorde John olhou para ele.
"De alguma forma, eu duvido que a convicção religiosa seja
suficiente para superar as tendências familiares de Dorothea para
a arrogância. Lembre-se de quem é o maldito pai dela."
"Humm", disse William evasivamente. Ele estava de fato se
lembrando que a última vez que disse a uma jovem mulher quacre
– a maldita irmã de Denzell Hunter, nada menos! – que ela não
iria bater nele, e ela deu um tapa em seu rosto. Ela também o
chamou de galo, o que o deixou bastante ressentido.
William não tinha pensado muito em Denzell durante a discussão
sobre o resgate de Dottie, mas se tivesse, teria chegado à mesma
conclusão que Papa e tio Hal. Ele iria, pensou ele, mandar uma
mensagem a Denzell sobre o paradeiro e bem-estar de Dottie,
pelo menos.
William estava se sentindo ao mesmo tempo ligeiramente
heroico, sentimental e magnânimo. Isso se devia em grande parte
aos seus sentimentos atuais em relação a Amaranthus, que eram
confusos, mas extremamente agradáveis. Metade dele desejava
com urgência ter aproveitado a casa de veraneio nos jardins da
sra. Fleury para realizar a primeira etapa do plano que
1297

Amaranthus havia sugerido a ele. A outra metade estava bastante


feliz por ele não ter feito isso.
Na verdade, ele não tinha feito, em grande parte por causa do
bebê de Dottie e da reação de Amaranthus à notícia de sua morte,
que abruptamente tornou a criança real para ele. Antes de ver as
lágrimas repentinas de Amaranthus, ele próprio sentiu a tristeza
da situação, mas era uma tristeza abstrata, com segurança distante
de si mesmo. Mas quando Amaranthus chorou pela criança, ele
foi atingido repentinamente – e dolorosamente – pela
compreensão de que ela, a pequena Minerva Joy, tinha sido uma
pessoa real, uma pessoa cuja morte feriu gravemente aqueles que
a amavam, por mais curto que tivesse sido esse tempo.
Foi a ternura gerada por esse pensamento, tanto quanto a luxúria,
que o fez tocar Amaranthus, e mergulhar naquele beijo.
Ele tocou os próprios lábios com as costas da mão. Um beijo tão
estranho e, de alguma forma, maravilhoso. Por aqueles poucos
momentos, quando seus lábios se encontraram e seus corpos se
apertaram, acendendo um ao outro no jardim úmido e frio, foi
como se alguma conexão tivesse sido forjada entre eles – como
se ele a conhecesse agora, de alguma forma além das palavras.
E ele queria muito conhecê-la muito mais – e ela a ele. A certa
altura, ele deslizou a mão pela longa coxa nua sob as saias dela,
segurou seu monte púbico na palma da mão e sentiu a plenitude,
a maciez dela, desejando-o. As pontas de seus dedos se
esfregaram quase inconscientemente contra a palma da mão,
formigando.
Ele engoliu em seco e tentou afastar as memórias de Amaranthus.
Pelo menos, por agora.
Mas a ternura permaneceu – e o pensamento do bebê. Foi por isso
que ele parou. Porque de repente lhe ocorreu que o que estava
fazendo poderia de fato causar o nascimento de alguém real.
1298

E que, de alguma forma, não era certo que ele obrigasse alguém
a assumir responsabilidades que eram – legitimamente ou não –
suas.
Mas se eu me casasse com ela e não fosse embora se ela
engravidasse... Seu filho – Deus, que pensamento, seu filho! –
ainda herdaria o título de Ellesmere e o de Dunsany, mas não até
que estivesse pronto para isso. Ele poderia preparar o menino,
mostrar a ele...
"Jesus." Ele balançou a cabeça violentamente, afastando os
pensamentos, ou tentando. A ideia era nova, assustadora – e
bastante emocionante, de certa forma. Ele a empurrou de lado,
sua mente voltando às memórias de Amaranthus e suas
sobrancelhas loiras e macias, a água escorrendo, a grama
pungente e os olhos negros brilhantes do sapo vigilante.
Ele mal percebeu os quilômetros passando sob os cascos de seu
cavalo e parou apenas quando a escuridão fez a estrada
desaparecer.
1299

103

VIRGINIA REEL563

ELE PAROU DURANTE A NOITE EM UM VILAREJO a cerca


de cinquenta quilômetros ao norte de Richmond. William sentiu
a atração do Monte Josiah: ele havia passado a poucos
quilômetros da estrada que levava até lá, e por alguns momentos
ele estava lá em espírito, sentado na varanda quebrada com
Manoke e John Cinnamon, comendo bagre frito e carne de porco
defumada na fogueira, o leve cheiro doce de tabaco flutuando na
brisa da noite.
Ele se perguntou brevemente se talvez devesse levar Dottie lá por
um tempo. O clima estava ficando mais frio e as chuvas mais
frequentes; uma mulher recentemente enlutada enfraquecida pela
doença certamente não deveria ser obrigada a cavalgar através de
tempestades e lama por semanas. E se Manoke ainda estivesse na
residência, ele e o índio poderiam facilmente consertar o
suficiente da casa para dar-lhes abrigo...
Não. Isso era uma fantasia, nascida de seu próprio desejo de
sentar quieto em sua varanda destruída e pensar sobre as coisas.
Ele precisava levar Dottie de volta para o tio Hal o mais rápido
possível, onde ela poderia ser cuidada, curada no seio de sua
família. E, disse uma vozinha traiçoeira no fundo de sua mente,
você pode querer ver Amaranthus novamente em breve.
"Isso também", ele disse em voz alta, e cutucou seu cavalo para

563
Nome de uma animada dança country, executada por uma série de casais frente a frente em duas linhas
paralelas, um tipo de dança de quadrilha.
1300

um passo mais rápido.


Ele tinha dinheiro suficiente para trazer Dottie de volta em uma
carruagem – mas isso presumindo que uma carruagem poderia
ser contratada. O povoado de Wilkins Corner ostentava três bois,
uma mula e um pequeno rebanho de cabras, além de um ou dois
porcos. Havia apenas quatro casas, e uma breve investigação de
uma mulher ordenhando uma cabra o enviou diretamente à porta
do Fear God Elmsworth.
Este cavalheiro provou estar na casa dos oitenta e bastante surdo,
mas sua esposa muito mais jovem – apenas uns sessenta, por aí –
foi capaz de gritar em seu ouvido a uma distância de cinco
centímetros para transmitir a ele a identidade e missão de
William.
"Dorothea, você disse?" O sr. Elmsworth ergueu uma
sobrancelha espessa para William. "O que ele quer com ela?"
"Eu... sou... primo... dela", disse William, inclinando-se para se
dirigir ao velho cavalheiro gritando.
"Primo? Primo?" O velho olhou para a esposa em busca de
confirmação dessa declaração improvável e, ao recebê-la,
balançou a cabeça, de um lado para o outro, duvidando. "Você
não se parece em nada com ela."
William se voltou para a esposa.
"Você poderia, por favor, dizer ao seu marido que o pai de
Dorothea é meu tio, e o irmão dele é meu padrasto?"
A mulher ouviu isso, mas ficou claramente perplexa com as
informações genealógicas, pois abriu a boca por um momento,
depois fechou-a, franzindo a testa.
"Não importa", disse William, mantendo a paciência. "Por favor,
apenas diga a Dorothea que estou aqui."
"Dorothea não está aqui", disse Elmsworth, de alguma forma
1301

entendendo isso. Ele parecia confuso e olhou para sua esposa.


"Ela está?"
"Não, ela não está", disse a sra. Elmsworth, parecendo intrigada
também.
William respirou fundo e decidiu que sacudir a sra. Elmsworth
até que sua cabeça zumbisse não seria o ato de um cavalheiro.
"Onde ela está?", ele perguntou, gentilmente. A sra. Elmsworth
pareceu surpresa.
"Ora, o irmão dela veio buscá-la, quase um mês atrás."

-.-.-

WILLIAM TINHA ASSENTIDO, numa resposta automática à


sra. Elmsworth, mas então realmente ouviu o que ela havia dito e
estremeceu como se tivesse sido picado por uma abelha.
"O irmão dela", ele repetiu cuidadosamente, e os dois idosos
concordaram. "O irmão dela. Qual era o nome dele?"
O sr. Elmsworth, que agora acendia seu cachimbo de argila de
cabo longo, tirou-o da boca por tempo suficiente para dizer:
"Eh?"
"Ele não sabe", disse a sra. Elmsworth, balançando a cabeça
tampada em desculpas. "Eu estava trabalhando no pomar quando
o homem chegou e, quando voltei, eles já tinham ido embora
juntos. Dorothea deixou um bilhete gentil, nos agradecendo por
cuidar dela, mas ela não disse nada sobre o nome nele, e meu
marido está muito surdo para entender o que eles diziam, além de
eles fazerem sinais para ele."
"Ah."
Era possível que o sr. Elmsworth tivesse entendido mal a situação
1302

inteiramente, refletiu William, mas era possível que tivesse sido


Henry. Quando viu Henry Grey pela última vez, o homem
morava na Filadélfia com sua senhoria negra, que pode ou não
ser viúva, se recuperando aos poucos de ter perdido uns 30
centímetros das tripas depois de levar um tiro no abdômen.
William supôs que Denzell poderia ter feito uma pausa na
Filadélfia a caminho de New Jersey e avisado Henry sobre a
presença de Dorothea, ou ter pedido a Henry para vir buscá-la –
ou então Henry decidiu fazer isso por conta própria.
No entanto, um pensamento repentino o atingiu e ele inflou os
pulmões, inclinou-se perto do ouvido peludo do sr. Elmsworth e
gritou: "Ele usava uniforme?"
O sr. Elmsworth deu um salto e largou o cachimbo, que
felizmente sua esposa pegou antes que se espatifasse no chão.
"Meu Deus, meu jovem", disse ele em reprovação. "Não é
educação gritar dentro de casa. Isso é o que sempre me ensinaram
quando era jovem."
"Peço desculpas, senhor", disse William, em um tom um pouco
mais baixo. "A sra. Hunter tem... dois irmãos, sabe. Eu me
perguntei qual deles poderia ser."
Henry havia sido dispensado do exército, devido aos seus
ferimentos, mas seu irmão mais velho, Adam, o irmão do meio
dos três primos de William, era capitão de um batalhão de
Infantaria.
"Oh, ah", disse a sra. Elmsworth, e começou a questionar seu
marido em um uivo estridente, eventualmente expelindo uma
opinião duvidosa de que o jovem poderia estar em algum tipo de
uniforme, embora com tantas pessoas andando com um desses,
hoje em dia, armas, calças coloridas e botões elegantes, era difícil
dizer.
"Não aceitamos a vaidade, veja", explicou ele a William. "Como
1303

Amigos, que somos. Nem com exércitos nem armas, exceto para
caçar. Caçar está bem. As pessoas precisam comer, você sabe",
acrescentou ele, lançando a William um olhar levemente
acusatório.
William manteve a paciência, não havendo escolha, e foi
recompensado com um pensamento mais promissor. Ele se virou
para a sra. Elmsworth.
"Você pode perguntar ao seu marido, por favor – o homem que
veio atrás de Dorothea se parecia com ela?" Pois Henry e
Benjamin eram esguios e tinham cabelos escuros, como o pai,
mas Adam se parecia com a mãe, assim como Dottie, ambos
loiros e de bochechas rosadas, com queixos arredondados e
grandes olhos azuis sonhadores.
O sr. Elmsworth ficara um tanto tenso durante o interrogatório e
fumava seu cachimbo com ar de agitação, mas relaxou quando
isso lhe foi perguntado. Ele exalou uma grande nuvem de fumaça
azul e acenou com a cabeça, com força.
"Ele era, então", ele disse. "Muito parecido, muito parecido."
Adam. William também relaxou e agradeceu profusamente aos
Elmsworth, embora eles recusassem qualquer presente em
dinheiro.
Enquanto se preparava para partir, ele teve outro pensamento.
"Senhora, você ainda tem o bilhete que minha prima escreveu
para você?"
Esse pedido resultou em um quarto de hora de agitação sobre a
pequena casa, atrás de potes pegajosos de conservas e colocando-
os no chão novamente, e concluindo com a lembrança tardia do
sr. Elmsworth de que ele havia usado o bilhete para acender sua
vela.
"Não havia muito a fazer, filho", disse a sra. Elmsworth com
simpatia, vendo sua decepção. "Ela apenas nos agradeceu por
1304

mantê-la, e disse como seu irmão a levaria para seu marido."

-.-.-

JÁ ERA TARDE e sua égua estava cansada e precisando de


comida, então, apesar de sua vontade de partir imediatamente, ele
relutantemente aceitou a hospitalidade do pequeno celeiro dos
Elmsworth durante a noite. Eles o convidaram para compartilhar
o jantar também, mas vendo que o jantar consistiria em um
punhado de mingau de fubá com algumas gotas de melaço e
algumas fatias de pão duro e ondulado, ele garantiu que comeria
um pouco de comida de seus alforjes e retirou-se para o celeiro
para cuidar das necessidades de Betsy antes de buscar o refúgio
de seus próprios pensamentos.
Na verdade, ele tinha uma maçã machucada e um pedacinho de
queijo duro, cuja gordura escorria, e ligeiramente mofado. Ele
prestou pouca atenção à sua refeição esparsa, porém, sua mente
estava ocupada com o que diabos faria a seguir.
Adam. Tinha que ser Adam. O problema era que ele não sabia
onde Adam deveria estar. Ele não via seu primo há mais de um
ano, e as conversas que teve ultimamente com Papa e o tio Hal
não tocaram em Adam em absoluto, tudo sendo levado pela morte
de Benjamin.
A última vez que ele tinha ouvido falar de Adam, seu primo era
um capitão de Infantaria, mas (sabiamente, ele pensou) não no
regimento de seu pai. Todos os filhos de Hal concluíram, no
início de suas carreiras militares, que suas chances de
permanecerem em boas relações com seu pai dependiam de não
servirem a ele, e eles compraram suas patentes em conformidade.
"Bem, comece do outro lado, então, idiota", ele disse
1305

impacientemente. "A única maneira de Adam descobrir onde


Dottie estava é por meio de Denzell. Presumimos que Denzell
está com Washington, e o tio Hal diz que Washington está
passando o inverno em um quartel-general em New Jersey."
Tudo bem, então. Ele arrotou levemente, sentindo o sabor doce
meio passado da maçã, e relaxou um pouco, enrolando melhor o
sobretudo em volta do pescoço e dobrando os dedos dos pés
dentro das botas frias e úmidas. Ele não precisava saber onde
Adam estava ou estivera, se esse raciocínio era válido. Mas seu
palpite era que Adam estava com o exército de Clinton em New
York – se é que ainda estavam em New York. Se Clinton estava
pretendendo pegar Charles Town, entretanto, certamente ele não
estaria fazendo isso tão tarde no ano? Ainda assim, se os Hunter
não estivessem com Washington em New Jersey, Adam era sua
única fonte de informações sobre o paradeiro deles.
Betsy ergueu o rabo e depositou uma cascata fumegante de
bolotas, a meio metro de onde William estava sentado em um
balde virado. William se inclinou e esfregou as mãos congeladas
acima do calor, pensando.
Ele se perguntou por que Denzell decidira mandar chamar Dottie,
tendo-a colocado com os Elmsworth por segurança, mas isso não
era importante. Sua própria escolha parecia clara: seguir para
New York e procurar Adam, ir para New Jersey e procurar
Denzell ou dar meia-volta e cavalgar de volta para Savannah e
contar ao tio Hal o que ele havia descoberto.
Ele descartou esta última opção.
Era aproximadamente a mesma distância de onde ele estava até
New York ou New Jersey – cerca de quinhentos quilômetros. Ele
olhou pela meia porta aberta para o céu nublado. Talvez uma
semana, se as estradas estivessem decentes.
"O que não vai acontecer", disse ele, observando pequenas
1306

manchas duras do que ainda nem era neve caindo em suas mãos
e rosto, derretendo em pequenas pontadas de frio. "Nada mais a
fazer, certo?"
-.-.-

O ANO NOVO passou antes de William chegar a Morristown.


Ele teve muito tempo na estrada para tomar sua decisão. E
embora se assegurasse de que Morristown era o lugar lógico para
começar suas investigações, visto que era onde Denzell estava e
Dottie provavelmente estaria com ele agora, sua consciência
observou acidamente que essa decisão era tanto conselho de
covardia quanto de lógica. Ele não queria entrar no quartel-
general de sir Henry Clinton como um civil malvestido e
enfrentar os olhares – se não as perguntas diretas – de homens
que ele conhecia.
Ele simplesmente não queria.
A própria Morristown ostentava duas igrejas e duas tavernas,
com um agrupamento de talvez cinquenta casas e uma grande
mansão perto dos limites da cidade. Pelas bandeiras que
adornavam esta casa e as sentinelas diante dela, era
evidentemente agora a sede de Washington. William não se
importaria de ver o sujeito, mas a curiosidade podia esperar.
A curiosidade, porém, o levou a perguntar a alguém na área verde
da cidade por que tantas pessoas estavam esperando do lado de
fora das igrejas, fazendo fila e batendo os pés contra o frio.
"Varíola", disseram-lhe. "Inoculações. Ordens do general
Washington564. Tropas e habitantes da cidade – gostemos ou não.
Eles têm feito isso nas igrejas todas as segundas e quartas-feiras."
William tinha ouvido falar de inoculação para varíola; Mãe Claire

564
Essa realmente foi a primeira inoculação em massa no território americano. As tropas foram inoculadas
com um vírus mais brando, pois na época a varíola grassava entre os soldados..
1307

havia mencionado isso uma vez, na Filadélfia. A inoculação


significava médicos, e o nome de Washington significava
médicos do exército. Agradecendo ao seu informante, ele
caminhou para o início de uma fila e, tirando o chapéu para a
pessoa na porta, entrou diretamente como se tivesse o direito de
estar lá.
Um médico e seu assistente estavam trabalhando perto da pia
batismal na frente da igreja, usando o altar para seus suprimentos.
O médico não era Denzell Hunter, mas já era um lugar para
começar, e William caminhou decididamente pelo corredor,
atraindo olhares surpresos das pessoas que esperavam.
O médico, um senhor gordo com um gorro orelhudo puxado para
baixo sobre a testa e um avental ensanguentado, estava de pé
junto à pia batismal, tendo esta estrutura sido temporariamente
coberta por um largo pedaço de tábua onde estavam os
instrumentos de inoculação: duas pequenas facas, um par de
fórceps e uma tigela cheia do que parecia ser minhocas vermelho-
escuras muito finas. Quando William se aproximou, ele viu o
médico, com a respiração soprando em volta do rosto, fazer uma
pequena fenda na mão de uma mulher que havia virado o rosto,
fazendo uma careta para o corte. O médico rapidamente enxugou
o sangue que jorrava, pegou um dos vermes, que eram fios
encharcados em algo nojento – varíola? William se perguntou,
com um breve estremecimento – com seu fórceps, e enfiou-o no
ferimento.
Enquanto a mulher envolvia a mão em um lenço, William
habilmente se inseriu no topo da fila.
"Eu imploro seu perdão, senhor", William disse educadamente, e
curvou-se. "Estou em busca do dr. Hunter. Tenho uma mensagem
importante para ele."
O médico piscou, tirou os óculos e semicerrou os olhos para
1308

William, depois os colocou de volta e pegou a faca novamente.


"Ele está em Jockey Hollow hoje", disse ele. "Provavelmente na
Wick House, mas pode estar entre as cabanas."
"Agradeço-lhe, senhor", disse William, falando sério. O médico
acenou com a cabeça distraidamente e acenou para o próximo na
fila.
Outra investigação o enviou morro acima para Jockey Hollow,
uma área bastante montanhosa – Washington gostava muito de
montanhas – onde um cenário de imensa devastação se espalhou
diante dele. Parecia que um meteoro havia atingido uma floresta,
despedaçando árvores e revolvendo o solo. Os continentais
haviam cortado o que devia ser pelo menos 4 mil metros de
árvores – os tocos projetavam dedos irregulares para fora da lama
e fogueiras de galhos descartados enfumaçavam por todo o
acampamento, cada uma com uma fileira de soldados estendendo
as mãos congeladas para o calor.
Grandes troncos estavam empilhados por toda parte, em uma
ordem rude, e William viu que, de fato, cabanas consideráveis
estavam sendo construídas. Este claramente vai ser um
acampamento semipermanente, e não pequeno.
Soldados, principalmente em trajes simples ou com sobretudos
do exército, enxameavam como formigas. Se Denzell estivesse
lá, seria um esforço apanhá-lo e levaria tempo. Ele caminhou até
a fogueira mais próxima e se acercou do círculo de homens ao
redor dela. Deus, o calor estava maravilhoso.
"Onde fica a Wick House?", ele perguntou ao homem ao lado
dele, esfregando as mãos para ajudar a espalhar o calor delicioso.
"Lá em cima." O homem – um homem muito jovem, talvez
alguns anos mais jovem que William – ergueu o queixo,
indicando uma casa de aparência modesta à distância, no topo de
uma colina. Agradeceu ao menino e deixou o fogo com pesar,
1309

cheirando fortemente a fumaça.


A Wick House, apesar de seu tamanho modesto, era claramente
propriedade de um homem rico: havia uma forja, um moinho de
grãos e um estábulo considerável nas proximidades. O homem
rico era rebelde ou havia sido despejado à força, pois havia
bandeiras do regimento plantadas perto da porta e uma sentinela
de nariz azul do lado de fora, claramente lá para eliminar
visitantes indesejáveis.
Bem, funcionou uma vez... William jogou os ombros para trás,
ergueu a cabeça e caminhou até a porta como se fosse o dono do
lugar.
"Tenho uma mensagem para o dr. Hunter", disse ele. "Vou
encontrá-lo aqui?"
A sentinela olhou para ele com olhos remelentos e injetados de
sangue.
"Não, você não vai", disse ele.
"Posso perguntar onde ele está, então?"
A sentinela pigarreou e cuspiu, a gota de muco não caindo
exatamente na ponta da bota de William.
"Ele está lá dentro. Mas você não vai encontrá-lo lá porque eu
não vou deixar você entrar. Você recebeu uma mensagem, me
dê."
"Deve ser entregue nas mãos do médico", disse William com
firmeza, e estendeu a mão para a maçaneta.
A sentinela deu dois passos para o lado e parou na frente da porta,
o mosquete cruzado sobre o peito e seu nariz azul proibitivo em
sua retidão.
"Você não vai entrar, amigo", disse ele. "O médico está com o
brigadeiro Bleeker e ele não deve ser incomodado."
1310

William fez um som baixo que não era bem um rosnado. Isso não
afetou o Nariz Azul, porém, e ele tentou novamente.
"E quanto à sra. Hunter? Ela está no acampamento, talvez?"
Deus, ele esperava que não.
Ele olhou por cima do ombro para a bagunça espalhada abaixo.
"Oh. Sim. Ela está." A sentinela sacudiu o polegar para trás,
indicando a casa. "Com o médico e o brigadeiro."
"O brigadeiro... esse seria...?"
"General Bleeker. General Ralph Bleeker."
William suspirou.
"Bem, se eu não puder entrar, você faria a gentileza de entrar e
dizer a ela que seu primo veio com uma mensagem para seu
marido? Ela pode sair e pegá-la, com certeza."
Quase funcionou. Ele podia ver a dúvida guerreando com o dever
no rosto do homem – mas o dever venceu, e Nariz Azul
obstinadamente negou com a cabeça e acenou com a mão.
"Xô."
William girou nos calcanhares e obedeceu. Ele desceu a colina,
sem olhar para trás - e se virou assim que um grupo de arbustos e
pequenas árvores o escondeu da vista da sentinela.
Não demorou muito para contornar o topo da colina e subir com
cuidado pelo moinho de grãos, mas ele conseguiu se misturar
com as pessoas que esperavam lá para ter sua farinha moída e
pôde ver facilmente a casa. Sim, havia uma porta dos fundos. E
não, glória a Deus, não havia sentinela – pelo menos não neste
momento.
Ele esperou até que a pequena multidão parasse de notá-lo e se
afastou com o jeito meio furtivo de um homem indo urinar.
Passou rapidamente pela forja, subiu até a porta e... entrou.
1311

Ele fechou a porta traseira atrás dele com uma onda de prazer.
"Senhor?"
Ele se virou, encontrando-se na cozinha, e sob o foco do olhar de
uma cozinheira e de várias criadas. O ar estava perfumado com o
cheiro de carne assada – havia um enorme porco girando no
espeto na lareira espaçosa e sua boca encheu de água – mas a
comida podia esperar.
Ele curvou-se e ergueu o chapéu brevemente para a cozinheira.
"Seu perdão, senhora. Eu tenho uma mensagem para o médico."
"Oh, ele está na sala", disse uma das empregadas mais jovens. Ela
olhou com admiração para o corpo de William, e ele sorriu para
ela. "Eu o levo!"
"Obrigado, minha querida", disse ele, e curvou-se
insinuantemente novamente antes de segui-la para fora da
cozinha.
A casa era confortável, mas parecia abrigar várias pessoas; ele
podia ouvir vozes e o som de passos acima – havia um segundo
andar na parte de trás da casa. A empregada o conduziu até uma
porta fechada e fez uma reverência. Ele agradeceu novamente, e
quando ele alcançou a maçaneta de porcelana da porta, ele ouviu
o som inconfundível da risada gorgolejante de sua prima Dottie,
e seu próprio rosto se abriu em um sorriso.
Ele ainda estava sorrindo quando entrou na sala. Dottie estava
sentada em uma cadeira perto da lareira, uma espécie de tricô no
colo, o rosto cheio de atenção animada enquanto o homem de
uniforme Continental parado perto da lareira dizia algo para ela.
Denzell também estava lá, perto da janela, mas William mal
percebeu, paralisado pelo som da voz do homem.
"William!", Dottie exclamou, largando o tricô. O homem perto
da lareira se virou bruscamente.
1312

"Jesus Cristo", disse ele, olhando em choque. "O que diabos você
está fazendo aqui?" O azul de seu casaco dava a seus olhos azul-
claros de inverno um brilho penetrante.
William sentiu como se tivesse sido chutado no estômago por
uma mula, mas conseguiu respirar.
"Olá, Ben", ele disse categoricamente.
1313

104

FODIDO GENERAL BLEEKER

BEN OLHOU PARA ELE COM uma formalidade fria e disse:


"Seria general Bleeker para você, senhor." Isso poderia ter sido
interpretado como humor, mas não era, e ficou bem claro.
"Bleeker", disse William, tornando a palavra quase uma
pergunta. "Tudo bem, se você acha que deve. Mas Ralph?"
O rosto de Ben escureceu, mas ele controlou seu temperamento.
"Não é Ralph", disse ele em breve. "É Rafe."
"Um dos nomes de Ben é Raphael", disse Dottie agradavelmente,
como se estivesse conversando sobre a mesa de chá. "Em
homenagem ao nosso avô materno. O nome dele é Raphael
Wattiswade."
"É?", William disse, surpreso ao olhar para ela. "Achei que o pai
da sua mãe estava morto." Ele mudou o olhar de volta para seu
primo. "Por falar nisso, pensei que você estivesse morto."
Dottie e Denzell trocaram um breve olhar conjugal.
"Acredito que o Amigo Wattiswade se deu ao trabalho de dar essa
impressão", disse Denzell, sem olhar cuidadosamente para Ben.
"Quer se sentar, William? Tem um pouco de vinho."
Sem esperar por uma resposta, ele se levantou e gesticulou para
sua cadeira vazia, indo então buscar uma garrafa de uma pequena
mesa perto da porta.
William ignorou o convite e a cadeira. Ben era um pouco mais
alto do que o pai, mas ainda era quinze centímetros mais baixo
do que William, e William não estava sacrificando a vantagem de
1314

desprezá-lo. Ben enrijeceu, olhando para ele.


"Eu repito, o que diabos você está fazendo aqui?"
"Vim procurar sua irmã", respondeu William, e fez uma ligeira
reverência a Dottie. "Seu pai quer que você volte para Savannah,
Dottie." Agora que ele tinha a chance de olhar para ela, ele pensou
que o tio Hal estava certo em querer isso. Ela estava muito magra,
com olheiras, o vestido estava pendurado em seus ossos e, no
geral, ela parecia uma bela peça de porcelana com uma rachadura
passando por ela e uma lasca saindo da borda.
"Eu te disse, tu não deverias ter escrito para ele", disse ela em tom
de censura a Denzell, que lhe entregou uma taça de vinho – e
vendo que William não estava disposto a aceitar a outra, sentou-
se e tomou um gole. ele mesmo.
"E eu disse que tu deverias ir para casa", Denzell respondeu,
embora sem rancor. "Este não é o lugar para nenhuma mulher,
muito menos para uma que..." Ele avistou Dottie e parou
abruptamente. Um rubor agitado subia em suas bochechas e seus
lábios estavam pressionados com força. William pensou que ela
poderia explodir em lágrimas ou enfiar o atiçador, que estava
próximo, no cérebro de Denzell.
Bonne chance, ele concluiu, e voltou-se para Ben, que tinha
ficado com as narinas brancas.
"Saia comigo", disse William. "E você pode me dizer o que
diabos você está fazendo e por quê. E por que eu não deveria
voltar direto para Savannah e contar a seu pai. Isso, se você
quiser."

-.-.-

ESTAVA FRIO LÁ fora e o céu estava baixo e pesado, da cor de


1315

chumbo. William sentiu o comichão dos olhos de Ben abrindo


um buraco entre suas omoplatas.
"Por aqui", disse seu primo abruptamente, e William se virou para
ver Ben empurrar a porta de um grande galpão de onde saía o
cheiro quente e espesso de fumaça e gordura, envolvendo-os.
Por dentro, o cheiro era mais forte, mas o ar estava quente e
William sentiu as mãos formigarem de gratidão; seus dedos
estavam meio congelados há dias. Os corpos de veados, ovelhas
e porcos pendurados nas vigas, faixas de gordura aparecendo em
cinza e branco através da lenta deriva de fumaça da trincheira
abaixo. Grandes lacunas mostravam para onde a carne tinha sido
levada – para alimentar os oficiais que ocupavam a Wick House,
ele supôs, e se perguntou como Washington pretendia alimentar
suas tropas durante o inverno. Por sua avaliação apressada da
construção do acampamento no vale, deve haver quase dez mil
homens aqui – muito mais do que ele pensava.
"Adam disse que você renunciou à sua patente." Houve um
rangido e um baque quando Ben fechou a porta. "Isso é verdade?"
"Sim, é." Ele olhou para seu primo e mudou seu peso um pouco.
Ele não tinha motivos para supor que Ben tentaria bater nele, mas
a conversa ainda estava só começando.
"Por quê?"
"Não é da sua conta", William respondeu sem rodeios. "Então
Adam ainda está falando com você, não é? Onde ele está, já que
estamos isso? "
"Em New York, com Clinton." Ben sacudiu a cabeça para a
esquerda. Seu rosto estava pálido na luz cinza.
"Já pensou que poderia metê-lo em sérios problemas falando com
ele? Ele pode ser preso e levado à corte marcial, até mesmo
enforcado! Ou essa consideração não pesa contra suas novas...
1316

lealdades?" O coração de William ainda estava batendo rápido


com o choque de encontrar Ben vivo, e ele não estava com humor
para medir as palavras.
"Como você ousa, porra?" William disse, a fúria surgindo de
repente do nada. "Não importa ser um traidor, você é um covarde
de merda! Você não podia simplesmente trocar de casaco e ser
franco – ah, não! Você teve que fingir que estava morto, e matar
seu pai de tristeza – e o que você acha que sua mãe vai sentir
quando ouvir isso?"
Apesar da luz fraca, ele podia ver o sangue correr pelo rosto de
Ben e suas mãos se fecharam em punhos. Ainda assim, Ben
manteve seu nível de voz.
"Pense nisso, Willie. O que meu pai preferiria – que eu estivesse
morto ou que fosse um traidor? Isso iria matá-lo!"
"Ou ele mataria você", William disse brutalmente. Ben enrijeceu,
mas não respondeu.
"Então, o que foi?", William perguntou. "Uma escalada rápida na
carreira, virar o general Bleeker? Não pode ser por dinheiro."
"Não espero que você entenda", disse Ben, entre dentes. Ele
respirou fundo, como se fosse continuar, mas então parou, os
olhos se estreitaram. "Ou talvez sim. Você veio aqui para se
juntar a nós?"
"O que... me tornar um lambe-botas de Washington, como você?
Não, foda-se, eu não vim pra isso. Vim procurar Dottie. Imagine
minha surpresa." Ele fez um gesto de desprezo em direção ao
uniforme azul e amarelo.
"Então por que renunciar à sua patente?" Ben olhou para ele de
cima a baixo, observando as roupas ásperas e a camisa suja, as
botas grossas com as meias de lã viradas para baixo. "E por que
diabos você está vestido assim?"
1317

"Eu repito – não é da sua conta. Mas não foi por uma questão
política", acrescentou ele, e se perguntou brevemente por que o
fez.
"Bem, era uma questão política para mim." Ben respirou fundo e
deliberadamente e se encostou na porta. "Ouviu falar de um
homem chamado Paine? Thomas Paine565?"
"Não."
"Ele é um escritor. Ou seja, ele foi contratado pela Alfândega e
Impostos Especiais de Sua Majestade, mas foi demitido e
começou a pensar em política."
"Como alguém faz quando está desempregado, suponho." Ben
deu a ele um olhar sufocante.
"Eu o conheci na Filadélfia, em uma taverna. Eu falei com ele.
Achei que ele era... interessante. Um camarada de aparência
estranha, mas... intensa, suponho que você diria." Ben respirou
fundo e tossiu; William podia sentir as cócegas da fumaça em seu
próprio peito.
"Então, mais tarde, quando fui feito prisioneiro no
Brandywine..." Ele limpou a garganta. "Tive oportunidade de ler
o seu folheto. É chamado Senso Comum. E conversei com o
oficial com quem embarquei e... bem, é bom senso, diabos."
Ele encolheu os ombros, depois abaixou os ombros e olhou
desafiadoramente para William. "Fiquei convencido de que os
americanos estavam certos, isso é tudo, e não conseguia mais
lutar conscientemente ao lado da tirania."
"Seu idiota pomposo." O desejo de bater em Ben estava ficando
mais forte. "Vamos sair daqui. Não quero andar por aí cheirando
a presunto, mesmo que você não se importe."

565
Thomas Paine: (1737-1809) — Escritor revolucionário, autor de Common Sense (1776), o panfleto
inflamatório que foi o primeiro best-seller americano e um dos principais incitadores da rebelião.
1318

Este argumento, pelo menos, atingiu algum resto de sentido em


Ben. Eles saíram e Ben caminhou à frente deles, colina abaixo,
mas para longe da cidade. Eles receberam alguns olhares de
homens carregando madeira em direção ao acampamento, mas
Ben os ignorou.
"Se você é um general, as pessoas não vão se perguntar por que
você não tem um bando de ajudantes e bajuladores ao seu
redor?", William perguntou para a nuca de Ben e ficou satisfeito
ao vê-la corar, apesar do frio.
Estava extremamente frio; a neve tinha começado a cair em
flocos grossos e rápidos que cobriam as lombadas sujas e
congeladas das tempestades anteriores.
"É por isso que estamos indo aonde ninguém vai nos ver", disse
Ben laconicamente, e pisou fundo por uma trilha de lama
endurecida pelo frio em direção a um grande galpão perto de um
riacho congelado. Estava trancado com cadeado e Ben demorou
alguns minutos para abri-lo, pois a chave e as mãos estavam frias
e não cooperavam.
"Deixe-me tentar." William mantinha as mãos nos bolsos e,
embora estivesse com frio, seus dedos ainda estavam flexíveis.
Ele pegou as chaves de Ben e o empurrou para o lado.
"O que os Continentais têm que vale a pena trancar?", ele
perguntou, embora sem real intenção de ofender. Ben não
respondeu, mas empurrou a porta, revelando as formas longas e
sombrias das armas. Canhões de quatro e seis libras, nove deles
em uma contagem apressada e alguns morteiros espreitando na
parte de trás. O parque de artilharia Continental, aparentemente.
O lugar cheirava a metal frio, madeira úmida e fantasmas de
pólvora negra.
"A casa de defumação estava um pouco mais quente", observou
Ben, virando-se para encarar William. "Vamos terminar qualquer
1319

negócio que tivermos, antes de congelarmos."


"Combinado." A respiração de William ficou branca, e ele já
estava começando a desejar a companhia dos porcos mortos e seu
fogo. "Eu quero que Dottie venha comigo, de volta para
Savannah. Certamente você pode ver que ela precisa de comida,
calor... sua família?"
Ben bufou, sua respiração saindo de suas narinas como a de um
touro furioso.
"Bonne chance", disse ele. "Hunter não irá, porque ele é
desesperadamente necessário aqui. Ela não vai deixá-lo.
C.Q.D.566"
Apesar do óbvio aborrecimento de Ben, havia algo estranho em
sua voz. Quase uma saudade, William pensou, e o pensamento
despertou a compreensão que vinha crescendo lentamente,
despercebida, no fundo de sua mente.
"Amaranthus", disse ele de repente, e Ben se encolheu. Ele
estremeceu, o covarde nojento!
"Ela sabe que você não está morto?", ele perguntou.
"Sim", disse Ben entre os dentes. "É por causa dela que eu...
Deixa pra lá. Eu não posso fazer Dottie ir, a não ser se amarrá-la
em um saco e carregá-la em uma carroça. Você acha que..."
"Que é por causa de sua esposa?" Sua esposa. As palavras se
enrolaram em seu estômago como vermes, e ele fechou a mão,
sentindo um calor arredondado e escorregadio na palma. "Você
quer dizer que disse a ela o que você ia fazer, e ela..."
"Eu era um prisioneiro! Eu não pude contar nada a ela. Não até...
até que fosse feito." Ben estava olhando para ele, mas com isso,
desviou o olhar. "Eu... eu escrevi para ela, então. Claro. Disse a
566
Como se Queria Demonstrar. No original Q.E.D. Quod erat demonstrandum – uma expressão em
latim que significa literalmente “o que havia de ser demonstrado” ou, com uma linguagem informal,
“como se queria demonstrar.
1320

ela o que eu fiz. Ela não ficou feliz", ele acrescentou


desoladamente.
"Diga", disse William, com o máximo de sarcasmo que
conseguiu. "Foi ideia dela fingir que você estava morto? Não
posso dizer que a culpo, se for o caso."
"Foi", Ben disse rigidamente. Seus olhos ainda estavam fixos na
boca preta aberta de um canhão próximo. "Ela disse... que eu não
poderia deixar que soubessem que eu era um traidor. Não apenas
por ela ou por meu pai – por Trevor. Meu pai iria... iria superar
eu estar morto, especialmente se eu tivesse morrido como um
soldado. Ele nunca me esqueceria..."
"Mas sendo um traidor...", William terminou prestativamente.
"Não, ele não iria. E o pequeno Trev também não se divertiria
sendo seu herdeiro, uma vez que tivesse idade suficiente para
entender o que as pessoas estavam dizendo sobre você – e ele.
Você manchou toda a sua família com seus excrementos, não
foi?" Ele estava repentinamente quente, seu sangue subindo.
"Cale-se!", Ben rebateu. "É por isso que mudei meu nome e
mandei mandar um recado oficial de que morri, pelo amor de
Deus! Eu até cheguei a ter um túmulo no acampamento
Middlebrook marcado com meu nome, caso alguém fosse olhar!"
"Alguém foi", disse William, a raiva quente em seu peito. "Eu
fui, seu bastardo! Eu desenterrei o corpo naquela cova, no meio
da noite, na porra da chuva. Se você não tivesse escolhido um
ladrão para enterrar em seu lugar, você poderia ter escapado com
isso, maldito seja – e eu queria Deus que você tivesse!"
Por baixo da raiva havia uma dor aguda em seu peito. Exatamente
onde o besouro Hércules estava, e o dedo longo e fino de
Amaranthus.
"Sua esposa..."
1321

"Não é da sua conta, porra!", Ben rosnou, com o rosto vermelho.


"Por que você não consegue manter o nariz de fora? E sobre
minha esposa? O que diabos você tem a ver com ela?"
"Você quer saber?" A voz de William saiu baixa e venenosa, e
ele se inclinou na direção de Ben com os punhos cerrados. "Você
quer saber o que eu tenho feito com ela?"
Ben bateu nele. Forte, na barriga. Ele agarrou Ben pelo braço e
deu um soco no nariz dele. Quebrou com um ruído satisfatório e
sangue quente jorrou sobre seus dedos.
Ben era mais baixo e mais magro, mas tinha a inclinação da
família Gray para lutar como texugos e calcular o custo depois.
William caiu para trás em uma das grandes armas, Ben em sua
garganta, e ele ouviu o casaco azul rasgar enquanto seu primo
tentava seriamente estrangulá-lo. William ficou furioso; Ben
estava louco.
Com dificuldade, William levantou um joelho entre eles e
conseguiu se soltar de Ben por tempo suficiente para lhe dar um
soco na nuca. Ben fez um barulho como uma pantera que levou
um tiro na barriga e, abaixando a cabeça, deu uma cabeçada no
peito de William, derrubando-o, e então caiu sobre ele com os
dois joelhos no estômago de William. Eles foram esmagados
juntos, lutando no estreito espaço entre dois carrinhos de armas,
e os nós dos dedos de William estalaram tanto por acertar em
madeira e metal quanto por acertar Ben na boca.
Houve um momento, quando ele avistou o rosto de seu primo em
um raio de luz, em que ele realmente acreditou que Ben pretendia
matá-lo.
Então, de repente, a enxurrada de socos parou e o peso diminuiu.
Ben estava de pé, oscilando sobre ele, pingando sangue, e
William percebeu, em meio ao atordoamento da luta e às sombras
do canhão, que a luz entrava pela porta aberta do galpão e havia
1322

vozes.
"Um sabotador",” Ben murmurou, e cuspiu sangue. Atingiu um
dos canhões e gotejou lentamente pela curva de ferro frio, caindo
no pulso de William.
"Leve-o para a prisão militar. Ele não deve falar com ninguém.
Levem ele, eu disse!"

-.-.-

WILLIAM NÃO ERA muito exigente com comida, de forma


alguma, e os feijões mornos e o pão de milho seco oferecidos a
ele depois de uma noite muito fria na paliçada eram ambrosia – e
não muito difíceis de mastigar, mesmo com a mandíbula
dolorida.
Era realmente uma prisão, embora pequena, com um bloco
contendo meia dúzia de celas de tijolo dentro de uma cerca de
paliçada e uma guarita do lado de fora. Não havia mais do que
um buraco de quinze centímetros nos tijolos para fornecer luz e
ar, e a cela poderia ter sido afundada em um mar invernal, o ar
frio, escuro e úmido, rodopiando com a névoa que vazava do
mundo exterior. Ele limpou seu prato de madeira com o último
pedaço de pão de milho e lambeu o resto do caldo de feijão de
seus dedos. Ele poderia ter comido três vezes mais, se estivesse
disponível, mas como não estava, ele engoliu o tanto muito
pequeno de cerveja que tinha recebido, arrotou, apertou o cinto e
sentou-se para esperar no banco de madeira que compunha o
único móvel da cela.
Ele tinha muitos hematomas e arranhões, e suas costelas doíam
quando ele respirava, mas ele dormiu a noite toda de exaustão e
lavou o rosto em um balde de manhã sem pestanejar, embora ele
tivesse que quebrar meio centímetro de gelo sólido nele primeiro.
1323

Os pequenos ferimentos não eram nada que o incomodasse


muito. Exceto como um lembrete de seu primo Ben.
Logicamente, Ben deveria executar William como sabotador.
Isso era óbvio, como a única maneira certa de impedi-lo de
revelar a verdade sórdida sobre o brigadeiro Bleeker – para o tio
Hal, tia Minerva, o regimento de Ben, os jornais de Londres...?
Bem, não os jornais, não. Deixar que se tornasse um escândalo
aberto seria – como bem disse ao maldito brigadeiro Bleeker –
como destruir toda a família.
Ele não estava exagerando quando disse a Ben que colocaria
Adam em apuros também. Espere até que sir Henry descubra que
Adam estivera conversando silenciosamente com um combatente
inimigo! Porque ele iria descobrir se eles continuassem fazendo
isso, e o fato de que o dito inimigo era irmão de Adam só iria
piorar as coisas. Se isso fosse conhecido, seria assumido por
todos que Adam era um traidor também, passando informações
para o irmão.
Ele tinha uma vaga lembrança de seu pai lhe dizendo que um
segredo permanecia segredo apenas enquanto uma pessoa o
soubesse.
A memória veio com a visão de um céu profundo, cor de lavanda,
e Vênus uma joia brilhante logo acima do horizonte. Era isso; eles
estavam deitados no cais do Monte Josiah, observando as estrelas
surgirem enquanto Manoke limpava e grelhava o peixe fresco que
haviam acabado de pescar.
Ele respirou nostalgicamente, meio esperando sentir o cheiro
empoeirado de linho e a riqueza de dar água na boca de peixe
enrolado em fubá e frito na manteiga. O gosto persistente do pão
de milho deu isso a ele por um momento, antes de se retirar e
deixá-lo com o cheiro do balde de lixo no canto de sua cela. Ele
se levantou e o usou, então endireitou as roupas e jogou outro
1324

punhado de água no rosto.


A única coisa de que ele tinha certeza era que não teria que
esperar muito tempo. Ben não ousaria mantê-lo por muito tempo,
onde as pessoas poderiam ficar curiosas.
"E você não poderia pensar em nada melhor do que me chamar
de sabotador", disse ele em voz alta para o primo. "Isso vai deixar
todo mundo curioso, seu idiota."
William também estava curioso sobre o que poderia acontecer a
seguir – mas na verdade não estava realmente preocupado que
Ben o executasse formalmente, por mais que ele quisesse. A
mente de William parou na imagem do rosto de Ben quando
Amaranthus entrou na conversa. Sim, ele definitivamente queria
matar William naquele momento e, sem dúvida, ainda queria.
O pensamento de Amaranthus a convocou como se ela estivesse
fisicamente diante dele, olhos azul-acinzentados vincando com
seu sorriso. Alta e cheia em suas carnes, cheirando a folhas de
uva, com um leve aroma adocicado de pó de arroz e cocô de bebê.
E seus dedos longos, delgados e gelados tocando os dele...
Ele endireitou os ombros e soltou a respiração. Teria tempo
suficiente para lidar com ela quando ele estivesse fora deste
lugar.
Se Ben não o tivesse matado ao amanhecer, ele não o mataria.
Além do medo de que William começasse a gritar coisas
incriminatórias a caminho do pelotão de fuzilamento, havia
Dottie. William não tinha dúvidas de que ela amava Ben, Adam
e Henry; era uma família muito unida. Mas Dottie também
gostava dele – e, além disso, ela agora era uma quacre. Tendo
passado algum tempo viajando com Rachel e Denzell Hunter,
William tinha um respeito considerável pelos quacres em geral e,
embora Dottie fosse o que ele pensava ser uma Amiga professa
em vez de nata, ela certamente possuía teimosia nativa suficiente
1325

para dar a qualquer quacre de nascença um trabalhão para vencê-


la em qualquer aspecto.
Ele, portanto, não ficou surpreso quando um guarda abriu
abruptamente a porta de sua cela uma hora depois e Denzell
Hunter entrou, com sua maleta de médico surrada na mão.
"Acredito que te vejo bem, Amigo", disse ele. Sua voz era
agradável, neutra – mas seus olhos eram quentes por trás dos
óculos. "Como tu estás esta manhã?"
"Eu já estive melhor", disse William, olhando para a porta.
"Tenho certeza de que um gole de conhaque e um pouco de latim
vão me consertar."
"É um pouco cedo para o conhaque, mas farei o meu melhor. Tira
a calça e curva-te sobre o banco, por favor."
"O quê?"
"Eu pretendo te dar um clister para acalmar seus humores", disse
Denzell, sacudindo a cabeça em direção à porta. "Claro, água
gelada não é o melhor meio para esse propósito..." Ele caminhou
até a porta e bateu com força. "Amigo Chesley? Tu podes me
trazer um balde de água morna, por favor?"
"Água morna?" O guarda, é claro, estava parado do lado de fora
da porta, ouvindo. "Hã... sim, senhor... eu suponho... você tem
certeza de que está seguro aí com ele, senhor? Talvez seja melhor
você vir aqui enquanto eu pego a água."
"Não, Amigo, não há perigo", disse Denzell, gesticulando para
que William se deitasse no banco. "Ele está sofrendo de um
ferimento na cabeça, entre outras coisas. Duvido que ele tenha
forças."
Houve um ruído de raspagem quando Chesley destrancou a porta
e olhou desconfiado para dentro. William emitiu um gemido
fraco e desmaiou, uma mão pressionada na testa, a outra se
1326

arrastando para fora do banco de uma forma lânguida.


"Ah", disse Chesley, e fechou a porta novamente. Passos
rangeram.
"Ele não aferrolhou", William sussurrou, sentando-se
abruptamente. "Devo correr agora?"
"Não, tu não irias longe e não é necessário. Dottie está dando a
Benjamin seu café da manhã e convencendo-o de que a melhor
coisa a fazer é dar ordens para que tu sejas levado ao quartel-
general de Washington; essa é a Casa Ford,567 em Morristown.
Devo administrar inoculações contra varíola na igreja esta tarde.
Eu irei, portanto, insistir em te acompanhar até o general
Washington, para te apoiar em tua enfermidade."
Aqui ele fez uma pausa para examinar William, sorriu
brevemente e balançou a cabeça de um lado para o outro. "Tu
pareces convincentemente maltratado. Eu acho que tu podes
sofrer um derrame de sangue no cérebro e, infelizmente, morrer
como resultado antes de chegarmos ao general."
"Você é um ótimo médico", disse William. "Devo ter ataques e
espuma na boca, para ser convincente?”
"Gemendo alto e te sujando com terra será adequado, eu acho."

567
Localizada em Morristown, New Jersey, EUA, a chamada Ford Mansion é um edifício clássico do século
XVIII construído por Jacob Ford Jr. em 1774. A mansão em estilo georgiano foi a sede de George
Washington de dezembro de 1779 a junho de 1780 durante a Guerra Revolucionária Norte-americana.
1327

105

SEISCENTOS E CINQUENTA
QUILÔMETROS PARA PENSAR

AS ESTRADAS ERAM LAMA meio congelada ou lama na


altura dos joelhos, e as árvores seguravam seus botões marrons
pegajosos bem firmes nos galhos, recusando-se a deixar uma
única folha enfiar sua tenra cabeça para fora no clima inóspito.
Ainda assim, William podia sentir a inquietação do ar; uma
sensação de algo vivo e selvagem movendo-se no ar entre os
flocos macios e gordos de neve.
Depois de se separar de Denzell em Morristown, ele resistiu ao
forte impulso de ir para o Monte Josiah quando chegou à
Virgínia. Ele não precisava de solidão ou contemplação agora; a
escolha era clara o suficiente, e toda a reflexão de que ele
precisava poderia ser feita a cavalo.
Ele teve quase seiscentos e cinquenta quilômetros e três semanas
de cavalgada para se decidir, e não foi nem de longe o suficiente.
Que bom que tenho mais seiscentos quilômetros para pensar,
pensou ele, desmontando severamente e pegando o pé esquerdo
entupido de lama da égua. Betsy estava mancando, e William
esperava que fosse apenas uma pedra, e não uma distensão ou
rachadura no osso. A ideia de ter que atirar nela e deixá-la para
os lobos e raposas era pior do que a ideia de caminhar mais
cinquenta quilômetros através do gelo e da lama – mas nem tanto.
Betsy era uma montaria prestativa e deixou William apertar sua
perna, tatear o longo osso da canela e trabalhar delicadamente na
junta dos metacarpos. Até agora tudo bem. Seus dedos se
1328

enterraram na lama congelada e grossa ao redor do casco da égua,


seus polegares trabalhando na ranilha – e lá estava. Uma pedra
afiada, sólida e cunhada sob a ponta de sua ferradura.
"Boa menina", disse ele, o alívio soprando com sua respiração.
Ele finalmente tirou a pedra e caminhou com Betsy um pouco,
mas a égua parecia bem, e eles retomaram o passo normal, indo
o mais rápido que a estrada permitia. Cansado de pensar e
faminto, William empurrou todas as preocupações – além de
chegar a uma aldeia antes do anoitecer – para fora de sua cabeça.
Ele teve sucesso, e só depois de cuidar de Betsy, ter comido um
jantar decente e se retirar para um quarto sem fogo e uma cama
fria e úmida com um colchão cheio de cascas de milho mofadas
que ele retomou suas cogitações.
Quem primeiro?
Todos os dias ele revirara e revirava o assunto em sua mente, até
que sua cabeça zumbiu e a estrada ficou turva diante de seus
olhos.
Ele teria que falar com todos eles, mas a quem ele deveria contar
primeiro? Por direito, deveria ser o tio Hal. Benjamin era seu
filho; ele tinha que saber. Mas a ideia de contar a seu tio, de ver
a compreensão inundar seu rosto abatido ... William tinha ouvido
mais de um pai inglês declarar ferozmente que preferia que seu
filho estivesse morto do que um covarde ou traidor. Quantos
deles eram sinceros com isso, ele se perguntou – e tio Hal seria
um deles?
Seu forte desejo era ir primeiro para seu próprio pai. Contar tudo
a Papa, procurar seu conselho e ... ele bateu com o punho no
colchão macio. A quem ele estava tentando enganar? Ele queria
passar o fardo de seu conhecimento para Papa e deixá-lo contar
ao tio Hal.
"Covarde", ele murmurou, virando-se inquieto. Ele foi para a
1329

cama completamente vestido e com seu sobretudo, apenas tirando


as botas, e se mexer destruía a frágil camada de calor que ele
conseguira acumular.
Covarde.
Sem que ele fizesse uma escolha conscientemente, isso
gradualmente se tornou claro para ele, e agora, nesta sala úmida,
escura e sem fogo, cheirando a suor congelado e carne queimada,
aquela palavra finalmente lhe deu sua resposta.
Ela. Tinha que ser ela.
Ele tentou dizer a si mesmo que essa era a coisa justa a fazer:
Amaranthus precisava saber primeiro que ele havia descoberto
Ben, a fim de tomar todas as medidas que pudesse para se
proteger assim que a verdade fosse conhecida. Mas ele estava
farto de mentiras e subterfúgios, e maldito seria ele se mentisse
agora para si mesmo. Ela o fez de bobo e quase o arrastou para
sua teia.
Ele queria contar a Amaranthus porque queria ver o rosto dela
quando ele o fizesse.
Decisão tomada, ele adormeceu e sonhou com besouros de olhos
vermelhos minúsculos.

-.-.-

WILLIAM TIROU O sobretudo pela primeira vez quando


chegou a New Bern. Estava chovendo, mas era uma chuva suave
que cheirava a primavera e sua pele ansiava por ar e frescor, e
seus membros por um bom relaxamento. Precisaria ser bem mais
quente antes que ele tirasse muitas outras coisas, mas ele
encontrou uma pousada com um estábulo para Betsy e, depois de
cuidar das necessidades do animal, desceu até a costa, tirou as
1330

botas e as meias sujas com um suspiro de alívio e caminhou pela


areia fria e úmida acima da maré.
Era crepúsculo e não havia ninguém na praia aqui, embora ele
pudesse sentir o cheiro de fogo de lenha e caranguejos fervendo
de uma clareira distante, no aglomerado de barracos. Sua barriga
roncou.
"Eu devo estar descongelando", ele disse em voz alta, sua voz
soando áspera e rachada aos seus ouvidos. Ele não tinha pensado
conscientemente em comida desde que se recuperou da pancada
na cabeça em Morristown. Denzell Hunter o alimentou então,
insistindo que ele comesse alguma coisa antes de voltar para casa.
Ele tentou recusar, sabendo que provavelmente era a ração inteira
de Denzell para o dia – mas a fome e a insistência de Hunter
tinham vencido. Ele comia de vez em quando, é claro, em seu
caminho para o sul, mas sem perceber muito o quê.
Ele gostaria de ter conseguido persuadir os Hunter a voltar com
ele, mas pelo menos Dottie havia escrito uma carta para seus pais.
Ele tocou o bolso interno do casaco e se tranquilizou com o
estalar do papel.
O vento havia diminuído e não havia nenhum som além do sibilar
suave da maré subindo.
Pensar na carta de Dottie trouxe tio Hal à mente – não que ele
tivesse estado muito distante. A sensação da areia sob os pés e a
visão de suas próprias pegadas, longas e arqueadas, como uma
série de vírgulas seguindo-o na praia, trouxe de volta aquela
conversa do pântano em Savannah. Traição.
"Pelo menos não há nenhum maldito crocodilo", ele murmurou,
mas olhou por cima do ombro por reflexo, depois bufou e riu de
si mesmo. Com uma coisa e outra, ele não deu ao dilema de sua
herança como conde nem um único pensamento em semanas, e
percebeu com alguma surpresa que se sentia em paz consigo
1331

mesmo e estava relutante em pegar aquele fardo novamente. Ele


não se importava com quem ele era, mas ele não era o conde de
Ellesmere. Ele teria que fazer algo sobre isso, mas não agora.
Pelo menos a sugestão de Amaranthus fazia sentido. Não, ele se
assegurou, que ele a aceitasse de qualquer maneira, e saber que
seu marido ainda estava vivo anulava a ideia.
A mão em questão fechou involuntariamente, molhada de chuva,
e ele esfregou os dedos na palma da mão, apagando a memória
do beijo que ela havia deixado ali, com um minúsculo toque
quente da ponta da língua.
Maldito Ben. Idiota egoísta.
Uma súbita onda de água do mar subiu em torno de seus
tornozelos, o frio correndo por seu corpo como o choque elétrico
de uma garrafa de Leiden,568 a água sugando a areia de seus pés.
Ele cambaleou para trás, piscando a chuva de seus cílios e
percebendo que sua camisa estava úmida e os ombros de sua
jaqueta molhados.
Uma elevação no ar trouxe-lhe mais uma vez o cheiro de comida,
e ele deixou a praia, suas pegadas desaparecendo atrás dele
conforme a maré subia.

568
Dispositivo inventado acidentalmente em 1746, por Pieter van Musschenbroek, professor da
Universidade de Leiden - Países Baixos, é uma espécie primitiva de capacitor, capaz de armazenar
energia elétrica. Esse dispositivo já foi citado em Costume, Prisioneiro e Espaço.
1332

106

O TERRENO ELEVADO569

Kings Mountain, Condado do Tennessee County


Abril de 1780

TOMAR A POSSE DO TERRENO ELEVADO era uma das


pedras angulares da estratégia militar. O pai de Jamie havia lhe
contado isso, uma vez, quando ele e Murtagh se sentaram até
tarde diante do fogo, bebendo uísque e conversando. Jamie estava
curvado no chão em um canto com os cães, esperando ser
esquecido para que pudesse ficar e ouvir.
Nenhum dos homens deixava de ser observador e eles o avistaram
logo – mas, a essa altura, eles já haviam tomado algumas doses e
seu Da o deixou ficar, enrolado ao seu lado no sofá, aquecido pelo
fogo e pelo calor do corpo sólido do pai, a mão grande que não
segurava um copo de uísque pousada distraidamente nas costas
de Jamie.
"Você se lembra de se esconder nas samambaias?", Murtagh
estava dizendo, seus olhos brilhando com a memória. "Lá em
cima na encosta, esperando o início de tudo?"
Um pequeno tremor de uma risada abafada sob as costelas de seu
pai fez cócegas na orelha de Jamie.
"Lembro-me de você se levantar para mijar e Enoch Grant atrás
de você, cutucando sua bunda com a ponta do arco e sibilando

569
A expressão original, “The High Ground” significa literalmente ‘o terreno elevado’, mas é uma
expressão mais usada como ‘estar em posição elevada numa situação, em vantagem.’
1333

como uma cobra entre os dentes para fazer você sentar


novamente. Não que você tenha se sentado", Pa acrescentou, de
forma justa.
Murtagh soltou um hmph! descontente e Jamie se aventurou a
perguntar o que ele fez em vez disso?
O resultado foi outro hmph! mais alto e seu pai riu de novo, desta
vez em voz alta.
"Ele se virou e mijou em Enoch Grant e então pulou em sua
garganta e deu-lhe laldy570 com o cabo de sua adaga."
"Humm", disse Murtagh, claramente saboreando a memória.
O desafortunado Grant havia escapado de ferimentos piores,
porque naquele momento, os oficiais começaram a gritar e o
inimigo – visível no campo em Sheriffmuir571 nas últimas duas
horas – começou a se mover.
"E alguns minutos depois, saímos das samambaias como um
enxame de brobhadan572 e os arqueiros dispararam suas flechas
e aqueles de nós com espadas e targes573 correram para cima do
Sassunaich574", Pa disse a Jamie.
"Sim, e foi muito vantajoso estarmos no terreno elevado, hein?",
disse Murtagh, ligeiramente carrancudo. "Eu quase devolvi o café
da manhã quando levei uma flecha nas costas de nossos próprios
homens. Atravessou a manga da minha camisa!"
"Bem, você mijou em Enoch Grant", Pa disse razoavelmente. "O
que você esperava que ele fizesse?"
Jamie sorriu para si mesmo, ouvindo os dois conversando, claros
como o dia, e sentindo em seus ossos a lembrança do conforto do

570
Surra, punição. Em scots.
571
A Batalha de Sheriffmuir foi um enfrentamento em 1715, no auge do levante jacobita, entre Inglaterra
e na Escócia, pelo trono britânico pretendido pelos Stuart.
572
Gafanhotos, em gaélico.
573
Tipo de escudo leve, típico da Escócia.
574
O mesmo que Sassenach. Inglês, estrangeiro. Em gaélico.
1334

sono que chegava, envolto no calor da sala iluminada pelo fogo


em Lallybroch.
Ele estava quente agora, suando da escalada, e não estava com
sono. Era uma pequena montanha, nem mesmo metade da altura
de um beinn575 escocês, mas as laterais eram íngremes e
densamente arborizadas. Ele estava seguindo uma trilha de gado
na encosta da montanha – a população local pastava seu gado às
vezes no topo da montanha, porque havia um bom prado – mas
carvalhos e bordos e uma camada de arbustos baixos rastejavam
sobre a encosta, e a trilha já havia desaparecido completamente
quando ele chegou ao cume, passando por uma cortina de
pinheiros.
Ele estava à beira de uma longa campina, crescendo em uma
espécie de depressão em forma de sela. Já era final da tarde e
vários veados pastavam na outra extremidade, perto do abrigo das
árvores. Um ou dois ergueram a cabeça e olharam para ele, mas
ele ficou imóvel, e eles voltaram ao trabalho entre as sombras que
cresciam.
Havia afloramentos rochosos perto das bordas do planalto. Não
grandes, mas para um único atirador, um ponto de vista decente
– se você pudesse chegar tão longe e não ser apanhado lutando
montanha acima.
Aye, ele podia ver muito bem o que Patrick Ferguson pensaria.
Com munição suficiente e um bando de milicianos bem armados,
seria uma questão simples agachar-se perto das bordas e atirar
colina abaixo nos atacantes.
Exceto que, como Frank Randall havia contado, essa estratégia
funcionaria apenas enquanto os atacantes fossem mantidos à
distância. Ao deixá-los subir muito alto, muito perto do pequeno
prado, Ferguson mudaria para a tática de baioneta naquele ponto.

575
Pico, montanha. Em scots.
1335

Mas o problema era que os atacantes que sobrevivessem para


chegar alto o suficiente e escapassem das baionetas viriam pela
borda com suas armas carregadas e derrubariam os legalistas que
estavam lutando com armas descarregadas, equipados com facas
de açougueiro para baionetas. De acordo com o maldito livro,
Ferguson tinha pouca experiência em batalha – ele levou um tiro
no cotovelo na única batalha em que lutou, e o ferimento o deixou
aleijado – e ele não conhecia o terreno ou o caráter dos homens
que escalariam aquela montanha.
Randall não havia mencionado isso, mas Jamie tinha certeza de
que Ferguson estaria usando seu próprio rifle de carregamento
por culatra patenteado – ele sempre o usaria, sendo incapaz de
carregar uma arma normal com seu cotovelo aleijado.
Estranho pensar neste homem, neste Ferguson, cuidando da
própria vida em algum lugar neste minuto, sem ter ideia do que
estava por vir.
Mas você sabe que o mesmo está vindo para você. Um estranho
tremor percorreu a parte de trás de suas pernas, ele enrijeceu as
costas e fechou os punhos para fazê-lo parar.
"Não, eu não", disse ele desafiadoramente à sombra de Frank
Randall. "Você não esteve aqui; você não estará aqui. Não vou
acreditar em você só porque você escreveu, aye?"
Ele falou em voz alta e o cervo desapareceu como fumaça,
deixando-o sozinho no crepúsculo que se aproximava.
A noite estava tranquila, mas não na campina. Ele trouxe sua
própria perturbação com ele, e o vento fez sulcos longos e
ondulantes na grama, como se pequenas criaturas estivessem
sendo perseguidas, correndo para salvar suas vidas.
Deve haver algum ritual para enfrentar a morte – e de fato, havia
muitos, mas nenhum parecia muito apropriado para esta situação.
Na falta de qualquer outra ideia, porém, ele virou-se no sentido
1336

do sol e caminhou na beira da grama, fazendo um círculo


completo ao redor do topo da montanha e as sombras da batalha
por vir. O primeiro encantamento do sol que lhe veio à mente foi
o feitiço deasil576, dito para abençoar uma nova criança e protegê-
la do perigo.
William. Claro que seria William, sempre lá no fundo de sua
mente, nas câmaras internas de seu coração. Esta pode ser a única
coisa de valor que ele poderia deixar a seu filho, e ele deixou a
oração encher seu coração enquanto a dizia em voz alta:

Sabedoria da serpente seja tua,


Sabedoria do corvo seja tua,
Sabedoria da águia valente.

Voz de cisne seja tua,


Voz de mel seja tua,
Voz do Filho das estrelas.

Bênção da fada seja tua,


Bênção do elfo seja tua,
Bênção do cachorro vermelho seja
tua...

A generosidade do mar seja tua,


A generosidade da terra seja tua,

576
No sentido do sol, na direção em que o sol se move. Em geral, os encantamentos deasil (ou deiseil) são
repetidos com três voltas no sentido do percurso do sol. Esse mesmo encantamento foi recitado por
Jocasta para proteção de Jemmy no livro 5 cap 42
1337

A generosidade do Pai do Céu.

Seja cada dia feliz para ti,


Nenhum dia ruim para ti,
Uma vida cheia de alegria,
satisfeita.577

Foi só quando ele deixou o topo da montanha e começou a


descida escorregadia, rochosa e desajeitada através das folhas
novas e esvoaçantes dos bordos de açúcar que lhe ocorreu o
quanto daquela bênção havia de fato pertencido a ele. Algum de
seus pais disse esse feitiço para ele quando ele era pequeno?
"Uma vida cheia de alegria e satisfeita", murmurou para si
mesmo, e deixou que a paz o enchesse.
Só depois de chegar ao sopé da montanha é que ele se perguntou
se, quando viesse a morrer, Pa ou sua mãe estariam lá para
recebê-lo.
"Ou talvez Murtagh", disse ele, e sorriu com o pensamento.

577
Encantamento "Dùrachd (Good Wish)", encontrado em partes na página 241 de Carmina Gadelica,
vol. III (1940), coletânea de Hinos e Encantamentos gaélicos, recolhidos por Alexander Carmichael e
editados por James Carmichael Watson. Esse mesmo encantamento foi recitado por Jocasta para proteção
de Jemmy no livro 5 cap 42.
1338

PARTE CINCO

Voe para casa578

578
No original, ‘Fly Away Home’. Existe uma música infantil que fala "Ladybird, ladybird, fly away
home. Your house is on fire and your children are gone." No cap 111 do livro 8, Marsali recebe um
bilhete anônimo com o texto dessa música, interpretado como uma ameaça.
1339

107

NUMA MANJEDOURA579

Fraser’s Ridge

NÓS ADQUIRIMOS DUAS novilhas de um ano no verão, uma


quase toda branca com manchas pretas e a outra quase vermelha
com manchas brancas. Seus nomes, de acordo com Mandy, eram
Moo-Moo e Pinky, mas Jemmy tinha folheado meu Manual Merck
e as apelidou de Lepra e Rosácea. Jamie disse, de forma prática,
que pouco importava como eram chamadas, já que ele nunca havia
conhecido uma vaca que respondesse por seu nome, de qualquer
forma; ele as chamou de Ruaidh e Ban - “Vermelha” e “Branca”,
em gaélico.
No momento, ele estava chamando a vermelha de algo em gaélico
que traduzi aproximadamente como “Filha infame de uma lagarta
venenosa”, mas eu supus que eu poderia estar perdendo nuances
mais delicadas.
"Não é culpa dela", eu disse em reprovação.
Ele fez um barulho escocês como uma betoneira e cerrou os dentes.
Ele tinha um braço inserido na parte de trás da Rosácea até o
cotovelo, e seu rosto à luz bruxuleante da lanterna estava tão
vermelho quanto a pele dela.
Realmente não era culpa da pobre vaca - ela ficou prenha muito
jovem e estava tendo muitos problemas para dar à luz o seu
primeiro bezerro - mas eu não o culpei também. Ele estava tentando
há um quarto de hora segurar os dois pés para que pudesse puxar o
bezerro, mas Rosy estava nervosa e continuava empurrando seu
traseiro para longe. O nariz do bezerro apontava de vez em quando,
as narinas dilatavam-se no que pensei ser pânico. Eu me sentia da
mesma maneira, mas estava lutando contra isso.
Eu queria ajudar, colocar minhas próprias mãos muito menores na
579
No original, “Away in a Manger”. Esse título é o mesmo usado no cap 48 no livro 4. Nesse capítulo do
livro 4, Jamie está lidando com o parto de um bezerro da vaca Magdalen, que tinha ficado prenha antes do
tempo, exatamente como ocorre aqui. É nesse capítulo do livro 4 que Jamie mostra a Brianna que não
tinha como escapar de Bonnet.
1340

vaca e pelo menos localizar os cascos. Porém, eu tinha cortado


minha mão direita gravemente durante o dia e não podia expor uma
ferida aberta com o que Jamie estava lidando no momento.
“Nic na galladh!”580 disse ele, recuando e apertando sua mão. Na
confusão e na luz fraca, ele acidentalmente enfiou a mão no orifício
errado e agora estava batendo o braço para desalojar uma camada
de esterco fresco e muito úmido. Ele avistou meu rosto e apontou
um dedo viscoso e ameaçador para mim.
"Ria, e vou esfregar isso no seu rosto, Sassenach."
Eu coloquei minha mão enfaixada solenemente sobre minha boca,
embora eu estivesse tremendo internamente. Ele bufou, enxugou a
mão imunda na camisa e voltou a se dedicar ao trabalho,
murmurando maldições. Em alguns momentos, porém, as
execrações transformaram-se em orações urgentes. Ele pegou os
pés.
Eu mesma estava orando. A pobre vaca estava em trabalho de parto
desde a noite anterior, e estava começando a balançar, a cabeça
pendurada em exaustão. Isso podia ajudar. Se ela estava cansada o
suficiente para relaxar ... Jamie agarrou as pulseiras de corda que
ele havia feito - essencialmente dois laços pequenos unidos por
uma corda - e empurrou-as sobre os pequenos cascos antes que
pudessem escorregar para fora da mão dele. Então estava agachado
atrás de Rosy, puxando com força. Ele parou quando a contração
diminuiu, ofegante, apoiando a testa contra o quadril da vaca.
Estava escuro no estábulo; era uma pequena caverna com um
portão na frente, e não havia luz, exceto uma pequena lanterna a
óleo pendurada em um prego martelado na rocha. Mesmo assim, vi
a onda de uma nova contração começar e inclinei-me para Jamie,
tentando colocar minha própria força nele, para ajudar.
Ele fincou os pés com força na palha e puxou, fazendo um barulho
desumano de esforço e com uma espécie de glorp! macio, o bezerro
escorregou em uma cascata de sangue e gosma.
Jamie se levantou, lentamente. Ele estava ofegante com o esforço,
rosto e roupas manchado de sangue e estrume, mas seus olhos não
deixaram o bezerro e seu rosto estava iluminado com a mesma
alegria que senti ao observar a nova mãe - extremamente plácida,

580
“Filha da puta!”, em gaélico
1341

considerando os eventos recentes - cheirar seu novo filhote e


começar a lambê-lo com golpes longos e ritmados de sua língua.
"Ela será uma boa mãe."
Por um instante, pensei que Jamie tivesse dito isso, mas ele estava
de frente para mim, olhando surpreso, e houve um leve movimento
atrás de mim. Virei-me com um pequeno grito e vi o homem que
entrara silenciosamente no estábulo conosco.

"Que diabos..." comecei, tateando em busca de uma arma, mas


Jamie havia levantado sua mão em saudação ao homem.
"Sr. Cloudtree ", disse ele, e fez uma pausa para passar o antebraço
em seu rosto manchado de sangue. "Acredito que podemos ver que
você está bem, e sua família?"
"Eles estão bastante bem", respondeu o jovem, mantendo um olhar
cauteloso em mim e na pá de madeira que peguei. "E já que eu tive
a chance, senhora, eu queria agradecer por isso. Pelos meus bebês,
quero dizer. ”
“Oh,” eu disse, um tanto inexpressivamente. Cloudtree. As peças
de memória se encaixaram em torno desse nome. O cheiro fecundo
do estábulo, o pântano de sangue e fluidos uterinos, trouxe de volta
aquela noite fora do tempo em uma pequena cabana, o esforço
infinito e o eterno atemporal quando eu segurei uma pequena luz
azul em minhas mãos, orando com o coração e a alma para que ela
não fosse embora. Engoli em seco.
"De nada, Sr. Cloudtree", eu disse. Aaron. Esse era o nome do
desagradável padrasto de Agnes: Aaron Cloudtree. Eu olhei para
ele com muito menos deferência, mas ele não percebeu, sua
atenção fixa em Jamie e na cena diante de nós.
- Um bom trabalho aí, homem - disse ele a Jamie, acenando com a
cabeça em aprovação para Rosy e o bezerro dela, este último com
olhos arregalados e perplexos, com o cabelo com redemoinhos em
todas as direções. "Quase tão bom quanto o de sua esposa."

"Taing",581 disse Jamie, e se abaixou para pegar a toalha de linho


suja, enxugando o rosto enquanto se levantava. "O que o traz a nós
a esta hora da noite, Sr. Cloudtree?"

581
“Obrigado”, em gaélico
1342

"Eu vim mais cedo, mas vocês estavam na mesa", disse Cloudtree,
encolhendo os ombros. "Vocês estavam com a velha bruxa lá; eu
não poderia ter falado diante dela. "
Jamie olhou para mim e se acomodou, limpando lentamente as
mãos.
"Fale agora", disse ele.
“O filho da velha bruxa, Cunningham. Você sabe que ele está
negociando, até as aldeias Cherokee, do outro lado da Linha? "
Jamie acenou com a cabeça, os olhos fixos no rosto de Cloudtree.
Ele era mestiço, um homem bonito com cabelos castanhos
compridos e sedosos, embora com uma curva petulante na boca.
“Nem todo mundo o escuta”, garantiu Cloudtree. "Mas ele tem
alguns poucos homens por lá, talvez vinte, que irão segui-lo. Ele os
chama de sua milícia, mas ele nunca lutou com índios antes, ou ele
os conheceria melhor. Eles pegam suas armas, pólvora e medalhas,
porém, e provavelmente fariam o que ele pedisse - por um tempo."
"O que é que ele está pedindo?" Jamie havia parado de limpar as
mãos e agora segurava a toalha torcida entre elas.
"Não ouvi isso dele", disse Cloudtree, inclinando-se e baixando a
voz, "mas ouvi de dois dos homens em Keowee 582, os que ele
pagou. Há um oficial de casaca vermelha chamado Ferguson,
determinado a ir e vir nas montanhas, levantando milícias legalistas
e prendendo rebeldes, enforcando homens e incendiando casas.
Cunningham escreveu uma carta a Ferguson, nomeando seu nome
e dizendo que ele deveria vir aqui com suas tropas, 'porque você é
um castor rei583 entre os rebeldes e seu couro valeria o trabalho de
tomá-la. "
Todo o ar parecia ter sido sugado para fora do estábulo. Depois de
um momento, porém, Jamie respirou fundo e soltou o ar
lentamente.
"Você sabe quando?" ele perguntou calmamente.
582
Cidade cherokee ao longo do rio com o mesmo nome (significa ‘lugar das amoras’), era uma das sete
‘cidades baixas’. Como os cherokees eram altamente descentralizados, as poucas cidades eram o que
existia em termos de urbanização. Mas já em 1776, poucos índios as habitavam, sendo então ocupadas
por anglo saxões. Ao longo dos anos, foram desaparecendo e, no início dos anos 1970, foram submersas
por um lago criado por um projeto hidroelétrico
583
A expressão usada, “king beaver”, também usada em outro capítulo, passa uma ideia de ‘uma pessoa
importante’, ‘um peixe grande’, digamos assim. Pesquisas não conseguiram chegar a uma resposta
correta. É bom lembrar que peles de castor eram um artigo extremamente valioso, negociadas por grandes
valores entre os índios e a Coroa. Um castor rei poderia ser um animal maior, cuja captura valeria a pena
por causa da sua pele.
1343

Cloudtree encolheu os ombros.


“Eu não sei sobre Ferguson. Parece que ele tem muito para mantê-
lo ocupado onde está. Mas Cunningham se cansou de esperar por
uma resposta. Os homens com quem conversei dizem que ele
pretende prendê-lo pessoalmente e levá-lo para Ferguson - então
Ferguson pode enforcá-lo para se exibir, quero dizer. Dizem”- ele
olhou para as mãos e cruzou os dedos, contando -“ oito dias a partir
de ontem. Cunningham está esperando por um colega de nome
Partland, que veio de Ninety-Six584 com mais alguns homens. "
Os olhos de Jamie encontraram os meus e eu sabia que estávamos
pensando a mesma coisa: daqui a sete noites seria a noite da Loja.
Se eles estivessem vindo atrás de Jamie, seria o momento lógico
para fazê-lo. Eram uns bons trezentos quilômetros do povoado de
Ninety-Six até o Ridge, mas Partland e seus amigos poderiam
muito bem conseguir.
"Aquela maldita serpente!" eu disse. Fiquei alarmada e com raiva,
mas a raiva estava definitivamente no topo. "Como ele ousa?"

“Bem, eu tirei as armas deles, Sassenach.” Jamie disse suavemente.


"Eu disse a você que eles ficariam ressentidos."
Ele olhou pensativo para Aaron e distraidamente passou as costas
da mão na boca. Ele fez uma careta, esfregou a mão na calça e
cuspiu na palha.
“Sim,” ele disse. "Você me prestou um serviço, sr. Cloudtree, e eu
vou me lembrar disso. Diga-me, você conhece um homem
chamado Scotchee Cameron? "585
Aaron estava olhando ao redor do estábulo, interessado, mas teve
a atenção despertada por aquele nome.
"Todo mundo conhece", disse ele, passando o interesse para Jamie.
“Superintendente Indígena, não é? Amigo seu?"
“Nós compartilhamos um cachimbo de vez em quando. Eu fui um
agente indígena por um tempo. ”
Eu olhei para Jamie. Eu sabia que ele havia fumado com os
Cherokee quando os visitou, mas nunca perguntei a ele que tipo de
584
Noventa e seis, cidade na Carolina do Sul. A origem de seu nome peculiar não é muito clara, mas os
primeiros mapas da região marcavam o número de córregos que corriam do rio Savannah (9) e o número
de córregos que corriam do Rio Salud (6). A união desses dois números pode ter resultado no nome da
cidade.
585
Personagem que já apareceu no livro 6.
1344

conversa isso envolvia. Da mesma forma, nunca conheci


Alexander Cameron, mas, como todo mundo, sabia sobre ele.
Escocês, ele se casou e escolheu viver entre os índios, caçando e
negociando. Ele se tornou um superintendente indígena após a
renúncia de Jamie, no entanto, e como agora era amplamente
conhecido que Jamie era um rebelde, ele cortesmente não procurou
Scotchee quando negociou nas terras Cherokee. Cameron ainda era
respeitado, no entanto, Jamie disse, confiável e conhecido em todos
os lugares.
"Você sabe onde ele está agora?" Perguntou Jamie.
Aaron franziu os lábios, pensando. Ele está pensando onde
Cameron está? Eu me perguntei. Ou se perguntando o que ele pode
fazer com a situação?
"Sim", disse ele, embora com um toque de dúvida em sua voz. Ele
coçou a cabeça para ajudar o pensamento.
“Ele mora com o povo de Overhill, mas estava em Nensanyi na
semana passada, então provavelmente já deve ter vindo para
Keowee. É onde vivemos ”, disse ele, virando-se para mim.
"Susannah, as crianças e eu." Ele parecia querer se justificar para
mim, possivelmente se lembrando - como eu certamente lembrei -
de sua bofetada em Agnes na noite em que sua mãe deu à luz. E ele
podia estar com medo do que Agnes me contou sobre ele.
"Fico feliz em saber que vocês têm um lugar", disse eu, sorrindo
um pouco rigidamente para ele. "Por favor, dê meus cumprimentos
a Susannah e diga a ela que se ela precisar de um médico
novamente, por favor, me envie uma mensagem e eu irei."
Sua expressão se iluminou e ele acenou com a cabeça para mim.
"Muita bondade sua, senhora. Ah ... você quer que eu encontre
Scotchee e conte a ele sobre esse seu problema ... senhor? " ele
acrescentou para Jamie, parecendo incerto. "Pode ser que ele fale
com sensatez com qualquer Cherokee que tenha relações com
legalistas."
"Eu quero", disse Jamie. Ele deu uma rápida olhada nas vacas, mas
o novo bezerro cambaleou, balançando a cabeça. Ele acenou com
a cabeça para si mesmo, então se abaixou e pegou a toalha suja que
estava usando.
“Venha para a casa, sim, Sr. Cloudtree? Minha esposa encontrará
algo para você comer enquanto escrevo algumas palavras para
1345

Scotchee. Podemos encontrar uma cama para você também, se


quiser? ”
Cloudtree balançou a cabeça.
“Gosto de caminhar à noite”, disse ele simplesmente. “Ela fala
comigo. Mas eu não diria não para algo de comer e beber, senhora.
"
-.-.-

EU TINHA subido ao nosso quarto - depois de fornecer a Jamie e


ao Sr. Cloudtree um prato de pãezinhos recheados com queijo e
minha versão rústica de picles Branston586 - mas não estava com
vontade de dormir. Minha espinha dorsal esfriou com a história de
Aaron e não descongelou nem um pouco, embora minhas entranhas
estivessem pulsando com um calor raivoso.
Eu estava tentando distrair minha mente lendo As Duas Torres,587
que Jamie havia deixado ao lado da cama, mas fiquei imaginando
o Capitão Cunningham como Shelob com um chapéu com um laço
dourado e me perguntando se eu poderia apelidar minha seringa de
Sting. “Jesus H. Roosevelt Cristo”, murmurei, colocando o livro de
lado e pulando da cama. O chão estava frio sob os pés, mas não me
importei. Eu andava pela sala como um cachorro em um canil,
fumegando. Percebi que estava alimentando minha raiva para não
ser dominada pelo medo, mas era uma batalha perdida. Como
diabos eu iria olhar na cara de Elspeth Cunningham? Eu deveria
vê-la no domingo, se não antes. Ficar fora da igreja não ajudaria;
se ela pensasse que eu estava doente, ela viria prontamente para me
dar algum remédio.

Ela sabia o que o capitão estava fazendo? Eu me perguntei,


passando por cima de Adso, que estava deitado de lado no tapete
de pano em frente à lareira, espalmado com sono. Se ela soubesse
- o que ela poderia fazer?
Provavelmente nada. Afinal, ela me avisou. E eu a avisei.

586
Pickles Branston é feito de uma variedade de vegetais em cubos, incluindo rutabaga (um tipo de nabo),
cenoura, cebola e couve-flor em conserva em um molho feito de vinagre, tomate, maçã e especiarias.
587
Um dos livros da trilogia Senhor dos Anéis. Shelob é a aranha gigante que captura Frodo Baggins
e“Sting “ é à espada “Ferroada” de Bilbo Baggins, herdada por Frodo e usada por Sam para ferir Shelob,
salvando Frodo.
1346

Uma vara acesa quebrou na lareira com um estalo agudo e faíscas


espirraram em uma pequena fonte. Algumas ficaram presas na tela
de fogo que Bree havia feito, brilhando em vermelho por um
instante antes de morrer. O gato torceu a orelha, mas permaneceu
impassível.
Senti, mais do que ouvi, a porta da frente se fechando: uma
vibração abafada pelas fundações da casa. Aaron Cloudtree havia
partido. Puxei meu xale e desci as escadas, deixando Adso cuidar
do fogo.

-.-.-
“VOCÊ ACHA que este Scotchee pode ajudar?” Eu perguntei
duvidosamente. O Sr. Cloudtree tinha partido, cheio de uísque e
picles, com uma nota selada - escrita em gaélico e cuidadosamente
sem assinatura, em caso de interceptação ou indiscrição - no bolso,
e estávamos sentados perto do fogo da cozinha, compartilhando o
resto do uísque com a paz da casa em repouso, ao redor. Era muito
tarde - talvez duas ou três da manhã, a julgar pela imobilidade
profunda e fria do ar lá fora - mas nenhum de nós queria ir para a
cama.
“Não sei” admitiu Jamie. Ele esfregou o rosto com as duas mãos e
balançou a cabeça, deixando o cabelo amarrotado e despenteado,
os cabelos curtos se erguendo do alto da cabeça, vermelhos à luz
do fogo. Ele bocejou, piscou e balançou a cabeça, mais para
dissipar a névoa mental do que para reconhecer o sono avançando,
pensei.
“Depende”, disse ele, após um gole meditativo. “Onde ele está,
com quem ele pode falar. E se ele ainda consegue ler o Gàidhlig”,
acrescentou ele, com um sorriso pesaroso. “Se não, não estamos
pior do que antes. Se tivermos sorte, ele pode ficar inclinado a
descobrir com quem Cunningham está lidando entre os Cherokees,
e talvez mandar uma palavra para o chefe da vila. "
Eu balancei a cabeça, em dúvida. O território Cherokee era um
vasto país, com centenas de aldeias. Por outro lado, Jamie era bem
conhecido lá como o agente indiano antes de Scotchee, e eu pensei
que, embora os cúmplices de Charles Cunningham pudessem estar
familiarizados com alguns dos chefes Cherokees, o próprio
Cunningham quase certamente não estava. Alexander Duff e seu
1347

filho viviam a um quarto de milha da cabana de Cunningham;


Donald MacGillies a poucos passos dos Duffs. Sandy Duff e
Donald MacGillies eram homens de Ardsmuir, de total confiança,
e eu sabia que eles estavam de olho nas idas e vindas da Linha do
Tratado.
"O que você fez com os rifles que pegou de Cunningham?" Eu
perguntei, derramando outro copo de leite quente e adicionando um
fiozinho de mel.
“Dei a maioria deles a homens em quem posso confiar. Falando
nisso ... ”ele disse, e bocejou novamente. "Oh, Deus ... Terei que
enviar uma mensagem aos homens de Além da Montanha, embora
não possa alcançá-los a tempo. Sevier pode vir, no entanto; ele é o
mais próximo e um homem forte. E ele não gosta muito de índios.

1348

108

NOITE DA LOJA

Sete dias depois

Jamie não conseguiu comer o jantar, embora não tivesse comido


nada desde a noite anterior. Seu estômago estava fechado como
uma luva amarrada, e ele não sentia fome; a falta de comida aguçou
seus ossos e clareou sua cabeça. Ele se sentia calmo, mas como se
estivesse atrás de um espelho, observando a si mesmo.
"Eh?" Claire tinha dito algo para ele, e ele não tinha ouvido. Ele
fez um breve gesto de desculpas, e ela estreitou os olhos para ele -
não por aborrecimento, mas por preocupação.
"Está tudo bem, Sassenach", assegurou-lhe ele. “Cunningham não
me quer morto. O pior que pode acontecer é ele me fazer
prisioneiro esta noite. ”
“E o que acontece depois disso?” ela perguntou. Ela estava muito
tensa como um novo relógio; ele podia ver as pequenas
engrenagens da cabeça dela girando e sorriu. Uma de suas
sobrancelhas se ergueu e ele se inclinou e a beijou.
“Dinna fash, a nighean. Depois disso, o capitão tem uma escolha,
não é? Expulsar-me de Ridge - e boa sorte para ele se essa for sua
escolha - ou tentar me levar além da Linha do Tratado e através das
terras Cherokee para chegar a Ferguson - onde quer que aquele
pobre bastardo esteja agora. E embora os amigos de Cunningham
tenham amigos entre os Cherokee - eu também tenho, e se Aaron
Cloudtree encontrou Scotchee Cameron ou falou sobre o assunto
com outra pessoa - e eu apostaria minhas melhores meias que ele
fez isso; pode-se dizer que ele é um tagarela - o capitão pode ter
muito mais problemas para me levar a qualquer lugar do que ele
possa pensar. "
“Oh, que bom,” ela disse, e a linha entre suas sobrancelhas
diminuiu um pouco. "Então, depois que você começar uma
1349

pequena guerra pela Linha do Tratado, o capitão terá que matar


você sozinho."
Jamie encolheu os ombros. Ele não tinha pensado tão longe, mas
não importava.
"Ele pode tentar."
Ela não parecia muito menos preocupada, mas sorriu para ele,
apesar de tudo. Ver isso o fez, repentinamente e com urgência,
querer tê-la, e isso ficou claro em seu rosto, pois o sorriso dela se
aprofundou - embora seu olhar de soslaio para a porta o
convencesse de que ela não iria deixá-lo curvá-la sobre a mesa e
tentar para terminar antes que a pequena Aggie entrasse.
“Depois da Loja, então,” ele disse, sorrindo para ela.
Ela respirou fundo e acenou com a cabeça.
“Depois da Loja,” ela disse, tentando soar tão certa quanto ele.

-.-.-

EU ESTAVA TRABALHANDO no meu Merck, passando de


distúrbios pleurais e o uso de toracocentese588 a um relato fascinante
de inflamação da mucosa retal, mas, embora meu cerebelo pudesse
ser levado a uma distração momentânea, meu tronco cerebral,
medula espinhal e nervos sacrais não sentiam nada disso. Se eu
tivesse um rabo, ele estaria pressionado com força entre minhas
pernas, e pequenos choques de algo entre eletricidade e náusea
jorraram inesperadamente pelo meu abdômen.
As meninas sabiam que algo estava acontecendo. Elas ficaram em
silêncio como ratos durante o jantar, olhando como se estivessem
hipnotizadas para Jamie. Eu também estava hipnotizada, vendo-o
se vestir depois.
Eu fiquei para ajudar a limpar a mesa, guardar os restos e sobras da
refeição e extinguir o fogo na lareira da cozinha, e quando subi para
o nosso quarto, encontrei-o de costas para mim, do outro lado do
quarto. Ele não se virou; achei que talvez ele não tivesse me ouvido
entrar. Seu rosto estava refletido na janela em que ele estava, mas
pude ver que ele não estava olhando para seu reflexo.
Ele não estava olhando para lugar nenhum. Seus olhos estavam

588
Procedimento pulmonar; punção da cavidade pleural para drenar um derrame.
1350

fixos e cheios de escuridão, e seus dedos se moviam rapidamente,


abrindo os botões, desenrolando o lenço do pescoço, afrouxando as
calças - tudo como se ele estivesse em outro lugar, completamente
inconsciente do que suas mãos estavam fazendo. Ele estava se
preparando para lutar.
Seu tartan estava na cama, junto com uma camisa limpa e sua
jaqueta de couro. Ele se virou, provavelmente para pegá-lo, e me
viu. Ele parecia estar oco, e então a vida fluiu de volta para ele.
"Você parece ter visto um fantasma, Sassenach", disse ele, em uma
voz que era quase normal. "Eu sei que envelheci um pouco, mas
com certeza não é nada tão ruim assim?"

"Você assustaria o próprio Diabo", eu disse. Eu não estava


brincando e ele sabia disso.
“Eu sei” ele disse simplesmente. “Eu estava me lembrando de
como era, um pouco antes do ataque. Em Drumossie589. As pessoas
gritavam e eu podia ver o gunna mòr590 do outro lado do campo,
mas não significava nada. Eu estava tirando minhas roupas, porque
não havia mais nada a fazer além de desembainhar minha espada e
correr pela charneca. Eu sabia que nunca chegaria do outro lado, e
eu não me importava. "
Eu não conseguia falar. Nem ele, mas continuou em silêncio com
a rotina de se lavar, de colocar sua camisa limpa e seu tartan
afivelado com o cinto, e quando ele se levantou, ele sorriu para
mim, embora seus olhos ainda guardassem lembranças.
“Dinna fash, Sassenach. Cunningham quer me entregar a Patrick
Ferguson e ficar com o crédito. É sua melhor chance de fazer nome
entre as forças legalistas. ”
Eu balancei a cabeça obedientemente, sabendo tão bem quanto ele
que o motivo para começar uma briga muitas vezes não tinha nada
a ver com o fato de como as coisas aconteciam.
Ele encaminhou-se para a porta, depois parou, esperando por mim.
Eu vim devagar até ele, toquei nele. Ele ainda não tinha colocado
o casaco e seu braço estava sólido e quente através do tecido de sua
camisa.
“Será hoje?” Eu desabafei. Duas vezes antes, ele me deixou à beira
589
Culloden
590
Canhão, em gaélico
1351

de um campo de batalha, me dizendo que, embora pudesse chegar


o dia em que ele e eu nos separaríamos, não seria hoje. E nas duas
vezes, ele estava certo.
Ele segurou minha bochecha com uma das mãos e olhou para mim
por um longo momento, e eu sabia que ele estava me fixando em
sua memória, como eu tinha acabado de fazer com ele.
“Eu não penso assim,” ele disse finalmente, sobriamente. Sua mão
me soltou, minha bochecha repentinamente fria onde ele a tocou.
“Mas não vou mentir para você, Claire; acho que vai ser uma noite
dos diabos. ”
-.-.-

A NOITE DA LOJA, de acordo com o costume, começava cerca


de duas horas depois do jantar, para permitir que todos digerissem
a comida, terminassem as tarefas noturnas e saíssem de onde quer
que morassem. Algumas propriedades ficavam a cerca de cinco ou
seis milhas da Casa de Reunião.
Jamie queria chegar cedo, com urgência, tanto para antecipar
qualquer emboscada quanto para dar uma espiada em silêncio, caso
Cunningham tivesse pensado em postar homens na floresta
próxima. Ele não fez isso, no entanto. Ele parou no estábulo para
verificar o bem-estar de suas vacas, depois parou perto do chiqueiro
e contou as formas sombrias e ofegantes aglomeradas na palha,
observando que seria melhor trocá-la esta semana.
Em seguida, ele subiu lentamente a colina em direção à Casa de
Reunião. O tempo esquentou abruptamente e morcegos estavam
piscando no ar entre as árvores, pegando insetos rápido demais para
serem vistos. Brianna tinha lhe contado como eles faziam, e se ele
escutasse atentamente, ele pensava que às vezes podia ouvir seus
gritos, finos e agudos como vidro quebrado.
Tom MacLeod saiu das árvores e caminhou ao lado dele com um
silencioso “Mac Dubh”. Às vezes tinha uma sensação estranha
quando um de seus homens de Ardsmuir o chamava assim.
Memórias da prisão, as coisas difíceis - e eram difíceis - mas
também o pulso fugaz e regular da afinidade que os mantinha vivos
e os amarraria para o resto da vida. E no fundo de seu coração,
sempre, uma vaga percepção de seu pai, o Negro de quem ele era
filho.
1352

"Dean Urnaigh dhomh", ele sussurrou. Ore por mim, Pai.


Ele podia ouvir homens entre as árvores agora, vindo ao longo das
trilhas da montanha em um, dois e três, reconheceu as vozes:
MacMillan, Airdrie, Wilson, Crombie, MacLean, MacCoinneach,
dois dos irmãos Lindsay, Bobby Higgins, vindo atrás dele … Ele
sorriu ao pensar em Bobby. Bobby era um dos dez homens com
quem ele havia falado sobre esta noite. Bobby não lutou contra
ninguém, exceto um guaxinim ocasional nos últimos anos, mas ele
tinha sido um soldado e se lembrava de como isso era. E dos dez,
apesar de ter sido um soldado inglês, Bobby Higgins era um dos
homens em quem confiaria a vida.
Ele não era dado a arrependimentos em vão, mas por um instante
lancinante, ele pensou como esta noite poderia ser diferente se ele
tivesse o Jovem Ian ao seu lado e Roger Mac. Se ele tivesse
Germain e Jeremiah também, esperando do lado de fora e prontos
para correrem em busca de mais ajuda, se necessário.
Pelo menos você não fará com que nenhum deles seja morto. Ele
não tinha certeza se isso era seu próprio pensamento ou a voz de
seu pai, mas era um pequeno conforto.
Os Crombies e Gillebride MacMillan estavam esperando do lado
de fora da Casa de Reunião. Assim como vários homens que ele
sabia serem legalistas quietos - talvez de Cunningham, talvez não
- mas eles provavelmente não levantariam uma mão para salvá-lo,
se fosse isso que importasse. Ele pensou que um ou dois deles o
olhavam de forma estranha, mas a luz era fraca através dos couros
oleados sobre as janelas; ele não podia dizer isso com certeza, e
afastou o pensamento.

Ele ainda não fez menção de entrar; era costume ter uma pequena
conversa do lado de fora antes de começarem os trabalhos. Ele
respondia à conversa e ria de vez em quando, mas não conseguia
captar mais do que uma simples noção do que lhe era dito. Ele
podia sentir Cunningham. Nas árvores escuras atrás de suas costas,
esperando.
Ele quer ver quantos homens eu tenho.
Jamie queria ver quantos homens Cunningham tinha - e quem eles
eram. E, para isso, Aidan Higgins estava se escondendo no mato ao
lado da trilha principal que levava à Casa de Reunião da parte oeste
1353

de Ridge, e Murdo Lindsay perto da trilha que ia da parte leste. Se


quaisquer Cherokees viessem para participar da ação desta noite,
eles viriam por ali, e se Deus e Murdo quisessem, ele saberia sobre
isso a tempo de agir.
1354

109

DE PROFUNDIS591

MINHA MÃO DIREITA estava latejando, no ritmo do meu


batimento cardíaco. O corte na palma da minha mão cicatrizou,
superficialmente, mas foi profundo o suficiente para que os nervos
na derme fossem feridos, e eles acordavam de vez em quando para
protestar contra o insulto. Virei a mão, procurando
preguiçosamente por inchaço ou manchas vermelhas de
envenenamento tardio do sangue, embora soubesse muito bem que
não havia nada desse tipo.
Acontece que as coisas quebradas sempre doem mais do que você
pensa que vão doer.
Obviamente, eu não dormiria até - e a menos que - Jamie voltasse
para casa, mais ou menos inteiro. Acendi o pequeno braseiro em
minha cirurgia e alimentei o fogo incipiente com lascas de
nogueira. "Como uma maldita vestal"592, murmurei para mim
mesma, mas senti um leve conforto com a luz que crescia.
Já tinha verificado e renovado meu kit de campo, em caso de
emergência. Estava pendurado em seu prego de costume, perto da
porta. Eu deixei de lado o Manual Merck; eu não conseguia me
acomodar para ler.
Bluebell e Adso entraram no consultório para me fazer companhia;
o cachorro estava dormindo embaixo da minha cadeira e Adso
estava deitado sobre o balcão, seus grandes olhos cor de jade
semicerrados, ronronando em arrancos curtos como uma
motocicleta distante sendo acelerada.
591
Das profundezas. Palavras iniciais da versão latina do Salmo 130, recitado nas cerimônias fúnebres e
no ofício dos mortos.
592
Uma lembrança do que é falado no livro 8 cap 55
1355

“Obrigado pelas pequenas graças,” eu disse a ele, apenas para


quebrar o silêncio. “Pelo menos Jamie nunca quebrará o pescoço
andando de motocicleta. ”
Ele pode nunca mais fazer muitas outras coisas também ...
Cortei esse pensamento abruptamente e, estendendo a mão sobre o
gato, comecei a tirar garrafas e potes do armário de uma forma
determinada. Eu também poderia fazer um inventário: jogar fora
coisas que eram muito velhas para serem farmaceuticamente ativas,
fazer uma lista das coisas de que precisaríamos na próxima vez que
Jamie fosse (sim, ele também irá!) para uma cidade e talvez moa
algumas coisas, apenas para fingir que eu estava ralando a cara de
Charles Cunningham ... ou talvez a do rei ...
A cabeça de Bluebell levantou de repente e ela deu um pequeno
hurf! de aviso. Adso se desenrolou instantaneamente e saltou em
cima do armário alto onde eu guardava as bandagens e meus
instrumentos cirúrgicos. Claramente, tínhamos companhia.
“É muito cedo,” eu disse em voz alta. Ele havia saído de casa há
menos de uma hora. Certamente nada poderia ter acontecido ainda
... Mas meu corpo estava muito à frente de meus pensamentos e eu
tinha chegado à porta da frente antes de terminar esse último. Eu
não tinha colocado a barra depois que Jamie saiu, mas eu tinha
fechado a fechadura do ferrolho e a abri agora com um baque agudo
e decisivo. Não importava quem tinha vindo para me dizer o quê.
Eu precisava saber.
Fiquei assustada, mas não realmente surpresa.
“Elspeth”, eu disse. Eu recuei, sentindo como se tivesse feito isso
em um sonho.
“Eu tive que vir,” ela disse. Ela estava branca como um fantasma e
parecia exatamente como eu me sentia - despedaçada.
“Eu sei”, eu disse, acrescentando automaticamente: “Pode entrar”.
"Você sabe?" ela disse, e sua voz continha tanto dúvida quanto o
horror de perceber que não havia mais nenhuma dúvida.
1356

Fechei a porta e me afastei para ir ao meu consultório, deixando-a


para seguir como quisesse.
Assim que entramos no consultório, deixei cair a pesada colcha que
ainda me servia de porta, protegendo-nos da noite. Bluey estava de
pé, logo atrás do meu joelho, e rosnava baixinho e ameaçadora. Ela
conhecia Elspeth e normalmente teria ido até ela para uma cheirada
e um tapinha amigável. Não esta noite, Josephine,593 pensei, mas
disse: “Pare, cachorra. Está tudo bem."
Diabos que está estava escrito no rosto de Bluebell, mas ela parou
de rosnar e recuou lentamente para o tapete da lareira, onde se
deitou, mas manteve os pelos do pescoço levantados e um olhar
profundamente desconfiado fixado em Elspeth, que parecia não
notar .
Indiquei para Elspeth uma das duas cadeiras. Sem perguntar,
peguei a garrafa de JF Special e enchi dois copos até a borda.
Elspeth aceitou o dela, mas não bebeu imediatamente, embora
estivesse claro que ela precisava. Não hesitei em tomar minha
própria dose.
"Eu pensei que poderia - orar com você", disse ela.
“Tudo bem,” eu disse, categoricamente. “Não há mais nada que
possamos fazer agora, certo?”
Bebi, com toda a esperança de que estivesse certa e que ela não
tinha vindo me dizer que seu filho havia matado ou capturado meu
marido. Mas ela não tinha; tanto quanto eu podia ver através da luz
do fogo que pintava seu rosto com a ilusão de saúde. Ela veio até
mim com medo, não com pena. Suas mãos magras e envelhecidas
estavam enroladas em sua xícara, e achei que se ela apertasse com
muito mais força, o peltre se dobraria.
“Ainda não aconteceu?” Eu perguntei, e fiquei surpresa por soar
quase casual.

593
Expressão criada como sendo uma suposta resposta de Napoleão Bonaparte ao recusar fazer sexo com
a Imperatriz Josefina.
1357

"Eu não sei." Por fim, ela levou a xícara aos lábios, ainda
segurando-a com as duas mãos. Quando ela abaixou, ela parecia
um pouco menos agitada. Ela ficou em silêncio por um longo
momento, estudando meu rosto. Pela primeira vez, não me
incomodei com o fato de ter um rosto de vidro; isso pode evitar
explicações.
Sim, sim. Ela estava abalada e pálida quando entrou. Agora ela
estava agitada, e um rubor subiu em suas bochechas encovadas.
"Há quanto tempo ele sabe?" ela perguntou. "Seu marido."
“Há cerca de uma semana”, eu disse. “Nós descobrimos por
acidente. Quero dizer, nenhum dos associados do seu filho o traiu.
" Eu não tinha certeza de por que ofereci a ela essa migalha de
caridade; acho que não havia mais nada entre nós agora, mas a
memória da gentileza.
Ela balançou a cabeça lentamente e olhou para o âmbar
esfumaçado do uísque. Fiquei surpresa ao perceber que ela também
tinha o tipo de rosto que não escondia os pensamentos de sua dona,
e a compreensão restaurou uma pequena parte dos meus
sentimentos por ela.
“Nós sabemos tudo,” eu disse, muito gentilmente. "E Jamie sabe
que o capitão não quer lhe causar dano imediato. Ele não vai matar
seu filho. "
A menos que ele precise.
Ela olhou para mim, um nervo contraindo o canto da boca.
“A menos que ele precise? Deixe-me oferecer-lhe a mesma
garantia, Sra. Fraser.”
“Claire,” eu disse. "Por favor." O consultório cheirava a fumaça de
nogueira e ervas medicinais. "Você conhece alguma boa oração
adequada para a ocasião?"

ARMAS ERAM PROIBIDAS na Loja, tanto no símbolo dos ideais


1358

maçônicos dos membros quanto de forma mais pragmática para


aumentar as chances de esses ideais serem respeitados, pelo menos
na hora das reuniões. No entanto, Jamie tinha ido no meio da tarde
para colocar uma pistola carregada sob uma pedra perto da porta, e
ele tinha cartuchos e balas em seu sporran e a melhor faca de Claire
embainhada e enfiada na parte inferior de suas costas, o cabo
escondido por seu casaco e o ponta dela fazendo cócegas na fenda
de seu traseiro.
Ele não costumava usar seu tartan com cinto para ir à Loja mas
estava feliz por ter se dado ao trabalho esta noite; iria mantê-lo
aquecido se fosse feito prisioneiro e obrigado a passar a noite
amarrado a uma árvore ou trancado no porão de alguém. E ele tinha
um sgian dubh em seu cinto na frente, escondido por seu avental
maçônico. Só por garantia.
"Ciamar a tha thu, a Mhaighister."594 Hiram Crombie parecia tão
normal - sisudo como um prato de repolho em conserva - e Jamie
achou isso um conforto. Dissimulação não era um dos dons de
Hiram, e se ele soubesse que algo estava acontecendo,
provavelmente não teria vindo esta noite.
- Gu math agus a leithid dhut fhein - disse Jamie, acenando com a
cabeça para ele. Bem, e o mesmo para você.
"Posso ter uma palavra com você, depois?" Hiram perguntou, ainda
em gaélico.
"Sim, claro." Jamie respondeu na mesma língua e viu dois
inquilinos que não falavam gaélico olharem para eles - com um
toque de suspeita?- ele se perguntou.
"Tem algo a ver com o seu irmãozinho, então?" ele perguntou,
mudando para o inglês, e ficou satisfeito ao ver que ouvir o Árvore
Alta ser chamado de seu irmãozinho fez o canto da boca de Hiram
tremer.
"Sim."

594
Como está, Mestre?
1359

"Tudo bem, então" Jamie disse agradavelmente, tentando ignorar


as batidas de seu coração. "Mas, sabe, a charaid, eu disse que não
vou deixar Frances se casar antes dos dezesseis anos - e nem
mesmo depois, se ela não quiser."
Crombie balançou a cabeça brevemente.
“Não tem nada a ver com a moça”, disse ele, e foi para a Casa de
Reunião, seguido por seus parentes e amigos próximos.
E então chegou o próprio homem com seus dois jovens tenentes,
eles em uniforme de meia-gala e ele mesmo em calça de linho claro
e uma capa cinza-claro, com um chapéu desleixado para se proteger
da chuva. Simples, pelos padrões deles. Jamie percebeu o
movimento quando Kenny Lindsay abaixou a cabeça para esconder
um sorriso malicioso, mas Jamie não tinha tanta certeza. Sim, era
possível que um marinheiro não pensasse que tipo de alvo ele faria
no escuro - mas também era possível que Cunningham não tivesse
pensado que ele poderia ser um alvo, ou que as notícias de
Cloudtree estivessem erradas, e a emboscada - se era para haver
uma - não era para ser esta noite.
Então Cunningham emergiu sob a luz fraca da porta aberta, viu
Jamie e fez uma reverência para ele.
“Venerável Mestre,” ele disse.
"Capitão", Jamie respondeu, e seu coração batia forte nos ouvidos
quando ele se curvou, porque Cunningham não era um jogador de
cartas e a verdade estava escrita no estreitamento de seus olhos e
na dureza de sua boca.
Uma ocasião formal, então, não é? Ele teve uma súbita imagem
mental deles se preparando para um duelo, em kilt, chapéu armado
e seus aventais maçônicos. Quais seriam as armas?_ ele se
perguntou. Sabres de Abordagem?595
“Dèan ullachadh, mo charaidean,” ele disse casualmente para os
homens que estavam com ele. Estejam prontos.
595
No original, cutlasses. O sabre de abordagem é um sabre de uso naval, de dimensões curtas.
1360

A reunião correu bem - externamente. O ritual, as palavras de


fraternidade, camaradagem, idealismo. Mas ele achou que as
palavras soavam vazias, com uma sensação de gelo entre os
homens, cobrindo seus corações, separando um do outro, deixando
todos no frio.
As coisas pareciam mais fáceis quando se tratava de negócios: as
pequenas coisas que eles faziam como uma questão de
comunidade. Uma viúva incapaz de lidar com as ações de seu
falecido marido; um homem que caiu do próprio telhado enquanto
consertava sua chaminé e quebrou um braço e uma perna; uma
velha disputa entre os MacDonalds e os MacQuarries que estourou
em uma briga no dia do mercado em Salisbury e voltou para casa
com eles, ainda deixando um rastro de nuvens de má vontade.
Coisas que não eram realmente da conta da Loja, mas que deveriam
ser levantadas: falaram que Howard Nettles estava metido com
uma mulher que mantinha uma loja no Posto Comercial Beardsley,
cujo marido era barqueiro e passava semanas longe de casa.

"Há alguém aqui que conhece Nettles bem o suficiente para dar
uma palavra em seu ouvido?" Perguntou Jamie. "Se é da Sra.
Appleton que estão falando, eu vi o marido dela e ele do tamanho
de dois Howard."
Um pequeno murmúrio de humor percorreu a sala, e Geordie
MacNeil disse que não conhecia Howard bem o suficiente para
dizer o que ele precisava ouvir, mas ele conhecia o primo de
Howard, que vivia em um pequeno assentamento perto de Blowing
Rock, e ele poderia ter uma palavra da próxima vez que passasse
por ali.
"Sim, muito bem", disse Jamie, pensando que as abelhas de Claire
gostariam de ouvir sobre isso. “E esperamos que seja em breve para
salvar o pescoço de Howard. Obrigado, Geordie. Mais alguma
coisa antes de começarmos a cerveja?” Com o canto do olho, ele
viu Cunningham mover-se repentinamente, mas então se conter e
se acalmar.
1361

Vai ser lá fora, então. Ele respirou fundo e sentiu um bodhran596


distante começar a pulsar em seu sangue.
Hiram Crombie trouxera a cerveja esta noite, era a vez dele. Ele
podia ser muito magro - todos os pescadores eram, tendo vivido em
extrema pobreza por toda a vida -, mas sabia o que era certo e a
cerveja era boa. Jamie se perguntou o que estava acontecendo com
o pequenino Cyrus, mas não parecia urgente ...
Do outro lado da sala, Cunningham estava falando. Sobre lealdade.
Sobre seu serviço na Marinha Real. Sobre lealdade ao rei.
Jamie lentamente se ergueu. Tudo bem, não havia nada que
impedisse os homens de falar de política ou religião fora da Loja,
mas não era fora o suficiente, e todos sabiam disso. O silêncio se
espalhou entre os homens que cercavam Cunningham - Jamie
notou seus rostos - e uma frieza percorreu a sala como o gelo se
espalhando enquanto os outros começaram a ouvir e escutar o que
estava sendo dito.
Então parou. Cunningham ainda estava parado, imóvel, exceto
pelos olhos, que notavam cada rosto na sala. Jamie estava ouvindo
atentamente, não tanto pelas palavras de Cunningham, mas
compondo respostas para elas. Então Jamie se levantou. Suas
próprias palavras sumiram e outras surgiram em seu lugar.
“Direi apenas uma coisa a todos vocês, a charaidean.597 E isso não
é meu, mas uma coisa dita por nossos antepassados, quatrocentos
anos atrás.” Uma leve agitação quebrou a sensação de gelo, e os
homens se mexeram em seus banquinhos, preparando-se para
ouvir. Olhando de lado, para ver como as coisas estavam.
Já fazia muito - muito - tempo desde que ele tinha lido a Declaração
de Arbroath598, mas não eram palavras que pudessem ser
esquecidas.
“Enquanto apenas uma centena de nós permanecermos vivos,
596
Instrumento semelhante a um tamborim.
597
Amigos.
598
Declaração de independência da Escócia perante o domínio da Inglaterra escrita em 1320, para
reconhecimento de Robert The Bruce como rei da Escócia.
1362

nunca seremos colocados sob o domínio inglês em quaisquer


condições. Na verdade, não é por glória, nem riquezas, nem honras
que estamos lutando ...” Ele fez uma pausa e olhou Cunningham
nos olhos. “... mas pela liberdade - somente por isso que nenhum
homem honesto desiste, a não ser com a própria vida.”
Ele não esperou pelo barulho profundo da resposta, mas girou nos
calcanhares e saiu pela porta, o mais rápido que pôde, e começou a
correr assim que saiu, com a faca na mão.
Havia três ou quatro deles, esperando por ele. Mas eles pensaram
que ele continuaria falando, e ele os pegou olhando, com os rostos
como luas sob a luz da porta repentinamente aberta. Ele acertou um
na mandíbula, empurrou outro com o ombro para fora do caminho
e estava na floresta antes que eles pudessem se mover. Ele ouviu a
gritaria e a confusão enquanto os homens na Casa de Reunião
tentavam sair ou dar socos uns nos outros.
A lua ainda não havia saído e a floresta estava escura como breu,
mas ele escolheu uma grande pedra perto de um enorme abeto para
seu esconderijo e tinha a pistola na mão em instantes. Estava
carregada e preparada, mas ele não a armou ainda.
Seu coração batia forte enquanto ele deslizava pelo mato - ele não
ousava correr, ao alcance da voz da Casa de Reunião - mas ele
pensou ter ouvido o rugido do tombadilho de Cunningham. Ele
estava gritando: "Toda a tripulação!" e Jamie teria rido, se ele
tivesse fôlego.
Sua liberdade - e provavelmente sua vida - dependia de duas coisas
agora, e ele não tinha controle sobre nenhuma delas. Se Scotchee
Cameron tivesse recebido seu recado e se achasse que valia a pena
impedir que os Cherokees se envolvessem em uma briga pela Linha
- isso era uma coisa. A outra era se John Sevier conseguira
encontrar Partland e seus homens na Noventa e Seis e detê-los.
Hiram Crombie e o resto estavam mantendo Cunningham e seus
homens ocupados, pelo que parecia. Mas se Cameron ou Sevier
falhassem com ele, aquela seria uma noite sangrenta.
1363

-.-.-

JÁ passava da meia-noite; eu tinha mandado as meninas e Bluebell


para a cama duas horas atrás, e agora a exaustão pairava sobre a
cozinha como um véu baixo de fumaça de chaminé. Tínhamos
esgotado tudo: oração, conversa, trabalho, comida, leite e café de
chicória. Elspeth não bebia álcool por diversão, cristã devota que
era, e recusou mais do que um copo medicinal de uísque esta noite.
Enquanto eu mesma ansiava por esquecer, sentia que tinha que
ficar sóbria, tinha que estar pronta. Para o que, eu não queria pensar
- pensar era outra coisa que eu estava exausta.

Por um tempo, eu estava consciente a cada momento do que


poderia estar acontecendo na Casa de Reunião. Visualizando a
reunião da Loja - ou o que eu sabia disso, pois Jamie observava os
votos maçônicos de sigilo e, enquanto ria comigo por causa do
avental e da adaga, nada disse sobre seus rituais. Querendo saber
de onde viria a luta.
“Nada vai acontecer durante a reunião, Sassenach”, ele disse, em
um esforço para ser tranquilizador. "Cunningham é um oficial e um
cavalheiro, e um Maçom do Trigésimo Terceiro Grau. Ele leva um
juramento a sério. ”
“Tais homens são perigosos”599, eu disse, citando Júlio César. Eu
estava me esforçando para ser leve, mas Jamie apenas acenou com
a cabeça sobriamente e tirou a melhor de suas pistolas de seu lugar
acima da lareira.
Mas agora minha mente estava em branco, tendo espaço apenas
para um medo sem forma. Eu acendi o fogo; encarei as chamas,
meu rosto quente e minhas mãos frias como gelo, caídas inúteis em
meu colo.
"Está chovendo." Elspeth quebrou o silêncio, erguendo a cabeça ao
ouvir o som das gotas de chuva batendo nas venezianas fechadas.

599
Júlio Cesar, peça de Shakespeare.
1364

Estávamos sentadas perto do fogo da cozinha de novo, depois de


deixar a cirurgia impecável. Ataduras frescas. Toalhas de linho.
Instrumentos cirúrgicos limpos e esterilizados, dispostos em sua
própria toalha limpa no balcão. O braseiro limpo e cheio com novas
lascas de nogueira, uma seleção de ferros de cauterização prontos
ao lado dele. Sem falar uma palavra uma com a outra sobre o que
estávamos fazendo, nos preparamos para uma emergência
repentina e terrível.
"Então é isso." O silêncio caiu novamente. O som da chuva
reacendeu meus pensamentos, no entanto. Isso os manteria dentro
da Casa de Reunião?
Bobagem, Beauchamp, minha mente respondeu. Quando a chuva
impediu um Highlander de fazer qualquer coisa? Nem mesmo um
oficial naval, suponho ...
"Eu sinto muito." Elspeth falou abruptamente e eu olhei para ela,
assustada. Suas mãos estavam dobradas com força no colo. Seu
rosto estava pálido e seus lábios pressionados, como se lamentasse
por ela ter falado.
"Não é sua culpa", eu disse automaticamente, e então mais
conscientemente, "Nem minha."
Seus lábios relaxaram um pouco com isso.
“Não,” ela disse, suavemente. Ela ficou em silêncio por um tempo,
mas eu podia ver sua garganta trabalhando levemente, como se ela
estivesse discutindo consigo mesma sobre algo.
"O que é?" Eu disse por fim, muito baixinho. Ela olhou para mim,
e vi sua garganta pegajosa balançar enquanto ela engolia.
“Cinco anos,” ela deixou escapar.
"O que?"
Ela desviou o olhar, mas depois voltou, os olhos escuros fixos nos
meus com um olhar estranho, desculpas misturadas com outra coisa
- alívio? Triunfo?
1365

“Quando Simon morreu - meu neto ... dois anos atrás ...”
“Jesus H. Roosevelt Cristo!” Eu disse, e uma lança de medo real
me apunhalou no coração. Como todos os outros presentes na
época, fiquei profundamente comovida com o sermão de
inauguração de Charles Cunningham e a história da morte de seu
filho - e suas últimas palavras. "Eu vou te ver de novo. Em sete
anos. ”
"O que você disse?" Elspeth perguntou, incrédula. Eu balancei a
mão para ela dispensando. Se o capitão acreditou na palavra de seu
filho - e muito claramente ele acreditou - então ele deve concluir
que ele seria essencialmente imortal pelos anos que se seguiriam.
Cinco anos agora.
“Santo Senhor,” eu disse, encontrando uma interjeição mais
aceitável. Sobrou um centímetro de soro de leite coalhado na minha
xícara e joguei fora como se fosse um uísque ruim.
"Isso, quero dizer ... não significa que ele vai matar seu marido",
disse Elspeth, inclinando-se para frente ansiosamente. "Só que seu
marido não vai matá-lo."
"Isso deve ser um conforto para você."
Ela corou, envergonhada. Claro que era. Ela pigarreou e tentou
oferecer conforto, dizendo que Charles não tinha a intenção de
matar Jamie, apenas torná-lo prisioneiro, e ...
“E levá-lo para Patrick Ferguson para ser enforcado,” eu terminei,
maldosamente. "Para o bem de sua própria maldita promoção!"
"Pelo bem de seu Rei e sua honra como oficial desse Rei!" ela
retrucou, olhando para mim. “Seu marido é um traidor perdoado e
agora ele perdeu a graça desse perdão! Ele conquistou o seu próprio
...” - ela percebeu o que estava dizendo - o que claramente vinha
pensando há algum tempo - e sua boca se fechou como uma
armadilha.
A chuva de repente se transformou em granizo, e granizo batia nas
venezianas com um som semelhante ao de tiros. Olhamos uma para
1366

a outra, mas não falamos; não podíamos ouvir uma à outra se o


fizéssemos.
Ficamos algum tempo sentadas perto do fogo, nossas cadeiras lado
a lado, sem falar. Duas velhas bruxas, pensei. Divididas por
lealdade e amor; unidas em nosso medo.
Mas mesmo o medo se torna exaustivo depois de um tempo, e eu
me vi balançando a cabeça, o fogo fazendo sombras brancas
piscarem através das minhas pálpebras que se fechavam. A
respiração de Elspeth me despertou do meu cochilo, um som rouco
e áspero, e ela mudou de repente, inclinando-se para frente com os
cotovelos sobre os joelhos, o rosto enterrado nas mãos. Estendi a
mão e a toquei e ela pegou minha mão, segurando firme. Nenhuma
de nós falou.
O granizo havia passado, o vento diminuiu, os trovões e os
relâmpagos pararam e a tempestade se transformou em uma chuva
forte, encharcada e interminável.
Esperamos de mãos dadas.
1367

110

... BARULHOS CONFUSOS E VESTES REVOLVIDAS


EM SANGUE600 ...

ALGUM TEMPO DEPOIS - O TEMPO PARECIA TER


DEIXADO de ter significado a essa altura - nós os ouvimos. Os
sons de um grupo de homens e cavalos. Pisoteando, sons de
urgência.
O barulho despertou Fanny e Agnes; ouvi seus pés descalços
descendo as escadas.
Eu estava na porta sem nenhuma lembrança de chegar lá,
atrapalhada com o ferrolho - eu não tinha trancado a porta quando
Elspeth chegou. Puxei a porta pesada como se ela não pesasse nada
e, na escuridão e à luz bruxuleante das velas, vi Jamie, em meio a
uma confusão negra de muitas cabeças, uma cabeça mais alta que
seus companheiros e seus olhos procurando por mim.
"Ajude-me, Sassenach", disse ele, e cambaleou para o corredor,
balançando para o lado e batendo na parede. Ele não caiu, mas eu
vi o sangue em sua camisa molhada, encharcada e se espalhando.
"Onde?" Eu disse com urgência, agarrando seu braço e procurando
a fonte do sangue. Estava escorrendo pelo braço sob a manga da
jaqueta; sua mão estava molhada com ele. "Onde você está ferido?"

"Eu não", disse ele, com o peito arfando no esforço de respirar. Ele
jogou a cabeça para trás. "Ele."
-.-.-

“CHARLIE!” O GRITO DE ELSPETH me fez girar para ver Tom


MacLeod e Murdo Lindsay lidando com uma maca improvisada
composta de jaquetas amarradas em galhos cortados às pressas ao

600
No original “... Confused noise and garments rolled in blood...” Isaías 9:5 na Bíblia King James
1368

redor do batente da porta, tentando não derrubar ou danificar o


conteúdo. O referido conteúdo sendo Charles Cunningham em um
estado perceptível de degradação.
Eles sabiam onde era o consultório e seguiram para lá a trote. Jamie
se afastou da parede e os chamou com voz rouca em gaélico, então
eles imediatamente diminuíram a velocidade, andando quase na
ponta dos pés.
"Ele levou um tiro nas costas, Sassenach", Jamie me disse. "Talvez
...em alguns outros lugares." Sua mão estava tremendo onde a havia
pressionado contra a parede, e seus dedos deixaram manchas de
sangue.
“Vá se sentar na cozinha,” eu disse brevemente. "Diga a Fanny que
eu disse para tirar suas roupas e descobrir o quanto está ruim, então
venha me dizer."
O grupo da maca havia chegado ao consultório e eu corri atrás
deles, a tempo de supervisionar a mudança do capitão para a minha
mesa.
"Não mexam nele!" Eu gritei, vendo-os prestes a colocar a maca
no chão. “Coloquem com a maca na mesa!”
Cunningham estava vivo e mais ou menos lúcido. Elspeth já estava
do outro lado da mesa e, entre nós, cortamos suas roupas, o mais
gentilmente possível, ela falando para ele de forma tranquilizadora,
embora suas mãos tremessem muito.

Ele foi baleado duas vezes pela frente; uma bala no antebraço
direito que quebrou o rádio logo acima do pulso e uma que acertou
suas costelas do lado esquerdo, mas felizmente não entrou no
corpo. Um lado de seu rosto estava arranhado e machucado, mas
pela presença de casca em alguns dos arranhões, achei que ele
provavelmente tivesse colidido com uma árvore no escuro, em vez
de ter brigado com uma delas.
"Jamie disse que você levou um tiro nas costas", eu disse, me
abaixando para falar com ele. “Você pode me dizer onde está o
ferimento? Alto? Baixo?"
"Baixo", ele engasgou. "Não se preocupe, mãe, vai ficar tudo bem."
"Fique quieto, Charles!" ela retrucou. "Você pode mover os pés?"
Seu rosto estava branco como um morto, a barba por fazer como se
tivessem espalhado pimenta em sua pele. Eu estava com minhas
1369

mãos sob ele, tateando meu caminho entre as jaquetas da maca e as


camadas de suas próprias roupas, presas sob ele. Suas roupas
estavam encharcadas, mas também estavam as de todos os homens
- eu podia ouvir o gotejamento no corredor, enquanto vários
homens estavam amontoados na porta, ouvindo. Eu puxei uma mão
debaixo dele, cautelosamente, e olhei para ela. Estava escarlate até
o pulso. Eu olhei para seus pés. Um deles estremeceu e Elspeth
engasgou. Ela estava estancando o sangue de seu braço, mas com
isso parou e se curvou sobre ele.
“Mova o outro, Charles,” ela disse com urgência.
“Eu estou movendo,” ele sussurrou. Seus olhos estavam fechados
e a água corria de seu cabelo. Eu olhei para baixo na mesa. Nenhum
dos pés estava se movendo.
Fanny abriu caminho entre os homens na porta e entrou, com o
cabelo solto sobre o manto e os olhos arregalados.
"Senhor Fraser tem um corte feio do ombro direito passando pelo
peito ”, ela me disse. "Mas não acertou o mamilo esquerdo por
pouco"

"Bem, isso é uma boa notícia", eu disse, reprimindo uma vontade


levemente histérica de rir. "Você ..."
“Colocamos uma compressa nele”, ela me assegurou. “Agnes está
pressionando. Com ambas as mãos!"
"O quão rapidamente o sangue está sendo absorvido?" Eu tinha
minhas mãos de volta sob o capitão Cunningham, tateando meu
caminho através de camadas de pano ensopado, em busca da
localização exata do ferimento.
“Ele encharcou a primeira compressa, mas a segunda está melhor”,
ela me assegurou. “Ele quer uísque; tudo bem?"
"Faça-o se levantar", eu disse, alcançando o cós da calça do capitão.
“Se ele conseguir ficar em pé por trinta segundos, ele pode tomar
uísque. Se não, dê-lhe água com mel e faça-o deitar no chão. Não
importa o que ele diga. ”

“Já estamos dando a ele água com mel”, disse ela, e olhou
atentamente para o nosso paciente. "O capitão deveria beber
também?" Eu estava com uma mão na artéria femoral do capitão -
cortamos suas calças, jaqueta e camisa pela frente e tiramos o
1370

tecido de seu corpo - e a outra por baixo dele. Seu pulso estava
surpreendentemente forte, o que me encorajou. Assim como o fato
de que enquanto o sangue estava pingando da mesa, não estava
pulsando na minha mão. Achei que o tiro não tivesse atingido um
vaso importante. Por outro lado ... seus pés ainda não estavam se
movendo.
"Sim,” eu disse. “Traga um pouco; a sra. Cunningham pode dar a
ele enquanto eu ... cuido disso."
Elspeth colocou o braço enfaixado de seu filho suavemente na
cintura dele e alisou o cabelo molhado de sua testa, enxugando seu
rosto com uma toalha.
"Você vai ficar bem, Charles", disse ela. Ela falou suavemente
agora, mas sua voz era firme. "Você estará aquecido e seco num
instante"

Fechei os olhos para ouvir melhor o que minhas mãos me diziam.


Eu encontrei o ferimento em suas costas, e não era bom. Uma bala
havia entrado entre a última vértebra torácica e a primeira vértebra
lombar. Ainda estava entre as vértebras; eu podia sentir com meu
dedo médio, um pequeno caroço duro e preso firmemente; não se
moveu quando o empurrei um pouco. A carne de suas costas era
dura e fria, os músculos todos em espasmos.
Ele estava tremendo, embora o quarto estivesse bastante quente.
Disse a Elspeth para colocar um cobertor sobre ele, acenando com
a cabeça para a colcha de lã amarela-vômito, dobrada
cuidadosamente em cima do armário.
Os homens que o trouxeram ainda estavam nos corredores, falando
em voz baixa. Eu reconheci as vozes; eles eram os homens de
confiança de Jamie.
"Gilly!" Chamei por cima do ombro e Gillebride MacMillan espiou
cautelosamente pelo batente da porta.
"Seadh, um bhana-mhaighister?"601
"Alguém está ferido? Além do capitão e Jamie, quero dizer? "
"Ah, não mais do que alguns hematomas e costelas quebradas,
senhora, e acho que pode ser que Tòmas esteja com o nariz
quebrado."

601
“Sim, senhora”, em gaélico.
1371

Eu tinha ido até o balcão e estava escolhendo meus instrumentos,


mas ainda estava pensando e falando ao mesmo tempo.
"E quanto aos outros? Os homens que ... estavam com o capitão? "
Ele ergueu um ombro, mas sorriu, e ouvi uma breve risada de
alguém no corredor. Eles ganharam, eu percebi, e a adrenalina da
vitória ainda os segurava.

"Eu não poderia dizer, a bhana mhaighister602, exceto que quebrei


uma pá na cabeça de Alasdair MacLean, e havia facas, e dois ou
três que sofreram com o deslizamento de terra, então ..."
"O deslizamento de terra?" Eu olhei por cima do ombro para ele,
assustada, então balancei minha cabeça. "Deixa pra lá; eu vou ouvir
sobre isso mais tarde. ”
"Eles foram para - para minha casa." Elspeth falou baixinho. “Os
legalistas feridos que não vieram aqui. Eu vou - eu vou precisar ir
e cuidar deles. " Ela estava segurando a mão do filho, no entanto,
os dedos firmemente entrelaçados aos dele, e seu rosto estava cheio
de angústia quando ela olhou para ele.
Eu balancei a cabeça, minha garganta apertada em simpatia. Eu não
precisava ver os pensamentos correndo em seu rosto para saber
quais eram: amor e medo guerreando com o dever. E eu conhecia
o medo mais profundo que estava começando a florescer dentro
dela. Os olhos dela estavam fixos nos pés dele descalços, desejando
que eles se movessem.
"Gilly, vá até a cozinha, sim, e traga Agnes?"
Ele saiu e eu me virei para Elspeth.
"Ele não vai morrer", eu disse, em voz baixa, mas firme. "Não sei
se ele vai andar de novo - pode ser que sim, pode ser que não. A
bala não passou pela medula espinhal, mas claramente causou
algum dano. Isso pode curar. Vou tirar a bala e cuidar da ferida, e
quando o inchaço diminuir e os hematomas sararem ... ” Fiz um
pequeno gesto, dubiamente entre esperança e dúvida.
Ela deu um longo suspiro trêmulo e acenou com a cabeça.
“Fique enquanto eu tiro a bala,” eu disse, e peguei a mão dela. "Não
vai demorar muito, e você terá certeza de que ele está vivo."

602
Senhora, em gaélico.
1372

111

A MANHÃ CHEGOU603

Ainda estava chovendo, mas o dia estava próximo. Eu fiz meu


caminho bem devagar em direção ao brilho fraco da cozinha, sem
me apoiar nas paredes enquanto eu passava, mas deixando meus
dedos tocá-las de vez em quando, para ter certeza de que eu estava
onde pensava que estava. A casa estava quieta e cheirava a sangue
e coisas queimadas, mas o ar estava frio e cinza com a chegada da
madrugada, a mesa e as cadeiras no escritório de Jamie uma
natureza morta monocromática pintada na parede - e ainda assim
meus dedos passaram pelo ar vazio quando eu passei pela porta,
meus passos inaudíveis aos meus próprios ouvidos, como se eu
fosse o fantasma que assombrava esta casa.
A maioria dos homens tinha partido para suas próprias casas, mas
havia alguns corpos no chão da sala. Eu tinha deixado Charles
Cunningham dormindo na mesa, sob a influência de muito láudano,
e Elspeth cochilando em minha cadeira de cirurgia, a cabeça
balançando em seu pescoço como um dente-de-leão. Eu não ia
acordá-la; os feridos legalistas teriam que cuidar de si mesmos –
ou suas esposas o fariam.
Na cozinha, Fanny estava dormindo profundamente, esparramada
de bruços em um dos bancos largos, uma perna balançando
603
“Morning Has Broken”, no original. Hino cristão publicado em 1931, com letra da autora inglesa
Eleanor Fajeon e definido para ser cantado na melodia gaélico-escocesa chamado ‘Bunessan’. Cat
Stevens incluiu essa música num álbum de 1971 e ela tornou-se imensamente popular, atingindo o
primeiro lugar em diversas listas de músicas mais tocadas. É um hino de louvor a Deus e à natureza
criada por Ele.
1373

comicamente para o lado. Bluebell estava enrolada debaixo dela,


também dormindo profundamente, e Jamie estava deitado de costas
no tapete da lareira, parecendo uma efígie de tumba profanada na
luz do final do fogo. Ele estava fumegando e quase apagado;
ninguém o havia cuidado adequadamente. Ele abriu os olhos ao
som dos meus passos e olhou para mim, pesaroso, mas alerta.
"Venha e sente-se, Sassenach", ele murmurou, e ergueu um dedo
vagamente em um banquinho próximo. "Você parece pior do que
eu."
“Não é possível,” eu disse. Mas eu me sentei. O cansaço inundou-
me a partir das solas doloridas de meus pés, fechando meus olhos
enquanto subia pelo meu corpo como uma maré de primavera -
cheia de areia agitada e fragmentos de conchas afiadas e algas
marinhas. Uma mão quente se enrolou em volta do meu tornozelo
e descansou lá.
"Como você está se sentindo?" Murmurei. Eu queria saber, mas
estava tendo dificuldade em abrir os olhos para olhar.
"Eu dou um jeito. Dê-me o pequeno jarro, Sassenach. A mão
deixou meu tornozelo e levantou-se para o meu colo, onde segurava
o pequeno frasco de álcool e suturas. "Eu o farei."
"Você vai fazer o que ?" Eu abri meus olhos e o encarei. “Costurar
o seu próprio peito? "
"Eu pensei que isso poderia te acordar." Ele baixou o braço.
“Ajude-me a levantar, a nighean. Estou duro como um mingau no
terceiro dia e não quero você agachada no chão para me costurar.
Além disso, eu poderia acordar a garotinha se você me fizer uivar."
“Uivar, com certeza,” eu disse, um tanto zangada. “Vou caprichar
em você. Deixe-me ver, pelo menos, antes de eu tentar colocá-lo
de pé.” O chão ao redor dele estava coberto de panos amassados,
endurecidos com sangue seco, e havia manchas em uma ampla
faixa de tábuas do assoalho. Eu me agachei cautelosamente para
baixo sobre meus joelhos ao lado dele.
"Tem cheiro de matadouro aqui." Ele cheirava a sangue e lama e
fumaça, mas mais fortemente ao suor coagulado da violência.
Ele colocou a cabeça para trás, suspirou e fechou os olhos,
deixando-me olhar para seu peito. As meninas colocaram seu tartan
molhado sobre ele para aquecer, e por baixo era uma toalha de linho
dobrada embebida em água. Um leve cheiro de lavanda e ulmária
1374

subiu, junto com o cheiro forte de cobre de sangue fresco. Eu fiquei


surpresa e me perguntei qual delas havia pensado em usar uma
compressa molhada para manter as bordas da ferida úmidas. Quem
quer que fosse tinha também pensado em tirar os sapatos e colocar
uma trouxa com sua jaqueta enrolada e camisa sob seus pés para
levantá-los. Ou talvez Jamie tivesse falado para elas, pensei
vagamente.
A descrição de Fanny do ferimento foi completamente correta; era
um corte profundo que descia do meio de sua clavícula direita,
através do centro de seu peito, eu podia ver uma sombra tênue de
osso branco sob o arranhão vermelho vivo onde o cutelo quase
tocou seu esterno – e terminou cinco centímetros abaixo do mamilo
esquerdo - o que demonstrou sua resiliência endurecendo, em uma
pequena protuberância rosa escuro quando eu limpei. Por reflexo,
eu toquei o outro.
"Os dois funcionam", ele me assegurou, apertando os olhos para
baixo. “E meu pau também, se você está considerando essas
coisas."
"Fico feliz em ouvir isso."
Peguei seu punho para verificar seu pulso, embora pudesse ver
claramente seu pescoço, batendo constantemente em um ritmo
tranquilo. A sensação dele, quente e sólido, estava restaurando
minha percepção do meu próprio corpo. Eu bocejei de repente, sem
aviso, e o fluxo de oxigênio disparou meu sangue. Comecei a me
sentir um pouco mais alerta.
"Isso vai doer como o diabo se você tentar se levantar sozinho", eu
comentei. Colocar qualquer pressão em seus braços iria esticar a
pele e os músculos feridos.
"Eu sei", disse ele, e imediatamente começou a tentar fazer isso de
qualquer maneira.
"E você vai fazer sangrar mais", acrescentei, colocando a mão em
sua garganta para pará-lo. “E você não tem um grama de sangue
sobrando, meu rapaz. Deite,” eu disse severamente, como para um
cachorro, e ele riu - ou começou a rir. Ele ficou branco - bem, mais
branco - e parou de respirar por um momento.
"Viu?" Eu disse, e fiquei de pé desajeitadamente. “Não ria. Eu
voltarei."
Eu estava me movendo muito melhor no meu caminho de volta
1375

para o consultório, minha cabeça se limpando e meu cérebro


começando a trabalhar novamente. Além da impressionante ferida
de faca em seu peito, ele parecia ileso. Sem sinais de choque ou
desorientação, e a ferida estava limpa, isso era bom ...
Elspeth ainda estava sentada na minha cadeira de cirurgia, mas ela
estava acordada. Meu Merck Manual estava aberto em seu colo. Eu
parei na porta, mas ela me ouviu chegando. Ela olhou para mim, a
pele de seu rosto branca e esticada tão tensa em seus ossos que eu
podia ver claramente como ela seria como morta.
"Onde você conseguiu isso?" ela sussurrou, uma mão espalhada
pela página como se quisesse escondê-la. Eu pude ver as palavras
"Lesões da Medula Espinhal" no Inicio da página.
"Minha filha me trouxe da ... er ... Escócia", disse eu, improvisando
em um pânico momentâneo. Mas então me lembrei: eu havia
destruído a página de direitos autorais. Ninguém fora da família
sabia, ou poderia saber, e eu respirei novamente.
“Posso pedir a Fanny que copie algumas das passagens para você,
se quiser. Embora eu não saiba o quanto elas podem ser úteis,”
acrescentei relutantemente. “Alguns dos procedimentos que eles
mencionam simplesmente não estão disponíveis nas colônias —
nem ainda na maior parte da Europa.” Eu cruzei meus dedos sob
meu avental, pensando, nem em qualquer outro lugar do mundo.
“E mesmo que algumas das coisas mencionadas sejam bastante
avançadas... elas podem não ser úteis para- para suas preocupações
particulares.”
Eu olhei para Charles Cunningham quando disse isso, e queria
cruzar meus dedos novamente - para dar sorte, desta vez. Em vez
disso, deslizei para o pé da mesa e gentilmente levantei a parte
inferior da colcha amarela de vômito para expor seus pés. Eles
pareciam perfeitamente normais.
Mas é claro que eles pareciam. Mesmo que sua medula espinhal
não tivesse sido danificada - e eu não achei que tivesse – estava
claramente comprimida e danificada em alguma extensão. E as
lesões da medula espinhal geralmente eram permanentes. Mas
demoraria um pouco para os efeitos visíveis - perda de músculos,
torção de membros - para se tornarem aparentes. Um fedor forte
fez minhas narinas se contorcerem e comprimirem.
1376

Perda do controle do intestino e da bexiga. Esperado, mas não é


bom.

"Você já viu alguém assim antes?" A voz de Elspeth era afiada e


ela se pôs de pé, como se tentada a defender o filho.
"Sim", eu disse, e ela ouviu tudo na minha voz e sentou-se
novamente como se ela também tivesse levado um tiro nas costas.
Jesus, quem atirou nele? Por favor, Deus, não deixe que tenha sido
Jamie...
Eu empurrei a colcha e o limpei suavemente com um pano úmido.
Ele estava inconsciente e não se mexeu. Nada se mexeu sob minhas
mãos, e meus lábios se apertaram. Homens têm pouco controle
consciente sobre as respostas de sua ereção, como Jamie tinha
acabado de demonstrar para mim, e eu vi muitos homens com
feridas bastante graves endurecerem ao meu toque. Esse não. Ainda
assim, pode ser o láudano ... que realmente afeta a resposta
libidinal.
Eu me segurei naquele minúsculo fragmento de esperança no
momento e cobri o capitão novamente. Elspeth estava sentada ereta
agora, mas sua atenção estava no seu interior e eu sabia que ela
estava visualizando as mesmas coisas que eu: cuidar de um filho
amado para quem não havia esperança real. Seu último filho.
Meses, anos - Cinco anos, veio o pensamento lancinante - de limpar
sua bunda e mudar seus lençóis, movendo suas pernas mortas
quatro vezes por dia para prevenir atrofia. De lidar com a amargura
de um homem que havia perdido a vida, mas não tinha morrido.
Havia luz por trás das venezianas agora, embora fosse pálida e
aguada; o som da chuva tinha se acomodado ao tamborilar
constante de um dia inteiro de aguaceiro. Eu caminhei por trás de
Elspeth e abri as venezianas, então abri a janela o suficiente para
trazer uma lufada de ar frio, limpo e úmido para o quarto.
Eu precisava ir ver Jamie; não havia mais nada que eu pudesse fazer
aqui. Eu virei e coloquei minhas mãos nos ombros de Elspeth e
senti seus ossos, duros e frágeis sob o preto de seu xale.
“Ele vai poder falar e se alimentar sozinho”, eu disse. “Além disso
... o tempo dirá."
“Sempre diz,” ela disse, sua voz sem cor como a chuva.
1377
1378

112

NÓS NOS ENCONTRAMOS DE CORAÇÃO


ABERTO604...

Assim que deixei o consultório, a porta da frente se abriu atrás de


mim, revelando o Tenente Esterhazy. Ele parecia tão chocado e
desordenado como todo mundo esta manhã, mas pelo menos estava
em pé sozinho e não visivelmente machucado.
“Venha comigo,” eu disse, agarrando-o pelo braço. “Seu capitão
está dormindo e não vai precisar de você por um tempo, mas eu
preciso.”
"Claro, senhora", ele murmurou, e balançou a cabeça como se fosse
jogar fora algum pensamento pesado antes de me seguir para a
cozinha.
"Onde está o tenente Bembridge?" Eu perguntei, olhando por cima
do meu ombro. Eu meio que esperava que ele entrasse pela porta;
os dois tenentes ficavam tão raramente separados que às vezes
esquecia qual era qual.
“Eu não sei, senhora,” ele disse, sua voz tremendo um pouco. “Ele
não voltou ao encontro ontem à noite, nem esta manhã - eu desci
para a Casa de Reunião e dei a volta, chamando. Então vim para
relatar ao capitão, antes de voltar para procurá-lo um pouco mais.”
“Lamento ouvir isso,” eu disse, sinceramente. “Ouvi dizer que
houve um deslizamento de terra noite passada - você estava lá
quando isso aconteceu? "
"Não, Senhora. Mas eu ouvi. Então, quando Gilbert não voltou,
pensei talvez…"
"Eu entendo. E esse deslizamento de terra de que ouço tanto?” Eu
disse a Jamie, que conseguiu se apoiar em um cotovelo e estava
olhando para o tenente com alguma cautela. "O que aconteceu?"
“Uma boa parte da encosta desceu com a chuva”, disse ele.
“Árvores e pedras e lama. Mas não posso dizer mais do que isso.
Eu nem sei onde nós estávamos quando isso aconteceu. Talvez em
algum lugar perto da estrada de carroças.” Ele tocou seu peito com

604
Frase usada para identificação entre os membros da maçonaria, conforme já explicado no cap 22 deste
livro.
1379

cautela, fazendo uma careta.


"Isso aconteceu em um deslizamento de terra?" Eu conhecia um
ferimento de cutelo quando via um - e tinha uma cicatriz de 20
centímetros na parte interna do meu braço esquerdo para provar
isso.
"Um pouco antes", disse ele laconicamente. Ele não tinha tirado os
olhos do jovem Esterhazy, e finalmente me ocorreu que o tenente
poderia ser jovem o suficiente, tolo o suficiente, e sob tensão
mental suficiente para pensar que ele poderia manter Jamie cativo
em sua própria casa. Ele estava usando uma pistola e punhal de um
oficial. E Jamie não estava armado. Um dedo pequeno e frio tocou
atrás do meu pescoço, mas então eu olhei cuidadosamente para o
jovem, depois de volta para Jamie. Eu balancei minha cabeça.
“Não,” eu disse simplesmente. “Ele está preocupado com o amigo.
E provavelmente com o capitão também”, acrescentei. Esterhazy
se virou bruscamente para me encarar, os olhos arregalados.
“O que aconteceu com o capitão? Você disse que ele estava
dormindo! "
“Tiro,” eu disse brevemente. “Ele vai viver, mas não vai a lugar
nenhum no momento."
"Você atirou nele, senhor?" O jovem se dirigiu a Jamie com
seriedade.
"Eu tentei", Jamie respondeu secamente. "Eu atirei assim que ele
veio para cima de mim com seu cutelo. Não sei se o acertei ou não,
mas não fui eu quem atirou nele de volta, isso eu posso te dizer. Eu
vi seu rosto claro, no relâmpago. E então a montanha caiu sobre
nós”, acrescentou ele, como uma reflexão tardia distinta.
"Tiro nas costas?" Esterhazy se virou para mim, chocado.
“Jesus H. Roosevelt Cristo”, eu disse, quase sem fôlego. "Sim. Eu
tirei a bala e ele está descansando confortavelmente. Agora, se você
não se importar, Tenente, preciso que me ajude a tirar o coronel
Fraser do chão ensanguentado e levá-lo até sua cama. Agora” eu
repeti, vendo que ele estava disposto a fazer mais perguntas.
A conversa despertou Fanny e Agnes que apareceram lá de cima,
desgrenhadas e com sono. Ambas ficaram mortificadas por serem
vistas pelo tenente em suas camisolas , mas eu as fiz ir e começar
fatiar cebolas para fazer um cataplasma, moer a raiz de goldenseal
e cuidar das necessidades corporais da Sra. Cunningham enquanto
1380

o Tenente Esterhazy e eu levantamos Jamie por etapas, primeiro a


um assento no banco, onde Bluebell o cheirou ansiosamente e
lambeu os joelhos nus, e depois ficou de pé, com nós dois
agarrando seus cotovelos como se fosse nossa própria vida
enquanto balançava para frente e para trás, à beira de um desmaio.
Eu o agarrei pela cintura e o tenente passou um braço em
volta de suas costelas na parte de trás, e nós o conduzimos
cambaleando para fora da cozinha e subimos as escadas como uma
multidão de bêbados sendo amedrontados pela polícia.
Nós o deixamos cair na cama como um saco de cimento e fui
obrigada a inclinar-me e colocar minhas mãos nos joelhos,
ofegando por ar até as pequenas manchas pretas deixarem meu
campo de visão. Quando pude me levantar novamente, agradeci ao
tenente, ele mesmo com o rosto vermelho e respirando como uma
máquina a vapor, e mandei-o para baixo para receber algo quente
para beber. Então fui acender o fogo e abrir as venezianas; eu iria
precisar de calor e luz.
Jamie estava deitado na cama, pálido como cera, a compressa
manchada pressionada severamente em seu peito. Eu coloquei a
mão na dele e soltei seus dedos rígidos. Visto na luz do dia aguada
de nossa janela, o ferimento parecia desagradável, mas não
terrivelmente sério. Não havia cortado nenhum tendão, nem tinha
ido totalmente através do peitoral, e me pareceu que quase tinha
cortado sua clavícula.
"Ele ricocheteou no seu esterno", eu disse a ele, enquanto cutucava
suavemente aqui e lá. "Caso contrário, teria cortado profundamente
seu peito neste lado."
"Oh, bom", ele murmurou. Suas pálpebras estavam bem fechadas,
mas eu podia ver os olhos sob elas movendo-se inquietos de um
lado para o outro.
"Tudo bem." Limpei a área cuidadosamente com solução salina e
pesquei uma linha de sutura de seda enfiada para fora do frasco.
"Você quer algo para morder enquanto eu costuro isso, ou você
prefere me dizer o que diabos aconteceu na noite passada? "
Ele abriu os olhos injetados de sangue e me considerou por um
momento, então fechou-os novamente, e - murmurando algo em
1381

que pensei ter distinguido as palavras "Inquisição Espanhola ..."605


- ele cerrou os dois punhos nas roupas de cama, respirou fundo e
relaxou tanto quanto possível sob as circunstâncias.
"Você tem um pedaço de papel por perto, Sassenach?" ele
perguntou. Eu olhei para a mesa de cabeceira, onde eu tinha
deixado meu diário atual - nada no caminho de Pensamentos
Profundos ou meditações espirituais; mas observações das
trivialidades dos quais os dias são compostos: a pequena panela de
cobre foi deixada no fogo por muito tempo e tinha um pequeno
buraco derretido nele; devo lembrar de enviá-la para Salem para
ser consertado quando Bobby Higgins for lá na próxima semana;
Bluebell tinha comido Algo Horrível e o tapete do banheiro das
meninas deveria ser fervido ...
“Sim,” eu disse, perfurando a pele com um golpe rápido. Ele
grunhiu, mas não se moveu.
"Você pode colocar um papel à mão, então, Sassenach, com algo
para escrever? Eu vou falando os nomes para você. "
Dei mais três pontos e girei para pegar o diário. Como eu
normalmente escrevia na cama, usava um pequeno pedaço de
grafite enrolado com uma tira de pano, em vez de tinta e pena, e
também o peguei.
“Diga606,” eu disse, voltando aos meus reparos. “Se você não se
importar com a referência."
Seu estômago se contraiu em breve divertimento.
"Eu não. É uma lista dos legalistas que estiveram com Cunningham
na noite passada. Coloque Geordie Hallam e Conor MacNeil,
Angus MacLean, e—”
"Espere, não tão rápido." peguei o lápis. “Por que você quer uma
lista com estes homens? Você obviamente se lembra quem eles
são.”
"Oh, eu sabia quem eles eram, bem antes de ontem à noite", ele me
assegurou, com alguma severidade. “A lista é para você e Bobby e
os Lindsays, no caso deles me matarem nos próximos dias.”

605
A Inquisição espanhola ou Tribunal do Santo Ofício da Inquisição foi estabelecida em 1478 pelos Reis
Católicos, Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela. Foi uma instituição formada pelos tribunais da
Igreja Católica para perseguir, julgar e punir pessoas acusadas de terem se desviado de seus ensinamentos
– os hereges. A tortura era um método comum para alcançar os objetivos propostos.
606
No original, “Shoot”, significando comece a falar. Mas ‘shoot’ também significa atirar, por isso Claire
esclarece em seguida sobre a que se referia.
1382

O grafite estalou na minha mão. Eu abaixei, limpei minha mão


cuidadosamente em um pano molhado e disse: "Oh?" com a voz
mais calma que pude administrar.
“Aye,” ele disse. “Você não achou que a noite passada resolveu as
questões, não é, Sassenach?”
Dado o estado atual do Capitão Cunningham, na verdade, eu
preferia pensar que sim. Engoli em seco e peguei a agulha
novamente.
“Você quer dizer que existe a possibilidade de que possamos ter
uma visita dos Cherokees?”
"Sim, eles", disse ele pensativo, "ou talvez Nicodemus Partland,
com um grupo de homens do outro lado da montanha. Lembre-se,
isso pode não acontecer”, acrescentou ele, vendo meu rosto. “E
meus próprios homens estarão prontos se isso acontecer. Mas
apenas no caso, você precisará se livrar dos legalistas aqui, se eu
for embora. Então você precisa saber quem são eles, aye? "
Fiz uma pausa para pegar um novo fio de sutura e respirei com
cuidado, meus olhos no meu trabalho.
"Livrar-me deles?"
"Bem, eu não pretendo deixá-los continuar como meus inquilinos",
disse ele sensatamente. “Eles tentaram me matar ontem à noite. Ou
me levarem para ser enforcado, o que não é muito melhor ",
acrescentou ele, e eu vi a raiva fervendo sob a pele fina da razão.
"É uma boa questão, sim." Eu limpei o sangue da ferida e dei mais
dois pontos. Eu acendi o fogo e acrescentei lenha, mas senti frio até
a medula. "Você pode - quero dizer, eles apenas ... irão embora, se
você disser para eles irem?"
Ele estava olhando para o teto, mas agora virou a cabeça para olhar
para mim. Era o olhar paciente de um leão a quem perguntaram se
ele realmente poderia comer aquele gnu607 ali.
“Hum,” eu disse, e limpei minha garganta. "Conte-me sobre o
deslizamento de terra."
Seu rosto iluminou-se e ele me contou sobre sua fuga da Loja,
quatro ou cinco de seus próprios homens logo atrás dele, e os
legalistas correndo entre eles, para atrasá-los enquanto ele escapava
na escuridão.

607
Grande mamífero da família dos antílopes. Seu habitat natural é a África.
1383

"Só que a trilha que eu pretendia seguir foi levada pela chuva – ai!
– e me perdi um pouco, procurando outra. Então começou a
trovejar e o relâmpago estava caindo perto o suficiente para que eu
pudesse sentir o cheiro, mas pelo menos eu podia ver meu caminho
de vez em quando.”
Ele moveu-se na direção em que pensava estar sua casa, na
esperança de encontrar alguns de seus homens, a quem ele disse
para proteger a Nova Casa na retaguarda e capturar os homens de
Cunningham que viessem por ali.
“Capturá-los?” Eu disse, amarrando uma sutura, recortando-a e
escolhendo um novo fio. “Onde você queria colocá-los? Não no
celeiro, espero.” Nossos níveis de alimentos estavam
perigosamente baixos após um longo inverno, e as frutas secas e os
primeiros vegetais que tínhamos estavam todos no celeiro, junto
com sacos de castanhas, nozes e amendoins, e eu poderia imaginar
a destruição que muitos cativos ressentidos pudessem fazer lá.
Ele balançou sua cabeça. Seus olhos estavam abertos agora, fixos
nas vigas do teto a fim de evitar olhar para o que eu estava fazendo
em seu peito.
"Não, eu disse a Bobby que eles deveriam colocar qualquer um que
pegassem na caverna dos porcos, amarrados.”
"Querido Deus. E se a Porca Branca aparecesse lá em cima?"
Embora a lendária Besta de Ridge se recusasse a estabelecer um
novo covil sob a casa atual - graças a Deus - ela ainda vagava pela
montanha, comendo sua porção de castanhas e qualquer outra coisa
que atiçasse seu desejo, e de vez em quando, visitava o chiqueiro e
soltava alguns de seus habitantes, a maioria deles seus próprios
descendentes.
"A sorte da guerra", disse ele insensivelmente. “Eles deveriam ter
pensado melhor do que seguir um homem que não consegue
escolher entre o Rei e Deus. Nada de Bom!”
“Já passamos da metade do caminho,” eu disse suavemente.
“Quanto ao capitão ... a maioria dos legalistas garantem que, como
Deus designou o Rei, seus interesses estão na mesma direção.
Continue me contando sobre a noite passada.”
Ele grunhiu e mudou seu peso de forma inquieta, mas depois se
acomodou novamente e respirou cautelosamente.
"Sim. Bem, quando eu pude perceber com certeza onde eu estava,
1384

era perto da casa de Tom MacLeod - Gillebride disse que o nariz


de Tom está quebrado? - e eu achei melhor me refugiar lá. Então,
eu estava lutando contra a lama e os arbustos, tentando descobrir
onde eu estava com o que eu conseguia ver quando veio um
relâmpago, e de repente houve um trovão que dividiu o céu e um
flash monstruoso que me deixou cego, e a chuva começou a bater
granizo, assim ... ” Ele estalou os dedos. "Então eu puxei meu tartan
sobre minha cabeça para protegê-la, e a próxima coisa que percebi
foi o capitão esbarrar em mim no escuro. Só que eu não sabia quem
era, e nem ele, e então houve outro relâmpago e eu peguei a minha
pistola e ele pegou o cutelo e ... ”Ele acenou a mão no corte meio
costurado em seu peito.
"Eu entendo. Você disse que atirou nele?"
"Bem, eu tentei. Minha pólvora estava úmida e não era de se
admirar. A arma disparou, mas duvido que a bala tenha chegado
até ele”
“Pode ser,” eu observei, pegando outro pedaço de sutura. "Eu notei
que uma bala atingiu de raspão seu antebraço.”
"Bom. Posso beber um pouquinho, Sassenach? "
"Já que você já está deitado, sim."
Eu não prestei atenção em nada além do peito de Jamie por um
curto período de tempo, mas quando me levantei para pegar o
uísque, ouvi vozes no andar de baixo. Vozes elevadas. Uma parecia
ser do tenente Esterhazy, e eu pensei havia uma voz feminina -
Elspeth? Alguém que soou familiar, mas - Jamie sentou-se
abruptamente e fez um barulho como um porco preso.
"Maldição! Deite-se!"
"É Cloudtree", disse ele com urgência. "Vá buscá-lo, Sassenach."
Peguei a compressa descartada, coloquei em sua mão e empurrei
contra o lado não costurado de seu peito, que agora estava
sangrando livremente.
"Maldição, deite-se e eu irei!"
Como a coisa estava, porém, eu não precisava mais. Pés subiram
as escadas batendo forte em meio a uma agitação de vozes, e com
uma batida rápida a porta se abriu.
"Eu disse a ele que ele não poderia-" Agnes começou, carrancuda
por cima do ombro, mas seu padrasto passou por ela, apenas para
ser agarrado pelo braço por um irado Tenente Esterhazy.
1385

"Você pare aí, senhor!"


“Vá embora, seu otário de merda! Tenho uma coisa para dizer ao
coronel”.
"Tenente!" Eu disse, levantando minha própria voz para o nível de
comando. Eu não tinha oportunidade de usá-la com frequência, mas
me lembrei como, e o tenente parou, boca aberta enquanto olhava
para mim. Agnes e Aaron Cloudtree também.
“O coronel quer falar com ele”, eu disse suavemente. “Agnes, leve
o tenente lá embaixo. Vá e veja como está o capitão.”
Ele olhou para mim por um longo momento, voltou o olhar para
Cloudtree – que estava esfregando elaboradamente sua manga
úmida pela chuva como se quisesse remover as marcas dos dedos -
e saiu, seguido por Agnes, que lançou a seu padrasto um olhar
significativo, embora ele parecesse não notar.
“Eu vi Scotchee, Coronel,” Cloudtree começou, chegando na
cama. Então ele percebeu o estado do peito de Jamie e seus olhos
se arregalaram. "Jesus Cristo, homem! O que aconteceu com
você?"
“Algumas coisas,” eu disse brevemente. "Talvez você-"
"E o que Scotchee disse, então, Sr. Cloudtree?" Jamie ainda estava
sentado, aparentemente alheio às lentas gotas de sangue escorrendo
por suas costelas.
"Oh." Aaron levou um momento para se lembrar, mas depois
acenou com a cabeça de forma tranquilizadora para Jamie.
"Ele disse para te dizer, que você deve muito a ele por isso, mas ele
acha que você não vai viver o suficiente para pagá-lo de volta,
então não se preocupe, a menos que haja Uísque."
1386

113

E NOS DESPEDIMOS COM


SINCERIDADE608

30 de março de 1780 DC
Fraser's Ridge, Carolina do Norte
De James Fraser, proprietário de Fraser's Ridge
Para os seguintes homens:
Geordie Hallam William MacIlhenny
Conor MacNeil Ewan Adair
Angus MacLean Peadair MacFarland
Robert McClanahan Holman Leslie
William Baird Alexander MacCoinneach
Joseph Baird Lachlan Hunt
Como vocês sabem, cada um e todos, que conspiraram e
agiram para me atacar e prender, com o almejado Fim de causar
minha Morte, o Contrato de Locação assinado entre nós está, a
partir desta Data, nulo e inválido em sua totalidade.
Com as ações que vocês empreenderam, vocês quebraram
minha confiança e traíram sua palavra juramentada.
Portanto, vocês estão, todos e cada um, por este meio,
despejados da Terra que vocês atualmente ocupam,
desapropriados de seu título da dita terra, e estão obrigados a
partir, com suas famílias, de Fraser's Ridge dentro do Espaço de
Dez Dias.
Vocês podem levar embora alimentos, roupas, ferramentas,
sementes, gado, e propriedades pessoais que possuírem. Todos os

608
Da mesma forma como o título do cap 112, a frase tem uma referência maçônica já explicada no cap
22 deste livro.
1387

seus Edifícios, Dependências, Galpões, Depósitos de Grãos,


Canetas e outras Estruturas serão confiscadas.
Se estes forem queimados ou danificados como sinal de Despeito,
vocês serão presos e seus pertences confiscados.
Se vocês tentarem retornar em segredo para Fraser's Ridge, serão
baleados na Hora.
James Fraser, proprietário

“VOCê CONSEGUE PENSAR em qualquer coisa que eu tenha


deixado de fora?” Jamie perguntou, olhando enquanto eu lia isso.
"Não. Isso está ... bem completo.” Eu senti um peso frio no meu
estômago. Todos esses eram homens que eu conhecia bem. Eu os
conheci e às suas esposas quando eles vieram para Ridge, muitos
deles sem nada, exceto as roupas em seus corpos, cheios de
esperança e gratidão por um lugar neste novo mundo selvagem. Eu
visitei suas cabanas, assisti seus filhos, cuidei de suas doenças. E
agora…
Pude ver que Jamie sentia o mesmo peso no coração. Estes eram
homens em que ele tinha confiado, acolhido, dado terreno e
ferramentas, incentivo e amizade. Eu abaixei a carta, meus dedos
frios.

"Você realmente atiraria neles se eles voltassem?" Eu perguntei


baixinho.
Ele me olhou atentamente e vi que, embora ele pudesse estar com
o coração pesado, o coração também estava queimando com uma
raiva profunda.
"Sassenach", disse ele, "eles me traíram e me caçaram como um
animal selvagem, em minha própria terra, por causa do que eles
chamam de justiça do Rei. Eu já estou farto desta justiça. Se eles
vierem na minha terra de novo - sim. Eu vou matá-los.”
Eu mordi meu lábio. Ele viu e colocou a mão na minha.
"Isso deve ser feito", disse ele calmamente, olhando nos meus olhos
para ter certeza de que eu entendi. “Não só porque eles podem
causar mais problemas, mas porque não são os únicos homens em
Ridge e nas proximidades cujas mentes se voltam nessa direção, e
eu sei disso muito bem. Muitos ficaram quietos até agora,
observando para ver se eu sou fraco, se eu cairei ou serei levado?
1388

Alguém virá aqui, como o major Ferguson? Eles estão com medo
de declarar-se de uma forma ou de outra, mas eu deveria mostrar a
esses ”- ele balançou a outra mão em aviso - " misericórdia,
permitir que eles mantenham não apenas suas vidas, mas suas terras
e armas, e dar aos medrosos confiança para se juntar a eles? ”
Não apenas as vidas deles ...
Senti o mundo mudar, apenas ligeiramente, sob meus pés. Até este
ponto, eu era capaz de pensar em tudo que poderia estar
acontecendo no mundo fora de Ridge, o próprio Ridge era um
refúgio sólido. E não era.
Não apenas as vidas deles. As nossas.
Ele não precisava dizer que talvez não chefiasse homens ou armas
suficientes para resistir sozinho a uma insurreição em larga escala
em Ridge.
“Sim, entendo isso", disse eu, e engolindo em seco, peguei o papel
com cuidado, vendo não apenas os nomes dos homens, mas os
rostos das mulheres. “É só – não posso deixar de pensar nas
esposas.” E as crianças, mas principalmente as esposas, divididas
entre suas casas e as necessidades de suas famílias e o perigo da
política dos seus maridos. Para agora serem despejadas de suas
casas, com nada além do que elas poderiam levar e nenhum lugar
para ir.
Eu não tinha ideia de quantas mulheres poderiam compartilhar as
opiniões de seus maridos, mas compartilhando-as ou não, elas
seriam forçadas a viver ou morrer com o resultado.
"Sino, livro e vela", disse ele, com os olhos ainda no meu rosto, e
não sem simpatia.
“O que?"
"Toque o sino, feche o livro, apague a vela", disse ele calmamente,
e tocou o papel no meu joelho. “É o rito da excomunhão e desgraça,
Sassenach - e foi isso que eu fiz.”
Antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa para dizer, ouvi
passos sólidos de homem subindo as escadas, e um momento
depois houve uma batida na porta.
"Entre", disse Jamie, sua voz neutra.
A porta se abriu, revelando o tenente Esterhazy, seu rosto vinte
anos mais velho do que sua idade.
“Senhor,” ele disse formalmente, e ficou de pé na frente da cama.
1389

"Meu – isto é, o tenente Bembridge não voltou. Tenho permissão


para ir e procurar por ele?”
Fiquei surpresa com isso e olhei para Jamie, que não se assustou.
Não tinha me ocorrido que o tenente não era mais um amigo da
casa, mas sim o prisioneiro de Jamie - mas evidentemente ambos
pensavam assim.
Jamie era completamente capaz de esconder o que estava
pensando, mas ele não estava se incomodando em fazê-lo no
momento. Se ele deixasse Esterhazy ir, quem ele poderia ver, e o
que ele poderia dizer a eles? Era óbvio que Jamie não estava em
condições de defender a si mesmo ou sua casa, quanto mais policiar
Ridge. E se o tenente fosse e voltasse com uma pequena multidão?
Ir embora e se juntar a Ferguson, com a intenção de retornar e trazê-
lo de volta aqui?
Eu tinha certeza de que nada disso estava na mente do menino; ele
não tinha nenhum pensamento além do seu amigo no momento.
Mas isso não significava que ele não poderia pensar em outras
coisas, uma vez longe da casa.
“Você pode” - disse Jamie, tão formal quanto o tenente. "Sra.
Fraser irá com você.”
1390

114

NO QUAL A TERRA SE MOVE

“VOCÊ TEM QUE IR, SASSENACH ”


Aquelas palavras não saíram do meu ouvido; elas permaneceram
teimosamente presas dentro de mim, um eco minúsculo e agudo
que zumbiu contra meu tímpano.
Foi o que Jamie disse, quando Oliver Esterhazy saiu da sala para
se despedir de seu chefe - ou melhor, de Elspeth - no consultório.
"Não há mais ninguém", disse Jamie razoavelmente, fazendo um
leve gesto em direção aos cantos vazios do quarto. “Eu não posso
enviar Bobby ou os Lindsays, porque preciso deles aqui. Além
disso, ” ele acrescentou, recostando-se em seu travesseiro com uma
careta enquanto o movimento puxava seus pontos, "se nada
aconteceu ao Sr. Bembridge, ele estaria aqui agora. Já que ele não
está, é provável que ele esteja ferido ou morto. Você seria a melhor
para lidar com ele, uma vez que ele seja encontrado, sim? "
Eu não poderia argumentar contra isso, como uma afirmação
lógica, mas argumentei de qualquer maneira.
“Eu não vou deixar você aqui sozinho. Você não está em condições
de lutar, se alguém -"
“É por isso que preciso dos Lindsays aqui”, disse ele
pacientemente. "Eles estão guardando a porta. Portas, ”ele corrigiu.
“Kenny e Murdo estão na varanda e Evan está atrás. "
"E onde está Bobby?"
“Foi buscar mais alguns homens e espalhar a palavra de que o
capitão está ...” Ele hesitou.
“Fora de combate?” Eu sugeri.
“Sem condições de ser movido”, disse ele com firmeza. “Eu não
quero ninguém pensando que eles deveriam invadir a casa e tentar
levá-lo de volta."
Eu o encarei. Ele estava um pouco mais branco do que o lençol que
o cobria, seus olhos estavam sombreados e fundos de exaustão, e
1391

sua mão tremia onde estava na colcha.


"E quando você fez todos esses arranjos?" Eu exigi.
“Quando você foi ao banheiro. Vá, Sassenach ”, disse ele. "Você
tem que ir."
Eu fui, com a mente perturbada. Fui contra minha natureza deixar
homens feridos, mesmo que eles estivessem todos estáveis no
momento e que fosse improvável que piorassem repentinamente.
E Elspeth, Fanny e Agnes eram completamente capazes de lidar
com qualquer emergência médica menor que pudesse surgir, eu
disse para mim mesma.
“...Então eu vou sair com o Tenente Esterhazy para procurar seu
amigo,” eu disse a Elspeth, tirando meu kit de campo do gancho
onde o guardava. Ela não parecia muito melhor do que Jamie, mas
acenou com a cabeça, os olhos fixos no filho. Ele estava
começando a se contorcer e gemer.
"Vou cuidar das coisas aqui", disse ela baixinho, e olhou para mim,
de repente. Seus olhos estavam avermelhados e ensacados de
fadiga, mas alertas. "Tenha cuidado."
Parei, olhando para ela, um leve rosa pálido em suas bochechas.
“Não sei o que está acontecendo”, disse ela. “Mas as coisas
parecem ... muito instáveis. Para mim."
"Você quer dizer Nicodemus Partland?" Eu disse sem rodeios. “E
os homens que ele pretendia trazer do Noventa e Seis? "
O rosa em suas bochechas desapareceu como uma flor congelada.
“Hmph”, eu disse, e saí.
Oliver estava esperando por mim na varanda, e imediatamente se
ofereceu para carregar o kit de campo.
“Não, eu vou ficar com isso. Você pega este. ” Entreguei a ele outro
pacote, um com água, água com mel, um pouco de comida, um
cobertor dobrado, um pote de sanguessugas, e algumas outras
coisas que poderiam ser úteis. "Tudo bem, então – onde podemos
começar?"
Ele olhou para fora da varanda, perplexo.
"Eu não sei." Ninguém havia dormido na noite anterior, nem ele.
Enquanto jovem simpático e alegre, na verdade ele não era a pessoa
mais brilhante que eu já conheci. Agora, entre a preocupação e a
exaustão, ele não parecia ter mais do que algumas células cerebrais
ainda funcionando. Eu respirei fundo o ar da manhã, invocando
1392

paciência.
"Bem, onde você o viu pela última vez?" Eu perguntei.
Essa pergunta invariavelmente incomodava os membros da minha
casa procurando por itens perdidos, mas Oliver Esterhazy piscou e,
em seguida, apertou os olhos concentração, finalmente dizendo:
“Perto da Casa de Reunião”.
"Então vamos começar por lá."
“Já procurei lá.”
“Vamos começar a procurar lá.”
A chuva tinha parado, mas a floresta estava pingando e minhas
saias estavam molhadas até os joelhos antes de estarmos na metade
do caminho. Eu não me importei. Pássaros estavam chilreando, o
ar estava vivo com os aromas frescos e afiados de cedro vermelho
e abeto, brotando cornizo e rododendro, e a encosta da montanha
estava escorrendo com dezenas de pequenos riachos e córregos. A
primavera estava no ar, e a paz da floresta matinal estava se
infiltrando em mim, a ansiedade da noite e as urgências da manhã
estabelecendo-se em algo que se aproxima de perspectiva.
Jamie não estava morrendo ou em qualquer perigo imediato de
morrer. Todo o resto poderia ser tratado, e fiel à forma, ele estava
fazendo exatamente isso, mesmo diretamente em suas costas e
muito fraco para se sentar sozinho.
Eu ainda queria estar com ele, mas ele estava certo - não havia mais
ninguém que ele poderia ter enviado, dadas as circunstâncias.
Embora sua preocupação não fosse o Tenente Esterhazy levantar
uma multidão de legalistas, o que parecia desnecessário no
momento. Não vimos nem ouvimos ninguém na trilha, e todos
pareciam estar mantendo-se deliberadamente fora de vista.
Batemos em duas cabines no caminho, para perguntar sobre o
tenente Bembridge, mas fomos recebidos com rostos fechados e
sacudidelas negativas de cabeça.
A própria casa de reuniões estava abandonada. A porta foi deixada
aberta, metade dos bancos foram derrubados, a cerveja enlameada
no chão, e dois guaxinins estavam lá dentro, ocupados em mastigar
um avental maçônico que alguém tinha derrubado.
"Saia daqui!" Oliver agarrou uma vassoura que também havia sido
derrubada no chão e expulsou os guaxinins com o fervor de um
profeta do Antigo Testamento, então com ternura recuperou os
1393

restos do avental. Era um luxuoso, de couro branco, com orla de


seda branca pregueada e laços de lona, um pouco roídos. A bússola
maçônica havia sido pintada nele, com habilidade considerável.
"Do capitão?" Eu perguntei, observando-o dobrar a roupa, e ele
acenou com a cabeça.
Pequenos adornos, como o balde de madeira e a concha para o
descanso dos grandes oradores e uma pilha de leques de papel que
as crianças tinham feito para o verão que se aproximava, estavam
espalhadas pela sala. Ficamos em silêncio por um momento,
olhando para os destroços, mas nenhum de nós escolheu mencionar
a ironia - se essa for a palavra - de um encontro de Maçons,
teoricamente dedicados aos ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade, desintegrando-se em tumulto e caos. Tanto para não
falar sobre política na loja maçônica...
Saímos e Oliver fechou a porta com cuidado. Então nós andamos
de um lado para outro em círculos cada vez maiores, gritando o
nome de Gilbert Bembridge.
"Será que ele teria se refugiado com... um dos seguidores do
capitão?” Eu perguntei delicadamente quando nos encontramos
novamente fora da Casa de Encontro. "Se ele foi ferido, talvez?"
"Eu não sei." Oliver estava ficando agitado, olhando ao redor como
se esperando seu amigo pular de trás de uma árvore. "Eu - eu acho
que talvez ele estivesse com os homens que, hum ... "
"Perseguiam meu marido?" Eu disse, um tanto acidamente. "Para
que lado eles foram?"
Ele disse que não tinha certeza, mas começou a descer a colina com
uma explosão repentina de determinação, eu seguindo com mais
cautela para não torcer o tornozelo nas rochas e nos cascalhos que
as inundações repentinas haviam deixado expostas nas trilhas.
Eu estava começando a pensar que havia algo estranho sobre o
comportamento do tenente Esterhazy. Ele estava suando muito,
embora a floresta ainda estivesse muito fria, e embora ele se
afastasse de vez em quando, ele o fazia em movimentos breves e
erráticos antes de retornar a um caminho de sua própria escolha. Eu
prefiria pensar que ele sabia para onde estava indo, e não fiquei
realmente surpresa quando de repente chegou a um ponto onde a
floresta ... não estava.
Estávamos parados na beira de um bosque de mudas de carvalho
1394

magras, e abaixo de nossos pés, o solo deslizou em um monte de


terra preta e crua, cheia de árvores e arbustos quebrados, com
grandes rochas cinzentas que haviam sido desalojadas pela queda
e agora estavam meio enterradas na terra, sua parte inferior
exposta, manchadas e molhadas com lama e vermes desalojados.
“Bem,” eu disse, após um momento de silêncio. “Então este é o
famoso deslizamento de terra. Você estava aqui quando
aconteceu?”
Ele balançou sua cabeça. Seu cabelo estava saindo de sua bela
trança naval e espalhava-se sobre seu rosto suado. Ele limpou de
volta, distraidamente.
“Não,” ele disse, então repetiu, “Não,” mais definitivamente.
Não foi um grande deslizamento de terra, mas se alguém estivesse
no fundo dele no escuro, provavelmente tinha sido surprendido.
Cerca de quinze metros da encosta da montanha haviam
escorregado, caindo ruidosamente por uma encosta íngreme de
granito e bloqueando parcialmente um pequeno riacho.
"Você acha ..." o jovem começou, depois parou e engoliu em seco,
seu pomo de Adão enorme balançando em sua garganta. “Gilbert
poderia estar ... lá?"
“Suponho que seja possível,” eu disse, olhando os escombros com
dúvida. “Se ele está, entretanto...” Nós claramente não estávamos
equipados para cavar através de um deslizamento de terra com
nossas mãos nuas, e eu estava a ponto de dizer isso quando o
tenente agarrou meu braço com um grito assustado, apontando para
baixo.
"Lá! Lá!"
Uma mancha azul marinho, manchada de lama e quase da cor da
terra molhada, estava saindo do solo, cerca de vinte pés de onde
estávamos, e antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Oliver
estava deslizando e cambaleando através dos torrões molhados,
caindo sobre um joelho, depois se erguendo novamente e seguindo
em frente.
Eu tropecei atrás dele, agarrando meu pacote de emergência, mas
depois do primeiro salto convulsivo, meu coração afundou como
uma pedra. Ele não poderia estar vivo.
Oliver desenterrou um braço e, levantando-se de um salto, puxou-
o com toda sua força. Eu ouvi algo estalar e a cabeça de Gilbert,
1395

com seu rosto branco de morto, explodiu do chão em uma chuva


de torrões e cascalho.
Oliver soltou o braço de Gilbert como se estivesse em brasa e ficou
balbuciando em estado de choque, mas não tive tempo para ele. Eu
fiquei de joelhos e esfreguei a mão com força no rosto de Gilbert.
Eu pensei — mas— não. Eu tinha razão; eu tinha visto uma
contração em suas pálpebras, eu vi de novo agora e meu coração
saltou em minha garganta.
“Jesus H. Roosevelt Christ! Oliver! Eu acho que ele está vivo - me
ajude a tirá-lo para fora!
"Ele-o-o-que ... ele não pode estar!"
Eu tinha deixado cair minha mochila e estava cavando como um
texugo com minhas próprias mãos. Algo quente tocou minha pele
- um sopro de fôlego.
“Gilbert - Gilbert! Espere, espere, estamos tirando você daí....”
“Não,” disse a voz de Oliver atrás de mim. Era rouca e aguda e eu
olhei por cima do ombro para vê-lo puxando um galho arrancado
da sujeira.
“Não,” ele disse novamente, mais fortemente. "Acho que não."
-.-.-
JAMIE ACORDOU DE um cochilo febril para ver Frances parada
ao lado de sua cama, parecendo séria.
"O que aconteceu?" ele perguntou. Sua garganta estava seca como
areia, e as palavras saíram em um leve ruído. "Onde está minha
esposa?"
"Ela ainda não voltou", disse Frances. “Ela e o Tenente Esterhazy
sairam há apenas uma hora, você sabe.” “Você sabe” saiu com um
tom fraco de pergunta e ele fez uma tentativa de sorrir. Não é bom;
seu rosto estava tão cansado quanto o resto dele. Frances olhou para
ele avaliando, então ergueu a xícara que ela estava segurando.
"Você deve beber isto", disse ela com firmeza. “Uma xícara cheia
a cada hora. Ela disse isso.” O "Ela" foi falado com o respeito
devido à divindade local, e seu sorriso melhorou.
Ele conseguiu levantar a cabeça o suficiente para beber, embora ela
tivesse que segurar a xícara enquanto ele o fazia. Estava apenas
moderadamente horrível e Frances, a querida criança,
evidentemente seguiu as ordens de Claire "com um pouco de
uísque" não apenas literalmente, mas liberalmente. Ele deitou a
1396

cabeça no travesseiro, se sentindo um pouco tonto, embora isso


pudesse ser apenas falta de sangue.
"Devo verificar se você está exsudando pus", Frances disse a ele,
no mesmo tom firme.
“Não estou em condições de impedi-la, moça.”
Ele ficou imóvel, respirando profunda e lentamente, enquanto ela
desatava a bandagem e levantava a compressa molhada de seu
peito. Ele ficou interessado em ver que ela lidava com o seu corpo
sem a menor hesitação ou escrúpulo, pressionando aqui e ali, ao
lado da linha de costura, um pequeno franzido entre suas
sobrancelhas escuras e suaves. Ele queria rir, mas não o fez; até
mesmo a respiração que ele estava fazendo doeu um pouco.
"O que você acha, a nighean ?" ele perguntou. “Eu vou viver?”
Ela fez uma pequena careta para reconhecer que ela entendia que
ele estava brincando, mas a carranca permaneceu.
"Sim", disse ela, mas ficou parada por um momento, franzindo a
testa para seu peito enfaixado. Então ela pareceu se decidir sobre
algo e substituiu a compressa e amarrou novamente a bandagem
de uma forma profissional.
“Eu quero te dizer uma coisa,” ela disse. “Eu teria esperado a Sra.
Fraser voltar, mas o tenente Esterhazy estará com ela. ”
“Fale, então,” ele disse, combinando com sua formalidade. "Sente-
se, se quiser." Ele acenou com a mão em direção ao banquinho
próximo e prendeu a respiração bruscamente com a sensação
resultante. Frances olhou para ele preocupada, mas depois de um
momento decidiu que ele não morreria e sentou-se.
“É Agnes”, disse ela, sem preâmbulos. "Ela pensa que está
grávida."
"Oh, Jesus Cristo!"
"Exatamente", disse ela, balançando a cabeça. "Ela pensa que é do
Tenente Gilbert Bembridge, quero dizer. ”
“Ela pensa que é dele? Quem mais pode ser? "
“Bem, Oliver,” ela disse. "Mas ela só fez isso uma vez com ele."
"Sasannaich clann na galladh!"
"O que isso significa?"
“Filhos ingleses do diabo”, disse ele a ela rapidamente. Ele estava
lutando para conseguir ficar com os cotovelos dobrados o
suficiente para se sentar; esta não era uma notícia que ele pudesse
1397

ficar deitado. "Algum desses merdas ... er ... tentou ... com você?"
A surpresa apagou a carranca de seu rosto.
"Eu nunca vou deitar com um homem", disse ela com total certeza,
então olhou para ele, com um pouco menos. "Você disse que eu
não precisava."
“Você não precisa e nunca precisará” ele assegurou para ela. Se
alguém tentar eu o matarei. Há quanto tempo você sabe disso –
sobre Agnes?”
“Ela me disse um pouco antes de eu vir aqui", disse Frances, com
um leve olhar culpado por cima do ombro. "Eu queria - não tinha
certeza se deveria dizer a você, mas ...ela está com medo que Oliver
matou Gilbert na noite passada porque ele descobriu que ela
estava...”
"Ela sabe com certeza que ele descobriu?"
Frances acenou com a cabeça sobriamente.
“Ela disse a ele. Ontem. Ele a pediu em casamento e ela disse que
não poderia, porque ...”
Ele queria muito descer as escadas e sacudir Agnes até que a cabeça
dela chacoalhasse, mas algo muito pior estava surgindo sobre ele,
e ele endireitou-se, ignorando a dor e a tontura.
“Desça e traga Kenny Lindsay para mim,” ele disse com urgência.
“ Agora, Frances.”
-.-.-
“VOCÊ NÃO PENSA assim?” Eu disse, olhando para Oliver
Esterhazy.
“Quero dizer, ele está morto, Sra. Fraser! Venha, não toque nele!”
Oliver agarrou meu braço, mas eu o afastei.
"Ele não está morto", disse eu, "mas pode muito bem estar nos
próximos minutos, se nós não o tiramos. Desça aqui e me ajude!”
Ele olhou para mim com a boca entreaberta, então olhou
descontroladamente para Gilbert – que realmente parecia morto,
mas ...
"Ajude-me!" Eu disse, e comecei a vasculhar a terra úmida e
pesada. Eu cavei a terra loucamente tentando livrar o suficiente do
peito de Gilbert para ele respirar. Ele estava deitado de lado, e
felizmente não havia muita terra sobre a parte superior do corpo,
embora suas pernas parecessem estar enterradas mais
profundamente. Se ao menos eu pudesse deixá-lo livre o suficiente
1398

para fazer compressão toráxica e seus ossos não estivessem


estilhaçados…
Oliver se agachou ao meu lado. Ele estava xingando
constantemente, e agora me cutucou, tentando me empurrar para o
lado.
"Deixe-me fazer isso", disse ele secamente. "Eu sou mais forte. "Eu
sou -"
"Vá!" ele disse violentamente, e me empurrou para o lado. Eu perdi
meu equilíbrio, caí esparramada, e a terra solta moveu-se sob mim.
Eu rolei em uma inundação de sujeira úmida, braços e pernas
jogados para fora e derrapei até parar contra um emaranhado de
raízes de uma árvore arrancada, no meio da encosta. Eu estava
atordoada e assustada, meu coração batendo forte. Eu estive tão
preocupada em resgatar Gilbert Bembridge que não tinha me
ocorrido que a terra escorregadia não significava estar instalada em
seu novo leito e podia facilmente deslizar mais. Eu rolei nas minhas
mãos e joelhos e comecei a engatinhar de volta encosta acima, o
mais rápido que pude administrar sem perder meu equilíbrio
precário.
Oliver Esterhazy estava cavando, mas não perto de seu amigo. Ele
pegou em um galho de pinheiro quebrado meio livre da lama
aderente, então se levantou e puxou-o. Ele se virou para a cabeça
protuberante de Gilbert, e com uma expressão de determinação
cambaleou pela lama e jogou o galho sobre ele.
"Seu ... porco ..." veio uma voz sepulcral sob o pinheiro de agulhas
enlameado. Era forçado e rouco, mas claramente impulsionado
pela respiração. Antes de eu poder ficar em pé, o braço livre de
Gilbert balançou no ar e agarrou a ponta do ramo.
Completamente em pânico, Oliver se soltou e saltou para trás. Eu
vi um pé calçado afundar até a panturrilha na terra solta e então ele
também perdeu o equilíbrio e com um grito abafado tombou para
trás e foi arremessado encosta abaixo como um desajeitado trenó.
Sentei-me nos calcanhares e respirei por um minuto. Eu tinha
perdido meu chapéu e meu cabelo tinha escapado. Eu o empurrei
para fora do meu rosto e comecei minha escalada laboriosa mais
uma vez. Eu tinha que alcançar Gilbert e libertá-lo - ou armar-me
(eu tinha um bisturi e duas sondas no meu pacote de emergência -
para não falar de alguns cogumelos venenosos que eu coletei da
1399

última vez que estive fora) antes que Oliver se controlasse e me


alcançasse.
Eu olhei por cima do ombro; Oliver estava a cerca de 12
metros encosta abaixo, enrolado em um choupo forte que resistiu
ao deslizamento de terra. Alguém estava parado ao lado dele,
olhando-o.
Eu me virei para olhar novamente. Leal ou rebelde, não me
importava; qualquer um me ajudaria.
Acenei meus braços e gritei: "Alôaa!" e o homem ergueu os
olhos. Era um índio e um que eu não conhecia. Eu sofri um breve
surto de pânico quando pensei que Scotchee Cameron poderia ter
falhado conosco, mas um segundo olhar me disse que este homem
não era Cherokee. Ele era de estatura mediana e bastante esguio, e
seu cabelo era grisalho, penteado e amarrado com um nó na parte
de trás de seu pescoço. Ele usava uma tanga e perneiras, e uma
túnica com uma seda bordada - e nada mais acima da cintura,
apenas uma coleção de pulseiras de prata. Ele acenou com a mão
para mim, tilintando audivelmente.
"Eu falo, senhora!" ele gritou, algo parecido com um sotaque
inglês. "Você está precisando de ajuda? ”
"Sim!" Eu gritei de volta, e apontei para o corpo de Oliver. "Esse
homem está morto?"
O índio olhou para baixo e deu um tapa na nádega de Oliver. Oliver
estremeceu, gemeu e estendeu a mão para afastar o incômodo.
"Não", disse ele, e colocou a mão no cinto, onde agora vi que ele
carregava uma faca substancial de algum tipo. "Você quer que ele
esteja?"
Eu me levantei e desci a encosta como um caranguejo até estar ao
alcance de conversar com o estranho - e Oliver, cujos olhos
estavam fechados, se encolheu, mas estava claramente consciente
e desejando que não estivesse.
“Ter você morto resolveria muitos problemas”, eu disse a ele. "Mas
disseram-me que dois erros não fazem um acerto.”
"Mesmo?" disse o índio, sorrindo. "Quem te disse isso?"
“Deixa pra lá,” eu disse. “No momento, eu preciso olhar para este
homem e ter certeza de que ele não está gravemente ferido, e se
não, então eu preciso voltar lá ”- eu apontei o polegar por cima do
ombro - "e terminar de desenterrar o homem que está enterrado,
1400

para que eu possa cuidar dele.”


"Ele não está morto?" perguntou o índio, protegendo os olhos com
a mão enquanto examinava a encosta. "Ele parece morto."
Ele parece, mas eu estava esperando que as aparências
enganassem. Eu estava prestes a dizer isso quando um ligeiro
farfalhar no arbusto molhado indicava outra chegada, e o jovem Ian
saiu, segurando um garotinho que estava chupando seu polegar e
me olhando com cautela.
"Oh, aí está você, tia", disse o jovem Ian, seu rosto iluminando-se
ao me ver. "Eu pensei ter ouvido sua voz!"
Eu me senti como se pudesse me dissolver de alívio e fluir morro
abaixo para as poças no fundo.
"Ian!" Eu saí da lama e o agarrei em um abraço de um braço só.
"Como você está? É Oggy? Ele está tão grande! Onde está
Rachel?”
"Ah, todas as mulheres estão mijando na floresta", disse ele com
um dar de ombros. Ele acenou com a cabeça para o índio
idoso.“Vejo que você conheceu o Sachem609. Esta é minha tia,
Okàrakarakh'kwa; aquela de que te falei. "
“Ah”, disse o Sachem, e curvou-se, a mão na túnica bordada.
"É um prazer, “honrada bruxa."
"Da mesma forma, tenho certeza", respondi educadamente,
contraindo minha bainha entupida de lama no fantasma de uma
reverência. Então me virei para Ian.
“O que você quer dizer com 'todas as mulheres'? E quem,”
Eu acrescentei, de repente avistando um menino de talvez sete ou
oito anos, pairando timidamente na sombra da madeira, "é este?"
"Este é Tsi'niios'noreh 'neh To'tis tahonahsahkehtoteh ",
disse ele, sorrindo quando ele colocou a mão livre no ombro do
menino. “Meu filho mais velho. Nós o chamamos Tòtis. ”

609
Sachem: Chefe supremo entre os Algonquians ou outras tribos nativas americanas do nordeste da
América do Norte.
1401

115

PEQUENO LOBO

A CHUVA RETOMOU COM força incomum, e levou algum


tempo antes de Gilbert Bembridge ser completamente escavado,
tratado superficialmente para choque, diagnosticado com uma
concussão leve, e sua ferida - um corte longo, mas superficial sobre
uma omoplata, onde seu amigo tentou esfaqueá-lo – cuidada.
Oliver Esterhazy foi tratado para choque de vários tipos e várias
costelas quebradas. Felizmente Kenny Lindsay e Tom MacLeod
apareceram neste momento com dois rifles embrulhados em lona e
uma mula, com chuva caindo de seus chapéus, e tomaram conta
dos dois tenentes com a intenção de removê-los para a cabana de
Kenny, que estava a não mais do que um quilômetro de distância.
"Não se preocupe, senhora", disse Kenny, enxugando as costas da
mão sob a seu nariz grande e vermelho. “Minha esposa pode cuidar
deles até a chuva parar. É melhor você ir para casa antes que ele
tenha uma apoplexia, se é que ainda não a teve.”
"Ele não tem sangue suficiente para uma boa apoplexia", eu disse,
e Kenny riu, aparentemente pensando que eu estava sendo
espirituosa.
O grupo de Ian, reunido na floresta, tinha marchado para a estrada
onde eles tinham deixado sua carroça, e estavam amontoados - com
os cavalos desatrelados - sob a escassa proteção de uma ampla
plataforma de calcário e alguns pedaços de tela encerada.
Eu havia atingido o ponto de saturação total há muito tempo,
minhas mãos estavam manchadas de azul com o frio, e eu não
conseguia sentir meus pés. Mesmo assim, senti uma onda de alegria
ao ver o rosto de Rachel espiando para fora do minúsculo abrigo.
Seu olhar de ansiedade floresceu em felicidade e ela correu para a
1402

chuva para agarrar minhas mãos congeladas e me puxou em uma


confusão quente de corpos, que explodiam em perguntas,
exclamações e gritos intermitentes que pareciam ser de um grande
número de crianças.
"Aqui", disse uma voz familiar ao meu lado, e Jenny me entregou
um cantil. “Beba tudo, a leannan, não sobrou muito.” Apesar de
estar tão molhada externamente, eu estava morrendo de sede e
engoli o conteúdo, que parecia ser um vinho condimentado diluído
misturado com mel e água. Foi divino e eu devolvi o cantil vazio,
agora com posse suficiente de mim para olhar ao redor.
"Quem…?" Eu resmunguei, acenando com a mão. "Todas as
mulheres", Ian tinha dito - e foi isso que ele quis dizer, levando em
consideração a idade. Além de Rachel e Jenny, havia uma mulher
pálida e magra como um palito encolhida ao lado de um dos
cavalos, duas meninas de olhos redondos encharcadas e grudadas
em suas pernas, e outra, talvez de dois anos, em seus braços.
"Esta é Silvia Hardman, tia", disse Ian, entrando no abrigo e
entregando Oggy para Rachel. “Tio Jamie me pediu para cuidar de
suas necessidades na Filadélfia, e com uma coisa e outra, pensei
que era melhor que ela e as crianças viessem conosco. Então ... elas
vieram.”
Eu capturei um eco por detrás daquele casual "uma coisa e outra",
e também a Sra. Hardman, que se encolheu um pouco, mas depois
se ergueu bravamente e fez o possível para sorrir para mim, com as
mãos nos ombros das filhas magricelas.
“Conheci teu marido há dois anos, por acaso, Amiga Fraser. Foi
muito gentil da parte dele ter enviado seu sobrinho para perguntar
sobre nossas circunstâncias, que estavam ... difíceis. Eu - eu espero
que nossa presença momentânea aqui não te seja imcômoda. "
Esta última não foi bem uma pergunta, mas consegui sorrir, embora
meu rosto estivesse rígido de frio e fadiga. Eu podia sentir um fio
de água morna correndo lentamente pela minha espinha,
encontrando seu caminho através das camadas de pano grudado na
minha pele.
“Oh, não,” eu disse. “Hum. Quanto mais, melhor, não dizem?” Eu
pisquei forte para limpar a água dos meus cílios, mas não parecia
ajudar. Tudo estava cinza e borrado nas bordas, e o vinho tinto era
o pouco de calor que eu tinha no meu estômago.
1403

“Claire,” disse Jenny, agarrando meu cotovelo. "Sente-se antes de


cair de cara, sim? "

-.-.-

EU NÃO CAÍ de cara, mas acabei sendo transportada para uma


carroça com minha cabeça no colo de Rachel, cercada por crianças
encharcadas, mas alegres. Lagarto, que até agora não havia
pronunciado uma palavra, escolheu andar com Ian, Silvia, e o
Sachem, enquanto Jenny dirigia a carroça e mantinha um riacho de
comentários correndo por cima do ombro, apontando coisas de
interesse para as pequenas meninas para tranquilizá-las.
“Vocês terão uma pequena cabana para morar com sua mãe,”
assegurou a elas. “E nenhum homem irá incomodá-la, nunca mais.
Meu irmão cuidará disso.”
"O que aconteceu?" Eu disse para Rachel. Eu falei em voz baixa,
mas uma das garotinhas maltrapilhas me ouviu e se virou para me
olhar seriamente. Ela não era bonita, mas tanto ela quanto a irmã
de quase a mesma idade tinham uma dignidade estranha sobre elas
que estava em desacordo com suas idades.
“Nosso pai foi levado por índios”, ela me disse, falando com
precisão. “Minha mãe não tinha como nos manter, exceto seu
jardim e pequenos presentes de homens que vinham visitar.”
"Alguns deles não eram gentis", acrescentou sua irmã, e ambas
franziram seus lábios e olharam para a floresta gotejante.
“Entendo”, eu disse, e pensei que provavelmente entendia sim.
Jamie me disse, muito resumidamente, sobre a viúva quacre que
cuidou dele por um ou dois dias quando suas costas paralisaram
enquanto ele estava na casa dela, tendo-se encontrado lá com
George Washington - e eu me perguntei o que diabos George
Washington estaria fazendo lá, mas não tinha perguntado, devido
às notícias de eventos na época.
"Sra. Murray está certa,” eu assegurei a elas. "Sr. Fraser encontrará
um lugar para vocês." Afinal, em breve teríamos várias cabines
desocupadas pelos inquilinos despejados de Jamie ...
Patience e Prudence - esses eram os nomes das meninas mais
velhas, e a pequena era Chastity - olharam uma para a outra e
acenaram com a cabeça.
1404

“Nós dissemos à mamãe que o amigo Jamie não nos deixaria


morrer de fome,” uma das irmãs disse, com uma confiança simples
que me emocionou.
“Teria sido divertido ficar com os índios,” disse sua irmã um pouco
melancolicamente. "Mas não podíamos fazer isso, por causa do
Pai."
Fiz um ruído simpático, perguntando-me exatamente o que tinha
acontecido com o pai delas. Rachel enxugou meu rosto com a ponta
de sua anágua de flanela, que estava úmida, mas não encharcada.
“Por falar no amigo Jamie”, disse ela, sorrindo para mim, “onde ele
está?”
Mal posso esperar para saber como você se envolveu em um
deslizamento de terra com dois Ingleses - Eles são soldados? Eu
acho que alguém disse que ele era tenente. Mas Jamie está em casa,
então? "
“Sinceramente espero que sim”, disse eu. “Houve o que ele
chamaria de tumulto de um certo tipo ontem à noite, e ele foi ferido.
Mas não é ruim,” acrescentei apressadamente. “Está tudo bem. No
momento."
Ao ouvir isso, Jenny se virou e me lançou um olhar penetrante. Eu
olhei tão reconfortante quanto possível, e ela bufou levemente e se
virou, estalando as rédeas para apressar os cavalos.
Sentei-me cautelosamente, apoiando-me na lateral da carroça.
Minha cabeça flutuou brevemente, mas então as coisas se
acalmaram. O céu ainda estava cinza escuro e turbulento, mas ao
nível do solo, o ar tinha parado, e eu ouvia os cautelosos gorjeios e
gritos de pássaros puxando suas cabeças para fora de suas asas e
olhando em volta para ver o que restava do mundo.
“Parece que me lembro de alguém me dizendo que Oggy
finalmente tem um nome”, eu disse a Rachel, acenando com a
cabeça em direção ao próprio Oggy, que estava enrolado com sua
cabeça no colo de Patience ou Prudence. A outra garota tinha um
grande cachorrinho de pêlo grosso no colo, também encharcado
com a pelagem espetada, mas em sono profundo. Rachel riu, e
pensei o quão bonita ela era, seu rosto fresco no ar frio, e sua leveza
de espírito subindo com a estrada em direção a casa.
"Ele tem", disse ela, e tocou a volta de seu traseiro afetuosamente.
“O nome dele é Hunter James Ohston'ha Okhkwaho Murray.
1405

'James' para o seu tio-avô, é claro,” acrescentou ela.


"Jamie vai adorar", eu disse, sorrindo para mim mesma. “O que a
parte Mohawk do nome dele significa? "
“Filho do Lobo”, disse ela, olhando para trás da carroça. “Ou
Pequeno Lobo, se você quiser.”
" O Lobo?" Eu perguntei. "Não qualquer lobo velho, quero dizer?"
Ela sacudiu a cabeça, olhando para Ian, que estava explicando o
conceito de um pudim de sangue610 para Tòtis, que parecia
intrigado.
"Você não pode realmente dizer, em Mohawk, mas tenho quase
certeza de que há apenas um Lobo de importância aqui,” Rachel
disse. Eu pensei que uma leve sombra cruzou seu rosto com isso,
mas se sim, ela desapareceu quando perguntei se ela tinha
escolhido o nome Hunter por seu irmão.
“Não,” ela disse, e seu sorriso floresceu novamente. “A primeira
esposa de Ian escolheu aquele nome. Sendo guiada pelo espírito,
sem dúvida” ela acrescentou circunspectamente. Ela estendeu a
mão e coçou a cabeça do cachorro, fazendo-o mexer-se em êxtase
e ele pulou em seu colo, lambendo seus dedos.
"Mas eu escolhi seu nome," disse ela, ignorando as marcas de patas
lamacentas em sua saia. “Ele se chama Skénnen.”
"Que significa?"
"Paz."

610
Um tipo de chouriço grande feito com sangue e diversos tipos de temperos.
1406

116

EM QUE NOVOS AMIGOS SÃO ENCONTRADOS

QUANDO chegamos ao portão, eu já havia me recuperado a ponto


de ter elaborado um plano de ação. E uma coisa boa, também,
quando a porta se abriu e Bluebell disparou, latindo como se um
exército invasor tivesse acabado de chegar. Não muito longe da
verdade também, pensei, descendo da carroça. Fiz uma pausa para
sacudir o máximo de lama meio seca que pude de minhas saias,
então enxotei todos escada acima.
- Jenny, você pode levar todos para a cozinha? Fanny estará aqui
em um mo- Oh, aí está você, querida! Temos companhia e todos
eles estão com fome. Você e Agnes podem vasculhar a despensa e
o guarda comidas e ver se conseguem encontrar pelo menos pão
com manteiga para todos? E você já colocou alguma coisa para o
jantar? "
"Sim, senhora", disse Fanny, lançando um olhar interessado sobre
as fileiras cerradas que se amontoavam na porta da frente - e se
demorando especulativamente em Prudence e Patience - e depois
no novo cachorrinho, que se agachou a seus pés e fez xixi.
"Oh, você é tão fofo!" ela choramingou, e esquecendo tudo o mais
ela se agachou para acariciar Skénnen, com Bluebell espreitando
atrás dela, cheirando seu cotovelo com grunhidos descontentes.
“Cozinha”, repeti para Jenny, que já estava comandando todo
mundo. “Exceto você,” eu disse, pegando o Jovem Ian pelo braço.
"Só vou subir para ver o tio Jamie", protestou ele, apontando para
as escadas.
1407

“Ah, bom,” eu disse, e abri um sorriso. "Isso é o que eu queria que


você fizesse. Eu só quero estar lá quando ele te vir. Mas espere
apenas um segundo -” A colcha estava cobrindo a porta do
consultório, e eu não ouvi vozes do outro lado. Levantei a colcha o
suficiente para enfiar a cabeça e vi o capitão, aparentemente
cochilando na mesa, e Elspeth adormecida em minha cadeira
grande, a cabeça caída para trás e os longos cabelos grisalhos soltos
dos grampos e quase chegando ao chão.
Coitadinhos, pensei, mas pelo menos eles podiam esperar alguns
instantes.
A porta do quarto estava fechada e bati levemente. Antes que eu
pudesse abri-la, no entanto, uma voz masculina firme do outro lado
gritou: "Estou fazendo xixi, Frances, e não quero ajuda com isso!
Vá até a casa da fonte e traga um pouco de leite, sim? "
O jovem Ian girou a maçaneta e abriu a porta, revelando Jamie,
que estava sentado ao lado da cama com sua camisa, a roupa de
cama amarrotada e jogada de lado. Na verdade, ele não estava
usando o penico, mas estava pálido e suando, os punhos cravados
com força no colchão de ambos os lados, aparentemente tentando
se levantar, mas não conseguiu ficar de pé.
"Deitando com garotinhas, não é, tio?" Ian disse com um sorriso.
"Você pode ir para o inferno por causa desse tipo de coisa, ouvi
dizer."
"E para onde você pensa que vai, diabos?" Eu perguntei a Jamie.
Ele não respondeu. Não achei que ele tivesse me ouvido. Seu rosto
se encheu de alegria ao ver Ian e ele se levantou. Então seus olhos
rolaram e ele ficou branco como um morto e caiu com um estrondo
que sacudiu o chão.
JAMIE VOLTOU A SI NOVAMENTE em sua cama, rodeado por
várias mulheres, todas carrancudas com ele. Havia uma dor aguda
em seu peito, onde Claire estava consertando alguns pontos que
aparentemente haviam se soltado quando ele caiu, mas ele estava
muito feliz para se preocupar com a agulha ou a repreensão que ele
estava prestes a receber.
"Você está de volta, então", disse ele, sorrindo para a irmã, e depois
para Rachel, parada ao lado dela. "Como está o pequeno
homenzinho?"
“Bonnie,” ela o assegurou. "Ou deveria ser 'braw', se é de um
1408

menino de quem estamos falando?"


“Suponho que podem ser os dois”, disse ele, balançando uma das
mãos em equívoco. “Braw é mais uma questão de bom caráter -
corajoso, sabe? O que tenho certeza que o rapaz deve ser, com esses
pais - e bonnie significa que ele tem boa aparência. E se ele ainda
se parece com você, moça— Ach, Jesus! " Claire tinha chegado ao
fim de sua costura e sem uma palavra de aviso espirrou um
punhado de sua solução desinfetante sobre a ferida aberta.

Sem palavras apenas porque não conseguia dizer as que vinham à


sua língua na frente de Rachel, Frances e Agnes, ele ofegou com a
ferroada cegante. As mulheres estavam olhando para ele com
expressões que variavam de simpatia a forte condenação, mas todas
com rostos - até mesmo os de Rachel - tingidos com o tipo de
presunção que as mulheres costumavam exibir quando pensavam
que tinham vantagem sobre um homem.
"Onde está Ian?" ele disse, evitando a repreensão que viu subindo
aos lábios de sua esposa. Um estranho vislumbre de algum
sentimento que ele não conseguia nomear percorreu as mulheres.
Diversão? Ele franziu a testa, olhando de rosto em rosto, e ergueu
as sobrancelhas para a irmã. Ela sorriu para ele, e ele viu alívio e
felicidade em seu rosto, embora estivesse marcado pelo cansaço e
seu cabelo estivesse despenteado para fora da touca murcha.
"Ele saiu para falar com um homem que estava procurando por
você", ela disse a ele. "Eu não sei o que ele..."
Ele ouviu os passos de Ian subindo as escadas, subindo de dois em
três degraus de cada vez, e lutou para se sentar, causando gritos de
alarme nas mulheres.
"Deixe estar, Sassenach", disse ele, tirando o pano da mão de
Claire. "Eu farei isso."
Ian entrou com uma carta na mão e uma expressão confusa no
rosto.
“Você esperava uma visita do Sr. Partland, tio? “ele perguntou.
"Eu esperava", Jamie respondeu cautelosamente. "Por que?"
"Eu não acho que ele vai vir." Ian entregou a carta, que foi escrita
em um papel decente e selada com o polegar de alguém e uma bola
de cera de vela. Jamie quebrou o selo, o que restou de seu sangue
pinicando ao longo de sua mandíbula enquanto seu coração
1409

disparava.
Ao Coronel James Fraser, de Fraser’s Ridge, Carolina do Norte
Caro senhor,
Escrevo para lhe dizer que, quando recebi sua Instrução do dia 10
de março, montei um grupo de cerca de vinte homens e cavalguei
em direção a Ninety-Six sem demora, para ver se o cavalheiro que
você nomeou deveria estar por lá e de uma maneira a causar
maldades.
O Cavalheiro era conhecido por mim de Vista, e quando o percebi
cavalgando pela Estrada do Moinho de Pólvora com alguns
Homens, eu o abordei e desejei saber sua Incumbência. Ele me
amaldiçoou com fervor e desejou que eu fosse para o inferno antes
que ele me contasse qualquer coisa, que nada era do meu interesse
saber. Eu disse que qualquer negócio envolvendo um grupo de
homens armados em um cavalo perto de minha terra era meu
(interesse) saber e era melhor ele me dizer a verdade da questão
imediatamente.
Com isso, um de seus homens, a quem eu também reconheci, sacou
sua pistola e atirou em um de meus homens, com quem ele tinha
um desentendimento de longa data por causa de uma mulher. Seu
tiro errou o alvo, mas vários dos cavalos foram perturbados pelo
barulho e começaram a se irritar, então foi difícil chegar aos
Camaradas e se envolver com eles. O Cavalheiro, tentando erguer
seu rifle e atirar em mim, teve a infelicidade de ser derrubado
quando seu próprio Cavalo colidiu com Outro, e ele foi arrastado
por um trecho do caminho, seu Cavalo levado pelo susto e ele
mesmo preso por sua bota ter ficado enredada em seu estribo.
Vendo isso, seus subordinados fugiram em sua maioria, e meus
garotos reuniram três que eram mais lentos que o resto, bem como
o cavalheiro, que resgatamos de sua situação.
Enviei esses homens sob guarda ao Sr. Cleveland, que atua como
oficial do distrito, com uma nota informando-o de seu interesse.
Eu permaneço, senhor, Seu Mais Obediente Servo,
John Sevier, Escudeiro

Jamie respirou longa e lentamente, dobrando a carta com cuidado


e fechou seus olhos, silenciosamente agradecendo a Deus. Então
acabou. No momento, Ridge estava seguro, Ian, Rachel e Jenny
1410

haviam voltado, e embora parecesse que havia algumas pontas


soltas para arrumar ... Ele abriu os olhos; Ian acabara de dizer algo
a ele.
"O que?"
"Eu disse," Ian repetiu pacientemente, "que há alguém que quer
prestar seus respeitos, tio." Seus olhos passaram criticamente por
Jamie, avaliando. "Se você estiver pronto para encontrá-la."

-.-.-

PARA JAMIE, SILVIA Hardman parecia uma lasca de bordo: uma


fibra adorável e sutil, mas fina, afiada e dura o suficiente para servir
de agulha, alguém poderia fazer um buraco nela para passar uma
linha. Ele não achou que alguém pudesse, e sorriu com o
pensamento.
O sorriso pareceu aliviá-la um pouco, embora ela continuasse
olhando como se esperasse ser comida por um urso a qualquer
momento. Sem suas filhas ao seu redor, ela parecia terrivelmente
sozinha, e ele estendeu a mão para ela em um impulso.
"Estou feliz em ver você, amiga Silvia", disse ele suavemente.
"Você não quer vir sentar-se comigo e tomar um pouco de vinho?"
Ela olhou para a frente e para trás com indecisão, mas depois
acenou com a cabeça abruptamente e veio e se sentou ao lado da
cama, embora ela não tenha olhado em seus olhos até que ele
segurou sua mão. Eles se sentaram, ele se apoiou em seus
travesseiros e ela em seu banquinho, e se entreolharam por alguns
momentos.
"Tu não pareces em uma situação muito melhor do que na última
vez que vi a ti, Amigo, ”ela disse por fim. Sua voz estava rouca e
ela pigarreou.
"Ah," ele disse confortavelmente, "eu vou ficar bem. Não são nada
além de algumas gotas de sangue derramado. Suas garotinhas estão
bem? "
Por fim, ela sorriu, embora tremulamente.
“Elas estão mergulhadas em panquecas com manteiga e mel”, disse
ela. “Espero que elas já tenham se explodido.” Ela hesitou por um
momento, mas então desabafou: “Não posso te agradecer o
suficiente, Amigo, por mandar seu sobrinho para mim. Ele te falou
1411

sobre - das dificuldades em que nos encontrou? "


"Não", Jamie disse suavemente. "Isso importa? Você me acolheu
sem questionar e cuidou de mim - você não vai me deixar fazer o
mesmo por você? "
Um vermelho opaco banhou seu rosto e ela olhou para seus sapatos
surrados.
O lado de um deles havia se soltado e ele podia ver seu dedinho
encardido.
Ela teria retirado a mão, mas ele não a soltou.
"Tu queres dizer..."
“Eu quero dizer que eu ofereço a você o socorro e refúgio da minha
casa, assim como você fez por mim. Claro, você esfregou o fogo
do inferno em minhas costas também, e eu não acho que você
precisa de tal serviço, graças a Deus. Mas espero que você possa
achar Ridge agradável, e se assim for, eu ficaria honrado se você
consentisse em viver entre nós.”
O vermelho queimou com mais força.
"Eu não posso. Eu ... eu devo ser um escândalo para seus inquilinos.
"
Ele ergueu uma sobrancelha para ela.
"Você estava planejando se levantar no Encontro e dizer a todos o
que você foi obrigada a fazer para salvar suas crianças da fome?"
Ela ficou boquiaberta.
"Reunião? Existem Amigos aqui?” Ela parecia querer se levantar e
correr, e ele apertou um pouco mais.
“Apenas Rachel,” ele a assegurou. “Mas nós temos uma casa de
reuniões, e ela está lá para se encontrar no primeiro dia com
qualquer pessoa que decidir se juntar a ela. Ela não vai ficar
chocada, vai? "
O rubor desapareceu ligeiramente de suas bochechas magras.
“Não,” ela admitiu, e um pequeno sorriso pesaroso tocou seus
lábios. "Ela já sabe o pior. O mesmo acontece com seu sobrinho,
sua irmã, todo o Encontro Anual da Filadélfia, Joseph Brant e um
bom número de índios Mohawk. ”
“Bem, então,” ele disse, e soltando sua mão, deu um tapinha. “Tu
chegaste em casa, Amiga. ”
1412

117

FUNGOS, CASTORES E AS ESTRELAS BONITAS

ALÉM DE NOSSA INTRODUÇÃO CORDIAL no deslizamento


de terra, vi pouco do Sachem. Fanny e Agnes estavam no que
chamávamos de quarto das crianças, Silvia e suas filhas ocupavam
o quarto de Brianna e Roger e o terceiro quarto do segundo andar
era um quarto de hóspedes, embora mais frequentemente usado
para pacientes que precisavam ser mantidos por mais tempo do que
uma noite. Eu ofereci a ele uma cama no sótão do terceiro andar,
que agora era à prova de intempéries e com paredes; poderíamos
pregar peles ou pergaminhos oleados nas janelas sem vidro. Ele
recusou com elegância, no entanto, dizendo que permaneceria com
os lobos por enquanto - esse, aparentemente, era seu termo para os
diversos Murrays. Eu não tinha certeza se ele se sentia atraído por
Ian para falar em Mohawk - ou por Jenny.
"DEVO FALAR com seu homem?" Jamie perguntou a Ian, uma ou
duas semanas após a visita de Sachem. Jamie tinha vindo comigo
em uma visita aos Crombies, e paramos para passar o tempo com
Ian e Rachel no caminho para casa, encontrando Sachem sentado
na cadeira de balanço na varanda, observando Jenny no batedor de
leite.
"Se você quer dizer que você acha que eu deveria perguntar a ele
suas intenções," Ian disse, "Eu perguntei. Ele riu e contou para
minha mãe. Ela riu."
"Och, sim, então" murmurou Jamie, mas desviou os olhos para o
Sachem, que sorriu alegremente para ele. Ele se virou e disse algo
para Jenny, que assentiu e continuou se mexendo. Ele se levantou
e desceu os degraus em nossa direção.
"Bruxa honrada", disse ele, curvando-se. “Você está com tempo?”
“Sim,” eu disse, cautelosamente. "Por quê?"
“Eu encontrei uma coisa estranha - um ohnekèren’ta, mas um que
eu não conheço. Você viria comigo olhar? Acho que serve para
algo, mas não consigo dizer se é para o bem ou para o mal. ”
1413

"Um cogumelo venenoso611", disse Ian, em resposta ao meu olhar


questionador. “Ou talvez um cogumelo comestível612; eu não o vi."
Jamie estava irradiando cautela, mas Ian acenou com a cabeça para
ele.
Ele encolheu os ombros, dizendo em gaélico: "Se ele estivesse
tramando algo, eu já saberia".
“Exatamente”, disse o Sachem, radiante.
As sobrancelhas de Jamie subiram. "Você entende o Gàidhlig?"
“Ora, não”, disse o Sachem. Ele olhou por cima do ombro para
Jenny. "Mas talvez eu aprenda."

ELE LEVOU-ME ao Lago do Santo, a nascente com uma grande


pedra branca .
“Quem é o santo deste lugar? ” ele perguntou, ajoelhando-se na
grama para beber na mão em concha. “Ouvi histórias de muitos
santos, em Londres. Você conhece aquele chamado Lawrence? Eu
o vi em uma janela. Ele foi assado vivo numa grelha, mas fez piadas
quando sua carne fumegava e se rompia e seu sangue fritava. Ele
teria sido um bom Mohawk ”, disse ele com aprovação.
"Eu acho que sim", eu disse, tentando engolir o pensamento de que
sua descrição muito específica deixava poucas dúvidas de que ele
realmente tinha visto alguém sendo queimado vivo. Por falar nisso,
eu também ... engoli em seco.
“Quanto ao santo desta nascente ... nas Terras Altas da Escócia,
uma nascente como esta ... hum ... pertenceria ao santo local. Aqui,
acho que às vezes as pessoas vêm orar, porque isso as lembra de
lugares como este na Escócia. Mas suponho que eles podem orar
aqui para quem eles pensam que poderia ajudá-los. ”
"E você acha que os mortos se preocupam com os vivos?"
Hesitei por um momento, mas embora eu estivesse em total
ignorância da mecânica da coisa, não duvidava do fato.
"Sim, acho. O mesmo acontece com a maioria dos Highlanders.
Eles têm uma relação muito íntima com seus mortos.” Por
curiosidade, perguntei: “E você? Acha que os mortos se preocupam
com os vivos? ”
611
Em inglês, toadstool
612
Em inglês, mushroom
1414

"Alguns deles se preocupam." Levantando-se, ele acenou para que


eu o seguisse. O fungo em questão estava crescendo a uma curta
distância, em uma fenda em um tronco de faia morta. Havia um
grande agrupamento, os cogumelos individuais equilibrados em
hastes longas e delicadas, ambas as tampas enrugadas e hastes de
um tom notável de vermelho púrpura.
"Eu já vi isso antes", disse eu, recolhendo minha saia para me
agachar ao lado dele na frente do tronco. “As pessoas os chamam
de capacetes de fada sangrando ou, às vezes, apenas de manchas de
sangue.” Eles eram, na verdade, quase no tom do sangue venoso, e
se você cortasse os caules, um líquido semelhante a sangue muito
convincente escorria deles.

“Não sei se são venenosos, mas não os daria para comer a


ninguém.” Supondo que qualquer um dos Highlanders em Ridge
experimentasse um. Tendo crescido em um habitat sem comida,
onde aveia não era apenas para o café da manhã, a maioria das
pessoas mais velhas suspeitava profundamente de qualquer coisa
de aparência estranha ou desconhecida - particularmente coisas de
natureza vegetal.
“Não”, disse o Sachem, pensativo. “O sangue deles é pegajoso -
como sangue real, você sabe - e eu vi que costumava ajudar a selar
pequenas feridas, mas nunca vi animais comê-los. Nem mesmo
porcos. ”
"Então você está familiarizado com eles?"
"Oh, sim. É aquele que eu nunca vi antes. ” Agachando-se ao meu
lado, ele estendeu um dedo comprido e nodoso em direção a um
pedaço isolado do cogumelo. As tampas estavam totalmente
abertas, como pequenos guarda-chuvas, mas cada uma exibia um
cocar emaranhado de pontas claras e finas, ligeiramente
iridescentes, refletindo o arco-íris, como se a tampa tivesse
repentinamente criado uma safra de minúsculas agulhas.
Eu não toquei neles, mas tirei meus óculos para olhar mais de perto.
O Sachem sorriu para mim. "Você conhece as corujas grandes?"
disse ele, erguendo os dedos indicadores ao lado das orelhas.
“Aquelas que gritam Hoo-hoo, e então outro responde Hoo? Você
as ouve mais nos primeiros dias do inverno, quando elas se
reproduzem. ”
1415

“Hoo,” eu disse gravemente, e me inclinei mais perto. Vendo com


melhor foco, eu pude apenas distinguir pequenos esporângios em
forma de bola nas extremidades das pequenas pontas. “Não sei
como se chama, mas parece um parasita - você sabe o que é um
parasita?”
Ele assentiu gravemente.
“Eu posso ver pequenas ... coisas frutíferas ... nas pontas aqui.
Pode ser um tipo diferente de fungo que se alimenta dos maiores. "
"Fungo", disse ele, e repetiu alegremente. "Fungo. Que palavra
agradável. ”
Eu sorri.
"Bem, é bem melhor do que ‘saprófita’. Isso significa que ... eles
não são exatamente plantas ... mas coisas que crescem e vivem de
coisas mortas."
Ele piscou e olhou especulativamente das manchas de sangue para
mim.
“Todas as coisas vivas não vivem das mortas?”
Isso me fez piscar.
“Bem ... eu suponho que sim,” eu disse lentamente, e ele acenou
com a cabeça, satisfeito.
“Mesmo se você engolisse ostras, que muitas vezes estão vivas
quando você as come, elas morrem em seu estômago muito
rapidamente. ”
“Que ideia muito desagradável”, eu disse, e ele riu.
“O que significa estar morto?” ele perguntou.
Eu me levantei e cruzei os braços, me sentindo um pouco
desconfortável.
"Por que você está me perguntando?"
Ele também se levantou, mas estava bastante relaxado. Ao mesmo
tempo, algo novo entrou em seus olhos. Eles ainda estavam
animados e, sem dúvida, amigáveis - mas havia algo mais atrás
deles agora, e minhas mãos ficaram frias de repente.
“O irmão do Lobo disse a Thayendanegea que a esposa de seu tio
era uma Wata‘ ènnaras. Mas ele também disse que você andou no
tempo e que caminhou com um fantasma Mohawk. O irmão do
lobo não mente, não mais do que sua esposa quacre nem sua mãe
virtuosa, então eu acredito que ele pensa que é verdade isso o que
você fez. "
1416

Dadas as circunstâncias, eu não tinha certeza se sua crença era uma


coisa boa ou não, mas consegui um pequeno aceno de cabeça.
"É verdade."
Ele acenou de volta, sem surpresa, mas ainda interessado.
"Thayendanegea disse ao Irmão do Lobo para me contar isso, e ele
o fez. É por isso que eu disse que iria com ele quando ele voltasse
aqui. Para ouvir isso de seus próprios lábios e saber tudo o que você
pode me dizer. ”
“Uma tarefa bastante difícil”, eu disse. Eu me sentia fria e sem
fôlego, e meus ouvidos internos zumbiam com o rescaldo de um
trovão. "Vamos ... caminhar enquanto eu digo a você. Se você não
se importa. ”
Ele acenou com a cabeça imediatamente e me ofereceu seu braço,
com camisa de chita e pulseiras de prata, com tanto estilo quanto
Lord John ou Hal poderiam ter feito, e eu ri, apesar da minha
inquietação.
“Uma estória por uma estória. Vou te contar o que aconteceu, e
você me conta por que foi para Londres. ”
"Oh, isso é bastante simples." Ele me conduziu com cuidado sobre
um dos pequenos riachos de cascalho que desciam por esta parte
da montanha. “Eu fui porque Thayendanegea foi. Ele precisava de
um amigo para conversar em um lugar estranho, alguém que
pudesse aconselhá-lo, julgar os homens por ele, protegê-lo em caso
de perigo e ... talvez oferecer outra visão das coisas que vimos e
ouvimos. ”

"E por que ele foi?"


“O Rei o convidou”, disse o Sachem. “Quando um rei te convida
para ir a algum lugar, geralmente não é uma boa ideia recusar, a
menos que você já saiba que fará guerra contra ele. E isso não é
algo que sabíamos. ”
“Bom julgamento,” eu disse. Tinha sido, da parte do rei, assim
como de Brant. O rei - ou pelo menos o governo - queria manter os
índios ao seu lado, como ajuda para reprimir uma rebelião
incipiente. E Brant, naturalmente, gostaria de estar do lado
vencedor dessa rebelião e, no momento de ir para a imprensa, os
britânicos inegavelmente pareciam ser a melhor aposta. Tínhamos
chegado ao nível do solo e eu conduzi o caminho por uma trilha
1417

que serpenteava suavemente em direção ao pequeno lago onde


pescávamos trutas.
“Então,” eu disse, e respirei fundo. "Era uma noite escura e
tempestuosa. Não é assim que as estórias de fantasmas geralmente
começam? "
“Seu pessoal costuma contar essas estórias?” Ele parecia bastante
surpreso e eu olhei por cima do ombro. A trilha havia se estreitado
neste ponto, e ele estava andando atrás de mim.
"Estórias de fantasma? Sim, não é assim a sua? "
“Sim, mas geralmente não começam assim. Diga-me o que
aconteceu a seguir. ”
Foi o que fiz. Contei tudo a ele, desde o fato de eu ter ficado presa
em uma tempestade à noite na montanha até ficar cara a cara com
Dente de Lontra; o que eu disse a ele e ele a mim. E com alguma
hesitação, contei a ele sobre encontrar o crânio de Dente de Lontra
e, com ele, a grande opala que ele mantinha como sua passagem de
volta - seu símbolo de retorno seguro através das pedras.
E então, é claro, eu tive que contar a ele sobre as pedras. Não é,
pela natureza das coisas, possível para uma pessoa que possui
dobras epicânticas613 ficar com os olhos arregalados, mas ele fez
uma boa tentativa.
"E a razão pela qual eu sabia que o fantasma - eu não sabia o nome
dele até muito mais tarde - porque ele era de ... bem ... do meu
tempo, era que seus dentes tinham obturações de prata: metal que
é colocado no dente para fortalecê-lo depois você remove um
bolsão de decomposição. Isso não é feito agora; não será feito
normalmente até ... esqueci, mas mais do que ... digamos, daqui a
duas ou três gerações. Mas olhe…" Abri minha boca e me inclinei
em direção a ele, afastando minha bochecha com um dedo para que
ele pudesse ver meus molares. Ele se inclinou e olhou em minha
boca.
"Seu hálito é doce", disse ele educadamente, e se endireitou.
“Como você soube o nome dele? Ele voltou e te contou? “
"Não. Ele deixou para trás um diário que havia escrito, enquanto

613
É uma prega de pele da pálpebra superior (do nariz até ao lado interior da sobrancelha), cobrindo o
canto interior (canto medial) do olho. Podem ser vistas em pessoas de diversas raças, inclusive orientais e
indígenas americanos.
1418

vivia com os Mohawks perto de Snaketown. Ele escreveu quem era


- seu nome em inglês era Robert Springer, mas ele adotou o nome
‘Ta’wineonawira’. Você lê latim? ”
Ele riu, o que aliviou um pouco a tensão. "Eu pareço um padre?"
Isso me surpreendeu um pouco. "Você não é? Ou algo assim? Um
- um curandeiro? " Eu tinha vagas memórias de Ian me contando
sobre a Sociedade da Falsa Face614, curandeiros que se reuniam
para oferecer orações e canções por uma pessoa doente.
"Bem, não." Ele esfregou o nó dos dedos levemente sobre o lábio
superior e eu pensei que ele estava - pela primeira vez - tentando
não rir de mim. Mas não; ele só estava decidindo o que dizer.
“Você não sabe o que a palavra 'sachem' significa?”
“Obviamente que não,” eu disse, um pouco irritada. "O que
significa, então?"
Ele se endireitou, meio conscientemente. “Um sachem é um ancião
do povo. Um sachem pode aconselhar e liderar um grande número
de seu povo. Eu fui assim."
Bem, isso explicava sua autoconfiança.
"Por que você não é mais um sachem?"
“Eu morri,” ele disse simplesmente.
"Oh." Eu olhei ao nosso redor. Havíamos chegado ao lago das
trutas, que brilhava com uma luz fria de bronze; o sol estava se
pondo, e a floresta ao nosso redor era composta principalmente de
pinheiros e bétulas, escuras contra o céu.
Não havia nenhum sinal de habitação humana. Respirei fundo o
vento e a escuridão que se aproximava. Eu peguei seu braço
descendo a colina; sua carne era quente e sólida; eu senti a dureza
de seus ossos.
"Você não é um fantasma, é?" Eu disse, e pensei, estranhamente,
que teria acreditado em qualquer uma das respostas.
Ele olhou para mim por alguns momentos antes de responder.
“Não sei”, disse ele.
Encontramos um tronco caído e nos sentamos. Na outra
extremidade do lago, uma família de castores havia construído uma

614
É a mais conhecida das sociedades medicinais entre iroqueses, em especial pelas suas dramáticas
máscaras de madeira usadas nos rituais de cura. O Jovem Ian cita essa sociedade rapidamente nos caps 55
e 70 do livro 6.
1419

cabana que represava o pequeno riacho que saía dela. Eu podia ver
um castor no topo da cabana, sua silhueta atarracada contra a luz,
a cabeça erguida para a brisa.
“Jamie diz que eles saem principalmente à noite”, eu disse,
acenando com a cabeça na direção dele. “Mas também os vemos
frequentemente durante o dia.”
“Eles se sentem seguros, eu suponho. Eu não ouvi muitos lobos.
Diferente do pequeno Hunter; ele uiva muito bem, mas ainda não
é grande o suficiente para caçar castores. E seus pais não o deixam
sair à noite. ”
“Haha,” eu disse educadamente. “Como você veio a morrer? Um
acidente? ”
Ele sorriu para mim, mostrando dentes que estavam visivelmente
desgastados, mas principalmente presentes.

“Poucas pessoas fazem isso de propósito. Uma cobra me mordeu."


Ele puxou a manga esquerda para trás e me mostrou a cicatriz na
parte de baixo do braço: uma cavidade profunda e irregular em sua
carne, com cerca de cinco centímetros de comprimento. Peguei sua
mão e girei para ver melhor. Ele era muito magro e bem hidratado;
os vasos sanguíneos maiores eram claramente visíveis, firmes sob
a pele.
“Meu Deus, parece que ela mordeu bem na artéria radial. Que tipo
de cobra era? ”
"Você chamaria de cascavel." Ele não removeu minha mão, mas
colocou a outra mão sobre ela. “Eu soube imediatamente que tinha
me matado; sentia uma grande dor no braço e, um instante depois,
senti o veneno atingir meu coração como uma flecha. Fiquei quente
e depois tão frio que meus dentes batiam, embora o dia estivesse
quente. Meus olhos ficaram escuros e eu me enrolei como um
verme, esperando que não durasse muito. "
Durou três dias e três noites.
“Isso não foi agradável”, ele me assegurou. "A Sociedade da Falsa
Face veio, eles colocaram cataplasmas sobre a ferida e dançaram
... Eu ainda vejo seus pés, às vezes, quando sonho - mocassins
passando pelo meu rosto, um após o outro, sem parar ... e as
máscaras curvando-se sobre mim, um pequeno tambor batendo; eu
posso ouvir isso também, às vezes, e meu próprio batimento
1420

cardíaco instável, parando e começando e o tambor ainda batendo


... ”
Ele parou por um momento e eu coloquei minha mão livre sobre a
dele. Depois de um momento, ele respirou fundo e olhou para mim.
“E eu morri”, disse ele. “Foi nas profundezas da terceira noite.
Devo ter dormido quando isso aconteceu, pois me vi de pé junto à
porta da cabana, olhando para a floresta e vendo as estrelas -
estrelas como nunca tinha visto antes ou depois ”, acrescentou ele
suavemente. “Foi tão tranquilo, tão lindo.”
“Eu sei,” eu disse, tão suavemente. Ficamos sentados por alguns
momentos juntos, lembrando.
O castor escorregou pela lateral da cabana e nadou, formando uma
flecha de água escura no lago brilhante, e o Sachem suspirou e
soltou minhas mãos.
"Eu andei - suponho que você chamaria de caminhar, embora não
parecesse ter pés - mas fui para a floresta e me afastei de ... tudo.
Eu estava indo para algum lugar, mas não sabia para onde. E então
encontrei minha segunda esposa. ” Ele fez uma pausa, uma
expressão de calor e desejo iluminando seu rosto.
“Ela me disse que estava feliz em me ver e que me veria
novamente, mas não agora. Eu não deveria vir ainda; havia coisas
que eu precisava fazer; eu tive que voltar. Eu não queria ”, disse
ele, olhando para mim. “Eu queria ir com ela, para ...” Ele parou,
encolhendo os ombros.
“Mas eu voltei. Acordei e estava na cabana de cura e meu braço
doía muito, mas eu estava vivo. Eles me disseram que eu estava
morto há horas e ficaram chocados. Eu estava ... conformado.”
“Mas você não era exatamente a mesma pessoa que era antes”, eu
disse.
"Não. Eu disse a eles que não era mais o Sachem; pude ver que meu
sobrinho era capaz de liderar homens na batalha e eu seria seu
conselheiro, mas era para ele que eles deveriam olhar agora. ”
"E ... agora você vê fantasmas?" Jenny me contou o que ele disse
sobre Ian, o Velho e sua perna. Ergueu todos os pelos do meu
corpo, ela disse, e minha própria nuca estava formigando.
“Agora vejo fantasmas”, disse ele, com naturalidade.
"O tempo todo?"
"Não, e estou grato por não ser assim. Mas de vez em quando, lá
1421

estão eles. Em geral, eles não têm nada a ver comigo, nem eu com
eles, e passam como um flash de luz. Mas mesmo assim ... ”
Ele estava olhando para mim de uma forma pensativa que levantou
mais alguns fios de cabelo.
"Eu ... tenho fantasmas?" Eu disse, esperando que não fosse como
ter pulgas.
Ele inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse me
inspecionando.
“Você impõe suas mãos sobre muitas pessoas, para tentar curá-las.
Alguns deles morrem, é claro, e alguns deles, eu acho, seguem você
por um curto período de tempo. Mas eles encontram seu caminho
e te deixam. Você tem uma criança pequena às vezes perto de você,
mas ela é muito tênue. O único outro que vi com você mais de uma
vez é um homem. Ele usa óculos.” Ele fez círculos com os
polegares e os dedos médios e os ergueu até os olhos, imitando os
óculos. “E um chapéu peculiar, de aba curta. Acho que ele deve ser
da sua casa através das pedras, pois nunca vi nada assim.”
Sinceramente, pensei que estava tendo um ataque cardíaco. Havia
uma pressão imensa no meu peito e eu não conseguia respirar. O
Sachem tocou meu braço, porém, e a pressão diminuiu.
"Você não deve se preocupar", ele me assegurou. “Ele é um homem
que te amou; ele não quer te machucar. "
"Oh. Bom." Eu comecei a suar frio e procurei um lenço. Eu estava
limpando meu rosto e pescoço com ele quando o Sachem se
levantou e me ofereceu a mão.
"O que é estranho", disse ele quando me levantei, "é que este
homem também segue frequentemente o seu marido."
-.-.-

QUANDO VOLTEI para casa, fui direto para o escritório de Jamie.


Jamie não estava nele; tinha ido verificar as operações na destilaria,
como fazia duas vezes por semana. Não ouvi ninguém na casa, mas
me peguei andando tão suavemente como um ladrão de gatos e me
perguntei de quem exatamente eu estava me esgueirando. A
resposta era óbvia e retomei meu passo firme normal, deixando os
ecos caírem onde deveriam.
O livro ainda estava atrás dos livros contábeis. Eu o virei com a
nítida sensação de que poderia explodir ou a fotografia saltar da
1422

capa e me abordar. Nada aconteceu, porém, e a fotografia


permaneceu ... apenas uma fotografia. Certamente era uma imagem
de Frank, tanto quanto eu me lembrava dele, mas não senti a
presença de Frank. Assim que o pensamento me ocorreu, olhei por
cima do ombro. Nada ali.
Você saberia, se houvesse? Esse pensamento causou arrepios em
meus antebraços, mas eu o afastei.
“Saberia,” eu disse com firmeza, em voz alta, e levei o livro até a
janela, de forma que o sol brilhasse sobre ele. Frank estava usando
seus óculos normais de aro preto na foto - mas ele não estava
usando um chapéu.
"Bem, presumindo que ele esteja certo", eu disse acusadoramente
para a foto, "o que diabos você está fazendo, seguindo a mim ou a
Jamie?"
Não obtendo resposta para isso, sentei-me na cadeira de Jamie.
O Sachem dissera que Frank - sempre presumindo que fosse Frank
que ele viu, embora eu tivesse certeza disso - era "um homem que
amava você". Amava, tempo passado. Isso me deu uma pequena
pontada dupla: uma de perda, a outra de tranquilidade.
Presumivelmente, não havia ciúme post-mortem, então? Mas se
não ...
Mas você nem sabe se Jamie está certo sobre este maldito livro!
Abri o livro, li uma página sem entender uma palavra de seu
significado e fechei-o novamente. Não importava nada. Seja pela
intenção de Frank - maligna ou não - ou apenas uma invenção da
imaginação de Jamie, estimulada pela pressão dos eventos atuais
ou pela agitação de um sentimento de culpa equivocado... Jamie
achava o que achava, e nada menos que a Revelação Divina
provavelmente mudaria isso.
Fechei os olhos e fiquei imóvel. Ainda não tínhamos um relógio,
mas eu podia ouvir os segundos passando. Meu corpo mantinha seu
próprio ritmo, entre o batimento do meu coração e a pulsação do
meu sangue, a vazante e o fluxo do sono e da vigília. Se o tempo
era eterno, por que eu não seria? Ou talvez só nos tornemos eternos
quando paramos de marcar o tempo.
Quase morri três vezes: quando perdi Faith, quando peguei uma
grande febre e - apenas um ano atrás! - quando fui baleada em
Monmouth. Não que eu não me lembrasse, mas me lembrei apenas
1423

de pequenos flashes vívidos de cada experiência. Fiquei muito


calma, pensando na morte. Não era algo de que eu tinha medo; eu
só não queria ir enquanto houvesse pessoas que precisassem de
mim.
Jamie tinha chegado à beira da morte com mais frequência - e com
muito mais violência - do que eu, e não acho que ele tivesse medo
disso também.
Mas você ainda tem pessoas que precisam de você, caramba!
O pensamento me deixou com raiva - de Frank e Jamie - e me
levantei e coloquei o livro de volta atrás dos livros contábeis.
Mesmo sem relógio, eu sabia que era quase hora do jantar. Estava
fazendo uma espécie de sopa de batata, cebola e um pouco de milho
seco, mas não estava muito bom ... Bacon! Sim, definitivamente
bacon.
Eu estava saindo da barraca de defumação com várias fatias em um
prato quando um pouco mais daquilo em que eu estava determinada
a não pensar mais borbulhou. Bree havia me contado - e a Jamie -
sobre a carta que Frank havia deixado para ela. Uma carta
extremamente perturbadora, em vários níveis. Mas o que estava
ecoando no fundo da minha mente agora mesmo era o último
parágrafo dessa carta:
E ... existe ele. Sua mãe disse que Fraser a mandou de volta para
mim, sabendo que eu a protegeria - e a você. Ela pensou que ele
morreu imediatamente depois. Ele não morreu. Procurei por ele e
o encontrei. E, como ele, talvez eu a mande de volta, sabendo -
como ele sabia que eu o faria - que ele a protegerá com a vida.
Pela primeira vez, me ocorreu que mesmo que Jamie estivesse certo
e Frank estivesse tentando dizer algo a ele, poderia ser um aviso,
em vez de uma ameaça.
1424

118

A VISCONDESSA

Savannah

WILLIAM NÃO FOI DIRETAMENTE para a casa de lorde John


quando chegou em Savannah. Em vez disso, parou em um barbeiro
na Bay Street e fez a barba, muito necessitada, e seu cabelo foi
aparado e adequadamente amarrado. Isso era tudo que ele podia
fazer no momento, além de tirar uma camisa meio limpa de seu
alforje e vesti-la na loja. Com o rosto em carne viva e ardendo com
queimadura de navalha e rum louro615, e profundamente ciente de
seu próprio fedor residual por baixo, ele deixou seu cavalo na
cocheira, caminhou até a Oglethorpe Street e, após pensar um
momento, circulou a casa de seu pai e entrou por trás na cozinha.
Lorde John estava fora com o irmão. Foram para o acampamento,
a cozinheira assustada o informou. E a viscondessa? Na sala,
fazendo bordado.
“Obrigado”, disse ele, e entrou na casa, fazendo uma breve pausa
para chutar o degrau com as botas, a fim de tirar um pouco da lama
seca.
Ele não fez nenhuma tentativa de silenciar seus passos; eles
atingiram o chão pintado no corredor com o baque regular de um
tambor abafado. Quando ele alcançou a porta da sala, ela estava
sentada ereta e com os olhos arregalados, um grande pedaço de
seda branca meio bordada caindo sobre seu colo e uma agulha
enfiada com um fio escarlate imóvel em sua mão.
"William", disse ela, e inclinou a cabeça para o lado. Ela não sorriu;
nem ele. Ele se encostou no batente e cruzou os braços, olhando
fixamente para ela.
"Eu o encontrei."
Ela olhou para ele por um longo momento, então balançou a cabeça
615
No original, bay rum. Um líquido perfumado usado principalmente como loção pós-barba, preparada
destilando as folhas do louro tropical americano, Pimenta racemosa, com rum ou misturando o óleo das
folhas com álcool, água e outros óleos.
1425

violentamente, como se atacada por mosquitos.


"Onde?" ela perguntou, sua voz um pouco rouca, e ele viu que sua
mão livre se fechou sobre a seda, esmagando-a.
“Um lugar chamado Morristown. É em New Jersey. ”
“Seu túmulo? Isso foi em New Jersey, mas você disse que ele não
estava... ”
"Ele definitivamente não está em seu túmulo", assegurou-lhe ele,
sem tentar esconder o tom cínico de sua voz.
"Você quer dizer ... ele está ... vivo, então?" Ela manteve o rosto
sob controle, mas suas bochechas estavam rosadas, não brancas, e
ele podia ver os pensamentos disparando como peixinhos atrás de
seus olhos mutáveis.
"Oh, sim. Mas você sabia disso.” Ele a considerou por um
momento, então acrescentou: "Ele é um general agora. General
Raphael Bleeker. Você sabia disso?"
Ela respirou longa e lentamente, prendendo os olhos dele nos dela.
“Não,” ela disse finalmente. "Mas não estou surpresa." Seus lábios
se comprimiram brevemente. "Ele está com Washington, então",
disse ela. "Pai Pardloe disse que os rebeldes foram para os quartéis
de inverno em New Jersey."
Ela deixou cair a seda; ela escorregou para o chão, sem ser levada
em consideração. Ela se levantou abruptamente, os punhos
fechados ao lado do corpo e lhe deu as costas.
"Ele disse que foi ideia sua", disse William suavemente. "Que ele
deveria fingir que estava morto."
"Eu não consegui impedi-lo." Ela falou para o papel de parede
amarelo toile de Jouy616, por entre os dentes. “Eu implorei para ele
não fazer isso. Implorei a ele. ” Ela se virou e olhou para ele. "Mas
você sabe como eles são, esses seus Greys. Nada importa para eles
quando eles se decidem - nada. E ninguém. ”
"Eu não diria isso", disse William. Seu coração desacelerou um
pouco depois de vê-la pela primeira vez, mas estava acelerando
novamente. “É verdade que você não pode mudar suas mentes, mas
eles se importam, às vezes. Ben se importava.” Ele pigarreou.
"Com você." Ele tinha hematomas para provar isso.

616
Estampa, geralmente branca ou quase-branca, em uma única cor contrastante, com cenas de paisagens
e pessoas, em especial cenas campestres do séc XVIII na França.
1426

E ele ainda se importa. Ele não disse em voz alta, mas viu no rosto
dela que não precisava.
“Não o suficiente,” ela disse brevemente, embora houvesse um
tremor em sua voz. “Nem perto do suficiente. Foi só eu dizer a ele
o que isso faria a Trevor - ter um pai traidor - que finalmente o fez
concordar em desaparecer silenciosamente, em vez de ter uma
discussão acirrada com seu pai e partir para a glória com seus
preciosos rebeldes. Isso é o que ele queria fazer ", acrescentou ela,
com uma contração da boca que pode ter sido amargura ou diversão
relutante.
Houve um momento de silêncio na sala. William podia ouvir
passos em algum lugar lá em cima, e gritos abafados que eram, sem
dúvida, de Trevor. Os olhos de Amaranthus se moveram para cima,
mas ela não se mexeu. Um momento depois, os passos
evidentemente alcançaram o menino, porque a gritaria parou
abruptamente. Os ombros de Amaranthus relaxaram um pouco e
ele percebeu pela primeira vez que ela usava azul escuro e não
usava fichu, então a curva de seus seios fartos ficava branca acima
da roupa.
Ela o viu notar e deu-lhe um olhar direto.
“Eu queria um covarde, você sabe”, disse ela. "Um homem que
ficasse longe do perigo, do sangue e de todas essas coisas."
"E você pensou que eu poderia ser um?" Ele estava curioso, ao
invés de ofendido.
Ela bufou com um pequeno ruído e balançou a cabeça.
"Inicialmente. Tio John disse que você renunciou à sua comissão,
e pude ver que ele e o Pai Pardloe ficaram incomodados com você."
“Imagino que sim”, disse ele, tomando o cuidado de não deixar
transparecer nada em sua voz.
“Mas não demorou muito para ver o que você era. O que você ainda
é.” Seus punhos foram gradualmente relaxando e uma mão
distraidamente prendeu sua saia em pregas.
Ele queria perguntar o que ela pensava que ele era, mas isso podia
esperar.
"Ben", disse ele com firmeza. “Eu tenho que contar ao tio Hal. Mas
eu - quero dizer, ele tem que saber que Ben está vivo, onde ele está
e o - quê - ele é. Mas talvez ele não precisasse saber que ... você
sabia sobre isso. "
1427

Ele não tinha pensado por um momento em esconder que ela sabia
do tio Hal até que ouviu as palavras saindo de sua boca.
Seu rosto mudou como uma gota de mercúrio, e ela se virou
novamente e ficou rígida como um manequim de alfaiate. Ele
pensou que podia ver seu coração batendo, o corpete azul apertado
estremecendo levemente em suas costas.
Ele percebeu de repente que agora estava parado ali com os punhos
cerrados e se obrigou a relaxar. Uma gota de suor escorreu por sua
nuca - havia fogo na lareira e o quarto estava aquecido. O fantasma
de rum louro pairava entre os cheiros de madeira queimada e cera
de vela.
Ela fez um pequeno som, talvez um soluço abafado, e cruzou os
braços, abraçando-se convulsivamente.
Ele deu um passo em sua direção, incerto, e parou. O que o tio Hal
faria, se soubesse de sua duplicidade? Ele supôs que seu tio poderia
ser capaz de tirar Trevor dela e mandá-la embora ...
"Eles vão enforcá-lo", ela sussurrou, tão baixinho que por um
momento ele ouviu apenas a angústia nisso, e essa angústia o fez ir
até ela e colocar as mãos em seus ombros. Um calafrio profundo a
percorreu como se estivesse se dissolvendo por dentro, e os braços
dele a envolveram.
"Eles não vão," ele sussurrou em seu cabelo, mas ela balançou a
cabeça e o arrepio não parou.
"Sim, eles vão. Eu os ouvi falar - os oficiais, os políticos, os - os
idiotas nas festas - regozijando-se com a ideia de Washington e
seus generais pendurados em uma forca ". Ela respirou fundo,
rasgando. “Como fruta podre. Isso é o que eles sempre dizem -
como fruta podre. "
Seu estômago se comprimiu e seus braços também.
“Então você ainda o ama”, ele disse baixinho, depois do que
pareceu um longo tempo.

A cabeça dela se encaixava perfeitamente sob o queixo dele, e ele


podia sentir o calor dela e cheirar o cabelo dela; ela estava usando
a colônia italiana de seu pai. Ele fechou os olhos e respirou fundo,
imaginando bosques de cedros, olivais e o sol em pedras antigas.
E água pingando em um jardim e os olhos negros brilhantes de um
sapo ...
1428

E um momento depois, a porta se abriu.


“Oh, William,” Lord John disse suavemente. "Você está de volta,
então."
-.-.-

WILLIAM ficou parado por mais um momento, com os braços em


volta de Amaranthus. Ele não era culpado disso - bem, não
exatamente - e ele se recusou a agir como se fosse. Ele deu um
passo para trás e deu-lhe um aperto reconfortante nos braços antes
de se virar para encarar o pai.
Lorde John estava lá em um uniforme diário completo, o chapéu
em uma das mãos. Ele parecia calmo e simpático, mas seus olhos
estavam claramente tirando conclusões, e provavelmente as
erradas.
"Eu encontrei Ben", disse William, e os olhos de seu pai se
aguçaram imediatamente. “Ele está vivo e se juntou aos
americanos. Sob um nome falso”, acrescentou.
“Graças a Deus pelas pequenas misericórdias”, disse lorde John,
meio baixinho, depois jogou o chapéu em uma das cadeiras
douradas e foi até Amaranthus, que ainda estava de frente para a
parede, a cabeça baixa. Seus ombros tremiam.
"Você deveria se sentar, minha querida." lorde John segurou-a
firmemente por um antebraço e a girou. “Vá e diga à cozinheira
que queremos um pouco de chá, por favor, William - e algo para
comer. Você vai se sentir melhor com algo no estômago ", disse ele
a Amaranthus, guiando-a em direção ao sofá. Ela tinha ficado da
cor de creme de ovo e tinha os cílios abaixados - para esconder seus
olhos reveladores, William pensou cinicamente. Ela não estava
chorando; não havia lágrimas em suas bochechas. Ele nunca a tinha
visto chorar e se perguntou brevemente se ela conseguiria.
“Onde está o tio Hal?” ele perguntou, parando no limiar. "Devo ir
buscá-lo?"
Amaranthus engasgou como se tivessem dado um soco no
estômago dela e olhou para cima com os olhos arregalados. Seu pai
reagiu da mesma maneira, embora de uma forma mais estoica e
militar.
"Deus", William disse suavemente. Ele ficou imóvel por um
momento, pensando, então se recompôs.
1429

"Ele está a caminho de Charles Town", disse lorde John, e soltou


um longo suspiro. “Foi dar uma olhada nas fortificações. Ele estará
de volta em uma ou duas semanas. ”
William e lorde John trocaram um breve olhar, olharam juntos para
Amaranthus e depois de novo um para o outro.
"Eu - não suponho que sejam notícias que vão se deteriorar se
esperarem", disse William sem jeito. "Eu vou ... falar à cozinheira
sobre o chá"
"Espere" A voz de Amaranthus o deteve na porta e ele se virou. Ela
ainda estava pálida e enrugada, e suas mãos estavam cruzadas logo
abaixo dos seios, como se para impedir que seu coração escapasse.
Ela tinha recuperado seu autocontrole, no entanto, e sua voz tremeu
um pouco quando ela focalizou seu olhar em lorde John.
"Eu tenho que te dizer uma coisa, tio John."
"Não", disse William rapidamente. "Você não precisa dizer nada
agora, prima. Apenas - apenas descanse um pouco. Você teve um
choque. Todos nós também. ”
“Não,” ela disse, e balançou a cabeça levemente, desalojando
alguns fios loiros. "Eu vou falar." Ela fez um esforço para sorrir
para William, embora o efeito fosse medonho. Seu próprio coração
parecia uma pedra no peito, mas ele fez o possível para sorrir de
volta.
Lorde John passou a mão pelo rosto e foi até o aparador, onde
pegou uma garrafa e sacudiu um pouco. Ela fez um barulho
tranquilizador.
“Sente-se, Willie”, disse ele. “O chá pode esperar. Conhaque não.”

-.-.-

WILLIAM SE PERGUNTOU VAGAMENTE quanto de


conhaque seu pai e tio consumiam em um ano. Além de suas
funções sociais, o conhaque era o primeiro recurso usual de
qualquer um dos homens, diante de qualquer crise de natureza
física, política ou emocional. E dada a profissão mútua, tais crises
estavam fadadas a ocorrer regularmente. A primeira lembrança do
próprio William de ter recebido conhaque datava de uns cinco anos
de idade, quando ele subiu a escada do estábulo para subir no dorso
do cavalo de lorde John em sua baia - algo que ele estava
1430

firmemente proibido de fazer - e tinha sido prontamente


arremessado para longe pelo cavalo assustado, batendo na parede
na parte de trás da baia e afundando, atordoado, no feno entre os
cascos traseiros do cavalo.
O cavalo estava pisoteando, tentando - ele percebeu mais tarde -
evitar esmagá-lo, mas ele ainda se lembrava dos enormes cascos
pretos descendo tão perto de sua cabeça que ele podia ver as unhas
nas sapatas, e uma delas havia arranhado sua bochecha. Assim que
ele recuperou o fôlego para gritar, houve uma grande confusão, seu
pai e Mac, o cavalariço, correndo pelo corredor do estábulo com
um barulho de botas e gritando.
Mac se arrastou para dentro da baia, falando calmamente com o
cavalo em sua própria língua estranha, e puxou William pelos pés.
Em seguida, lorde John o examinou rapidamente em busca de
sangue e ossos quebrados e, não encontrando nenhum, deu-lhe uma
boa palmada no assento das suas calças, depois puxou um pequeno
frasco e o fez tomar um gole de conhaque para o choque. O próprio
conhaque foi um choque quase tão grande, mas depois que
terminou de chorar e tossir, ele se sentiu melhor.
Ele estava se sentindo um pouco melhor agora, terminando sua
segunda taça. Papai viu que seu copo estava quase vazio e, sem
perguntar, pegou a garrafa e tornou a enchê-la, depois fez o mesmo
com ele.
Amaranthus mal havia tomado um gole do dela e estava sentada
com as duas mãos enroladas na pequena taça. Ela ainda estava
pálida, mas parou de tremer, William percebeu, e parecia ter
recuperado um pouco de seu autodomínio usual.
Papa também estava olhando para ela, William viu, e enquanto um
pequeno arrepio de apreensão desceu por sua espinha, ele percebeu
que sua sensação de calma restaurada tinha tanto a ver com a
presença de lorde John quanto com seu conhaque. O que quer que
estivesse para acontecer, papai ajudaria a lidar com isso, e isso era
um grande alívio.
Amaranthus parecia pensar assim também, pois ela largou a taça
com um pequeno tinido e, endireitando as costas, olhou lorde John
nos olhos.
“É verdade”, disse ela. “Eu disse a William que sabia sobre Ben -
quero dizer, eu disse a ele agora; ele não sabia antes. Isso realmente
1431

aconteceu com Ben.” Ela respirou fundo, mas sem encontrar mais
palavras para expelir, respirou fundo pelo nariz e deu outro gole
minúsculo no conhaque.
"Entendo", disse Lord John lentamente. Ele rolou seu copo para
frente e para trás entre as palmas das mãos, pensando. "E suponho
que você estava com medo de nos contar - ou melhor, de contar a
Hal - porque achou que ele poderia não acreditar em você?"
Amaranthus balançou a cabeça.
“Não,” ela disse. "Eu estava com medo de dizer a ele por medo de
que ele acreditasse em mim." O índigo escuro de seu vestido havia
transformado seus olhos em um azul puro e pálido. A imagem da
sinceridade, William pensou. Ainda assim, isso não significa que
ela estava mentindo. Não necessariamente.
“Ben me contou muito sobre a família”, disse ela. “Depois que nos
conhecemos. Sobre sua mãe e seus ... seus irmãos e você. E sobre
o duque.” Ela engoliu em seco. “Quando Ben se decidiu - a - fazer
o que ele fez, ele mandou me chamar. Eu vim encontrá-lo na
Filadélfia; Adam estava com Sir Henry lá, e Ben pretendia contar
a ele - Adam, quero dizer, não Sir Henry - também."
"Ele fez isso, de fato." Não foi uma pergunta. O olhar de lorde John
estava fixo no rosto de Amaranthus. Era uma expressão
perfeitamente agradável, mas William a reconheceu como o rosto
de jogador de xadrez do seu pai, visualizando possibilidades
rapidamente e descartando-as com a mesma rapidez.
"Ben e Adam ... lutaram." Ela olhou para baixo e William viu suas
mãos se cerrarem brevemente, como se ela preferisse se juntar
àquela luta. Provavelmente ela o faria, ele pensou, ciente de um
leve divertimento, apesar de tudo. “Com seus punhos, quero dizer.
Eu não estava lá ", acrescentou ela, erguendo a cabeça e parecendo
se desculpar,” ou os teria impedido. Mas quando Ben veio até mim
depois, parecia que ele tinha saído de alguns rounds com um
boxeador profissional." O canto de sua boca se contraiu.

“Você já viu uma luta de boxe profissional?” lorde John perguntou,


divertido. Ela pareceu surpresa, mas acenou com a cabeça.
"Sim. Uma vez. Um galpão de boxe em Connecticut. ”
"Bem, eu não pensei que você fosse melindrosa", disse papai,
abrindo um sorriso.
1432

“Não,” ela disse, com um pequeno sorriso triste. "Benjamin dizia


que eu era durona como couro de sapato - embora ele não quisesse
dizer isso como um elogio." Ela notou o copo meio cheio neste
momento, pegou-o e bebeu tudo.
"De qualquer forma", disse ela com a voz rouca, colocando o copo
na mesa, "ele me contou sobre o pai dele, e depois da briga com
Adam, ele disse muitas coisas sobre o pai, e como isso serviria ao
velho quando Washington vencesse na batalha, e o quanto ele
ficaria bravo - o duque, quero dizer - especialmente quando ele
percebesse que seu próprio herdeiro ... Sinto muito” ela adicionou
se desculpando. "Estou citando Ben, sabe."
"Assim eu presumi", disse Lord John. "Mas quando você disse que
estava com medo de que Hal acreditasse em você se contasse a ele
sobre Ben ...?"
"O que você acha que ele faria?" ela perguntou simplesmente. "Ou
melhor, o que você acha que ele fará, se eu - se eu for em frente e
contar a ele?" Ela começou a ficar pálida novamente, e William se
inclinou para frente para pegar a garrafa e encher seu copo. Sem
perguntar, ele encheu o copo de seu pai também, e então despejou
o resto da garrafa no seu.
Lorde John suspirou profundamente, pegou seu copo novo e
esvaziou-o.
“Para ser sincero, não sei bem o que ele faria. Mas eu sei como ele
se sentiria. "
Houve um breve silêncio. William o quebrou, sentindo que alguém
tinha que dizer algo.
"Você quer dizer que pensou que se tivesse contado a ele a verdade
sobre Ben, ele poderia ficar tão angustiado - bem, insanamente
zangado - que poderia simplesmente jogar você e Trevor na rua
pelas ... hum ... orelhas. Dizer a você para ir para o diabo com Ben,
quero dizer. Suponho que ele pode deserdar Ben, por falar nisso;
ele tem outros filhos.”
Amaranthus acenou com a cabeça, os lábios apertados.
"Considerando que," William continuou, não sem simpatia, "se
você fosse viúva de Ben, ele teria mais probabilidade de recebê-la
de braços abertos."
“E com uma bolsa aberta,” lorde John murmurou, olhando para as
profundezas de seu conhaque.
1433

Amaranthus virou a cabeça bruscamente na direção dele, os olhos


subitamente escuros.
"Você passou fome um dia em sua vida, meu senhor?" ela retrucou.

"Porque eu já, e eu ficaria feliz em me tornar uma prostituta para


impedir que isso aconteça com meu filho."
Ela se levantou, girou nos calcanhares e atirou o copo com precisão
na lareira. Então ela saiu pisando forte, deixando chamas azuis
atrás dela.
1434

119

ENCÁUSTICA617

Savannah

FEITO. BRIANNA ESTAVA sob a luz tranquila de um final de


tarde, lentamente limpando seus pincéis e se despedindo dos seus
trabalhos. Era um processo estranho, abandonar algo que tinha
vivido nela por meses, libertando-se gradualmente dos tentáculos
que cresciam em seu cérebro, seu coração, seus dedos.
Pessoas - pessoas que normalmente não faziam essas coisas -
comparavam isso a um parto. Escrever um livro, pintar um quadro,
construir uma casa - ou uma catedral, ela supôs, sorrindo um pouco.
Havia, com certeza, paralelos metafóricos, especialmente a
sensação mesclada de alívio e exultação com a conclusão. Mas para
ela, tendo pintado quadros, construído coisas e dado à luz, a
diferença era bastante perceptível. Quando você terminou uma obra
de arte ou substância ... estava terminada, enquanto as crianças
nunca estavam.
"Bem ali", disse ela, com uma profunda sensação de satisfação,
apontando o cabo de um pincel úmido nos quatro retratos alinhados
contra a parede diante dela. "Você está bem aí. Você está
terminado. Você não vai a lugar nenhum." Ela ouviu o eco da voz
de seu pai e riu.
Enquanto isso, suas criações mais móveis gritavam no jardim dos
fundos e em breve estariam fazendo barulho com pedidos para
serem alimentadas, limpas, vestidas, acalmadas, ouvidas,
alimentadas novamente, livros para serem lidos, despidas e,
finalmente amontoadas em camas, onde ela só podia esperar que
elas ficassem por um bom tempo.
Pensar em Roger, porém, alegrou seu coração. Ele voltou da
batalha sujo e exausto - e mudado. Não foi uma mudança drástica.

617
Encáustica é uma técnica de pintura que se originou na Grécia antiga. Consiste na adição de pigmentos
coloridos à uma mistura de ceras e resinas, mantida na forma líquida por meio do calor.
1435

Mais como a solidificação de uma mudança que ele começou há


muito tempo. Ele ficou quieto, mas ele disse a ela por que sentiu
que tinha que ficar, e o que tinha acontecido, e ela poderia dizer
que, embora ele tenha ficado chocado (quem não ficaria? ela
pensou), foi um choque que o deixou visivelmente mais
determinado. E com uma espécie de luz tranquila e estranha sobre
ele, que às vezes ela imaginava que quase podia ver.
"Encáustica", disse ela em voz alta, e ficou parada, semicerrando
os olhos para os retratos, mas não os vendo. Seus dedos tinham
torcido o pincel que ela estava limpando na posição, querendo
pintar.
“Agora não”, ela disse a eles, e colocou o pincel na caixa. Ela
poderia sentir a pintura que ela queria fazer de Roger. Uma pintura
encáustica; feita com pigmentos misturados em cera de abelha
quente. Deu-lhe uma imagem vívida, mas com uma sensação
peculiar de suavidade e profundidade. Ela mesma nunca havia feito
isso, mas foi tomada pela convicção de que este seria o meio certo
de capturar a luz de Roger.
Quaisquer pensamentos adicionais foram interrompidos pelo som
distante da porta da frente, um murmúrio de vozes masculinas e,
em seguida, o andar pesado dos sapatos com salto de madeira de
Henrike no tapete de abacaxis e, em seguida, o andar mais
barulhento de botas pesadas.
- Ist deine Bruder618 - anunciou Henrike, abrindo a porta. “Und619
o índio dele. ”

-.-.-

"O ÍNDIO" curvou-se para ela e sorriu, embora ela estivesse


suficientemente familiarizada com seu rosto agora para reconhecer
a bravata disfarçando a ansiedade. Ela sorriu de volta e
impulsivamente pegou sua mão, apertando de forma ligeiramente
tranquilizadora - sobre a situação, se não sobre a pintura.
Ele piscou em estado de choque, então desajeitadamente levantou
a mão dela, evidentemente pensando ela que queria que ele a
beijasse. Ele não conseguia fazer isso, no entanto, e apenas respirou
618
“É seu irmão”, em alemão
619
“E”, em alemão
1436

confuso sobre os nós dos dedos. Brianna olhou para cima e


encontrou os olhos de seu irmão. Ele estava mantendo a cara séria
de um oficial britânico, mas deixando um traço de humor
transparecer em seus olhos.
“Obrigada, sr. Cinnamon,” ela disse, gentilmente retirando sua
mão. Ela abriu as saias e fez uma reverência a ele, o que o fez corar
como uma grande ameixa e fez William desviar o olhar
rapidamente.
William poderia esperar, entretanto; ela tinha um modelo que tinha
vindo ver seu retrato acabado.
"Venha ver", disse ela simplesmente, e acenou para Cinnamon - ele
não deixaria que ela o chamasse pelo primeiro nome, nem ele a
chamaria de Brianna, evidentemente pensando que era impróprio.
William deve ter dado a ele lições de etiqueta - ou talvez lorde John.
Ela tinha pendurado um fino pano de musselina sobre o retrato para
evitar pernilongos e mosquitos, que tinham uma atração fatal pelo
óleo de linhaça e tinta secante, e agora deu um passo para o lado e
puxou-o habilmente para longe.
“Oh,” ele disse. Seu rosto estava completamente em branco. O
coração dela acelerou quando os rapazes chegaram, e mais quando
se aproximava o momento da revelação; ela não estava tão tensa
quanto John Cinnamon, mas inegavelmente sentiu um eco de sua
excitação nervosa.

Ele ficou olhando para o retrato, a boca ligeiramente aberta e os


olhos arregalados. Um pouco preocupada, ela olhou para William,
cujo olhar também estava fixo no retrato, mas com uma expressão
surpresa de prazer. Ela respirou fundo e relaxou, sorrindo.
"Você fez isso", disse William, virando-se para ela. "Você
realmente fez." Ele riu, um leve estrondo de deleite enquanto se
voltava para a pintura. "Isso é incrível!"
“É—” Cinnamon começou, então parou, ainda olhando para o
retrato de si mesmo. Ele balançou a cabeça ligeiramente e se virou
para William. "Eu realmente pareço assim?"
"Você parece", William assegurou-lhe. “Embora não seja tão
limpo. Você nunca se olha quando está se barbeando? "
1437

“Oui620, mas ...” A palidez estava se transformando em fascinação,


e ele aproximou-se cautelosamente do retrato. "Mon Dieu621", ele
sussurrou.
Ela o pintou em seu terno cinza - ele possuía apenas um - com uma
camisa branca como a neve e um lenço no pescoço com um laço
rendado caindo sobre o peito viril. William contribuiu com um
pequeno alfinete de ouro em forma de flor cujo coração era um
topázio rosa facetado, rodeado por pétalas de folha verde.
Ela o persuadiu a não usar peruca e a abandonar a pomada de graxa
de urso com a qual ele às vezes tentava engessar seus cachos, e o
pintou com seu cabelo castanho-avermelhado diferenciado solto,
perturbando a adorável e ampla curva de seu crânio e o leve reflexo
dele na pele da mandíbula e das maçãs do rosto. Ele fez o que pôde
para manter uma expressão estoica e reservada no rosto, mas ela
passou bastante tempo conversando com ele enquanto esboçava o
que fora capaz de captar a luz que dançava em seus olhos quando
ele estava entretido. E ela dançava em seu retrato, em uma
minúscula mancha branca com toque de limão.
"Isso ..." Cinnamon balançou a cabeça e piscou com força; ela
podia ver as lágrimas que ele estava reprimindo e sentiu uma onda
de simpatia por ele, embora sua alegria com a resposta dele
sobrepujasse quase todo o resto.
Seu próprio sentimento o oprimiu a tal ponto que ele se virou
repentinamente para ela e a agarrou em um abraço apertado.
"Obrigado!" ele sussurrou em seu cabelo. "Oh, obrigado!"

-.-.-

HENRIKE, novamente convocada, foi buscar uma garrafa de vinho


e três taças, e eles beberam à saúde de John Cinnamon e seu retrato.
“Pode-se beber à saúde de um retrato?” Brianna perguntou,
fazendo isso mesmo assim.
"O retrato mais saudável que já vi", disse William, fechando um
olho e semicerrando os olhos para a pintura através de sua taça de
vinho tinto. Ele se virou e ergueu o copo para Brianna. "Podemos
beber para a artista, no entanto, se você preferir?"
620
“Sim”, em francês
621
“Meu Deus”, em francês
1438

“Hurra!” Cinnamon disse, ergueu o copo para Brianna e bebeu de


um gole só. Seus olhos estavam brilhantes, seu cabelo estava em
pé, e ele não conseguia parar de sorrir, roubando olhares para seu
retrato a cada poucos segundos, como se para garantir que ele não
tivesse sumido ou de repente começado a se parecer com outra
pessoa.
“Deve secar por mais alguns dias”, disse ela, sorrindo e erguendo
o copo em saudação. "Você ainda pretende enviá-lo para - para
Londres?" Para o pai dele, ela quis dizer. "Vou embalar para você,
se quiser. Assim, não será danificado no navio. ”
John Cinnamon olhou para ela por um momento, olhou para o
retrato por um longo minuto, então se virou para ela e acenou com
a cabeça.
“Eu quero,” ele disse suavemente.
“Papai poderia providenciar para que ele fosse para casa com um
amigo diplomático, tenho certeza”, disse William. "Você gostaria
que eu perguntasse a ele?"
Cinnamon parou por um momento, considerando, mas então
balançou a cabeça. O brilho não havia deixado seu rosto, mas
recuou um pouco.
"Vou perguntar a ele", disse ele, e se levantou abruptamente. "Eu
irei agora. Não consigo ficar parado”, explicou, se desculpando
com Brianna. "Estou tão feliz!" O brilho voltou, iluminando seu
rosto como um clarão, e ele se curvou apressadamente para ela e se
despediu, dando um tapinha nas costas de William quando ele fez
uma reverência amigável que quase o derrubou.
Ela esperava que William fosse embora, e ele pegou o chapéu, mas
então ele se levantou por um momento, amassando-o
distraidamente.
“Quais são os outros retratos?” ele disse abruptamente, e acenou
com a cabeça para os três retratos ainda velados em musselina. "Se
você não se importa que eu os veja, quero dizer," disse ele,
apologético.
"Claro que não. Eu adoraria ter sua opinião, já que você sabe como
todos os indivíduos realmente se parecem.” Ela ergueu o pano da
peça maior - o retrato de Angelina Brumby - mas manteve os olhos
no rosto do irmão para ver sua reação inicial.
Ele olhou brevemente a princípio, como se não se importasse
1439

realmente, mas então piscou, focou, se aproximou - e abriu um


largo sorriso.

"Capturei ela, não foi?" Brianna disse, rindo. Essa foi a expressão
no rosto de cada homem que conheceu Angelina em carne e osso.
"Você capturou", disse William, ainda sorrindo. "Ela é ... como
você a fez parecer ... luminosa? Brilhante, eu acho” ele corrigiu.
"Sim, é isso - ela brilha."
"Obrigada!" disse ela, e o teria abraçado se se conhecessem há um
pouco mais de tempo. “Você realmente não quer conhecer as
técnicas, mas basicamente é a cor. Minúsculas manchas de branco,
com um pouquinho ainda mais minúsculo de cor refletida da
superfície por trás do brilho.”
"Vou acreditar na sua palavra", disse William, ainda sorrindo. Ele
se voltou para a fileira de retratos. “Você disse que eu conheço
todos os indivíduos - um deles é o general americano? O soldado
da cavalaria? "
Ela acenou com a cabeça e, sem palavras, afastou o véu que cobria
Casimir Pulaski.
O rosto de William ficou instantaneamente sóbrio, mas ele se
moveu em direção a esta pintura, também e ficou parado diante
dela por um longo tempo, sem falar. Brianna ainda estava
observando seu rosto e pôde ver nele a memória das longas horas
que ele e Cinnamon compartilharam com ela, parados atrás dela,
protegendo-a na escuridão e na tristeza daquela noite.
Ela lutou com este retrato. Suas memórias da tenda escura e da
procissão interminável de homens sombrios, muitos deles vestindo
as manchas de sangue e pó da batalha perdida, pairaram sobre ela
enquanto trabalhava, penetrante como o cheiro de gangrena e
corpos sujos, a rajada ocasional de vento vindo dos pântanos o
único alívio.
"Eu não consegui encontrar o meu caminho no início", disse ela
calmamente, parando ao lado dele. "Havia muito -" Ela acenou com
a mão vagamente, mas ele estava lá também; ele sabia exatamente
o que era demais. Ele acenou com a cabeça e, sem olhar para ela,
pegou sua mão.
"Mas você encontrou, finalmente." Ele não disse isso como uma
pergunta, mas sua mão apertou a dela, quente e grande. "O que foi
1440

'aquilo'?"
Ela riu, mesmo com os olhos cheios de lágrimas.
"Tenente Hanson." Ela engoliu em seco, mas sabia que sua voz iria
tremer. Ela falou mesmo assim. “Quando ele - quando ele parou.
Depois, quando começou a chover e estávamos todos saindo da
tenda? Ele disse - eu não posso dizer isso, era polonês ... ”
"Pozegnanie", disse William calmamente. "Até a próxima."
Ela acenou com a cabeça e respirou fundo.
"Isso. Foi a única coisa - apenas um vislumbre - de quem ele era. "
Ela piscou e então enxugou as lágrimas que escorreram. Ela
pigarreou e olhou para a pintura.
"Quando eu senti isso", disse ela, capaz de respirar novamente,
"isso - ele - não era apenas um cadáver. Ou um herói - eu poderia
ter feito isso - pintado em seu cavalo, atacando ou o que quer que
seja - e talvez o exército preferisse ter algo assim, provavelmente
eles teriam, mas ...”
“O exército tem muito mais sentimento do que você imagina”,
disse ele, com um meio sorriso. “Normalmente não é um tipo de
sentimento delicado, mas é um sentimento. E nós entendemos a
morte. Isto está perfeito."
Ela apertou a mão dele e a soltou, sentindo o aperto em seu peito
também. Ela acenou com a cabeça para a pintura final, ainda
velada.
“Você já viu esse, embora ainda não estivesse terminado. Você
quer ver?"
"Jane", disse ele, e ela se virou para olhar para ele, ouvindo coisas
em sua voz. Mas sua mandíbula se apertou e ele balançou a cabeça.
“Não,” ele disse. "Agora não." Ele respirou fundo e soltou um
suspiro.
"Atrevo-me a dizer que você passou algum tempo na casa do papai
enquanto esteve na cidade?"
"Sim", disse ela, distraída. "Por que?"
"Então você conheceu Amaranthus."
"Conheci."
“Eu quero falar com você sobre ela”
1441

120

NO QUAL WILLIAM FALA TUDO,


PRATICAMENTE

NO FINAL, ELE contou-lhe quase tudo. Nenhuma menção a


jardins frios, coxas quentes e sapos-de-olhos-pretos. Mas todo o
resto: Dottie e o bebê, Denzell, General Raphael Maldito Bastardo
Bleeker e o relato de Amaranthus sobre o marido dela.
Sua irmã disse muito pouco, mas sentou-se curvada para a frente
em seu banquinho alto de pintora, pés enfiados atrás dos degraus,
observando-o. Ela tinha um rosto que combinava com sua altura:
atrevidamente bonito, e com olhos que não tolerariam insultos, mas
que ainda pareciam calorosos.
"Eu disse a papai - Lorde John - tudo que descobri." O pai dele
tinha ouvido, pálido e atento, examinando o relato conforme
William o contava. Vislumbrando com muita clareza a necessidade
de retransmiti-lo a seu irmão, os nós dos dedos ficando mais
brancos à medida que a história brutal continuava.
"Isso não deve ter sido fácil", disse sua irmã suavemente. Ele
balançou sua cabeça.
"Não. Mas mais fácil do que deveria ser - para mim. Eu fui um
covarde. Eu não consegui ... não consegui me obrigar a contar ao
tio Hal. Então, em vez disso, contei a papai e ... deixei o trabalho
sujo para ele.”

Ela considerou isso por um momento, a cabeça inclinada para o


lado. Ela não usava touca e seu cabelo estava solto; caiu sobre seu
ombro em uma onda cintilante, descuidado. Então ela balançou a
cabeça e empurrou a onda de volta para trás da orelha, deixando
uma linha de tinta branca esquecida em seus dedos.
“Você não é covarde”, disse ela. “Lorde John conhece melhor o
irmão dele do que qualquer outra pessoa no mundo, provavelmente
incluindo a esposa de Sua Graça ", acrescentou ela, franzindo a
1442

testa um pouco. “Não existe uma boa maneira de dizer a um


homem algo assim, eu não suponho ...”
“Não existe.”
"Mas eu ouvi seu, hum, pai falar sobre o irmão dele. Ele saberá o
que seu tio sente, e ele é durão - Lorde John, quero dizer, embora
provavelmente Hal também seja. Ele pode dar o apoio, se Hal
enlouquecer - er, ficar realmente transtornado ”, ela emendou,
vendo a expressão no rosto de William. "Você poderia contar a ele,
certo - e provavelmente terá que contar, eventualmente",
acrescentou ela com simpatia. "Ele vai querer ouvir os detalhes
sórdidos de você. Mas você não seria capaz de dar a ele o que ele
talvez precise depois de ouvir - seja uma bebida forte - "
“Tenho certeza de que essa será a segunda coisa de que ele vai
precisar”, murmurou William. “A primeira é alguém para bater.”
A boca de Brianna se contraiu com isso e, por um momento de
choque, ele pensou que ela estava prestes a rir, mas ela balançou a
cabeça em vez disso e a mecha de cabelo manchada de tinta caiu
ao longo de sua bochecha.
"Então", disse ela, endireitando-se com um suspiro, "Amaranthus
ainda está apaixonada pelo marido dela, e ele ainda está apaixonado
por ela. E você…?"
"Eu disse que tinha algum sentimento por ela?" ele reclamou
irritado.
"Não, você não disse." Você não precisava, seu pobre idiota, o
rosto dela dizia.
"Eu não suponho que isso importe", disse ela suavemente. "Agora
que você sabe que ela não é uma viúva. Quero dizer... você não
consideraria ... "Ela deixou esse pensamento onde estava, graças a
Deus, e ele o ignorou. Ela limpou a garganta.
"E quanto a Amaranthus, então?" ela perguntou. "O que ela vai
fazer agora, o que você acha?"
William poderia pensar em um monte de coisas que ela poderia
fazer, mas ele já aprendeu que sua própria imaginação não era igual
à daquela senhora em particular.
Você poderia ... possivelmente se divertir.
"Eu não sei", disse ele rispidamente. “Provavelmente nada. Tio Hal
não vai jogá-la na rua, não acho. Ela não o traiu, o rei, o país, o
exército e tudo mais - e ela é a mãe de Trevor, e Trevor é o herdeiro
1443

do tio Hal. " Ele encolheu os ombros. "O que mais ela poderia fazer,
afinal?"

Ele ouviu o eco da voz de seu tio acima dos sons da grama marram
622
e da água: "Se você considera a traição e a deslealdade ao seu
rei, seu país e sua família um meio adequado de resolver suas
dificuldades pessoais, William, então talvez John não tenha te
ensinado tão bem quanto eu suponho."
"Divórcio?" sua irmã sugeriu. “Isso parece ... mais limpo. E ela
poderia casar de novo. ”

"Mmphm." William estava imaginando o que poderia ter


acontecido se ele tivesse concordado com a sugestão do
Amaranthus - e então descoberto a continuação da existência de
Benjamin, possivelmente depois de ter gerado ...
“Não,” ele disse abruptamente, e ficou surpreso quando ela riu.
"Você acha que essa situação é engraçada?" disse ele,
repentinamente furioso.

Ela balançou a cabeça e acenou com a mão em um pedido de


desculpas.
“Não. Não me desculpe. Não foi a situação - foi o barulho que você
fez. "
Ele olhou para ela, afrontado.
"O que você quer dizer com barulho?"
"Mmphm."
"O que?"
“Aquele barulho que você fez em sua garganta - mmphm. Você
provavelmente não quer ouvir isso ", acrescentou ela, com um tato
grosseiramente tardio," mas Pa faz esse tipo de barulho o tempo
todo, e você parecia ... igual a ele. "
Ele respirou por entre os dentes, reprimindo uma série de
comentários, nenhum deles cavalheiresco. Evidentemente, seu
rosto falava por ele, pois o rosto dela mudou, perdendo o ar
divertido, e ela escorregou do banquinho, aproximou-se dele e o
abraçou.

622
Grama marram é um dos muitos nomes genéricos dados à vegetação que cresce na areia das praias.
1444

Ele queria afastá-la, mas não o fez. Ela era alta o suficiente para
que ela apoiasse o queixo em seu ombro, e ele sentiu o toque frio
de seu cabelo manchado de tinta contra sua bochecha aquecida. Ela
era musculosa, sólida como o tronco de uma árvore, e os braços
dele a envolveram por vontade própria. Havia pessoas na casa; ele
podia ouvir vozes à distância, passos, batidas e tinidos - chá sendo
servido? ele pensou vagamente. Não importa.
“Eu sinto muito,” ela disse suavemente. "Por tudo."
“Eu sei,” ele disse, muito suavemente. "Obrigado."
Ele a soltou e eles se separaram suavemente.
“O divórcio não é uma questão simples”, disse ele, pigarreando.
"Especialmente quando uma das partes é um visconde e herdeiro
de um ducado. A Câmara dos Lordes teria que votar e dar
consentimento sobre o assunto - depois de ouvir um relato
completo de tudo - e eu quero dizer tudo. Tudo isso seria matéria
para os jornais e panfletos, para não falar das fofocas nos cafés,
tavernas e em todos os salões de Londres."
“Embora eu suponha”, ele continuou, pegando o chapéu, “que um
divórcio pode muito bem ser concedido. Ter seu marido condenado
por traição parece motivo suficiente. Os resultados podem não
valer a pena, no entanto.” Ele socou a coroa do chapéu de volta ao
normal e o colocou.
“Obrigado,” ele disse novamente, e se curvou.
"De nada", disse ela. "A qualquer momento." Ela sorriu para ele,
mas era um sorriso trêmulo, e ele se arrependeu de tê-la preocupado
com seus problemas. Ao se virar para sair, avistou mais uma vez a
fileira de retratos, um deles ainda coberto.
Ela o viu olhar para ele e fez um pequeno gesto interrompido.
"O que é isso?" ele perguntou.

"Não é nada. Eu não quero te retardar— ”


“Tenho muito poucas exigências de meu tempo no momento”,
disse ele, sorridente. "O que é isso?"
Ela parecia em dúvida, mas sorriu também.
“O quadro da irmã de Fanny. Eu me perguntei se você sabia se o
desenho original foi feito durante o dia ou à noite. Pintei como se
fosse dia, mas me ocorreu que ... ”
“Isso, considerando sua ocupação e o fato de que um cliente do
1445

estabelecimento a desenhou, poderia muito bem ter sido à noite,”


ele concluiu. "Você está certa, quase com certeza foi isso." Ele
acenou com a cabeça para Jane, invisível por trás de seu véu de
musselina.
“Deve ter sido à noite. Havia uma lareira na sala - bem, numa vez
em que eu estive nela, pelo menos. E as paredes eram vermelhas,
então havia um pouco disso tudo no ar. Mas eu só a vi à luz de
velas. Uma vela com um refletor de latão, um pouco atrás e acima
dela, então a luz brilhou no topo de sua cabeça e desceu pelo lado
de seu rosto. ”
Suas sobrancelhas - grossas para uma mulher - se ergueram.
"Você se lembra dela muito bem", disse ela, sem nenhum tom de
julgamento. "Você mesmo já desenhou ou pintou? ”
“Não,” ele disse, assustado. "Quer dizer, eu tive um mestre de
desenho quando era criança. Por quê?"
Ela sorriu um pouco, como se guardasse um segredo.
“Nossa avó era pintora. Eu estava pensando que você poderia ter ...
herdado algo dela. Como eu herdei."
O pensamento fez suas mãos se curvarem, com um leve choque que
percorreu os músculos de seus antebraços. Nossa avó…
"Jesus", disse ele.
"Ela se parecia muito comigo", disse Brianna casualmente, e
estendeu a mão para abrir a porta para ele. "E com você. Foi de
onde herdamos o nariz. "
1446

121

A QUALIDADE DA MISERICÓRDIA

Fraser's Ridge

EU ESTAVA NO consultório, separando sementes e curtindo a


satisfação da colheita bem sucedida, quando ouvi uma batida
hesitante na porta da frente. A própria porta estava aberta, para
deixar o ar fresco fluir através da casa, e normalmente quem estava
na porta teria gritado. Eu ouvi sussurros fracos e o arrastar de pés
do lado de fora, mas ninguém chamou, e coloquei minha cabeça
para fora para ver quem poderiam ser os visitantes.
Para minha surpresa, havia uma grande multidão na varanda;
muitas mulheres e crianças, que ficaram alarmadas ao me ver. Uma
mulher parecia ser a líder; ela criou coragem e deu um passo à
frente e vi que era a Sra. MacIlhenny. Mãe Harriet, ela era chamada
por todos: cabelos brancos, viúva três vezes e mãe de treze filhos e
uma quantidade incontável de netos.
"Com sua licença, a bhana-mhaighister ", disse ela, com a voz
hesitante, “Podemos falar com Ele Mesmo?”
“Er ...” eu disse, desconcertada. “Eu- Sim, claro. Eu vou apenas ...
dizer a ele que vocês estão aqui. Ah ... vocês não vão ... entrar? "
Eu falei quase tão hesitante quanto ela, e pelo mesmo motivo. Lá
havia cinco mulheres além da Mãe Harriet: Doris Hallam, Molly
Adair, Fiona Leslie, Annie MacFarland e Gracie MacNeil. Todas
elas eram esposas ou mães de inquilinos que Jamie expulsou, e era
razoavelmente claro por que elas vieram. Elas trouxeram quase
1447

vinte crianças com elas, de meninas de dez anos de idade com seus
cabelos trançados ordenadamente com saias justas de crianças e
bebês nos braços, todos esfregados em toda polegada de seus
corpos; o cheiro de sabão de soda cáustica subiu delas em uma
nuvem quase visível.
Jamie estava sentado em sua mesa com uma pena na mão quando
eu entrei, fechando a porta do escritório atrás de mim. Ele olhou
para a porta; o sussurrar e silenciar era claramente audível.
"Isso é o que eu penso que é?"
"Sim, eu disse. “Cinco delas. Com seus filhos. Elas querem falar
com você."
Ele disse algo baixinho em gaélico, esfregou as mãos com força em
seu rosto e endireitou-se na cadeira, enquadrando os ombros.
"Sim. Deixe-as entrar, então.”
Harriet MacIlhenny entrou com a cabeça erguida, mandíbula
cerrada e queixo tremendo. Ela parou abruptamente diante da mesa
de Jamie e desabou de joelhos com um baque, seguida pelas outras
esposas e metade das crianças, espalhando-se pelo corredor, todos
parecendo confusos, mas obedientes.
"Nós viemos implorar por sua misericórdia, Laird", disse ela,
curvando-se tão baixo que ela falou para o chão. "Não para nós
mesmas, mas para nossos filhos."
"Seus maridos as colocaram nisso?" Jamie exigiu. " Levantem-se,
pelo amor de Deus.”
"Não, Laird", disse Harriet. Ela se levantou, lentamente, mas suas
mãos estavam pressionadas tão forte nas juntas que os nós dos
dedos e as unhas ficaram brancas. “Nossos maridos nos proibiram
de vir até você; disseram que nos bateriam se mexêssemos um pé
para fora das portas. Os idiotas sacrificariam a nós e aos filhos pelo
bem de seu orgulho, mas ... nós viemos de qualquer maneira."
Jamie fez um barulho escocês de desgosto.
"Seus maridos são tolos e covardes, e eles pagarão o preço de suas
tolices. Eles sabiam o que estavam arriscando quando eles
escolheram lançar a sorte com Cunningham. ”
"Será que um jogador acha que vai perder, Laird?"
Jamie abriu a boca para dizer algo mais, mas fechou-se nesta
punhalada astuta. Harriet MacIlhenny tinha vivido em Ridge quase
desde sua fundação e sabia muito bem quem era o maior apostador
1448

neste pedaço da floresta.


"Mmphm", disse ele, olhando para ela. "Sim. Bem. Seja como for,
eu disse o que eu disse e não vou voltar atrás. Eu coloquei esses
homens para fora por uma boa causa, e essa causa não desapareceu,
nem é provável que desapareça.”
"Não", Harriet concordou, com verdadeiro pesar na voz. Ela
curvou seu chapéu na cabeça. “Mas meus seis filhos crescidos são
leais a você, Laird, e à causa da liberdade - e meus quatro irmãos
também. Muitas dessas boas mulheres podem dizer o mesmo”- ela
gesticulou para as fileiras cerradas ainda ajoelhadas no chão atrás
dela - "e dizem." Um murmúrio de concordância veio da multidão
atrás dela, e uma garotinha colocou a cabeça para fora de trás do
avental de Harriet e disse alegremente: "Meu irmão ajudou a trazê-
los de volta do deslizamento de terra, senhor!"

Harriet moveu a saia para esconder a criança e tossiu, a interrupção


dando a Jamie tempo suficiente para olhar para as mulheres e
calcular exatamente quantos filhos, irmãos, tios, netos e cunhados
possuíam entre eles - e quantos deles eram homens que ele incluiria
em sua gangue ou gostaria de incluir. Eu vi a cor subindo do seu
pescoço, mas eu também vi a ligeira queda de seus ombros.
Harriet também, mas foi sábia o suficiente para fingir que não
percebeu. Ela dobrou suas mãos na frente dele e humildemente
colocou o resto de suas cartas na mesa.
“Nós sabemos por que baniu os homens, senhor. E nós sabemos
ainda melhor a bondade que você sempre mostrou para nós e nossas
famílias. Então, nós faremos um juramento a você, Laird - um
juramento terrível, em nome de Santa Brigida e São Miguel - que
nossos maridos nunca mais levantarão a mão ou a voz contra vós,
em qualquer assunto "
"Mmphm." Jamie sabia que estava derrotado, mas não estava
realmente se rendendo ainda. "E como você pretende garantir o
bom comportamento deles, a bhana-mhaighister?"
Uma vibração inaudível, mas clara que poderia ter sido diversão
correu através das senhoras mais velhas, embora tenha
desaparecido em um instante quando Harriet virou a cabeça para
olhar por cima do ombro para elas. Quando ela voltou, seus olhos
estavam fixos em mim, não em Jamie, o que me assustou.
1449

"Eu suponho que sua esposa poderia responder por você, Laird",
disse ela circunspectamente, e deixou o canto da boca contrair por
um momento. O olhar dela caiu para Jamie novamente. “Nenhum
dos homens sabe cozinhar. Mas se você não confiar no que uma
esposa poderia fazer a um marido que tomou a casa de cima de sua
cabeça e a comida da boca de seus filhos ... talvez você possa
imaginar o que os irmãos e filhos daquelas esposas poderiam fazer
com ele. Se você quiser que meus rapazes venham e façam o
mesmo juramento a você ...”
“Não,” ele disse, muito secamente. “Não sou homem para descartar
a palavra de uma mulher honesta.” Ele olhou para a multidão,
lentamente, e suspirou, colocando as mãos espalmadas na mesa.
"Sim. Bem então. Isso é o que eu farei. Eu revogarei a carta de
banimento - para seus maridos - mas os contratos que fiz com eles
como inquilinos permanecem nulos. E vocês enviarão seus
maridos para mim, para jurar suas fidelidades. Não terei homens na
minha terra que conspirem contra mim.”
"Mas devo escrever novos contratos, entre eu mesmo e cada uma
de vocês, senhoras, pela locação do terreno e dos edifícios em que
vocês moram, em testemunho da fidelidade de ... ehm ... de sua fiel
gestão dos mesmos.” Um definitivo risinho correu pela sala, e eu
sorri, apesar da seriedade da situação.
Jamie não riu, mas se inclinou para frente, fixando cada mulher por
vez com seus olhos.
"Lembrem-se , isso significa que cada uma de vocês - cada uma,
eu digo - é responsável pelos aluguéis e outros termos de seu
contrato. Se você quiser aceitar o conselho e a ajuda dos maridos,
isso é muito bom, mas a terra é sua, não dele, e se ele se provar
falso, seja para você ou para mim, ele responderá por isso para
mim, até a morte. "
Harriet assentiu gravemente.
“Nós concordamos, meu laird. Nós estamos muito agradecidas por
sua gentil tolerância - e ainda mais gratas a Deus por nos ter
permitido salvá-lo da culpa de ter colocado mulheres e crianças
para morrer de fome”. Ela fez uma profunda reverência para ele,
então se virou e saiu, deixando suas seguidoras fazerem uma
reverência a ele, uma de cada vez e murmurar seus agradecimentos
ao proprietário mudo e de orelhas vermelhas.
1450

-.-.-

ELAS SAIRAM, MURMURANDO umas às outras de empolgação


e deixando a porta aberta, como a encontraram. Uma brisa fresca
desceu o corredor, carregando o fantasma do sabonete de soda
cáustica.
Eu coloquei minhas mãos nos ombros de Jamie. Duros como
pedras, assim como o pilar do seu pescoço, sob meus polegares.
"Você fez a coisa certa", eu disse baixinho, e comecei a massagear
os músculos, procurando nós. Ele suspirou profundamente e seus
ombros caíram um pouco.
“Espero que sim”, disse ele. "Provavelmente estou alimentando
uma ninhada de víboras em meu seio, mas isso aliviou mesmo o
peso no meu coração.” Depois de um momento ele acrescentou,
ainda olhando para sua mesa, "Eu pensei nos outros homens,
Sassenach. Os irmãos e filhos, quero dizer. Mas o que eu pensei foi
que eles tomariam conta das mulheres e crianças - alimentá-las,
levá-las se seus maridos não conseguissem encontrar um lugar. Eu
nunca pensei ... Cristo, era como ter minhas próprias armas
tomadas e apontadas para mim! "
“Você fez a coisa certa,” eu disse novamente, e beijei o topo de sua
cabeça. “E você sabe que agora todas aquelas mulheres e crianças
estarão vigiando como falcões, no caso de qualquer rannygazoo623
no lado oeste de Ridge." Ele virou a cabeça e me olhou.
"Eu não sei o que é rannygazoo, Sassenach, mas Deus me livre se
eu tiver isso sem saber. É contagioso?”
"Muito. Bem-aventurados os misericordiosos, porque a
misericórdia será mostrada a eles.”624
"Estou feliz em encontrá-lo tão cheio de misericórdia, Coronel",
disse uma voz seca da porta. "Eu só espero que você não tenha
esgotado sua reserva para um dia.” Elspeth Cunningham estava do
outro lado da soleira, alta e reta e vestida de preto, um fichu
totalmente branco destacando suas feições magras em relevo
623
“Rannygazoo” - bobagem, engano; tolice, confusão, exagero. Palavra raramente utilizada atualmente,
seu uso mais antigo foi encontra nas obras de Alfred Henry Lewis (1857–1914), embora P G Wodehouse
(1881-1975) também tenha usado. É de origem incerta. Mantivemos a palavra sem tradução para ressaltar
a incompreensão de Jamie quanto ao significado.
624
Referência bíblica Mateus 5:7.
1451

austero.
Os músculos sob minhas mãos ficaram momentaneamente duros
como concreto. Eu relaxei e então Jamie se pôs de pé, fazendo uma
reverência.
“Seu servo, senhora,” ele disse. "Entre."
Ela ultrapassou a soleira, mas ficou por um momento, hesitante,
um pedaço da saia presa entre seus dedos.
"Não pense por um momento em se ajoelhar diante de mim", disse
Jamie, combinando com o tom no qual ela havia falado um
momento antes. “Sente-se625 e diga-me o que você quer.”
Dei a volta na mesa e puxei a cadeira de visitante para ela, e ela
afundou-se nela, seus olhos fundos ainda fixos em Jamie.
"Eu quero Agnes", disse ela, sem preâmbulos.
Jamie piscou, sentou-se, piscou novamente e se recostou,
relaxando um pouco.
"Para que você a quer?" ele perguntou cautelosamente.
"Talvez eu devesse ter dito que vim para pedir por ela", disse ela,
com um traço de um sorriso. “Se esse é o termo correto?”
“Só se você quiser casá-la” Jamie disse. "O que eu suponho que
seja o que você quer dizer. Qual dos tenentes você tem em mente,
e o que Agnes tem a dizer sobre isso? "
Elspeth suspirou e desdobrou as mãos para aceitar o copo de uísque
que eu ofereci a ela.
“No momento, é comparar seis com meia dúzia”, ela admitiu. "A
criatura boba não consegue se decidir entre eles, e como eu disse a
ela que não há como saber qual deles é o pai da criança, nenhum
dos dois tem mais alegações concretas sobre seu afeto do que o
outro."
“Suponho que você possa esperar até que a criança nasça para ver
com quem ela se parece”, eu sugeri. Eu poderia - dentro de limites
bastante amplos - discernir os tipos de sangue. Isto podia ajudar,
mas achei que não iria sugerir neste momento.
Ainda bem, já que os dois me ignoraram.
“É por isso que eu disse que quero Agnes”, disse ela. “Eu decidi
que devo aceitar sua oferta para fornecer transporte para meu filho
e a mudança de casa. Quando ele ouviu falar de você banir os
Aqui, foi usada a expressão “ sit down on your hurdies”, literalmente, ‘sente-se em suas nádegas’.
625

‘Hurdies’ é uma palavra mais utilizada na Escócia.


1452

homens que ... o seguiram ... ele declarou que ele não podia mais
permanecer aqui, sem apoiadores e à sua ... misericórdia.”
"Minha misericórdia", Jamie murmurou, tamborilando os dedos
brevemente na mesa. “Hmmphm. Evidentemente, tenho um
estoque infinito disso. Então?"
"Gilbert e Oliver, é claro, nos acompanharão", ela continuou
ignorando isto. “Eles naturalmente não desejam abandonar Agnes
...”
“Agnes tem uma casa” - interrompeu Jamie, impaciente. "Aqui.
Deixe-a de lado, aliás!”
"Certamente você vai admitir que eles têm uma responsabilidade
para com a garota," Elspeth disse, baixando as fortes sobrancelhas
cinzentas para ele de uma forma que a fez parecer uma coruja muito
severa.
“Eu admitirei,” ele disse. "Mas eu não vou vê-la tirada de sua casa
a menos que ela queira ir e tenha certeza de seu bem-estar futuro.
Eu posso encontrar um bom marido para ela aqui, sabe?”
“Estou lhe oferecendo exatamente essa garantia”, ela retrucou.
"Você ousa sugerir que eu a veria abusada de alguma forma? "
“Você é uma mulher velha,” observou Jamie, de maneira bastante
brusca. “E se você morrer no caminho para onde quer que você
esteja levando seu filho? "
"Er ... para onde você o está levando?" Eu interrompi, mais na
esperança de parar a conversa indo direto para fora dos trilhos do
que porque eu queria saber.
“Você morreria, se você soubesse que alguém estava
completamente dependente de você?" ela falou de volta, me
ignorando.
Ele parou por um momento e respirou fundo antes de responder de
maneira equilibrada.
"Você nem sempre tem uma escolha sobre isso, Elspeth."
As narinas de Elspeth dilataram-se ao inalar, mas ela respondeu
com calma.
“Sim,” ela disse, “você não escolhe. Exceto ser baleada no coração
ou atingida por um raio,” ela adicionou, como uma pessoa obrigada
a ser honesta. “Mas uma das poucas vantagens de ser velha é que
ninguém atira nelas. Quanto ao raio, deixarei isso para Deus, mas
minha confiança Nele é considerável.
1453

"Quanto ao nosso destino", disse ela, virando-se para mim como se


Jamie tivesse deixado de existir, “Charles Town. Existem navios
de guerra da marinha lá, e um grande número de fragatas menores
e transportes do exército. Charles escreveu ao senhor Henry
Clinton, pedindo o favor do transporte de volta para a Inglaterra a
bordo de um desses. Sir Henry conhece nossa família há muitos
anos e certamente nos concederá a cortesia. Agora, quanto a Agnes
-” ela mudou seu foco de volta para Jamie. “Admito que meu desejo
de levá-la conosco não é só para o benefício dela; claramente, eu
preciso dela.”
Houve um longo momento de silêncio, com aquela declaração
simples pairando no ar.
Ela admitiu. Os dois jovens tenentes cuidariam das dificuldades
físicas de viajar e fornecer proteção para ela e Charles. Mas ela
precisaria de ajuda, tanto para cuidar das exigentes necessidades
físicas de seu filho quanto para ela mesma. Com certeza, ela
poderia facilmente contratar uma criada, mas dada a situação
delicada de Agnes ...
Ninguém tinha mencionado o outro aspecto dessa situação em voz
alta, mas Elspeth era perceptiva o suficiente para ter percebido o
fato de que - de todo o resto - ela foi uma resposta às orações para
Jamie.
Estimei a gravidez em cerca de três meses, e era uma questão de
semanas, senão dias, antes que a situação de Agnes fosse conhecida
em toda Ridge. E era, naturalmente, responsabilidade de Jamie
como seu empregador resolver a situação de alguma forma
publicamente satisfatória. Encontrando o jovem responsável e
obrigá-lo a se casar com Agnes seria o normal, mas dadas as
circunstâncias ... Ter sua serva solteira visivelmente grávida em sua
casa ou casada às pressas com alguém que evidentemente não o
pai - era convidar especulações de que você teve algo a ver com
sua condição. E nós dois estivemos lá antes ... eu estremecei, o eco
da denúncia de Malva, "Foi ele!" tocando nos meus ouvidos.
“Falando como Agnes ... er, outro loco parentis626 ...” eu disse.
Jamie e Elspeth sorriram, involuntariamente, mas eu os ignorei e
continuei. “Eu tenho uma pequena condição a sugerir. Eu vou te

626
‘No lugar dos pais’, expressão em latim.
1454

ajudar a persuadir Agnes, porque eu acho que é realmente a melhor


maneira de lidar com sua situação. Mas se ela decidir ir com você,
quero uma garantia de que você vai lhe fornecer uma educação…"
"Agnes?" Ambos falaram juntos, e enquanto a entonação de Jamie
indicava dúvida e a de Elspeth indicava diversão, suas
unanimidades me deram um momento de pausa.
“Educação para fazer o quê, Sassenach?” Perguntou Jamie. “Fanny
a ensinou a ler, e ela pode escrever seu nome e contar até cem. O
que mais você pensa que ela acharia útil? "
"Bem ..." Era verdade que embora Agnes fosse bonita, amável,
gentil e disposta, e tinha uma certa percepção perspicaz nascida da
experiência, ela não era uma estudante natural. Ainda assim, não
havia como dizer o que poderia acontecer com ela, e eu queria que
ela estivesse ... segura.
"Ela deve saber aritmética o suficiente para ser capaz de lidar com
dinheiro", disse eu, finalmente. “E ela deveria ter um pouco de
dinheiro para lidar. Dela mesma."
"Feito", disse Elspeth calmamente. “Meu filho vai pagar uma
quantia modesta para ela, independente de seu marido - quem quer
que seja ", acrescentou ela, um pouco desolada. "E eu mesma
cuidarei da educação dela"
Ninguém falou por um momento, e comecei a ouvir os sons
normais da casa, os gritos e guinchos e chocalhos e latidos, e o som
de uma conversa distante que a tensão de nossa discussão havia
bloqueado.
Passos cruzaram o teto sobre nossas cabeças, rápidos e leves, e eu
peguei um murmúrio e risos de garotas, divertidos. Eu relaxei um
pouco. Fanny sentiria falta de Agnes cruelmente, mas pelo menos
ela teria as meninas Hardman como companhia.
“Vou falar com a Agnes agora”, eu disse.
1455

122

A MILÍCIA SE INICIA

JAMIE SE AJOELHOU E CORTOU a costura do saco de


aniagem, dobrou a borda e respirou fundo. Soprou todo o ar e
respirou mais fundo, então cheirou pensativamente. Um cheiro rico
e nutritivo, agradável e doce. Sem cheiro de mofo, pelo menos não
no topo. No fundo, porém, onde a umidade assentou ...
Ele se levantou e empurrou para trás um conjunto de grandes
portas de correr que Bree tinha construído para ambos os lados do
galpão de malte, para que eles pudessem abri-los com tempo bom.
E era um bom dia, para o canto dos pássaros, para andar pela
floresta, e talvez pescar um pouco perto do pôr do sol. Uma manhã
adequada para trabalhos pequenos e pacíficos como substituir uma
placa no piso de maltagem que pegou fogo e foi enegrecido o
suficiente para manchar o sabor do grão torrado. Bom para calcular
a qualidade da cevada disponível. Ele tinha colhido cem quilos de
grãos de seus próprios campos no outono, e comprou cinquenta
quilos no entreposto comercial, mas eles tiveram tempo para
maltar, fermentar e destilar apenas metade dele, com o início do
inverno, mau tempo e a perturbação na Loja em fevereiro. Ele
coçou o peito; a cicatriz estava bem curada, mas ele ainda podia
sentir puxar quando ele esticava os longos braços.
Ele arrastou o saco para perto da porta aberta para receber luz
e esvaziou-o cuidadosamente no chão, ajoelhando-se e espalhando-
o com as mãos, olhando para germinação, umidade, mofo, insetos
ou qualquer outra coisa que você não possa querer em seu uísque.
E como uma última verificação, mastigou alguns grãos e cuspiu-os
na grama.
“Tha e math”627 ele murmurou, e se levantou. Ele pegou a pá
quadrada de maltagem de suas cavilhas e separou o grão fresco com
uma pá, abrindo espaço para o próximo saco.
Uma brisa quente roçou sua bochecha quando ele abriu a porta
627
Está bom, em gaélico.
1456

deslizante. Era um belo dia. Ele talvez parasse no Ian e levasse


Lagarto para o lago com ele esta noite. Esses pensamentos
agradáveis foram interrompidos por um súbito bater de asas e gritos
de um bando de pombos na proximidade, perturbados por algo que
estava vindo. Cauteloso, ele pegou a pá e saiu, mas era apenas um
homem, descendo o caminho sozinho. Hiram Crombie. Eles não se
falavam desde a confusão na Loja.
"Hiram", disse ele, enquanto o homem se aproximava e erguia o
queixo em saudação. O rosto contraído de Crombie iluminou-se um
pouco com o uso de seu nome cristão por Jamie. Ele acenou com a
cabeça ligeiramente e se aproximou, ainda com um olhar cauteloso,
no caso de Jamie ter em mente bater na cabeça dele com a pá, Jamie
supôs. Ele colocou a pá no monte de grãos e se endireitou,
enxugando o rosto com a manga.
“Eu vim dizer ...” Crombie começou, mas então parou, inseguro.
"Sim?" Ele sabia muito bem o que Crombie tinha vindo falar, mas
ele não queria forçá-lo dizer isso em voz alta. O velho mesquinho
era já duro como uma vara seca, mas seus braços pareciam
grudados ao lado do corpo. Seus punhos se enrolaram, lentamente.
“Eu — nós — eu lamento ... o que aconteceu. Na Loja. ”
"Sim."
Silêncio, quebrado apenas pela conversa dos pássaros nos
pinheiros próximos, esperando que Jamie fosse embora para que
eles pudessem se reunir e caçar os grãos derramados. Crombie
respirou fundo pelo nariz comprido e peludo; assobiou
ligeiramente, mas Jamie não riu.
"Eu desejo que você saiba que não foi obra minha, nem de meu
irmão ou dos meus primos. Nós ...” Ele parou e engoliu em seco,
murmurando, “desculpe por isso,” sob sua respiração.
"Bem, isso eu sabia, Hiram", disse Jamie, esticando as costas. A
cicatriz em seu peito estava queimando com a pá. “O que quer que
você pense do rei, eu não suponho que você tentaria me matar por
causa dele.”
Os ombros de Hiram começaram a baixar, mas antes que ele
pudesse se sentir confortável, Jamie acrescentou: "Mas eu suponho
que você sabia o que Cunningham estava fazendo, e você não me
avisou.”
"Não." Depois de um momento, aparentemente sentindo que esta
1457

não era uma explicação adequada, Hiram suspirou e balançou a


cabeça.
“Não, eu não avisei. Mas eu sabia que Duff e McHugh tinham algo
a ver com disso, eu os vi olhando Cunningham quando ele saiu da
igreja, como duas raposas vendo um lobo passar. E eles são seus
homens. Achei que eles iriam avisar que algo estava acontecendo.
Mas Geordie Wilson - irmão de minha esposa, sabe - ele é um dos
homens de Cunningham. Eu não poderia falar com você sem que
ele soubesse disso, e então ... "
“Sim” disse Jamie, após uma pausa momentânea. “Nenhum
homem quer problemas em sua família, e isso pode ser remediado”.
Os ombros de Hiram relaxaram com alívio. Ele acenou a cabeça
por um tempo, e então falou novamente.
"Há muito tempo, eu disse que gostaria de falar com você sobre um
assunto."
Jamie se lembrou. Na verdade, Crombie o abordou no caminho
para a Loja naquela noite. O que o fez se sentir mais gentil com o
homem; ele não poderia ter participado do que estava acontecendo,
se ele quisesse um favor de Jamie naquele ponto.
“Sim. Sobre a' Chraobh Ard628, eu acho que você disse?
"Sim. Eu queria perguntar se você poderia tomá-lo como um
membro de sua milícia."
Bem, isso foi uma surpresa. Ele estava esperando um pedido para
que Jamie deixasse Cyrus cortejar Frances oficialmente e ele teria
dito não a isso. Mas isso…
"Por que?" ele perguntou sem rodeios.
"Ele tem dezesseis anos", disse Hiram, encolhendo os ombros
como se isso fosse uma resposta completa. E foi. Um menino dessa
idade precisava muito começar a ser homem. E se ele não tivesse
um trabalho adequado de homem para fazer ...
O outro lado da questão também era claro. Hiram Crombie estava
ansioso que sua família agora devia ser vista como solidária com
Jamie e Cyrus foi seu refém oferecido. Isso é reconfortante, Jamie
pensou ironicamente. Ele pensa que nós podemos vencer.
Jamie cuspiu na palma da mão e ofereceu.
"Feito", disse ele. “Mande-o para mim amanhã, um pouco antes do
628
Árvore alta ou galho alto, em gaélico.
1458

amanhecer. Eu terei um cavalo para ele.”


-.-.-

SILVIA TINHA SE VOLUNTARIADO para acordar cedo - muito


cedo – e fazer os galões de mingau de aveia para alimentar a
milícia. Um cheiro quente, cremoso, subiu as escadas e me fez
despertar como uma mão suave na minha bochecha. Eu me estiquei
luxuosamente na cama quente e rolei, apreciando a figura de Jamie,
de pernas compridas como uma cegonha e totalmente nu, curvado
sobre o lavatório para espiar no espelho enquanto se barbeava à luz
de velas. O amanhecer não era mais do que um desaparecimento
das estrelas fora da janela escura.
"Ficando todo enfeitado para a gangue?" perguntei. "Você vai fazer
algo formal com eles esta manhã? "
Ele passou a navalha sobre o lábio superior puxado para baixo, em
seguida, sacudiu a espuma para o lado da bacia.
“Sim, exercícios de cavalaria. Serão apenas os homens montados
hoje. Com o Árvore Alta, teremos vinte e um.” Ele sorriu para mim
no espelho, seus dentes brancos como o sabonete de barbear. “O
suficiente para um ataque decente ao gado”.
"Cyrus sabe cavalgar?" Fiquei surpresa com isso; os Crombies,
Wilsons, MacReadys e Geohagens eram todos pescadores que
vieram até nós – só Deus sabia por que caminho tortuoso e difícil -
de Thurso. Eles eram, na maior parte, medrosos com cavalos, e
quase nenhum deles sabia cavalgar.
Jamie puxou a lâmina até o pescoço, esticou a cabeça para avaliar
os resultados, e encolheu os ombros.
"Nós vamos descobrir."
Ele enxaguou a navalha, enxugou-a na toalha de linho gasta e, em
seguida, usou a toalha para limpar o rosto.
"Se eu quero que eles levem isso a sério, Sassenach, é melhor que
eles pensem que eu levo."

-.-.-

O CÉU ESTAVA clareando, mas ainda estava escuro no chão e


apenas uns poucos homens se reuniram quando Cyrus Crombie
veio das árvores acima da casa nova. Os homens olharam para ele
1459

com surpresa, mas quando Jamie o cumprimentou, todos eles


assentiram e murmuraram: "Madainn mhath"629 ou grunhiram em
reconhecimento.
"Aqui, rapaz", disse Jamie, empurrando um copo de madeira com
mingau quente nas mãos da Árvore Alta. “Aqueça sua barriga e
venha conhecer Miranda. Ela pertence a Frances, mas a moça diz
que está disposta a lhe emprestar a égua até que possamos encontrar
um cavalo para ti. " “Frances? Oh. Eu ...Eu agradeço a ela.”
Árvore Alta brilhava um pouco e olhou timidamente a casa e depois
para o cavalo. Miranda era uma grande égua, robusta, de costas
largas e com uma maneira gentil e confortável.
O jovem Ian havia descido agora, em peles de gamo e jaqueta, o
cabelo trançado e pendurado nas costas, Tòtis o seguindo. Ele
olhou ao redor do grupo de homens, balançando a cabeça e em
seguida, beijou a testa de Tòtis e ergueu seu queixo em direção à
varanda. Então Ian veio pegar seu próprio mingau, levantando uma
sobrancelha na direção de Cyrus.
“A’ Chraobh Ard se juntará a nós, a bhalaich” - disse Jamie
casualmente. “Você pode mostrar a ele a maneira de selar e frear
Miranda, enquanto eu digo aos homens o que faremos? "
"Sim", disse Ian, engolindo caldo de cevada quente e exalando uma
nuvem de vapor branco. “E o que é?”
"Exercícios de cavalaria." Isso fez Ian levantar ambas as
sobrancelhas e olhar sobre seu ombro para o grupo de homens, que
pareciam o que eram - fazendeiros. Todos eles possuíam cavalos e
podiam cavalgar de Ridge a Salem sem cair, mas além disso ...
"Exercícios de cavalaria simples", Jamie esclareceu. "Andando
devagar."
O jovem Ian olhou pensativo para Cyrus, olhando ansiosamente
para ele.
“Sim,” ele disse, e se benzeu.

-.-.-

QUANDO eu subi para amarrar meu cabelo antes de começar a


fazer sabão, encontrei Silvia e todas as quatro meninas no meu

629
‘Bom dia’, em gaélico
1460

quarto com Frances, Patience e Prudence mais ou menos


penduradas no peitoril para assistir a milícia cavalgar. Elas mal me
notaram, mas Silvia recuou um pouco, envergonhada e começou a
se desculpar.
“Não se preocupe”, eu disse, e me aproximei de Patience para
espiar. “Existe algo sobre um grupo de homens a cavalo ...”
“Com rifles e mosquetes,” ela disse, um tanto secamente. "Sim,
existe."
Achei que as meninas ainda não haviam percebido o fato de que o
grupo de milícia estava em exercício e treinamento com o propósito
expresso de matar pessoas, mas suas mães com certeza tinham visto
homens se formando, com os habituais gritos e piadas grosseiras,
com uma certa severidade que aprofundou as linhas de sua boca.
Toquei seu braço suavemente e ela virou a cabeça, assustada.

"Eu sei que você e suas filhas preferem morrer, ao invés de ter
outras pessoas mortas para que você não morra... mas você sabe ...
vocês são nossas convidadas. Jamie é um highlander, e suas leis de
hospitalidade o proíbem de deixar qualquer um matar seus
convidados. Vou ter que pedir que você estenda um pouco seus
princípios e deixe-o protegê-las.”
Seus lábios se contraíram e seus olhos encontraram os meus com
um brilho de humor.
"Por uma questão de boas maneiras?"
“Exatamente,” eu disse, sorrindo de volta.
Um grito das garotas nos puxou de volta para a janela. Jamie estava
montado, passando lentamente para cima e para baixo na linha de
seus homens, inspecionando seus arreios e suas armas, parando
para fazer perguntas e fazer piadas. O vapor subia dos cavalos e
homens, suas respirações brancas no ar frio do amanhecer. Cyrus
estava no fim da linha, e o jovem Ian o estava instruindo sobre os
pontos mais delicados de montar um cavalo, começando por qual
pé utilizar.
"Oh, ele não parece bem?" Prudence disse, admirando. Eu não
tinha certeza se ela se referia a Jamie, o Jovem Ian ou Cyrus, já que
estavam todos mais ou menos no mesmo lugar, mas fiz sons de
aprovação.
Pareceu demorar muito para os homens se organizarem, mas de
1461

repente, todos eles se embaralharam e se empurraram para o lugar


em uma coluna dupla. Jamie ocupou seu lugar à frente e ergueu seu
rifle acima de sua cabeça. Um tipo de estrondo tilintante nos
alcançou, e a milícia partiu, com um sentido visível de propósito
que foi bastante emocionante de assistir.
Cyrus, ereto como um caule de aspargos crus, cavalgava ao lado do
Jovem Ian, o último par da fila. Eu me benzi e me virei para minhas
próprias tropas.
“Bem, senhoras ... está um bom dia para fazer sabão. Desçam! ”

-.-.-

JAMIE E OS irmãos Lindsay, com a ajuda de Tom McHugh e seu


filho do meio, Angus, cortaram as árvores e arbustos ao longo de
um lado da estrada de carroças onde o terreno era plano, de modo
que não havia nenhuma margem entre a estrada e a floresta. Eles
haviam deixado oito grandes árvores de pé, espaçadas cerca de
trinta pés.
"Então," Jamie disse a suas tropas reunidas e acenou com a cabeça
para as árvores. "Nós vamos passar entre aquelas árvores - indo
para um lado da primeira, então o outro lado da próxima e assim
por diante. E vamos fazer isso lentamente, um homem seguindo o
próximo após uma lenta contagem de dez ”
"Por que?" disse Joe McDonald, olhando as árvores com
desconfiança.
“Bem, primeiro, porque eu estou dizendo, a charaid, ” Jamie disse,
sorrindo. "Vocês sempre façam o que seu coronel diz, porque
lutaremos melhor se formos todos na mesma direção - e para que
isso aconteça, alguém tem que decidir em que direção ir ... e sou
eu, aye? " Uma onda de risos correu através dos homens.

"Oh. Sim, ”McDonald disse, incerto. Joe era jovem, apenas dezoito
anos, e nunca lutou em uma batalha, além de socos atrás do celeiro
para resolver uma desavença.
“ Mas, por que estou dizendo para vocês fazerem isso? ...” Ele
gesticulou em direção às árvores. “Isto é para os cavalos. Somos
uma milícia montada, embora tenhamos soldados a pé também - e
os cavalos devem ser ágeis e você capaz de guiá-los através de
1462

terreno estranho. Os cavaleiros fazem esse tipo de exercício; é


chamado de serpentina - porque você faz um ziguezague como uma
cobra, aye? " Sem pausas para outra pergunta, ele olhou para Ian e
sacudiu a cabeça para o lado
Ian cutucou seu cavalo e saiu lentamente do grupo, puxando as
rédeas para enfrentar as árvores, então se inclinou para frente e com
um grito horripilante que fez todos os outros cavalos roncarem e
baterem os pés, cavou seu calcanhar e se atirou em direção à
primeira árvore como se ele e o cavalo tivessem sido disparados de
uma arma. Um instante antes da colisão, ele desviou para o lado e
disparou em direção à próxima, entrando e saindo da linha de
árvores tão rápido que você mal podia contar as árvores enquanto
ele passava. No final da linha, ele virou-se com agilidade e disparou
de volta ainda mais rápido, chegando com um grito agudo de índio
para receber aplausos.
Jamie olhou para Cyrus, que parecia ao mesmo tempo apavorado e
animado, as rédeas apertadas contra o peito.
"Então, agora vamos fazer isso devagar", disse Jamie. "Você quer
ir primeiro, Joe?"

-.-.-

NO FINAL de uma hora, tanto os cavalos quanto os homens


estavam aquecidos, mais ágeis e em alto astral, tendo - na maior
parte - evitado a colisão um com o outro ou com árvores. O
sol estava bem acima do horizonte agora; era melhor voltarem, para
que os homens pudessem tomar o café da manhã e continuar com
suas tarefas diárias. Ele estava prestes a dispensá-los quando Ian se
levantou nos estribos e chamou os homens.
"Tio! Corra até a curva e volte! " Houve um estrondo geral de
entusiasmo com esta proposta, e Jamie freou sem hesitação,
parando ao lado de Ian.
"Vão!" gritou Kenny Lindsay, e eles foram, trovejando no chão da
estrada em uma nuvem de poeira e gritos encorajadores das
Highlands . O cavalo de Ian era uma pequena égua astuta chamada
Lucille, que não gostava de ser espancada, mas nem Phineas, e
foram muito rápido o tempo todo e a floresta um borrão verde ao
lado deles.
1463

Eles pegaram a grande curva da estrada e a contornaram para fazer


a curva. Lucille desviou de repente, empurrando Phineas no ombro
com um baque que quase derrubou Jamie, e ele teve um vislumbre
de uma carroça no meio da estrada, mas sem tempo para olhar,
ocupado como estava em ficar na sela e colocando Phin de volta
sob controle.
Houve gritos atrás deles, cascos trovejando e dois ou três tiros, toda
a milícia deixou a exuberância transbordar e se juntou a corrida,
malditos sejam eles. Phin estava se curvando e se sacudindo, e
embora não demorasse mais do que segundos para trazê-lo de volta
ao seu dever, toda a fervura de homens e cavalos desciam sobre
eles, gritando e rindo. Ele ficou em seus estribos para gritar, furioso
- e então viu a carroça que havia assustado Lucille, suas mulas se
contorcendo e pisando em seus rastros, mas não tão assustadas a
ponto de correr.
A agitação havia chegado a uma parada rodopiante de agitação de
lama ao redor da carroça, e houve um momento de silêncio na
gritaria. Bree estava segurando as mulas e fazendo um bom
trabalho, ele viu. Ao lado dela, Roger levantou ambas as mãos ao
alto.
“Não atirem,” ele disse seriamente. "Nós nos rendemos."

-.-.-

JAMIE DERRAMOU O resto do uísque JF Special no copo de


Roger, pegou a sua própria e ergueu-a para os convidados em volta
da mesa de jantar - e espalhados pela cozinha, para iniciar -
incluindo a família do jovem Ian, a família dele, Silvia e suas
garotas, além de Cyrus Crombie, Murdo Lindsay e Bobby Higgins,
homens solteiros e viúvos que tinham voltado com ele após o
treinamento da milícia.
“Graças a Deus pelo retorno seguro de nossos viajantes”, disse ele.
"E"- curvando-se a Roger Mac - “pela orientação e bênção de nosso
novo Ministro de Palavra e Sacramento. Slàinte mhath ”
Roger Mac não corava facilmente, mas o calor que sentia apareceu
em seu rosto assim como em seus olhos. Ele abriu a boca,
provavelmente para dizer modestamente que ele não seria
verdadeiramente ordenado até o verão, quando os ministros mais
1464

velhos poderiam vir da costa, mas Bree colocou a mão em seu


joelho e apertou para pará-lo, então o rapaz apenas sorriu e ergueu
sua xícara em resposta.
"Para a família", disse ele, "e bons amigos!"
Jamie sentou-se em meio aos gritos e batidas resultantes na mesa
que fez os pratos dançarem, sorrindo também, e se aqueceu com
isso, toda sala tremeluziu com a luz do fogo e os rostos em
mutação, animados com conversas e comida e bebida.
Ele gostaria que Fergus e Marsali e seus filhos estivessem aqui
também, mas Roger disse que eles haviam deixado Charles Town
com os MacKenzies,e então foram para o norte, com a intenção de
dar uma olhada em Richmond como um lugar possível para
retomar a impressão. Ele fez uma oração breve e silenciosa por sua
segurança.
Claire estava sentada ao lado dele no banco, a pequena Mandy
parecia adormecida sobre seu colo, meio envolta em seu braço
como um saco de grãos de tão pesada. Ele estendeu a mão e ergueu
a criança, aconchegando-a contra seu peito, e Claire inclinou-se em
direção a ele e descansou a cabeça em seu ombro por um momento,
em gratidão. Ele viu o cabelo dela e o de Mandy por um momento,
seus cachos loucos rodaram juntos, e sentiu tanto amor que ele
percebeu que se morresse naquele momento, ficaria bem.
Claire se endireitou e ele olhou para cima para ver Roger Mac, com
algo como a mesma expressão em seu próprio rosto. Seus olhos se
encontraram com um perfeito entendimento. E os dois olharam
para a mesa, sorrindo em meio às migalhas e ossos espalhados.
1465

123

E A BATIDA CONTINUA ...630

THE PEREGRINOS - OS ADULTOS peregrinos – acordaram


bastante tarde na manhã. As crianças, naturalmente, saíram de suas
camas de madrugada e desceram para infestar a cozinha. Crianças
sendo o que são, Jem e Mandy fizeram amizade instantânea com
Agnes e as meninas Hardman. Mandy ficou encantada com
Chastity e insistiu em alimentá-la com pequenas porções, piando
para ela em tom maternal, como se Chastity fosse um passarinho,
o que a fez rir e bufar leite pelo nariz.
Saindo para pegar um balde de leite fresco na casinhola da fonte,
eu encontrei Brianna descendo as escadas, vestida, mas obviamente
não completamente acordada ainda.
"Como está seu coração?" Eu a examinei cuidadosamente; ela
estava mais pálida e mais magra do que quando eles partiram para
Savannah, mas uma carroça e uma viagem de quinhentos
quilômetros, Deus sabe em que condições meteorológicas, guerra
e suprimentos de alimentos imprevisíveis, administrando dois
cavalos, um marido, e duas crianças sentadas sobre uma carga de
armas contrabandeadas disfarçadas como guano de morcego,
naturalmente estaria assim. Ela parecia feliz, no entanto.
“Não acredito em como está a casa! É ... "Ela estendeu a mão e
olhou em volta, então riu. "Mas Pa ainda não colocou uma porta
em seu consultório ."
"Ele vai conseguir fazer isso." Olhei para a cozinha, mas o zumbido
e a risada era pacífica e eu peguei seu braço, puxando-a em direção
ao consultório. “Deixe-me ouvir seu coração. Suba na mesa e deite-
se.”
Ela parecia querer revirar os olhos, mas pulou, no entanto, atlética
como um gafanhoto, e se acalmou, fechando os olhos e suspirando

630
No original “And The Beat Goes on...” Significa, literalmente, ‘ E A Batida Continua...”, batida, nesse
caso, sendo a batida da música ou a batida do coração. Existem algumas músicas com esse nome, as mais
famosos dos anos 60, interpretadas por Sonny and Cher; The Whispers;
1466

de prazer ao sentir a superfície recém-acolchoada.


"Oh Deus. Não tenho uma cama tão macia desde que deixamos
Savannah. Certamente não tão limpa.” Ela se espreguiçou
luxuriosamente, e eu pude ouvir o pop suave de suas vértebras.
"Lorde John manda seu amor, por falar nisso."
"Foi isso que ele disse?" Eu disse, sorrindo enquanto pegava meu
Pinard.
"Não, ele disse algo muito mais elegante, mas foi isso que ele quis
dizer." Ela abriu um olho, me olhando astutamente. “E sua graça o
duque de Pardloe me implorou para transmitir seus cumprimentos
mais profundos. Ele escreveu uma espécie de nota para você”
"Espécie de...?" Eu tinha visto uma ou duas missivas de Hal, no
decorrer do meu breve casamento com John - e eu tinha ouvido
muito mais sobre elas de John. “Ele assinou com seu nome
completo?”
“Sim, mas ele estava muito chateado. Mas você sabe, lábio superior
rígido e tudo isso."
Eu a encarei.
"Chateado? Hal? Sobre o que? Desfaça seus laços.”
"Isso", disse ela, forçando os olhos para baixo do seu nariz
comprido em seus dedos nos laços, "é uma longa estória". Ela
lançou um olhar para mim. “Eu presumo que Pa sabia que William
estava em Savannah quando sugeriu que eu fosse?”
“Lord John mencionou isso, sim, na carta que ele escreveu
convidando você para ir e pintar o retrato daquela mulher da
sociedade. Como isso funcionou, por falar nisso?"
Ela riu.
“Eu vou te contar tudo sobre Angelina Brumby e seu marido mais
tarde,” ela disse. Ela fechou um olho, fixando o outro em mim.
“Não tente mudar o tema. William."
"Você o encontrou?" Eu não conseguia tirar a esperança da minha
voz, e ela abriu os dois olhos.
"Eu encontrei", disse ela, e olhou para baixo enquanto puxava a
última volta de seu laço. “Foi ... muito bom,” ela disse suavemente.
“Ele veio até a casa dos Brumbys - lorde John tinha mandado ele
ver 'a Senhora Pintora'; ele não tinha contado a ele sobre mim
também. O que há com aqueles dois?” ela exigiu de repente,
olhando pra cima. “Pa e Lord John. Por que eles fariam isso? Não
1467

nos falar sobre um ao outro estando em Savannah, quero dizer."


“Timidez”, eu disse, e sorri com um pouco de tristeza. “E ambos
têm uma espécie de delicadeza - embora você possa não pensar
nisso. Eles não queriam colocar nenhum fardo de expectativas em
você ou em William ” E Jamie, pelo menos, temia muito que seus
filhos não gostassem um do outro, e seu desejo que gostassem era
importante demais para falar, até mesmo para mim.
“Eles tinham boas intenções,” eu disse confortavelmente. "Como
está William?"
O prazer subjacente em seu rosto por estar em casa não diminuiu,
mas ela balançou a cabeça com uma pequena carranca de simpatia.
“Pobre William. Ele é um homem tão bom, mas meu Deus! Como
é que alguém tão jovem consegue ter uma vida tão complicada? ”
"Sua vida não era tão simples nos seus vinte e poucos anos, se bem
me lembro ..." desamarrei a fita de sua chemise e coloquei o sino
chato do Pinard contra o peito dela. “Péssima escolha de pais, eu
espero. Respire fundo, querida, e segure isto."
Ela obedeceu e eu escutei. Escutei de novo, mexi no Pinard, escutei
... Lub-DUB, lub-DUB, lub-DUB ... Regular como um metrônomo
e um som forte, bom. Coloquei a mão em seu plexo solar, sentindo
o pulso abdominal, apenas no caso, mas isso era tão forte, a carne
firme de sua barriga saltando um pouco sob meus dedos a cada
batida.
"Tudo parece bem", eu disse, olhando para cima - e olhei para seu
rosto e vi como ela estava linda neste instante. Casa. Segura. Viva.
"Você está bem, mamãe?" disse ela, olhando para mim com
desconfiança, porque meus olhos ficaram ligeiramente úmidos.
“Certamente,” eu disse, e limpei minha garganta. “Você teve
muitos problemas com a fibrilação?”
"Não", disse ela, parecendo um pouco surpresa. “Aconteceu duas
ou três vezes no caminho para Charleston, e uma ou duas vezes
enquanto estávamos lá. Apenas duas vezes em Savannah, pelo
menos ruim o suficiente para que eu percebesse. Mas eu não acho
que aconteceu mesmo - ou se aconteceu, apenas por alguns
segundos - na viagem de volta.”
“Eu continuei usando a casca do salgueiro”, ela me assegurou. “Só
depois de um tempo, eu comecei a moer as folhas e a fazer pílulas
com queijo, porque o chá me fazia fazer xixi todo o tempo, e eu
1468

não conseguia parar de pintar cada quinze minutos para ir encontrar


um penico. Eu não acho que o queijo iria neutralizar a casca do
salgueiro, não é? "
“Não,” eu disse, rindo. “Parabéns, você inventou a primeira
aspirina com sabor de queijo do mundo. Elas não perturbaram seu
estômago? "
Ela balançou a cabeça e puxou a gola de sua camisola.
"Não, mas achei que o queijo pode tamponar o ácido - eles não
dizem às pessoas com úlceras para beber leite?”
“Sim, isso ou um antiácido. O mel, na verdade, funciona muito bem
para ... ”Eu parei abruptamente.
Ela tinha acabado de amarrar a fita de sua chemise e eu estendi a
mão para entregar os cadarços a ela, mas minha mão esquerda
ainda estava descansando em seu abdômen, um pouco mais abaixo.
E eu ainda estava sentindo os batimentos cardíacos.
Um batimento cardíaco fraco e rápido. Minúsculo, ocupado e muito
forte. LubdubLubdubLubdub…
“Mamãe? O que está errado?" Bree sentou-se alarmada. Tudo que
eu pude fazer foi balançar minha cabeça para ela.
“Bem-vindo ao lar”, consegui dizer ao mais novo residente de
Ridge.
E então eu comecei a chorar.

-.-.-

EM MEIO À AGITAÇÃO de regozijo geral com as notícias da


gravidez de Brianna e a agitação de reorganizar a população da casa
– os Hardmans assumiram o terceiro andar semi-acabado, pregando
lonas sobre as janelas para impedir a entrada da chuva, e Roger e
Brianna mudarem-se para o quarto normal; Fanny e Agnes, sendo
agora mulheres, receberam seu próprio quarto no sótão para
privacidade, mas continuaram a dormir em montes despreocupados
com as crianças mais novas, assim como as meninas Hardman - foi
algum tempo antes que eu lembrei da nota que Brianna tinha me
dado.
Eu a enfiei no bolso do avental que estava usando no momento e
encontrei a nota vários dias depois, quando decidi que o avental
estava realmente muito sujo para ser considerado higiênico e
1469

precisava ser lavado.


A nota emergiu - um pequeno bloco de papel primorosamente
dobrado, com um cisne voando em uma lua cheia estampado na
cera que o selou. Era endereçado do lado de fora à Sra. James
Fraser, Fraser's Ridge, North Carolina, mas fiel à descrição de
John dos hábitos de correspondência de Hal, não tinha nenhuma
saudação e uma mensagem consistindo em pouco menos palavras
do que eram estritamente necessárias. Ele tinha assinado, no
entanto.

Eu não sei o que você e meu irmão fizeram um ao outro, mas


evidentemente, você são um pouco mais do que amigos. Se eu não
voltar do que estou prestes a fazer, por favor, cuide dele.
PostScriptum: Você pode me recomendar alguma preparação à
base de ervas de natureza letal? Para envenenar ratos.
Harold, duque de Pardloe

Havia um grande H abaixo disso, provavelmente no caso de eu não


reconhecê-lo por seu título. Coloquei o papel cuidadosamente em
cima da torta, onde poderia olhar fixamente enquanto amassava o
pão.
Eu queria rir, e sorri - mas era um sorriso nervoso. Para
envenenamento de ratos, com certeza ... Pelo que eu sabia sobre a
personalidade de Hal, ele poderia estar planejando assassinato,
suicídio ou a extirpação real de roedores em seu porão. Quanto ao
que ele estava prestes a fazer ...
"A mente confunde", eu disse, baixinho, e bati a massa na mesa de
trabalho enfarinhada, dobrando e socando em uma bola nova. Eu
coloquei-a de volta na tigela e cobri-a com um pano úmido, em
seguida, levantei-me dali como uma galinha estupefata, piscando
para ela e me perguntando o que diabos os irmãos Grey estavam
aprontando. Eu balancei minha cabeça, coloquei a tigela na
pequena prateleira perto da chaminé, e deixei o pão crescendo
enquanto eu descia o corredor para o escritório de Jamie.
"Você tem uma folha de papel e uma pena decente?" Eu perguntei.
"Sim, aqui." Ele estava recostado na cadeira, a testa franzida em
reflexão, mas se inclinou para frente para tirar uma pena do frasco
em sua mesa e entregou-me uma folha de papel comum de Bree.
1470

Peguei com um aceno de agradecimento e, ao lado de sua mesa,


escrevi:

Para Harold, duque de Pardloe


Coronel, 46º Regimento de Infantaria
Savannah, Georgia
Caro Hal—
Sim. Folhas de dedaleira. Amasse e faça um chá forte, ou apenas
coloque na salada e convide os ratos para jantar.
Sua antiga cunhada,
C.
PostScriptum: Não é uma boa maneira de morrer, mesmo para um
rato. Tiro é muito mais eficiente.
Jamie estava me observando escrever, lendo a mensagem de cabeça
para baixo sem dificuldade, e olhei para cima com as sobrancelhas
levantadas quando terminei e acenei a nota no ar para secá-la. Eu a
coloquei de lado e coloquei a nota de Hal ao lado dele, em frente a
ele.
As sobrancelhas não baixaram enquanto ele lia. Ele olhou para
mim.
“É para ser uma piada”, eu disse. "A parte sobre as dedaleiras,
quero dizer."
Ele fez um ruído escocês contido e empurrou as notas de volta para
mim.
“Talvez você esteja brincando, Sassenach - mas ele não está. Seja
o que for que ele disse para você.”
1471

124

A PRIMEIRA VEZ QUE VI SEU ROSTO631

Savannah
5 de maio de 1780

Do Capitão M.A. Stubbs, Exército de Sua Majestade, Apos.


Para o Sr. John Cinnamon

Meu caro Sr. Cinnamon,


Não posso dizer com que emoção vi seu retrato. De fato, meu
peito está tão animado com o sentimento que acho que meu
coração vai explodir, entre as pressões da culpa e da alegria, mas
eu agradeço do fundo deste coração esquálido por sua ação
galante e a Coragem que deve estar por trás disso.
Deixe-me primeiro implorar seu perdão, embora eu não o
mereça. Eu estava gravemente ferido em Quebec e incapaz de
cuidar de meus próprios assuntos por alguns meses, altura em que
fui mandado de volta para a Inglaterra. Eu deveria ter feito
perguntas sobre sua mãe, e feito algumas Provisões para vocês
dois. Eu não fiz. Eu preferiria pensar que foi apenas o choque e a
deficiência que me impediram de cumprir este dever, mas a
verdade é que escolhi esquecer, por Egoísmo e Preguiça. Eu não
sou um bom Homem. Eu sinto muito por isso.
E deixe-me a seguir - assumindo que seu perdão seja
concedido – implorar que você venha para mim. Estou surpreso
com o que a força do sentimento causou-me pela visão do seu
rosto, capturado em tela e tintas, e ainda mais pela necessidade
que tem crescido em mim de ver o teu rosto verdadeiramente diante
de mim. Só espero que você também goste de ver o meu.
631
No original, “The First Time Ever I Saw Your Face”. É o título de uma música folk de 1957, escrita
por Ewan MacColl para Peggy Seeder, enquanto ele ainda era casado com sua segunda esposa. A música
ganhou diversas gravações, mas tornou-se conhecida internacionalmente na interpretação de Roberta
Flack (1969).
1472

Se você vai me perdoar e vir, enviei instruções para lorde John


Grey, que providenciará a sua passagem para Londres e fornecerá
fundos para sua viagem
Eu sou, senhor, seu mais humilde e obediente servo - e seu pai,

Malcolm Armistead Stubbs, esc.632


PostScriptum: Seu nome é Michel. Sua mãe tinha um medalhão,
dado a ela por sua avó francesa, com a imagem de Miguel, o
Arcanjo e elas desejavam que você tivesse a proteção dele.

10 de maio de 1780
Savannah

ERA UM DIA TORMENTOSO e frio no cais, com forte vento


chicoteando espumas no rio e inclinado a chicotear os chapéus
também. O navio estava quase terminando de carregar - sua última
carga, com destino aos porões do transporte do exército Hermione,
esperando ancorado.
"Você já esteve em um navio?" William perguntou de repente.
"Não. Apenas canoas.” Cinnamon estava se contorcendo como um
cavalo nervoso, pronto para disparar. "Como é?"
"Emocionante, às vezes", disse William, no que esperava ser um
tom de segurança. “Principalmente chato, no entanto. Aqui, eu
trouxe um presente de despedida” Ele enfiou a mão no bolso do
casaco e tirou um pequeno frasco de líquido turvo e um frasco
menor com um conta-gotas.
“Apenas por prevenção,” ele disse a Cinnamon, entregando-os.
“picles de pepino e éter. Em caso de enjôo.”
Cinnamon olhou para os presentes em dúvida, mas acenou com a
cabeça.
“Você chupa picles se sentir enjôo”, explicou William. “Se isso não
funcionar, tome seis gotas de éter. Você pode colocar na cerveja,
se quiser,” ele adicionou prestativamente.
"Obrigado." O vento restaurou o brilho avermelhado usual de
Cinnamon. "Obrigado", disse ele novamente, e agarrou a mão de

632
Escudeiro
1473

William em um aperto de seriedade esmagadora. "E diga a sua irmã


- quanto ... quanto ..." a maré de emoção crescente o sufocou, e ele
balançou a cabeça e torceu a mão de William mais forte.
"Você disse a ela", disse William, liberando a mão e reprimindo o
desejo para contar os dedos. “Ela ficou feliz em fazer isso. Ela está
feliz por você. Então também estou,”ele acrescentou, dando um
tapinha afetuoso em Cinnamon no antebraço, para evitar ser
agarrado novamente apesar da afeição muito real que sentia. “Vou
sentir saudades de você, você sabe,”ele acrescentou timidamente.
Ele sentiria, e a compreensão disso o atingiu como um golpe atrás
da orelha. Ele pareceu vazio de repente, mas não conseguia pensar
em mais nada para dizer.
"Moi, aussi633", disse Cinnamon, e olhou para suas novas botas,
pigarreando.
"Todos a bordo!" O tenente da Marinha que comandava o navio
estava gritando para eles. " Agora, senhores!"
William pegou a mala nova - um presente de lorde John – e enfiou
na mão de Cinnamon.
"Vá", disse ele, sorrindo tão forte quanto podia. “Escreva-me de
Londres!”
Cinnamon acenou com a cabeça, sem palavras, então, um outro
grito irado do navio, virou-se e arrastou-se cegamente a bordo. As
velas do navio caíram e se encheram de uma vez, e em um minuto,
eles estavam no meio do rio, voando em direção ao futuro
desconhecido. William observou o pequeno navio sair de visão,
depois voltou para a Bay Street com um suspiro, sua sensação de
perda tingida de inveja.
“Au revoir, Michel”634 , disse ele, baixinho. “Agora com quem eu
vou conversar?"

633
“Eu também”, em francês.
634
“Até logo, até a vista”, em francês
1474

125

UMA MULHER DO SEGUNDO TIPO

Savannah

ASSIM QUE CINNAMMON SE FOI, William mudou-se da


pequena casa que eles haviam compartilhado para a casa de lorde
John, a convite de seu pai. Amaranthus, lorde John disse com
firmeza, precisa de companhia.
“Ela não aceita convites”, ele disse a William, “e só sai de vez em
quando para as lojas—”
"Ela deve estar desanimada", disse William. Ele quis dizer isso de
brincadeira, mas a maneira como seu pai o encarou fez com que ele
se sentisse envergonhado. "Certamente você disse a ela que
ninguém sabe? "
“Claro que sim,” lorde John disse impaciente. “Hal também, com
uma quantidade surpreendente de delicadeza. Ela apenas abaixa a
cabeça e diz que não pode suportar ser vista. 'Em exibição' foi a
maneira bastante estranha que ela colocou.”
“Oh,” disse William, um tanto esclarecido. "Bem, isso faz mais
sentido”
“Faz?"
"Bem", disse William, um pouco sem jeito, "como uma jovem
viúva, e a mãe do herdeiro ao título do tio Hal ... ela atrairia - Quer
dizer, ela atraiu uma boa quantidade de ... interesse? Em festas e
jantares e esse tipo de coisa, quero dizer. "
“E gostou muito de tanto interesse, pelo que pude ver”, seu pai
observou cinicamente, dando-lhe um olhar de soslaio.
"Bastante." William se virou de lado, pegando e fingindo examinar
um Prato Meissen635 do aparador. "Mas agora ela foi ... er ...

635
Por séculos, desde a época de Cristo, os chineses conheciam a fórmula para a fabricação da porcelana,
um verdadeiro “ouro branco” que conquistava o mundo, no lugar da cerâmica fosca, terrosa e frágil. A
paixão e a obsessão de Augusto, o Forte, o príncipe-eleitor do Reino da Saxônia (hoje Alemanha) fez com
que alquimistas contratados por ele descobrissem a fórmula e criaram em Meissen, uma pequena cidade
próxima a Dresden, a primeira fábrica a produzir porcelana na Europa em 1708. Portanto, um prato de
porcelana dessa fábrica devia custar um valor bem elevado.
1475

exposta, então falar ... mesmo que apenas entre nós ...” Ele tossiu.
“Eu acho que talvez ela sinta que não pode representar o papel de
uma bela jovem viúva e, um ... "
"Ela se sentiria meio consciente, flertando com jovens cabeças-
duras, sabendo que nem mesmo Hal nem eu estivéssemos
presentes, provavelmente ouviríamos sobre isto. Hmm." Lorde
John pareceu achar isso duvidoso, mas plausível. Depois ele fez a
próxima - inevitável, William supôs - dedução.
"Afinal, o que ela faria se um dos jovens brilhantes faiscassem em
fogo e pedissem a mão dela? " Lorde John franziu a testa, a próxima
coisa que lhe ocorreu. Ele olhou rapidamente por cima do ombro,
então aproximou-se de William e baixou a voz.
“O que ela teria feito se isso acontecesse e não soubéssemos a
verdade?"
William encolheu os ombros e estendeu as mãos em uma afetação
de completa ignorância.
“Deus sabe”, disse ele, com toda a verdade. "Mas não mudou."
Lorde John parecia querer dizer outra coisa, mas em vez disso
apenas balançou a cabeça e moveu o prato cinco centímetros, de
volta em sua posição exata.
"Talvez ela pudesse ir a almoços, ou festas de chá, ou – bordados ”
William arriscou. "Coisas apenas com mulheres, quero dizer."
Seu pai riu brevemente. “Existem dois tipos de mulheres no
mundo,” ele disse. “Aquelas que gostam da companhia de mulheres
e aquelas que preferem a companhia de homens. Por uma razão ou
outra ", acrescentou ele," não tem a ver com luxúria ou casamento”
"E você insinua que Amaranthus não é do primeiro tipo."
"William, é suficientemente óbvio e até você notou, e garanto-lhe
que as outras mulheres também. Mulheres do primeiro tipo não
gostam de mulheres do segundo tipo, especialmente se a mulher do
segundo tipo for jovem, bonita e possuidora de charme ou
dinheiro.” Ele passou a mão por seu cabelo, ainda espesso e loiro,
embora exibindo vestígios de branco perto de seu rosto. “Suponho
que poderia implorar à Sra. Holmes ou Lady Prévost que
convidassem Amaranthus para uma festa de despedida de solteira
de algum tipo, mas duvido muito que ela vá”.
"E mesmo sabendo o que você sabe", disse William, muito
suavemente, "você gosta dela e se preocupa que ela esteja solitária.
1476

Afinal, a situação não é culpa dela.”


Seu pai suspirou profundamente. Ele estava parecendo bastante
desgrenhado e um fraco cheiro de leite azedo pairava sobre ele,
provavelmente conectado à mancha esbranquiçada em sua manga
cor de carvão. Trevor tinha sido desmamado, mas ainda não havia
dominado os mistérios de beber em um copo.
“Você precisa de uma babá”, disse William.
“Sim, eu preciso,” seu pai disse prontamente. "Você."

-.-.-

ELE NÃO PODERIA DIZER que estava arrependido por estar de


volta na Rua Oglethorpe . O tempo de solteiro morando com John
Cinnamon tinha sido agradável o suficiente, e foi bom ter um
amigo sempre por perto, para compartilhar o que quer que
aparecesse. Mas ele estava feliz - embora um pouco ansioso - por
Cinnamon. A pequena casa que eles tinham compartilhado na beira
do pântano parecia úmida e desolada, e seu espírito afundou
quando o sol se pôs, deixando-o sozinho nas sombras com o cheiro
de lama e peixes mortos. Foi bom agora, acordar de manhã para a
luz do sol e os ruídos das pessoas na casa.
E então havia a comida. Seja qual for a intransigência de Moira
com relação aos tomates grelhados, a mulher era uma fênix com
peixe, marisco, e crocodilo assado com molho de damasco. Ela
tinha mesmo - com um pouco de persuasão e o presente de uma
garrafa de bom conhaque - permitido que Lord John a ensinasse a
fazer Batatas Dauphinoise.
E então havia Amaranthus.
Ele viu imediatamente o que lorde John quis dizer: ela estava
deprimida, trabalhando o bordado com os olhos baixos, só falando
quando alguém falava com ela. Educada, sempre, mas sempre
distante, como se seus pensamentos estivessem em outro lugar.
Provavelmente em New Jersey, ele pensou, e ficou surpreso ao
sentir uma espécie de simpatia por ela. Realmente não foi culpa
dela.
William se propôs a trazê-la de volta à sociedade cordial e, no
processo, descobriu que algumas partes de seu próprio personagem
que ele havia deixado de lado ao longo do ano passado não estavam
1477

de fato mortos. Ele estava começando a sonhar à noite - com a


Inglaterra.
Eles jogavam jogos à noite. Xadrez, damas, gamão, dominó ... se
Hal ou outra pessoa estivesse lá para jantar, eles jogavam uíste ou
poker, e todos os três homens sorriam ao ver Amaranthus acesa no
fogo da concorrência; ela era uma jogadora de cartas implacável e
jogava xadrez como um gato, olhos mutáveis fixos no tabuleiro
como se as peças de xadrez fossem ratos, e a cauda imaginária
balançando suavemente para lá e para cá atrás do ombro, até que
ela levantasse e mostrasse seus dentes brancos.
Ainda assim, a sensação de apenas passar o tempo era ligeiramente
opressiva. Toda a cidade estava permeada por uma atmosfera
semelhante, embora a sensação de atividade suspensa tivesse uma
razão profunda e urgente. Com os navios franceses partindo,
Lincoln e os americanos se retirando para Charles Town, Savannah
tentava juntar os pedaços: casas destruídas por canhões tinham
sido reparadas o mais rápido possível, mas com a primavera veio
tinta fresca, e os brilhantes rosas, amarelos e azuis da cidade
floresceram novamente.
Os abatis e redutos fora da cidade permaneceram, embora o
inverno, as tempestades e as marés altas tenham erodido as defesas
mais distantes. Os restos do acampamento americano tinham
praticamente desaparecido até agora, carregados por escravos e
aprendizes.
Mas se o pensamento de Benjamin em New Jersey estava sob a
compostura externa de Amaranthus, o pensamento de Charles
Town estava aberto e constantemente nas mentes do quartel de
Savannah.
Os despachos chegavam frequentemente, com notícias de New
York e Rhode Island, onde Sir Henry Clinton estava preparando
suas tropas para uma viagem. Hal sendo quem ele era, e John sendo
não apenas seu irmão, mas também seu tenente-coronel, a família
estava bem ciente da intenção do General Clinton de atacar Charles
Town assim que o tempo permitisse tal aventura.
Ao longo de todo o mês de abril, os despachos chegaram por navio
e por cavaleiros, em uma crescente onda de excitação e intensidade.
Conforme o cerco progredia, tio Hal caminhava de um lado para
outro fora de sua casa, incapaz de suportar o confinamento, mas
1478

não querendo sair, e chegarem notícias em sua ausência


momentânea.
“É altamente improvável que precisemos mover mais homens para
CharlesTown”, Lorde John disse a William, que tinha acabado de
comparar seu tio a um gata grávida prestes a dar à luz gatinhos.
“Clinton tem muitos homens e artilharia, ele tem Cornwallis, e
quaisquer que sejam seus outros defeitos, o exército britânico sabe
como conduzir um cerco. Ainda assim, se - ou melhor, quando - a
cidade cair podemos ser convocados e, se for o caso, será com
muita pressa. Mas as chances são de que ficaremos aqui esfriando
nossos calcanhares ", acrescentou ele em advertência, vendo o
olhar ansioso no rosto de William. Ele fez uma pausa pensativa, no
entanto, olhando para seu filho.
“Você pensaria em assumir uma comissão, caso isso aconteça?” ele
perguntou.
O primeiro impulso de William foi dizer sim, é claro, e estava claro
que seu pai viu isso, pois enquanto lorde John tinha feito o seu
melhor para evitar dizer qualquer coisa para William em relação ao
seu futuro, a menção de uma comissão tinha trazido um leve brilho
de esperança ao rosto de seu pai.
William respirou fundo, entretanto, e balançou a cabeça.
“Não sei”, disse ele. "Vou pensar sobre isso."

-.-.-

SAVANNAH estava florescendo, as praças e ruas graciosas


cobertas com pétalas de magnólia e flores de azaleia caídas,
gardênias, jasmim e glicínias perfumando o ar e encantando os
olhos. A casa de lorde John, aconchegante e quente durante o
inverno, parecia repentinamente confinada e insuportavelmente
abafada.
William convenceu Amaranthus a sair com ele para um passeio,
para aproveitar o ar da manhã e a brisa refrescante do mar. E ela
parecia ter gostado; sua cabeça ergueu-se com orgulho e ela chegou
a acenar com a cabeça agradavelmente para as senhoras que ela
conhecia - a maioria das quais se curvou ou acenou com a cabeça
graciosamente de volta. William sorriu e curvou-se também,
embora tenha visto os olhares especulativos nos rostos sob os
1479

largos chapéus de palha e gorros rendados. Alguns lábios franzidos


e olhares de esguelha também.
"Elas estão decepcionadas", Amaranthus comentou, soando
suavemente divertida. "Elas acham que eu te seduzi."
"Deixe-as", respondeu William, dando um tapinha breve na mão
que ela colocou na dobra de seu braço. “Embora se você desdenhar
de exibir sua captura em público, poderíamos caminhar até a
praia.”
Eles pararam no topo dos degraus de pedra que desciam para a água
no fim da Bay Street e tiraram os sapatos e as meias; a pedra era
molhada e escorregadia, mas era maravilhoso nas solas dos pés
descalços de William. A areia parecia ainda melhor, e soltando a
mão de Amaranthus, ele tirou o casaco e correu, bem longe na
praia, os joelhos desafivelados de suas calças batendo asas e
pássaros marinhos gritando acima.
Ele voltou estupefato e feliz, ao descobrir que ela havia tirado o
chapéu e a touca, soltado o cabelo, e estava dançando na areia,
fazendo uma reverência para um amante invisível, girando para
longe e para trás novamente, mão estendida.
Ele riu e, vindo por trás, pegou a mão dela, virou-a em direção a
ele, curvou-se e beijou-lhe os nós dos dedos. Ela riu também, e eles
passearam lentamente pela praia, a areia úmida subindo entre seus
dedos dos pés. Eles não se falavam desde que chegaram à praia, e
parecia que não havia necessidade. Havia algumas pessoas na
praia, pescadores, mulheres pescando camarões em águas rasas ou
cavando mariscos ou desocupados como eles. Ninguém deu a eles
mais do que um olhar casual. Por consentimento tácito, eles
voltaram e se afastaram da cidade, atravessaram a grama e subiram
o rio, passando por um resto de lona semienterrada, uma vez uma
tenda do exército, agora à deriva balançando ao vento.
Por fim, eles pararam, sabendo que tinham avançado o suficiente,
e permaneceram por algum tempo observando os barcos de pesca
e barcaças descendo o rio e barcos a remo e pequenas embarcações
cruzando para o outro lado, onde alguns armazéns esperavam as
mercadorias que carregavam.
Amaranthus suspirou, e William pensou que havia algo
melancólico em seu rosto, como se também desejasse poder
navegar livremente na água.
1480

“Você poderia se divorciar, sabe”, ele desabafou.


Ela virou a cabeça bruscamente, o corpo ficou tenso e olhou para
ele de cima a baixo, como que para determinar se esta era uma
tentativa inoportuna de humor. Concluindo que não era, ela relaxou
os ombros e disse apenas: "Não, eu não poderia ”, no tom paciente
que alguém pode usar para dizer a uma criança por que ela não
deveria colocar a mão no fogo.
“Certamente - bem, quase certamente,” ele se corrigiu, “você
poderia. Eu - tenho pensado que devo voltar para a Inglaterra em
breve. Lidar com coisas. Você poderia viajar comigo, sob minha
proteção. Ben não é um duque ainda, mas ele ainda é um nobre.
Isso significa que o divórcio teria que ser concedido pela Câmara
dos Lordes - e eles fariam isso em um piscar de olhos, assim que
ouvissem sobre o general Bleeker. Mera infidelidade é uma coisa;
traição é outra completamente diferente.”
Suas narinas embranqueceram, mas ela se controlou.
“Isso é exatamente o que quero dizer, William. Você acha que eu
não pensei em divórcio? Quão desmiolada você acha que sou? "
Não houve uma boa resposta para essa pergunta, e ele sabiamente
não tentou.
“O que você quer dizer com 'exatamente' então?” ele perguntou em
vez disso.
"Quero dizer traição", disse ela, exasperada. “O que mais eu
poderia dizer? Como você diz, se eu fosse solicitar o divórcio à
Câmara dos Lordes com base em que Ben me abandonou, não por
uma vagabunda, mas pelo General Washington, eles concederiam
em um piscar de olhos, se eu pudesse provar, e eu acho que você
viria e testemunharia, se necessário, William.” Ela deu a ele meio
que um sorriso triste antes de voltar ao seu argumento. “E os
jornais, jornais e todos os salões de Londres iriam ficar agitados
por semanas - não, meses! - sobre isso. O que isso faria com o seu
tio? Com sua esposa? Seu irmão? Para os irmãos de Ben e sua
irmã? Como eu poderia fazer isso com eles? " Ela fez um gesto
apaixonado, jogando seus braços em frustração.
“O regimento? Mesmo se o rei não o dissolvesse de uma vez, ele
nunca confiaria no Duque de Pardloe novamente. Nem o exército.”
"Entendo", disse ele rigidamente, após um momento de silêncio.
Ele respirou fundo, e então pegou sua mão, com cuidado. Ela não
1481

empurrou ou deu um tapa nele, embora ela também não


respondesse ao toque dele.
"Eu só quero dizer que não sugeri o divórcio por qualquer motivo
de auto interesse,” ele disse calmamente. "Achei que você pudesse
supor ..."
Ela estava olhando fixamente para a água, mas virou-se e encontrou
seus olhos, seu olhar direto e sério, olhos cinzentos como o céu
nublado. “Eu poderia,” ela disse suavemente. Ela estava perto o
suficiente para que suas saias, movendo-se com a brisa, batessem
em suas panturrilhas nuas e beijando os nós de seus dedos
levemente ela soltou sua mão.
“Nós deveríamos—” ela começou, mas então parou de repente,
olhando. "O que é isso?"
Ele se virou para olhar e viu um cúter naval, bandeira voando ao
vento, rasgando rio abaixo na direção deles. Ao passar, ele pegou
um flash de uniformes de exército a bordo.
“Notícias”, disse ele. “De Charles Town. Vamos lá!
-.-.-

ELES VIRAM o cúter no cais enquanto corriam de volta, depois


um pequeno grupo de oficiais do exército e da marinha escalando
laboriosamente a pedra escorregadia da escada para Bay Street.
William inflou os pulmões e berrou: "Charles Town caiu?" A
maioria dos oficiais o ignorou, mas um jovem alferes atrás do fim
do grupo se virou e gritou: "Sim!" com um semblante radiante. O
jovem foi agarrado às pressas pelo braço e arrastado, mas o grupo
estava claramente com pressa demais para perder tempo com uma
repreensão oficial.
"Oh, meu Deus." Amaranthus estava ofegante, pressionando a
palma da mão em seu espartilho. William tinha se esquecido dela,
na emoção, mas tirou os sapatos e as meias de sua mão e pediu-lhe
que se sentasse e deixasse ajudá-la a calçá-los.
Ela obedeceu e riu em pequenos jorros sem fôlego.
"Mesmo. William. O que você acha de mim? Uma ... égua? "
"Não. Certamente não. Uma potranca, talvez.” Ele sorriu para ela
e puxou a última meia até o joelho. Ele teve que deixar os botões
do sapato desabotoados, não tendo nenhum botão e nenhuma pista
de como usar um se ele tivesse, mas ele amarrou as ligas vivamente
1482

e ela poderia pelo menos andar.


“Eles devem ter ido para a sede de Prévost”, disse ele, enquanto
eles chegavam à rua Oglethorpe. “Eu vou te levar para a casa do
papai, então eu irei saber os detalhes”
"Volte assim que puder", disse ela. Ela foi levada pelo vento e
ofegando, com manchas vermelhas nas bochechas de trotar sobre
os paralelepípedos. "Por favor, William."
Ele acenou com a cabeça e, deixando-a no portão, caminhou na
direção da Sede do General Prévost.
Quando ele voltou, era bem depois da hora do chá, mas Moira e
Amaranthus e a nova governanta de Lord John, uma mulher alta e
irritável chamada Miss Crabb, tinham guardado um bolo para ele e
estavam todos esperando impacientes para ouvir as notícias.
"Em parte foram os escravos", explicou William, lambendo uma
migalha do canto de sua boca. “Sir Henry já havia feito uma
proclamação, oferecendo liberdade a qualquer escravo de um
americano rebelde que quisesse escolher lutar pelo exército
britânico - e quando isso foi reiterado para o campo em torno de
Charles Town, houve uma grande quantidade de homens de ambos,
campo e cidade. E como estes eram homens com um forte
conhecimento do terreno, como você diria ...”
Moira tornou a encher sua xícara de chá, os olhos brilhando sobre
o bule cinza atarracado.
"Você quer dizer que foram os homens negros que se voltaram
contra seus mestres, e foi assim que a cidade caiu? Bom para eles!”
"Sra. O'Meara! ” Miss Crabb exclamou. "Você não pode estar
falando sério!"
"O diabo que não," Moira respondeu vigorosamente, colocando o
pote de volta na mesa com tanta força que o chá espirrou no pano.
"E você diria o mesmo, se você já tivesse tido um contrato de
servidão, como eu. Morte aos mestres, digo eu! ”
Amaranthus soltou uma risada chocada e tentou transformá-la em
uma tosse enterrando o rosto em um lenço.
"Bem, eu suponho que Lord Cornwallis e seus regulares tenham
dado alguma mão na rendição ", disse William, mantendo seu
semblante com alguma dificuldade. "Ele liderou suas tropas para o
continente, enquanto Sir Henry estava capturando as ilhas em alto
mar, e sitiando a cidade com canhões e trincheiras. E enquanto tudo
1483

isso estava acontecendo, em meados de abril, Sir Henry enviou dois


de seus oficiais para ocuparem um lugar chamado Monck's Corner.
Banastre Tarleton — Eu o conheço, oficial muito vigoroso - e
Patrick Ferguson. Eles-"
“Você conhece Ban Tarleton?” Amaranthus disse, surpresa. "Eu o
conheço, também. Que engraçado! Eu ... tenho confiança que ele
tenha escapado de um ferimento? "
"Pelo que eu sei, sim", disse William, surpreso também. Ele estava
razoavelmente certo de que nada menos que uma bala de canhão
de perto teria feito um buraco em Tarleton; ele teve uma breve
passagem com o homem - sobre Jane, e o pensamento evocou uma
série de sentimentos com os quais ele não queria lidar. Ele engoliu
o chá e tossiu um pouco. "Eu não ouvi falar de Ferguson – você o
conhece?"
Ele supôs que não era estranho que ela conhecesse. Antes de virar
o casaco, Ben tinha sido um major do exército britânico, e seu
batalhão era - tanto quanto William sabia - ainda com Clinton.
Ela encolheu os ombros um pouco. “Eu conheci o Major Ferguson
uma vez. Uma criatura escocesa pequena e pálida, com um braço
aleijado. Muito intenso, porém, com aquele tipo de olhos pálidos
de groselha.”
“Suponho que sim. Intenso, quero dizer. Sir Henry o enviou para
recrutar Legalistas de uma milícia provincial, e eu entendo que ele
se saiu muito bem. Seus legalistas lutaram com as tropas do Major
Tarleton para tomar Monck's Corner – o que cortou a principal
linha de retirada para os americanos. Então..."
Antes que ele tivesse contado a eles tudo o que tinha ouvido, a mesa
estava um naufrágio de pratos vazios, pires derramados e linhas de
açúcar, pimenta e sal, ilustrando os movimentos do exército de
Clinton.
“E então Charles Town caiu, anteontem,” William terminou,
ligeiramente rouco de falar. “Lincoln se ofereceu para desistir da
cidade três semanas antes, se seus homens pudessem sair ilesos.
Clinton sabia que ele tinha a mão mais forte, porém, e manteve o
bombardeio, até Lincoln finalmente se render incondicionalmente.
Cinco mil homens, eles disseram, todos feitos prisioneiros. Todo
um exército. Tem mais chá, por favor, Moira?”
“Tem,” ela disse, levantando-se pesadamente. “Mas se tivesse que
1484

escolher, filho, eu estaria pegando um bom conhaque. Parece que


tal vitória merece isso. "
Esta sugestão passou por aclamação geral, e quando lorde John
chegou em casa bem depois da meia-noite, não havia mais copos
limpos e sobrou apenas um centímetro de conhaque na última
garrafa.
Lorde John olhou para a confusão de sua sala de estar, encolheu os
ombros, sentou-se, e pegando a garrafa, esvaziou-a.
"Como vai você, papai?" William tinha ficado acordado, deixando
as mulheres tomarem seus caminhos para a cama e sentou-se perto
do fogo, pensando. Compartilhando o brilho geral da vitória, com
certeza, mas com inveja, também, dos homens que ganharam.
Ele sentia falta da camaradagem do exército, mas mais do que isso,
ele sentia falta do senso de propósito compartilhado, o
conhecimento de que ele tinha um papel a desempenhar, as pessoas
que dependiam dele. O exército tinha suas restrições, e não
insignificantes, também - mas, em contraste, sua vida presente era
disforme e faltava... alguma coisa. Tudo.
“Estou bem, Willie”, disse o pai afetuosamente. Lorde John estava
claramente exausto, sustentado principalmente pelo uniforme, mas
claramente de bom humor. "Eu vou te contar tudo amanhã”
"Sim, claro." William se levantou e, vendo seu pai colocar seus pés
diante dele, mas depois hesitar como se não tivesse certeza do que
viria a seguir, sorriu e curvou-se para tirar lorde John da cadeira.
Ele segurou o braço de seu pai por um momento, para ter certeza
de que ele estava firme e sentiu o calor sólido de seu corpo, sentiu
o cheiro de um homem, um soldado, suor e aço, lã vermelha e
couro.
“Você perguntou se eu poderia considerar comprar uma comissão”,
William disse abruptamente, surpreendendo a si mesmo.
"Eu perguntei." Lord John estava cambaleando um pouco -
claramente a polegada do conhaque que acabara de consumir era
apenas a cereja do bolo de sua noite, mas seus olhos estavam claros,
embora injetados, e encontraram os de William com uma
aprovação interrogativa.
"Você deve ter certeza, no entanto."
"Eu sei", disse William. "Estou apenas pensando."
“Não é uma hora ruim para voltar”, disse seu pai judiciosamente.
1485

"Você quer entrar antes que a diversão acabe, quero dizer.


Cornwallis diz que os americanos não vão chegar até o último
inverno. Tenha isso em mente.”
“Eu terei,” disse William, sorrindo. Seu próprio nível de
embriaguez não estava muito abaixo de seu pai e ele sentiu uma
benevolência calorosa pelo exército, Inglaterra, e até mesmo o
senhor Cornwallis, embora ele normalmente considerasse que o
cavalheiro era um idiota enfadonho." Boa noite, papai."
"Boa noite, Willie."
-.-.-

O COMEÇO DE uma batalha é geralmente muito melhor definido


do que o seu fim e embora Charles Town tenha acabado com uma
rendição formal e incondicional, o rescaldo foi, como de costume,
longo, prolongado, complicado e confuso.
A enxurrada de despachos não diminuiu, embora a proporção de
excitação para o tédio tenha caído consideravelmente. Mais partes
da guarnição de Savannah foram, na verdade, divididas e enviadas
para o norte, mas para guardar prisioneiros e escoltá-los até prisões
ou outros quartéis insalubres, ao invés de se juntar a gloriosas
batalhas.
“Pelo menos no final do nosso cerco, Lincoln levou seu exército
com ele,” William comentou com seu pai e tio. "Menos para
arrumar, quero dizer."
"Levou-os para o norte para que Cornwallis pudesse ensacar todos
eles, você quer dizer."
Tio Hal estava inclinado a ser mal-humorado, mas William tinha
estado por perto de soldados durante a maior parte de sua vida e
reconhecia o veneno lento minando a natureza da tensão que não
poderia ser descarregada em um bom combate, resultando em
irritação e descontentamento.
"Pelo menos Ben não estava lá", acrescentou o tio Hal, em um tom
que fez Papa olhar atentamente para ele. "Me poupou de ter que
atirar nele para impedi-lo de ser enforcado.” Um canto de sua boca
se ergueu, em uma aparente tentativa de fazer isso soar como uma
piada. Nem seu irmão nem seu sobrinho foram enganados.
Um suspiro abafado vindo da porta fez os três homens olharem em
volta para ver Amaranthus em sua jaqueta de chita e chapéu de
1486

palha, ela tendo evidentemente estado fora. Ela tinha uma mão
pressionada sobre a boca, para evitar dizer o que quer que ela
estivesse pensando, ou talvez para não vomitar, William pensou.
Ela estava branca como uma das estatuetas de porcelana de lorde
John, e William se moveu para segurá-la pelo braço, caso ela
estivesse prestes a desmaiar.
Ela tirou a mão da boca e o deixou conduzi-la para uma cadeira,
dando ao tio Hal um olhar horrorizado enquanto ela se afastava.
Ele ficou vermelho opaco e pigarreou com um forte harumph.
"Eu não quis dizer isso", disse ele, de forma pouco convincente.
Amaranthus respirou por alguns momentos, seu seio agitando as
dobras de seu fichu azul-claro. Ela balançou a cabeça ligeiramente,
como se rejeitasse o conselho de um anjo em seu ombro, e cerrou
as mãos enluvadas sobre seus joelhos.
"Você realmente quer dizer que prefere que ele esteja morto?" ela
disse, em uma voz como vidro cortado. “O fato de ele ser um
traidor é mais importante do que ser seu filho?"
Hal fechou os olhos, seu rosto ficando branco. Lorde John e
William trocaram olhares inquietos, sem saber o que fazer.
Hal fez uma leve careta e abriu os olhos, azul-claros e frios como
o inverno.
“Ele fez sua escolha”, disse ele, falando diretamente a Amaranthus.
“Eu não posso mudar isso. E eu preferia que ele fosse morto de
forma limpa do que capturado e executado como um traidor. Uma
boa morte pode ser a única coisa que eu ainda poderia dar a ele.”
Ele se virou e saiu da sala silenciosamente, não deixando nenhum
som além do assobio das velas acesas atrás dela.

-.-.-

WILLIAM estava se vestindo para descer para o café da manhã,


quando uma batida frenética em sua porta o interrompeu. Ele abriu
e viu a Srta. Crabb em sua capa e com papéis enrolados636,
segurando Trevor, que estava com o rosto vermelho de sofrimento.
"Ela foi embora!" a governanta disse, e empurrou a criança que
uivava em seus braços. “Ele está berrando há quase uma hora, e eu
636
Método antigo para deixar o cabelo cacheado. Tiras de papel eram enroladas em faixas de cabelo, para
dar a eles a aparência de cachos naturais. As mulheres dormiam com eles e os retiravam pela manhã.
1487

não aguento isso, eu realmente não poderia, então desci e encontrei


isso ! ” Ele não tinha mão sobressalente, mas ela acenou com uma
nota dobrada para ele em acusação, em seguida, colocou-o entre
seu peito e Trevor, sem vontade de sofrer seu toque por mais
tempo.
"Er ... você leu?" ele perguntou, o mais educadamente possível,
mudando Trev para um braço para arrancar o bilhete da frente da
camisa.
A governanta inchou como uma galinha raivosa, embora
esquelética.
"Você está me acusando de impertinência, senhor?" ela exigiu,
acima do barulho do lamento de Trevor de
"Mamamamamamamamama!" Então ela olhou para baixo e
percebeu que William, que ainda não havia colocado suas calças,
estava parado ali com a barba por fazer e descalço, com nada além
de sua camisa. Ela engasgou, virou-se e fugiu.
William estava começando a se perguntar se talvez ele não
estivesse de todo acordado e estivesse no meio de um pesadelo,
mas Trevor pôs fim a essa noção mordendo seu braço. Ele ergueu
Trevor em seu ombro, deu um tapinha em suas costas de maneira
profissional, e carregou-o escada abaixo - ainda gritando – em
busca de ajuda.
Ele se sentia estranhamente calmo, do jeito que alguém às vezes
fica durante os pesadelos, meramente observando como coisas
terríveis acontecem.
Ela se foi. Ele não tinha a menor dúvida de que a Srta. Crabb estava
certa. Ele não conseguia ir além do simples fato do
desaparecimento de Amaranthus, no entanto. Ela se foi. A parte de
sua mente capaz de fazer perguntas e especulações estavam ainda
adormecidas ou paralisadas.
Ele empurrou a porta da sala de jantar e entrou. Lorde John estava
sentado à mesa em seu roupão listrado roxo, mergulhando torradas
na gema de um ovo cozido, mas ao ver William e seu fardo, ele
largou o brinde e empurrou sua cadeira para trás.
"O que diabos aconteceu?" ele perguntou bruscamente, vindo para
William no mesmo instante. Ele estendeu a mão para Trevor.
"Onde está Amaranthus?"
"Ela se foi", disse William, e a som das palavras em voz alta abriu
1488

um súbito vazio dentro de seu peito, como se alguém tivesse


retirado seu coração. Ele abriu a mão com cuidado e deixou cair a
nota amassada na mesa. "Ela deixou isso."
"Leia", disse lorde John em seguida. Ele havia enfiado uma torrada
de soldado com ovo637 na boca de Trevor, o silenciando
magicamente, e agora se sentou, equilibrando a criança em seu
joelho.
Caro tio John, William leu, consciente de seu coração batendo
forte nas suas orelhas.

Aflige-me além da medida deixá-lo desse jeito, mas eu não aguento


ficar mais tempo. Eu pensei em dizer que estava saindo para me
afogar nos pântanos, mas não gostaria que Trevor pensasse em
sua mãe como uma suicida - embora eu não devesse me importar
com o sofrimento de sua graça, as dores da consciência fizeram-
me acreditar que ele tenha me levado a tal Expediente.
Eu fiz um arranjo para voltar para a casa do meu pai na Filadélfia.
Deixo meu querido sob seus cuidados, sabendo que ele vai estar
seguro com você. Rasga meu coração deixá-lo, mas a jornada não
é segura. Além disso, Trevor é o herdeiro das propriedades e
títulos de sua graça; ele deve ser educado com o conhecimento de
sua herança e as Responsabilidades que o acompanham. Eu confio
em sua Graça para providenciar isso - Eu confio em você para
fornecer o constante amor e segurança que uma criança requer.
Por favor, acredite que sou grata, além da minha capacidade de
dizer, por toda sua bondade e cuidado comigo e com meu filho.
Vou escrever assim que eu alcançar meu destino.
Vou sentir saudades.
Sinto como se escrevesse esta despedida com o sangue do meu
próprio coração638, mas eu permaneço .
Sua sobrinha Amaranthus, Viscondessa Grey.

637
Uma torrada de soldado é uma fina tira de pão; as tiras em que uma fatia é cortada lembram soldados
em desfile. A torrada é cortada dessa maneira para que possa ser mergulhada em um ovo cozido macio
que teve a parte superior removida.
638
Uma pequena referência ao título do livro 8 e ao bilhete escrito por Jamie com o sangue de Claire.
1489

126

QUANDO VOU DORMIR À NOITE, EU MORRO639

Fraser’s Ridge
18 de junho de 1780

O QUARTO DOS MACKENZIES ESTAVA silencioso; a casa


tinha ido para a cama, e até mesmo Adso, que entrou e se aninhou
no colo de Brianna uma hora atrás, estava roncando em uma
espécie de ronronar sincopado interrompido por pequenos barulhos
de mirp! quando avistava ratos em seus sonhos. O barulho
despertou Roger de seu cochilo; ele ficou deitado de lado,
observando sua esposa através de uma agradável névoa de sono que
o havia deixado, mas não havia ido muito longe.
Como acontece com todas as ruivas, a cor de seu cabelo dependia
da luz em que o viam: marrom na sombra, resplandecente à luz do
sol, e à luz de um fogo de baixa temperatura, uma cascata de cor
mutável, faiscada com fios de ouro. Ela estava escrevendo,
lentamente, levantando sua pena de vez em quando para franzir a
testa para a página em busca de uma palavra, um pensamento. Adso
se mexeu, bocejou e começou a massagear suas coxas e barriga, as
garras pinicando sua camisola e xale. Ela sibilou por entre os dentes
e se afastou da mesa.
“Você deixa algo a desejar como uma musa”, ela sussurrou para o
gato, largando a pena e separando cuidadosamente suas garras. Ela
o pegou no colo, levantou-se e o levou para a cama onde Roger
estava deitado, enrolado na roupa de cama, os olhos quase
fechados. Ela colocou Adso no pé da cama e recuou para assistir.
O gato se espreguiçou luxuriosamente, então - sem abrir os
próprios olhos - deslizou lentamente pela cama e se enrolou no

639
Citação de Mahatma Gandhi: “Each night, when I go to sleep, I die. And the next day, when I wake up,
I am reborn” Toda a noite, quando eu vou dormir, eu morro. E no dia seguinte, quando eu acordo, eu
renasço.
1490

local entre o rosto e o ombro de Roger, ronronando alto.


Roger deslizou a mão por baixo de Adso, levantou-o e deixou-o
cair sem cerimônia no chão.
"Você vem para a cama logo?" ele perguntou sonolento, afastando
os pelos de gato de sua boca.
“Agora mesmo,” ela assegurou. Ela tirou o xale de ombros e o
jogou no chão, onde Adso, que estava piscando de mau humor,
prontamente se apossou do ninho quente assim providenciado e se
acomodou nele, os olhos voltando para fendas em êxtase. Brianna
apagou a vela; Roger ouviu o pequeno respingo de gotas de cera na
mesa.
“Aquele gato parece um barco a motor. Por que ele está aqui,
afinal? Ele não deveria estar no celeiro caçando bichos? " Roger
levantou as mantas e se contorceu para trás, dando-lhe as boas-
vindas. Tinha chovido antes e o frio noturno dela estava delicioso.
Ela se acomodou solidamente em seus braços com um
estremecimento de relaxamento, e sua mão pousou satisfeita em
sua adorável barriga em flor.
“Mamãe diz que os gatos são atraídos por pessoas que trabalham,
então elas podem atrapalhar. Acho que sou a única pessoa na casa
que estava fazendo alguma coisa a esta hora. "
"Mmm." Ele respirou perto de sua orelha. “Você cheira a tinta,
então deve ter escrito, não desenhado. Cartas?"
“Nããão ... apenas, você sabe, pensamentos. Talvez algo para o livro
das crianças, talvez não.” Ela estava tentando soar casual, mas a
menção do Guia Prático para Viajantes do Tempo o despertou
totalmente.
"Oh?" disse ele, cauteloso. “Eu quero saber?”
"Provavelmente não", disse ela com franqueza, "mas gostaria de
contar a você sobre isso. Mas isso pode esperar até de manhã ... ”
“Como se algo como uma conversa coerente acontecesse de manhã
por aqui”, disse ele, e rolou de costas, bocejando. "Tudo bem, me
diga."
"Bem ... você se lembra que eu estava pensando sobre o problema
de massa."
“Vagamente, sim. Mas não me lembro do que você decidiu. "
"Eu não decidi", disse ela com franqueza. “Simplesmente não sei o
suficiente - e há muitos problemas com a hipótese que não tenho
1491

uma maneira de resolver. Mas me fez pensar sobre o que é massa."


"Mmh." Seus olhos estavam fechados, mas sua mão deslizou por
suas costas e a segurou por trás, quente e substancial. Ele balançou
suavemente. "Existe alguma. Tenho certeza de que isso é massa. "
"Sim. Então é isso. " Ela deslizou a mão entre eles e segurou seus
testículos. Levemente, mas o fez abrir os olhos.
"Entendi", disse ele, e moveu a mão para a parte inferior das costas
dela.
"Assim?"
"O que você acha que acontece conosco quando morremos?"
Isso o acordou completamente, embora demorasse um momento
para reunir as palavras.
“Quando morrermos,” ele disse lentamente. “Se você quer dizer em
termos de nossas almas, a verdade básica é que não sabemos, mas
temos fé que continuaremos existindo, e existe uma boa razão para
ter dito fé. Mas não é isso que você quer dizer, é? "

"Não. Quero dizer corpos. Fisicamente."


Ele mudou as engrenagens metafísicas, não sem uma pequena
sensação de choque e trituração.
"Você quer dizer algo diferente de apenas ... hum ...
decomposição?"
"Bem, não, é isso que eu quero dizer, mas meio que ... além de
apodrecer."
Ele rolou para o lado e ela o seguiu, aninhando-se sob seu queixo,
bem como Adso, mas com o cabelo cheirando melhor.
“Além de apodrecer ... esse é o tipo de coisa que te mantém
acordada à noite? Deus, que tipo de sonhos você tem? Você é a
cientista aqui, mas até onde eu sei, o processo simplesmente
continua ... o quê, se dissolvendo? "
"Dissolução. Sim, exatamente."
"Sabe, pessoas normais falam sobre sexo na cama, não é?"
“A maioria delas provavelmente fala sobre as coisas horríveis que
seus filhos fizeram durante o dia, o preço do tabaco ou o que fazer
com a vaca doente. Se elas conseguem ficar acordadas. De
qualquer forma, eu só tive as aulas de física obrigatórias na
faculdade, então isso é bem básico e pode estar completamente
errado, e— ”
1492

“E ninguém jamais será capaz de provar isso de uma forma ou de


outra, então não vamos nos preocupar com essa parte”, sugeriu ele.
"Bom pensamento. E por falar em cheirar...” Ela virou a cabeça e
fungou suavemente em seu pescoço. “Você cheira a pólvora. Você
não tem caçado, não é? " Sua voz continha uma certa incredulidade.
Não sem razão, mas ele estava ligeiramente irritado.
"Não tenho. Seu pai me pediu para mostrar a' chraobh àrd como
carregar seu novo mosquete e disparar sem quebrar os dentes. "
“Cyrus Crombie?” ela disse. "Por que? Papai não o está recrutando
para sua gangue, está? "
“Eu acredito que ‘partisan band’ é o termo adequado,” Roger disse
afetadamente. "E não. Hiram pediu a Jamie para pegar o menino e
ensiná-lo a lutar - com uma arma e um punhal, claro. Ele disse que
se fosse uma questão de punhos, qualquer pescador poderia
derrubar um homem da terra como um peixe chato sem esforço - e
ele provavelmente está certo - mas nenhum do povo de Thurso
jamais havia segurado uma arma antes de vir para cá, e a maioria
deles ainda não segurou. Eles pescam, fazem armadilhas e trocam
por carne.”
"Hum. Você acha que Hiram o forçou, ou foi ideia do próprio
Cyrus? "
"Esta última. Ele está cortejando Frances - de sua própria maneira
inimitável - mas sabe que não tem chance, a menos que seu pai
pense que ele será um bom marido para ela. Então, ele pretende
provar seu valor.”
"Quantos anos tem ele?" Brianna perguntou, uma nota de
preocupação em sua voz.
"Dezesseis, eu acho", disse Roger. "Idade suficiente para lutar, até
certo ponto."
“Até certo ponto,” ela murmurou, bufando um pouco baixinho, e
ele sabia por quê.
"Jemmy não terá idade suficiente para andar com eles antes do fim
da guerra", assegurou-lhe ele. "Não importa o quanto ele seja bom
com uma arma."
"Excelente. Para que ele possa ficar e proteger as muralhas aqui
comigo, Rachel, e tia Jenny e o Sachem, enquanto o partisan band
- e mamãe, porque ela não vai deixar Pa ir sozinho - e
provavelmente você – vão vagando pelo campo, levando tiros em
1493

seus traseiros. ”
"Bem, você estava falando sobre sua aula de física ...?"
"Oh." Ela fez uma pausa para recompor seus pensamentos, uma
pequena carranca suave entre as sobrancelhas. "Bem. Você sabe
tudo sobre átomos e elétrons e esse tipo de coisa?”
"Vagamente."
“Bem, existem coisas menores do que isso - partículas subatômicas
- mas ninguém sabe quantas ou exatamente como elas funcionam.
Mas enquanto ouvíamos sobre isso na aula, o professor disse algo
sobre como tudo - tudo no universo e provavelmente mesmo se
houver mais de um universo - tudo é feito de poeira estelar.
Pessoas, plantas, planetas ... e estrelas, suponho.
"'Poeira Estelar' não é um termo científico", acrescentou ela, apenas
no caso de ele ter pensado que era. “Só que tudo é composto dos
mesmos pedaços infinitesimais de matéria.”
"Sim?"
“Então, o que estou pensando é ... talvez seja isso o que acontece
quando alguém passa por um lugar no tempo. Tenho quase certeza
de que é um fenômeno eletromagnético de algum tipo, por causa
das linhas Ley. ”
"Linhas Ley?" Ele foi surpreendido. "Eu não acho que você
encontrou isso em uma aula de física."
Ela rolou um pouco para olhar para ele. A respiração dela fez
cócegas nos cabelos de seu peito e aqueceu seu pescoço enquanto
ela falava. Ela ficou animada com a conversa; ele podia sentir a
vibração das palavras em suas costas enquanto ela falava.
Foi curiosamente excitante.
“‘ Linha Ley ’é um termo informal, mas ... você sabe que a crosta
terrestre é magnética, certo?”
“Não posso dizer que sim, mas estou disposto a acreditar na sua
palavra.”
"Você deve. E você sabe que os ímãs são direcionais? Você
brincava com eles quando criança? ”

“Você quer dizer extremidade positiva, extremidade negativa, e se


você colocar as extremidades positivas de dois ímãs juntas, eles se
separam? Sim, mas o que isso tem a ver com as linhas ley? ”
"Isso é o que é uma linha ley", disse ela pacientemente. “O
1494

eletromagnetismo na Terra corre em bandas paralelas, e as bandas


se alternam na direção de sua corrente magnética. Embora não seja
totalmente limpo e organizado, é claro. Elas divergem e se
sobrepõem e coisas assim. Eu não te disse isso antes? "
"Possivelmente." Ele abandonou suas intenções amorosas meio
formadas, com uma sensação de pesar. “Mas as linhas ley que
conheço são ... não sei como você as chamaria, em termos de
classificação. Folclore, coisas de construtores antigos? Pelo menos
nas Ilhas Britânicas, se você for olhar para antigos fortes nas
colinas e igrejas que provavelmente são construídas em locais de
culto muito mais antigos e ... bem, coisas como pedras monolíticas,
muitas vezes você descobrirá que pode desenhar uma linha reta -
muito reta, na maioria dos casos, como se tivesse sido pesquisado
- através de dois, três ou quatro desses locais. Os arqueólogos as
chamam de linhas ley - embora algumas pessoas as chamem de
caminhadas espirituais, porque acredita-se que os mortos ... Oh,
meu Deus. ”
Um breve e incontrolável estremecimento o percorreu.
"Deu para arrepiar?"640 ela perguntou, a simpatia um pouco
prejudicada por um olhar de satisfação.
“Nem todo mundo consegue”, disse ele, ignorando tanto a simpatia
quanto a presunção. Ele empurrou as cobertas e se sentou. “Através
das pedras. É isso que você quer dizer? Que as pessoas que não
passam, ou não passam corretamente, apareçam mortas nessas
linhas ley, levando à suposição razoável de que há algo
sobrenatural acontecendo.”
“Eu nunca tinha ouvido falar de caminhadas espirituais”, ela
admitiu. "Então, não posso dizer que é isso que quero dizer, mas
faz sentido, não é?" Ela não esperou que ele admitisse, mas
continuou com sua própria linha de pensamento.
"Então ... estou pensando que os ... lugares do tempo ... são talvez
pontos para onde convergem diferentes linhas ley. Se sim, o que
aconteceria com o eletromagnetismo naquele local seria realmente
interessante, e pode ser o que ... torna o tempo acessível? Quero

640
No original, “Goose walking on your grave”, literalmente ‘ganso caminhando no seu túmulo’ (e seu
equivalente “Someone walking on your grave”) é uma expressão usada para descrever um arrepio,
estremecimento ou tremor involuntário.
1495

dizer, a Teoria do Campo Unificado de Einstein - ”


"Vamos deixar Albert fora disso", disse ele apressadamente. "Pelo
menos por agora."
“Tudo bem,” ela disse de forma conciliadora. “Einstein nunca
conseguiu fazê-la funcionar, de qualquer maneira. Tudo o que
estou dizendo é que talvez quando você entrar em um desses
lugares - se você tiver a genética certa para isso - você, hum, morra.
Fisicamente. Você se dissolve em poeira estelar, se quiser chamar
assim - e suas partículas podem passar pela pedra, porque são
menores do que os átomos que as constituem. "
Roger sentiu uma guinada nítida em suas entranhas ao se lembrar
de como foi. Estar morto não era muito forte, mas ...
“Mas nós saímos de novo,” ele apontou. “Se morrermos, não
permaneceremos mortos.”
"Bem, alguns de nós não." Ela também se sentou, os braços em
volta dos joelhos. “Se acreditarmos no diário de Otter-Tooth e
naquele desprezível Wendigo Donner, alguns de seus
companheiros conseguiram atravessar as pedras, mas saíram
mortos. E há todos aqueles incidentes no diário de Geillis Duncan
- pessoas estranhas, muitas vezes em roupas estranhas - aparecendo
mortas perto de círculos de pedra. "
"Sim", disse ele, com uma leve contorção interna que o afetou
quando sua cinco vezes bisavó de olhos verdes foi mencionada.
"Então ... você acha que tem uma noção de por que isso não
acontece com todos."
“Não tenho certeza se chega a tanto”, ela admitiu. “Mas isso vai
junto com o que você estava dizendo sobre o que os cristãos
acreditam - que continuamos a viver após a morte. Se você pensar
sobre como é” ela engoliu em seco “lá. Você sente que está
desmoronando, mas está tentando o máximo que pode; para manter
seu - seu sentido de seu corpo, eu acho. ”
“Sim,” ele disse.
“Então talvez o que somos - lá - seja a nossa parte imortal; almas,
se quiser. ”
“Como ministro cristão, gosto muito disso”, disse ele, tentando ter
alguma aparência de normalidade nesta conversa. Goste ou não, ele
estava se lembrando daquele frio espectral, e a pele de seus braços
e pernas arrepiou. "Então…?"
1496

"Bem, veja, acho que talvez seja aí que as pedras preciosas entram",
explicou ela. Ela se aproximou dele, colocando uma mão quente
em sua perna nua e arrepiada. “Você sabe como é quando elas
explodem - quando as ligações químicas entre suas moléculas, ou
talvez seus átomos ou partículas subatômicas, estão se quebrando.
E quando você quebra uma ligação química, ela libera muita
energia. Uma vez que está liberando essa energia dentro de nossas
- nossas nuvens de coisas em dissolução, talvez ...? "
"Talvez seja isso que mantém os pedaços de nossos corpos juntos,
você está dizendo?"
“Mm-hm. E - isso acabou de me ocorrer ...” Ela se virou para ele,
os olhos se arregalando. “Talvez você possa perder alguns pedaços
no trânsito, mas ainda assim conseguir - só com um pequeno dano.
Como um batimento cardíaco irregular.”
Nenhum deles falou por um momento, contemplando.
"Você está escondendo esse livro, certo?" ele perguntou. Essa
discussão era bastante inquietante; pensar em ter a mesma
discussão com Jemmy fez seu estômago embrulhar.

“Sim,” ela o assegurou. “Eu estava escondendo no fundo da minha


caixa de desenho, mas até Mandy sabe como abri-la agora.”
“Talvez eles não estivessem interessados. Quer dizer, não tem um
título ou fotos ...”
Ela lançou-lhe um olhar penetrante.
“Não acredite. Crianças bisbilhotam. Quero dizer, talvez você não,
sendo um bom filho de um pregador ...” Ela estava rindo dele, mas
muito séria por baixo. “Mas eu mexia nas coisas dos meus pais o
tempo todo. Quer dizer, eu sabia o tamanho dos sutiãs e calcinhas
da minha mãe. "
“Bem, teria valido a pena saber ... Não, eu também fiz isso,” ele
admitiu. "Não sobre as cuecas do reverendo - ele usava ceroulas,
com botões, o ano todo - mas eu aprendi muitas coisas realmente
interessantes que eu não deveria saber, principalmente sobre a
congregação do reverendo. Ele me deu as cartas de meu pai da
época da guerra quando eu tinha cerca de treze anos, mas eu as li
dois ou três anos antes, na sua mesa. "
"Mesmo?" disse ela, desviada. "Você também usava ceroulas com
botões?"
1497

“Eu e todos os outros rapazes em Inverness na década de 1940.


Você sabe como fica frio lá no inverno - mas, na verdade, quando
eu tinha cerca de treze anos, encontrei um baú com o velho
uniforme da RAF do meu pai que eles mandaram para casa quando
ele - desapareceu. " Ele engoliu em seco, apunhalado pela memória
inesperada da última vez - e foi a última, ele tinha certeza - que viu
seu pai.
“Havia alguns pares de cuecas entre as outras coisas; o reverendo
me disse que os aviadores os chamavam de "retalhadas" 641, só Deus
sabe por quê - mas pareciam o que vocês chamam de cuecas samba-
canção. Comecei a usar isso no verão.”
“Retalhadas,” ela disse, saboreando a palavra com prazer. "Não
tenho certeza se prefiro ver você com essas ou com as ceroulas com
botões na frente. De qualquer forma, estou escondendo no
escritório de Pa. Todo mundo tem medo de bagunçar lá - exceto
mamãe, e acho que devo mostrar isso a ela, de qualquer maneira.
Quando eu tiver pensado um pouco mais longe. "
"Para ser honesto, acho que ver o que quer que você esteja
escrevendo vai deixar seu pai completamente nervoso."
"Como se a coisa toda não acontecesse de qualquer maneira."
E ele não é o único, Roger pensou. Uma lufada de ar fresco com
cheiro de chuva vinda da janela tocou suas costas.
"Você me disse que quando um cientista faz uma hipótese, a
próxima coisa a fazer é testá-la, certo?"
"Sim."
"Se você pensar em uma maneira de testar esta ... não me diga,
sim?"

No original, “shreddies”. Gíria utilizada pelos soldados das Forças Militares Britânicas na 2ª Guerra
641

Mundial para cuecas. Eram feitas de algodão cru, em tom bege escuro, da mesma cor de um cereal
1498

127

MAPANUPUALPAL DOPO VIPIAPAJANPANTEPE DOPO


TEMPEMPOPO, COMPONSERPERVAPAÇÃOPÃO DEPE
MAPASSAPA642

NO DIA SEGUINTE, ROGER desceu do piso de maltagem em


busca de cerveja para Jamie e Ian e encontrou Brianna no escritório
de Jamie, escrevendo.
Ela olhou para ele, carrancuda, lápis na mão.
"Quantos anos tem a Língua do "P"643, você sabe?"

"Nenhuma ideia. Por que?" Ele olhou por cima do ombro para a
página.

MAPANUPUALPAL DOPO VIPIAPAJANPANTEPE DOPO


TEMPEMPOPO, COMPONSERPERVAPAÇÃOPÃO DEPE
MAPASSAPA

“Manual do viajante do tempo?” ele perguntou, olhando para ela


de lado. Ela estava corada e tinha uma linha profunda aparecendo
entre as sobrancelhas, nenhuma das quais depreciava seu encanto.

Ela acenou com a cabeça, ainda franzindo a testa para a página.

“O que estávamos conversando na noite passada - isso me deu uma


ideia e eu queria registrá-la antes de perdê-la, mas— ”

642
No original, “IMETAY RAVELERSTAY ANUALMAY, ONSERVATIONCAY OFWAY ASSMAY
N NRG”, é uma frase escrita em Pig Latin, uma forma de escrita de brincadeira entre crianças. Consiste
em pegar a primeira letra da palavra, colocar no final dela e acrescentar “ay”. Para manter a característica
da brincadeira, usamos a linguagem do “p”, com a sílaba com ‘p’ após à sílaba original.
643
No original, Pig Latin
1499

“Você não quer arriscar que alguém tropece nisso e leia”, ele
terminou por ela.

"Sim. Mas ainda precisa ser algo que as crianças - ou Jemmy, pelo
menos - possa ler, se necessário. ”

"Então, diga-me o seu pensamento valioso", sugeriu ele, e se


sentou, muito devagar. Ele estava trabalhando na destilaria com
Jamie nos últimos três dias, carregando sacos de cevada e, em
seguida, carregando as caixas de rifles - Jamie tinha outras vinte,
através dos bons ofícios de Scotchee Cameron - de seu esconderijo
sob o piso de maltagem até a caverna do estábulo e, finalmente,
desempacotando e limpando os ditos rifles. Ele doía do pescoço aos
joelhos.

"Então você não sabe nada sobre a Língua do ‘P’", disse ela,
olhando para ele ceticamente. “Você se lembra do que eu disse
sobre o princípio de Conservação da Massa?"

Ele fechou os olhos e fingiu escrever em um quadro negro.

“A matéria não é criada nem destruída”, disse ele, e abriu os olhos.


"É isso?"

"Muito bem." Ela deu um tapinha na mão dele, então percebeu o


estado dela: suja e enrolada em um punho fechado, seus dedos
rígidos de segurar os sacos de estopa ásperos. Ela puxou a mão dele
para o colo dela, desdobrou os dedos e começou a massageá-los.

“Todo o texto formal diz:‘ A lei de Conservação da Massa


assegura que, para qualquer sistema fechado, em todas as
transferências de matéria e energia, a massa do sistema deve
permanecer constante ao longo do tempo, pois a massa do sistema
não pode mudar, então uma quantidade não pode ser adicionada
nem removida. '”

Os olhos de Roger estavam semicerrados em uma mistura de


cansaço e êxtase.
1500

"Deus, isso é bom."

"Bom. Então, o que estou pensando é o seguinte: os viajantes do


tempo definitivamente têm massa, certo? Então, se eles estão se
movimentando de um momento para outro, isso significa que o
sistema está momentaneamente desequilibrado em termos de
massa? Quer dizer, 1780 tem cento e noventa e três quilos a mais
de massa do que deveria ter - e inversamente, 1982 tem cento e
noventa e três quilos também a menos?"644

“É quanto pesamos, todos juntos?” Roger abriu os olhos. "Eu


pensei muitas vezes que cada criança pesava esse tanto sozinha. ”

"Tenho certeza que sim", disse ela, sorrindo, mas não querendo
perder sua linha de pensamento. “E é claro que estou supondo que
a dimensão do tempo faz parte da definição de 'sistema'. Aqui, dê-
me a outra. ”

"Também está imunda." Estava, mas ela apenas puxou um lenço


dos seios dela e limpou a mistura de graxa e sujeira de seus dedos.
"Por que seus dedos estão tão gordurosos?"

“Se você manda algo como um rifle pelo oceano, você o envolve
com graxa para evitar que o ar salgado e a água o corroam. Ou que
poeira de guano entre no mecanismo.”

"Abençoado Michael nos defenda", disse ela, e apesar do fato de


que ela obviamente quis dizer isso, ele riu de seu sotaque gaélico
de Boston.

"Está tudo bem", assegurou-lhe ele, engolindo um bocejo. “Os


rifles estão seguros. Continue com a conservação da massa; estou
fascinado.”

644
Aqui, Roger está falando do ano em que estão (1780) em comparação ao ano em que estariam (1982)
se tivessem ficado no séc XX.
1501

"Com certeza você está." Seus dedos longos e fortes sondaram


e esfregaram, puxando suas articulações e evitando - na maior
parte - suas bolhas. “Então - você se lembra do Grimório de
Geillis, certo? E o registro que ela manteve de corpos que foram
encontrados em ou perto de círculos de pedra? "

Isso o acordou.

"Eu lembro."

"Bem. Se você mover um pedaço de massa para um período de


tempo diferente, você talvez tenha que equilibrar isso removendo
um pedaço de massa desse tempo diferente? ”

Ele olhou para ela, e ela olhou para trás, ainda segurando sua mão,
mas não mais massageando-o. Seus olhos estavam firmes,
expectantes.

“Você está dizendo que se alguém entra por um - um portal -


alguém mais daquele tempo tem que morrer, para manter o
equilíbrio certo? ”

"Não exatamente." Ela retomou a massagem, mais lenta agora.


“Porque mesmo se eles morrem, sua massa ainda está lá. Estou
meio que pensando que talvez seja isso que os impede de passar;
eles estão se dirigindo para um tempo que ... que não tem espaço
para eles, em termos de massa? "

"E ... eles não podem passar e isso os mata?" Parecia que havia
algo ilógico nisso, mas seu cérebro não estava em condições de
dizer o quê.

"Não exatamente isso, também." Brianna ergueu a cabeça,


ouvindo, mas o que quer que ela tenha ouvido, o som não se repetiu,
e ela continuou, inclinando a cabeça para olhar para a palma da
mão dele. “Cara, você está com bolhas enormes. Espero que elas
se curem até a ordenação - todos vão apertar sua mão depois. Mas
1502

pense sobre isso: a maioria dos corpos nos recortes de jornal de


Geillis não eram identificados e, em sua maioria, usavam roupas
estranhas ”.

Ele a encarou por um momento, então tirou sua mão da dela e


flexionou-a cautelosamente.

"Então você acha que eles vieram de algum lugar, alguma outra
época e conseguiram passar pelas pedras - mas depois morreram?
"

“Ou,” ela disse delicadamente, “eles vieram desta época, mas eles
sabiam para onde eles estavam indo. Ou onde eles pensaram que
estavam indo, porque claramente eles não conseguiram chegar lá.
Então você sabe…"

"Como eles descobriram que talvez pudessem ir?" ele terminou por
ela.

Ele olhou para o caderno dela. “Talvez mais pessoas leiam a


Língua do ‘P’ do que você pensa.”
1503

128

RENDIÇÃO

Fraser’s Ridge
21 de junho de 1780

ROGER ESTAVA SENTADO na privada da família, não por


necessidade física, mas por uma necessidade urgente de cinco
minutos de solidão. Poderia, ele supôs, ter ido para a floresta ou se
refugiado momentaneamente no porão ou na casinhola da fonte,
mas a casa e todos os seus arredores estavam fervilhando com seres
humanos, e ele precisava apenas de alguns minutos para ficar
sozinho. Não - de forma alguma - sozinho, mas não com pessoas.

Davy Caldwell havia chegado na noite anterior, com os reverendos


Peterson (de Savannah) e Thomas (de Charles Town). A casa
estava tão preparada quanto meia dúzia de mulheres determinadas
puderam providenciar; a igreja tinha sido limpa, arejada e cheia de
tantas flores que metade das abelhas de Claire estavam entrando e
saindo das janelas como pequenos espanadores. Os cheiros de
carne de porco grelhada, vinagre e salada de mostarda e cebola frita
flutuaram pelas rachaduras nas paredes, fazendo seu estômago se
contorcer de expectativa. Ele fechou os olhos e ouviu.

Ao som das festividades se preparando, o estrondo distante de


pessoas conversando, os violinos e os tambores afinando pelo
jardim de Claire - até mesmo o alto zumbido nasal de uma gaita de
foles à distância. Essa era do Velho Charlie Wallace, que
conduziria os ministros para a igreja - e os conduziria novamente
para fora dela, seu número aumentado em um.
1504

Ele não tinha certeza sobre a música da gaita de foles, dado que o
reverendo Thomas tinha opiniões sobre música na igreja, mas
Jamie – mais do que ninguém - havia dito que ele não achava que
o som da gaita de foles deveria realmente ser chamado de música.

“As pessoas dançam com ela”, disse Bree, divertida.

"Sim, bem, o povo vai dançar com qualquer coisa, se você der a
eles bastante bebida alcoólica," seu pai respondeu. “O governo
britânico diz que as gaitas de foles são uma arma de guerra, porém,
e não vou dizer que eles estão errados. Coloque desta forma, moça
- você sabe que eu não ouço música, mas ouço o que as gaitas de
fole dizem muito bem. "

Roger sorriu ao ouvir isso na memória. Jamie não estava errado, e


nem estava o governo britânico.

Adequado, ele pensou, e fechou os olhos. Ele não tinha ilusões de


que o que ele estava prestes a fazer não era um - e importante - de
inúmeros passos no caminho de uma grande batalha.

Sim, ele pensou em resposta a uma pergunta silenciosa que ele


havia respondido antes, respondia novamente, quantas vezes ela
viesse - e ele sabia que responderia. Sim, eu estou assustado. E sim,
eu o farei. E na quietude de seu coração batendo, todos os sons
desvaneceram-se em uma grande e abrangente paz.

-.-.-
JAMIE TINHA VISTO uma ordenação uma vez, em Paris, na
grande catedral. Ele tinha ido com Annalise de Marillac, cujo irmão
Jacques era um dos ordenandos, e consequentemente teve um lugar
com sua família, de onde ele podia ver tudo. Ele se lembrava
vividamente - embora, honestamente, suas memórias das primeiras
partes da cerimônia eram principalmente do seio de Annalise e seu
calor perfumado e animado latejando ao lado dele. Ele tinha certeza
de que ter uma ereção em uma catedral devia ser algum tipo de
pecado, mas, como ele ficou com vergonha de explicar na
confissão, ele deixou passar sob o pretexto de "pensamentos
1505

impuros". Ele limpou a garganta, olhou para Claire e se endireitou.

Esta cerimônia foi bem diferente, é claro - e ainda assim, na


essência, era surpreendentemente a mesma.

As palavras eram em inglês, não em latim - mas diziam coisas


semelhantes.

A graça a você e a paz


de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo.
Irmãs e irmãos em Cristo, nos reunimos com
ação de graças como congregação e
Presbitério para louvar ao Senhor que nos trouxe até este
dia da ordenação
De Roger Jeremiah MacKenzie como Ministro desta congregação
e paróquia.

A Notre Dame de Paris tinha um órgão poderoso e muitos coristas;


ele lembrou-se de como o som havia sacudido o ar e parecia
estremecer em seus ossos. Aqui, não havia música, mas o canto dos
pássaros que entravam pelas janelas abertas, nenhum incenso,
exceto o cheiro de tábuas de pinho e o cheiro agradável de sabão e
suor entre as pessoas. Brianna, à sua esquerda, cheirava a farinha e
maçãs, e Claire à sua direita carregava seu usual perfume variado
de coisas verdes e flores. Com o canto do olho, ele percebeu um
pequeno movimento; uma abelha pousou na cabeça dela, logo
acima de sua orelha.

Ela ergueu a mão distraidamente para acariciar a sensação de


cócegas, mas ele percebeu a mão e segurou-a por alguns segundos,
até a abelha voar para longe. Ela olhou para ele, surpresa, mas
sorriu e olhou de volta para o que estava acontecendo na frente
deles.

Os ministros mais velhos falaram, um de cada vez, e colocaram as


mãos sobre Roger Mac, tocando sua cabeça, seus ombros, suas
mãos. Da mesma forma, o bispo impôs as mãos sobre os jovens
sacerdotes, e ele sentiu o mesmo sentimento de admiração,
1506

reconhecendo o que estava acontecendo. Isso era a manutenção da


Palavra que havia sido guardada por séculos; a transmissão de uma
confiança solene, de que o homem a quem foi dada a guardaria
também - para sempre.

Ele sentiu as lágrimas brotarem de seus olhos e mordeu o lábio para


contê-las.

Louvado seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo!


Em sua grande misericórdia pela ressurreição de Jesus Cristo dos
mortos,
Ele nos deu um novo nascimento em uma esperança viva.
Senhor nosso Deus, nós Te louvamos por Cristo Senhor.
Nós Te louvamos pela comunhão da Igreja;
Nós Te louvamos pela fé transmitida
como uma geração fala para outra de Seus atos poderosos;
Nós Te louvamos pela adoração oferecida em todo o mundo,
Nós Te louvamos pelo testemunho e serviço aos santos pelas
eras.
Senhor Nosso Deus - Pai, Filho e Espírito Santo, nós Te louvamos.
Amém.

Em Paris, os jovens - eram vinte, ele os contou - prostraram-se em


suas vestes brancas e limpas, deitados de bruços no chão de pedra,
as mãos levantadas acima da cabeça, submetendo-se. Rendendo-se.

Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo,


Você nos chama em Sua misericórdia;
Você nos sustenta pelo Seu poder.
Através de cada geração, Sua sabedoria supre nossas
necessidades.
Você enviou seu único filho, Jesus Cristo,
para ser o apóstolo e sumo sacerdote da nossa fé
e o pastor de nossas almas.
Por Sua morte e ressurreição, Ele venceu a morte
e, tendo ascendido ao céu,
derramou Seu Espírito,
fazendo alguns apóstolos,
1507

alguns profetas, alguns evangelistas,


alguns pastores e professores,
equipando todos para o trabalho do ministério
e edificando Seu corpo, a Igreja.
Nós oramos agora para que
DERRAME SEU ESPÍRITO SANTO SOBRE ESTE SEU SERVO,
Roger Jeremiah, A QUEM AGORA, EM SEU NOME E EM
OBEDIÊNCIA À SUA VONTADE, PELA
COLOCAÇÃO DAS MÃOS, PARA ORDENAR E NOMEAR AO
OFÍCIO DO SANTO MINISTÉRIO DENTRO DA ÚNICA, IGREJA
SANTA, CATÓLICA E APOSTÓLICA, DANDO A ELE
AUTORIDADE PARA MINISTRAR SUA PALAVRA E
SACRAMENTOS.

Esses eram presbiterianos e não eram dados a espetáculos. Roger


Mac soltou um suspiro profundo e fechou os olhos, e Jamie
estremeceu ao sentir a testemunha de rendição penetrando em seu
coração.

Gotas quentes atingiram suas mãos, dobradas em seu colo, mas ele
não se importou. Um murmúrio de admiração e alegria ergueu-se
da igreja e Roger Mac levantou-se, seu próprio rosto molhado de
lágrimas e brilhando como o sol.

-.-.-

ERA QUASE meia-noite quando chegamos à nossa cama. Eu ainda


podia ouvir as comemorações acontecendo à distância, mas agora
os tiros aleatórios haviam cessado e era apenas um canto - de
natureza muito não religiosa - com um único violino despontando
de vez em quando entre as vozes.

Eu estava quase morta de cansaço e das consequências de fortes


emoções; eu não conseguia imaginar como Brianna, quanto mais
Roger, ainda estavam de pé, mas eu os vi no meu caminho de volta
para casa, abraçados e se beijando na sombra de uma grande
nogueira negra. Eu me perguntei vagamente se a profunda emoção
da ordenação normalmente se transformava em desejo sexual, se o
1508

objeto legítimo dela estava próximo ... e o que jovens padres


católicos poderiam fazer para expressar sua própria exaltação?

Tirei minhas roupas e enfiei uma camisola limpa pela minha


cabeça, suspirando em êxtase silencioso por não ter nada além de
ar em meu corpo contraído pelo espartilho. Minha cabeça surgiu e
vi Jamie, deitado na cama em sua própria camisa. Sua cabeça
estava inclinada para a janela e ele parecia bastante melancólico;
eu me perguntei se ele preferia estar lá dançando, mas eu não podia
imaginar por que ele não estaria lá, se fosse esse o caso.

"O que você está pensando?"

Ele ergueu os olhos e sorriu para mim. Ele desfez sua trança formal
e seus cabelos caíam sobre seus ombros, brilhando à luz das velas.

"Och ... Eu só estava me perguntando se algum dia ouvirei a missa


de novo."

"Oh." Tentei pensar. "Quando foi a última vez? No casamento de


Jocasta? ”

"Sim, acho que sim."

O catolicismo foi proibido na maioria das colônias, com exceção


de Maryland, que foi fundada especificamente como uma colônia
católica. Mesmo lá, a Igreja Anglicana era a Igreja oficial, e os
padres católicos eram poucos e distantes entre as colônias do sul.

"Nem sempre será assim", disse eu, e comecei a massagear seus


ombros, lentamente. "Brianna contou a você sobre a Constituição,
não foi? Ela irá garantir a liberdade de religião - entre outras
coisas.”

"Ela recitou o começo para mim." Ele suspirou e abaixou a cabeça,


convidando-me a esfregar os músculos longos e tensos de seu
pescoço. " 'Nós, as pessoas…' Muito bem escrita. Espero encontrar
o Sr. Jefferson algum dia, embora eu ache que ele pode ter roubado
1509

uma frase peculiar aqui e ali, e algumas de suas ideias tem uma
ligação entre elas. ”
“Montesquieu pode ter tido alguma influência menor”, eu disse,
achando graça. "E acredito que também ouvi falar de John Locke."

Ele olhou por cima do ombro para mim, uma sobrancelha


levantada.

"Sim, é isso. Eu não pensei que você tivesse lido qualquer um deles,
Sassenach.
"
"Bem, eu não li," admiti. “Mas eu não fui para a escola na América;
só faculdade de medicina, e eles não ensinam história lá, exceto a
história de medicina, onde eles ressaltam exemplos horríveis de
pensamentos obscuros e práticas horríveis - virtualmente todos os
quais eu realmente usei de vez em quando, exceto soprar a fumaça
de tabaco pelo traseiro de alguém. Não consigo imaginar como
esqueci essa ... ” Eu tossi. “Mas Bree aprendeu tudo sobre a história
americana na quinta e sexta séries, e mais no ensino médio. Ela é a
única que me contou sobre a maneira leve do Sr. Jefferson com as
palavras.

"Mas então, há Benjamin Franklin - acho que pelo menos algumas


de suas citações eram originais. Eu me lembro, ‘Você tem uma
república ... se você pode, mantenha-a.’ Foi o que ele disse - dirá -
no final da guerra. Mas eles - nós - realmente a mantivemos. Pelo
menos pelos próximos duzentos anos. Talvez mais.”

"Por algo assim vale a pena lutar, sim", disse ele, e apertou minha
mão.

Eu apaguei a vela e deslizei na cama ao lado dele, todos os


músculos do meu corpo se dissolvendo no êxtase de simplesmente
deitar.
Jamie se virou de lado e me puxou contra ele e deitamos
confortavelmente entrelaçados, ouvindo os sons da celebração lá
fora.
1510

Mais silencioso agora, quando as pessoas começaram a cambalear


para casa ou a encontrar uma árvore ou arbusto tranquilo para
dormir, mas a música de um único violino ainda cantava para as
estrelas.
1511

129

A BUSCA DA FELICIDADE645

LEVOU APROXIMADAMENTE três segundos para William


concluir que ele devia ir atrás de Amaranthus, e o resto do dia foi
uma busca dos meios de partida dela. Ele não sabia há quanto
tempo ela estava planejando seu desaparecimento - provavelmente
desde que voltei de Morristown, ele pensou sombriamente - mas
ela fez um bom trabalho.
Ele voltou para casa à noite, tendo tramado um plano - se pudesse
ser chamado disso - e começou a convencer um tio e pai muito
duvidoso do mérito dele durante o jantar.
"Se ela foi a cavalo, carruagem ou navio, eu acho que ela deve ter
ido para Charles Town.” Ele hesitou, mas não havia razão para não
contar a eles. “Quando mencionei Banastre Tarleton - quando
Charles Town caiu - ela comentou que o conhecia. O que eu
suponho que significa que ele também conhecia - ou conhece –
Ben”
"Ele conhecia - conhece", disse Hal, surpreso. “Muito bem, na
verdade. Por um curto tempo, eles estavam na mesma companhia -
Ban e Ben, como as pessoas os chamavam. Você sabe, para
brincar"
“Bem, então,” William disse com satisfação. “Amaranthus sabe
que Ban está em Charles Town com Clinton. Se ela pensasse que
precisava de ajuda ou proteção em seu caminho ... ela não iria até
ele? "
"É um pensamento", disse seu pai, embora parecesse duvidoso.
“Claramente, ela não demorou muito para se preparar.”
"Eu não sei se ela não demorou", disse William secamente. “Ela
pode ter estado planejando antes mesmo de eu voltar. Ou pensando
nisso, pelo menos. Independentemente de como ela foi, no entanto,

645
No original, “The Pursuit of Happiness”. Essa frase é um dos direitos inalienáveis descritos na
Declaração da Independência dos Estados Unidos. A linha de raciocínio é que essa ‘felicidade’ conduza
um bom estado de espírito e um bom estado de espírito leva a novos pensamentos, que levam a novas
ideias, que levam a ações, e ações levam ao sucesso.
1512

ela não pode ter ido tão longe ainda. Eu posso ser capaz de
ultrapassá-la na estrada, e se por acaso não o fizer, Ban pode muito
bem tê-la visto - ou planejado a próxima parte do caminho dela. Eu
não imagino que ele saiba ainda. Sobre Ben, quero dizer. Do
contrário, e se ela dissesse a ele que pretendia ir até Ben - sem dizer
exatamente onde ele está - Ban certamente a ajudaria."
Uma breve pontada de dor apareceu no rosto do tio Hal, mas foi
brutalmente suprimida no momento seguinte.
"E o que você propõe fazer, se a encontrar?" ele disse, a voz dele
raspando. "Trazê-la de volta aqui à força?"
William ergueu um ombro, impaciente.
“Vou descobrir que diabo ela realmente pretende fazer, para
começar,” ele disse. "Ela pode estar indo para a casa de seu pai na
Filadélfia, e se ela for — Verei para que ela chegue lá com
segurança. Se ela for para Ben ...” Ele fez uma breve pausa
relembrando sua fuga angustiante de Morristown. "Vou levá-la
para Adam," ele concluiu. "Ele verá se ela está segura e se ela
pretende mesmo ir para Ben…”
"Jesus. Adam sabe?” A voz de Hal falhou e ele tossiu.
William viu seu pai olhar bruscamente para Hal e mover-se em
direção ao sino para convocar um servo.
Hal franziu a testa para ele e fez um gesto brusco para detê-lo.
"Estou bem", disse ele brevemente, mas a última palavra teve que
ser forçada a sair, e sua respiração ficou repentinamente
estertorosa.
"O diabo que você está", disse o pai, e agarrou o tio Hal pelo
cotovelo, puxando-o para o sofá e empurrando-o sobre ele. “Willie,
vá e diga a Moira para ferver café - muito forte e em grande
quantidade - e agora. ”
"Eu estou -" Hal começou, mas parou, tossindo. Ele pressionou o
punho contra seu peito e estava ficando de uma cor desagradável
que alarmou William.
“Ele está ?—” ele começou. Seu pai se voltou contra ele como um
tigre.
"Agora!" ele gritou, e quando William saiu da sala, ele ouviu seu
pai gritou atrás dele: "Pegue meus alforjes!"
As próximas horas passaram em um borrão de atividade, com
pessoas correndo para lá e para cá e pegando coisas e fazendo
1513

sugestões estúpidas e ansiosas, enquanto Hal sentou-se no sofá


segurando a mão de Papa como se fosse uma corda atirada para um
nadador que se afogava, alternando entre soprar ar, ofegar e beber
café preto com algum tipo de erva que o Papa retirou de seus
alforjes.
William, não sabendo como ajudar, mas não querendo apenas ir
para a cama, espreitou na cozinha, carregando mais café quente
conforme necessário, mas principalmente ouvindo Moira e Miss
Crabb, de quem soube que o duque sofria de algo chamado asma e
isso (vozes baixas, com um olhar cauteloso por cima do ombro) a
esposa de lorde John-mas-ela-não-era-realmente-e-as-coisas-que-
as-pessoas-disseram-dela era uma curandeira famosa e tinha dado
a lorde John os pauzinhos secos para colocar no café.
"E o que Sua Graça fará se ele tiver outro desses ataques no barco,"
Moira disse, balançando a cabeça, "Eu não sei!"
"Barco?" perguntou William, erguendo os olhos de seu terceiro
pedaço de torta de maçã. "Ele quer ir a algum lugar? "
“Oh, sim,” Miss Crabb disse, acenando com a cabeça sabiamente.
"Para Inglaterra."
"Para falar com a Câmara dos Lordes," Moira acrescentou.
"Sobre a guerra", disse a Srta. Crabb rapidamente, antes que Moira
pudesse roubar mais a cena dela. William escondeu um sorriso no
guardanapo, mas estava curioso. Ele perguntou-se se o tio Hal
realmente tinha opiniões sobre a condução da guerra que se sentia
obrigado a compartilhar com a Câmara dos Lordes ou se havia
procurado uma boa desculpa para voltar para casa, para a Inglaterra
- e para a tia Minnie.
Ele sabia mesmo - pelo seu pai - que Hal não tinha sido capaz de se
forçar a escrever para sua esposa sobre Ben.

"Quando ele pretende ir?" ele perguntou.


“Em um mês”, disse a srta. Crabb, franzindo os lábios.
"Lorde John pretende ir também?" William meio que esperava a
resposta fosse não. Embora ele não quisesse que o tio Hal morresse
sufocado sozinho em um navio, ele preferia muito mais ter papai
aqui, segurando as coisas enquanto ele, William, perseguia
Amaranthus.
As duas mulheres balançaram a cabeça, ambas parecendo sérias.
1514

Elas podiam ter dito mais, mas naquele momento os passos rápidos
de Papa vieram pelo corredor, e um momento depois sua cabeça
loira e desgrenhada apareceu pela porta.
"Ele está melhor", disse ele imediatamente, chamando a atenção de
William. “Venha e me ajude; ele quer ir para a cama.”
O DUQUE PASSOU a maior parte do dia seguinte na cama, mas
quando William subiu para verificar o seu estado de saúde, estava
sentado direito, uma escrivaninha nos joelhos, rabiscando. Ele
olhou para a chegada de William e evitou qualquer dúvida dizendo:
"Então, você ainda pretende ir atrás dela."
Não foi colocado como uma pergunta, e William apenas acenou
com a cabeça. Hal também, e pegou uma folha de papel em branco
da papelada na mesinha de cabeceira.
“Amanhã, então,” ele disse.

-.-.-

AO AMANHECER do dia seguinte, William arrumou sua


bagagem, abotoou seu colete amarelo, colocou o casaco vermelho
que ele pensou que nunca usaria novamente, e desceu as escadas,
seu passo firme em suas botas recém-engraxadas.
Seu pai e tio já estavam tomando café da manhã, e apesar de sua
impaciência para partir, o cheiro de pão de milho com manteiga,
ovos fritos, presunto fresco, geleia de pêssego, bolinhos de
caranguejo e truta do mar grelhada bastava para fazê-lo sentar-se
sem discutir. Papai e tio Hal o viam com exatamente o mesmo olhar
de aprovação mista e ansiedade velada, fazendo-o querer rir, mas
ele não o fez, em vez disso inclinou a cabeça brevemente - nenhum
dos dois falava muito pela manhã, mas aparentemente hoje foi uma
exceção.
"Aqui." Tio Hal empurrou dois documentos dobrados com selos de
cera pela mesa para ele. "O vermelho é sua comissão e o outro são
suas ordens – assim como quais são elas. Eu dei a você a patente
de capitão, e suas ordens dizem que você terá passagem gratuita
essencialmente para qualquer lugar que queira ir, sem obstáculo ou
impedimento, e você pode pedir a ajuda dos oficiais e tropas de Sua
Majestade conforme necessário e disponível. "
"Você acha que eu posso precisar de uma coluna de infantaria para
1515

ajudar a arrastar Amaranthus de volta?" William perguntou,


mordendo uma fatia quente de pão de milho com manteiga fresca,
grossa com geleia de pêssego.
"Você acha que não precisa?" Seu pai disse, arqueando uma
sobrancelha. Lorde John levantou-se e, vindo atrás de William,
desfez sua trança apressada e a trançou novamente, apertada e
limpa, antes de dobrá-lo em uma trança e segurá-la com sua própria
fita preta. O toque das mãos de seu pai em seu pescoço, quente e
leve, mexeu com ele.
Tudo esta manhã tinha um frescor e uma sensação de momento que
o fez sentir que se lembraria de cada objeto visto ou tocado, cada
palavra falada, enquanto ele vivesse.
Ele mal tinha dormido, sua mente pulsando com energia, o
embrutecimento e a petrificação do último mês desapareceram
como se nunca tivessem existido. Sua declaração de que ia atrás da
garota não encontrou oposição; Papai e tio Hal trocaram um longo
olhar e começaram a fazer planos.
"Ela disse que tinha feito arranjos", papai estava dizendo, franzindo
a testa para uma garfada de truta do mar. "Que tipo de arranjos,
você acha?"
"Tanto quanto qualquer um dos servos pode dizer," Hal respondeu,
"ela fez uma incursão à despensa e fugiu com comida suficiente
para três ou quatro dias, levou suas roupas mais simples - e a
maioria de suas joias. Ela-"
"Ela levou a aliança de casamento?" William interrompeu.
"Sim", disse Lord John, e William encolheu os ombros.
“Então ela está se dirigindo até Ben. Ela a teria deixado se tivesse
terminado com ele."
Tio Hal deu-lhe o tipo de olhar que ele teria dado à performance de
uma pulga que tinha acabado de dar uma cambalhota, mas Papa
escondeu um sorriso atrás do guardanapo.
“Não a deixaríamos ir sozinha, mesmo se tivéssemos a certeza de
que ela está se dirigindo para a casa de seu pai ", disse ele. “Uma
jovem sozinha na estrada - e achamos que ela está sozinha”,
acrescentou ele, mais lentamente. “Embora eu suponha que é
possível que…"
“Mais do que possível,” tio Hal disse severamente. “Aquela jovem
...”
1516

“É sua nora,” Lord John interrompeu. “E a mãe de seu herdeiro.


Como tal, temos toda a obrigação de garantir a segurança dela. ”
"Mmphm." William ouviu o grunhido de acordo que ele fez e parou
por um instante, uma garfada de ovo suspensa, pingando gema em
seu prato. "Você provavelmente não quer ouvir isso ... mas Pa faz
esse tipo de barulho a toda hora." Ele olhou rapidamente de seu
pai para seu tio, mas nenhum deles pareciam ter notado algo
estranho em sua resposta, e o grupo recaiu em um engolfamento
silencioso e constante do café da manhã.

A nova égua de William, Birdie, ficou feliz em vê-lo e colocou o


focinho nele em busca de maçãs - que ele trouxe - e as mastigou
com evidente prazer, babando suco em sua manga enquanto ele
puxava o freio sobre os ouvidos dela. Ela sentiu sua própria
excitação e ficou com as orelhas em pé e bufou um pouco,
balançando a cabeça enquanto ele apertava a cilha. Ele se
perguntou como Amaranthus havia conseguido seu ato de
desaparecimento; nenhum dos cavalos pertencentes à casa estavam
faltando, nem mesmo a velha égua que Amaranthus estava
acostumada a cavalgar.
Ou ela pegou uma carruagem pública - improvável; ele pensou que
o tio Hal teria provavelmente enviado alguém diretamente para a
estalagem para fazer perguntas, e ela sabia que ele faria isso - ou
ela alugou um transporte privado ou um cavalo do estábulo. Ou ela
teve ajuda no sumiço e seu maldito assistente providenciou seu
transporte. Ele estava examinando mal-humorado uma lista de
nobres locais que ela poderia ter seduzido para seus propósitos, mas
foi interrompido pela aparição de lorde John, com uma bolsa em
uma das mãos e uma pequena valise na outra.
"Um terno simples, meias e uma camisa limpa", disse ele
brevemente, entregando esta última. "E dinheiro. Há uma carta de
crédito lá também - você pode guardar isso no seu bolso, só para
garantir. ”
"No caso de eu ser obrigado a resgatá-la de um bando de
salteadores de estrada?"
William perguntou, pegando a bolsa. Era agradavelmente pesada.
Ele enfiou dentro do seu sobretudo e, tirando uma das pistolas do
alforje, enfiou-a no cinto.
1517

“Haha,” disse seu pai, educadamente. "William - se ela está indo


em direção a Ben, e ela chegar até ele ... não - eu repito, não faça
nenhum esforço para separá-la dele. Da próxima vez - se houver
uma próxima vez - ele provavelmente irá matá-lo. "
Havia uma finalidade contundente o suficiente nessa opinião para
que William decidisse não discutir com ela, embora seu orgulho
pensasse fortemente o contrário.
"Eu não vou", disse ele brevemente, e deu um tapinha no ombro do
pai, sorrindo.
“Não se preocupe com nada.”
1518

130

HERR WEBER646

UM MÊS APÓS A queda de Charles Town, e o lugar ainda parecia


um formigueiro que alguém havia chutado. Todos os cidadãos
pareciam estar ao ar livre, carregando pedras e madeira e cestos de
sujeira e baldes de tinta, e, aqueles que não estavam ocupados com
a limpeza e conserto, gritavam e vendiam: carne e frutas, vegetais
e aves e presuntos, berbigões e mexilhões, camarões e ostras, e
todas as outras malditas coisas que você poderia tirar do mar e
comer. A ideia de comer, coincidindo com o flutuante cheiro de
peixe grelhado, fez William ficar com água na boca.
A vendedora do peixe saboroso estava, infelizmente, cercada por
uma companhia de soldados, todos exigindo atenção enquanto a
mulher e sua filha tiravam peixes pequenos e escaldantes dos
tijolos quentes e embrulhavam em pedaços de jornal velho como
se estivessem negociando cartas, enquanto um menino agachava-
se ao lado delas sobre uma panela amassada, pegando moedas dos
soldados e atirando cada uma na panela para fazê-la tocar.
Não querendo chamar a atenção para si mesmo usando seu
uniforme de capitão para abrir caminho entre a multidão, ele se
virou em direção às docas, onde certamente encontraria comida e,
sem dúvida, bebida também, em uma das inúmeras tabernas.
O que ele encontrou, entretanto, foi Denys Randall, andando
preguiçosamente para cima e para baixo em um cais estreito,
aparentemente esperando por alguém.
“Ellesmere!” Randall exclamou, avistando-o.
“Ransom,” William corrigiu. Denys acenou com a mão, indicando
que eram todos um só.
"De onde você veio?" ele perguntou, olhando o uniforme de
William de relance. "E por quê?"
“Estou procurando Ban Tarleton. Você o viu recentemente? ”
646
Senhor Weber, em alemão
1519

Denys balançou a cabeça, carrancudo. "Não. Suponho que poderia


perguntar por aí, no entanto. Onde você vai ficar?"
“Em nenhum lugar, no momento. Existem lugares decentes?” Ele
olhou em volta para uma fila de homens sem camisa, brilhando de
suor enquanto moviam cestas, carrinhos de mão e estrados de
madeira com lixo para a costa. “O que eles pretendem fazer com
tudo isso? Construir um quebra-mar? Ou consertá-lo, melhor
dizendo.” Havia uma confusão desordenada de fortificações junto
dos restos do quebra-mar existente, que havia sofrido muito com
os bombardeios do cerco.
"Eles deveriam, mas atrevo-me a dizer que eles simplesmente
enfiarão tudo na água e acabarão com isso. Quanto a um lugar para
dormir, tente a Sra. Warren, na Broad Street.” Denys pegou o
chapéu e acenou rapidamente com a mão para William. "Vou
perguntar sobre Tarleton."
William acenou com a cabeça em reconhecimento e saiu em busca
da Broad Street, da Sra. Warren e de comida - não necessariamente
nessa ordem. Encontrou rapidamente comida, em forma de arroz e
feijão vermelho cozido com linguiça, em uma barraca perto da
praça das armas. Nenhuma tropa estava treinando, mas como de
costume, com um exército por perto, havia muitos civis –
vivandeiros647, lavadeiras, vendedores de comida, prostitutas - que
se alimentavam do exército como uma horda de piolhos vorazes.
Bem, o oposto também era verdade, ele pensou, devolvendo sua
tigela ao proprietário do arroz e feijão para uma segunda porção.
Comendo esta um pouco mais devagar, ele esquadrinhou as
multidões que passavam em busca de qualquer vestígio de
Amaranthus ou Banastre Tarleton, mas nenhum vestígio ele viu –
e pensou que imediatamente teria percebido qualquer um, ambos
tendo um gosto por roupas de cores vivas.
Empanturrado, ele caminhou lentamente ao redor da cidade,
subindo e descendo as ruas principais, olhando as lojas, bancos e
igrejas enquanto caminhava. Ele não tinha ideia se Amaranthus ou
Ban eram religiosos - de alguma forma, ele duvidava - mas as
igrejas eram frias, e foi bom sentar por alguns momentos e ouvir o
silêncio, como uma trégua do barulho da cidade.
647
Pessoa civil que acompanha as tropas do exército e vende mantimentos aos soldados.
1520

Ele chegou à casa da Sra. Warren um pouco antes do pôr do sol e,


depois de um jantar de peixe muito decente, foi para a cama,
cansado como um cachorro e com o espírito desanimado.
Essas condições foram revertidas pela manhã, e ele saltou da cama
com corpo e mente renovados, determinado em espírito. Ele iria
primeiro para a sede de Cornwallis; ele tinha visto a casa, com suas
bandeiras regimentais, em suas peregrinações na noite anterior.
Alguém lá sem dúvida saberia pelo menos onde Banastre Tarleton
deveria estar.
Alguém sabia. A notícia, porém, não era animadora: o coronel
Tarleton havia levado uma companhia de sua Legião Britânica para
o sul duas semanas antes, em busca de um corpo de milícia
americana em fuga. Um mensageiro voltou para relatar o resultado
de uma pequena, mas desagradável luta perto de um lugar chamado
Waxhaws648; as tropas de Tarleton venceram os americanos,
matando ou ferindo a maioria deles e fazendo o restante prisioneiro.
No entanto, o coronel Tarleton havia se ferido porque seu cavalo
caiu sobre ele e ainda não havia retornado a Charles Town.

Tudo bem, isso eliminou Ban definitivamente da lista de William.


Tarleton não poderia estar dando ajuda a Amaranthus em sua fuga.
E depois?
As docas, é claro. Ele começou a procurar lá na noite anterior, antes
que seu estômago tivesse outras ideias. Mas se ela estava indo para
a Filadélfia, como ela disse, e não tinha tomado um navio de
Savannah - o que ela não fez, ele verificou - então Charles Town
era o próximo grande porto do qual ela poderia razoavelmente ter
feito isso. E com certeza uma jovem viajando sozinha (Deus, ela
estava sozinha? Será que ela fugiu com alguém? Certamente não...)
acharia a viagem de navio mais segura, além de mais confortável,
do que correr o risco de viajar por estradas repletas de soldados,
sapadores649, ex-escravos e carroças comerciais.

648
A Batalha de Waxhaws (29.05.1780) ocorreu perto de Lancaster, Carolina do Sul. Foi vencida pela
força britânica comandada pelo Banastre Tarleton (1754-1833) contra a força continental de Abraham
Buford (1747-1833). Essa batalha também é conhecida como Massacre de Buford, pela quantidade de
soldados continentais mortos (113) em relação aos britânicos (5).
649
Sapadores são soldados do batalhão de Engenharia que fazem trabalhos braçais na construção de
pontes, estradas, túneis, etc.
1521

Foi um dia lindo, e ele começou sua busca com diligência,


começando com o escritório do capitão do porto e uma lista de
navios que navegaram na última semana para Filadélfia ou New
York (apenas no caso de ela estar indo para Ben ...) e manifestos
para aqueles que os haviam postado. O nome dela não estava em
nenhuma das listas - mas então, ele argumentou consigo mesmo,
ela não necessariamente estaria; se ela tivesse navegado como
passageira particular em um pequeno barco, ela não estaria listada
em qualquer lugar ...
No final, tudo se resumiu ao que ele já sabia que aconteceria: um
trabalho árduo pelas docas a pé, fazendo perguntas a todos que
encontrava.
Depois de uma hora disso, o lindo dia estava começando a
escurecer, quando um banco de névoa se aproximou. Ele decidiu
matar a sede e começou a subir o cais - um cais pequeno que
atracava barcos de pesca e navios comerciais menores - em direção
à costa. O que ele encontrou, porém, foi Denys Randall.
Novamente.
"Hoy!" William disse em voz alta, vindo por trás de Denys e
batendo-lhe no ombro. “Você mora nas docas?”
"Eu poderia perguntar o mesmo de você", disse Denys em seguida,
e William percebeu que não estava sozinho; ele estava tentando
proteger um homem pequeno, cujo rosto enrugado o fazia parecer
um quebra-nozes de Natal, do ponto de vista de William.
"Quem você está procurando agora?"
"Uma mulher jovem", disse William suavemente. "Quem é seu
amigo?"
Denys foi privado pela primeira vez de seu ar de zombaria e
autocontrole.
William achava que, no momento, ele não se parecia mais com
nada mais do que um gato em tijolos quentes. Denys olhou
rapidamente para seu companheiro, cuja semelhança com um
quebra-nozes de Natal estava se tornando mais pronunciada a cada
momento, então se voltou para William, uma pulsação latejando
visivelmente na lateral de sua mandíbula.
“Devo ir falar com alguém”, disse ele. "Rapidamente. Este é Herr
Weber; fique de olho nele. Eu estarei de volta, o mais rápido que
puder. " E com isso, ele desapareceu no cais em direção à água,
1522

quase correndo com a pressa.


William hesitou, sem saber o que fazer. Ele estava um pouco com
medo de que Denys pudesse ter se assustado - bem, claro que sim,
mas medo de quê? - e abandonado completamente seu
companheiro alemão. Nesse caso, o que ele faria com o sujeito?
Weber estava olhando para as tábuas do cais, a testa ligeiramente
franzida. William pigarreou.
"Quer uma bebida?" ele perguntou educadamente, e acenou com a
cabeça em direção a uma cantina com as portas abertas na margem,
onde um par de grandes barris e a presença de um marinheiro
deitado no chão insensível provavelmente indicavam um
estabelecimento que vendia bebidas alcoólicas.
"Ich spreche kein Englisch"650, disse o homem, estendendo as mãos
em um pedido educado de desculpas.
"Keine Sorge"651, disse William, curvando-se. “Ich spreche
Deutsch.” Ele poderia ter informado Herr Weber que suas calças
estavam pegando fogo, em vez de fazer uma simples declaração de
que ele, William, falava alemão.
Uma sensação de alarme convulsionou as feições do quebra-nozes
e ele se virou descontroladamente, procurando por Denys, que
agora havia desaparecido.
William, com medo de que Weber estivesse prestes a fugir,
agarrou-o pelo braço.
Isso resultou em um grito agudo e uma pancada no estômago de
William. Considerando o tamanho de Weber, não foi uma tentativa
ruim, mas William grunhiu com o impacto, largou o braço de
Weber, agarrou o homem pelos ombros e o sacudiu como um rato.
"Quieto!" ele disse. “Ich tue Euch nichts!652”
A declaração de que ele não queria fazer mal a Weber parecia não
acalmar o cavalheiro, mas o tremor pelo menos o impediu de lutar
para fugir. Ele ficou mole nas mãos de William e ficou ofegante.
"O que está acontecendo?" William perguntou rispidamente, em
alemão. Ele acenou com a cabeça para o cais. "Esse homem está
mantendo você prisioneiro?"
Weber balançou a cabeça.
650
“Eu não falo inglês”, em alemão.
651
“Não se preocupe”, e, logo em seguida, “Eu falo alemão”.
652
“Eu não vou te machucar”
1523

“Nein. Er ist mein Freund.653”


"Bem então." William se soltou e deu um passo para trás, as mãos
abertas em sinal de inofensividade. "Meiner auch."
Weber acenou com a cabeça com cautela e endireitou o colete, mas
recusou mais conversa, retomando sua impassibilidade de madeira.
Um leve tremor passava por sua pessoa em intervalos, mas seu
rosto não mostrava nada, embora ele olhasse de vez em quando na
direção da névoa cada vez mais profunda no final do cais. William
podia ver formas - principalmente mastros que emergiam
repentinamente da névoa conforme o ar mudava - e o ar denso
carregava gritos aleatórios que soavam estranhamente distantes em
um momento e surpreendentemente próximos no seguinte. A névoa
estava se intensificando, se arrastando pelo cais, e ele teve uma
súbita sensação de desorientação, como se o mundo estivesse se
dissolvendo sob seus pés.
E então Denys apareceu de repente, sem nenhum aviso. Seu rosto
ainda estava ansioso, mas exibia uma resolução definida. Ele
agarrou o braço de Weber, olhou para William e disse brevemente:
"Kommt.654" William não perdeu tempo em discutir, mas agarrou o
outro braço do cavalheiro e, entre eles, ele e Denys empurraram o
homenzinho para a névoa e subiram por uma prancha de embarque
que de repente apareceu na frente deles.
Um homem alto de casaco azul surgiu no convés, flanqueado por
dois marinheiros. Ele olhou atentamente para Denys, acenou com
a cabeça, então, tendo um vislumbre de William, recuou como se
tivesse visto um demônio.
"Um soldado", disse ele bruscamente para Denys, pegando-o pela
manga. “Um, eles disseram! Quem é?"
"Eu sou-" William começou, mas Denys o chutou no tornozelo.
“Seu amigo,” William disse, acenando casualmente para Denys.
“Não há tempo para isso”, disse Denys. Ele enfiou a mão no peito
e retirou uma pequena bolsa gorda, que entregou. O capitão, pois
assim devia ser, William pensou, hesitou por um momento, olhou
para ele com desconfiança novamente, mas a pegou.
No instante seguinte, ele estava descendo de volta pela prancha,
impulsionado por um empurrão urgente de Denys nas costas. Ele
653
“Não. Ele é meu amigo”. Pouco depois, “Meu também”
654
“Venha”
1524

atingiu o cais cambaleando, mas recuperou o equilíbrio


imediatamente e se virou para ver o navio - parecia um pequeno
brigue, pelo que ele podia ver através da névoa - puxar a prancha
de embarque como uma língua sugada, lançar uma linha final, e
com um chocalho dos brandais655 e um estalo de velas se afastar
lentamente do cais. Em instantes, ele desapareceu na escuridão.
"Que diabos aconteceu?" ele perguntou. Bastante moderadamente,
considerando todas as coisas. Denys transpirava como se tivesse
corrido mais de um quilômetro e meio sob os braços, e a ponta da
gravata estava escura de suor. Ele olhou por cima do ombro para
ter certeza de que o navio havia partido, e então se virou para
William, sua respiração começando a diminuir.
“Herr Weber tem inimigos”, disse ele.
“Assim como todo mundo, atualmente. Quem é Herr Weber? ”
Denys fez um som que pode ter sido uma tentativa de riso irônico.
"Bem ... ele não é Herr Weber, para começar."
"Você está planejando me dizer quem ele é?" William disse
impacientemente.
“Porque eu tenho negócios em outro lugar, se você não tiver.”
"Além de procurar uma garota, você quer dizer?"
“Quero dizer jantar. Você pode me dizer quem é nosso amigo
recente no caminho.”
"ELE TEM alguns pseudônimos", disse Denys, no meio de uma
tigela de sopa cheia de amêijoas. “Mas o nome dele é Haym
Salomon. Ele é judeu ”, acrescentou.
"E?" William tinha comido seu próprio ensopado rapidamente e
estava limpando a tigela com um pedaço de pão. O nome soava
vagamente familiar, mas ele não conseguia imaginar por que
deveria. Salomon. Haym Salomon… Era a palavra “judeu” que
fornecia o elo que faltava na memória.
“Ele é polonês, por acaso?” ele perguntou, e Denys engasgou com
um molusco.
"Oh, ele é." William ergueu a mão em direção à garçonete e
apontou para sua tigela vazia com um gesto indicando que gostaria
de enchê-la novamente. “Como ele escapou de ser executado em
655
Brandal : em náutica, é o termo usado para designar cada um dos cabos, normalmente em aço, que
servem para fixar o mastro no sentido transversal.
1525

New York?”
Denys tossiu, engasgou e tossiu de forma explosiva, espalhando
migalhas de pão na mesa, gotas de sopa e um grande pedaço de
marisco. William revirou os olhos, mas pegou a jarra de cerveja e
encheu as canecas.
Denys esperou até que o ensopado fresco fosse trazido e seus olhos
parassem de lacrimejar, então se inclinou sobre a tigela, falando em
uma voz que mal era alta o suficiente para ser ouvida acima do
barulho das canecas e da conversa barulhenta na taberna.

"Como, em nome de Deus, você ficou sabendo disso?" ele disse.


William encolheu os ombros. “Algo que meu tio disse. Um judeu
polonês que foi condenado à morte como espião em New York. Ele
ficou bastante surpreso ao ouvir falar dele vivo e aqui. Então,” ele
acrescentou, pegando uma colher saborosa de sopa, “se esse é
quem é seu amiguinho - e bastante claramente ele é - então eu estou
me perguntando quem - ou melhor, o que - você é, atualmente.
Porque Herr Weber claramente não está a serviço de Sua
Majestade”.
Denys bebeu o resto de sua cerveja deliberadamente, as
sobrancelhas franzidas enquanto ele considerava William.
“Suponho que não importa que você saiba; ele já está fora de
alcance”, disse ele por fim. Ele arrotou levemente, disse: “Com
licença” e serviu mais cerveja, enquanto William esperava
pacientemente.
"Sr. Salomon é um banqueiro”, disse Denys, e tendo evidentemente
decidido contar a William mais ou menos a verdade, continuou.
Nascido na Polônia, Salomon veio para New York quando jovem
e fez uma carreira de sucesso. Ele também começou a se intrometer
- com muita cautela - na política revolucionária, organizando várias
transações financeiras em benefício do novo Congresso e da
revolução emergente.
“Mas ele não foi tão cauteloso quanto pensava, e os britânicos o
pegaram mesmo e ele foi de fato condenado à morte - mas então ele
obteve um perdão, embora o colocassem em um navio velho no
Hudson e o fizessem ensinar inglês para soldados hessianos por
dezoito meses.” Ele tomou outro gole de cerveja. "Mal sabiam eles
que ele os estava exortando a desertar - o que um bom número deles
1526

realmente fez, aparentemente."


"Eu sei", disse William secamente. Um grupo de desertores
hessianos tentou matá-lo durante Monmouth - e quase chegou perto
de fazer isso também. Se seu desprezível primo escocês não o
tivesse encontrado no fundo de uma ravina com o crânio rachado
... mas não há necessidade de se preocupar com isso. Não agora.
“Companheiro persistente, então,” ele disse. "Então agora ele está
aqui, e como não parece haver nenhum Hessiano por perto para ser
enganado, presumo que ele tenha voltado aos seus truques
financeiros?"
“Até onde eu sei,” Denys disse, agora todo indiferente. "Bom
amigo do General Washington, ouvi dizer."
"Bom para ele", disse William em breve. "E você? Como você está
sentado aqui me contando tudo isso, devo presumir que agora você
também é um amigo pessoal do Sr. Washington? " William, de fato,
não ficou realmente surpreso ao ouvir essas coisas.
Denys tirou um lenço e acariciou os lábios delicadamente.
"Não eu, tanto quanto meu padrasto", disse ele. "Sr. Isaacs é um
bom amigo do Sr. Salomon e compartilha tanto de seus sentimentos
políticos quanto de sua perspicácia financeira.”
"É?" William disse, erguendo as sobrancelhas. "Você não me disse
que seu padrasto havia morrido e é por isso que você tirou o ‘ Isaacs
’ de seu sobrenome?"
"Eu disse?" Denys parecia pensativo. "Bem ... muitas pessoas
acreditam que ele está morto, vamos colocar dessa forma. Muitas
vezes é mais fácil fazer certas coisas se as pessoas não sabem
exatamente com quem estão lidando. ”
O fato de que ele, William, simplesmente não sabia com quem
estava lidando estava se tornando dolorosamente óbvio.
"Então ... você é um vira-casaca, mas não se preocupou realmente
em tirar e virar do avesso, é isso?"
"Acho que o termo real pode ser intrigante, William, mas o que é
uma palavra? Comecei a trabalhar com meu padrasto quando tinha
quinze anos ou mais, aprendendo a lidar com o mundo das finanças
e da política. Ambos os fios tecem através da guerra, você sabe. E
a guerra é cara.”
“E às vezes lucrativa?”
Algo que podia ser ofensivo ondulou sob a expressão plácida de
1527

Denys, mas desapareceu em um pequeno gesto de dispensa digna.


“Meu verdadeiro pai era um soldado, você sabe, e ele me deixou
uma quantia confortável de dinheiro, com a condição de que eu
deveria usá-lo para comprar uma comissão - se eu me revelasse um
menino, claro. Ele morreu antes de eu nascer.”
"E se você fosse uma menina?" William de repente começou a se
perguntar se Denys poderia ter uma pistola carregada no colo, sob
a mesa.
“O dinheiro teria sido meu dote de casamento e, sem dúvida, eu
agora seria a esposa de algum comerciante rico e chato que me batia
uma vez por semana, me fodia uma vez por mês e, além disso, me
deixava por conta própria.”
Apesar de sua cautela, William riu.
“Minha mãe queria que eu fosse um clérigo, pobre mulher.” Denys
encolheu os ombros. "Sendo assim, então ..."
"Sim?" As panturrilhas de William se contraíram. Sua mão
esquerda estava embaixo da mesa, ainda segurando a colher de sua
sopa, o cabo se projetando entre os dedos cerrados de seu punho.
Não era a arma que ele teria escolhido, mas, se necessário, ele
estava preparado para enfiar no nariz de Denys. Uma conversa
como essa só poderia ter um fim: convidar William para se juntar
a Denys em sua intriga.
Ele estava meio divertido com a situação. Também um pouco
irritado, mas cauteloso com isso. Se Denys fizesse tal convite e
William se recusasse categoricamente - Denys poderia considerar
perigoso deixar William solto para repetir tudo isso.
"Bem ..." Denys olhou para seu uniforme. "Você me disse que
renunciou à sua comissão."

"Eu renunciei. Isso ”- ele acenou com a mão livre para baixo na
frente de seu casaco vermelho -“ é apenas para me dar um apoio -
e passagem segura - enquanto procuro pela esposa de meu primo.”
Os olhos de Denys se arregalaram.
“Essa é a garota que você está atrás? Ela está perdida? "
Percebo que você não pergunta de qual primo. "Não, ela não está
perdida; ela teve um desentendimento com seu marido”- para dizer
o mínimo -“ e decidiu ir para a casa de seu pai. Mas meu tio ficou
preocupado com a segurança dela na estrada e me mandou
1528

providenciar para que ela chegasse em segurança ao seu destino.


Achei que se ela passasse por Charles Town - o que provavelmente
aconteceria - poderia pedir ajuda a Ban Tarleton; ela e o marido o
conhecem. ”
“Infelizmente, o Major Tarleton não está em Charles Town.” A voz
falou atrás dele, uma voz inglesa que seu corpo reconheceu antes
que sua mente o fizesse, e ele se virou rapidamente, a colher
firmemente cerrada.
“Bom dia, capitão Lord Ellesmere”, disse Ezekiel Richardson. Ele
olhou com indiferença para a colher e curvou-se ligeiramente.
“Espero que vocês perdoem a interrupção, senhores. Acontece que
ouvi o nome do Major Tarleton. Ele e o Major Ferguson estão, de
fato, perseguindo vários grupos de milícias americanas em retirada,
correndo para o sul.”
William hesitou por um momento, dividido entre a curiosidade -
alimentada pela indignação - e a conveniência. Mas foi um instante
longo demais; Richardson puxou um banquinho e sentou-se à
pequena mesa redonda, entre William e Denys. Bem dentro de uma
distância adequada para agarrar - ou atirar ou apunhalar, nesse
caso.
“Herr Weber nos deixou em ordem?” - Richardson perguntou,
provavelmente para Denys, mas seus olhos estavam fixos em
William.
“Bastante nervoso,” Denys disse, “mas bastante intacto. Nosso
amigo William foi muito útil para impedi-lo de pular do cais e
nadar para casa enquanto eu fazia os preparativos finais.”
"Estamos muito gratos a você, Lord Ellesmere."
"Meu nome é Ransom, senhor."
As sobrancelhas esparsas se ergueram.
"De fato." Richardson, que não estava de uniforme, mas usando um
terno cinza decente, lançou um rápido olhar para Denys, que deu
de ombros ligeiramente.
"Eu acho que sim", disse ele obliquamente.
“Se o que vocês pensam é que vou escolher me juntar a vocês em
seus jogos traiçoeiros, senhores”, disse William, afastando-se da
mesa, “devo desiludir vocês dessa ideia. Bom dia."
"Não tão rápido", disse Richardson, colocando a mão no antebraço
de William.
1529

"Por favor, meu senhor." Havia uma leve inflexão zombeteira


naquele "meu senhor" - ou pelo menos era o que parecia para
William, que não estava com humor para brincadeiras.
"Sem comissão, sem patente, e sem 'meu senhor'. Seja gentil e
remova sua mão, senhor, ou eu a removerei para você." William
fez um leve gesto com a colher, que era frágil, mas feita de lata e
cujo cabo tinha uma ponta triangular. Richardson fez uma pausa e
os músculos de William se contraíram.
A mão levantou, porém, bem a tempo.
"Eu sugiro que você considere a sugestão de Denys", disse
Richardson, seu tom leve. “Renunciar à sua comissão sem dúvida
causou algumas fofocas nos círculos do exército - e se você recusar
ser tratado por seu título, causará mais. Eu acho, porém, que você
pode hesitar em causar o tipo de fofocas que serão desencadeadas
se a razão por trás de suas ações vier a se tornar pública.”
"Você não sabe nada de minhas razões, senhor." William se
levantou e Richardson também.
“Nós sabemos que você é o filho bastardo de um certo James
Fraser, um traidor jacobita e atualmente rebelde,” ele disse
confortavelmente. "E um olhar para vocês dois - desenhados lado
a lado nos jornais? - seria o suficiente para convencer qualquer um
da verdade."
William deu uma risada curta, embora tenha saído como um latido
rouco.
"Diga o que quiser, senhor, a quem quiser. Vá para o diabo."
E com isso, ele enfiou a colher, o cabo primeiro, na mesa e se virou
para ir embora. Atrás dele, Richardson falou, sua voz ainda
agradável.
“Eu conheço sua irmã,” ele disse.
Os ombros de William ficaram tensos, mas ele continuou andando
até que as docas de Charles Town estivessem bem para trás.
1530

131

TEMPESTADE EM RIDGE

4 de julho de 1780 d.C.


Ao Coronel James Fraser, Fraser’s Ridge
De John Sevier
Sr. Fraser--
Escrevo primeiro para lhe agradecer pelo Presente de seu mais
excelente Whisky. Tive a Oportunidade de visitar a Sra. Patton
recentemente e compartilhei com ela um pequena Garrafa que
eu tinha com a minha pessoa. Julgando pelo Comportamento
dela, acredito que sua Clientela será bem-vinda ao Moinho dela
a qualquer momento que você desejar, desde que você venha
armado com o Tipo certo de Moeda.
Também escrevo para lhe dizer que Nicodemus Partland,
enquanto inadvertidamente responsável pela minha Apreciação
do seu Uísque, não é, por outro lado, nenhum presente para
uma Sociedade liberal. O Sr. Cleveland, em sua Qualidade
como Xerife, prendeu o Sr. Partland e três de seus
Companheiros, sob Acusações de perturbar a Paz. Ele os
manteve por três Semanas em seu Celeiro, e depois os liberou
separadamente, um a cada Semana, pelas três Semanas
seguintes, garantindo assim que o Sr. Partland não seria
saudado por um grande Grupo de Seguidores em seu eventual
1531

Reaparecimento.
Eu mantive o Ouvido atento, mas não ouvi Nada sobre qualquer
novo Esforço para criar um Grupo de Agressão (pois não
chamarei tal Corpo de Comitê de Segurança, já que o Termo é
frequentemente muito desrespeitado) perto da Linha de
Tratado.
Se as Terras Cherokee permanecem quietas, outros lugares não.
Eu tive uma Mensagem de um Major Patrick Ferguson, que no
Meio do Cerco de Charles Town foi enviado para o Sul com o
Major Tarleton (pois eu sei que você está familiarizado com o
Nome deste Cavalheiro) e sua Legião Legalista britânica, de
onde eles expulsaram uma Força Americana em Monck’s
Corner656, perto de Charles Town. Você me perguntou se eu
conhecia o Major Ferguson, e agora eu conheço. Devo ficar
atento a quaisquer outras Notícias dele.
Seu Obediente Servo,
John Sevier

10 de julho de 1780

TINHAM OCORRIDO TEMPESTADES na montanha durante


toda a semana e o dia tinha começado com um breve barulho de
chuva contra as venezianas uma hora ou mais antes do
amanhecer e uma explosão de vento frio que desceu pela
chaminé, atingiu as brasas extintas e espalhou cinzas quentes por
todo o chão do quarto. Jamie saltou da cama e espirrou água do
jarro sobre o tapete da lareira, apagando fagulhas perdidas com
seus pés descalços e murmúrios de execrações sonolentas em

656
Fato real ocorrido em 14 de abril de 1780.
1532

gaélico.
Ele cutucou as brasas restantes, recheou com alguns pedaços de
pinheiro gordo e um tronco de nogueira que já havia queimado
há mais tempo entre eles com um pouco de gravetos, e ficou lá
só com sua camisa, os braços cruzados com força contra o frio
do quarto, esperando para ter certeza de que a madeira fresca
havia pegado. Ainda confortável na cama, eu pisquei sonolenta,
apreciando a visão dele. A luz nascente do novo fogo brilhava
atrás dele e tremeluzia nas pedras da lareira, fazendo a sombra
de seu longo corpo visível através do linho. O toque desse corpo
ainda estava vividamente impresso na minha pele, e comecei a
me sentir um pouco menos sonolenta.
Quando ele teve certeza de que o novo fogo estava bem
encaminhado, ele acenou com a cabeça e murmurou alguma
coisa - se para si mesmo ou para o fogo, eu não sabia; existiam
encantamentos das Terras Altas para o fogo e ele sem dúvida
conhecia alguns. Satisfeito, ele virou-se, rastejou de volta para a
cama, envolveu seus longos membros frios em volta de mim
suspirando enquanto relaxava no meu calor, peidava e voltava
alegremente a dormir.
No momento em que acordei novamente, ele tinha ido embora,
e o quarto estava quente e cheirava agradavelmente a fantasmas
de terebentina e fogo. Eu podia ouvir o vento assobiando nos
cantos da casa, porém, e o rangido das novas madeiras e ripas
das paredes do terceiro andar logo acima de nós. Outra
tempestade estava chegando; eu podia sentir o cheiro forte de
ozônio no ar.
Fanny e Agnes estavam de pé; eu podia ouvir o som abafado de
suas vozes na cozinha, em meio a sons encorajadores de café da
manhã sendo feito. Agnes concordou, com uma mistura de
apreensão e excitação, em ir para Charles Town com os
Cunninghams e, em seguida, para Londres, quando ela
1533

teoricamente teria decidido qual dos dois tenentes seria seu


marido. O capitão sobreviveu, mas teve um contratempo que
atrasou sua partida. Ele havia se recuperado, mas ainda estava
com a saúde frágil, e Jamie disse a ele que poderia ficar até que
as estradas estivessem mais seguras. Não havia chance de ele
cavalgar; suas pernas ainda estavam paralisadas, embora ele
tivesse sensações nos pés e eu pensasse ter visto um leve tremor
de seu dedo do pé esquerdo.
Silvia e as meninas também estavam de pé, embora apenas um
leve murmúrio de vozes tenha me alcançado das alturas do
terceiro andar. Jamie tinha considerado dar a elas uma das
cabanas confiscadas dos legalistas, mas ele, Jenny e Ian
pensaram que poderia ser má sorte para as quacres herdarem os
despojos da guerra, por assim dizer. Ele, Ian e Roger
construiriam uma nova cabana para elas, antes que chegasse o
inverno. Quanto a mim, estava mais do que feliz por ter mais
três mulheres capazes de cozinhar no local, embora a
experiência das Hardmans não se estendesse muito além de assar
batatas e fazer ensopados.

Eu não era exigente. Eu ainda estava me divertindo com a


novidade de ter vários outros alguéns que lidariam com o
constante malabarismo de transformar comida em refeições,
para não falar de ajudar a fazer coisas como sabão e velas. E
lavar a roupa...

Roger e Bree foram para Salem com a carroça, para trocar por
cerâmica e tecido - Bree ainda não teve tempo ou espaço para
começar a construir um tear, mas havia muitas mãos dispostas
disponíveis para as tarefas domésticas.
Eu molhei meu rosto com água fria, escovei meus dentes e me
vesti, sentindo-me mais alerta quando comecei a planejar o dia.
1534

Jamie não tinha ido caçar esta manhã; eu podia ouvir sua voz lá
embaixo, trocando gentilezas com as meninas. Se ele pretendia
passar o dia em casa, talvez eu pudesse induzi-lo a se retirar
comigo para um breve descanso depois do almoço ...
Como ele faz isso? Eu me perguntei. Como poderia apenas o
som de sua voz, sem palavras, apenas um estrondo suave, me
fazer lembrar a escuridão quente de nosso pré amanhecer na
cama?
Eu ainda estava pensando sobre isso, de uma forma vaga,
quando cheguei na cozinha, para encontrá-lo lambendo as
últimas gotas de leite da colher.
"Como você é esbanjador", eu disse, sentando-me em frente a
ele com um pequeno pote de mel e meio pão do guarda comidas.
"Leite no seu mingau?" A maioria dos escoceses das Terras
Altas torcia o nariz para tal indulgência, preferindo a severa
virtude da farinha de aveia sem adornos além de uma pitada de
sal. "Jenny iria te renegar."
"Provavelmente", disse ele, inabalável com a perspectiva. “Mas
com Ban e Ruaidh, ambas com bezerros, temos leite de sobra e
não seria certo deixá-lo desperdiçar, não é? Isso é mel? " Seus
olhos estavam focados no pote de mel assim que eu o coloquei.
Eu arranquei um pequeno pedaço de pão, cuidadosamente
espalhei um pouco do mel e entreguei a ele.
“Prove isso. Não desse jeito!” Eu disse, vendo-o prestes a
engolir tudo numa só mordida. Ele congelou, o pão a meio
caminho de sua boca.
"Como devo prová-lo, se não vou colocá-lo na boca?" ele
perguntou com cautela. "Você pensou em algum novo método
de ingerir?" Fanny riu atrás de mim. Agnes, colocando um prato
de bacon frito em seu cotovelo, semicerrou os olhos para
"ingerir", mas não disse nada. Ele ergueu o pedaço até seu nariz
1535

e cheirou com cautela.


"Devagar. Você deve saboreá-lo,” acrescentei de forma
reprovadora. "É especial."
"Oh." Ele fechou os olhos e inalou profundamente. "Bem, tem
um aroma fino, leve." Ele ergueu as sobrancelhas, os olhos ainda
fechados. “E um lindo buquê, para ser claro ... lírio do vale,
açúcar queimado, algo um pouco amargo, talvez ... " Ele franziu
a testa, concentrando-se, então abriu os olhos e olhou para mim.
"Estrume de abelha?"
Eu agarrei o pão, mas ele arrancou-o, enfiou-o na sua boca,
fechou os olhos novamente e assumiu uma expressão de êxtase
ao mastigá-lo.
"Você vai ver se eu vou te dar mais mel de sourwood657!" Eu
disse. "Eu estava guardando esse! "
Ele engoliu em seco, piscou e lambeu os lábios, pensativo.
“Sourwood. Não foi isso que você deu a Bobby Higgins semana
passada para fazê-lo cagar?"
"São as folhas." Acenei para uma jarra alta em cima do armário
simples. “Sarah Ferguson diz que o mel de sourwood é
monstruosamente bom e monstruosamente raro, e que o povo de
Salem e Cross Creek pode dar um pequeno presunto por um pote
dele. Mandei alguns com Bree. ”
"É mesmo, então?" Ele olhou para o pote de mel com mais
respeito. “E é de suas próprias pequeninas com ferrões, não é? "
"Sim, mas as árvores de sourwood florescem apenas por cerca

657
Tradução literal, madeira azeda. “Oxydendrum arboreum” não tem uma tradução em português.
Nativa da região leste dos EUA, é bem comum na cadeia inferior dos Apalaches, onde se localiza a
fictícia Fraser’s Ridge. As folhas tem características medicinais (diuréticas, analgésicas, anti-
inflamatórias – rins e beixiga – e antitérmicas) e o mel produzido a partir de sua linda floração é
aromático e valorizado. No Brasil, é cultivada em pequena escala no sul e é conhecida como árvore do
lírio do vale.
1536

de seis semanas, e eu só tinha duas colmeias instaladas perto


delas, até agora. Eu peguei isso assim que as árvores pararam de
florescer. É por isso que é tão — ”
Um estrondo de pés vindo da varanda e na porta da frente me
afogou, e o ar ficou cheio de vozes animadas de meninos
gritando, "Vovô!" "A Mhaighister63!" "Senhor Fraser! ”
Jamie enfiou a cabeça pelo corredor.
"O que?" ele disse, e os pés correndo tropeçaram de uma pausa
irregular em uma tempestade de exclamações e ofegos, no meio
do qual eu captei uma palavra: “Casacas vermelhas!”

-.-.-

JAMIE NÃO ESPEROU para ouvir mais. Ele se levantou,


empurrou os meninos para fora do caminho, e se dirigiu para a
porta da frente.
Corri para a cirurgia, peguei uma grande faca de amputação
curva do armário, e corri atrás de Jamie e os meninos. Jem, Aidan
e dois amigos ainda estavam ofegantes e explicando, em uma
tagarelice confusa. “São dois deles! " "Não, são três!" "Mas o
outro, ele não é um soldado - ele-" "Ele é um homem negro, A
Mhaighister! ”
Um homem negro? Isso não seria nada notável em qualquer
lugar das Carolinas — a não ser nas montanhas altas. Havia
alguns negros livres em Brownsville, e pequenos povoados que
incluíam pessoas de sangue misto, mas - um homem negro com
um casaco vermelho?
Jamie tinha deixado seu rifle em pé ao lado da porta no dia
anterior, e agora agarrou-o, seu rosto rígido e cauteloso.
1537

"Bidh socair”658, disse ele em poucas palavras para os meninos.


“Vão para a cozinha, mas fiquem lá dentro e mantenha seus
ouvidos alertas. Se vocês ouvirem qualquer tipo de tumulto,
levem as mulheres para fora e coloquem-nas em uma árvore.
Então vão buscar seus pais, rápido.”
Os meninos acenaram com a cabeça, sem fôlego, e eu passei por
eles com um breve olhar, sugerindo fortemente que seria melhor
nem pensar em tentar me puxar para fora da porta dos fundos e
me empurrar para cima de uma árvore, não importa o que
acontecesse. Todos pareciam evasivos, mas baixaram a cabeça.
Jamie abriu a porta e o ar frio soprou pelo corredor, chicoteando
minhas anáguas como uma espuma em volta dos joelhos.
Os homens - três deles, a cavalo - cavalgavam lentamente ladeira
acima em direção à casa. E, como os meninos haviam dito, todos
os três eram soldados britânicos de casaca vermelha, e o terceiro,
o homem na frente, era de fato um homem negro.
Na verdade ... todos eles eram.
Eu vi Jamie olhar para a floresta e a paisagem ao redor - eles
estavam sozinhos? Olhei ansiosamente além de seu cotovelo,
mas não pude ver ou sentir nada de errado. Nem ele; seus
ombros relaxaram um pouco e ele verificou seu rifle para ter
certeza de que estava preparado - estava sempre carregado - e o
colocou cuidadosamente atrás da porta, em seguida, saiu para a
varanda. Eu não larguei minha faca, mas a escondi nas dobras
da minha saia.
Os homens que se aproximavam nos viram na varanda; o líder
parou seu cavalo por um momento, depois ergueu a mão para
nós. Jamie levantou a mão em resposta e eles entraram.

658
“Fiquem calmos”, em gaélico.
1538

Dezenas de possíveis razões para tal visita estavam passando


pela minha cabeça, mas pelo menos não pareciam abertamente
ameaçadoras. O líder parou junto ao nosso poste de amarração,
desceu e largou as rédeas, deixando o cavalo para os outros
soldados, que permaneceram montados. Isso era vagamente
reconfortante; talvez eles tivessem vindo apenas para pedir
informações - pelo que eu sabia (e devotamente esperava), o
exército britânico não tinha negócios conosco no momento.
Obviamente, não era o Major Patrick Ferguson.
Eu tive uma sensação estranha entre minhas omoplatas, no
entanto. Não medo, mas algo inquietante. Algo parecia muito
familiar neste homem. Senti Jamie respirar fundo e soltar o ar
novamente, com cuidado.
“Dou-lhe as boas-vindas, senhor” disse ele, sua voz agradável,
mas neutra. "Você vai me perdoar por não usar seu sobrenome;
eu nunca soube qual era.”
“Stevens”, disse nosso visitante, e tirando o chapéu com laço,
fez uma reverência para mim.
“Capitão Joseph Stevens. Seu servo, Sra. Fraser. E ... seu,
senhor,” ele acrescentou, em um tom distintamente irônico que
me fez piscar. Ele estava usando uma peruca militar e de repente
eu o vi como eu o conhecia antes, em uma peruca branca
elegante e um uniforme verde, na plantação de River Run.
"Ulysses!" Eu disse, e soltei a faca com um baque alto.

-.-.-

JAMIE CONVIDOU O “CAPITÃO STEVENS” a entrar, com


o tipo de cortesia requintada que significava que ele estava
fazendo um resumo mental da localização de todas as armas
dentro da casa. Eu o vi conduzir Ulysses à sua frente para o
1539

escritório do laird e olhar para o rifle que estava atrás da porta


da frente enquanto ele o seguia, acenando para os meninos de
olhos arregalados - e uma Fanny de olhos igualmente
arregalados, que tinha aparecido vinda da casinhola da fonte -
quando ele passou.
"Fanny", eu disse, "vá até a cozinha, por favor, e pegue uma jarra
de leite e um prato de biscoitos ..."
"Comemos todos os biscoitos no café da manhã, senhora", disse
Fanny prestativamente. "Mas há meia torta no guarda-comidas."
“Obrigada, querida. Você e Agnes levam a torta e o leite para os
dois homens na varanda, por favor. Oh, Aidan. Leve isso de
volta para o meu consultório, sim? " Entreguei a ele a faca de
amputação, que ele recebeu como se fosse Excalibur,
equilibrando-a cuidadosamente em suas palmas.
Entrei no escritório e fechei a porta atrás de mim. Eu tinha visto
pela última vez Ulysses na plantação River Run, perto de Cross
Creek, onde foi mordomo da tia de Jamie, Jocasta659. Ele partiu
sob o que poderia ser educadamente chamado de circunstâncias
tensas, tendo sido revelado que ele tinha sido não apenas
mordomo de Jocasta por vinte anos, mas também seu amante -
e matou pelo menos um homem e - possivelmente - Hector
Cameron, o terceiro esposo de Jocasta. Eu não sabia o que ele
tinha feito nos últimos sete ou oito anos660, mas o fato de que ele
tinha chegado em qualquer lugar perto de Jamie agora - e
acompanhado por uma escolta armada - era profundamente
perturbador.

"Sra. Fraser.” Ele se virou quando eu entrei e agora se curvou


para mim, olhando-me com um olhar deliberadamente
659
A memória de Claire (ou da autora) falhou um pouco. Ulysses foi visto pela última vez em outubro de
1775 em Fraser’s Ridge, acompanhando Jocasta e Duncan Innes em parte da viagem desses últimos para
o Canadá. Livro 6 cap 110.
660
Seguindo a data apontada no livro 6, teriam se passado cerca de 5 anos.
1540

avaliativo e nem um pouco parecido com o de um mordomo.


"Estou feliz em ver você bem."
"Obrigada. Você está parecendo bastante ... bem, você mesmo.
Capitão Stevens.” Ele era. Alto e imponente em um uniforme
bem feito, ombros largos e em forma.
Apesar de sua aparente saúde, entretanto, seu rosto mostrava as
marcas de uma vida difícil - e seus olhos eram diferentes. Não
mais o vazio cortês de um criado. Esses olhos eram profundos,
ferozes e, para ser franca, me deram vontade de dar um passo
para trás.
Ele viu isso, e seus lábios se contraíram um pouco como que se
divertindo, mas ele desviou o olhar.
Jamie estava pegando uísque em seu armário. Ele acenou com a
cabeça para Ulysses a cadeira do visitante do outro lado da mesa
e colocou a bandeja de estanho surrada com a garrafa e os copos
na mesa antes de se sentar em sua própria cadeira.
"Posso?" Eu disse, e com o aceno de Ulysses eu servi uma dose
respeitável para ele, e o mesmo para Jamie. E para mim. Eu não
iria a lugar nenhum até descobrir o que o "Capitão Stevens"
estava fazendo aqui. Peguei meu copo e me sentei em um
banquinho, um pouco atrás de Jamie.
“Slàinte.” Jamie ergueu o copo brevemente e Ulysses sorriu
levemente.
"Slàinte mhath", disse ele.
"Você manteve seu Gàidhlig, então", disse Jamie, uma
referência deliberada, pensei, a River Run, onde a maioria dos
servos tinha pelo menos um conhecimento precário da língua
das Highlands.

“Não é de surpreender”, respondeu Ulysses, nem um pouco


1541

desconcertado. Ele tomou um gole do uísque, parou para


espalhar pela boca e balançou a cabeça com um pequeno “mm”
de aprovação. “Entrei para a companhia de lorde Dunmore661 em
74662. Você deve conhecer sua senhoria, é claro. "
Jamie enrijeceu ligeiramente.
"Eu conheço", disse ele educadamente. "Embora eu não tenha
tido o prazer de sua presença desde os dias antes de Culloden. ”
"O que?" Eu disse. "Eu não me lembro de um lorde Dunmore."
"Bem, ele ainda não tinha o título." Jamie olhou para mim e
sorriu um pouco, uma triste partilha da memória daqueles dias
difíceis. “Mas você o conheceu também, Sassenach ... John
Murray, ele era então; apenas um rapaz, um pajem de Charles
Stuart.”
"Oh. Sim." Eu me lembrei dele, só um pouco - um menino feio
com um queixo recuado, nariz grande e cabelos ruivos
espetados em tufos. "Então agora ele é lorde Dunmore ...?"
"Sim. Ultimamente, governador da Colônia da Virgínia”, disse
Ulysses. "E mais recentemente, comandante de uma grande
força contra os índios Shawnee em Ohio. Uma empreitada de
sucesso em que tive o privilégio de participar.” Ele sorriu então,
e eu senti um pequeno arrepio na boca do estômago ao pensar
nisso. As guerras indígenas eram um negócio desagradável.
“Sim,” Jamie disse, com desdém. “Mas certamente o exército
não tem negócios desse tipo com os Cherokee. Embora talvez
você tenha vindo com o consentimento deles para adquirir
pólvora e balas do governo? "
“Não tenho nenhum assunto do exército com os Cherokee, não”,
respondeu Ulysses educadamente. “Na verdade, penso em me
661
John Murray (1730 – 1809), lorde Dunmore, personagem real. As informações dadas por Jamie
correspondem aos fatos históricos.
662
1774 - Uma pequena confusão com a data apontada de sua partida no livro 6 (outubro de 1775)
1542

aposentar logo do exército. Talvez eu deva seguir seu exemplo,


Sr. Fraser, e me estabelecer como um senhorio. Mas por
enquanto, senhor, meu negócio é com você - embora esta visita
seja pessoal, e não uma mensagem oficial. Por enquanto.”
"Uma visita pessoal", Jamie repetiu, e recostou-se um pouco na
cadeira, inclinando a cabeça. "E qual pode ser o seu assunto
pessoal comigo?"
"Sua tia", disse ele, e se inclinou para frente, os olhos fixos nos
no rosto de Jamie. "Ela ainda está viva?"
Fiquei surpresa, mas ao mesmo tempo percebi que não estava
realmente surpresa com tudo. Nem Jamie, que não mudou sua
expressão, mas respirou longa e lentamente antes de responder.
“Ela está viva,” ele disse. "Embora eu não possa dizer a você
muito mais do que isso."
A expressão de Ulysses certamente mudou. Seu rosto estava
vívido, carregado de urgência. "Você pode me dizer onde ela
está."
Eu nem sempre conseguia dizer o que Jamie estava pensando,
mas, neste caso, estava razoavelmente certa de que estávamos
pensando a mesma coisa.
Jocasta casou-se com um dos amigos de Jamie, Duncan Innes,
enquanto ainda mantinha seu caso de longa data com Ulysses,
como ficamos sabendo muito mais tarde. No caótico rescaldo
dos eventos em River Run e as subsequentes revelações
dramáticas, Ulysses fugiu, Jocasta vendeu River Run e ela e
Duncan se mudaram para a Nova Escócia, e daí para uma
pequena fazenda na Ilha de St. John663.
Eu sabia que o exército britânico oferecia liberdade aos escravos

663
No livro 6, Ulysses sai de River Run com Jocasta e Duncan, acompanhando parte da viagem.
1543

que se juntassem a suas fileiras e, obviamente, esse foi o


caminho que Ulysses escolhera com lorde Dunmore. Jocasta o
havia alforriado secretamente anos antes, mas a liberdade
oficialmente reconhecida era um caminho muito mais seguro,
especialmente na Carolina do Norte, onde um escravo libertado
por seu senhor deve deixar a colônia em dez dias ou será sujeito
a recaptura e venda.
Agora ele era um homem livre, pela boa vontade do governo
britânico. Completa e permanentemente livre - contanto que ele
não fosse capturado por Americanos com outras ideias. Embora
esse conhecimento me deixasse feliz por ele, eu tinha muitas
reservas.
Por trás da máscara branda de servidão, este homem viveu por
vinte anos como o patrão desconhecido de River Run, e matou
sem remorso. Ele tinha, obviamente, amado Jocasta Cameron
apaixonadamente - e ela, a ele. E agora ele tinha vindo procurá-
la novamente ... Muito romântico. E muito inquietante.
Lembrei-me vividamente dos restos mortais de Daniel
Rawlings, esparramados no chão do mausoléu em River Run, e
uma onda de arrepios subiu pelas minhas costas.
Olhei rapidamente para Jamie, que cuidadosamente não olhou
para mim. Ele suspirou, esfregou a mão no rosto e a deixou cair,
encontrando os olhos de Ulysses.
“Não tive notícias de minha tia nesses últimos cinco anos”, disse
ele. “E não ouvi quase nada mais sobre ela, exceto que ela ainda
está viva. E bem. Ou pelo menos ela estava quando eu ouvi isso
de meu primo Hamish, quando eu o vi em Saratoga. Isso foi já
há três anos. E foi a última coisa que ouvi.”
Tudo isso era basicamente verdade. Por outro lado, sabíamos um
pouco mais do que isso, como Jocasta escrevia de vez em
quando para seu velho amigo Farquard Campbell, que morava
1544

em Cross Creek. Mas eu pude ver por que Jamie não tinha
intenção de colocar o capitão Ulysses Stevens em um caminho
perigoso em direção a um Duncan Innes, desavisado e
literalmente desarmado - o pobre homem tinha apenas um braço.
Ulysses olhou fixamente nos olhos de Jamie por um longo
minuto; eu podia ouvir o tique-taque do minúsculo relógio de
prata de Jenny na prateleira atrás de mim; ela tinha deixado
quando desceu para ajudar a pentear e cardar lã na semana
anterior. Por fim, Ulysses deu um pequeno grunhido, que pode
ter sido por diversão ou nojo, e recostou-se.
“Eu pensei que poderia ser assim,” ele disse suavemente.
"Sim. Lamento não ter uma resposta melhor para você, capitão."
Jamie empurrou a cadeira para trás e fez menção de se levantar,
mas Ulysses ergueu uma mão para detê-lo.
“Não tão rápido, Sr. Fraser - ou não, peço que me perdoe; é
General Fraser agora, não é? ”
"Não, não é", Jamie respondeu logo. “Renunciei à minha
comissão no Exército continental e eu não temos mais conexão
com ele. ”
Ulysses assentiu, urbano como sempre. “Claro, me perdoe. Mas
há algumas coisas mais difíceis de renunciar do que uma
comissão, não é? ”
"Se você tem mais a dizer", disse Jamie, com um tom áspero na
voz, "diga, então vá com Deus. Não há nada para você aqui. "
O sorriso de Ulysses mostrou um pré-molar ausente de um lado,
e um dente morto cinza ao lado dele. "Peço desculpas mesmo,
Sr. Fraser, mas acho que você vai descobrir que está enganado.
Eu tenho negócios aqui. Com você."
Eu soltei minha respiração, então a perdi completamente quando
ele enfiou a mão em seu casaco e retirou um documento de
1545

aparência muito oficial, lacrado com cera vermelha. Cera


vermelha, em minha experiência, geralmente era um mau sinal.
"Leia isso, senhor, se puder", disse Ulysses, e desdobrando-o,
colocou-o com cuidado na mesa na frente de Jamie.
Jamie ergueu as sobrancelhas e olhou para Ulysses por um
momento, mas então pegou a carta com um encolher de ombros
e arrancou o selo com a ponta do faca de esfolar que ele usava
como abridor de cartas. Seus óculos estavam apoiados na mesa,
e ele os colocou com lentidão deliberada, suavizando os vincos
na carta.
Eu podia ouvir vozes na casa; as meninas tinham voltado da
casinhola da fonte com o queijo para o jantar e o pote de
manteiga que precisaríamos para fazer o pão de amanhã. Senti
um cheiro de framboesa seguindo os passos de Fanny quando
passou pela porta, e o barulho suave de seu balde de lata,
roçando a parede quando ela se virou para chamar Agnes.
Teríamos uma torta fresca, então ... se as frutas sobrevivessem a
uma cozinha cheia de meninos famintos ...
Jamie disse algo muito terrível em gaélico, tirou os óculos e
lançou a Ulysses um olhar destinado a incendiar sua peruca. Eu
mergulhei a mão no meu bolso procurando meus próprios óculos
e peguei a carta dele.
Foi enviado por um tal lorde George Germain, secretário de
estado para o Departamento Americano. Eu tinha ouvido
bastante sobre lorde George Germain; John Grey havia
trabalhado com ele brevemente como diplomata e tinha uma
baixa opinião do homem. Mas isso não importava agora.
O que importava mesmo era que chamou a atenção de lorde
George Germain, secretário de estado, etc., aquele James Fraser
(conhecido outrora na Escócia como Lord Brok Turch, um
condenado e perdoado Jacobita) obteve, no Ano de Nosso
1546

Senhor de 1767, fraudulentamente uma concessão de terras na


Colônia da Carolina do Norte, deturpando e disfarçando ao
governador William Tryon sua identidade como católico, sendo
tais pessoas proibidas por lei de deter tais concessões.
Eu me senti como se estivesse sendo sufocada.
Era verdade. Não que Jamie tivesse se apresentado
incorretamente ao governador Tryon; o governador sabia tudo
sobre o catolicismo de Jamie, mas tinha fechado os olhos
deliberadamente a fim de obter a ajuda de Jamie em arrumar -
em mais de uma maneira - o tumultuado interior da Carolina do
Norte durante a Guerra da Regulamentação. Mas era
inegavelmente verdade que os católicos não eram, por lei,
autorizados a receber concessões de terras. E então…
Forcei-me a respirar e continuei lendo:

Não havendo no momento nenhum Governador devidamente


nomeado para a Colônia da Carolina do Norte, o Secretário de
Estado das Colônias agora ordena que o citado James Fraser
entregue a Concessão de Terras, assim obtida
fraudulentamente, ao capitão Ulysses Stevens da Companhia
dos Pioneiros Negros de Sua Majestade, atuando como Agente
da Coroa, e desocupe as premissas da concessão (localização e
dimensões sendo descritas no Documento em anexo). Quaisquer
inquilinos que atualmente vivam sob outorga podem
permanecer pelo espaço de um ano. Após esse período, os
inquilinos devem deixar o local ou fazer um arranjo para
entregar o aluguel, conforme pode ser determinado pelo novo
titular desta Outorga.
As palavras ficaram borradas em pontos diante dos meus olhos,
e deixei cair a carta novamente à mesa.
"Seu maldito réptil!" Eu disse, olhando para Ulysses. Ele me
1547

ignorou.
"Eu tomaria conhecimento disso imediatamente, se eu fosse
você, Sr. Fraser." Ele acenou com a cabeça para o papel. “Você
vê que não há menção de processo, de multas ou prisão. Podia
ter havido. Eu tenho o original acordo, assinado por você, no
decurso do qual é declarado que você não é um católico. E se
você escolher ignorar—”
A porta se abriu e a cabeça bem coberta de Fanny apareceu.
"Senhor, Agnes perguntou se esses homens vão ficar para o
jantar?"
Houve um momento de profundo silêncio, e então Jamie se
colocou lentamente em pé.
“Eles não vão, a leannan. Vá e diga isso, sim? "
Ele esperou, ainda de pé, até que a porta se fechasse novamente.
Eu estava agora respirando tão rápido que manchas brancas
apareciam no canto da minha visão, mas eu vi seu rosto muito
claramente.
“Saia da minha casa,” ele disse calmamente. “E não volte mais.”
Ulysses ficou onde estava, um leve sorriso no rosto, e então se
levantou também, muito devagar.
“Como eu estava dizendo, senhor, devo obedecer a essa ordem
prontamente. Se você optar por ignorá-la, o exército terá
justificativa mais do que suficiente para vir e queimar esta casa
bem sobre a sua cabeça.” Ele fez uma pausa e se virou para olhar
deliberadamente para a porta onde Fanny havia desaparecido.
"Sobre todas as cabeças."
Jamie fez um movimento rápido e Ulysses se encolheu, para
meu prazer. Mas Jamie apenas pegou a carta oficial da mesa. Ele
amassou-a em uma bola e, virando-se, jogou-a na lareira. Então
voltou-se novamente para Ulysses, com uma expressão que o fez
1548

ficar tenso.
Ele não falou. Ulysses abaixou-se rapidamente e arrancou a
carta das cinzas fumegantes, sacudiu-a para limpar, então girou
nos calcanhares e saiu, reto como um mordomo carregando uma
bandeja.

-.-.-

JAMIE SENTOU-SE lentamente e colocou as mãos muito


precisamente na mesa à sua frente, palmas das mãos na madeira,
pronto para se colocar em ação. Assim que ele decidisse o que
fazer.
Na verdade, havia um governador da Carolina do Norte em
exercício - Richard Caswell, que conhecíamos muito bem. Ele
não era, porém, um governador nomeado pelo governo
britânico; ele tinha sido temporariamente eleito pelo Comitê de
Segurança nomeado pelo Congresso Provincial; ambas eram
entidades bastante fluidas, mas nenhuma delas legítima, até
onde lorde George Germain estava ciente.
“Eles não podem realmente ...” comecei, mas parei. Eles
podiam. Muito facilmente, e engoli, minha pele formigando com
o medo repentino. O cheiro de fresco de serragem e piche
escorrendo veio pela porta da frente com a rajada de vento, do
local perto da árvore de cedro vermelho onde os homens
cortaram calços e telhas feitas com enxós para o telhado.
Madeira. Ninguém que passou por um incêndio em casa ouve a
palavra "queimar" com qualquer senso de equanimidade, e eu
não estava me sentindo nem mesmo nem um pouco equânime.
Nem Jamie.
"Não acho que seja uma falsificação", eu disse por fim. "Essa
carta."
1549

Ele balançou sua cabeça.


"Eu vi documentos oficiais suficientes para conhecer os selos,
Sassenach."
"Você acha - ele é o responsável por isso? Ele incitou o governo
contra nós? Ele poderia?"
As sobrancelhas de Jamie subiram e ele olhou para mim.
“Eu imagino que muitas pessoas saibam sobre isso ... mas eu
duvido que a maioria deles tenha algo contra mim, e menos
ainda seria capaz de ter a atenção do secretário para um assunto
tão pequeno. "
“Hum. Lorde Dunmore, talvez? " Eu sugeri delicadamente. “Ele
não se importaria com certeza, mas se ele sentisse que deve algo
a Ulysses ...”
O sangue estava subindo no rosto de Jamie e sua mão esquerda
fechada como se fosse dar um soco.
“O que foi que a balgair 664disse? Que ele pensou em se tornar
um senhorio ele mesmo?"
“Jesus H. Roosevelt Cristo.” Eu olhei com atenção para a
superfície danificada da escrivaninha, como se a carta
espalhafatosa ainda estivesse lá. “E ele disse que tem o
documento original. Não 'o governo' ou 'lorde Germain'. Ele. ”

O governo britânico tinha de fato o hábito de confiscar


propriedades de rebeldes e concedê-las a seus próprios lacaios -
eles fizeram isso em todas as Highlands, depois de Culloden, e
Jamie salvou Lallybroch apenas por ter feito uma escritura para
seu sobrinho de dez anos antes de Culloden.
Um momento de silêncio.
"Eu acho que ele tem mais do que aqueles dois homens com
664
“Raposa”
1550

ele?" ele perguntou, mas ele não estava me perguntando e


imediatamente respondeu à sua própria pergunta. “Sim, eu acho.
Quantos, essa é a questão ... ”
Seja qual for a resposta, isso o colocou de pé, um olhar de
decisão no rosto. Com uma camada subjacente de ferocidade
intencional que eu não tive problemas em distinguir. Eu senti o
mesmo, choque e medo se transformando em fúria.
"Aquele bastardo!" eu disse.
Ele não respondeu, mas enfiou a cabeça no corredor e berrou,
"Aidan!" na direção da cozinha.

-.-.-

BOBBY HIGGINS VEIO primeiro, seu rosto pálido corado com


alarme e excitação. Ele não era um bom cavaleiro, mas sabia
cavalgar bem o suficiente em uma trilha aberta - e desde o urso,
ele voltou a carregar um mosquete.
"Ian vai descer, o mais rápido que puder", Jamie disse a ele,
apressadamente selando e colocando os arreios em Phineas, o
mais rápido dos nossos três cavalos de sela. "E enviei os rapazes
para levar a notícia aos Lindsays, Gilly MacMillan e aos
McHughs. Eles vão espalhar a notícia ainda mais, mas eles virão
aqui por si mesmos. Você vem comigo, e quando tivermos
certeza do caminho, eu vou mandar você de volta aqui para
contar aos outros e levá-los para se juntar a mim, sim? "
"Sim, senhor!" Bobby disse isso por reflexo, endireitando as
costas. Uma vez soldado, sempre um soldado. Jamie deu um
tapinha em seu ombro e colocou o próprio pé no estribo.
"Vamos, então."
Ele abençoou quem estava no comando do clima, seja santo ou
demônio, pois a chuva tinha se afastado e não precisava de
1551

nenhum truque para seguir a trilha de Ulysses e seus dois


homens no solo lamacento.
Logo ficou evidente que havia mais de dois homens com
Ulysses; Jamie e Bobby chegaram a um ponto não a mais de um
quilômetro e meio da casa, onde as marcas na lama revolvida
deixavam claro que Ulysses havia se juntado a um bando de
vinte homens, pelo menos; talvez mais.
“Volte para a casa!” ele gritou para Bobby, e acenou com a mão,
circundando a pequena clareira. "Diga a Ian para trazer tantos
homens quanto ele puder e deixe uma mensagem para o resto;
um cego poderia seguir este bando!”
Bobby assentiu, abaixou o chapéu e começou a subir a colina,
inclinando-se perigosamente junto à sela, as rédeas apertadas
contra o peito. Jamie fez uma careta, mas acenou tranquilizador
quando Bobby olhou para trás por cima do ombro. Ele só
precisava ficar no cavalo até chegar em casa.
"Mesmo se ele cair e quebrar o pescoço", ele murmurou para si
mesmo, controlando as rédeas, “eles podem seguir nosso
caminho até aqui. Se não chover.” Ele olhou para cima, para um
redemoinho vertiginoso de nuvens negras, e viu o flash de um
raio silencioso. Ele contou dez antes que o estrondo de um
trovão distante o alcançasse.
"Trobhat!”665 ele disse a Phin, e eles começaram a descer a
colina, seguindo as pegadas pretas de cascos que ainda
apareciam nítidas.

-.-.-

O BANDO MONTADO movia-se rapidamente, mas não fugia.

665
“Venha”
1552

E embora houvesse borrifos de chuva em seu rosto, a tempestade


ainda não tinha desabado.
Jamie se manteve bem para trás, sempre com uma orelha atenta
atrás de si para ouvir seus próprios homens chegando.
E eles vieram, para seu alívio silencioso, mas enorme. Ele os
ouviu e se refreou colina acima para encontrá-los fora do alcance
dos ouvidos das tropas que ele estava seguindo - ele supôs que
deviam ser tropas britânicas regulares, pois Ulysses não iria,
com um jogo de aparências, fingir ser um soldado britânico se
ele não fosse um. Se fossem, no entanto, ele teria que ser astuto.
Ele não estava querendo uma luta física; sua milícia ainda
nascente não estava preparada para enfrentar soldados treinados.
O fundo de sua mente estava tranquilo até este ponto, mas agora
aproveitou sua vigilância relaxada para perguntar-lhe que diabos
ele queria mesmo.
Ele queria ficar sozinho com Ulysses, com um punhal na mão e
cinco minutos para usá-lo, mas não conseguindo isso, ele queria
alcançar o homem e vasculhar seus alforjes, tanto pela maldita
carta - por que ele não foi rápido o suficiente para impedir o
homem de tomá-la? – quanto pela concessão original, que
Ulysses deveria carregar. O que significava separá-lo de seus
próprios companheiros e sequestrando-o para algum lugar, por
um breve período. Ele teria dado o resto dos dedos da mão
direita para ter o jovem Ian com ele agora, mas ele não se atrevia
a esperar.
Ele se benzeu, com uma rápida oração a São Miguel, e conduziu
seu cavalo cuidadosamente por uma moita de abetos. Emergindo
do outro lado, ele viu o flash do flanco de um cavalo e ouviu o
tilintar de arreios.
“Trobhad a seo! Por aqui!" Ainda não estava chovendo, mas o
ar ainda segurava aquela qualidade estranha e abafada e ele
1553

sentiu como se tivesse gritado através de uma almofada.


Eles o ouviram, porém, e em um ou dois minutos, eles estavam
em seu caminho.
"De quem é que estamos atrás, senhor?" perguntou Anson
McHugh, educadamente. O mais velho dos filhos de Tom
McHugh, ele veio com seu pai e um irmão mais novo, bem como
os irmãos Lindsay e alguns outros que viviam perto o suficiente
para atender à convocação a tempo.
“Um bando de soldados negros britânicos”, Jamie disse a ele.
"Soldados negros?" Anson perguntou, parecendo confuso.
"Existe uma coisa dessas, então?"
"Existe", Jamie assegurou-lhe secamente. "Lorde Dunmore,
você conhece lorde Dunmore? Oh, você não conhece. Não
importa, ele começou isso há alguns anos atrás metendo-se em
uma confusão com os habitantes da Virginia que ele deveria
governar. Eles não fizeram o que ele disse, então ele divulgou
que qualquer escravo que decidisse se juntar ao exército seria
libertado. E alimentado, vestido e pago ", acrescentou ele,
pensando que isso era mais do que a maioria dos soldados
continentais poderia esperar.
Anson acenou com a cabeça, seu rosto longo e jovem sério.
Todos os McHughs eram sérios, com exceção de sua mãe,
Adeline - e Deus sabia que a mulher precisava de senso de
humor, com sete filhos, todos meninos.
"É traição que vamos cometer, então?" perguntou Anson. Um
brilho fraco de excitação surgiu em seus olhos com o
pensamento.
"Muito provavelmente", disse Jamie, e reprimiu um sorriso
inapropriado para o pensamento. Ele teve um flash de memória:
uma conversa contenciosa entre ele mesmo e John Grey, em uma
1554

estrada na Irlanda. Grey, irritado com a recusa de Jamie em dizer


a ele o que sabia sobre os objetivos de Tobias Quinn, havia dito:
"Eu suponho que seja frívolo apontar que ajudar os inimigos do
rei - até mesmo por inação - é traição. ”
Ao que ele mesmo respondeu no mesmo tom: "Não é frívolo
apontar que sou um traidor condenado. Existem graus judiciais
desse crime? Isso vai sendo adicionado? Porque, quando eles me
julgaram, tudo o que disseram foi ‘traição’ antes colocarem uma
corda em volta do meu pescoço.”666
Ele ficou surpreso ao descobrir que um sorriso inadequado havia
se infiltrado em seu rosto, apesar da atual situação urgente - e
das circunstâncias difíceis da memória. Um grito de Gillebride
MacMillan o fez virar bruscamente de Anson e chutar seu cavalo
no ritmo mais alto que ele poderia sustentar em um cobertor
escorregadio de agulhas de pinheiro molhadas.
Ofegando com a pressa, eles alcançaram Gillebride, que
silenciosamente apontou o caminho com o queixo.
Os soldados pararam em um pequeno riacho para dar água aos
cavalos; aquilo foi sorte. Ele podia ver Ulysses parado na
margem próxima, encostado em um tronco de salgueiro, os
ramos caídos e sem folhas caindo em uma espécie de gaiola
sobre ele.
Tomando isso como um bom presságio, Jamie reuniu seus
homens e tornou seus objetivos conhecidos. Ele deixou Anson
McHugh gritar: "Um ... dois ... três!" e com esse sinal, o grupo
se dividiu como um ovo caído, Gillebride e os McHughs indo
para o flanco esquerdo, por assim dizer, com ele e os Lindsays
cavalgando direto para o riacho para dividir o grupo, e ele
mesmo querendo apoderar-se de Ulysses - Kenny Lindsay para
apoiá-lo, se necessário.

666
Isso ocorre em Prisioneiro, final do cap 16.
1555

"Certifique-se dos cavalos!" ele gritou, inclinando-se para


Kenny. “Eu não sei qual pertence ao nosso homem. São os
alforjes que eu quero!”
"Sim, Mac Dubh", disse Lindsay, sorrindo, e Jamie soltou um
grito Highland que fez Phineas - desacostumado a tal coisa -
desviar loucamente, orelhas dobradas para trás.
Os soldados negros saltaram de imediato para se defender, mas
a maioria deles estavam desmontados, e seus cavalos não
gostaram mais do guincho do que Phineas gostou. Ulysses partiu
de seu salgueiro como um rato d'água fugindo de uma raposa, e
mergulhou no seu cavalo amarrado.

Jamie puxou seu próprio cavalo em uma parada escorregadia em


meio a uma chuva de folhas molhadas e se atirou. Ele correu
pela beira do riacho, ignorando rochas e a água fria que salpicou
suas pernas e se jogou na perna de Ulysses no momento em que
o homem colocava o pé esquerdo no estribo. O sangue dele
estava quente e arrastou Ulysses para longe do cavalo,
empurrou-o, então deu um soco na barriga dele.
“Alforjes!” ele gritou por cima do ombro, e teve um vislumbre
de Kenny escorregando de seu próprio cavalo, preparando-se
para correr para as sacolas. O vislumbre desviou sua atenção de
seu próprio assunto por uma fração de segundo e Ulysses bateu
com força na orelha dele e o empurrou para trás, na direção do
riacho. A água fria subindo por suas roupas foi um choque tanto
quanto uma dor surpreendente em seu ouvido, mas ele recuperou
o fôlego o suficiente para rolar e colocar-se de pé
desajeitadamente. Houve o estrondo de um tiro de pistola à curta
distância; Kenny havia atirado em Ulysses, mas errou, e um dos
homens de Ulysses mergulhou em Kenny por trás e puxou suas
pernas .
O ex-mordomo estava na metade do caminho para a sela. Ele
1556

chutou seu cavalo e disparou direto para o riacho em direção a


Jamie, que saltou para o lado e caiu novamente quando uma
pedra escorregadia rolou sob seus pés. O cavalo o acertou no
quadril com uma pata traseira enquanto tentava se levantar e o
derrubou no chão.
Ele estava muito enfurecido até mesmo para praguejar de forma
coerente. Seu olho esquerdo estava lacrimejando profusamente
e ele passou a manga sobre ele - sem nenhum efeito, a manga
estando encharcada.
Os Lindsays haviam partido em busca de Ulysses e do pequeno
grupo de seus soldados próximos - os McHughs faziam sua
própria caça no riacho, em um emaranhado de amieiros e
cicutas; ele podia ouvir gritos e o som ocasional de espadas e
canos de armas se chocando.
Ele não queria nenhuma morte, e disse isso, mas o jovem
McHugh podia não se lembrar disso no calor de sua primeira
luta real. E os soldados de Ulysses provavelmente não estavam
sob tal proibição. Seu próprio cavalo estava ainda de pé onde o
havia deixado, mirabile dictu667. Phineas não ficou nada
satisfeito de ver seu dono ainda se movendo, e quando ele subiu
na sela encharcado, o cavalo tentou mordê-lo na perna. Ele
agarrou a rédea inteligentemente cruzando o nariz de Phin,
puxou a cabeça do cavalo e se virou morro acima, em direção
aos sons da contenda.
A tempestade havia desabado e estava chovendo muito: ele mal
conseguia perceber os traços escuros da trilha de um cervo que
levava para cima. Mas então eles surgiram de repente em uma
pequena clareira escura, cheia de camadas de folhas mortas,
presas na lama por cavalos que as pisoteavam. Alguns dos
soldados britânicos tinham mosquetes, mas os atacantes os

667
“Admirável de se dizer”, em latim (Eneida, II, 174 – Virgílio)
1557

mantinham ocupados demais para mirar.


Na maior parte do tempo. Uma arma disparou com um foom! e
uma nuvem branca de fumaça, e antes que ele pudesse ver se
alguém foi ferido por ela, o chão em frente a ele se moveu. Ele
se moveu! Phineas já estava exasperado, e quando ele fez o
cavalo castrado mudar para o lado da cauda, o cavalo
repentinamente mudou de ideia e, com um grito furioso, atacou
a forma em movimento.
Um enorme javali preto explodiu das folhas sob as quais estava
dormindo, e todos os cavalos enlouqueceram.

-.-.-

O SOM DE cavalos e homens veio fracamente até mim por entre


as árvores vindo da direção da casa. Eu estava no celeiro,
revirando inhames e verificando se havia algum podre, mas
deixei cair o inhame que estava segurando e sai do celeiro como
uma marmota saindo de sua toca, ouvindo com atenção.
Sem brigas. Havia vários homens, mas sem gritos ou sons de
violência. Bati a porta do porão e corri para a casa, mas diminuí
um pouco quando ouvi Bluebell latindo. Não seus histéricos
latidos de “Estranhos!” , nem ainda a versão view-halloo668
reservada para doninhas, gambás, guaxinins, marmotas ou
qualquer outra coisa que ela considere valer a pena perseguir.
Era o deliciado latido dela de boas-vindas, e o dardo de terror
que me atingiu no porão dissolveu-se em alívio. Provavelmente
ninguém estava morto, então.
Eu trotei pelo caminho, esfregando a sujeira das minhas mãos
no meu avental de jardinagem, e me perguntando quantos
homens Jamie havia trazido com ele e com o que em nome de

668
Grito usado na caça à raposa, indicando aos cães que a presa está visível e deve ser atacada.
1558

Deus eu poderia alimentá-los no jantar. Eu também me


perguntei se Jamie havia recuperado a carta desastrosa de lorde
George Germain.
Cheguei a tempo de me despedir dos Lindsays, que estavam
longe de casa, eles disseram; a esposa de Kenny teria algo para
jantar.
"O resto foi antes de nós", disse Murdo, acenando vagamente
em direção ao lado oriental do cume. “Nós só viemos por aqui
no caso de Mac Dubh precisar de uma mão."
Uma mão com o quê? Eu me perguntei, mas não detive Murdo,
que estava já montado e claramente ansioso para ir embora - era
fim de tarde e o céu ainda estava escuro e turvo sobre as nossas
cabeças. Eu acenei para eles um adeus e entrei para ver o que -
ou quem - Jamie havia trazido de volta. Certamente não
Ulysses…
Não era. Eu o ouvi conversando com alguém no meu
consultório, de uma forma cortês, e a resposta de outro homem,
mas não um homem que eu conhecia.
Eu puxei a cortina - talvez ele fique em casa o tempo suficiente
para me construir uma porta de verdade um dia desses - e parei
de repente com a surpresa. Não era Ulysses, nem nenhum dos
soldados que o acompanharam até a porta, mas claramente este
era um de seus soldados, pois o homem era negro e usava um
uniforme militar britânico molhado, embora nunca o tenha visto
antes: calças pretas e casaco escarlate, sem decoração além do
nó no ombro com a insígnia de um cabo, mas ostentando uma
faixa branca manchada que corria de seu ombro sobre o peito,
ostentando as palavras bordadas "Liberdade para os Escravos.”
"Ah, aí está você, Sassenach." Jamie se levantou do banquinho
da minha bancada. Suas roupas agarradas a ele, obviamente
molhadas. "Eu esperava que você voltasse logo. Posso ter o
1559

prazer de apresentar a você o cabo Sipio Jackson669 - da


Companhia de Pioneiros Negros de Sua Majestade?" Ele
gesticulou para o homem deitado na mesa. “Não se importe com
as cortesias, cabo; eu não quero ter que te levantar novamente."
"Seu servo mais obediente, senhora." O sargento670 Jackson não
se levantou, mas apoiou-se pesadamente em um cotovelo e
curvou-se tão profundamente quanto possível para mim, olhos
cautelosos. Ele tinha um sotaque bastante estranho: inglês, mas
com algo mais suave misturado.
“Que bom conhecê-lo, Sr. Jackson,” eu disse, olhando para ele.
O motivo de sua imobilidade era óbvio: sua perna direita estava
quebrada e ele estava pálido como sebo. Era uma fratura exposta
de aparência desagradável, com a extremidade dentada de sua
tíbia projetando-se através da meia de lã. Alguém tinha
arrancado sua bota.
“Há quanto tempo isso aconteceu?” Perguntei a Jamie,
segurando o tornozelo do sargento e sentindo a fíbula logo acima
da articulação. Houve sangramento da carne rasgada, mas estava
apenas escorrendo agora; a meia estava encharcada de sangue,
mas enferrujada nas bordas; não tão fresco.
Jamie olhou pela janela; as nuvens estavam começando a se
separar, e um brilho vermelho sombrio iluminava suas bordas.
“Talvez duas horas. Eu dei a ele uísque ", acrescentou ele, com
um aceno de cabeça para o copo vazio perto da mão do cabo.
"Para o choque, certo?"
“Agradeço, senhor”, disse o sargento. “Foi muito útil.” Ele
estava cinza como um fantasma e seu rosto estava molhado de
suor, mas ele estava acordado e alerta.

669
O cabo Scipio Jackson é fictício. Mas existiram ‘Scipio Jacksons’, um escravo da Argélia no final do
séc XVIII, e um soldado na Guerra Civil americana.
670
Existe uma alternância ao designar Scipio Jackson como cabo e sargento. Mas ‘cabo’ é predominante
1560

Seus olhos se fixaram em minhas mãos, uma subindo lentamente


pela canela, a outra sentindo sua panturrilha suavemente. Sua
respiração acelerou quando toquei um ponto em sua panturrilha
dois ou quatro centímetros abaixo do nível da tíbia protuberante.
"Sua fíbula também está fraturada", informei a ele. “Dê-me essa
tesoura, sim, Jamie? E dê a ele outro gole, mas misturado meio
a meio com água. Como isso aconteceu, cabo?”
Ele não relaxou enquanto eu cortava a meia - ele era magro e
esguio, e eu podia ver os músculos de sua perna contraídos, mas
ele respirou um pouco mais, e acenou com a cabeça agradecendo
a Jamie pelo novo gole.
“Caí do meu cavalo, senhora”, disse ele. "Ele foi assustado por
um ... porco."
Eu olhei para ele, surpreso com a hesitação. Ele viu meu olhar,
fez uma careta e acrescentou à sua resposta.

“Um porco grande mesmo. Nunca vi algo tão grande.”

"Era mesmo", Jamie concordou. “Não a própria Porca Branca,


mas uma de suas crias com certeza; um varrão. Está no galpão
de defumação", acrescentou ele, com um movimento de cabeça
em direção à parte de trás da casa. “Não foi uma jornada
desperdiçada”, acrescentou. Seus olhos estavam pousados no
rosto do cabo Jackson, sua própria expressão calma, mas eu
podia sentir o cálculo acontecendo por trás daqueles olhos.
Achei que o cabo também poderia; eu não tinha começado a
fazer nada abertamente doloroso em sua perna, mas a mão que
não segurava o copo de uísque estava cerrada em um punho
solto, e o olhar cauteloso com que ele me cumprimentou não
mudou nem um fio de cabelo.
"Fanny está em casa?" disse a Jamie. “Vou precisar de ajuda
1561

para consertar e fazer um curativo nesta perna.”


"Eu vou te ajudar, Sassenach", disse ele, levantando-se e
virando-se em direção aos meus armários. "Diga-me o que você
precisa."
Eu dei a ele um olhar estreito e ele olhou de volta, calmamente
implacável. Ele não me deixaria sozinha com um homem que
era tecnicamente um inimigo, não importa o quão incapacitado
ele estivesse.
Fiquei dividida entre uma pequena irritação e uma inegável
sensação de alívio. Foi o alívio que me incomodou.
“Tudo bem,” eu disse brevemente, e ele sorriu. Então eu parei,
uma pergunta me atingindo.
“Jamie, você vem comigo por um momento? Você vai ficar bem
aqui, Sr. Jackson. Não se mova muito.” O cabo Jackson ergueu
as sobrancelhas delineadas para mim, mas acenou com a cabeça.
Levei Jamie de volta para a cozinha, fechando a porta de tecido
que a separava da frente da casa.
"O que você está planejando fazer com ele?" Eu perguntei sem
rodeios. "Isto é, ele é seu prisioneiro?" Eu estava planejando
arrumar a perna, enfaixá-la e, em seguida, fazer o que era
chamado nesta época de método Basra - acrescido de minhas
próprias pequenas inovações. Em essência, bandagens leves -
embora frágeis - embebidas em gesso enroladas sobre uma meia
e acolchoamento (musgo seco era tudo que eu tinha no momento
que serviria, mas funcionava bem o suficiente) que imobilizaria
o membro, mas deixaria o cabo se mover, com uma bengala e
alguns cuidados. Mas se Jamie precisasse que ele fosse
imobilizado, eu apenas realinharia os ossos, trataria as feridas e
colocaria uma tala no membro.
"Não", disse ele lentamente, franzindo a testa em pensamento.
1562

"Não posso mantê-lo prisioneiro facilmente, e não há propósito


nisso. Eu sei muito bem o que Ulysses pretende fazer, porque
ele mesmo me disse. Segurar seu homem não o desviaria um
centímetro. "
“Ele vai retornar para resgatar o Sr. Jackson, você acha? Isto é,
ele é um oficial do exército britânico agora. ”
Jamie olhou para mim por um momento, depois sorriu com uma
compreensão irônica. "Você ainda pensa que eles são homens
honrados, não é, Sassenach? O exército britânico? ”
"Eu - bem, alguns deles são, não são?" eu disse, bastante
surpresa com a pergunta. “Lorde John? O irmão dele?"
"Mmphm." Foi uma aquiescência relutante que parou bem antes
de uma concordância total. "Eu já disse a você o que Sua Graça
fez comigo há vinte anos?"
"Na verdade, não, acho que não." Não fiquei surpresa que ele
ainda guardasse rancor sobre isso, fosse o que fosse, mas isso
podia esperar. “Quanto ao exército em geral ... bem, suponho
que você tenha alguns pequenos motivos. Mas eu lutei com o
exército britânico, você sabe— ”
“Sim, eu sei,” ele disse. "Mas-"
"Apenas ouça. Eu vivi com eles, lutei com eles, os mediquei,
cuidei deles e os segurei quando morreram. Assim - assim como
eu fiz quando nós lutamos –“ eu tive que parar e limpar minha
garganta. “Quando lutamos pelos Stuarts. E ... ” Minha voz
vacilou.
"E o que?" Ele ficou muito quieto, apoiado nos punhos cerrados
na mesa da cozinha, os olhos fixos no meu rosto.
"E um bom oficial nunca deixaria seus homens."
A grande sala estava silenciosa, exceto pelo murmúrio do fogo
e o bater da chaleira, prestes a ferver. Fechei os olhos, pensando,
1563

Beauchamp, sua idiota ... Porque ele fez isso. Abandonou seus
homens em Monmouth para salvar minha vida. Não importava
que a batalha tivesse acabado, o inimigo em retirada, que não
houvesse perigo para os homens naquele ponto, que quase todos
eles fossem milícias em alistamento temporário, cujo serviço
estaria legalmente suspenso na madrugada do dia seguinte.
Muitos já haviam partido. Mas isso não importa. Ele havia
deixado seus homens.
“Sim,” ele disse suavemente, e eu abri meus olhos. Ele se
endireitou lentamente, esticando as costas. "Bem então. Você
acha que Ulysses é esse tipo de oficial? Ele vai voltar para pegar
o cabo dele?”
"Eu não sei." Eu mordi meu lábio. "O que você vai fazer se ele
fizer isso?"
Ele olhou para o tampo da mesa, franzindo a testa como se as
tábuas de carvalho esfregadas pudessem ser um cristal de
vidência que lhe mostraria o futuro.
“Não,” ele disse finalmente, e se sacudiu. "Não, ele não virá
pessoalmente, mas provavelmente enviará outra pessoa. Ele não
vai ficar ao meu alcance, e me avisou, mas ele não vai deixar o
homem. " Ele pensou por um momento e acenou com a cabeça,
tanto para si mesmo quanto para mim.
“Você pode recuperá-lo para que ele possa viajar, Sassenach?”
“Sim, dentro dos limites. É por isso que eu perguntei a você."
“Faça isso, então, se quiser. Quando acabar, vou falar com o
cabo Jackson e decidir o que fazer.”
"Jamie." Ele se virou para ir embora, mas parou e se virou para
me encarar.
"Sim?"
“Você é honrado. Eu sei disso, e você também.” Ele sorriu um
1564

pouco com isso.

"Eu tento ser. Mas guerra é guerra, Sassenach. A honra só torna


um pouco mais fácil viver com você mesmo depois. "

-.-.-

FIQUEI UM POUCO mais do que um pouco perturbada com


aquele "e decidir o que fazer", mas não estava pessoalmente
equipada para fazer mais do que reduzir a fratura do cabo
Jackson, parar o sangramento e aliviar sua dor, tanto quanto
possível.
"Certo", eu disse a Jamie. "Eu vou precisar de você, porém, por
alguns minutos. Alguém precisa segurá-lo enquanto eu puxo a
perna dele bem esticada, e Fanny não está nem perto de ser alta
ou forte o suficiente. "
Jamie parecia menos do que entusiasmado com a perspectiva,
mas me acompanhou de volta ao consultório, onde expliquei as
coisas ao cabo.
"Você não precisa fazer nada, mas ficar quieto e relaxar o
máximo que puder."
"Eu farei o meu melhor, senhora." Ele estava suando e úmido e
seus lábios estavam quase brancos. Hesitei por um momento,
mas depois peguei minha garrafa de éter. A possível tensão em
seu coração versus as vantagens de sua perna estar
completamente flácida ... sem contestação.
"Vou fazer você adormecer", disse eu, mostrando a ele a
máscara de vime e a garrafa. “Vou colocar esta máscara em seu
rosto e, em seguida, colocar algumas gotas deste líquido sobre
ela. Cheira um pouco ... estranho, mas se você respirar
1565

normalmente, você vai dormir e não vai doer quando eu arrumar


sua perna. "
O cabo parecia mais do que duvidoso sobre isso, mas antes que
pudesse protestar, Jamie apertou seu ombro.
"Se eu quisesse te matar, teria simplesmente te afogado no
riacho ou atirado em você", disse ele, "em vez de te arrastar
colina acima para que minha esposa pudesse te envenenar.
Agora deite-se.” Ele pressionou os ombros de Jackson com
firmeza e o homem cedeu, relutantemente.
Seus olhos acima da máscara estavam selvagens, olhando de um
lado para o outro como se estivessem se despedindo do que
estava ao seu redor.
“Vai ficar tudo bem,” eu disse, tão tranquilizadora quanto
possível.
Ele fez um som repentino e urgente e, estendendo a mão, pegou
a pequena bolsa de couro pendurada que havia escorregado de
seu lugar entre meus seios quando me inclinei sobre ele.
"O que é isso?" ele perguntou, empurrando a máscara de vime
para o lado com a outra mão. Ele parecia chocado. “O que está
nele?”
"Ahh ... para ser honesta, eu não sei exatamente," eu disse, e a
peguei cautelosamente de seus dedos. "É um ... hum ... suponho
que você o chamaria de bolsa de remédios - uma espécie de ...
amuleto? Uma curandeira índia me deu, alguns anos atrás, e de
vez em quando, acrescento algo a ele - uma pedra, talvez, ou um
pouco de erva. Mas ... não me parecia certo esvaziar o que ela
tinha colocado. "
Seu olhar de choque se transformou em um de intenso interesse,
tingido com o que parecia ser respeito. Ele esticou o indicador
e, levantando uma sobrancelha para pedir minha permissão,
1566

tocou o couro gasto. E eu senti isso. Uma pulsação fraca que


latejou uma vez, contra a palma da minha mão.
Ele me viu sentir e seu rosto mudou. Ainda estava cinza de dor,
frio e perda de sangue, mas ele não estava mais com medo - de
mim, de Jamie ou de qualquer outra coisa.
“É o seu moco671,” ele disse suavemente e acenou com a cabeça,
certo.
"Moco?" Eu disse, sem ter certeza absoluta, mas tendo alguma
noção do que ele queria dizer. Certamente ele não disse
mojo672...
"Sim." Ele acenou com a cabeça novamente e respirou longa e
profundamente, os olhos ainda fixos na bolsa. “Minha bisavó,
ela é Gullah673. Ela é uma hoodoo674. Eu acho que você também
é, senhora. "
Ele virou a cabeça abruptamente para Jamie.
“Você pode me ajudar, senhor? No meu saco - um pedaço de
flanela vermelha, com um alfinete enfiado.”
Jamie me olhou em dúvida, mas eu assenti e, balançando a
cabeça, ele foi pegar uma mochila esfarrapada, jogada no canto
da sala. Num momento, ele voltou com um pequeno pacote
vermelho na mão.
Jackson acenou em agradecimento e, rolando sobre um
cotovelo, puxou cuidadosamente o alfinete, desdobrou o pano e
mexeu o conteúdo com um indicador cuidadoso.
Um momento depois, ele pegou algo da mistura de pedras e
penas e sementes, folhas secas e restos de madeira e ferro, e
671
Magia, na língua Gullah. Variante de mojo.
672
Amuleto em forma de um saquinho de tecido contendo um ou mais objetos ‘mágicos’ (ervas, ossos,
pedras)
673
Língua ainda falada na ilhas e na costa da Geórgia e das Carolinas (do Sul e do Norte), que mistura o
inglês padrão e partes do vocabulário de línguas africanas. O termo também é aplicado às pessoas que
falavam a língua, normalmente escravos e seus descendentes.
674
Praticante de simpatias tradicionais afro-americanas, em especial no sul dos Estados Unidos.
1567

acenou para que eu estendesse a mão, depois depositou algo


escuro e duro em minha palma.
“Este é High John, o Conquistador675”, disse ele. “Minha bisavó
o deu para mim e disse que é um remédio para o homem e vai
me curar se eu estiver ferido ou doente. Coloque isso no seu
moco antes de colocar as mãos em mim, por favor.”
Era uma raiz nodular seca, de um marrom tão escuro que era
quase preta, mas muito peculiar. Eu podia ver por que sua bisavó
disse que era um remédio para homem: parecia exatamente
como um minúsculo par de testículos.
“Obrigado,” eu disse, esfregando meu polegar sobre o objeto.
Parecia um pedaço bem polido de raiz dura, mas eu não estava
sentindo nenhuma sensação particular de nada vindo dela. “Sua
bisavó é uma ... hoodoo? Isso seria uma espécie de curandeira?"
Ele acenou com a cabeça, embora sua boca se movesse para o
lado, ligeiramente duvidosa.
"Principalmente, senhora."
Jamie pigarreou de uma maneira significativa. Ele estava parado
perto do fogo, e pequenos fios de vapor subiam de seus cabelos
e roupas.
"Bem então." Coloquei o pedaço de raiz em meu amuleto, limpei
minha garganta e peguei a máscara novamente. “Deite-se, Sr.
Jackson. Isso não vai demorar um minuto.”

-.-.-

É CLARO QUE demorou um pouco mais do que isso - mas a


expressão de espanto no rosto do cabo Jackson quando ele
675
“High John the Conqueror” ( João Alto, o Conquistador) é um herói folclórico afro-americano, com
diversas versões. É representado pela raiz da Ipomeia seca, que lembra os testículos de um homem de
pele escura e é frequentemente colocada em um mojo.
1568

piscou e abriu os olhos para ver a perna esticada, enfaixada e


enrolada em tiras secas de linho embebidas em uma mistura de
gesso, cal e água foi muito gratificante.
“Hau!” ele disse, e acrescentou algo em um idioma que eu não
reconheci, quase para ele mesmo.
“Você pode se sentir um pouco tonto,” eu disse, sorrindo para
ele. “Basta fechar os olhos e descansar um pouco. O gesso em
sua perna precisa secar antes de podermos movê-lo.”
Enfiei uma toalha dobrada sob sua cabeça e o cobri com meu
fiel cirúrgico.
"Vou mandar algo quente para você beber que vai ajudar a
aliviar a dor", eu disse a ele, colocando o cobertor em volta de
seus ombros. "E eu voltarei para ver como você está em breve."
Fanny estava na cozinha, cortando bacon em pedacinhos,
observada de perto por Bluebell, mas ela gentilmente parou de
fazer isso para preparar um posset676 para o Sr. Jackson.
“Leite quente com um ovo batido nele - se tivermos algum ovo?”
"Sim, senhora, temos", disse ela com orgulho. “Eu encontrei três
esta manhã. Mas acho que podem ser ovos de pato”, acrescentou
ela, em dúvida. "Estavam perto do riacho, e eles são muito
maiores do que os que suas galinhas escocesas botam."
“Tanto melhor, contanto que sejam moderadamente novos”, eu
disse. “Se houver um embrião - você sabe, o começo de um
pato? - no ovo, basta retirá-lo e entregá-lo ao Bluebell; não vai
estragar a poção. Não que o cabo Jackson vá notar,” acrescentei
pensativamente, “depois de adicionar duas doses de uísque e
uma colher de açúcar. Acho que ele vai adormecer
imediatamente; se ele não dormir, você pode dar a ele uma

676
Bebida quente britânica popular, feita de leite coalhado com vinho ou cerveja, normalmente temperada
com outros ingredientes, usada também como remédio
1569

colher de láudano. "


Deixei-a com instruções para vir me buscar se o cabo parecesse
febril ou perturbado de alguma forma, e subi para cuidar de meu
segundo paciente.
-.-.-

JAMIE ESTAVA SENTADO na cama nu, esfregando o cabelo


molhado e solto com uma toalha. Aproximei-me dele, peguei a
toalha, beijei-o na nuca e assumi a toalha, massageando o couro
cabeludo. Ele suspirou e deixou seus ombros caírem de alívio.
Ele não estava tremendo, mas estava com frio. Muito frio, até
mesmo para se arrepiar; sua pele tinha uma aparência nacarada
e estava úmida e fria ao toque.
“Você parece o interior de uma concha de ostra,” eu disse,
esfregando minhas mãos para gerar um pouco de calor antes de
aplicá-las em seus ombros.
“Vamos tentar um pouco de fricção.”
Ele fez um pequeno som divertido e se inclinou para frente,
esticando as costas em um convite.
"Se você pensasse que eu pareço uma ostra, eu me preocuparia",
disse ele. “Oh, Deus, isso é bom. Como está o seu homem,
então? "
"Acho que ele vai ficar bem, desde que possa evitar usar a perna
por algumas semanas. Fratura exposta é sempre algo delicado,
por causa da chance de infecção ou deslocamento, mas a fratura
em si estava relativamente limpa.”
Avistei suas roupas descartadas. Seu sobretudo jazia no chão em
uma pilha encharcada, escorrendo água, e sua camisa de caça,
calções de pele de gamo e meias de lã estavam em uma pilha
menor molhada ao lado dele.
1570

"Que diabos você fez?" Eu perguntei, continuando a esfregar


suas costas, mas mais lentamente. “Caiu na água?”
"Sim, caí ", disse ele, em um tom de voz indicando que ele não
queria falar sobre isso. Então ele não conseguiu a carta. Isso me
fez olhar mais de perto para ele, então, e agora com seu cabelo
puxado para trás, percebi que sua orelha esquerda estava
vermelha brilhante - e inchada, quando a olhei mais de perto.
"O javali?" Eu perguntei, tocando-o com cuidado.
"Ulysses", disse ele laconicamente, movendo a cabeça para
longe do meu toque.
"De fato. O que mais?"
"Um cavalo me chutou", disse ele, relutantemente. "Não é nada,
Sassenach."
“Ha,” eu disse, tirando minhas mãos dele. “Eu já ouvi isso antes.
Mostre-me."
Ele fez um barulho descontente, mas se inclinou para o lado e
moveu o braço. Havia um hematoma recente, azul-claro, que
descia de seu quadril até a lateral da perna por cerca de 20
centímetros. Eu cutuquei, provocando mais alguns ruídos de
descontentamento, mas, pelo que eu poderia dizer, nenhum osso
foi quebrado.
"Eu disse a você", disse ele. "Posso deitar agora?"
Ele não esperou por permissão, mas se esticou na cama com um
gemido luxuoso, flexionou os dedos dos pés e fechou os olhos.
"Você talvez queira terminar de me secar?" Um olho se abriu.
"Um pouquinho de fricção não faria mal."
"E se Fanny aparecer enquanto estou aplicando essa fricção,
para dizer que o Sr. Jackson está morrendo?"
"Você poderia salvá-lo se ele estivesse?" Uma mão estava
1571

penteando preguiçosamente o arbusto louro-avermelhado úmido


de seus pelos púbicos, caso eu não tivesse entendido o que ele
quis dizer, o que não aconteceu.
"Provavelmente não, a menos que ele estivesse sufocando com
o posset."
"Bem, ele terá terminado o posset muito antes de você chegar a
um ponto sem volta aqui ..."
Ele me disse há muito tempo que lutar causava a um - ser do
sexo masculino, eu presumi - uma terrível ereção, presumindo
que você não estivesse gravemente ferido. Achei que esse desejo
de fricção deveria ser reconfortante.
Sentei-me ao lado dele e peguei cuidadosamente o ponto em
questão. Também estava frio, esbranquiçado e encolhido, mas
parecia estar descongelando rapidamente em minha mão.

“Isso me ajudaria a pensar”, ele sugeriu.


"Não acredito que os homens pensem em tais circunstâncias",
disse eu, mas comecei a aplicar um tipo muito preliminar de
fricção. Os pelos de seu corpo haviam secado e começado a se
erguer em sua exuberante penugem de costume.
“É claro que pensamos”, disse ele, fechando os olhos
novamente. Um olhar de expectativa estava começando a
florescer em seu rosto; eu definitivamente reiniciei sua
circulação.
"Sobre o quê, exatamente ...?" Deitei ao lado dele e acariciei seu
ombro, sem soltar. Uma mão grande e fria subiu pela parte de
trás da minha coxa, empurrou sob a anágua e a chemise, e
agarrou minha bunda, com intenção. Eu engasguei, mas não -
exatamente - gritei.
"Isso", disse ele, com satisfação. "Você gostaria de ficar no topo,
1572

Sassenach? Ou talvez curvada sobre um travesseiro – pela


vista?"

-.-.-

NÃO TINHA CERTEZA se a adrenalina da batalha não se tinha


dissipado imediatamente, a recente proximidade da morte
induzindo uma forte necessidade de reprodução ou se o desejo
de sexo meramente expressava a necessidade de se assegurar de
que ainda estava vivo e em razoável condição de funcionamento.
Independentemente disso, eu tive que admitir que teve um efeito
acomodador.
Eu me virei e me recompus em algum tipo de ordem, olhei para
meu reflexo no vidro, então balancei minha cabeça e enrolei meu
cabelo em um coque improvisado, precariamente preso por um
par de penas roubadas da mesa de Jamie quando passei pelo
estúdio. Eu podia ouvir vozes na cozinha, e uma delas era a de
Ian, o que aqueceu meu coração.
Ele e Tòtis estavam sentados à mesa, comendo pão e mel,
conversando com Fanny e Agnes em uma mistura de línguas:
reconheci inglês, gaélico e o que presumi ser moicano, além de
algumas palavras em francês e uma certa quantidade de
linguagem de sinais em relação à comida.
"Então aí está você!" eu disse, não muito acusadora.
“Aqui estamos,” Ian concordou, amigavelmente. "Ouvi dizer
que você tem uma visita, tia."
“Tivemos mais de uma”, respondi, e me sentei, repentinamente
ciente de que já fazia muitas horas que eu não comia nada. "As
garotas te contaram?"
“Eles me falaram sobre os soldados negros”, disse ele, sorrindo
1573

para as meninas.
"E o homem cuja perna você serrou? Mas atrevo-me a dizer que
você sabe um pouco mais sobre o que aconteceu, tia? "
"Eu sei." Peguei uma fatia de pão e o pote de mel e contei os
detalhes. Seus olhos se arregalaram quando contei a ele sobre o
reaparecimento de Ulysses, que ele conhecia, mas não tinha
visto desde a digna partida de River Run anos antes. Os mesmos
olhos se estreitaram quando contei a ele exatamente o que
Ulysses havia dito.
"Sim", disse ele, quando terminei meu relato. "O que o tio Jamie
pretende fazer sobre isso?"
"Ele ainda não me disse", disse eu, inquieta. "Mas ele não saiu
atrás do homem. Quer dizer, ele poderia ter seguido Ulysses
depois da luta e deixado outra pessoa para trazer o cabo Jackson
de volta para cá, mas não o fez."
Ian ergueu um ombro, descartando isso.
“Bem, ele realmente não precisa persegui-lo, precisa? Você
falou que Ulysses tem um bando de homens de bom tamanho -
qualquer um poderia rastrear um grupo como esse,
especialmente com o solo como está. " Ele se abaixou e ergueu
o pé de Tòtis bem alto, para exibir a camada de lama que cobria
o mocassim do menino e franjava a ponta de suas calças. "E o
tio Jamie tem um prisioneiro", acrescentou ele, colocando o pé
no chão e despenteando o cabelo de Tòtis, o que fez o menino
rir. "Não adianta perseguir Ulysses sem a milícia - e levaria meio
dia para reunir os homens do tio Jamie."
"Tenho certeza de que ele não faria isso", disse eu, despejando
um copo de leite. “A última coisa que ele desejaria é uma batalha
campal que pudesse fazer com que os homens morressem - de
ambos os lados. Muito menos matar soldados e trazer a fúria -
bem, muito mais fúria - do exército britânico.”
1574

“Sim, isso causaria muito falatório,” Ian disse pensativo. "E


quanto menos gente souber dessa carta, melhor."
"Jesus, eu nem tinha pensado nisso", disse eu. O pão e o mel
estavam restaurando minha glicose sanguínea esgotada e eu
estava começando a ser capaz de pensar com coerência. Seria
desastroso que o conteúdo dessa carta se tornasse amplamente
conhecido - e, portanto, conhecido pelos legalistas, não apenas
em Ridge, mas também no interior próximo. Eles adorariam
nada mais do que reunir o chamado Comitê de Segurança -
cobertura para qualquer coisa, de chantagem a banditismo - e vir
prender o Fraser de Fraser’s Ridge. Ou queimar sua nova casa -
ilícita - sobre sua cabeça, como Ulysses havia ameaçado.
“Castor Rei”677, com certeza, eu murmurei baixinho.
"Tio Jamie não está machucado?" Ian disse, uma expressão que
não poderia ser exatamente chamada de sorriso em seu rosto
enquanto ele me olhava.
"Ele está dormindo", eu disse, ignorando sua conotação. "Você
gostaria de um pouco de torta de maçã e passas, Tòtis?"

Normalmente, Tòtis era um garotinho bastante sério, mas, a essa


sugestão, ele sorriu enormemente, exibindo a lacuna onde um
dente de leite havia caído recentemente.
“Sim, por favor, tia-avó Bruxa,” ele disse.
Fanny deu uma risadinha.
"Tia-avó Bruxa?" disse, dando uma olhada em Ian enquanto me
levantava para pegar a torta.
Ele encolheu os ombros. "Bem, O Sachem te chama ..."

677
Essa é a tradução literal do termo utilizado – King Beaver. Sem encontrar uma expressão correta nas
nossas pesquisas, deduzimos que talvez se refira a algo como “ figurão’, ou “peixe grande”, alguém
importante.
1575

O Sachem morava sozinho, em uma pequena casa que ele


construiu que parecia parte da floresta, mas deduzi que ele
passava muito tempo com os Murray.
O Sachem era uma coisa; os habitantes de Ridge eram outra
coisa. Não consegui impedir os inquilinos mais desconfiados de
pensar - ou dizer - que eu era uma bruxa, mas era outra coisa ter
meu próprio sobrinho-neto dizendo isso em público.
“Hmm,” eu disse a Tòtis. "Talvez você pudesse me chamar pelo
nome moicano para bruxa?"
Ele franziu a testa para mim, confuso. Ian, com uma expressão
um pouco estranha no rosto, se abaixou e sussurrou algo no
ouvido do menino. Os dois então olharam para mim, Tòtis
maravilhado e Ian com circunspecção.
“Acho que não, tia”, disse ele. "Existe uma palavra moicana para
isso, mas é uma palavra que significa que você tem poderes, sem
dizer exatamente que tipo de poderes."
"Oh. Bem, apenas tia-avó, então, por favor. " Sorri para Tòtis,
que retribuiu o sorriso, mas com uma expressão de cautela.
"Sim, isso vai dar certo." Ian se levantou e limpou as migalhas
de suas peles de gamo.
“Diga ao tio Jamie que fui dar uma olhada em Ulysses. Quero
ter certeza de que ele realmente saiu da montanha e não está à
espreita. E eu quero saber para que lado ele está indo. Para que
possamos encontrá-lo quando o quisermos.”
1576

132

MEDICINA DO HOMEM

A CASA COMEÇOU A respirar novamente, à medida que as


coisas se acalmavam gradualmente ao longo da noite. Ian não
voltou, mas eu mandei Jem e Tòtis dizer a Rachel onde ele tinha
ido, e os dois garotos voltaram para o jantar. O tempo melhorou
e esquentou, e um maravilhoso pôr do sol espalhou uma cortina
brilhante de nuvens douradas no céu ocidental. Todo mundo foi
se sentar na varanda e se divertir, e eu disse a Jamie — que tinha
descido para comer — onde Ian estava. Ele parou por um
momento, testa franzida, mas depois assentiu e relaxou, pegando
minha mão. As vibrações da visita de Ulysses ainda estavam
conosco, mas começavam a desaparecer, embora a presença do
cabo Sipio Jackson em meu consultório fosse um lembrete
incômodo.
Organizei as quatro meninas mais velhas em turnos para sentar
com o cabo Jackson e administrar comida, se quisesse, água com
mel, querendo ou não, e láudano, se necessário. Então eu tateei
meu caminho escada acima, meus olhos já fechando, e adormeci
sem memória de me despir.
Quando acordei, em algum momento depois da meia-noite,
descobri que era porque eu não tinha me despido, mas apenas
caído na cama. Jamie estava dormindo profundamente e não se
mexeu quando me levantei e desci para substituir a vigília e
verificar meu paciente.
Agnes estava cochilando na minha cadeira de balanço, mas se
mexeu e se levantou grogue quando entrei no consultório. Eu
1577

coloquei um dedo em meus lábios e acenei de volta. Seus joelhos


dobraram imediatamente; ela estava dormindo de novo quase
antes de seu traseiro bater na almofada. A cadeira balançou
suavemente para trás sob seu peso - ela estava visivelmente
grávida agora - então parou. A única luz vinha das brasas do
minúsculo braseiro no balcão, mas o brilho difuso fazia a
cirurgia parecer suave e onírica, brilhando entre as garrafas,
nebulosa entre as ervas penduradas secando no alto.
O cabo Jackson estava dormindo agora também; olhei duas
vezes antes de ir para a cama e, encontrando-o da última vez
acordado, febril e no que os funcionários do hospital chamam
com tato de “desconforto”, dei-lhe um chá de casca de salgueiro
e valeriana, com algumas gotas de láudano. Seu rosto estava
relaxado e calmo, a boca um pouco aberta, respirando com um
leve som congestivo. Eu coloquei ambas as mãos suavemente
em sua perna; uma abaixo do curativo de gesso, um polegar no
pulso no tornozelo e a outra na coxa. Sua carne ainda estava
visivelmente quente, mas não tão alarmante. Eu podia sentir o
pulso de sua artéria femoral, lento e forte, e senti meu próprio
pulso nas pontas dos dedos da mão em seu tornozelo. Fiquei
parada, respirando devagar, e senti os pulsos se equalizarem
entre minhas mãos.
A batida lenta dos pulsos misturados me fez pensar de repente
na garganta de Roger e no coração de Brianna. E depois em
William. Então ela encontrou seu irmão, finalmente.
Esse pensamento me fez sorrir e ao mesmo tempo sentir uma
profunda pontada de arrependimento. Eu teria dado muito para
ver aquele encontro.
Pela carta cuidadosamente redigida de John, ficou claro que
aquela reunião era o que ele realmente queria. Não que ele não
quisesse ajudar Bree com uma gorda comissão, ou tê-la lá por
causa de sua própria companhia, mas reconheci a comissão
1578

como sendo apenas a mosca cintilante na superfície do lago.


Jamie, que provavelmente conhecia John muito melhor do que
eu, também viu isso claramente – e ainda assim ele
simplesmente pegou o anzol com isca, examinou-o e depois o
engoliu deliberadamente.
Sim, ele precisava de armas, com urgência. Sim, ele queria
devolver Germain a seus pais. Até certo ponto, ele
provavelmente também queria que Roger fosse ordenado. Mas
eu sabia o que ele mais queria, e sabia que John queria tanto.
Eles queriam que William fosse feliz.
Claramente, nenhum dos dois estava em posição de ajudar
William a aceitar o fato de que ambos mentiram para ele. Muito
menos ajudá-lo a juntar os pedaços de sua identidade. Ninguém
poderia fazer isso, exceto William. Mas Brianna era uma parte
de sua identidade e possivelmente algo para ele se agarrar
enquanto ajustava o resto de sua vida.
Ainda mais do que eu gostaria de ver o encontro entre William
e Bree – cada um sabendo quem era o outro – eu ansiava por ver
o rosto de Jamie assistindo a tal encontro.
Balancei a cabeça e deixei a visão desaparecer, ouvindo o corpo
do cabo Jackson e o sussurro da areia da ampulheta (Agnes e
Fanny deveriam trocar de lugar a cada duas horas, mas nenhuma
delas conseguia ficar acordada tanto tempo), deixando a paz
noturna do consultório fluir para dentro de mim. E de mim, com
sorte, para o jovem sob minhas mãos. Eu o achava mais velho
quando o vi pela primeira vez, mas com as linhas de tensão,
medo e dor suavizadas em seu rosto, ficou claro que ele não
tinha mais de 25 anos.
Movida por um impulso, soltei sua perna e peguei meu amuleto
da bolsa de remédios no armário.
1579

Ninguém estava olhando, mas eu ainda me sentia constrangida


quando enfiei a mão na bolsa e retirei a raiz de João-o-
Conquistador. Devia haver algum ritual relacionado ao seu uso,
mas como eu não tinha ideia do que poderia ser, teria que fazer
o meu próprio. Parei por um momento, segurando a raiz na
palma da minha mão, e pensei na mulher que deu a ele. Sua
bisavó, ele disse. Então ela mesma segurou essa raiz, assim
como eu fazia agora.
“Abençoe seu bisneto,” eu disse suavemente, colocando a raiz
em seu peito, “e ajude-o a se curar.”
Eu não sabia por que, mas senti que deveria ficar – e eu estava
neste negócio há tempo suficiente para saber quando não discutir
comigo mesma. Despertei Agnes e a mandei para cima, para sua
cama, depois me sentei na cadeira de balanço e balancei
suavemente, pressionando com as pontas dos dedos dos pés com
meias. Depois de um tempo, parei e sentei ouvindo o silêncio da
sala e a respiração do homem e as batidas lentas do meu próprio
coração.
A LUZ DO AMANHECER me despertou do meu transe
adormecido. Levantei-me, com firmeza, e examinei meu
paciente. Ainda dormindo, embora eu pudesse ver sonhos se
movendo por trás de suas pálpebras fechadas; ele estava vindo
gradualmente à superfície.
Sua pele estava fria, porém, e a carne acima e abaixo do gesso
era firme, sem sensação de inchaço ou crepitação. O fogo do
braseiro havia se reduzido a cinzas, e o ar tinha um frescor
comovente.
"Obrigada", murmurei, tirando a raiz do conquistador do peito
do Sr. Jackson e devolvendo-a ao meu amuleto. A magia do
homem poderia ser uma coisa útil, pensei, dados os eventos
recentes e a perspectiva de muito mais como eles.
1580

Saí para ir ao banheiro, depois ao andar de cima, onde lavei o


rosto, escovei os dentes, troquei de roupa e coloquei meu vestido
de trabalho de volta. O cheiro de bacon e batatas fritas estava
rastejando sedutoramente no quarto, e meu estômago borbulhou
em antecipação. Talvez houvesse tempo para fazer um lanche
rápido antes que o Sr. Jackson voltasse a se juntar aos vivos...
Fanny e Agnes estavam rindo juntas sobre uma forma de pão de
milho levemente queimada, mas ergueram os olhos com culpa
quando entrei.
“Esqueci”, disse Fanny, pedindo desculpas, “mas depois me
lembrei.”
"Vai ficar tudo bem", eu disse, cheirando. “Coloque manteiga e
um pouco de mel com ela e ninguém vai notar. Você viu Ele
mesmo esta manhã?”
“Ah, sim”, disse Agnes. “Fomos ao consultório há um minuto,
para ver se você estava lá ou se o soldado queria o café da
manhã, e o Sr. Fraser estava lá, com um, hum, utensílio na mão.
Ele nos disse para irmos preparar um prato enquanto ele falava
com o cabo Jackson. Ela acenou com a cabeça para um prato de
estanho na ponta da mesa, contendo dois bannocks678com geléia,
um monte de batatas fritas e seis fatias de bacon.
"Vou levar", eu disse, pegando o prato e pegando um garfo do
pote amarelo sobre a mesa. O metal estava quente e o cheiro
divino. "Obrigado meninas. Mantenham a comida quente até
que o Sr. Fraser ou eu voltarmos, sim?”
Foi muito atencioso da parte de Jamie visitar o cabo com um
penico, pensei, achando graça. Isso deve ajudar de alguma forma
a clarear sua mente. Parei do lado de fora da colcha que cobria
a porta da cirurgia, ouvindo para ter certeza de que não

678
Um tipo de pão achatado, feito sem fermentação
1581

interromperia o Sr. Jackson em um momento delicado.


A colcha estava com o lado vermelho para fora. Eu não
conseguia me lembrar se eu tinha fixado assim ontem ou não.
Era uma colcha de dois lados que Jamie tinha comprado para
mim em Salem: dois pesados pedaços de tecido de lã,
cuidadosamente presos juntos com um belo ponto de acolchoado
que se enrolava em círculos de folhas e ziguezagueava pelas
bordas. O pano vermelho era da cor de conhaque velho — ou
sangue, como Jamie observara mais de uma vez — e o outro
lado era de um marrom dourado profundo, tingido com casca de
cebola e açafrão. Era meu hábito colocar a colcha com o lado
vermelho para fora quando estava conversando em particular
com um paciente ou fazendo algo embaraçosamente íntimo para
eles, como uma indicação para a família de que eles não
deveriam invadir sem bater.
Ouvi um último pingo, um suspiro profundo do cabo Jackson e
o raspar metálico de um penico de estanho deslizando pela
madeira, depois o barulho de Jamie — presumivelmente —
deslizando-o para debaixo do balcão.
"Agradeço, senhor", disse Jackson, cortês, mas cauteloso.
"Bem, você não é meu prisioneiro", disse Jamie, em um tom de
voz prático. “Mas você parece ser meu convidado. Como tal, é
claro que você é mais que bem-vindo para ficar o tempo que
quiser - ou precisar. Mas não posso deixar de pensar que você
pode ter outros lugares que preferiria estar, uma vez que minha
esposa esteja satisfeita com sua perna."
O Sr. Jackson fez um breve som no qual surpresa e diversão se
misturaram em igual proporção, e houve um farfalhar e o
rangido da minha cadeira de balanço quando Jamie
evidentemente se acomodou.
"Estou muito grato por sua hospitalidade, senhor", disse
1582

Jackson. “E por sua esposa estar cuidando de mim."

"Ela é uma boa curandeira", disse Jamie. “Você vai se sair bem.
Mas sua perna está quebrada, então você deve não caminhar
sozinho. Vou levá-lo em minha carroça para onde você quiser
ir, assim que Claire disser que você está bem."
Jackson pareceu um pouco surpreso com isso, pois ele não
respondeu imediatamente, mas fez uma espécie de murmúrio
baixo.
"Eu não sou seu prisioneiro, você disse", disse ele, com cuidado.
"Não. Não tenho nenhuma disputa com você, nem motivo para
lhe fazer mal."
"Você e seus homens pareciam pensar diferente ontem "
observou o cabo, com um tom cauteloso na voz.
“Ah, isso.” Jamie ficou em silêncio por um momento, então
perguntou, sem nenhuma emoção aparente além de leve
curiosidade: “Você sabe qual a intenção do capitão Stevens em
me visitar?”
"Não senhor. E eu não quero saber,” Jackson disse com firmeza.
Jamie riu. “Provavelmente uma escolha sábia. Não vou te
contar, então, além de dizer que era um assunto pessoal entre ele
e eu.”
“Parecia assim.” Isso foi uma pitada de humor na voz de
Jackson? Eu estava ouvindo tão atentamente que não prestei
atenção à comida que estava segurando, mas o cheiro de bacon
de perto era insistentemente sedutor.
"Sim." A pitada de humor era mais forte na voz de Jamie. “Estou
imaginando que ele não arrastou muitos de vocês aqui só para
fazer uma demonstração de força para mim. Mas não há mais
nada num raio de oitenta quilômetros deste lugar – são quase
1583

cento e sessenta quilômetros até a cidade mais próxima de


qualquer tamanho, exceto Salem, e nem a Coroa nem o Capitão
Stevens teriam negócios com os irmãos e irmãs da Morávia.
Você os conhece?"
Era uma pergunta casual – aparentemente, pensei, e mordisquei
a ponta crocante de uma fatia de pão – e Jackson respondeu da
mesma forma.
“Eu estive em Salem, uma vez. Você está certo, os soldados não
têm negócios lá.”
“Mas eles têm negócios no interior, aparentemente.”
Silêncio mortal. Então ouvi o leve rangido da minha cadeira de
balanço, indo e voltando, indo e voltando. Devagar. Engoli o
bacon, sentindo um aperto na garganta.
Para uma companhia itinerante de soldados britânicos ter
“negócios” de uma maneira geral, eles devem ter pretendido
uma de duas coisas – ou possivelmente ambas. Para despertar os
legalistas, ou para caçar, assediar e desconcertar os rebeldes. E
uma companhia de soldados negros não seria enviada para
inspirar os legalistas a formar milícias e se voltar contra seus
vizinhos. Olhei involuntariamente para o teto acima de mim,
ouvindo na memória o crepitar da madeira e lembrando a
aparência de madeira queimando, prestes a desmoronar.
Mas eles não queimariam este lugar – ainda. Ulysses o queria.
“Se eu fosse seu prisioneiro,” Jackson disse finalmente,
lentamente, “eu não teria que responder suas perguntas, certo?
Eu não sei”, acrescentou timidamente. “Eu nunca fui um
prisioneiro antes.”
"Eu fui", Jamie assegurou-lhe gravemente, "e sim, isso mesmo.
Você tem que dizer aos seus captores seu nome e posição, e a
companhia a que você pertence, mas isso é tudo. Ouvi a cadeira
1584

balançar para frente e o leve grunhido de Jamie quando ele se


levantou. "Você nem precisa me dizer isso, como meu
convidado. Mas como você me honrou com seu nome e posição,
e o capitão Stevens me disse sua companhia, você é sincero679de
qualquer maneira."
Eu pisquei com isso. Talvez ele quisesse dizer isso casualmente,
mas “você é sincero" era uma das frases codificadas que os
maçons usavam para identificar uns aos outros; eu a ouvia com
frequência na Jamaica, quando nos apoiamos na Loja local para
ajudar em nossa busca pelo jovem Ian. Havia maçons negros
nessa época? Jackson não respondeu, no entanto.
“Mas eu não suponho que você queira passar as próximas
semanas na mesa de minha esposa. Ela vai precisar dela, mais
cedo ou mais tarde”, disse Jamie.
"Então." Sua voz estava um pouco mais alta; ele se virou para a
porta. “Diga para onde gostaria de ir, cabo, e alguém o levará até
lá. Enquanto isso, deixe-me ir ver para onde seu café da manhã
foi parar."
-.-.-

DEPOIS DO CAFÉ DA MANHÃ E de mais uma breve


conversa com o cabo Jackson, Jamie escreveu um bilhete e
mandou Jem colina acima para entregar ao capitão Cunningham.
E duas horas depois, os tenentes Bembridge e Esterhazy
apareceram à nossa porta. Eu não sabia o que o capitão ou a sra.
Cunningham tinham dito a eles, mas nenhum deles estava
machucado, e quando vistos, eles pareciam estar trabalhando –
um pouco inquietos – um com o outro.
Agora mesmo, os dois pareciam bastante perplexos e
No original, “You’re square”, no original. Parte de uma das frases chaves que mostram relação com a
679

maçonaria. Dentro da maçonaria, a noção de ser “square” (esquadro) em suas ações significa que ser
honesto, justo e sincero.
1585

anunciaram que vieram escoltar nosso prisioneiro – isto é,


convidado – até a cabana do capitão. O capitão havia
concordado - como o principal legalista em Fraser's Ridge - em
oferecer refúgio ao cabo Jackson até que ele pudesse se reunir
com sua companhia.

“Ele não pode andar”, Jamie os aconselhou. "Eu vou te


emprestar uma mula."
"Ele também não pode montar", eu disse. "Você vai precisar
fazer um trenó680 para ele."
Enquanto os homens saíam para fazer isso, verifiquei o estado
do cabo — febril, mas sem febre alta, uma certa dor e um pouco
de vermelhidão, mas — cheirei sua perna discretamente —
nenhuma infecção evidente, e escrevi um boletim médico para
Elspeth Cunningham, com uma descrição da lesão e notas sobre
os cuidados com o gesso. Ofereci-lhe um lanche681, que ele
recusou, mas ele bebeu outro posset medicinal, envolvendo um
ovo, creme, açúcar, extrato de casca de salgueiro, cimicifuga e
filipendula, um bom gole de uísque – e láudano suficiente para
derrubar um cavalo.
“Tem certeza que quer ir?” Eu perguntei, observando enquanto
ele tomava um gole do posset. “Estamos felizes em cuidar de
você até que esteja curado o suficiente para se juntar à sua
companhia.”
O cabo estava com os olhos pesados e o rosto corado, mas
conseguiu sorrir.
“É melhor eu ir, madame. Este capitão Cunningham, ele pode
enviar alguém ao capitão Stevens, ele providenciará para que eu

680
“Travois”, no original. Uma espécie de trenó, feita com uma plataforma ou rede amarrada em dois
longos suportes, às vezes com um terceiro, formando um triângulo. Podia ser carregado ou arrastado por
homens ou animais.
681
“Elevenses”, no original. Um pequeno lanche oferecido por volta das 11hs da manhã, daí seu nome
(eleven é onze em inglês)
1586

vá para Charlotte."
Eu balancei minha cabeça em dúvida. Ele estava indo bem o
suficiente, mas ser arrastado morro acima por três quilômetros
atrás de uma mula enquanto sofria de uma perna quebrada não
era algo que eu desejaria a um inimigo, muito menos a um
homem inocente. Ainda assim, foi sua escolha. Tirei minha
bolsa de amuletos do pescoço e a abri. O cheiro usual flutuou
quando eu mergulhei meu dedo nele, terroso e não identificável,
mas com uma estranha sensação de segurança.
“Bem, deixe-me devolver seu João Alto, o Conquistador,” eu
disse, sorrindo enquanto o pegava. "Espero que você não precise
disso em sua jornada, mas apenas no caso..."
“Ah, não, senhora.” Ele acenou com a mão lentamente para
mim, afastando-a. “Sua magia permanece comigo porque você
me curou com ela – mas é parte de sua magia agora.”
"Oh. Bem... obrigado, Sr. Jackson. Eu vou cuidar bem disso.” A
pequena raiz dura era lisa e brilhante, e meus dedos a
acariciaram brevemente enquanto eu a colocava de volta no
amuleto e amarrava ao pescoço. Ele assentiu com aprovação,
bocejou de repente e balançou a cabeça, depois virou o copo de
posset e o esvaziou. Ele estendeu a mão livre de repente, seus
dedos se curvando em convite. Eu peguei, automaticamente
colocando um dedo em seu pulso – pulso um pouco rápido, mas
forte, e enquanto sua mão estava muito quente, não era
alarmante…
Então percebi que ele estava dizendo algo, suave e arrastado,
mas não em inglês.
"Desculpe?"
"Eu te abençoo", disse ele, piscando sonolento. Ele sorriu e seus
dedos se soltaram e deslizaram livremente. Um momento
depois, ele estava dormindo.
1587

Quando vimos o grupo com o trenó partir em segurança, e as


meninas e Jem saírem para suas próprias tarefas, Jamie e eu
voltamos para a cozinha para um segundo café da manhã.
Ele se sentou cautelosamente, fazendo uma pequena careta, mas
balançou a cabeça ao meu olhar inquisitivo.
"Eu estou bem. Mas talvez eu tome um trago com meu mingau.”
Olhei para ele estreitando os olhos.
"Tome dois", sugeri, e ele não discutiu.
A grande frigideira de ferro preto682 estava quente em sua cama
de carvão brilhante e eu coloquei várias fatias frescas de bacon
e quebrei os últimos ovos do porão, um de cada vez, em uma
tigela para verificar se estavam bons antes de jogá-los na
gordura escaldante. Eu podia sentir a casa gradualmente se
acomodando ao nosso redor enquanto a sensação de intrusão e
perturbação desaparecia. Ainda assim, o interior do meu nariz
arrepiou com a fumaça do bacon frito, e o cheiro lembrado de
fogo era forte no fundo da minha garganta.
“O que você acha que Ulysses vai fazer agora?” Eu perguntei,
pousando os pratos. Minha voz estava firme, mas minhas mãos
não; a colher se contorceu em meus dedos enquanto eu jogava
sal nos ovos e mandei um spray de cristais brancos sobre a mesa.
Os olhos de Jamie estavam focados na mesa, mas pensei que ele
nem tinha visto o sal espalhado. Ele me ouviu, no entanto, e
depois de um momento ele se endireitou e acenou com a cabeça,
como se fosse para si mesmo.
"Matar-me", disse ele, com um suspiro. “Ou tentar,” ele
adicionou, vendo meu rosto.
O canto de sua boca se curvou. “Não se preocupe, Sassenach.

No original,“Big black-iron spider”, literalmente grande aranha de ferro preto. Uma frigideira com pés,
682

que podia ficar apoiada com as brasas diretamente embaixo dela.


1588

Não pretendo deixá-lo fazer isso".


"Ah, bom", eu disse, e ele sorriu, embora fosse um sorriso
irônico. O banco rangeu com seu peso quando ele se inclinou
para frente e pegou o sal derramado cuidadosamente na palma
de sua mão. Ele jogou uma pitada dele sobre o ombro esquerdo
e cuidadosamente derramou o resto de volta no saleiro.
Comecei a relaxar o suficiente para sentir fome e peguei meu
garfo.
“Mas se ele conseguir levar-me de alguma forma,” ele continuou
desapaixonadamente, pegando a pimenta, “ele pode vir aqui
com seus homens e expulsar você e as garotas e tomar posse do
lugar, acenando a carta debaixo do nariz dos inquilinos. Eles não
devem gostar disso, mas Cunningham e seus homens o
apoiariam, e enquanto os Lindsays, MacMillans e Bobby são
todos bons guerreiros, nenhum deles é o que você chamaria de
líder. Eles não resistiriam por muito tempo contra soldados
treinados e o bando de Cunningham – e Ulysses não hesitaria
em queimá-los, caso sentisse necessidade. Ele não se importaria
com uma pequena guerra.
“Ian e Roger não aceitariam isso,” eu disse.

Jamie arqueou uma sobrancelha para mim.


“Ian é um moicano e lutaria até a morte, mas nunca comandou
homens”, ressaltou. “Mohawk não luta realmente dessa forma.
E enquanto muitos dos homens em Ridge gostam dele, muitos
têm um pouquinho de medo dele – e gostar não é suficiente para
fazer um homem arriscar sua vida e sua família. Quanto a Roger
Mac..." Ele sorriu um pouco, com tristeza.
“Não vou dizer que nunca vi um sacerdote ser um bom lutador,
porque já vi. E Roger Mac pode reunir as pessoas e fazê-las
ouvir o que falar. Mas não é função dele fazer guerra e ele não
1589

tem experiência nisso. Além disso..." Ele endireitou as costas e


se espreguiçou, com um estalo abafado das vértebras. "Oh Deus.
Além disso”, ele repetiu, e me deu um olhar muito direto, “não
há como dizer quando Roger Mac e Bree vão voltar de Salem. E
eu não sei quando ‘capitão Stevens’ pode voltar – mas ele vai
voltar, Sassenach.”
Olhei para a janela. Estava chovendo de novo, uma mancha de
gotículas finas.
“Eu suponho,” eu disse timidamente, “que Frank não mencionou
a Companhia de Pioneiros Negros de Sua Majestade naquele
livro?”
"Ele não citou. Seu bastardo só estava preocupado com os
escoceses”, disse ele, franzindo a testa. “Não me lembro de uma
palavra naquele livro sobre soldados negros.” Então seu rosto
ficou branco por um momento e ele fez um barulho escocês entre
desgosto e diversão. “Não, ele disse que havia homens negros
na batalha de Savannah. Mas eles eram de Saint-Domingue, com
a marinha francesa."
Ele fez um gesto impaciente, descartando toda essa
complicação.
“O que eu sei é que Stevens vai tentar me matar se puder, e
quanto mais cedo melhor. E também sei que ele enviará alguém
para buscar seu cabo antes disso."
A cozinha estava quente e aconchegante, mas o café da manhã
congelou no meu estômago.
"Acho que não. O cabo Jackson disse que Cunningham tomaria
providências para mandá-lo para Charlotte,” desabafei.
Jamie me encarou por um momento, e pude ver as engrenagens
se encaixando atrás de seus olhos.
"Ah", disse ele, pensando claramente no que eu pensava:
1590

Charlotte deve ser o lugar onde Ulysses planejava se encontrar


com o resto da Companhia de Pioneiros Negros. “Isso deve ser
para onde Ian foi, então. Ele deve estar de volta em breve, e
então…”
"Não!" Eu disse. “Você não pode levar sua milícia atrás dele!”
"Eu não quis dizer isso", disse ele suavemente, e pegou o garfo.
“Seria um bom exercício, mas o tempo está instável e a caça está
começando a se reunir e se mover. Os homens precisam caçar
veados, não soldados britânicos. Além disso, sabe o que
aconteceria se eu o pegasse, mas alguns de seus homens
escapassem para contar a história?"
Eu sabia, mas soltei a respiração que estava segurando; ele não
ia fazer isso. Então um segundo pensamento me ocorreu no
plexo solar. Eu congelei por um momento.
"Não", eu disse, e me levantei de repente, pairando sobre ele.
"Não! Se você for caçar aquele homem sozinho, Jamie Fraser,
você... você... não pode."
Ele piscou. Bluebell despertou do sono com um pequeno e
assustado wuff! mas, não vendo nada de anormal, ela se
aproximou de Jamie e acariciou sua perna. Ele abaixou a mão
para coçar as orelhas dela, mas manteve o olhar em mim,
considerando.
“Jamie,” eu disse, tentando evitar que minha voz tremesse. “Se
você me ama... não. Por favor, não. Eu não conseguiria
suportar.” Eu não conseguiria. Eu não conseguiria suportar a
ideia de ele ser morto, mas também não podia suportar a ideia
de sua caça, executando-a. O som de um tiro de rifle ecoava na
minha cabeça sempre que eu pensava no homem que ele havia
matado, despertando outros ecos – daquela noite, um corpo
pesado no escuro, dor e terror e sufocação impotente.
"E eu nem sei se você atirou nele", eu disse abruptamente, e me
1591

sentei. "O homem... cujo nome eu não sei."


Ele olhou para mim por um momento, com a cabeça de lado,
então estendeu a mão delicadamente e pegou um pedaço de
gema com a ponta do dedo. Ele tocou no meu lábio inferior com
isso e eu lambi por reflexo: quente, saboroso, delicioso.
“Eu te amo,” ele disse suavemente, e sua mão segurou minha
bochecha, grande e quente. “Como um ovo adora sal. Dinna
fash, mo chridhe. Vou pensar em outra coisa.”
1592

133

UM SENTIMENTO TÃO ESTRANHO

Fraser's Ridge

8 de julho de 1780 d.C.


De: Capitão William C.H.G. Ransom
Para: Sra. Roger MacKenzie de Fraser's Ridge

Querida irmã-

Um Sentimento tão estranho ao escrever isso; a minha primeira


Vez que faço isso.
Não tenho muito - Tempo, quero dizer - mas recentemente estive
envolvido em um número de Circunstâncias estranhas, uma das
quais invocou seu Nome, ou melhor, não seu nome; o Indivíduo
apenas disse: “Conheço sua irmã”.
Possivelmente ele conhece. No entanto, eu conheci este Homem
- seu nome é Ezekiel Richardson - ao longo de vários anos,
durante os quais ele tentou em uma ou mais Ocasiões me matar
ou seqüestrar, ou interferir em minhas Ações. Conheci-o pela
primeira vez como Capitão do Exército de Sua Majestade e,
muito mais recentemente, como Major do Exército Continental.
Em nosso Encontro mais recente (perto de Charles Town), ele
me olhou com estranheza e comentou que conhecia você. Sua
1593

Maneira - e de fato, ele dizer tal Coisa - foi Peculiar ao Extremo


e despertou um profundo Sentimento de Desconforto em mim.
Não pretendo orientá-la, pois não tenho a mais vaga Noção de
qual Conselho devo dar. Mas senti que deveria avisá-la -
embora contra o quê, não tenho idéia.
Com meu mais Profundo Respeito e Carinho,
Seu Irmão (caramba, eu também nunca escrevi isso antes),
William
PostScriptum: Tal Foi o meu Senso de Inquietação, que me
comprometi a tentar esboçar a aparência do Major Richardson,
Caso ele a procurasse. Ele tem um Rosto muito indeterminado;
a única Distinção que observei nele é que suas orelhas são
colocadas de forma desigual - possivelmente não na Medida em
que aparecem neste Esboço grosseiro, mas se ele estiver
dizendo a Verdade, talvez você possa reconhecê-lo, se ele for
até sua Porta um Dia, e ficar de Sobreaviso.
-.-.-
AS MÃOS DE BRIANNA FICARAM suadas durante a leitura,
e um fio de suor escorreu pela lateral de seu pescoço. Ela o
afastou distraidamente e enxugou a mão molhada na saia antes
de desdobrar o papel menor.
Era um esboço grosseiro, um retrato de rosto com as orelhas
comicamente enormes e presas assimetricamente à cabeça,
como borboletas prestes a levantar voo. Ela sorriu por um
instante, e então olhou mais de perto para o rosto entre aquelas
orelhas. Não era nada distinto mesmo, o que poderia ter tornado
o desenho melhor do que poderia ter sido, ela pensou, franzindo
a testa. Simplesmente não havia nada complicado no rosto muito
comum do major, embora ela estivesse satisfeita ao ver que
William realmente tinha pelo menos alguma habilidade básica
1594

em desenho: ele havia adicionado um claro-escuro profundo no


lado esquerdo do rosto e um rápido sombreamento de polegar,
para adicionar cavidades sob os olhos pequenos e inteligentes
que…
Ela parou, algo fazendo cócegas em seu cérebro, e olhou mais
de perto. Alguém poderia realmente ter orelhas tão visivelmente
fora de ordem? Orelhas grandes eram uma coisa, mas orelhas
deslocadas... Talvez se o homem tivesse sofrido um acidente que
cortou uma orelha e um cirurgião a tivesse costurado de volta...
A ideia a fez sorrir, apesar de sua inquietação, mas outro
pensamento estava surgindo por trás do primeiro, desencadeado
pelo pensamento da cirurgia. Cirurgia plástica.
Ela olhou novamente, mais de perto, para aquele rosto muito
comum, sem a maioria das linhas normais de expressão. O
alarme a estava inundando, mesmo antes de sua mente ter
colocado os pontos nos I's
Ela se sentiu repentinamente mal e sentou-se abruptamente, os
olhos fechados. Ela não havia almoçado e agora se sentia
enjoada com o estômago vazio. Comum com enjoo matinal, sua
mãe havia dito, mas isso não era enjoo matinal. Ela abriu os
olhos e olhou novamente.
E desta vez ela respirou ar frio com cheiro de pinho e urze e
borracha queimada e metal quente e o fantasma acre da pólvora.
Lembrou-se do som de granizo das balas de espingarda batendo
no tojo e na urze. E a sensação quente e gordurosa de um gorro
de lã velho em sua mão, arrancado da cabeça de um homem cujo
rosto ela não tinha visto direito, enquanto tentava sequestrar Jem
e Mandy do pátio escuro de Lallybroch. Mas agora ela o via
claramente e via através de seu disfarce. Ambos.
Alguém virá.
Ela se inclinou e vomitou.
1595

-.-.-

ROGER ESTAVA SENTADO debaixo de uma árvore na


margem do riacho, teoricamente escrevendo um sermão sobre a
natureza da Santíssima Trindade, mas na verdade hipnotizado
pela água marrom clara que borbulhava, deixando citações
aleatórias sobre riachos e água e eternidade rolarem dentro de
seu crânio como pedras sendo arrastados rio abaixo, batendo
uma na outra enquanto iam.
"O tempo é apenas o riacho em que vou pescar", ele murmurou,
experimentando. Ele não estava preocupado em plagiar palavras
que ainda não haviam sido escritas. Além disso, Davy Caldwell
havia lhe assegurado que a citação era a espinha dorsal de muitos
bons sermões – e um bom lugar para começar, se você se
encontrasse sem pensar em nada.
"Qual é o caso, cerca de nove em dez vezes", disse Davy,
pegando uma caneca de cerveja. "E pela décima vez, você deve
escrever seu pensamento brilhantemente original e colocá-lo de
lado e lê-lo no dia seguinte, para ter certeza de que você não está
falando bobagens"
“Eu sempre pensei que Ralph Waldo Emerson estava falando
bobagens, mas certamente você não vai dizer isso em seu
próximo sermão, não é?”
"O que?" Ele ergueu os olhos de seu caderno para ver Bree
descendo cuidadosamente a margem, e seu coração se elevou ao
vê-la. Ela parecia grávida.
“Se você viver cem anos, quero viver cem menos um dia, para
nunca ter que viver sem você”, disse ele.
"O que?" ela disse, assustada. “Quem disse isso?”
1596

"Eu deveria ficar magoado por você não ter pensado que era
eu?" ele disse, rindo. “Foi A. A. Milne. Do Ursinho Pooh, se
você pode acreditar.”
“A essa altura,” ela disse, e sentou-se, suspirando pesadamente,
“eu acredito em qualquer coisa. Veja isso."
Ela lhe entregou um desenho estranho da cabeça de um homem,
a folha mostrando as marcas de ter sido dobrada.
"Meu irmão me enviou", disse ela, e sorriu, apesar de sua
aparente inquietação. “Ele está certo, parece estranho dizer isso.
‘Irmão’, quero dizer.
"O que é isso? Ou melhor, quem?” Ele podia ver o que era; um
esboço rápido da cabeça de um homem, feito a lápis grafite duro.
Ele franziu a testa. "E o que há de errado com ele?"
"Bem, há um par de boas perguntas." Ela respirou fundo e se
acomodou. “Esse é um desenho de um homem chamado Ezekiel
Richardson. William diz que é um vira-casaca — começou com
os britânicos, mudou para os continentais. Ele também é uma
espécie de canalha, que tentou fazer mal a William de várias
formas mas ainda não conseguiu. Ele lhe parece familiar?”
Roger olhou para ela, intrigado.
"Não. Por que ele deveria?” Ele voltou seu olhar para o papel e
lentamente traçou o contorno do rosto. “Suas orelhas não são
bem retas, mas suponho que William não tenha muito seu talento
artístico.”
Ela balançou a cabeça.
"Não. Isso não. Tente imaginá-lo com cabelos mais longos,
encaracolados e cor de areia, sobrancelhas claras e uma
queimadura de sol.”
Agora um pouco alarmado e se perguntando por que, Roger
franziu a testa para o Retrato de um homem com cabelo escuro
1597

penteado para trás, sobrancelhas escuras e olhos pequenos que


não revelavam nada.
“Ele certamente não tem muita expressão…”
“Pense em cirurgia plástica ruim,” ela sugeriu, e houve uma
fração de segundo de incompreensão antes que ela o atingisse.
Sua boca se abriu e sua garganta se fechou, com força, e por um
instante ele se sentiu enforcado, caindo no ar e terminando com
um puxão de parar o coração.
“Jesus,” ele resmungou, quando sua garganta finalmente soltou
seu aperto de morte. “Um viajante do tempo? Você realmente
acha isso?”

"Eu sei que sim", disse ela categoricamente. “Você se lembra,


quando morávamos em Lallybroch, um cara chamado Michael
Callahan – ele atendia por ‘Mike’ – que era um arqueólogo que
trabalhou em Orkney? Ele veio ver o forte da Idade do Ferro na
colina acima do - nosso - cemitério." Ele viu a garganta dela
inchar quando ela engoliu em seco. “Talvez ele não estivesse
olhando para o forte. Talvez ele estivesse olhando para os
túmulos... e para nós.”
Ele olhou de seus lábios apertados para o desenho, de volta.
"Eu não estou dizendo que você está errada", disse ele
cuidadosamente. "Mas-"
"Mas eu o vi de novo", disse ela, e ele viu que ela estava
segurando o tecido de sua saia, amarrado em ambas as mãos.
“No tiroteio no O.K. Corral."
Uma onda de vômito quente atingiu o fundo de sua garganta, e
ele a forçou para baixo. Ela viu o rosto dele e soltou o tecido
amontoado para pegar a mão dele entre as suas, segurando com
força.
1598

“Eu não teria pensado nisso, mas olhando para as orelhas, de


repente me ocorreu que a única coisa que eu conseguia pensar
que faria as orelhas de alguém serem assim seria se eles tivessem
algum tipo de cirurgia que não saiu do jeito que deveria... e do
jeito que seu rosto é tão sem expressão - e de repente eu me
lembrei daquela noite. Ele - ele tentou entrar na van onde as
crianças e eu - eu agarrei o gorro de lã de sua cabeça, puxei um
pouco de seu cabelo com ele, e eu vi apenas um vislumbre de
seu rosto - e então eu não pensei nisso de novo, porque
estávamos tentando fugir e então eu levei as crianças para a
Califórnia, e... Mas só agora." Ela engoliu em seco novamente,
e ele viu que a palidez de seu rosto deu lugar a um rubor de raiva.
"É ele. Eu sei que é ele.”
"Puta merda683 ", disse ele, olhando para o rosto inexpressivo,
tentando combiná-lo com o rosto mutável sempre sorridente de
Callahan. Mas tudo estava começando a se encaixar, como
dominós abrindo caminho para o inferno.
"Ele conhecia Rob Cameron", disse ele. “E Cameron leu o livro.
Ele sabia o que éramos.”
“Rob não podia viajar”, disse ela. “Mas talvez Mike Callahan
possa. E ele sabia que reconheceríamos seu rosto real.”

683
“Holy Buggery”, no original.
1599

134

F. COWDEN, LIVREIRO

Filadélfia
25 de agosto de 1780

NÃO ERA NADA FORA do comum, visto da rua. Não era uma
das ruas da moda, mas também não era um beco. O prédio era
de tijolos vermelhos, como a maioria da Filadélfia, com
fachadas de tijolos pintados de branco nas janelas e na porta.
William parou por um momento para se recompor e enxugar o
suor do rosto, enquanto fingia examinar os livros exibidos na
janela.
Bíblias, é claro, mas apenas uma grande com uma capa de couro
em relevo e páginas douradas, e um livro de Salmos de tamanho
portátil ao lado dele com uma capa de couro verde, brilhante
como um pequeno papagaio. Ele imediatamente revisou sua
opinião original sobre a qualidade da livraria e dos seus clientes,
uma opinião corroborada pela variedade de romances em inglês,
alemão e francês - incluindo a tradução francesa de Robinson
Crusoé, destinada a crianças, onde ele aprendeu francês com a
idade de dez anos ou mais. Ele sorriu, momentaneamente,
distraído pelo calor da memória - e então olhou para cima da
vitrine de livros para ver Amaranthus pairando atrás dela, não
mais do que seu rosto pálido visível através do vidro, como se
ela tivesse sido decapitada.
1600

O choque foi tão grande que ele ficou estupidamente


boquiaberto por um momento, mas ele observou que, embora
não estivesse boquiaberta, ela parecia pelo menos estar
igualmente surpresa ao vê-lo. Ele se compôs e a fixou com um
olhar que pretendia transmitir que não adiantava ela sair
correndo pela porta dos fundos e descer o beco, porque ele era
sem dúvida mais rápido do que ela e iria caçá-la como uma
tartaruga em fuga.
Ela interpretou corretamente esse olhar e seus olhos mutáveis -
pretos, na penumbra da loja — estreitaram-se perigosamente.
"Experimente", disse ele. Em voz alta, para espanto de uma
senhora idosa que parou ao lado dele para examinar as
mercadorias da livraria.
"Peço desculpas, senhora", disse ele, curvando-se. “Você terá a
bondade de me desculpar?”
Sem esperar por uma resposta, ele empurrou a porta da loja e
entrou.
Não surpreendentemente, Amaranthus tinha saído. Ele olhou
apressadamente ao redor da sala, que – como todas as livrarias
em que ele já entrou – tinha pilhas de livros arrumadas em todas
as superfícies horizontais possíveis. O lugar cheirava
maravilhosamente a tinta, papel e couro, mas naquele minuto ele
não tinha tempo para apreciá-lo.
Um gnomo saiu de trás da mesa com os livros, apoiando-se
numa bengala. Apenas sua altura que era de um gnomo, William
viu; ele era magro mas ereto, com uma cabeça cheia de cabelos
grisalhos, grossos e curtos e desgastados, e um rosto bronzeado,
com rugas profundas, cujas linhas eram fixas em determinação.
“Fique longe da minha filha,” o gnomo disse, segurando
firmemente a bengala com as duas mãos. "Ou eu vou..." Seus
olhos se estreitaram, e William viu de onde Amaranthus tinha
1601

conseguido seus olhos e sua expressão. Sr. Cowden — com


certeza tinha que ser ele — olhou pensativo para os pés de
William, depois permitiu que seu olhar passasse para o rosto —
mais ou menos uns trinta centímetros acima do seu.
"Ou eu vou quebrar seu joelho", disse Cowden, habilmente
invertendo seu aperto para segurar a bengala à maneira de um
taco de críquete e adotando a postura de alguém com a intenção
de jogar a bola em direção ao próximo condado. Tão decidida
era sua maneira que William deu um passo para trás.
Dividido entre aborrecimento e diversão, ele se curvou
levemente.
“Seu servo, senhor. Eu sou... William Ransom." Ele estava
prestes a se apresentar como o conde de Ellesmere, ele percebeu.
Ele também percebeu quanta deferência esse título poderia
valer, já que ele não estava percebendo nada só pela força do seu
patronímico.
"Então?" inquiriu o gnomo, não alterando sua postura nem um
pouco.
“Vim entregar uma mensagem à sua filha, senhor. De Sua Graça,
o Duque de Pardloe.
“E daí?”, disse Cowden.
"Você disse 'e daí'?" William perguntou, incrédulo.
“Eu disse, e pretendo continuar dizendo isso até que você se
retire das minhas instalações.”

“Eu me recuso a sair até que eu tenha falado com... hum... bem,
seja qual for o maldito nome que ela está chamando a si mesma
esses dias. A Viscondessa Grey? Sra. General Bleeker? Ou ela
voltou para Miss Cowden?
A bengala do Sr. Cowden passou a uma polegada do joelho de
1602

William, só porque os reflexos de William o levaram para trás


por um metro. Antes que o homem pudesse atacar novamente,
William se curvou e pegou a bengala da mão dele. Ele resistiu à
vontade de quebrá-la - era um objeto fino, com uma pesada
cabeça de bronze na forma de um corvo - e em vez disso a
colocou no topo da estante mais próxima, bem fora do alcance
de Cowden.
"Agora... por que você não quer que eu fale com sua filha?" ele
perguntou, mantendo seu tom o mais razoável possível.
"Porque ela não quer falar com você", respondeu o Sr. Cowden,
seu tom um pouco menos razoável que o de William, mas
também não enraivecido. "Ela disse isso.”
“Ah.”
A falta de agressividade na resposta de William pareceu acalmar
o livreiro levemente. Seu cabelo se ergueu como a crista de uma
cacatua, e ele fez uma tentativa de alisá-lo com a palma da mão.
William tossiu.

"Se ela não falar comigo agora, talvez eu possa deixar um bilhete
para ela?" ele sugeriu, apontando para um tinteiro sobre a mesa.
"Hum." Cowden parecia duvidoso. “Duvido que ela vá ler.”
"Eu vou apostar com você cinco para um que ela vai ler."
A língua do Sr. Cowden cutucou o lado de sua bochecha,
considerando.
“Xelins?” ele perguntou.
“Guinéus”.684
"Feito." Ele se moveu para trás da mesa, tirou uma folha de papel
e entregou a William uma caneta de vidro fina com um fio
espiralado de azul escuro subindo pela sua haste. “Não pressione
684
Um guinéu equivale a 21 xelins, no sistema em vigor na época.
1603

muito”, aconselhou. “É vidro de Murano685 e bastante forte, mas


é de vidro, e você é um sujeito desajeitado. Em termos de
tamanho”, ele emendou. “Eu não contesto sua destreza,
necessariamente.”
William assentiu e mergulhou a caneta suavemente.
Presumivelmente, deve ser usada como uma pena... ele fez dessa
forma, e ela escreveu lindamente, suave como seda e segurando
a tinta muito bem. Sem borrões, também.
Ele escreveu rapidamente, Do que você tem medo? Seja o que
for, não é de mim. Seu mais humilde e obediente Servo, William,
então colocou areia na folha e sacudiu-a suavemente para se
certificar de que estava seca. Ele não viu nenhum lacre, mas seu
pai lhe havia ensinado alguns anos atrás como dobrar uma carta
como um quebra-cabeça chinês, de uma maneira que tornaria
quase impossível abrir e dobrar novamente da mesma maneira.
Ele pressionou os vincos com a unha do polegar, para ter certeza
de que iriam aparecer, caso a carta fosse aberta antes de chegar
ao destinatário.
O livreiro aceitou o quadrado dobrado e ergueu uma sobrancelha
grossa e cinzenta.
“Diga a ela que voltarei amanhã às três horas, sem algemas.”
William disse, e curvou-se. “Seu servo, senhor.”
"Nunca tenha filhas", o Sr. Cowden o aconselhou, enfiando o
bilhete num bolso no peito. “Elas não escutam nada.”

-.-.-
WILLIAM PASSOU UMA noite acordado, entre percevejos,
mariposas curiosas que pareciam empenhadas em explorar suas
narinas, apesar desses orifícios não terem luz alguma, e seus

685
As canetas (ou penas) de vidro de Murano foram desenvolvidas em Veneza a partir do ano 1700
1604

pensamentos, que eram indefinidos, mas ativos.


“Você entra em uma situação com uma expectativa”, seu tio Hal
disse a ele uma vez, durante uma discussão sobre táticas
militares. “Você deve saber o que você quer que aconteça,
mesmo que o que você quer não seja nada a mais do que sua
própria sobrevivência. Essa expectativa ditará suas ações.”
“Desde que”, seu pai interpôs ordenadamente, “você possa fazer
algo diferente, se você só quiser sair vivo, do que faria se o seu
desejo primário seria manter a maioria de suas tropas vivas. E
uma outra coisa, se o que você queria era derrotar um
comandante adversário e que se dane o custo."

William coçou a cintura, meditando.


Bem, então... o que eu quero que aconteça?
À primeira vista, ele já havia alcançado o objetivo declarado de
sua expedição, que era descobrir onde estava Amaranthus e suas
condições e bem-estar geral. Bem, tudo bem. Ela estava com o
pai, que foi para onde ela disse que estava indo, e claramente
não estava doente nem ferida, a julgar pela velocidade com que
ela deixou o local.
O que William queria saber no momento era se ela estava usando
seu anel de casamento. Infelizmente, ele não conseguiu decidir
o que sua presença ou sua ausência poderia significar. Ele
também não conseguia decidir qual condição ele pessoalmente
preferiria. A visão de sua mão sem anel o encheria de pena,
simpatia, satisfação ou excitação? Ele sentia todas aquelas
coisas, imaginando... Não dava para deixar de perceber: uma
grossa faixa de ouro com uma saliência ovoide cortada com um
vinco profundo, na qual estava incrustado um grande diamante,
ladeado por pérolas e minúsculas contas de turquesa persa.
Ele bocejou, espreguiçou-se e relaxou, tanto quanto foi possível;
1605

a cama da pousada era uma de Procusto686 para alguém de sua


altura, e ele estava deitado com os joelhos levantados, um
montículo duplo escuro sob os cobertores. Ele teria que
encontrar alojamentos melhores se...
Se o que?
O que, de fato? Não estava em suas ordens arrastar a mulher de
volta para Savannah. Ele não precisava ficar esperando para
tentar convencê-la a ir com ele. Mas e Trevor?
A mensagem do tio Hal - que havia sido ditada por Lord John,
que disse que o estilo normal de correspondência de Hal levaria
qualquer mulher sã a fugir instantaneamente - deixou claro que
ele a considerava uma filha e que ela sempre encontraria
proteção e socorro sob seu teto, para ela e seu filho.
Ela está sã, eu me pergunto...?
Ele estava ficando sonolento, mas sentiu um pulsar distante com
o pensamento, que trouxe à mente a sugestão dela sobre suas
dificuldades pessoais...

"Você pode... possivelmente gostar disso."


Ele rolou para o lado, com as pernas dobradas, e agora puxou o
travesseiro sobre sua cabeça para abafar os sons do bar abaixo,
onde o canto parecia ser acompanhado por alguém batendo um
bumbo.
"Você também", ele murmurou, e dormiu.

-.-.-

ÀS TRÊS HORAS da tarde seguinte, apresentou-se na livraria.

686
Procusto era um personagem da mitologia grega, um assaltante que fazia os viajantes se deitarem em
sua cama. Se eram maiores do que a cama, Procusto cortava o excedente. Se eram menores, Procusto
esticava as pernas até que ficassem do tamanho da cama. Procusto foi morto por Teseu.
1606

O Sr. Cowden estava atrás de sua mesa, escrevendo em um


grande livro-razão. Ele ergueu os olhos para a entrada de
William, fitou-o com olhos brilhantes e, em seguida, puxou uma
gaveta rasa, da qual tirou um único guinéu dourado e colocou-o
precisamente no centro da mesa.
"Ela está no pátio dos fundos", disse ele, e voltou às suas contas.
William pegou o guinéu, fez uma reverência e saiu.
O chamado pátio era um pequeno terreno cercado, mas tinha
sido projetado por alguém - provavelmente o Sr. Cowden - com
um bom olho para um jardim e um gosto diversificado por
plantas. Levou um momento para William localizar
Amaranthus, embora ele estivesse procurando por ela. Ela
estava sentada em um banco de pedra em um canto que tinha
uma treliça de rosas pendurada - não florescendo, mas com
folhas exuberantes, a folhagem tingida de vermelho. Uma
pequena fonte de pedra borbulhava na frente dela; é por isso que
ele não a viu imediatamente.
Ela usava preto, o que não combinava com ela, e seu cabelo
estava preso sob uma touca com um pedacinho de renda. Ela
ainda usava seu anel de casamento, e ele sentiu uma pequena
pontada do que poderia ser decepção. Então ele viu que
enquanto ela ainda usava o anel, ela o havia trocado da mão
esquerda para a direita.
Ele parou perto da fonte e curvou-se para ela.
"Então você não está medo de nada, agora?"
Ela olhou para ele, sobriamente, então ergueu os olhos para
encontrar os dele. Azul pálido, translúcido.
“Eu não diria isso. Mas certamente não tenho medo de você".
Isso poderia ter sido um desafio ou um escárnio, mas não foi.
Foi apenas uma declaração de fato e isso o aqueceu bastante.
1607

"Bom", disse ele. "Por que você correu quando eu vim ontem,
então?"
“Eu entrei em pânico,” ela disse francamente. “Eu deixei de lado
todos os pensamentos de—do pai Pardloe e lorde John e
Savannah...
"-e eu?"
“E você,” ela disse calmamente, “e depois de um tempo, tudo
começou a parecer irreal, como o tipo de fantasia que você tem
quando está lendo um bom livro. Então, quando você apareceu
como o Rei Demônio em uma pantomima687—” ela sacudiu a
mão. Depois de um momento de pausa, ela perguntou: "Você
quer se sentar?"
Ele se sentou ao lado dela, perto o suficiente para sentir o calor
dela - era um banco pequeno e William era um jovem grande.
Ele não tinha certeza do que perguntar. Ainda.
"Você é uma viúva, então?" ele disse finalmente, e pegou a mão
dela, examinando o anel.
“Sim, eu sou,” ela disse friamente.
"Mesmo? Ou apenas até onde seu pai - e a Filadélfia - sabem?”
Ela deu-lhe um olhar estreito, mas ela não puxou a mão, e ela
também não respondeu imediatamente.

“Porque,” ele disse, acariciando as costas da mão dela com o


polegar, “se Ben está realmente morto agora, você não tem
nenhuma razão para não voltar para Savannah comigo, não é?
Você não quer ver Trevor? Ele sente falta da mãe dele.”
"Seu bastardo", ela sussurrou. "Solte-me!" Ele o fez, cruzando
as mãos sobre os joelhos.
687
Pantomina é uma espécie de teatro gestual, muitas vezes interpretado por um único ator, que faz o
menor uso possível de palavras, dando maior ênfase nos movimentos através da mímica, atitudes e
expressões faciais. O Rei Demônio é um personagem recorrente nesse tipo de teatro.
1608

Não houve nenhum som por vários minutos, exceto o vai e vem
do trânsito na rua e o chapinhar da fonte. O cheiro do jardim era
forte no ar, e embora não fosse tão exuberante quanto os aromas
sulistas de Savannah, era pungente o suficiente para agitar o
sangue - e as lembranças do jardim da Sra. Fleury, com sua
pedra fria e úmida e o testemunho silencioso de um sapo de
olhos negros.
"Eu sou o único para quem você pode contar", ele disse
finalmente, em voz baixa. “Eu não espero que seu pai saiba, não
é? O que aconteceu com Ben?”
Ela riu, curta e amarga, mas uma risada.
"'O que aconteceu com Ben'", ela repetiu. “Não, ‘O que Ben
fez’? O general Washington não veio sequestrá-lo, você sabe.
Ele foi. Ele fez tudo sozinho!”
“Mas você foi até ele, não foi?” Isso não era inteiramente um
palpite; ele tinha visto que seus dedos não estavam manchados
de tinta. Todos os que trabalham em uma gráfica ou em uma
livraria acabam com os dedos manchados; os do pai dela
estavam. Se os dedos dela não estavam sujos, ela não estava aqui
há muito tempo.
Ela não respondeu imediatamente, mas sentou-se
silenciosamente fumegando de raiva, a boca apertada.
“Eu fui,” ela disse finalmente. “Que grande tola eu fui. Eu pensei
que poderia persuadi-lo. Eu tinha visto o que aconteceu durante
o cerco, em Savannah. Eu pensei que eu poderia convencê-lo —
pelo amor de Deus, ele era um oficial britânico! Ele deveria
saber como é o exército, o que eles podem fazer!”
“Suponho que sim,” William disse suavemente. “Bastante
corajoso da parte dele para pegar em armas contra eles, não é?
Ela fez um barulho como um gato bravo e se afastou dele.
1609

“Então ele não voltou para Savannah com você. Por que você
simplesmente não voltou? Você sabe que os Greys iriam recebê-
la de braços abertos – mesmo porque só você tiraria Trev das
mãos deles.”
Ela respirou fundo pelo nariz, então de repente se virou para
enfrentá-lo.
“Eu realmente vi Ben. Eu o vi na cama com uma prostituta de
cabelos pretos que estava chupando o seu...” A cólera a sufocou
tão eficientemente quanto Ben provavelmente havia sufocado a
sua namorada688 quando viu Amaranthus aparecendo na porta.
William hesitou em dizer qualquer coisa, com medo de fazê-la
pular e correr para dentro. Em vez disso, ele colocou a mão no
banco entre eles, mal tocando seus dedos. E esperou.

“Ele se levantou e me empurrou para o quarto de vestir e me


impediu de voltar para o quarto até que ela se levantou e correu,
a xoxota imunda."
"Onde diabos você aprendeu uma palavra como essa?" ele
perguntou, verdadeiramente chocado.
"Um livro de poesia erótica na biblioteca de lorde John", disse
ela, “Eu teria matado os dois, ali mesmo, se eu tivesse algo
comigo que pudesse usar. Você não vai a uma reunião com seu
marido distante com uma faca no sapato, não é?" Ela olhou para
sua mão esquerda nua. “Eu arranquei meu anel e tentei fazê-lo
engolir. Quase consegui” ela disse, desafiadora. Lágrimas de
raiva escorriam pelo seu rosto, mas ela não parecia consciente
delas.
"Sinto muito que você não tenha conseguido", disse ele, e
respirou cuidadosamente. “Não desculpo Ben, de qualquer
forma, mas... ele é um soldado, e ele pensou que você o tinha
688
No original, foi usada a palavra ‘inamorata’
1610

deixado para sempre. Quero dizer, uma... uma ligação casual..."


“Casual, uma ova!” ela rosnou, tirando a mão. "Ele se casou com
ela!"
As palavras o atingiram na boca do estômago. William abriu a
boca, mas não encontrou nada para dizer.
"É por isso que eu trouxe o anel comigo", disse ela, olhando para
ele. "Eu não deixaria que ela ficasse com ele!”
Claro que ela também precisava disso para a farsa de sua viúvez,
mas ele preferia pensar que continuar a usá-lo - mesmo que na
mão direita - poderia ser algo da mesma natureza que usar um
cilício689 para ela, mas não disse isso.
"Case comigo", disse ele, em vez disso.
Ela estava franzindo a testa para um pássaro que havia pousado
na beira da fonte para beber - uma pequena criatura vistosa com
asas em preto e branco e vermelho escuro nas laterais.
“Pipilo,” ela disse.
"O que?"
"Ele." Ela ergueu o queixo em direção ao pássaro, que
prontamente voou. Ela virou-se no banco para olhar William de
frente, suas próprias feições mais ou menos compostas.
“Casar com você,” ela disse lentamente. Uma contração que ela
não podia controlar mostrou-se brevemente no canto de sua boca
pálida, mas ele não achou que fosse um impulso para rir. Talvez
choque, talvez não.
“Case comigo,” ele disse novamente, suavemente. Os olhos dela
estavam vermelhos, e agora um cinza nublado. Ela desviou o
olhar.

689
No original, ‘hair shirt’. Cilício é um tipo de instrumento de auto flagelação. Neste caso, uma roupa
feita de algodão rústico e pelos grossos, que deve ser usada junto à pele como punição.
1611

"Você quer dizer um marriage blanc690, suponho?" ela disse, sua


voz um pouco rouca. “Vidas separadas, camas separadas?”
“Oh, não,” ele disse, e segurou ambas as mãos dela. “Eu
definitivamente quero ir para a cama com você. Diversas vezes.
Que tipo de casamento você chamaria esse?"
"Bem, bigamia, para começar." Ela estava olhando para ele de
uma maneira diferente, no entanto, e o sangue estava pulsando
em seu peito.
"Podemos discutir os detalhes no caminho de volta para
Savannah." Ainda segurando suas mãos firmemente nas dele, ele
se inclinou e a beijou. Sua boca se moveu sob a dele, mais em
choque do que em resposta, mas foi uma resposta.
“Eu não disse que faria isso!” ela disse, empurrando para trás.
Ele a soltou, notando, com uma certa satisfação, que ela não
limpou a boca com desgosto.
"Você pode me dar sua resposta quando chegarmos a
Savannah", disse e, ficando de pé, ele lhe ofereceu a mão.

690
‘Casamento branco’, em francês. Um casamento sem intimidade física, sem relações sexuais
1612

135

SÓ PARA TORNAR AS COISAS INTERESSANTES

EM UMA PEQUENA CIDADE ao sul da Filadélfia, ele alugou


quartos em uma pousada decente e ficou satisfeito ao encontrar
um pequeno espelho na parede acima de sua pia. Ele se barbeara
com cuidado — Amaranthus primeiro ficara chocada e depois
se divertira com a descoberta de que sua barba crescida era de
um vermelho-escuro vívido — e depois vestira o uniforme de
capitão, um pouco amassado por estar enrolado na maleta, mas
limpo.
Ela piscou quando ele entrou na carruagem ao lado dela e
colocou o chapéu no seu joelho.
"Achei que você tivesse renunciado à sua comissão."
"Fiz isso. Renunciei. Isso é o que você pode chamar de ruse de
guerre”, disse ele, gesticulando para seu casaco escarlate. “Ideia
do tio Hal. Ele me deu uma comissão temporária de capitão, com
ordens de viagem que me permitiriam passar por qualquer
território controlado pelas tropas do rei – o que Richmond e
Charles Town certamente são. Eu não estava brincando,” ele
adicionou gentilmente. "Ele estava preocupado com você e ele
quer você de volta."
Ela desviou o olhar, pela janela, e mordeu o lábio.
“Eu deveria ter pensado que um conde receberia uma certa
quantidade de atenção, mesmo sem uniforme.”
1613

"Eu também não sou um conde", disse ele com firmeza, e a


cabeça dela girou bruscamente. Ela o encarou.
"Eu deveria ter dito, antes", disse ele. “Se você estava pensando
em ser uma condessa como parte dos privilégios de se casar
comigo, temo que isso esteja fora de questão".

"Eu não estava", disse ela, e sua boca se contraiu levemente. Ela
voltou-se para a janela, através da qual as ruas lamacentas de
Richmond davam caminho para campos de milho igualmente
encharcados de chuva.
"Como você conseguiu?" ela disse, sem se virar. “Pensei que o
pai Pardloe lhe disse que um nobre não podia deixar de ser um
nobre sem a permissão do rei. Você persuadiu o rei?”
“Ainda não falei com Sua Majestade”, disse William
educadamente. “Mas eu vou. Ainda assim, não importa o que ele
diga; tomei uma decisão e não sou mais o conde de Ellesmere,
se é que alguma vez fui."
Isso a fez se virar.
Ele sentiu uma súbita onda de... alguma coisa. Talvez medo, mas
principalmente excitação, como se estivesse prestes a pular de
um penhasco alto no mar, não sabendo se a água era profunda o
suficiente e não se importando.
"Eu sou um bastardo", disse ele. Não foi a primeira vez que ele
disse isso, e ele sentiu com certeza não seria a última, mas ele
respirou fundo antes de continuar. "Isto é, eu não sou legalmente
um bastardo, porque o oitavo conde e minha mãe eram casados
quando eu nasci. Mas o velho conde não era meu pai."
Ela o olhou lentamente de cima a baixo, parando em seu rosto,
seu olhar viajando para baixo e para cima novamente.
“Bem, quem quer que ele fosse, ele deve ter sido um, hum... um
1614

cavalheiro muito marcante. É aí que—” ela apalpou vagamente


o queixo, ainda olhando para ele.
"Sim", disse ele, não exatamente entre os dentes. “E não ‘era’ –
ele ainda é vivo."
"Você o conheceu?" Ela se virou inteiramente para encará-lo,
seus olhos vivos com interesse. Ele teve a súbita ilusão de que
podia sentir o toque dos olhos dela em seu rosto, fazendo
cócegas em sua pele.
"Eu o conheci. Ele - me conhece. E isso eu sei sobre ele.”
Ela não disse nada por um tempo, mas ele podia vê-la
transformando essa revelação em sua mente. Ela ainda usava
preto, mas tinha usado um fichu azul escuro com ele, em vez de
branco; fez seus olhos brilhantes e aqueceu sua pele. Claramente
ela sabia disso, e ele escondeu um sorriso. Ela viu, mesmo assim,
e se inclinou para trás, franzindo os lábios.
"Você tem a intenção de me dizer quem é esse cavalheiro?"
"Eu não tinha", ele admitiu. "Mas... se você vai se casar
comigo..."
“Não estou aceitando sua proposta. Agora não. Provavelmente
nunca”, ela acrescentou, dando-lhe um olhar. “Mas mesmo que
eu não me case, você deve saber que eu não contaria a ninguém.”
"Gentil da sua parte", disse ele. “O nome dele é James Fraser.
Um escocês das montanhas altas e um jacobita — ou era, devo
dizer. Ele tem algumas terras na Carolina do Norte; eu fui lá
visitar quando eu era muito jovem - não tinha a menor idéia do
que ele era... o que ele é.”
"Ele te reconheceu?" Amaranthus nunca foi de esconder o que
ela pensava, e a direção de seus pensamentos agora era fácil de
entender.
"Não, e eu não quero que ele o faça", disse William com firmeza.
1615

"Ele não me deve coisa nenhuma. No entanto, se você está se


perguntando como eu vou sustentá-la sem as propriedades de
Ellesmere”, acrescentou, “não se preocupe; eu tenho uma
pequena fazenda decente na Virginia que minha mãe - bem,
minha madrasta, na verdade; a primeira esposa de lorde John –
me deixou.” Havia Helwater, também, mas ele pensou que isso
poderia desaparecer junto com Ellesmere, então não mencionou
isso.
"A primeira esposa de Lord John?" Amaranthus olhou para ele.
“Eu não tinha pensado ele tinha sido casado de forma alguma.
Quantas esposas ele teve?”
"Bem, duas que eu saiba." Ele hesitou, mas na verdade, ele
gostou de choca-la. “Sua segunda esposa era – bem, ela ainda é
– a esposa de James Fraser, apenas para tornar as coisas
interessantes.”

Ela estreitou os olhos, olhando para ver se ele estava brincando


com ela, mas então balançou a cabeça, desalojando um grampo
que surgiu de repente do cabelo dela. Ele não resistiu a arrancá-
lo e enfiar o cacho liberado atrás da orelha. Um leve arrepio
percorreu o lado de seu pescoço e ela estremeceu, muito
levemente, apesar do calor úmido dentro da carruagem.

Duas semanas depois…

EMERGIR DA carruagem foi como sair de uma crisálida,


pensou ele, esticando as pernas dobradas e as costas doloridas,
antes de ajudar Amaranthus a sair de seu útero viajante. Ar, luz
solar e, acima de tudo, espaço! Ele bocejou incontrolavelmente
e o ar penetrou nele, inflando-o de volta às suas dimensões
1616

adequadas.
Ele pretendia levar Amaranthus de volta ao alojamento de tio
Hal, e hesitou por um momento, mas ela disse com firmeza que
preferia ir à casa de lorde John primeiro.
“Eu desejo que tio John ouça ,” ela disse. “E afeiçoada como sou
ao pai Pardloe — por que você está olhando assim? Eu gosto
dele. Eu apenas nunca tenho certeza do que ele vai fazer sobre
as coisas. E Ben é filho dele, afinal."
“Bom ponto,” William admitiu. “Lembre-se, eu duvido que meu
pai saiba o que Hal vai fazer também, mas pelo menos está
acostumado a lidar com os efeitos."
"Exatamente", ela disse, e não falou mais no caminho pela
cidade, apenas olhando para seu reflexo na janela da carruagem
e tocando seu cabelo de vez em quando.
A porta do número 12 da rua Oglethorpe se abriu antes que ele
pudesse bater, seu primeiro indício de que algo estava errado.
“Ah, você a encontrou!” Miss Crabb estava olhando por cima do
ombro para Amaranthus, seu rosto magro mudando entre o
alívio satisfeito e o desejo de permanecer irritada. “O bebê está
dormindo.”
"Sua Graça foi para Charles Town", acrescentou a governanta,
"Ele pensou que estaria de volta dentro de duas semanas, mas
enviou uma carta que chegou há dois dias que ele ficou detido
para atender às necessidades de milorde Cornwallis."
Amaranthus tinha desaparecido escada acima em busca de
Trevor, então esta explicação foi dada a William.

"Entendo", disse ele, entrando. “Meu pai foi com Sua Graça?”
Era evidente que Lord John não estava na casa, porque se
estivesse, ele estaria presente agora.
1617

A expressão permanente de descontentamento da senhorita


Crabb havia mudado, mostrando algo de inquietação.
“Não, meu senhor,” ela disse. “Ele saiu anteontem, e não voltou”
1618

136

DOIS DIAS ANTES

A NOTA CHEGOU ao número 12 da Rua Oglethorpe logo após o


almoço. Foi uma refeição casual, sanduíches de presunto e uma
garrafa de cerveja, consumidos na cozinha enquanto Lord John
observava Moira lidando com um enorme rodovalho691 que tinha
sido entregue naquela manhã. A mulher sabia como manejar um
cutelo, ele pensou, apesar de sua atitude recalcitrante em relação
aos tomates. Uma pena; ela era perfeitamente capaz de transformar
qualquer tomate em um ketchup instantaneamente com um golpe.
Ele observou com grande expectativa enquanto ela olhava para o
peixe - era tão grande que ficava pendurado nas laterais da pequena
mesa - decidindo sobre a direção de seu próximo ataque.
Antes que ela pudesse atacar, porém, uma sombra caiu pela porta
aberta da cozinha e houve uma breve batida em seu batente.
"Mein Herr692?" Era Gunter, um cavalariço dos estábulos mantidos
por Hal, obsequioso em seu avental de couro.
“Ja? Was ist das?”693 Grey perguntou. Ele viu Moira piscar,
momentaneamente suspender seu próximo golpe e girar a cabeça
dela para Gunter e vice-versa, apertando os olhos com
desconfiança.

Gunter encolheu os ombros, erguendo as sobrancelhas em


abnegação de responsabilidade e entregou um bilhete
cuidadosamente dobrado, selado com cera de vela e acenou com
uma mão sobre o ombro para indicar que alguém de farda deu a ele.
Grey procurou uma moeda no bolso, tirou uma moeda de um
centavo e um xelim, entregou o xelim e tomou a nota com uma
breve palavra de obrigado.
691
Espécie de peixe marinho de carne muito apreciada na Europa. É encontrado em águas do Oceano Atlantico
Norte, Mar Báltico, Mar Negro e Mediterrâneo.
692
‘Meu Senhor’ em Alemão
693
‘Sim? O que é?’, em alemão
1619

Ele pensou a princípio que era algo para Hal, mas a nota era
dirigida a Lorde John Grey, em um estilo elegante, formal, em total
desacordo com a entrega casualmente obscura da nota. A
mensagem dentro era da caligrafia, mas tão intrigante quanto a do
exterior.

Meu Senhor,

Disseram-me que uma vez você empregou um homem com o nome


de Thomas Byrd. Este homem pegou uma passagem para a
Inglaterra em meu navio, o Pallas, e pagou por sua passagem no
embarque. No entanto, ele criou um apego por uma jovem que
conheceu a bordo - e esta jovem pessoa não pagou por sua
passagem, sendo, em vez disso, uma clandestina em espera. O Sr.
Byrd diz que vai pagar pela passagem dela, para evitar que ela
seja levada pelo xerife e presa, mas não possui Dinheiro para esta
finalidade. Relutando em comprometer uma jovem Mulher tão
atraente à prisão local, perguntei se o Sr. Byrd poderia ter Amigos
que suportariam suas despesas. Ele objetou, não querendo
presumir ser seu conhecido, mas eu o ouvi mencionar o seu Nome,
enquanto a bordo, e por isso tomo a liberdade de informá-lo de
suas circunstâncias. Se você deseja ajudar o Sr. Byrd, ou pelo
menos falar com ele, ele ainda está a bordo. Pallas está ancorado
no Armazém mais a leste do Cais.

Seu mais humilde e obediente Servo, senhor,


John Doyle, capitão

"Que peculiar", disse Grey, virando o papel, como se atrás pudesse


ser mais informativo.
"Oh, não é estranho, senhor," Moira assegurou a ele, passando a
mão por sua testa suada. "É apenas uma mulher."
"O que?"
“Fêmea,” ela repetiu, gesticulando para o peixe decapitado. “São
mulheres as que tem ovos, o que é chamado de ovas.”
"Oh." Ele viu que ela não só tinha removido a cabeça, cauda e
nadadeiras, abriu o grande corpo plano e escavou as tripas, mas
1620

também reservou uma grande massa sólida de alguma substância


escura - presumivelmente ovas de peixe – esta escorrendo óleo em
um prato que havia sido colocado de lado em uma prateleira, não
havendo espaço para ele na superfície incrustada de escamas onde
o próprio peixe estava sendo transformado em jantar.
“Certamente,” ele disse. “Podemos comer algumas com ovos, você
acha?"
“Exatamente o que eu tinha em mente, meu senhor,” ela assegurou.
“Tiras de torradas frescas com ovos escalfados e ovas, com um
pouco de manteiga derretida para regar. O que Sua Graça chama de
‘entrada’694.”
“Esplêndido”, disse ele, com um sorriso. “Estarei em casa para o
jantar em uma boa hora!”
Se não fosse por esta intrusão total de feminilidade, ele poderia não
ter ido. Mas a menção de mulheres lembrou-o da marca da
suscetibilidade de Tom à mulheres jovens - algo que tinha (até onde
ele sabia) mantido em estrita suspensão durante seus dois
casamentos. Mas a última carta de Tom - que escrevia com pouca
frequência, mas bem - disse a ele que a segunda esposa tinha
morrido recentemente, e como seu filho mais velho estava agora
com dezoito anos, ele tinha em mente deixar o jovem Barney
encarregado do negócio por um tempo e talvez empreender uma
viagem para a Alemanha, ele não a tem visitado desde seu
conhecimento anterior com o Graf von Namtzen695, e ele implorou
que lorde John seria tão gentil de estender seus cumprimentos ao
conde, quando lorde John pudesse se comunicar com o mesmo.
Ele supôs que era pelo menos possível que Tom, embarcando em
uma viagem pessoal de descobertas, pudesse ter sido inspirado a
deixar a Europa completamente. E que, ao fazer isso, ainda na
agonia da dor, ele poderia muito bem ter sido atraído por uma
jovem em apuros obviamente terríveis. Tom era um homem
valente, e um muito gentil.
Por outro lado, esta carta tinha um claro cheiro de peixe, e não era

694
A palavra usada, “horsederve”, é uma transformação, em inglês, da palavra francesa “hors d’oeuvre”,
que significa entrada, aperitivo, em uma refeição.
695
“Graf” é conde, em alemão. Stephan von Namtzen é um amigo de lord John. Tom Byrd, antigo
ajudante de lord John, presente de diversos livros da série de livros desse personagem e rapidamente
citado no livro 8, sempre o acompanhava em suas estórias. Aqui, ele se refere aos acontecimentos de
Súcubo.
1621

rodovalho. Ele a dobrou pensativamente e a enfiou no bolso do


colete.
“Que diabos,” ele disse em voz alta, assustando Moira no meio de
um golpe. “Oh, eu imploro seu perdão, Sra. O'Meara. Eu quis dizer
apenas que é um dia agradável para caminhar."

-.-.-

ERA UM dia agradável, com uma brisa que agita o ar pesado de


verão, e ele gostou do passeio até a Bay Street, onde parou para
descer os degraus e caminhar descalço na praia por um tempo,
antes de retomar a peregrinação casual em direção ao distrito dos
armazéns.
A frota de produtos - pescadores e fazendeiros trazendo frutas e
vegetais rio acima - consistiam principalmente em pequenos barcos
e, portanto, docas perto da Rua Bay Street, tendiam a ser estreitas
e muito próximas. As docas de propriedade dos armazéns, porém,
eram robustas e amplas, nas quais carrinhos de mão podiam ser
conduzidos, barris rolados e engradados transportados com o
mínimo de perigo de cair na água. Os grandes navios que
navegavam em mares estrangeiros ancoravam quer nas docas do
armazém ou no rio, se houvesse muito tráfego de navios.
Havia uma grande quantidade de tal tráfego no momento, e Grey
parou para admirá-lo; uma bela vista, com altos mastros
balançando e o sol brilhando nas asas das aves marinhas circulando
os navios. Ele gostava de navios de todos os tipos, embora a visão
deles sempre o fazia pensar em um James Fraser, que não gostava
de navios a ponto de quase morrer de enjôo cada vez que ele subia
a bordo de um. Ele sorriu, à memória de um cruzamento de canal
agitado com o escocês há muitos anos, agora distante o suficiente
para ser divertido.696
Ele se manteve afastado do cais mais a leste, não sendo um idiota
completo. Ele comprou algumas maçãs de uma vendedora em uma
das docas menores, tendo a oportunidade de olhar para os navios
maiores.

696
Jamie Fraser sentia enjoos terríveis ao navegar e não foi diferente em Prisioneiro, fato que lorde John
está lembrando.
1622

“O que é aquele Indiaman,697 ancorado fora no canal?” ele


perguntou à vendedora de maçã, gesticulando brevemente para um
grande navio claramente capaz de cruzar o Atlântico. Não estava
hasteando nenhuma bandeira que ele reconhecesse, no entanto.
“Oh,” ela disse, depois de olhar indiferentemente por cima do
ombro. “ Castle, é chamado. Não, estou mentindo, é o Palace, é
isso.”
Bem, esse foi um fato observado: um navio chamado Pallas existia
e era um navio do Atlântico. Se Tom Byrd estava ou já esteve a
bordo dele era outra pergunta, mas-
"Senhor? Senhor!" A repetição o tirou de seus pensamentos para
ver um marinheiro raquítico com uma barba enferrujada diante
dele. "Há algo em seu chapéu, senhor", ele disse, apontando para
cima.
Com gaivotas instantaneamente na mente, Grey colocou a
mão sobre a cabeça e, em seguida, pegou o chapéu e trouxe-o para
baixo para inspeção. De repente, sua visão ficou escura e algo claro
fez cócegas em seu rosto. Então algo explodiu em sua cabeça e tudo
ficou escuro.
-.-.-

ELE VOLTOU A SI com uma dor aguda na parte de trás da cabeça


e uma forte vontade de vomitar. Ele tentou rolar para o lado para
fazer isso, mas descobriu que seus braços estavam amarrados ao
lado do corpo. Havia também um saco de estopa sobre a cabeça, e
por isso decidiu não vomitar, mesmo com uma tontura e sensação
de ser balançado para frente e para trás que fazia a vontade de fazê-
lo ainda mais urgente.
Merda. É um barco. Agora ele ouviu o barulho de remos e o
grunhido de quem quer que os estava empunhando e cheirou o
cheiro fecundo dos pântanos distantes. Não era um barco grande;
ele tinha sido dobrado e colocado em um pequeno espaço entre os
assentos. Seus joelhos estavam molhados.
Antes que ele pudesse se parabenizar pela acuidade de suas
suspeitas ou censurar-se por estupidez em não prestar atenção
697
“Indiaman” é o nome genérico dado aos navios construídos especificamente para transportar
mercadorias entre a Europa e as colônias pelo mundo. Eram dotados de armamentos suficientes para se
defenderem sozinhos de ataques.
1623

suficiente a eles, o som dos remos cessou e, no momento seguinte,


o barco parou com um baque que sacudiu sua cabeça latejante.
Mãos fortes que o balançaram mais o agarraram e o levantaram.
Um grito de quem o estava segurando, e uma corda caiu de cima,
atingindo seu ombro. O sequestrador - havia apenas um? –
embrulhou a corda em volta da sua cintura e deu um nó, depois
gritou: "Levanta!" e ele foi empurrado para o ar e puxado para cima
como um pedaço de carne de gado.
Mãos o puxaram para bordo e o levantaram novamente, mas ele
não tinha equilíbrio com os braços amarrados e caiu de joelhos. O
saco foi arrancado de sua cabeça, e a punhalada de luz do sol em
seus olhos era demais. Ele vomitou nos sapatos do homem que
estava diante dele, em seguida, caiu suavemente de lado e fechou
os olhos na esperança de encontrar equilíbrio.
Havia uma certa quantidade de xingamentos e conversas
acontecendo acima dele, mas no momento ele não se importava,
contanto que nada disso resultasse em ser obrigado a se levantar
novamente.
Então ele ouviu uma voz que ele reconheceu.
“Pelo amor de Deus, desamarre-o,” disse impacientemente. "O que
aconteceu com ele?"
Ele abriu uma pálpebra. Seus ouvidos não o traíram, mas seus olhos
tiveram suas dúvidas; tudo no alto parecia em movimento -
mastros, velas, nuvens, sol, rostos estavam girando de uma forma
estonteante que o fez querer vomitar novamente.
“Alguém me bateu. Na cabeça ", disse ele, fechando um olho na
esperança de parar a dança do mastro. Surpreendentemente, parou,
e o rosto suave e bonito de Ezekiel Richardson entrou em foco.
"Minhas desculpas", disse Richardson, e estendendo a mão, puxou-
o para seus pés e segurou-o pelos cotovelos enquanto alguém
desfazia as cordas. "Eu disse para trazê-lo, mas não pensei em
especificar os meios. Venha e sente-se; eu imagino que você
precise de uma bebida.”

-.-.-

ELE LAVOU A boca com conhaque e cuspiu em uma tigela, então


sentou-se de volta e bebeu um pouco, com cautela.
1624

Eles se sentaram no que era claramente a grande cabine do capitão,


janelas de popa se ergueram em um clarão de luz cintilante refletida
do rio abaixo. Isto deixou-o enjoado de olhar para ela por mais do
que alguns segundos, mas ele estava começando a se sentir melhor.
"Eu realmente peço desculpas", disse Richardson, e soou como se
ele quisesse dizer isso. "Eu não tenho nenhuma animosidade
pessoal contra você, e se eu pudesse conseguir sem envolver você,
eu teria feito.”
Grey desviou o olhar com relutância para Richardson, que usava o
uniforme de um major da infantaria britânica.
“Já ouvi falar de agentes duplos e também os conheci”, disse ele,
mais ou menos educadamente. “Mas dane-se se eu vi alguém
menos capaz de se decidir. Você se importaria de me dizer de que
lado você realmente está? "
Ele pensou que a expressão no rosto de Richardson era para ser um
sorriso, mas não estava dando certo.
"Isso", disse Richardson, "não é uma pergunta tão simples como
você poderia pensar."
"Bem, é uma pergunta tão boa quanto você provavelmente terá,
sob as circunstâncias." Grey fechou os olhos e ergueu o copo sob o
nariz; talvez inalar vapores de conhaque aliviasse a dor de cabeça
sem deixá-lo bêbado. Ele pensou que poderia ser perigoso ficar
bêbado na companhia de Richardson.
"Deixe-me perguntar uma, então." Richardson estava sentado na
cadeira do capitão; rangeu quando ele se inclinou para frente.
"Quando eu perguntei se você tinha algum interesse pessoal em
Claire Fraser, você respondeu que não, e então prontamente se
casou com ela. Porque você fez isso?"
Isso fez John abrir os olhos. Richardson tinha falado suavemente,
mas foi olhando para ele com o ar de um gato muito paciente
sentado do lado de fora de um buraco de um ratinho. John tocou a
nuca com cuidado e olhou para os dedos. Sim, ele estava
sangrando, mas não muito.
"Eu poderia te dizer que não é da sua conta", disse ele, limpando
seus dedos em suas calças. “Mas do jeito que está, não há motivo
para sigilo. Você ameaçou mandar prender a senhora por sedição.
Ela era a viúva de um bom amigo. Pareceu-me que mantê-la fora
de suas garras era talvez o último favor que eu poderia fazer para
1625

Jamie Fraser.”
Richardson acenou com a cabeça.
"Exatamente", disse ele. "Um gesto galante, meu senhor." Ele
parecia ligeiramente divertido, embora fosse difícil dizer. “Eu
entendo que o casamento foi necessariamente de curta duração,
devido ao retorno inesperado do Sr. Fraser de uma sepultura
aquosa. Mas a senhora te disse, em alguma troca de confidências
de casamento, alguma coisa a respeito dos antecedentes dela?”

“Não,” Grey disse, sem hesitação.


"Isso parece bastante notável", disse Richardson, "embora dado o
que esses antecedentes são, talvez a reticência da senhora fosse
justificada.”
Uma onda de desconforto desceu pela nuca de Grey - ou talvez era
apenas uma gota de sangue, ele pensou. Antecedentes, uma ova.
Ele se inclinou para trás um pouco, tomando cuidado com sua
cabeça sensível, e deu a Richardson o que ele esperava ser um olhar
inescrutável.
Richardson o considerou por um longo momento, então, com um
breve aceno de cabeça para ele próprio levantou-se, pegou uma
pasta de couro na prateleira e sentou-se novamente. Ele abriu a
pasta e removeu um documento de aparência oficial, completo com
selo e carimbo, embora Grey não pudesse dizer de onde ele estava,
de quem era o selo.
"Você conhece um homem chamado Neil Stapleton?"698
Richardson perguntou, arqueando uma sobrancelha.
“Em que sentido, familiar?” Grey perguntou, erguendo as suas.
"Talvez eu tenha ouvido o nome, mas se sim, já faz algum tempo.”
Já fazia algum tempo, mas o nome "Neil Stapleton" - mais
conhecido por Grey como Neil a boceta - o atingiu na boca do
estômago com a força de uma bala de dois quilos de chumbo. Ele
não via Stapleton há muitos anos, mas certamente não tinha
esquecido o homem.
"Talvez eu devesse ter perguntado se você o conhecia ... no sentido
bíblico?” Richardson perguntou, observando o rosto de Grey. Ele
empurrou o documento para Grey, cujos olhos se fixaram

698
Personagem em Assunto, Irmandade e Assombrado.
1626

imediatamente no título: Confissão de Neil Patrick Stapleton.


Não, ele pensou. Maldito Inferno, não ...
Ele pegou o documento, ligeiramente feliz por ver que suas mãos
não estavam tremendo e leu um relato moderadamente detalhado e
bastante preciso do que aconteceu entre ele e Neil Stapleton na
noite de 14 de abril de 1759 e novamente na tarde de 9 de maio do
mesmo ano.
Ele largou o documento e olhou para Richardson por cima.
"O que você fez com ele?" ele perguntou. Seu estômago apertado
no pensamento do que eles - pois certamente era um "eles" e não
apenas este homem sozinho- poderia ter feito para um homem
como Neil.
"Fazer com ele?" Richardson disse, parecendo sem graça.

“Chantagem, suborno, tortura ...? Ele não escreveu isso por sua
própria vontade. Que homem sensato o faria? " E seja o que for que
ele possa ser, nunca as faculdades mentais de Neil falharam.
Richardson encolheu os ombros.
"Ele está vivo?" Grey disse, entre os dentes.
"Você se importa?" Richardson parecia apenas fracamente
interessado. "Oh - mas claro que você se importa. Se ele estivesse
morto, você poderia alegar que este documento é uma falsificação.
Mas temo que o Sr. Stapleton esteja, de fato, ainda vivo, embora eu
naturalmente, não posso adivinhar quanto tempo ele vai ficar nessa
condição.”
Grey olhou para ele. O sujeito estava realmente ameaçando matar
Neil? Mas isso não fazia sentido.
“Ele está, no entanto, em Londres. Felizmente, porém, tenho mais
... testemunhas, digamos? - mais perto de você.” Ele se levantou e
foi para a porta da cabine, abriu-a e colocou a cabeça para fora.
"Entre", disse ele, e deu um passo para trás para permitir a Percy
Wainwright espaço para entrar.

-.-.-

PERCY PARECIA TERRÍVEL, pensou Grey. Ele estava


desgrenhado, sua gravata faltando, e seu cabelo encaracolado e
1627

grisalho emaranhado em manchas, grudando em outros fios. Ele


estava pálido como leite desnatado, com olheiras sob seu olhos. Os
próprios olhos estavam injetados e fixos em Gray ao mesmo tempo.
"John", disse ele, um pouco rouco. Ele limpou a garganta, com
força, então olhou e disse: “Sinto muito, John. Eu não sou corajoso.
Você sempre teve coragem, mas eu nunca tive.”
Isso não era mais do que a verdade, reconhecida entre eles e parte
do amor que uma vez compartilharam; John sempre esteve disposto
a ser corajoso por ambos. Ele sentiu uma pontada de pena
compassiva sob o sentido mais amplo de aborrecimento - e uma
sensação muito maior de medo.
"Então você o fez assinar uma declaração de confissão também",
disse ele à Richardson, fazendo o possível para manter a calma.
Richardson apertou os lábios e abriu a pasta novamente, desta vez
extraindo um documento mais longo. Bem, seria mais longo, não
é? Grey pensou. Há quanto tempo somos amantes?
"Atos não naturais e incesto", comentou Richardson, virando as
páginas do novo documento. “Meu caro, Lord John. Meu caro."
"Sente-se, Percy", disse Grey, sentindo-se extremamente cansado.
Ele deu um breve vislumbre do título do documento, porém, e seu
ânimo aumentou uma fração de uma polegada. Confissão de P.
Wainwright, dizia. Então Percy tinha mantido um pouco de respeito
próprio; ele não tinha dado a Richardson seu verdadeiro primeiro
nome. Ele tentou chamar a atenção de Percy, mas seu irmão por
parte do seu padrasto estava olhando para suas mãos, cruzadas no
colo como as de um estudante.
Você tentou me avisar, não foi?
"Você teve muitos problemas para nada, Sr. Richardson", ele disse
friamente. “Eu não me importo com o que você faz com esses
documentos; um cavalheiro não se submete à chantagem.”
"Na verdade, quase todos eles o fazem", disse Richardson, quase
se desculpando. "Do jeito que está, no entanto, não estou
chantageando você."
"Você não está?" Grey acenou com a mão para a pasta e seu
pequeno maço de papéis. "O que diabos essa farsa é, então?"
Richardson cruzou as mãos sobre a mesa, recostou-se e olhou para
Grey, evidentemente organizando seus pensamentos.
“Eu tenho uma lista,” ele disse, finalmente. “De pessoas cujas
1628

ações levaram— direta ou indiretamente, mas sem dúvida - para


um resultado específico. Em alguns casos, a própria pessoa – ele
ou ela - realiza a ação; em outros, ele ou ela simplesmente o facilita.
Seu irmão é aquele que facilitará um determinado curso de ação
que, por sua vez, decidirá esta guerra.”
“O quê?” ... as ações levaram ... vão facilitar ... vão decidir ... Ele
lançou um olhar de soslaio para Percy, que estava olhando para
cima, mas com uma atitude de perplexidade completa, e não era de
se admirar.
"O quê, de fato?" Richardson estava observando o jogo de
pensamentos sobre o rosto de Grey. “Posso estar enganado, mas
acredito que seu irmão pretende fazer um discurso para a Câmara
dos Lordes. E eu também acredito que os efeitos desse discurso
afetarão a vontade do exército britânico - e, portanto, do
Parlamento - para prosseguir nesta guerra.”
Percy estava ouvindo isso em total perplexidade, e Grey não o
culpou.
“Desejo que seu irmão não faça esse discurso”, concluiu
Richardson. “E eu acho que sua vida e honra são provavelmente as
únicas coisas que iriam impedi-lo de fazer isso.” Ele inclinou a
cabeça para o lado, observando Grey.
Grey piscou.
"Se você pensa assim, obviamente não conhece meu irmão."
Richardson sorriu. Não era uma expressão agradável.
"Você viu um homem ser enforcado por sodomia."
"Eu vi." Ele tinha, de fato, não apenas comparecido àquele
enforcamento, mas também puxado as pernas de Bates699 na
esperança desesperada de apressar seu fim. Ele percebeu que uma
mão estava esfregando preguiçosamente seu peito, no lugar onde
Bates o havia chutado.
“As colônias americanas não são mais tolerantes com a perversão
do que a Inglaterra - provavelmente menos. Embora você possa ter
a sorte de ser apedrejado até a morte por uma turba, em vez de
enforcamento formal”, acrescentou ele judiciosamente, e acenou
com a cabeça em direção aos papéis sobre a mesa. “Seu irmão vai
apreciar a situação, garanto-lhe. Você - e o Sr. Wainwright -

699
Fato ocorrido em Irmandade
1629

permanecerão a bordo como meus convidados, enquanto cópias


dessas declarações serão entregues a seu irmão.O que acontecerá
com você depois disso dependerá de Sua Graça.”
Ele fechou a pasta, pegou-a e fez uma reverência.
“Vou mandar trazer um pouco de comida. Bom dia, senhores.”
1630

137

ATOS INFAMES E ESCANDALOSOS

A PRIMEIRA RESPOSTA DE WILLIAM AO saber do


desaparecimento do pai foi sair e procurá-lo. Ele começou na sede
do General Prévost.
Ninguém tinha visto o tenente-coronel lorde John Grey, falaram
para ele. Eles gostariam muito de saber onde ele estava, no entanto,
como o coronel do Regimento sua graça, o duque de Pardloe, havia
deixado a responsabilidade pelos soldados que permaneceram em
Savannah nas mãos do coronel lorde John, e enquanto os oficiais
superiores destes soldados eram totalmente capazes de manter os
homens adequados e em ordem, eles certamente apreciariam
pedidos mais específicos, quando estes estivessem disponíveis.
Pelo menos eles sabiam onde o tio Hal estava - ou deveria estar.
Em Charles Town.
“O que, raios, é de muita ajuda”, disse ele a Amaranthus, após dois
dias de procura. "Mas se papai não aparecer aqui logo ..."
"Sim", disse ela, mordendo o lábio. “Suponho que você terá que
encontrar o pai Pardloe em Charles Town. Se ele ...” Sua voz
morreu.
"Se ele o quê?" ele exigiu, sem humor para obscurecimento. Ela
não respondeu imediatamente, mas foi até o aparador e tirou uma
garrafa preta bulbosa. Ele reconheceu; era o conhaque alemão que
papai e tio Hal chamavam de conhaque preto, embora o nome fosse
realmente “Sangue dos Mártires”. Ele acenou para longe
impacientemente.
"Eu não preciso de uma bebida."
"Cheire-o." Ela desarrolhou a garrafa e agora a segurava sob o nariz
dele. Ele deu uma fungada impaciente e depois parou. E cheirou
novamente, com mais cautela.
1631

"Eu não vou fingir ser uma julgadora de conhaque", disse


Amaranthus, observando-o. “Mas o pai Pardloe me deu um copo
disso uma vez. E não tinha o cheiro - ou o sabor - como este.”
"Você provou?" Ele levantou a testa para ela e ela encolheu os
ombros.
“Apenas a ponta de um dedo. Tem o mesmo gosto que cheira -
quente, picante. E isso não é como deveria ser o gosto.”
William mergulhou a ponta do dedo e experimentou. Ela estava
certa. Tinha gosto ... errado, de alguma forma. Ele limpou a gota
de conhaque em suas calças, olhando para ela.
"Você quer dizer que acha que alguém envenenou isso?" Sua
natural incredulidade foi diminuída pela preocupação dos últimos
dias, e ele descobriu que ele não estava de forma alguma relutante
em acreditar nisso.
Amaranthus fez uma careta, colocando cuidadosamente a rolha de
volta na garrafa.
"Algumas semanas atrás, o pai Pardloe me perguntou se eu sabia o
que é dedaleira. Eu disse a ele que sim e que ele a tinha visto - a
sra. Anderson tem muito disso beirando a calçada da frente de seu
jardim.” Ela respirou fundo, como se seu espartilho estivesse
muito apertado e encontrou os olhos de William. “Eu disse a ele
que era venenosa. E eu encontrei isso”- ela acenou com a cabeça
para a garrafa -“ trancada no cofre em seu escritório. Ele me deu
uma chave há algum tempo”, acrescentou ela incisivamente,
"porque todas as minhas joias estão nele."
William olhou para a garrafa, preta - e ameaçadora. Os dedos da
mão que tinham tocado a coisa de repente ficou fria e pareciam
estar formigando. Ele os esfregou impacientemente contra sua
manga.
Não que ele pensasse que o tio Hal não mataria alguém que ele
pensava precisar matar; ele simplesmente não acreditava que ele
faria isso com veneno. Ele afirmou isso para Amaranthus, que
olhou para a garrafa por um longo momento, então de volta para
ele, seus olhos preocupados.
“Você acha que ele poderia querer ... se matar com ele?” ela
perguntou silenciosamente.
William engoliu em seco. Diante da perspectiva iminente de contar
à esposa o que havia acontecido com seu filho mais velho, e a
1632

eventual perspectiva de ter sua família e o regimento desonrados e


destruídos ... ele não achava que Harold, duque de Pardloe, tentaria
o suicídio como uma fuga, mas ...
“Bem, ele não levou a garrafa com ele para Charles Town,” ele
disse com firmeza. " Não são mais do que três dias de cavalgada.
Eu vou encontrá-lo. Coloque essa coisa em algum lugar seguro.”

Charles Town

WILLIAM NÃO esperava se encontrar com sir Henry Clinton


novamente. Mas lá estava ele, carrancudo para William de uma
forma que tornou evidente que sir Henry lembrava muito bem
quem ele era. William estava esperando em uma ante sala da
graciosa mansão Charles Town atualmente servindo como quartel-
general do comando da guarnição de Charles Town, tendo
solicitado uma breve audiência com Stephen Moore, um dos
ajudantes de campo de Clinton que tinha sido amigável - e um que
ele sabia que estava familiarizado com o duque de Pardloe. Ele
enviou seu nome, no entanto, e cinco minutos depois, o próprio Sir
Henry apareceu como um boneco de molas, sua aparência quase
tão surpreendente.
"Ainda é o capitão Ransom, não é?" Sir Henry perguntou,
elaboradamente cortês. Não havia nenhuma barreira para um
homem renunciar a uma comissão e comprar outra, mas as
circunstâncias da renúncia de William de sua comissão sob Sir
Henry tinham sido dramáticas, e os comandantes em geral não
gostavam de drama com seus oficiais subalternos.
"É sim, senhor." William fez uma reverência, muito corretamente.
"Espero vê-lo bem, senhor?"
Sir Henry fez um ruído hrmph , mas acenou com a cabeça em
seguida. Ele estava, afinal, rodeado pelas evidências de uma vitória
significativa: as ruas de Charles Town estavam esburacadas e
estragadas por tiros de canhão, e soldados - muitos deles negros -
estavam por toda parte, restaurando laboriosamente o que haviam
passado semanas explodindo.
“Vim com uma mensagem para o duque de Pardloe”, disse
William. Sir Henry pareceu ligeiramente surpreso.
“Pardloe? Mas ele se foi.”
1633

"Se foi", William repetiu com cuidado. “O duque voltou para


Savannah?"
“Ele não disse que pretendia”, respondeu Clinton, começando a
ficar impaciente. “Ele foi embora há mais de uma semana, então eu
imagino que ele tenha voltado para Savannah agora.”
William sentiu um frio na nuca, como se a sala em torno deles
tivesse mudado sutilmente de um momento para o outro e uma
janela invisível se abria.
“Sim,” ele conseguiu dizer, e se curvou. "Obrigado, senhor."
Ele saiu para a rua e virou à direita, sem intenção em sua cabeça de
saber a direção. Ele ficou ao mesmo tempo alarmado e indignado.
O que diabo aconteceu com o tio Hal? Como ele se atreve a cuidar
de seus próprios negócios quando seu próprio irmão tinha
desaparecido?
Ele parou por um momento, quando o pensamento de que seu pai
e o tio podiam ter desaparecido juntos. Mas por que? O
pensamento morreu no momento seguinte, porém, quando avistou
uma forma familiar de casaco vermelho cem metros rua abaixo,
comprando um pacote de tabaco de uma mulher negra com um
turbante manchado. Denys Randall.
"O homem que eu queria muito ver", disse ele um momento depois,
seguindo o passo ao lado de Denys enquanto ele se afastava da
vendedora de tabaco.
Denys olhou para cima, assustado, então olhou para frente e para
trás antes de se virar para William.
"O que diabos você está fazendo aqui?" ele perguntou.
"Eu poderia perguntar o mesmo para você."
“Não seja ridículo; Eu deveria estar aqui, e você não. "
William não se preocupou em perguntar o que Randall estava
fazendo. Ele não se importava.
“Estou procurando meu tio Pardloe. Sir Henry acabou de me dizer
que ele deixou Charles Town há mais de uma semana.”
"Ele deixou," Denys disse prontamente. “Eu cruzei com ele quando
cheguei de Charlotte no ... oh, quando foi ... dia 13? Talvez o dia
14…"
“Que se dane o dia. Você quer dizer que ele estava cavalgando para
o norte, não para o sul? "
"Como você é esperto, William", disse Denys em aprovação
1634

simulada. "Isso é exatamente o que eu quis dizer.”


"Stercus"700, disse William. Seu estômago deu um nó. "Ele estava
sozinho?"
"Sim", disse Denys, olhando para ele de lado. “Eu achei isso
estranho. Eu não o conhecia para perguntar, no entanto, e não tinha
nenhuma razão para fazer isso.”
William fez mais algumas perguntas, sem resultados, e então
deixou Denys Randall, com boa sorte, para sempre.
Norte. E o que havia ao norte que poderia levar o coronel de um
grande regimento a partir repentinamente e sem avisar ninguém,
cavalgando sozinho?
Ben. Ele está indo ver Ben. A visão de uma garrafa preta surgiu na
parte de trás de sua mente. Tinha Hal pensado em se envenenar,
seu filho, ou ambos?
"Shakespeariano sangrento demais", disse William em voz alta,
virando seu cavalo para o sul. "Hamlet701 do caralho, ou seria Titus
Andronicus?" Ele se perguntou se seu tio alguma vez leu
Shakespeare, por falar nisso, mas não importava; onde quer que ele
tenha ido, ele não pegou a garrafa. No momento, tudo o que ele
podia fazer era voltar para Savannah e esperar encontrar seu pai lá.
Três dias depois, ele entrou na rua Oglethorpe número 12 e
encontrou Amaranthus na sala, cutucando o fogo. Ela se virou ao
som de seu passo e largou o atiçador com um estrondo. Um instante
depois, ela estava abraçando-o, mas não com o fervor de um
amante. Mais a ação de um nadador encalhado alcançando um
tronco flutuante, ele pensou. Ainda assim, ele beijou o topo de sua
cabeça e pegou suas mãos.
"Tio Hal se foi", disse ele. "Norte." Os olhos dela já estavam
escuros com medo. Com isso, o pouco sangue remanescente em
seu rosto foi drenado.
"Ele vai ver o Ben?"
“Não consigo imaginar o que mais ele poderia estar fazendo. Você
teve alguma palavra de Papa? Ele voltou? "
"Não", disse ela, e engoliu em seco. Ela acenou com a cabeça para
uma carta aberta que estava em uma pequena mesa sob a janela.
“Isso veio esta manhã, para o pai Pardloe, mas eu abri. É de um
700
Esterco, merda, em latim
701
Hamlet e Titus Andonicus são peças de William Shakespeare.
1635

homem chamado Richardson.”


William pegou a carta e leu-a rapidamente. Então leu novamente,
incapaz de fazer sentido para ele. E uma terceira vez, lentamente.
“Quem é esse homem?” Amaranthus recuou um pouco, olhando a
carta como se pudesse repentinamente ganhar vida e morder.
William não a culpou.
"Um homem mau", disse William, seus lábios parecendo rígidos.
“Deus sabe quem ele realmente é, mas ele parece ser - eu não sei,
exatamente. 'Major General Inspetor do Exército '? Eu nunca ouvi
falar de tal cargo, mas—”
"Mas ele diz que prendeu Lord John!" Amaranthus chorou. "Como
poderia ele? Porque? O que ele quer dizer com 'atos infames e
escandalosos'? Lorde John ?”
Os dedos de William estavam dormentes e ele mexeu na folha de
papel, tentando redobrá-la. O selo oficial sob a assinatura de
Richardson parecia áspero sob seu polegar, e ele deixou cair a carta,
que pegou uma lufada de ar e girou através do tapete. Amaranthus
pisou nela, fixando-a no chão, e ficou olhando para William.
“Ele quer que o pai Pardloe vá falar com ele. Que diabo nós
faremos?”
1636

138

MAL HERDADO

Uma semana depois

ESTAVA SILENCIOSO, EXCETO pelos ruídos habituais a bordo;


gritos de ordens do convés do Pallas ecoavam fracamente pela
água de outros navios ancorados.
Grey havia se recuperado completamente dos efeitos de seu
sequestro e estava meio preparado quando dois marinheiros vieram
buscá-lo em sua pequena cabine. Eles amarraram suas mãos
frouxamente na frente dele - um pouco de meticulosidade que ele
apreciava como cautela profissional, embora deplorasse seu efeitos
imediatos - e o impulsionaram à força por uma escada e através do
convés para a cabine do capitão, onde Ezekiel Richardson o
esperava.
"Sente-se por favor." Richardson gesticulou para que ele se
sentasse e ficou olhando para ele.
“Ainda não recebi nenhuma palavra de Pardloe”, disse ele.
"Pode demorar algum tempo antes que você possa alcançar meu
irmão", comentou Grey, tão casualmente quanto possível nas
circunstâncias. E onde diabos está você, Hal?
“Oh, eu posso esperar,” Richardson assegurou. “Há anos que
espero; algumas semanas não significam nada. Embora seja, é
claro, desejável para você me dizer onde você acredita que ele
esteja. "
"Esperando anos?" Grey disse, surpreso. "Para que?"
Richardson não respondeu de imediato, mas olhou para ele
pensativamente, então balançou a cabeça.
"Sra. Fraser”, ele disse abruptamente. "Você realmente se casou
com ela simplesmente para favorecer um amigo morto? Dadas suas
inclinações naturais, quero dizer. Foi um desejo por ter filhos? Ou
1637

alguém estava chegando muito perto da verdade sobre você, e você


se casou com uma mulher para disfarçar essa verdade?"
“Eu não tenho necessidade de justificar minhas ações para você,
senhor,” Grey disse educadamente.
Richardson pareceu achar isso divertido.
“Não,” ele concordou. “Você não tem. Mas você, eu suponho, se
pergunta por que eu planejo matar você.”
"Não realmente." Isso era de fato verdade, e o desinteresse na voz
de Grey não precisava de dissimulação. Se Richardson realmente
quisesse matá-lo, ele já estaria morto. O fato era que ele não quis
dizer que tinha alguma utilidade para Richardson. Isso, ele se
questionou, mas optou por não dizer.
Richardson respirou lentamente, olhando para ele, então balançou
a cabeça e escolheu uma nova tática.
“Uma das minhas bisavós era uma escrava,” ele disse
abruptamente.
Grey encolheu os ombros. “Dois de meus bisavôs eram escoceses”,
disse ele. "Um homem não pode ser responsável por sua
ancestralidade.”
"Então você não acha que os pecados dos pais deveriam ser punição
para as crianças?"
Grey suspirou, pressionando os ombros contra a cadeira para
aliviar a rigidez de suas costas.
“Se fossem, eu pensaria que a humanidade teria deixado de
existir neste momento, pressionada de volta para a terra pelo peso
acumulado dos males herdados."
Richardson encolheu os ombros ligeiramente, fosse em
reconhecimento ou recusa da questão, Grey não sabia dizer.
Richardson se virou para a parede de painéis de vidro e olhou para
fora, provavelmente para se dar tempo para pensar em uma nova
estratégia de conversação.
O sol estava se pondo e a luz da grande janela de popa brilhava
com um milhão de pequenas ondas, cintilando através do vidro, o
teto – você chama isso de teto, em um navio? - e do outro lado da
mesa em que Grey estava sentado. Isso cintilou sobre suas mãos,
que ainda estavam bastante desgastadas para serem utilizadas.
Havia um relógio de aparência bastante sólida e a garrafa de
conhaque, mas ambos estavam a alguma distância, do outro lado
1638

da cabine ... Maldito, aquela era a garrafa de conhaque dele! Ele


reconheceu a etiqueta manuscrita, mesmo a certa distância. O
bastardo estava roubando sua casa!
"Desculpe?” ele disse, subitamente ciente de que Richardson havia
perguntado a ele alguma coisa.
"Eu disse", disse Richardson, com uma pretensão de paciência,
"como você se sente sobre a escravidão?” Não obtendo uma
resposta imediata, disse ele, muito menos pacientemente, "Você foi
governador da Jamaica, pelo amor de Deus - com certeza você
conhece bem a instituição?”
"Suponho que seja uma pergunta retórica", disse Grey,
cuidadosamente tocando a cicatriz, ainda inchada no couro
cabeludo. “Mas se você insiste ... sim. Eu estou razoavelmente
certo de que sei muito mais sobre isso do que você. Quanto aos
meus sentimentos em relação à escravidão, eu deploro isso tanto na
filosofia quanto por motivo de compaixão. Por quê? Você esperava
que eu me declarasse a favor disso? "
"Você poderia se declarar." Richardson olhou para ele atentamente
por um momento, e então pareceu chegar a alguma decisão, pois
ele se sentou à mesa de Grey, encontrando seus olhos no mesmo
nível. “Mas estou feliz que você não tenha. Agora…" Ele se
inclinou para frente, atento. "Sua esposa. Ou sua ex-mulher, se
preferir ...”
"Se você quer dizer a Sra. Fraser", disse Grey educadamente, "ela
na verdade nunca foi minha esposa, o casamento entre nós tendo
sido arranjado sob a falsa impressão de que seu marido estava
morto. Ele não está."
"Estou bem ciente disso." Havia uma nota de severidade nessa
observação, e isso deu a Grey uma sensação desagradável na boca
do estômago.
O relógio na mesa distante emitiu um claro ting!, depois fez mais
quatro vezes, apenas para fazer seu ponto. Richardson olhou por
cima do ombro para ele e fez um barulho desagradável.
“Eu terei que ir logo. O que eu quero saber, senhor, é se você sabe
o que a Sra. Fraser é.”
Grey olhou para ele.
“Eu percebo que ser atingido na cabeça prejudicou um pouco o meu
processo de pensamento ... senhor ... mas tenho a forte impressão
1639

de que não sou eu quem está sofrendo de incoerência. O que diabos


você quer dizer com isso? "
O homem corou, uma espécie de rubor estranho e irregular que
deixou seu rosto manchado como um tomate gelado. Ainda assim,
a expressão de desprazer em seu rosto aliviou, o que alarmou Grey.
“Acho que você tem uma boa ideia do que quero dizer, coronel. Ela
te disse, não disse? Ela é a mulher mais destemperada que já
conheci, neste século ou em qualquer outro."
Grey sobressaltou-se involuntariamente com isso, e se amaldiçoou
ao ver o olhar de satisfação nos olhos de Richardson.
O que diabos eu acabei de dizer a ele?
"Ah sim. Bem, então ...”Richardson se inclinou para frente. “Eu
também sou - o que a Sra. Fraser, e sua filha e netos, são.”
"O que?" Grey estava honestamente pasmo com isso. “Que diabos
você acha que eles são, posso perguntar? "
“Pessoas capazes de mudar de um período de tempo para outro.”
Grey fechou os olhos e esperou um momento, suspirou
profundamente e abriu-os. “Eu esperava estar sonhando, mas você
ainda está aí, pelo que vejo”, disse ele. "É aquele meu conhaque?
Se sim, dê-me um pouco. Eu não vou ouvir esse tipo de coisa
sóbrio."
Richardson encolheu os ombros e serviu-lhe um copo, que Grey
bebeu como água. Ele bebeu o segundo, e Richardson, que o estava
observando pacientemente, acenou com a cabeça.
"Tudo bem. Ouça, então. Há um movimento abolicionista na
Inglaterra - Você sabe sobre isto?"
"Vagamente."
“Bem, vai se enraizar, e no ano de 1807, o Rei vai assinar o
primeiro Ato de Abolição, proibindo o comércio de escravos no
Império Britânico.”
"Oh? Bem ... bom.” Ele estava secretamente procurando por uma
via de fuga desde que acordou no convés e percebeu que estava em
um navio. Agora ele percebeu que estava olhando para ele. As
janelas na linha inferior daquela grande parede de vidro tinham
dobradiças; duas delas estavam de fato abertas, permitindo uma
brisa fresca vinda do mar distante.
“E em 1833, a Câmara dos Comuns aprovará a Lei da Abolição da
Escravatura, que irá proibir a escravidão e libertar os escravos na
1640

maior parte das colônias da Grã-Bretanha - cerca de oitocentos mil


deles.”
Grey era um homem esguio e não era alto. Ele pensou que poderia
ser capaz de se espremer entre uma das vidraças. E se ele pudesse
cair no rio, ele tinha quase certeza de que poderia nadar até a praia,
embora tivesse visto a correnteza do rio ...
"Oitocentos mil", disse ele educadamente, quando Richardson fez
uma pausa, evidentemente esperando uma resposta. "Muito
impressionante." Ele estava gerenciando o copo de conhaque com
os pulsos amarrados, mas nadar era outro assunto ... Ele olhou
brevemente para a corda. Mastigar um dos nós soltos, talvez ...
Devia esperar até que estivesse na água, no caso de alguém entrar
e pegá-lo roendo, entretanto?
"Sim", concordou Richardson. “Mas não tão impressionante
quanto o número de pessoas na América que não serão libertadas e
que continuarão a ser escravizadas, e por conseguinte sofrer ...”
Grey parou de ouvir, reconhecendo que o tom da fala de
Richardson tinha mudado de conversa para palestra. Ele colocou as
mãos no colo, puxando discretamente para testar o estiramento da
corda….
"Desculpe?" ele disse, percebendo que Richardson havia parado de
falar por um momento e estava olhando para ele. "Minhas
desculpas; eu devo ter cochilado novamente."
Richardson se inclinou, pegou a taça de conhaque da mesa e jogou
os restos em seu rosto. Pego de surpresa, Grey inalou um pouco do
líquido e tossiu e cuspiu, os olhos ardendo.
“Minhas desculpas,” Richardson disse, educadamente. “Sem
dúvida, você vai precisar de um pouco de água para isso.” Havia
uma jarra de água sobre a mesa; ele pegou-a e derramou na cabeça
de Grey.
Isso foi realmente útil para lavar o conhaque pungente
principalmente dos seus olhos, embora não ajudassem em nada na
tosse e respiração ofegante, que durou alguns minutos. Quando isso
finalmente diminuiu, ele se recostou e enxugou seus olhos nas
costas de suas mãos amarradas, em seguida, balançou a cabeça,
jogando gotas pela mesa. Algumas delas atingiram Richardson, que
inalou fortemente pelo nariz, mas depois aparentemente recuperou
o controle de si mesmo.
1641

"Como eu estava dizendo", disse ele, lançando um olhar furioso a


Grey, "é a Revolução na América que permitirá que a escravidão
floresça sem controle aqui - e depois conduzir, em parte, pelo
menos, para outra guerra sangrenta e mais cruel ...”
"Sim. Bem." Grey ergueu ambas as mãos, forçosamente, com as
palmas para fora. "E você propõe fazer algo a respeito movendo-se
no tempo. Eu entendo perfeitamente."
"Eu duvido disso", disse Richardson secamente. “Mas você vai,
com o tempo. É muito simples: se os patriotas não tiverem sucesso,
as colônias americanas permanecem sob Lei britânica. Eles não vão
se envolver no comércio de escravos e seus escravos existentes
serão todos libertados nos próximos cinquenta anos. Eles não vão
se tornar escravos da nação, e a Guerra Civil - isso vai acontecer a
cerca de cem anos a partir de agora, se não conseguirmos acabar
com a guerra atual - se não acontecer assim, salvar centenas de
milhares de vidas, e as consequências ao longo do tempo da
escravidão não ... Você está tentando fingir dormir de novo, Lord
John? Posso ser obrigado a te acordar com um tapa, já que a jarra
está vazia.”
"Não." Grey balançou a cabeça e se endireitou um pouco. "Só
pensando. Eu deduzo que você está me dizendo que pretende fazer
com que a rebelião atual fracasse para que os americanos
continuem súditos britânicos, certo? Sim. Tudo bem. Como você
pretende fazer isso?” Obviamente, o homem não ia calar a boca até
que ele tivesse toda a sua teoria exposta - essas pessoas nunca
param. Ele gemeu interiormente - sua cabeça estava doendo
novamente, por causa da tosse - mas ele fez o seu melhor para
parecer atento.
Richardson olhou para ele minuciosamente, mas depois acenou
com a cabeça.
"Como eu disse, se você se lembra, meus associados e eu
identificamos várias pessoas chave cujas ações afetarão a trajetória
desta guerra. Seu irmão é um deles. Se nós não o impedirmos, ele
irá para a Inglaterra e fará um discurso para a Câmara dos Lordes,
descrevendo sua própria experiência e observação da guerra
americana, e insistindo que embora a guerra possa eventualmente
ser ganha, a despesa de fazê-la será desproporcional a qualquer
benefício de manter as colônias.”
1642

Jesus. Se Hal fizer isso, ele estará fazendo isso por Ben. Se a guerra
parar e os americanos possam possivelmente vencer, Ben não será
capturado e enforcado como um traidor. Ele não será um traidor,
enquanto permanecer na América. Oh Deus, Hal ... Seus olhos
estavam lacrimejando de novo, mas não com o vapor do conhaque.
“Ele não é a única pessoa em uma posição pública a ter essa
opinião,” Richardson acrescentou, “mas ele será uma das pessoas
que, em virtude do acaso ou do destino, está no lugar certo na hora
certa. Ele dará a Lord North a desculpa que ele tem procurado para
abandonar a guerra e dedicar os recursos da Inglaterra para
empreendimentos mais importantes. Não será apenas Pardloe, é
claro - nós temos uma lista—”
"Sim, você disse isso." Grey estava começando a ter uma sensação
desagradável na boca do estômago. “Você disse 'nós'. Como diabos
muitos de vocês são de lá?"
"Você não precisa saber disso," Richardson retrucou, e Grey sentiu
um pequeno pulso de satisfação. A resposta provavelmente era
“muito poucos” ou “ ninguém além de mim”, pensou ele.
Richardson apontou um dedo para ele.
"Tudo o que você precisa saber, meu senhor, é que seu irmão não
deve discursar. Com sorte, a preocupação dele com sua saúde será
suficiente para detê-lo. Caso contrário, seremos obrigados a revelar
seu caráter e atividades de maneira mais pública e tornar o
escândalo o mais sensacional possível, e fazer com que seja
executado pelo crime de sodomia. Isso deve ser o suficiente para
desacreditar seu irmão e qualquer coisa que ele diga.” Ele fez uma
pausa dramática, mas Grey não disse nada. Richardson olhou
para ele e deu uma risada curta.
"Mas você terá o conforto de saber que sua morte significará algo.
Você terá salvo milhões de vidas - e, acidentalmente, impedirá o
império britânico de cometer o maior erro econômico na história
ao abandonar a América. Isso é mais do que a maioria dos soldados
consegue, não é isto?"
1643

139

SONHOS DE GLÓRIA

Fraser’s Ridge
4 de setembro de 1780

Eu estava tendo o tipo de sonho delicioso em que você percebe


que você está dormindo e está gostando muito. Eu estava quente,
molemente relaxada e minha mente era um vazio delicioso. Eu
estava só começando a afundar através desta camada nublada de
êxtase para o mais profundo dos reinos de inconsciência quando
um movimento violento do colchão sobre mim empurrou-me
para um estado de alerta instantâneo.

Por reflexo, rolei para o lado e alcancei Jamie. Eu não tinha


alcançado o estágio de pensamento consciente ainda, mas
minhas sinapses já haviam traçado suas próprias conclusões. Ele
ainda estava na cama, então não estávamos sob ataque e a casa
não estava pegando fogo. Não ouvi nada além de sua respiração
rápida; as crianças estavam bem e ninguém tinha invadido. Logo
... era seu próprio sonho que o tinha acordado.

Este pensamento penetrou na parte consciente da minha mente,


assim que minha mão tocou o ombro dele. Ele recuou, mas não
com o recuo violento que ele geralmente mostrava se eu o
1644

tocasse muito repentinamente após um pesadelo. Ele estava


acordado, então; ele sabia que era eu. Graças a Deus por isso,
pensei, e inspirei uma respiração profunda por minha conta.

"Jamie?" Eu disse suavemente. Meus olhos já estavam


adaptados ao escuro; eu pude vê-lo, meio enrolado ao meu lado,
tenso, de frente para mim

“Não me toque, Sassenach,” ele disse, muito suavemente.


"Ainda não. Deixe passar." Ele tinha ido para a cama com uma
camisa de dormir; o quarto ainda estava frio. Mas ele estava nu
agora. Quando ele a tirou? E porque?

Ele não se moveu, mas seu corpo parecia flutuar, o brilho fraco
do fogo suavizado movendo-se em sua pele enquanto ele
relaxava, cabelo por cabelo, sua respiração desacelerando.

Eu relaxei um pouco também em resposta, embora ainda o


observasse com cautela. Isto não era um sonho de Wentworth -
ele não estava suando; eu poderia quase literalmente cheirar
medo e sangue nele quando acordava desses. Eles vinham
raramente - mas eram terríveis quando vinham.

Campo de batalha? Possivelmente; eu esperava que sim. Alguns


desses eram piores do que outros, mas ele geralmente voltava de
um sonho de batalha muito rapidamente e deixava-me embalá-
lo em meus braços e levá-lo de volta ao sono. Eu ansiava fazê-
lo agora. Uma brasa estalou na lareira atrás de mim, e o
minúsculo jato de faíscas iluminou seu rosto por um instante, me
surpreendendo. Ele parecia ... em paz, seu olhos escuros bem
abertos e fixos em algo que ele ainda podia ver.
1645

"O que é?" Sussurrei, depois de alguns momentos. "O que você
vê, Jamie?”

Ele balançou a cabeça lentamente, os olhos ainda fixos. Muito


lentamente, porém, o foco voltou para eles, e ele me viu. Ele
suspirou uma vez, profundamente, e seus ombros relaxaram. Ele
estendeu a mão para mim e eu quase me lancei em seus braços,
segurando-o com força.

“Está tudo bem, Sassenach,” ele disse em meu cabelo. "Eu não
estou ... Está tudo bem."

Sua voz soou estranha, quase confusa. Mas ele quis dizer isso;
ele estava bem. Ele esfregou minhas costas suavemente entre as
omoplatas e eu cautelosamente relaxei um pouco. Ele estava
muito quente, apesar do frio, e a parte clínica da minha mente
verificou-o rapidamente - sem tremer, sem vacilar ... sua
respiração estava perfeitamente normal, assim como sua
frequência cardíaca, facilmente perceptível contra o meu seio.

“Você ... consegue me falar sobre isso?” Eu disse, recuando


depois de um tempo. Às vezes ele conseguia, e parecia ajudar.
Mais frequentemente, ele não podia, e só tremia até que o sonho
se libertasse de sua mente e o deixasse.

"Eu não sei", disse ele, a nota de surpresa ainda em sua voz.
"Quero dizer. era Culloden, mas ... era diferente.”

"Como?" Eu perguntei cautelosamente. Eu sabia pelo que ele


me disse que ele lembrava apenas de fragmentos da batalha,
1646

imagens únicas e vívidas. Eu nunca o encorajei a tentar lembrar


mais, mas eu tinha percebido que tais sonhos vinham com mais
frequência, quanto mais nos aproximávamos de qualquer
conflito iminente.

"Você viu Murtagh?"

"Sim, eu vi." O tom de surpresa em sua voz se aprofundou, e sua


mão parou nas minhas costas. “Ele estava comigo, ao meu lado.
Mas eu podia ver seu rosto; brilhava como o sol.” Essa descrição
de seu falecido padrinho era mais do que peculiar; Murtagh tinha
sido um dos espécimes mais severos da masculinidade escocesa
de todos os tempos produzido nas Terras Altas.

"Ele estava feliz?" Eu me arrisquei em dúvida. Eu não poderia


imaginar ninguém que pôs os pés na charneca de Culloden
naquele dia abrir um sorriso —Provavelmente nem mesmo o
duque de Cumberland.

"Oh, mais do que feliz, Sassenach - cheio de alegria." Ele me


soltou então, e olhou para o meu rosto. "Todos nós estávamos."

"Todos vocês - quem mais estava lá?" Minha preocupação com


ele tinha diminuído muito agora, substituída pela curiosidade.

"Eu não sei, muito ... havia Alex Kincaid e Ronnie ..."

"Ronnie MacNab?" Eu desabafei, atônita.

“Sim,” ele disse, mal notando minha interrupção. Suas


1647

sobrancelhas estavam arqueadas para dentro em concentração, e


ainda havia algo com um brilho estranho sobre seu próprio rosto.
“Meu pai estava lá também, e meu avô ...” Ele riu alto com isso,
surpreso novamente. “Não consigo imaginar por que ele estaria
lá - mas lá estava ele, claro como o dia, de pé perto do campo,
olhando carrancudo para o que estava acontecendo, mas
iluminado como um nabo no Samhain702, no entanto. "

Eu não queria dizer a ele que todos que ele mencionou até agora
estavam mortos. Muitos deles nem estavam em campo naquele
dia - Alex Kincaid tinha morrido em Prestonpans, e Ronnie
MacNab703 ... Eu olhei involuntariamente para o fogo, brilhando
na nova ardósia preta da lareira. Mas Jamie estava ainda olhando
para as profundezas de seu sonho.

“Sabe, quando você luta, geralmente é apenas trabalho duro.


Você fica cansado. Sua espada é tão pesada que você pensa que
não pode erguê-la mais uma vez, mas você o faz, claro." Ele se
espreguiçou, flexionando o braço esquerdo e girando-o,
observando o jogo de luz sobre os cabelos descoloridos pelo sol
e os músculos de cortes profundos. “Está quente - ou está
congelando - e de qualquer maneira, você só quer ir e estar em
outro lugar. Você está assustado ou você está muito ocupado
para ficar assustado até que acabe, e então você estremece pelo
que você estava fazendo ... "Ele balançou a cabeça com força,
desalojando os pensamentos.

"Não dessa vez. De vez em quando, algo se apodera de você - a


coisa vermelha , é como sempre a chamei.” Ele olhou para mim,

702
No Samhain, é costume escavar nabos e colocar velas dentro deles. Semelhante ao que ocorre com as
abóboras em Halloween.
703
Ronnie MacNab, colono violento de Lallybroch, agredia os filhos e brigou com Jamie. Mais tarde,
soube-se que morreu num incêndio, provavelmente por ter denunciado Jamie à Guarda (livro 1)
1648

quase timidamente. "Eu tive isso - bem, eu estava muito além


disso - quando ataquei no campo em Culloden. Desta vez,
entretanto— ”Ele passou a mão lentamente pelo cabelo. “No
sonho ... era diferente. Eu não estava com medo, nem cansado -
você sempre transpira em seus sonhos, Sassenach?”

“Se você quer dizer literalmente, sim. Se você quer dizer, se


estou consciente de transpirar no sonho ... não, acho que não.”

Ele assentiu, como se isso confirmasse algo.

"Sim. Eu não acho que alguém cheire coisas em um sonho,


também, a menos que seja talvez fumaça porque a casa pegou
fogo ao seu redor enquanto você dormia. Mas eu senti coisas,
agora mesmo, sonhando. O raspar das plantas da charneca nas
minhas pernas, tojo preso na ponta do meu kilt, e a sensação de
grama na minha bochecha quando eu caí. E eu senti o frio da
água em que estava deitado, e senti meu coração crescer frio em
meu peito, e as batidas ficarem mais lentas ... Eu sabia que
estava sangrando, mas nada doeu - e eu também não estava com
medo. "

"Você tirou a roupa no sonho?" Eu perguntei, tocando seu peito


nu. Ele olhou para o meu dedo, sem expressão. Então expirou
explosivamente.

"Deus. Eu tinha esquecido esta parte. Era ele - Jack Randall. Ele
saiu de algum lugar, caminhando através da luta, completamente
nu. "

"O que?"
1649

— Bem, não me pergunte, Sassenach, não sei por quê. Ele


apenas... estava nu. Sua mão flutuou de volta ao seu peito,
tocando cautelosamente a pequena cavidade em seu osso do
peito. — E também não sei por que eu estava. Eu apenas...
estava.
1650

140

TRÊS ROUNDS COM UM RINOCERONTE

Fraser's Ridge
16 de setembro de 1780

ALGUÉM PENSARIA QUE VOCÊ já fez isso antes,” eu


comentei, sorrindo entre os joelhos de Brianna.
"Se alguém pensa que eu vou fazer isso de novo..." ela ofegou, mas
parou, seu rosto suado se contorcendo como o de uma gárgula.
“NRRRRGH.”
"Maravilhoso, querida," eu disse, meus dedos no objeto
arredondado e peludo mostrando-se brevemente entre suas pernas.
Eu senti isso por apenas um segundo antes dele desaparecer
novamente, o pulso latejante de um instante, mas foi o suficiente;
lá não havia nenhuma sensação de angústia, apenas de
perplexidade e uma curiosidade intensa.
"Jesus, parece um coco", Roger deixou escapar de seu lugar
ajoelhado no chão atrás de mim.
“ARRRGHHHH! NGGGHHH! Eu vou te matar! Você — aff—”
Brianna parou, ofegou como um cachorro, então enfiou suas pernas
manchadas de sangue com força no chão coberto de palha, meio se
levantando da cadeira de parto, e o bebê disparou e caiu
pesadamente em minhas mãos.
“Ai, meu Deus”, disse Roger.
"Não desmaie aí", eu disse, ocupada esfregando o pequeno nariz e
boca do menino. “Fanny? Se ele cair, arraste-o para fora do
caminho.”
“Não vou desmaiar”, disse ele, com a voz trêmula. “Oh, Bree. Oh.
Oh, Bree! ” eu podia senti-lo arrastando a palha enquanto se
levantava para ir até ela, mas minha atenção foi dividida entre
1651

Brianna e o bebê - uma boa porção de sangue, um pequena


laceração perineal, mas sem hemorragia aparente - rosa, se
contorcendo, rosto amassado na expressão exata da gárgula que sua
mãe tivera um momento antes, coração batendo forte como um
pequeno martelo e ... eu já estava sorrindo, mas meu sorriso se
alargou quando ele empurrou para longe a minha compressa e
começou a gritar como uma serra elétrica zangada.
“Apgar nove ou dez,” eu disse alegremente. "Muito bem, querido -
vocês dois!"
"Onde está o Apgar dele?" Fanny disse, franzindo a testa para o
bebê. “É isso que você chama o dele ...”
"Oh. Não, é uma lista que você faz com um novo bebê, para avaliar
seu estado. 'Apgar'704 significa Atividade, Pulso, Careta - ele
certamente tem isso - Aspecto - vê como ele é rosa? Um bebê que
passou por um momento difícil pode ter os dedos das mãos e dos
pés azulados, ou totalmente azuis - isso seria muito ruim.” Eu tive
uma rápida visão do nascimento de Amanda - e do último bebê azul
que eu segurei - e arrepios ondularam sobre meus braços. Fechei
os olhos com uma oração rápida para a pequena Abigail Cloudtree
e para o neto saudável em meus braços.
“Para que serve o 'R'?” Roger perguntou, curioso. Eu olhei para
cima; ele estava segurando a cabeça de Bree, gentilmente
enxugando os fios de cabelo encharcados de suor colado em seu
rosto, mas seus olhos estavam grudados no bebê.
"Respiração", eu disse, levantando minha voz ligeiramente para ser
ouvida sobre o choro rítmico - e alto - do bebê. “Se eles estão
gritando, eles estão respirando. Venha aqui e corte o cordão
umbilical dele, papai. Fanny, venha aqui, também; a placenta vai
sair a qualquer minuto. ”
"Onde está Da?" disse Brianna, levantando sua cabeça.
"Bem aqui, moça."
Jamie, que estava à espreita na porta, colocou seu rosário em seu
bolso e veio até Bree, abaixando-se para beijar sua testa e
murmurar algo para ela em gaélico que fez seu rosto cansado, mas
sorridente, florescer.
A sala cheirava a sangue e merda e o peculiarmente fecundo,
704
." Sigla em inglês para avaliação do estado de um recém nascido: "Appearance, Pulse, Grimace,
Activity, and Respiration” .
1652

pantanoso cheiro da água do nascimento705.


"Aqui, querida." Levantei-me, joelhos rígidos de ficar uma hora
ajoelhada no chão duro, e coloquei o bebê nu em seus braços.
“Tenha cuidado, ele ainda está um pouco escorregadio.” Ele tinha
a aparência ligeiramente cerosa de um recém-nascido, ainda
revestido do vérnix protetor que o protegeu nas águas que ele tinha
acabado de atravessar. Levei um momento para minhas costas se
dobrarem o suficiente para eu ficar de pé totalmente ereta e estiquei
meus braços para cima, gemendo.

“Ainda não estou vendo”, disse Fanny. Ela ainda estava ajoelhada,
olhando atentamente entre as pernas abertas de Brianna.
"Veja se ele vai mamar, sim, querida?" Eu disse para Bree. “Isso
vai ajudar na contração de seu útero.”
"Isso é exatamente o que eu preciso", ela murmurou, mas nada
tocou o beatífico sorriso que piscava e desaparecia através da
exaustão que velava seu rosto.
Ela puxou para baixo a gola de sua camisola manchada de suor e
sangue e guiou cuidadosamente o rosto berrante de Junior para o
peito dela. Todo mundo assistiu, fascinado, enquanto ele esfregava
o rosto de um lado para outro no seio, ainda gritando. Bree torceu
seu nariz, tentando mover o mamilo com uma mão enquanto
segurava o bebê com a outra. Cada um dos mamilos mostrou uma
pequena gota de líquido transparente.
"Viu?" Eu disse a Fanny, acenando para eles. “Isso é colostro. Vêm
antes do leite verdadeiro. Está cheio de anticorpos e coisas úteis
assim.” Ela virou a cabeça para mim, com os olhos esbugalhados.
“Isso significa que o bebê estará protegido de qualquer doença -
bem, a maioria das doenças - que sua mãe teve”, eu expliquei.
O bebê se contorceu e Bree quase o deixou cair.
"Uau!" disse quase todo mundo. Ela fez uma careta para Roger, que
era o mais próximo.
“Estou com ele”, disse ela. Junior jogou a cabeça para trás e depois
a jogou para frente, encontrou o mamilo, e se agarrou com um
suspiro de exasperação que dizia: "Bem, finalmente!" tão
eloquentemente que todos riram e a sala relaxou.

705
Líquido amniótico
1653

Uma leve batida no batente da porta anunciou o advento de


Patience e Prudence Hardman, seus rostos iluminados de
curiosidade.
“Nós ouvimos o bebê chorar”, disse Prudence. "O que é isso,
rezar?"
"E tu estás bem, amiga Bree?" Patience perguntou, sorrindo
timidamente para Brianna, cujo cabelo estava começando a secar e
despentear, e que parecia uma leoa que tinha lutado três rounds
com um rinoceronte e ainda não tinha certeza de quem tinha
vencido. Ela ainda estava sorrindo, no entanto, e acariciou a cabeça
do bebê, olhando para baixo para ele.
“Ele é um garotinho,” ela disse, sua voz rouca de tanto gritar, mas
suave.
"Ooh!" Patience e Prudence disseram juntas, depois se
entreolharam e riram. Patience se recuperou, porém, e perguntou
se Bree gostaria de algo para comer.
“Mamãe fez pão fermentado706 com geleia, no caso de você estar
faminta e há muito leite doce ”, acrescentou Prudence. “Qual é o
nome do teu filho? "
“Estou morrendo de fome”, disse Bree. "Quanto a ... urgh." Ela se
interrompeu, seus olhos fechando em uma careta. "Mmph."
"Aí está!" Fanny exclamou. "Está vindo, eu vejo— Oh!" Ela estava
em suas mãos e joelhos, espiando atentamente, e se ergueu quando
a placenta deslizou para fora e pousou com um plop saudável ! na
palha espalhada nas tábuas do assoalho. Roger e Jamie desviaram
o olhar rapidamente, mas as duas jovens quacres acenaram com a
cabeça em solene aprovação.
“Isso se parece com o da mamãe, quando ela deu à luz Chastity,”
Prudence disse. "Fizemos um chá com isso."
A placenta, escura com sua rede contorcida de vasos sanguíneos e
os restos viscosos do cordão umbilical adicionaram seu próprio
aroma de carne ao suor pungente e o cheiro de palha fresca
pisoteada.
"Acho que vamos enterrá-la no jardim", disse apressadamente,
vendo o olhar no rosto de Bree. “É muito bom para o solo. Quanto
aos nomes – você pensou em algum? "
706
No original, ”soda bread”. Pão que usa bicarbonato de sódio como fermento, o que provoca
fermentação e crescimento rápidos..
1654

"Muitos", disse ela, e olhou para baixo, aninhando o bebê mais


perto. "Mas nós pensamos que deveríamos esperar até conhecê-lo
– conhecê-la - para decidir com certeza.”
"Nós pensamos que talvez Jamie?" Roger disse, levantando uma
sobrancelha para o atual titular desse nome, que balançou a cabeça.
“Não, você não vai quer ter um Jemmy e um Jamie,” ele objetou.
“Eles nunca vão saber quem está sendo chamado. E Jem já tem o
nome de seu próprio pai, Roger Mac - mas talvez o reverendo?”
Roger sorriu.
“É um pensamento gentil, mas o nome do reverendo era Reginald,
e eu não acho ...e você já tem o nome do pai de Jamie ”, disse ele a
Bree.
“Claire? Qual era o nome do seu pai?”
“Henry,” eu disse distraidamente, olhando para as nádegas em
miniatura. Uma fralda seria necessária em um momento ... "Ele
realmente não se parece com um Henry, parece? Ou um Harry? "
O fluxo sanguíneo diminuiu após a saída da placenta, mas ainda
estava chegando. "Querida, eu preciso que você vá para a cama
para que eu possa massagear sua barriga.”
Roger e Jamie levantaram Bree, o bebê no colo, e foram
seguramente removidos para a cama, onde espalhei um lençol de
lona. A discussão de nomes – com todos, incluindo Fanny e os
Hardmans, adicionando sugestões e Bree declarando enfaticamente
que ela não iria deixar o pequeno Anônimo sem um nome por
meses, como Oggy-Hunter - passou algum tempo, enquanto eu
massageava a barriga grande e cada vez mais flácida de Bree -
fazendo uma pausa momentaneamente para verificar seu coração
batendo normalmente - e então, sentindo o útero mexer lentamente
em ação, costurei a pequena laceração perineal e suavemente deixei
suas pernas limpas.
“Aye, bem, acho que é David, suponho” Jamie disse. “Esse era o
segundo nome do meu pai. E é o nome de um rei, além disso. Bem,
dois, de fato um escocês e um hebreu - um grande guerreiro,
embora dado a fornicação."
Um momento de silêncio e um pequeno zumbido de consideração
pensativa.
“David”, disse Bree, começando a ficar sonolenta. O bebê tinha ido
dormir, o mamilo distendido puxado lentamente de sua boca
1655

enquanto sua cabeça pendia. “Wee Davy. Isso não é ruim." Ela
bocejou e olhou para Jamie, que estava olhando para o menino com
tanta ternura que me atingiu no coração e lágrimas vieram aos meus
olhos. "Nós podemos dar a ele William para seu segundo nome,
Da? Eu gostaria disso."
Jamie pigarreou e acenou com a cabeça.
“Sim,” ele disse, sua voz rouca. “Se você quiser. Roger Mac?”
"Sim", disse Roger. "E Ian, talvez?"
"Oh, sim", disse Bree. "Oh, Deus, isso é comida?" Eu tinha ouvido
vagamente passos na escada, e agora Silvia, segurando uma
bandeja com pão e geléia, batatas fritas, uma tigela de ensopado e
uma jarra de leite, cuidadosamente movida para dentro do quarto.
"Vejo que está tudo bem contigo, irmã", disse ela suavemente para
Bree, e depositou a bandeja. “E o pequenino, louvado seja Deus.”
"Aqui, Roger", disse Bree, lutando para sentar-se ereta com o bebê
nos seus braços. "Pegue-o."
Roger o pegou e recuou um pouco, para que pudéssemos terminar
de arrumar Bree apoiando-a para comer. Eu olhei para ver Roger,
seu rosto suave, olhando para o bebê recém-embrulhado e vi Jamie,
que estava timidamente olhando sobre seus ombros para seu novo
neto.
"Aqui, vovô", disse Roger, e colocou cuidadosamente o pequenino
David William Ian Fraser MacKenzie nos braços de seu avô, a
cabeça do pequeno menino na mão grande em concha de Jamie,
segurada suavemente como uma bolha de sabão.
Fanny, endireitando-se ao meu lado com uma braçada de roupas de
cama sujas e fedorentas, desviou-se desta cena beatífica e olhou
para mim seriamente.
“Eu nunca vou me casar”, disse ela.
1656

141

UMA CLAREIRA COM ZUMBIDO ALTO


DE ABELHAS707

Coronel Francis Locke,


Regimento de Milícias do Condado de Rowan,
Comandante
26 de agosto de 1780 d.C.
Coronel Fraser:
Escrevo para informar que recebi um despacho de Isaac Shelby,
me informando que no último dia 19, em Musgrove Mill, perto
do Rio Enoree, uma força de cerca de duzentos Patriotas das
Milícias do Condado da Carolina do Norte e Geórgia, sob o
comando dos coronéis Shelby, James Williams e Elijah Clarke,
atacaram e derrotaram uma Força Legalista que guardava o
Moinho, que controla o suprimento local de grãos e o rio, esse
reforçado por uma milícia legalista e cerca de duzentos
regulares provinciais, a caminho de unir forças com Major
Patrick Ferguson.
Fui informado que foi uma luta quente, na qual algumas milícias
legalistas atacaram com baionetas, mas foram superadas por
soldados patriotas que correram corajosamente sobre eles,
gritando, atirando e golpeando todas as mãos e, assim,

No original, “A Bee-loud Glade”. Verso do poema “The Lake Island of Innisfree”, de William Butler
707

Yeats (1880), já citado no livro 4, cap 43.


1657

quebrando o ataque.
O capitão Shadrach Inman da Milícia de Clarke, da Geórgia,
foi morto no primeiro ataque, mas conseguiu perturbar os
Defensores, que então se encontraram em alguma desordem e
foram assim vencidos e dispersos, cerca de 70 homens sendo
capturados e quase esse número morto, enquanto as Forças
Patriotas perderam apenas quatro homens, com uma dúzia
capturados.
Embora eu saiba que você se juntará a mim ao se regozijar com
esta notícia, você também deve compartilhar minha
preocupação. Se tantos Provinciais e Outros Legalistas estão
indo se juntar a Ferguson de um lugar como Musgrove Mill, o
Interior fica alerta em todas as Carolinas, e devemos esperar
grandes problemas se Ferguson conseguir acumular uma
grande Força, o que parece muito provável. Devemos impedi-lo
enquanto ainda há Tempo.
Renovo meu convite para que você e seus homens se juntem ao
Regimento de Milícias do Condado de Rowan e reitero minha
promessa de que, caso o faça, permanecerá no comando direto
de seus próprios homens, estando você exclusivamente sujeito
ao meu comando e em pé de igualdade, com os demais
Comandantes de Milícias, com direito a fazer uso dos
Suprimentos e Pólvoras à disposição do Regimento. Vou mantê-
lo informado das notícias que me chegam e espero por sua
companhia neste grande esforço.
Francis Locke, Coronel
Regimento de Milícias do Condado de Rowan, Comandante

JAMIE DOBROU A CARTA com cuidado, notando vagamente


que seus dedos haviam sido manchados levemente com a tinta
da assinatura de Locke, por causa de suas mãos suadas.
1658

A tentação era grande. Ele poderia pegar seus homens e se juntar


a Locke, em vez de lutar com os homens de Além da Montanha
em Kings Mountain. Locke e seu regimento haviam derrotado
um grupo substancial de legalistas em Ramseur's Mill em junho
e fizeram um trabalho digno de crédito, pelo que ouviu. O livro
de Randall mencionava o incidente brevemente, mas o que dizia
combinava com os relatos que ele ouvira – até mesmo a menção
de um grupo improvável de Alemães Palatinos708 que se
juntaram às tropas de Locke.
Além disso, porém... nada mais foi dito no Livro (pois ele não
podia deixar de pensar nisso) em relação a Locke até uma
escaramuça em um lugar chamado Colson's Mill no ano
seguinte. Kings Mountain ficava entre o agora e o depois,
lançando sua longa sombra em sua direção. E Jamie não poderia
deixar Ridge indefeso por um grande período de tempo, seja
como for. Ele sabia que ainda havia conservadores entre seus
arrendatários e pensou em Nicodemus Partland. Ele não tinha
ouvido falar de outras tentativas, mas estava bem ciente de que
quase qualquer coisa – ou qualquer um – poderia passar pela
Linha Cherokee sem que ele soubesse.

Jamie suspirou, enfiou a carta no bolso e, incapaz de ficar parado


com seus pensamentos, subiu a colina até o jardim de Claire,
sem querer contar a ela sobre a carta e seus pensamentos - apenas
querendo o conforto momentâneo da presença dela.

Ela não estava lá e ele hesitou entrar no portão, mas então o


fechou atrás de si e caminhou lentamente em direção à fileira de
colmeias. Ele construiu um banco comprido para ela, e agora

708
Alemães (ou seus descendentes) que emigraram da região do Palatino (sudoeste da atual Alemanha)
para a região de Nova York no início do séc XVIII após guerras e condições climáticas adversas na região
que habitavam. Com o passar dos anos, migraram para outras regiões.
1659

havia nove colmeias nele, zumbindo pacificamente ao sol de


outono. Algumas delas eram cestos de palha trançados709, mas
Brianna havia construído também três caixas com molduras de
madeira por dentro e uma espécie de ralo para facilitar a colheita
do mel.
Algo estava no fundo de sua mente, um poema que Claire havia
lhe contado uma vez, sobre noves e abelhas.710 Só um pouquinho
tinha ficado na memória: Terei nove fileiras de feijão ali, uma
colmeia para a abelha de mel, e morarei sozinha na clareira
com zumbido alto de abelhas. O número nove sempre o deixava
desconfiado, devido a um estranho encontro com uma velha
adivinha parisiense.711
“Você vai morrer nove vezes antes de morrer”, ela disse a ele.
Claire tinha tentado, de vez em quando, calcular as vezes que ele
deveria ter morrido, mas não morreu. Ele raramente o fazia,
tendo um medo supersticioso de atrair o infortúnio pensando
nele.
As abelhas estavam cuidando de seus negócios. O ar estava
cheio delas, o sol da tarde batendo em suas asas e fazendo-as
brilhar como faíscas entre o verde do jardim. Havia alguns
girassóis esfarrapados ao longo de uma parede, suas sementes
como seixos cinzentos, junto com sedum e cosmos. Gencianas
roxas - estas ele reconheceu, porque Claire fez um unguento com
elas que ela usou nele mais de uma vez e trouxe um pouco de
Wilmington e aconchegou-as aqui em um local arenoso que ela
fez para a planta. Ele cavou a areia para ela e sorriu para a
mancha pálida de solo entre a argila mais escura. As abelhas

709
No original, ‘skep’. São cestos de vime feitos especificamente para servirem de cobertura para as
colmeias, com uma pequena abertura para permitir a saída e retorno das abelhas. Seu formato é parecido
com o de um ovo partido ao meio e é colocado em cima de um local que facilita a retirada do mel de
forma fácil.
710
Aqui, uma pequena correção. No livro 4, quem cita esse poema para Jamie é Brianna. Nada impede
que, no entanto, Claire também tenha citado esse poema para ele em algum momento.
711
Esse encontro é citado no livro 6 .
1660

pareciam estar gostando do solidago mas Claire disse que elas


estavam caçando principalmente nas florestas e prados agora.

Ele veio devagar até o banco e estendeu a mão em direção às


colmeias, mas não tocou em nenhuma até que duas ou três
abelhas pousassem levemente em sua mão, os pés fazendo
cócegas em sua pele. “Assim elas não pensam que você é um
urso,” Claire disse, rindo. Ele sorriu com a lembrança e colocou
a mão na palha aquecida pelo sol e apenas ficou ali um pouco,
se livrando de seus pensamentos incômodos, pouco a pouco.

"Vocês vão cuidar dela, sim?" ele disse finalmente, falando


baixinho para as abelhas. "Se ela vier até vocês e disser que eu
parti, vocês vão alimentá-la e cuidar dela?" Ele ficou mais um
momento, ouvindo o zumbido incessante.
“Eu a confio a vocês,” ele disse finalmente, e se virou para ir,
seu coração mais leve em seu peito. Não foi até que ele fechou
o portão atrás dele e começou a descer em direção à casa que
outra parte do poema veio a ele. E eu terei um pouco de paz lá,
pois a paz vem caindo devagar ...
1661

142

NÃO É...?712

20 de setembro de 1780
Do coronel John Sevier
Ao Coronel James Fraser

Temos notícias de que a milícia legalista de Ferguson está se


movendo de Camden, de onde ele partiu com Cornwallis, mas
agora foi para o sul na Carolina do Norte.
Consta que ele propõe atacar e queimar os Assentamentos
Patriotas assim que surgirem em seu Caminho. Propomos
encontrá-lo em algum ponto conveniente em seu progresso. Se
você e suas tropas quiserem se juntar a nós, nos encontraremos
e nos reuniremos em Sycamore Shoals no dia 25 de setembro.
Traga as Armas e a Pólvora que tiver.
John Sevier, Coronel da Milícia

21 de setembro de 1780
Para os habitantes da Carolina do Norte

712
O título desse capítulo (no original, “Don’t you..?) tem relação direta com o título do cap 20 (“Aposto
que você pensa que essa música é sobre você...). Na música de Carly Simon, o verso completo da música
é “I bet you think this song is about you, don’t you?”. No cap 20, Jamie fala pela primeira vez que sente
que Frank conversa com ele durante o livro.
1662

Senhores: A menos que queiram ser devorados por uma


inundação de bárbaros, que começaram por assassinar um
Filho desarmado diante de seu Pai, e depois decepam seus
Braços, e que, por suas chocantes Crueldades e
Irregularidades, dão a melhor prova de sua covardia e falta de
disciplina, eu digo se vocês desejam serem presos, roubados e
assassinados, e verem suas esposas e filhas, em quatro dias,
abusadas pela escória da humanidade - em suma, se vocês
desejam ou merecem viver ou suportar o Nome de Homens,
agarrem suas armas nesse momento e corram para o
acampamento.
Os Homens Atrasados713 cruzaram as Montanhas; McDowell,
Hampton, Shelby e Cleveland estão à frente deles, para que
vocês saibam de quem vocês dependem. Se vocês escolherem
serem atormentados para todo o sempre por um bando de
mestiços, digam isso de uma vez, e deixem suas mulheres
virarem as costas para vocês, e procurarem homens de verdade
para protegê-las.
Pat. Ferguson, Major 71º Regimento

Fraser’s Ridge
22 de setembro, Ano Domini 1780
Eu, James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser, estando com
a mente sã...

JAMIE SE PERGUNTOU QUANTOS homens pararam neste


ponto para debater o estado de suas mentes consigo mesmos. Se
você passou o último ano conversando com um homem morto,
você poderia ter algumas dúvidas bastante razoáveis, ele pensou.
No original, “The Backwater Men”. “back water” significa água parada, de remanso. The Backwater
713

Men era um dos nomes pejorativos dado aos pioneiros que se estabeleceram nas montanhas Blue Ridge.
1663

Por outro lado, quem admitiria, por escrito, que tinha certeza de
que estava no mundo da lua?
Ou, se não estivessem realmente loucos, o que dizer dos homens
que não ficaram sóbrios um dia em vinte anos, ou aqueles que
voltaram da guerra com algo faltando – ou carregando algo em
suas costas. Esse pensamento fez os cabelos se arrepiarem da
cabeça aos pés, e ele agarrou sua pena com tanta força que ela
se partiu com um pequeno crack.
Sim, bem, se ele quisesse que sua Última Vontade e Testamento
recebesse crédito, ele supôs que teria que dizer que estava com
a mente sã, não importa o que ele realmente pensasse.
Ele suspirou e olhou para as penas que havia deixado no pote.
Principalmente de ganso ou peru, mas duas eram penas de asa
de uma coruja riscada. Bem, ele teria que manter a calma...
Ele cortou a pena da coruja até um ponto bom, compondo sua
mente. A tinta era fresca, cheirando fortemente a ferro e o aroma
amadeirado de bolotas de carvalho. Isso o acalmou. Um
pouquinho.
…declaro que esta é minha última vontade e testamento, e assim
juro diante de Deus.
Deixo para minha esposa, Claire Elizabeth Beauchamp (dane-
se que eu vou colocar o nome dele nisso) Fraser, todos os bens
e bens que eu possuir ao morrer, absolutamente, com exceção
de certos legados individuais listados aqui abaixo:
Para minha filha, Brianna Ellen Fraser MacKenzie, deixo
duzentos acres de terra da terra que me foi concedida pela
Cor… (bem, mais dois anos e a maldita Coroa não terá nada a
dizer sobre isso, se Claire e os outros estão certos sobre o que
está acontecendo, e até agora, eles parecem estar)... Ele
1664

murmurou “Ifrinn”714 baixinho e rabiscou o que me foi


concedida pela Coroa, substituindo-o pela concessão de terra
conhecida como Fraser's Ridge.
Ele continuou com legados semelhantes para Roger, Jeremiah,
Amanda e – após um momento de reflexão – Frances. Seja ela
de sangue ou não, ele não poderia deixá-la sem recursos, e se ela
tivesse terras aqui, talvez ela ficasse por perto, onde Brianna e
sua família pudessem cuidar dela, ajudá-la a encontrar seu
caminho na vida, arrumar um bom par para ela...
Ah, um momento — o novo filho de Brianna; David,
acrescentou ele, sorrindo.
Cinquenta acres para Bobby Higgins; ele tinha sido um bom
homem de confiança, Bobby, e merecia.
Para meu filho Fergus Claudel Fraser e sua esposa, Marsali
Jane MacKimmie Fraser, deixo a soma de quinhentas libras em
ouro.
Isso era demais? Riqueza como essa atrairia patifes como
moscas em volta da merda, se fosse conhecida. Tanto Fergus
quanto Marsali eram criaturas astutas, no entanto; ele podia
confiar que eles saberiam se cuidar.
Havia pequenas coisas a serem dadas – seu alfinete de rubi, seus
livros (ele deixaria os de Hobbit para Jem, talvez), suas
ferramentas (essas eram para Brianna, é claro) e armas (se
retornassem sem mim) … mas havia mais uma pessoa
importante a ser considerada. Ele hesitou, mas escreveu,
devagar.
Só para ver como fica, coloque no papel...

Para meu filho... Ele pousou a pena com cuidado, para não

714
Inferno, em gaélico
1665

deixar manchas no papel, embora tivesse que refazê-lo de


qualquer forma, por causa dos riscos.
Não que William precisasse de algo de natureza material dele.
Ou precisaria? Bree disse que o rapaz deseja abrir mão de seu
título — se o fizer, perderá todas as propriedades pertencentes a
ele? Mas o duque pensa que ele não pode... E mesmo que
pudesse, ou recusasse, John Gray cuidaria dele; para quem ele
tem que deixar seu dinheiro, se não para William?
Isso era lógico. Infelizmente, ele não era lógico; não no
momento. E fosse amor, orgulho pecaminoso ou algo ainda pior,
ele não poderia morrer sem deixar algo de si mesmo para
William. E eu não vou morrer sem reivindicar William em
público, quer eu esteja lá para ver seu rosto quando ele ouvir ou
não. Sua boca se contraiu com esse pensamento, e ele apertou os
lábios para detê-lo. Mais rabiscos...
Ao meu Filho Natural, William James Fraser, também
conhecido como William Clarence Henry George Ransom,
também conhecido como Nono Conde de Ellesmere…
Ele mordeu a ponta de sua pena, sentindo o gosto da tinta
amarga, então escreveu:
... cem libras em ouro, os três barris de uísque marcados com
JFS e minha Bíblia verde. Que ele encontre Socorro e Sabedoria
em suas Páginas.
"Ele pode encontrar mais disso no uísque", Jamie murmurou
para si mesmo, mas sua alma parecia mais leve.
Dez libras para cada um de todos os netos, pelo nome. Isso o
deixou feliz, vendo toda a lista. Jem, Mandy, Davy, Germain,
Joanie, Félicité — ele fez uma pequena cruz no papel para
Henri-Christian e sentiu a garganta apertar — e os novos
meninos, Alexandre e Charles-Claire. E qualquer outro
1666

posterior de... qualquer um dos meus filhos. Era uma sensação


estranha pensar que não só Brianna poderia ter mais filhos, mas
também Marsali — sua irmã Joan715, se ela se casasse (droga,
ele esqueceu de colocar Joanie com seus outros filhos; mais
rabiscos...) — ou a esposa de William, quem quer que seja.
Ele estava começando a se arrepender de não estar vivo para
conhecer a esposa de William ou ver seus filhos, mas afastou
esse pensamento com firmeza. Se ele chegasse ao Céu, ele tinha
certeza de que haveria algum arranjo para saber como sua
família estava passando sem você, talvez deixando você dar uma
olhada ou dar uma mão de alguma forma. Ele pensou que ser um
fantasma poderia ser interessante... Havia um número de
pessoas que ele não se importaria de aparecer se ele estivesse em
tal estado, só para ver o olhar em seus rostos...
Eis que os filhos são herança do Senhor; e o fruto do ventre é a
sua recompensa. Como as flechas estão na mão de um homem
poderoso; assim são os filhos da juventude. Feliz é o homem que
tem sua aljava cheia deles.716
Ele sorriu com o pensamento, mas pensar em crianças trouxe
mais uma à mente.
Droga, ele tinha esquecido Jenny, Ian e Rachel, e o pequenino
Hunter James Pequeno Lobo – e o novo desconhecido de
Rachel, que não era esperado até a primavera.
Ele esfregou dois dedos entre os olhos. Talvez ele devesse
pensar mais, terminar isso mais tarde.
O problema era que ele não ousava ir para Kings Mountain sem
fazer a disposição de sua propriedade, caso estivesse certo sobre

715
No livro 7, sabemos que Joan vai para Paris com a intenção de se tornar freira, o que torna um pouco
estranho pensar que ela terá filhos. Mas em Espaço, sabemos que as coisas podem ter sido um pouco
diferentes. Talvez Jamie saiba de algo que não sabemos. Afinal, já se passou cerca de um ano e meio
desde que tudo isso ocorreu.
716
Salmos 127: 3-5
1667

o que ele achava que Frank Randall estava dizendo a ele.


Ele mentiria? Um historiador, que jurava — a si mesmo, pelo
menos — dizer a verdade até onde pudesse?
Qualquer homem mentiria, nas circunstâncias certas – e dado o
que Frank Randall certamente sabia de Jamie Fraser...
Ele não podia arriscar. Ele pegou a pena novamente e escreveu.
À minha Irmã, Janet Flora Arabella Fraser Murray, deixo meu
Rosário...
1668

143

POSSO TE DIZER UMA COISA?

Sycamore Shoals, Condado de Washington,


Colônia da Carolina do Norte
26 de setembro de 1780

EU, ACIMA DE TODAS AS PESSOAS, deveria ter sabido que a


história escrita tem apenas uma conexão tênue com os fatos reais
do que aconteceu. Muito menos os pensamentos, ações e reações
de pessoas envolvidas. Eu sabia disso, na verdade, mas de alguma
forma tinha esquecido, e havia embarcado nesta excursão militar
com o relato histórico firmemente, embora subconscientemente,
em mente.

Eu tinha presumido que a reunião em Sycamore Shoals seria a


habitual fervura de diversas pessoas chegando em momentos
diferentes, seguidos pela confusão usual e desorganização em
qualquer empreendimento envolvendo mais de um líder, e isso, de
fato, foi exatamente o que aconteceu.

Eu não tinha pensado que ninguém - além de mim - traria nada


substancial na forma de alimentos ou suprimentos médicos, nem eu
1669

percebi que nenhum dos líderes da milícia sabia para onde


estávamos indo.

O pensamento de Kings Mountain tinha estado por tanto tempo em


minha mente como um contundente, espigão rochoso envolto em
ameaça que assumiu o aspecto da Montanha da Perdição717.
Profetizado e inexorável. Mas ninguém da milícia que estava indo
para lá sabia disso. Na falta de uma explicação da batalha breve,
mas meticulosa, de Franklin W. Randall ( Jesus H. Roosevelt
Cristo, pensei. Será que os pais de Frank realmente o batizaram
em homenagem a Benjamin Franklin? Calma, Beauchamp, você
está se tornando histérica...), Sevier, Shelby, Cleveland, Campbell,
Hambright e o resto não tinham ideia de que estávamos rumo a
Kings Mountain. Estávamos em busca de Patrick Ferguson, um
objetivo muito menos bem definido.

Notícias de seus movimentos chegavam até nós em conta-gotas,


dependendo da chegada errática de batedores e os detalhes de seus
relatórios. Nós sabíamos que ele e seu crescente corpo de
provinciais - milícia oficial britânica - e adeptos dos legalistas que
se juntaram a ele por medo ou fúria estavam se movendo para o sul,
na direção da Carolina do Sul, com a intenção de atacar e destruir
pequenos assentamentos patriotas. Como Fraser's Ridge, por
exemplo. Nós sabíamos, ou pensávamos que sabíamos, que suas
tropas somavam mais ou menos mil homens, o que não era pouca
coisa.
Tínhamos novecentos ou mais, contando comigo. Minha presença
causou muitos olhares e resmungos, e Jamie foi convocado para
falar com outros líderes da milícia, provavelmente para que
pudessem dizer a ele para me mandar para casa.

"Eu disse que não faria isso", ele respondeu brevemente, quando
eu perguntei a ele como a conversa tinha acabado. "E eu disse que
se você fosse molestada ou perturbada de qualquer forma, eu
pegaria meus homens imediatamente e lutaria por conta própria.”

717
No original, “Mount Doom”. Vulcão ficcional em ‘O Senhor dos Anéis’.
1670

Consequentemente, eu não fui incomodada ou molestada, e


enquanto os olhares e murmúrios continuaram por um tempo, não
demorou mais do que uma semana para meu atendimento a
pequenos acidentes e doenças que afligem um exército até que isso
tivesse parado também. Eu me tornei a médica da corporação e não
havia mais perguntas sobre o que eu estava fazendo lá.

Embora não soubéssemos exatamente onde Ferguson estava, não


estávamos precisamente vagando no deserto, também. Ferguson
não estava movendo suas tropas através de montanhas sem trilhas,
e nós também não. Um exército precisa de estradas, na maioria das
vezes, e os batedores relatavam em quais estradas a milícia legalista
estava seguindo. Obviamente, convergiríamos em algum ponto.

Jamie, Jovem Ian, Roger e eu sabíamos onde essa convergência


estaria, mas esse conhecimento não tinha valor prático, pois não
poderíamos dizer ao Coronel Campbell e o resto como sabíamos
disso.

Nem seria de muito valor se pudéssemos. Estávamos nos movendo


rápido, e na direção usual de Kings Mountain - Patrick Ferguson
também. Tínhamos deixado Sycamore Shoals em 26 de setembro.
A batalha aconteceria —de acordo com a história e com Frank —
em 7 de outubro.

-.-.-

Era outono e o tempo estava mutável. Os primeiros dias


reparadores deram lugar rapidamente a chuvas torrenciais e ventos
gelados nas montanhas, apenas para retornar a um breve calor
escaldante quando descemos em um vale. Não carregávamos
tendas e tínhamos apenas uma ocasional folha de lona para abrigo,
por isso estávamos frequentemente encharcados até a pele. E
enquanto cada homem tinha trazido algo na forma de provisões,
estas não duraram muito na marcha.

Na falta de qualquer coisa na natureza de um intendente ou carroças


de suprimentos, nosso bando heterogêneo existia em conjunto,
1671

apelando à hospitalidade de membros da família ou rebeldes


conhecidos por cujas fazendas passamos, ocasionalmente
invadindo os campos e fazendas de legalistas - embora Sevier e
Campbell tenham se esforçado para impedir que os homens
atirassem ou enforcassem os legalistas que eles vitimizavam - ou
passando fome. Havia duas ou três carroças– estas constantemente
atoladas e tendo que ser retiradas da lama ou arrastadas pelos
riachos - mas eram para o transporte de armas e pólvora; a senhora
Patton tinha fornecido um número satisfatório de barris. Alguns
homens sempre carregavam seus rifles, sacos de tiro e chifres de
pólvora; outros os deixavam nas carroças, a menos ou até que
houvesse ameaça de problemas. Jamie e o jovem Ian sempre
carregavam os deles. Eu tinha duas pistolas, visíveis nos coldres -
e uma faca no meu cinto e outra na minha meia. Até Roger estava
visivelmente armado, com pistola e faca, embora ele normalmente
não carregasse sua arma carregada e preparada.
“Tenho uma chance muito melhor de acertar alguém na cabeça com
isso”, ele me disse. “Carregá-lo carregado significa que posso dar
um tiro no próprio pé mais facilmente."

Medicar foi o que eu fiz durante a disputa noturna sobre


prioridades. Ficou claro que alguém precisava estar no comando
geral, mas nenhum dos líderes da milícia estavam dispostos a
submeter seus homens às ordens de qualquer um dos outros.
Eventualmente, eles escolheram William Campbell como o líder
geral do grupo; ele tinha trinta e poucos anos, como Benjamin
Cleveland e Isaac Shelby, e um patriota bem conhecido, um
fazendeiro de importância - e o cunhado de Patrick Henry. Tanto
quanto eu poderia dizer, sua qualificação principal para o comando
atual era que ele veio da Virgínia e, portanto, estava livre de
complicações e competições entre os homens de Além da
Montanha.

"E ele tem uma voz alta", eu comentei com Jamie, ouvindo os gritos
de Campbell a duas fogueiras de distância. Ele parecia estar
afrontando a chuva, o fogo recalcitrante, e o fato de que alguém
havia tirado a lona de uma das carroças, deixando as armas se
molharem.
1672

“Aye, ele tem,” ele concordou, sem muito entusiasmo. “Você


precisa de uma, aye? Se você vai enviar homens para a batalha ou
tirá-los de uma batalha."

"É melhor você cuidar da sua, então," observei, entregando-lhe


uma xícara de água quente com cheiro de menta. Eu comecei um
fogo, sob uma espécie de alpendre récem feito de lona - nossa lona,
não a lona da carroça - e um arbusto conveniente, mas um vento
intermitente continuava soprando, sacudindo a lona e as folhas
molhadas das árvores, então passando, apenas para retornar
novamente em alguns minutos.

"Você quer uma gota de uísque nisso?"

Ele considerou por um momento, mas então balançou a cabeça.

“Não, fique com ele. Podemos precisar mais disso noutra hora.”

Sentei-me ao lado dele e tomei um gole de minha própria xícara,


lentamente, aquecendo tanto minhas mãos e minhas entranhas. Não
tínhamos comida para cozinhar, e muito pouco para comer: pão de
milho e um saco de maçãs que Roger tinha subtraído de uma
fazenda que nós passamos. Jamie tinha feito a ronda de seus
homens, certificando-se de que eles tinham alguns restos de
qualquer alimento que estivesse disponível e tivessem onde dormir.
Agora ele se encostou no tronco de um grande pinheiro ao meu
lado, tirou o chapéu, e sacudiu a água dele.

“Posso te dizer uma coisa, Sassenach?” Jamie disse, após um longo


silêncio. Ele se inclinou para trás para olhar para a lua crescente,
brevemente visível através das nuvens retalhadas e colocou a mão
no meu joelho. Era sua mão direita, e eu pude ver a linha fina da
cicatriz de onde tirei seu dedo anular, branca contra a escuridão
manchada de frio de sua pele, os quatro dedos restantes apertados
com as rédeas agarradas o dia todo.

“Você deve,” eu disse, pegando a mão e começando a massageá-


1673

la. Ele não parecia preocupado ou chateado, então provavelmente


não eram más notícias.

“Eu estava sentado na varanda, pouco antes de sairmos, e eu tinha


o pequenino Davy em meus braços, ele chupando meu polegar, e
Mandy subiu os degraus coberta de lama, para me mostrar um osso
que ela tinha encontrado no lago e perguntar de quem era. Eu
peguei, olhei para ela e disse que era da espinha dorsal de um
castor, e ela olhou para mim e perguntou se eu ouvia os animais”.

Comecei a endireitar e esticar seus dedos, e ele acomodou suas


costas firmemente contra a árvore e fez um pequeno som de dor e
prazer misturados no fundo de sua garganta.

"Ouvi-los ... como?" Choveu o dia todo, mas parou à noite, e


enquanto eu estava molhada até a minha roupa de baixo, eu
estabeleci equilíbrio suficiente de temperatura corporal para não
tremer, e era tranquilo aqui, longe das grandes fogueiras.

“Sabe ela e Jem conseguem dizer onde cada um está, sem ver um
ao outro?”

"Eles conseguem?" Eu disse um pouco assustada. "Não, acho que


não sabia disso." Eu não estava completamente surpresa ao ouvir
isso, no entanto. Eu acho que realmente vi eles fazerem isso várias
vezes, sem realmente perceber. “Os pais deles sabem, você acha?”

"Sim, ela disse que sua mãe sabia - tinham tentado, em Boston,
tendo eles se afastado um pouco e dizer que cada um ainda poderia
contar onde o outro estava. Mandy não prestou atenção em quanto
ele estava longe - era apenas um jogo para eles, embora ela achasse
estranho que seus pais não pudessem dizer onde ela ou Jem
estavam, uma vez que ela percebeu isso.”

"São apenas ela e Jem?" Eu perguntei. “Ou eles podem, hum, ouvir
outras pessoas, também? Como seus pais, quero dizer. ”

“Eu perguntei isso a ela, e ela disse que eles podem, sim - mas não
1674

a todos. Somente um ao outro e seus pais. E você, mas não tanto.”

Isso me deu um arrepio que não tinha nada a ver com frio.

"Eles, er..., ouvem você?"

Ele balançou sua cabeça.

“Não, eu perguntei. Ela diz que sou de uma cor diferente em sua
cabeça. Ela sabe quando estou perto dela, mas não consegue me
sentir à distância.”

"De que cor você é?" Eu perguntei, fascinada.

Ele fez um pequeno som divertido. "Água", disse ele.

"Mesmo?" Eu semicerrei os olhos para ele. Estava escuro e o


minúsculo fogo estava crepitando na madeira úmida, mas meus
olhos se adaptaram ao escuro e havia luz da lua suficiente para
distinguir suas feições. “Algum tipo particular de água? Azul como
o oceano, ou marrom, como o riacho?”

Ele balançou sua cabeça. "Somente água."

"Você deveria perguntar a Jem se é isso que ele pensa," eu disse, e


deslizei meus dedos entre os dele, pressionando os dedos para trás
para esticar os nós dos dedos.

"Eu vou", disse ele, com uma nota ligeiramente estranha em sua
voz. “Se eu o vir novamente."
E lá estava. A pedra no meu coração, o pedaço de chumbo quente
nas minhas vísceras. Eu tinha esquecido, brevemente, desgastada
pelo trabalho do dia. Mas o pensamento do que poderia acontecer
em Kings Mountain nunca estava longe da minha mente
consciente.

Jamie sentiu meu choque e seus dedos se fecharam de repente sobre


os meus, ainda frios, mas firmes, e ele colocou a outra mão sobre a
1675

minha também, protegendo-a.

“Se eu morrer esta semana, eu pediria a você três coisas, a


nighean,” ele disse calmamente. “Três coisas que eu quero. Você
vai fazê-las para mim?"

"Você sabe que eu vou", eu disse, embora minha garganta estivesse


apertada e minha voz grossa. "Se eu puder."

"Sim, eu quero," ele disse suavemente, e erguendo minha mão,


beijou-a, sua respiração quente na minha pele fria. "Bem então.
Quando puder, encontre um padre e mande rezar uma missa para
minha alma.”

“Feito,” eu disse, e limpei minha garganta. “Pode levar algum


tempo, no entanto. Acho que o padre mais próximo provavelmente
está em Maryland.”

“Sim, certo. Vou aguentar no Purgatório até que você consiga. Eu


estive lá antes; não é nada mau.”

Achei que ele estava brincando. Sobre o Purgatório, pelo menos.

"E a segunda coisa?"


“Pequeno Davy,” ele disse. “Amanda diz que ele é como eu. A cor
da água. Ele não é o mesmo que ela e Jem são ... e acho que talvez
signifique que ele não pode passar pelas pedras.”

Aquilo veio do nada e eu pisquei. Meus cílios estavam pesados e


molhados e gotas escorrendo pelo meu rosto como lágrimas. Suas
mãos apertaram nas minhas e ele virou a cabeça para mim, um
movimento quase imperceptível no escuro.

“Eu já disse isso antes, mas eu o digo agora de novo, e estou falando
sério. Se eu estiver morto, todos vocês devem voltar. Se Davy não
puder viajar, dê-o para Rachel e jovem Ian. Eles o amarão de todo
o coração e o manterão seguro."
1676

Eu queria dizer: "Eu te amo de todo o coração - e não posso mantê-


lo seguro."

Mas eu apertei de volta e disse, o melhor que pude para as


verdadeiras lágrimas começando, "Eu irei."

Ele ergueu minha mão e beijou meus dedos frios.

"Tapadh leat, mo chridhe."718

Sentamos juntos em silêncio, ouvindo a chuva tamborilar nas


folhas, água pingando das árvores, vozes distantes. O fogo pequeno
tinha morrido ao nascer, embora ainda pudéssemos sentir o cheiro
de sua fumaça.

“Você disse três coisas,” eu disse finalmente. Minha voz estava


rouca. "Qual é a terceira?"

Ele soltou minha mão e abriu meus dedos, como eu tinha feito com
ele alguns momentos antes, mas seus dedos traçaram as linhas da
minha palma e descansaram na base do meu polegar, onde a letra J
quase desapareceu na minha pele.

"Lembre-se de mim", ele sussurrou.

Fizemos amor, um com o outro sob as camadas de roupas


encharcadas, encontrando pouco calor, exceto aquele no ponto de
conexão. Nós continuamos bem depois do ponto onde estava claro
que nenhum de nós poderia terminar. Nossos corpos lentamente se
separaram e ficamos juntos no escuro até o amanhecer.

718
“Obrigada, minha querida” em gaélico
1677
1678

144

UM ASSUNTO PENDENTE

3 de outubro de 1780

NÃO FOI A PRIMEIRA VEZ que ele foi para uma batalha
sabendo que ele morreria. A diferença era que da última vez, ele
quis.

A chuva os impediu de acender fogueiras. Eles comeram os restos


que eles tinham deixado e, em seguida, se amontoaram no escuro,
sob o abrigo que eles poderiam encontrar. Ele encontrou uma
árvore caída, um grande choupo cujas raízes haviam surgido
quando a árvore caiu, formando um abrigo rudimentar. Não tinha
muito espaço; ele se sentou de pernas cruzadas, de costas para as
raízes, e Claire estava enrolada ao lado dele como um arganaz719,
envolta em seu manto encharcado e coberto com metade dele, a
cabeça dela descansando quente em sua coxa sob as dobras de lã.
Este foi o único lugar onde ele se sentiu aquecido.

Ele não era o tipo de soldado que travava velhas batalhas com
cerveja e pão salgado nas tabernas. Ele não procurou invocar
fantasmas; eles vieram por si mesmos, em seus sonhos.

Mas os sonhos nem sempre dizem a verdade; ele tinha sonhado


com Culloden muitas, muitas vezes ao longo dos anos - e ainda

719
No original, ‘dormouse’. Um tipo de roedor, semelhante a um esquilo.. Na Bíblia é citado em
Provérbios 30:26. É considerado uma das quatro coisas pequenas na terra que é mais sábia que um sábio,
pois constrói sua casa nas rochas.
1679

assim nenhum de seus sonhos haviam mostrado a ele como


Murtagh morreu ou lhe deu a paz de saber que ele tinha matado
Jack Randall.

Você sabia? ele pensou de repente, em direção a Frank Randall. O


homem era um historiador - e Jack Randall tinha sido seu ancestral,
ou pelo menos ele pensava assim. Foi como tudo começou, Claire
disse a ele: Frank queria ir para a Escócia, para ver o que poderia
encontrar a respeito de seus cinco vezes bisavô. Talvez ele tenha
descoberto o que aconteceu com ele, encontrou o relato de um
sobrevivente que falava sobre Red Jamie, o jacobita que estripou o
galante capitão britânico. E talvez essa descoberta tenha colocado
Frank Randall na trilha daquele jacobita ...

Ele bufou, observando a respiração se afastar dele, branca na


escuridão. Claire se mexeu e se aconchegou mais perto e ele
colocou a mão nela, dando tapinhas como se estivesse
tranquilizando um cão que tinha apenas ouvido um trovão à
distância.

"Tio Jamie?" A voz de Ian saiu da escuridão perto de seu ombro,


fazendo-o sobressaltar, e Claire estremeceu, acordando.

“Sim,” ele disse. "Estou aqui, Ian."

A forma esguia de Ian se separou brevemente da noite, e ele se


agachou ao lado de Jamie, pingando.

“Os coronéis querem você, tio - disse ele em voz baixa. “Alguém
trouxe alguns prisioneiros conservadores e eles estão discutindo se
devem enforcar a todos, ou apenas um ou dois como exemplo ”

"Cristo. Não precisa me dizer de quem foi essa ideia .

"O que?" Claire disse cansada. Ela levantou a cabeça da perna dele
e ele sentiu o frio repentino no local onde ela estava deitada. Ela
sacudiu a dobra de seu manto, emergindo no ar gelado da chuva.
1680

"O que está acontecendo? É alguém ferido?"

"Não, a nighean,”, disse ele. “Mas eu tenho que sair um pouco,.


Aqui está só úmido onde estive sentado; enrole-se lá, e estarei de
volta assim que eu puder."

Ela limpou a garganta - todo mundo tinha catarro de passar o dia e


noite com roupas molhadas ao lado de fogueiras enfumaçadas - e
balançou a cabeça para limpá-la também, mas Ian foi sábio o
suficiente para ficar quieto, e ela se acomodou no pequeno oco
meio morno que ele fez, rastejando para as folhas molhadas e
enrolando-se ela mesma em uma bola.

-.-.-

A CHUVA realmente tinha parado, ele percebeu. Era só o


gotejamento da folhagem ao redor que fazia o mesmo som da
própria chuva. A trégua permitiu que alguém acendesse uma
pequena fogueira - sem dúvida, alguém pensou em trazer um pouco
de gravetos em sua mochila, mas sibilava e fumegava na fumaça
úmida e ondulante sobre os homens reunidos à medida que o vento
mudava. Jamie recebeu uma lufada repentina e tossiu, apertando os
olhos lacrimejantes para a forma escura e volumosa de Benjamin
Cleveland, que se dirigia a um número de formas menores com
linguagem violenta e gestos da mesma natureza.

"Ian", disse ele, enxugando o rosto na manga, "vá e encontre o


Coronel Campbell, sim? Diga a ele o que está ocorrendo”

Ian balançou a cabeça, o movimento visível apenas porque ele


estava usando um chapéu.

"Não, tio", disse ele. “O que quer que esteja ocorrendo, vai
acontecer nos próximos poucos minutos."

"Maldito filho de um porco covarde", disse Cleveland - bastante


suavemente – para uma das figuras menores. “Não temos nenhum
1681

lugar para manter os prisioneiros, e ninguém precisa tentar fazer


isso, de qualquer forma. Eu conheço o cheiro de um conservador.
Nós vamos amarrá-los e dar um fim nisso!”

Houve um arrastar de pés e resmungos entre os homens, mas o


jovem Ian estava certo; Jamie podia sentir a mudança de
sentimento entre eles. Os duvidosos ainda estavam tentando fazer
um apelo por misericórdia, mas estavam sendo oprimidos por uma
chama crescente de raiva, acesa e encorajada pelo próprio
Cleveland, que estava visível na luz intermitente, brandindo um
grande rolo de corda.

Ele viaja com uma dúzia de laços de forca, apenas em caso de


necessidade? Jamie pensou, ele próprio desanimado e cada vez
mais zangado. Ele se enfiou entre dois homens e chegou perto o
suficiente de Cleveland para gritar alto o suficiente para
interrompê-lo.

“Stad an sin!720” ele gritou. Cleveland, como ele esperava, voltou-


se para ele em perplexidade.

"Fraser?" disse ele, semicerrando os olhos na escuridão nebulosa.


"É você?"

"É", disse Jamie, ainda alto. - E eu não pretendo deixar que você
me faça um assassino!"

"Ora, se isso o incomoda, senhor Fraser", disse Cleveland com


elaborada cortesia, "você apenas se vire e corre de volta para sua
esposa, e a sua consciência não vai coçar nem um pouco.”

Isso fez a maioria da multidão rir, embora ainda houvesse


dissidentes gritando: “Assassinato! Ele tem razão! É um maldito
assassinato, sem um julgamento! "

A brisa mudou novamente e a nuvem de fumaça que havia

720
“Pare aí”, em gaélico.
1682

escondido os prisioneiros fugiu, mostrando uma linha de seis


homens, cada um com as mãos amarradas nas costas, balançando
para manter o equilíbrio. E então as nuvens se abriram por um
instante, e Jamie viu os rostos dos prisioneiros.

“Santa Maria!" ele disse, alto o suficiente para que o jovem Ian, em
seu ombro, olhasse para ele, então para o que Jamie estava olhando,
e disse algo que era provavelmente o equivalente a Mohawk.

No final da linha estava Lachlan Hunt, um dos inquilinos que Jamie


tinha banido de Ridge. Lachlan não tinha deixado sua esposa ir
implorar por ele; ele estava entre os homens que partiram. A
barriga de Jamie se apertou em uma bola.

Lachlan o tinha visto também, e estava dirigindo um olhar


arregalado de terror para ele.

Ele hesitou, mas não mais do que alguns segundos.

"Pare!" ele gritou, o mais alto que pôde, e o Jovem Ian o apoiou.

“Este homem “ disse Jamie, apontando para Hunt. "Ele é um dos


meus inquilinos."

"Ele é um conservador condenado ao inferno, isso é o que ele é!"


Cleveland respondeu com inteligência, e lançando-se para frente,
colocou uma corda sobre a cabeça de Lachlan Hunt. Jamie
flexionou seus ombros e sentiu o jovem Ian se aproximar atrás dele.

Antes que ele pudesse executar seu plano de golpear Cleveland em


sua enorme barriga derrubando-o, então pulando sobre ele e
aguentando o que quer que seja que Cleveland poderia fazer com
ele o tempo seria suficiente para o jovem Ian afastar Hunt na
escuridão, outra voz soou em angústia.

“Locky !” gritou. "Aquele é meu irmão!" Um jovem homem estava


se acotovelando em seu caminho através da multidão, que estava
começando a se divertir com esta segunda interrupção.
1683

"E suponho que seja o avô de alguém, hein?" algum vagabundo


gritou, lançando uma pinha molhada que atingiu o mais jovem
prisioneiro no peito. Este causou risos e Jamie respirou fundo.

“Não importa quem eles são!” alguém gritou. “Eles são


conservadores e eles vão morrer! "

“Não sem um julgamento!”

"Por favor, por favor - deixe-me dizer adeus a ele!" O irmão de


Lachlan era empurrado com urgência pela multidão - o que, Jamie
viu, estavam deixando isso ocorrer. Houve até um murmúrio de
simpatia; tanto o prisioneiro como o irmão eram jovens, não mais
do que vinte.

Jamie não esperou; ele deu uma cotovelada em Ian e deslizou de


lado pela multidão.

As nuvens se fecharam novamente, e a luz sob a árvore escolhida


para o enforcamento não era mais do que manchas esparsas de uma
escuridão mais clara. O minúsculo fogo expirou em uma última
baforada de fumaça, e o jovem Ian soltou uma espécie de latidos e
uivos indianos que foram calculados para assustar e congelar o
sangue de todos os que os ouviram. Jamie mergulhou debaixo da
árvore e agarrou Hunt pelos braços dele amarrados, empurrando-o
violentamente para a floresta próxima.

Lachlan cambaleou, desequilibrado, mas avançou o melhor que


pôde e dentro de instantes, eles estavam fora da vista do fogo e da
confusão que estava começando por lá.

Jamie puxou seu punhal e serrou a corda.

"Sabe onde estamos?" ele perguntou a Hunt. Havia uma grande


quantidade de barulho em volta da árvore.
"Não." O rosto de Locky Hunt não era mais do que um oval escuro,
mas o medo em sua voz era claro como o dia. “Por favor, senhor ...
1684

por favor. Minha — minha esposa ... "

“Cale a boca” - disse Jamie, grunhindo enquanto torcia e serrava.


"Ouça. Por ali ” ele apontou, seu dedo diretamente sob o nariz do
homem “é oeste. A plantação de Medway fica a cerca de cinco
quilômetros naquela direção. Ela pertence a um sobrinho de
Francis Marion; ele vai te ajudar. Eu não sei onde você viveu esses
dias, mas meu conselho é ir fazer isso em outro lugar. Avise sua
esposa quando você estiver seguro.”

"Ela - mas ela - o grande homem queimou nossa cabana", disse


Hunt, começando a chorar de nervosismo, alívio e medo renovado.

"Ela não está morta", disse Jamie, com uma certeza que esperava
que fosse justificada. Cleveland era um bruto, mas até onde Jamie
sabia, ele nunca matou uma mulher, exceto talvez esmagando-a até
a morte, deitando sobre ela. Não de propósito, de qualquer maneira
... “Ela deve ter se refugiado com alguém por perto. Mande uma
mensagem para o seu vizinho mais próximo, eles vão encontrá-la.
Agora vá!" As últimas fibras se partiram e os fios da corda caíram.

Lachlan Hunt fez mais barulho, balbuciando agradecimentos, mas


Jamie virou e deu-lhe um forte empurrão no meio das costas que o
fez cambalear em seu caminho. Ele não olhou para ver como o
homem se saiu, mas voltou em direção à árvore de enforcamento,
onde uma boa parte do que Claire chamou de disputa verbal721
estava acontecendo.

Para seu grande alívio, uma boa parte da gritaria estava sendo feita
por Isaac Shelby e o Capitão Larkin, que estavam discutindo
vigorosamente a noção de esporte de Cleveland. Também começou
a chover novamente, o que diminuiu ainda mais o entusiasmo com
a perspectiva de enforcar os prisioneiros conservadores; a multidão
estava começando a se dissipar.

Jamie estava começando a se sentir como se estivesse se diluindo,


No original, “argy-bargy”. Uma modificação da palavra ‘argle-bargle’, usada a partir do final do séc
721

XIX, por isso, desconhecida por Jamie.


1685

e quando o jovem Ian apareceu ao lado de seu cotovelo, ele apenas


acenou com a cabeça, deu um tapinha no ombro de Ian em
agradecimento, e caminhou de volta no escuro até Claire, sentindo-
se muito cansado.
1686

145

O ESPELHO QUEBROU722

7 de outubro de 1780

QUATRO DIAS DEPOIS, a montanha apareceu e, com sua


aparição, um choque de expectativa percorreu os homens. Jamie
sentiu seu próprio sangue ferver e sabia que todos os outros
homens também sentiam. Fazia muito tempo desde que ele havia
lutado com um exército, mas ele reconheceu a onda de força e
calor que queimava o cansaço e a fome. Pensamentos de dor e
perda ainda estavam com ele, mas agora pareciam
insubstanciais, sem importância. Se Deus quiser, eles chegariam
ao ponto da batalha onde a morte corria com você e às vezes
você poderia montá-la. Sua boca estava seca; ele tomou um gole
de água morna e olhou para Claire, oferecendo o cantil.
Ela estava branca até os lábios, mas conseguiu dar um sorriso e
estendeu a mão para o cantil. Os cavalos sentiram aquela carga
de energia entre os homens, porém, e estavam bufando e se
acotovelando, balançando a cabeça, e ela deixou cair o cantil.

722
O título deste capítulo e do seguinte fazem referência ao poema “The Lady of Shalott”, de Alfred
Tennyson (1809-1892). Esse poema arturiano é baseado numa versão da lenda medieval trágica de Elaine
de Astolat. Ela é uma dama que vive reclusa em uma torre, ao lado de um rio que leva a Camelot, por
conta de uma maldição: deve bordar sem olhar para fora da torre. Ela tem um espelho posicionado em
frente a uma janela e, através dele, mantêm contato com o mundo exterior. Pelo espelho, ela vê e se
apaixona por Lancelot, o que a faz olhar diretamente pela janela. Nesse momento, o espelho se quebra e
ela sabe que vai morrer. Desce da torre e se coloca em um barco em direção a Camelot. O barco chega lá
com o corpo dela já sem vida. Os versos 115, 116 e 117 são ‘The mirror crack’d from side to side/”The
curse is come upon me”, cried/ The Lady of Shalott’
1687

Desapareceu imediatamente em um pisoteio de cascos


enlameados. Ele pensou por um momento que ela pretendia
mergulhar atrás dele e agarrou seu braço, segurando.
"Dinna fash", disse ele, embora soubesse que ela não podia ouvi-
lo com o barulho crescente dos homens. Não havia vantagem no
silêncio, e muitos dos mais jovens gritavam e berravam ameaças
incoerentes a um inimigo distante demais para ouvi-los. Ela
assentiu, no entanto, e deu um tapinha na mão dele.
Ele ouviu o rugido rouco de Cleveland à frente, e o corpo de
homens começou a desacelerar. Hora de desmontar e verificar
as armas, mijar rápido e se arrumarem.
Jamie parou, ergueu o rifle para convocar seu próprio bando e
balançou saindo da sela. Roger Mac estava lá; ele ajudou Claire
a descer, as pernas longas e nuas dela um lampejo de branco nas
ruínas lamacentas de suas anáguas. O Jovem Ian apareceu no
ombro de Jamie. Ele pintou o rosto ao amanhecer, e Jamie viu
Roger Mac perceber e piscar. Ele queria rir, mas não o fez,
apenas deu um tapinha no ombro do jovem Ian e acenou com a
cabeça para os homens, dizendo: “Cuide deles, sim?
“Mantenha Claire com você,” ele disse a Roger, e foi conferir
com os outros coronéis.
Eles pararam e desmontaram perto de Campbell, que ainda
estava sentado no seu grande cavalo preto castrado. O irmão
mais novo de John Sevier, Robert, e dois outros jovens deixaram
o acampamento no escuro para investigar a situação, e Jamie
teve uma leve sensação de queda, ouvindo-os dizer as palavras
que pintaram o relato de Frank Randall e o trouxeram
vividamente à vida.
"Você pode reconhecer o Major Ferguson imediatamente",
Robert Sevier estava dizendo, passando a mão pelo peito como
ilustração. “Ele está vestindo uma camisa xadrez vermelha e
1688

branca e não estava vestindo um casaco quando o vimos.


Aparece bem entre todos aqueles provinciais usando verde.” Ele
inclinou o polegar e o indicador como se fosse uma arma, fechou
um olho e fingiu mirar.
John Sevier franziu a testa para ele, mas não disse nada, e
Campbell simplesmente assentiu.
“Todos os provinciais estão usando?”
"Não, senhor", disse outro jovem escoteiro, rapidamente para
evitar que Sevier se metesse no meio. "Quase metade deles não
tem uniformes, pelo menos."
“Mas todos eles têm armas. Senhor”, disse o terceiro batedor,
para não ficar de fora.
"Quantos?" Jamie perguntou, e sentiu as palavras estranhas em
sua garganta.
"Um pouco mais do que nós, mas não o suficiente para fazer a
diferença", respondeu Sevier, mas na mente de Jamie ecoou
outra voz: a de Frank Randall.
As forças eram quase iguais, embora as tropas de Ferguson
somavam mais de mil, em comparação com os novecentos
patriotas que o atacaram.
Uma espécie de murmúrio percorreu os homens:
reconhecimento e satisfação. Jamie engoliu em seco, um gosto
de bile na boca.
"Há mais deles, mas eles estão cercados lá em cima." Cleveland
colocou o sentido do encontro em palavras. “Como ratos.” E ele
riu e bateu uma bota grande como se estivesse esmagando um
rato em mingau sangrento.
Provavelmente o que ele faz para se divertir, Jamie pensou. Ele
limpou a garganta e cuspiu nas folhas mortas.
Não levou mais do que alguns minutos para decidir quais
1689

homens deveriam tomar qual direção. O bando de Jamie iria com


Campbell e vários outros, e ele voltou para reunir os homens e
dizer-lhes como seria.

-.-.-

ROGER FOI alertado para tomar conta de mim - ou, como Jamie
colocou mais educadamente, esperar até que os atacantes
chegassem à selada.723
“Será melhor se vocês chegarem quando as pessoas mais
precisarem de vocês,” ele disse para nós dois, no tom firme que
significava que ele esperava ser obedecido. Meu rosto deve ter
expressado o que eu estava pensando, pois ele olhou para mim,
sorriu involuntariamente, e olhou para baixo.
“Tome conta dela, Roger Mac,” ele disse, então segurou meu
rosto em suas mãos e me beijou, rapidamente. Suas mãos e rosto
estavam pulsando com calor e eu senti uma frieza repentina
quando seu toque deixou minha pele.
"Tha gràdh agam ort, mo chridhe"724, ele disse e foi embora.
Roger e eu nos entreolhamos em perfeita compreensão.
“Ele te contou, não foi? eu disse, observando-o desaparecer para
cima em direção aos arbustos. "Sobre o livro de Frank?"
"Sim. Não se preocupe. Eu vou atrás dele.”
Os arbustos acima estavam crepitando e estalando como se a
montanha estivesse em chamas. Eu podia ver homens
tremeluzindo entre as folhas e troncos, impulsivos e
intencionais. Estava acontecendo.
“A maldição caiu sobre mim, disse a Senhora de Shalott.” eu

723
Depressão entre duas montanhas.
724
Eu te amo, minha querida, meu coração, em gaélico
1690

não pensei ter falado em voz alta, até que vi o olhar assustado de
Roger. O que quer que ele poderia ter dito, porém, foi abafado
pelo grito de William Campbell.
“Opa, meninos, opa! Gritem como o diabo e lutem como
nunca!”
A encosta da montanha entrou em erupção e um esquilo em
pânico saltou de um galho acima de mim e atingiu o chão
correndo, deixando um jato de excrementos úmidos atrás dele.
Roger fez o mesmo - menos os excrementos - subindo o mais
rápido que podia por entre as árvores da encosta, agarrando-se
aos galhos para ajudar.
Eu vi William Campbell, um pouco abaixo de onde eu estava,
ainda montado em seu grande cavalo preto. Ele também me viu
e gritou, mas eu não escutei e não parei, mas levantei minhas
saias e corri. O que quer que acontecesse com Jamie nos
próximos momentos, eu estaria lá.

Roger

“VOCÊ NÃO AJUDARÁ NINGUÉM se estiver morto, e poderá


ser útil se não estiver. Você pode ser o escudeiro de Deus, mas
seguirá minhas ordens por enquanto. Fique aqui até que esteja
na hora”.
Jamie tinha colocado a mão no ombro dele, sorrindo, então se
virou nos calcanhares e gritou para seus homens que estava na
hora. Jamie dera a Roger duas pistolas decentes, em coldres,
com uma caixa de cartuchos e um chifre de pólvora725. E uma
grande cruz de madeira esculpida à mão em uma tira de couro,

725
Recipiente feito com o chifre de um animal para carregar pólvora, protegendo assim da umidade.
Normalmente, tinha uma faixa para ser amarrado ao redor do corpo.
1691

que ele deixou cair sobre a cabeça de Roger como uma última
coisa.
“Assim ninguém vai atirar em você,” ele disse. “Não pela frente,
pelo menos.”
Claire, tensa e preocupada, sorriu involuntariamente, vendo a
cruz, então entregou a Roger um cantil barulhento.
“Água”, ela disse, “com um pouco de uísque e mel. Não existe
água no cume.”
Os homens estavam prontos; eles desceram das árvores e
arbustos como um enxame, de uma vez, repletos de armas.
Rostos suados e brilhantes sob seus chapéus, dentes à mostra,
ansiosos pela luta. Roger sentiu aquela ânsia zumbir brevemente
em seu próprio sangue, mas sua parte nessa luta seria mais tarde,
entre os caídos, e a lembrança do campo de batalha em Savannah
gelou seu coração, apesar do calor do dia.
Para sua surpresa, porém, os homens estavam se aglomerando
diante dele, tirando o chapéu, olhares de expectativa em seus
rostos. Jamie apareceu de repente ao lado dele.
"Abençoe-nos antes da batalha, a mhinistear726, se você puder",
disse ele respeitosamente, e tirou o próprio chapéu, segurando-
o contra o peito.
Jesus. Que raios…
"Querido Senhor", ele começou, sem a menor noção do que
poderia vir a seguir, mas algumas palavras apareceram, e depois
mais algumas. “Proteja-nos, nós oramos, ó Senhor, e esteja
conosco neste dia na batalha. Conceda-nos misericórdia em
nossos momentos extremos e conceda-nos a graça de mostrar
misericórdia onde pudermos. Amén. Amém”, ele repetiu com
mais força, e os homens murmuraram: “Amém”, e colocaram

726
Ministro, em gaélico.
1692

seus chapéus de volta.


Jamie ergueu o rifle e gritou: “Para o coronel Campbell! Em
marcha rápida!” A milícia se uniu com um grunhido de
satisfação e partiu imediatamente em direção ao coronel
Campbell, que estava sentado em seu cavalo preto na trilha
áspera na base da montanha. Jamie olhou para eles, então se
virou de repente e pressionou a mão sobre a cruz no peito de
Roger.
"Ore por mim", disse ele em voz baixa, e então se foi.
1693

146

A MALDIÇÃO CAIU SOBRE MIM727

Claire

O TIROTEIO COMEÇOU antes que eu tivesse subido 30


metros da colina, escorregando em folhas mortas e agarrando
galhos para não cair. Em pânico, dei meia-volta e desci a ladeira
correndo, mas escorreguei quase imediatamente, tropecei em
uma pedra e caminhei alguns metros de bruços, com os braços
estendidos.
Eu bati em algum tipo de broto de árvore; ele se curvou e eu
rolei sobre ele, terminando de costas. Fiquei congelada por um
momento, ofegante, ouvindo a batalha começar para valer.
Então me virei, fiquei de quatro e comecei a rastejar montanha
acima.

Jamie

FOI RÁPIDO e foi feroz.


Frank Randall havia descrito aquilo como uma “simples luta”, e
ele não estava errado sobre isso, embora talvez não tivesse
pensando dessa forma se estivesse se contorcendo com suor e
respirando o ar cheio de fumaça de armas.
Ele deu um assobio agudo, e os poucos de seus homens que

727
No original, “The Curse Is Come Upon Me” Veja nota no título do cap 145.
1694

ouviram correram para o seu lado.


“Vamos subir, mas fiquem espertos”, disse ele, gritando por
cima do estalo das armas.
“Os provinciais têm baionetas e vão usá-las. Se o fizerem, caiam
para o lado. Voltem por outro lugar.”
Acenos com a cabeça e eles foram empurrando para cima,
parando a cada poucos metros para disparar e recarregar, desviar
para outra árvore e fazer isso de novo. Não era apenas fumaça
de armas agora, mas o cheiro de árvores machucadas, seiva e
madeira queimada. Ainda não eram as baionetas.

Claire

TIVE QUE parar, trinta metros abaixo do cume. Eu estava


grudada em uma grande nogueira, olhos fechados, segurando
firme. Uma bala bateu no tronco logo acima da minha mão e eu
puxei meus braços para trás em pânico. Mais balas zumbiam por
entre as árvores, rasgando folhas, fazendo pequenos plocks!
afiados enquanto elas batiam na madeira. Ocasionalmente
breves gritos e grunhidos nas proximidades indicavam que carne
estava sendo atingida também.
Eu enfiei meus dedos com tanta força na casca que pedaços
afiados ficaram presos sob minhas unhas, mas eu estava com
muito medo para me preocupar com isso. Eles viram que eu me
movi; um instante depois, tiros atingiram a árvore em uma
fuzilaria que fez voar cascas e lascas de madeira; elas picaram
meu rosto e voaram em meus olhos. Apertei-me com força
contra a árvore, os olhos bem fechados e lacrimejando, usando
toda a minha força para não correr morro abaixo, gritando. Eu
estava tremendo em todos os lugares e não sabia dizer se era suor
ou urina escorrendo pelas minhas pernas e não me importei.
1695

Parecia continuar por muito tempo. Eu podia ouvir meu coração,


retumbando em meus ouvidos, e me agarrei ao som. Eu estava
com medo – muito assustada – mas não mais em pânico. Meu
coração ainda batia; eu não tinha sido baleada.
Ainda.
A memória de Monmouth estremeceu através de mim. Meus
olhos estavam queimando e cheios com a vertigem de folhas
girando e um céu vazio e eu senti meu sangue escorrer, meus
joelhos cedendo...
"Upa! Upa728! Mais um, mais um!” Era a voz de Campbell, atrás
e abaixo de mim. E no segundo seguinte, gritos e berros e gritos
irromperam e homens correram para perto de mim, tinindo e
batendo e berrando quando eles conseguiam respirar o suficiente
para fazê-lo.
Jesus, onde está Roger?

Jamie

ELE ENFIOU A vareta no rifle diversas vezes729. Parou para


engolir ar e tocou a bolsa com as balas de munição em seu cinto.
Quantas ainda tinha? O suficiente…
Eles estavam perto o suficiente do prado agora para poder ver o
inimigo. Ele saiu do abrigo de sua árvore e atirou. Então ele
ouviu um assobio fraco e agudo. Ferguson, era ele. Randall disse
que o homenzinho não tinha voz suficiente para gritar acima do
rugido da batalha, então ele usava um apito para controlar suas
tropas. Como chamando uma matilha de cães pastores, pensou.
Um grito veio de cima, repetido e ecoou pelo prado.

No original, “whoop”. Grito para estimular homens em uma batalha.


728
729
Era a maneira de recarregar os rifles na época, enfiando as balas e a pólvora pelo cano da arma com
uma vareta.
1696

“Preparem as baionetas!”

Claire

Houve gritos dispersos vindos de cima, distantes. Então, de


repente, houve outro rugido áspero dos que estavam cercados e
a floresta estava se movendo, homens correndo do abrigo de
suas árvores, saltando, rastejando para cima em torno de mim,
chifres de pólvora balançando e rifles na mão. Ouvi um assobio
estridente através do tumulto, muito acima, e depois outro e
outro. Ferguson, reunindo suas tropas.
Mas agora eu estava ouvindo uma nova eclosão de batalha -
muito acima de mim. Alguns tiros agora, e o tipo de grito que os
homens fazem quando estão além das palavras. Um assobio
estridente e o grito espalhado de “Baionetas!”
Ainda tremendo, me forcei a me levantar. Passei uma manga no
rosto e vi a floresta borrada e despedaçada ao meu redor. Galhos
quebrados pendiam das árvores, e o ar estava pesado com o
cheiro de plantas esmagadas e fumaça de pólvora. E os homens
ainda corriam morro acima, ofegantes, esvoaçando por entre as
árvores; um bateu em mim de passagem e eu caí de costas contra
a grande nogueira.
“Tia!” O jovem Ian apareceu de repente, agarrando meu braço.
“O que você está fazendo aqui? Você está bem? O que você fez
com Roger Mac?”
Eu não consegui mais do que um leve balido em resposta quando
ouvi a voz do Coronel Campbell berrando em algum lugar
abaixo de mim.
“Mais um, rapazes! Mais um upa!”
Upas em resposta surgiram de todos os homens perto o
1697

suficiente para ouvi-lo. Ian desapareceu colina acima na fumaça


que crescia, deixando-me balançando como um dos galhos
quebrados de uma árvore, pendurado por um fio de casca.
De repente, houve um barulho e um deslizamento de poeira
quando alguém escorregou e ouvi uma maldição abafada, e eu
me virei para olhar para o rosto de uma mulher. Ela estava tão
assustada quanto eu; nos encaramos por um instante, e não
registrei nada além de seus olhos, negros de terror. Ela passou
correndo por mim, tropeçando e caindo e subindo no que parecia
o mesmo movimento, e desapareceu montanha abaixo. Pisquei,
sem ter certeza de tê-la visto. Mas eu tinha; ela rasgou o vestido
e deixou uma tira de seu vestido de chita amarelo esvoaçando
em um corniso730. Olhei em volta, atordoada.
"Que diabos você está fazendo aqui?" O coronel Campbell
estava de pé agora, ao meu lado, ainda em mangas de camisa, o
rosto preto de fumaça de pólvora.
“Desça, desça imediatamente, senhora!” Ele não parou para ver
se eu obedeci, mas correu para cima, gritando. Houve gritos
vindos de cima e uma onda de homens descendo, mas apenas
um pouco, depois se movendo para o lado, seguindo um oficial
para outra tentativa. Dois corvos desceram deslizando e
pousaram em uma árvore próxima, me olhando com interesse
casual. Um notou o trapo amarelo esvoaçante e pulou para
baixo, bicando-o.
Minha boca estava seca e, quando levantei a mão para enxugar
o suor da testa, percebi que meu rosto estava marcado com o
padrão da casca da nogueira.
O apito soou acima, depois abafado por um tremendo grito - e o

730
Existem alguns relatos (não necessariamente históricos) que Patrick Ferguson viajava acompanhado de
duas amantes, Virginia Sal e Virginia Poll (ou Paul). Virginia Sal, ruiva, teria sido morta na batalha e
posteriormente enterrada junto com Patrick Ferguson. Virginia Poll (ou Paul) teria fugido e contado aos
rebeldes alguns detalhes físicos de Patrick Ferguson, permitindo que ele pudesse ser identificado no meio
da batalha. Talvez possamos imaginar que essa mulher pudesse ser essa Virginia.
1698

som de tiros novamente, em grande número. Os atacantes


chegaram ao prado.

Jamie

O LENÇO AO REDOR da cabeça dele estava ensopado, suor e


fumaça das armas ardiam em seus olhos. Ele piscou com força
para limpá-los, sentiu o choque e o baque do disparo em seus
ossos, o peso do rifle em suas mãos, batendo com força em seu
ombro dolorido. Verde... A campina estava cheia de homens,
salpicados com coágulos de uniformes verdes. Ele atirou e um
caiu.
O assobio de Ferguson soou alto e fino em meio ao barulho. O
homem ainda estava em seu cavalo, tentando reunir seus
homens, embora agora fosse como reunir peixes em uma rede -
eles avançavam para lá e para cá, baionetas ainda presas,
esfaqueando o ar, alguns atirando, mas sendo empurrados para
mais perto, empurrando enquanto se esforçavam para encontrar
um alvo.
Por que não?
Ele tossiu de novo, a fumaça raspando em seu peito, e cuspiu.
Não fazia mais do que alguns minutos agora, e ele sabia pelo
livro de Randall o que aconteceria com Ferguson731. Poupá-lo
sabendo o que vai acontecer com ele... Que seja um escocês,
pelo menos... Ele não teve tempo para pensar mais, antes que sua
visão se fixasse na camisa xadrez e seu dedo apertasse o gatilho.
Ele deu um passo para o lado, seguindo seu alvo, e algo se
prendeu em seu pé. Ele chutou o arbusto grudado, impaciente, e

731
Os relatos são que Ferguson foi jogado para fora do seu cavalo em meio à batalha, mas seu pé teria
ficado preso no estribo. O cavalo, sem direção, foi para o lado dos patriotas. Ferguson, ao se ver junto a
seus inimigos, teria sacado sua pistola e matado o homem que se aproximava para solicitar sua rendição.
Teria então sido alvo de pelo menos oito disparos.
1699

um espinho perfurou sua panturrilha.


“Ifrinn!” Ele estremeceu e olhou para baixo. A grande cobra que
o havia mordido estava se contorcendo em sua perna em pânico,
e ele se jogou para longe, chutando em seu próprio pânico.
A primeira bala o atingiu no peito.
1700

147

UM MONTE DE SANGUE

Parecia durar para sempre, mas eu sabia que foram apenas


alguns minutos, foram apenas alguns minutos a mais. Gritos
vindos de cima, berrando, atirando... o estrondo de mosquetes
disparados e o estalo mais agudo de rifles... Senti cada tiro como
se tivesse me atingido e estremecido a minha árvore.

OUVI quando a maré virou. Um instante de silêncio e mais tiros


e gritos, mas agora era diferente. Menos barulho, menos tiros...
O apito silenciou e os gritos aumentaram, mas tinham um tom
diferente. Selvagem. Exultante.
Eu não podia esperar mais. Deixei o refúgio da minha árvore e
subi a encosta da montanha, escorregando, caindo e me
arrastando de quatro.
Cheguei alto o suficiente para poder ver o que estava
acontecendo. Caos, mas o tiroteio havia parado. Subi mais alto,
para o prado. Eu estava encharcada de suor, minhas pernas
tremendo com a tensão da última hora e meu coração batendo
como uma máquina a vapor.
Onde você está? Onde você está?
Havia uma multidão de homens de um lado do prado; os
prisioneiros legalistas, metade deles em uniformes provinciais
verdes, o resto fazendeiros como nossos próprios homens...
Nossos próprios — tentei olhar em todas as direções ao mesmo
tempo, para ver, se não o próprio Jamie, alguém que eu
conhecia.
1701

Eu vi Cyrus. O Árvore Alta, parecendo ter sido atingido por um


raio, o rosto preto de fumaça de pólvora, exceto onde o suor
tinha deixado rastros. Ele estava de pé, porém, olhando ao redor
de uma forma meio atordoada.
As pessoas estavam se movendo, em todos os lugares, se
acotovelando, circulando - um jovem correu na minha direção,
me desequilibrando. Eu me segurei e comecei a dizer “me
desculpe” por reflexo.
Então eu vi que ele tinha o rifle de Jamie.
“Onde você conseguiu essa arma?” Eu disse ferozmente, e o
agarrei pelo braço, apertando o mais forte que pude.
"Que diabos é você?" Ele ficou chocado e ofendido, tentando se
afastar. Eu cravei meus dedos em sua axila, e ele gritou e
empurrou, tentando fugir.
"Onde você conseguiu isso!" Eu gritei.
Eu estava agarrada firmemente e ele gritou também, se
contorcendo e xingando. Ele me chutou com força na canela,
mas soltou o rifle e eu soltei seu outro braço e o agarrei.
"Diga-me onde diabos você conseguiu isso, ou então juro por
Deus, eu vou bater em você até te matar com isso!"
Seus olhos ficaram brancos, como um cavalo em pânico, e ele
se afastou de mim, com as mãos estendidas em sinal de
apaziguamento.
"Ele está morto! Ele não precisa mais disso!”
“Quem está morto?” Mal ouvi as palavras; o sangue tinha subido
tão forte em meus ouvidos que eles estavam zumbindo. Mas uma
grande mão me agarrou pelo ombro e me puxou para longe do
menino. Ele prontamente se virou para fugir, mas Bill Amos -
pois era ele - me soltou e com duas passadas gigantes ele
segurou o menino, pegou-o com as duas mãos e o sacudiu como
1702

um trapo.
"O que está acontecendo, senhora?" ele perguntou, colocando o
menino no chão e se virando para mim. As palavras eram
calmas, mas ele não; ele estava tremendo todo com uma mistura
de sede de sangue e reação, e eu pensei que ele poderia
simplesmente matar o menino inadvertidamente; seu grande
punho estava apertando o ombro do menino ritmicamente, como
se ele não pudesse parar, e o menino estava gritando e
implorando para ser solto.
“Isto...” Eu não conseguia segurar o rifle; ele escorregou do meu
alcance e eu mal o peguei, sua extremidade batendo no chão. “É
de Jamie. Eu preciso saber onde ele está!”
Amos soltou um longo suspiro e soprou ar por um momento,
assentindo.
“Onde está o coronel Fraser?” ele perguntou ao menino,
sacudindo-o novamente, mas com mais delicadeza. "Onde está
o homem de quem você tirou isso?"
O menino estava chorando, a cabeça balançando e as lágrimas
marcando a sujeira e as manchas de pó em seu rosto.
"Mas ele está morto", disse ele, e apontou um dedo trêmulo em
direção a um pequeno afloramento rochoso perto da borda da
selada, talvez a uns quarenta e cinco metros de distância.
"Ele não está, maldito!" Eu disse, e o esbofeteei. Eu o empurrei,
mancando – seu chute havia machucado minha canela, embora
eu não sentisse dor – deixando Bill Amos lidar com o que ele
quisesse lidar.
Encontrei Jamie deitado em um pedaço de grama seca, logo atrás
do afloramento. Havia muito sangue.
-.-.-
1703

CAÍ de joelhos e tateei freneticamente através de suas roupas


pesadas, molhadas de suor e sangue.
“Quanto deste sangue é seu?” eu perguntei.
"Todo ele." Seus olhos estavam fechados, seus lábios mal se
movendo.
“ Maldita porra. Onde você foi atingido?”
"Em toda parte."
Eu estava com um medo extremo que ele estivesse certo, mas eu
tinha que começar de algum lugar. Eu podia ver que uma perna
de suas calças estava encharcada de sangue. Sem jorro arterial,
no entanto, isso era bom... Comecei a sentir meu caminho pela
coxa.
"Dinna ... fash, Sass..." Ele ofegou profundamente. Com
tremendo esforço, ele abriu os olhos e virou a cabeça o suficiente
para olhar para mim.
"Eu... não... estou ... com medo", ele sussurrou. "Eu não estou."
Um acesso de tosse tomou conta dele. Estava quase em silêncio,
mas a violência disso sacudiu todo o seu corpo. Ele não estava
tossindo sangue...
Por que ele está tossindo? Pneumotórax? Asma cardíaca? Sua
camisa estava encharcada. Se uma bala tivesse tocado seu
coração, mas não penetrado...
"Bem, eu estou com muito medo!" Eu vociferei, e apertei sua
coxa, cavando meus dedos em sua carne sem resistência. "Você
acha que eu vou sentar aqui e ver você morrer aos poucos?"
"Sim." Seus olhos se fecharam, e a palavra não passou de um
sussurro. Seus lábios estavam brancos.
Ele parecia completamente certo sobre isso, e o medo que estava
fervilhando sobre minha pele de repente se enterrou e agarrou
meu coração com suas garras.
1704

Seu sangue estava se espalhando lentamente, escuro e venoso.


Eu estava ajoelhada na lama encharcada de sangue e havia
enormes manchas no meu avental, vermelhas-escuras; senti
calor na minha pele, embora devesse ser apenas o calor do dia.
"Você não pode", eu disse, impotente. "Jamie, você não pode."
Seus olhos se abriram e eu os vi olhando através de mim, como
se estivessem fixos em algo muito, muito distante.
"Me... per... doe ..." ele disse, sua voz não mais que um fio, e eu
não sabia se ele falava comigo ou com Deus.
“Oh, Jesus,” eu disse, sentindo o gosto de ferro frio na minha
língua. “Jamie... por favor. Por favor, não vá.”
Suas pálpebras tremeram e se fecharam.

-.-.-

NÃO CONSEGUI FALAR. Não consegui me mexer. A dor me


dominou e eu me enrolei em uma bola, ainda segurando seu
braço, segurando-o com ambas as mãos, com força, para evitar
que ele se afogasse, caísse na terra sangrenta, longe de mim para
sempre.
Por baixo da dor havia fúria, e o tipo de desespero que permite
a uma mulher tirar um automóvel de cima de seu filho. E com o
pensamento de uma criança e o cheiro de sangue, eu estava por
uma fração de segundo não ajoelhada no sangue de Jamie em
uma planície escaldante de rendição, mas em tábuas estilhaçadas
por um fogo crepitante, ouvindo gritos e cheirando sangue, sem
nada para me segurar a apenas um pedaço molhado de vida e
aquela frase: Não desista.
Eu não desisti. Agarrei-o pelo ombro e consegui colocá-lo de
costas, empurrei o casaco encharcado para trás e rasguei sua
1705

camisa no meio. O ferimento de bala em seu peito era evidente,


ligeiramente à esquerda do centro, jorrando sangue. Jorrando,
não esguichando. E não ouvi o som característico de um
ferimento no peito; onde quer que a bala estivesse, ela - ainda -
não havia penetrado em um pulmão.
Eu me sentia como se estivesse me arrastando pelo melaço,
movendo-me com uma lentidão indescritível - e ainda assim
estava fazendo uma dúzia de coisas ao mesmo tempo:
amarrando um torniquete em volta da coxa dele (a artéria
femoral estava bem, graças a Deus, porque se não estivesse, ele
já estaria morto), aplicando pressão no ferimento no peito,
gritando por socorro, apalpando seu corpo em busca de outros
ferimentos, com uma mão, gritando por socorro…
“Tia!” Ian estava de repente de joelhos ao meu lado. "Ele está.."
“Empurre isso!” Agarrei sua mão e apertei na compressa sobre
o ferimento no peito. Jamie grunhiu em resposta ao impacto, o
que me deu um pequeno choque de esperança. Mas o sangue
estava se espalhando sob ele.
Eu trabalhei obstinadamente.
-.-.-

“ESCUTE-ME,” eu disse, depois do que pareceu um longo


tempo. Seu rosto estava fechado e branco e o estrondo da
multidão me alcançou como um trovão distante de um céu azul
claro. Senti o som se mover através de mim e fixei minha mente
no azul, vasto e vazio, paciente, pacífico — esperando por ele.
"Escute!" Eu disse, e apertei seu braço com força. “Você acha
que vai morrer aos poucos, mas não vai. Você vai viver aos
poucos. Comigo."
“Tia, ele está morto.” A voz de Ian era baixa, áspera com
lágrimas, e sua grande mão quente no meu ombro. "Venha.
1706

Levante-se agora. Deixe-me levá-lo. Vamos levá-lo para casa.”

-.-.-

EU NÃO VOU DESISTIR. Eu não conseguia mais falar, não


tinha forças para isso. Mas eu não iria desistir e eu não iria me
mover.
Ian falava comigo de vez em quando. Outras vozes vieram e se
foram. Alarme, preocupação, raiva, desamparo. eu não escutei.

-.-.-

AZUL. NÃO É vazio. É lindo.

-.-.-

ENCONTREI QUATRO feridas. Uma bala atravessou o


músculo da coxa dele, mas errou tanto o osso quanto a artéria.
Bom. Outra havia marcado seu lado direito, abaixo da caixa
torácica, um sulco profundo, sangrando profusamente, mas não
havia penetrado em seu abdômen, graças a Deus. Outra o atingiu
na rótula esquerda. Sorte com relação ao sangramento mínimo,
e quanto à sua condição de caminhar no futuro, isso poderia se
resolver sozinho depois . Quanto ao ferimento no peito...
Não havia penetrado inteiramente em seu esterno ou ele estaria
morto, pensei. Mas pode ter atravessado e rompido seu
pericárdio ou um dos vasos menores do coração, sua dinâmica
diminuída pelo esterno, mas ainda permitindo danos.
"Respire", eu disse a ele, percebendo que seu peito não estava
mais subindo visivelmente. "Respire!"
Não vi nenhum movimento no peito, mas quando coloquei
1707

minha mão na frente de sua boca, pensei que podia detectar o


movimento fraco do ar. Eu não podia fazer compressões no
peito, não com um esterno rachado e uma bola invisível dentro
ou embaixo dele.
“Respire,” eu disse, baixinho, enquanto eu pressionava um
curativo novo em seu joelho e o envolvia às pressas com um
pedaço de bandagem para dar uma leve pressão. "Por favor, por
favor, por favor, respire..."
O jovem Ian havia se materializado novamente em algum
momento e estava agachado ao meu lado, entregando-me as
coisas da minha sacola quando eu precisava delas. Ele parecia
estar rezando a Ave Maria, embora eu não pudesse dizer se ele
estava falando gaélico ou moicano. Eu me perguntei vagamente
como eu sabia que era a Ave Maria e lentamente percebi que eu
tinha a visão de um vasto espaço azul em minha mente. “Azul,
como o manto da Virgem...” Pisquei para afastar o suor que
ardia e vi o rosto de Jamie, composto e tranquilo. Ele estava
vendo o céu, e eu vendo através de seus olhos fechados?
“Você está enlouquecendo, Beauchamp,” eu murmurei, e
continuei trabalhando, desejando que o sangramento parasse.
"Alimente-o com água com mel", eu disse a Ian.
“Ele não consegue engolir, tia.”
“Porra, eu não me importo! Dê a ele!”
Uma mão alcançou o ombro de Ian e pegou o cantil. Roger, rosto
e mãos manchados de sangue e os cabelos pretos soltos,
molhados de suor, cheios de folhas vermelhas e amarelas.
Eu poderia ter soluçado, com o pequeno alívio de tê-lo ali. Ele
segurou o cantil na boca de Jamie com uma mão; a outra
alcançou e tocou meu rosto suavemente. Então sua mão pousou
no ombro de Jamie e o sacudiu, menos gentilmente.
1708

“Você não pode morrer, companheiro. Os presbiterianos não


fazem a Extrema Unção.”
Eu poderia ter rido, se eu tivesse algum fôlego de sobra. Minhas
mãos e braços estavam vermelhos até os cotovelos.
-.-.-

EU NÃO DESISTIRIA. Eu não conseguia mais falar, não tinha


forças para isso. Mas eu não iria desistir e eu não iria me mover.
Ian falava comigo de vez em quando. Outras vozes vieram e se
foram. Alarme, preocupação, raiva, desamparo. Ian e Roger. Eu
não escutei.

-.-.-

AZUL.
Tão bonito.
Não é vazio.

-.-.-

MEU ROSTO ESTAVA pressionado contra seu peito, minha


boca em seu esterno ferido, o gosto prateado de sangue e sal de
suor em minha língua. Achei que podia sentir a lenta – tão lenta
– batida de seu coração.
Tum… Tum……… Tum …… Tum…
Pensei no coração acelerado de Bree, na batida pequena e
agitada do pequeno David sob meus dedos, tentei sentir meu
próprio coração na ponta dos dedos, forçar toda aquela vida no
dele.
1709

Não desista.

-.-.-

EU ESTAVA VAGAMENTE ciente, de tempos em tempos, de


que coisas estavam acontecendo ao meu redor. As pessoas
estavam gritando, uns poucos tiros, mais gritos...
Ouvi a voz de Roger, mas não percebi, não pude dispensar
atenção suficiente para saber o que ele estava dizendo. Eu senti
isso, porém, quando ele se ajoelhou ao lado de Jamie e colocou
a mão nele. Algo cintilou através dele e através de mim, e eu
respirei isso como oxigênio.

-.-.-

O CHEIRO DE JAMIE MUDOU, e isso me assustou muito. Eu


podia sentir o cheiro de poeira quente e cavalos e metal quente
e fumaça de arma e o fedor lamacento das poças de xixi de
cavalo e o cheiro forte de pânico de plantas quebradas e troncos
de árvores estraçalhados na encosta abaixo. Eu podia sentir o
cheiro do suor e do sangue de Jamie — Deus, o sangue, tinha
saturado meu corpete e espartilho e o tecido grudado em mim e
nele, uma crosta fina de viscosidade quente, não o cheiro de
metal cortado de sangue fresco, mas o grosso cheiro de açougue.
O suor estava frio em sua pele, escorregadio e quase inodoro,
nenhum cheiro vital de masculinidade mais nele.
Sua pele estava fria sob a camada de suor e sangue e eu me
apertei contra ele o mais forte que pude, segurando firme as
formas de suas costas, tentando me forçar nas fibras de seus
músculos, alcançar o coração dentro da gaiola óssea de seu
peito, fazê-lo bater.
1710

De repente, percebi que havia algo quente e redondo em minha


boca, um gosto de metal, mais forte que sangue. Tossi, levantei
a cabeça o suficiente para cuspir e descobri que era uma bala de
mosquete, quente do seu corpo.
Ele ainda estava respirando... apenas uma leve lufada de ar na
minha testa, perceptível apenas porque esfriava meu próprio
suor.
Respire, pensei ferozmente, e pressionei minha testa contra seu
peito, contra o pequeno buraco escuro da ferida, vendo o rosa
manchado de sangue e o azul faminto de ar de seus pulmões por
baixo. Alcancei seu coração, mas não tinha palavras, apenas o
peso de sua batida suave e lenta, o movimento, como duas
pequenas bolas pesadas que eu segurava, uma em cada mão,
uma mais pesada que a outra, e as jogava de um lado para o
outro, para lá e para cá, pegando cada uma separadamente, mas
juntas.
Tum-tum... tum-tum... tum-tum...
"Não deveríamos... levá-la embora?" Uma voz áspera e incerta
em algum lugar muito acima de mim. "Quero dizer... ele está..."
"Deixe-a." Jovem Ian. Ele se sentou ao meu lado; ouvi o ruído
da sujeira sob seus mocassins e o suspiro do couro de gamo
esticado em suas coxas.
Eu respirei rápido e soluçando, o mais fundo que pude, puxando
ar para nós dois, e o Jovem Ian descansou a mão no meu ombro,
hesitante, sem saber o que deveria fazer, mas ele estava lá.
Lá. Uma forma sólida sem forma, brilhando com uma luz
fraturada; Ian estava ferido, mas não muito, eu podia sentir sua
força pulsar e diminuir, pulsar e diminuir...
Eu senti o pulso dele através da minha carne. Por um instante,
fiquei desorientada, não consegui encontrar os limites do meu
1711

próprio corpo. Senti a lenta rendição de Jamie em minha barriga


e veias, o pulso forte de Ian em meu coração e artérias.
Onde estou?
Concluí, vagamente, que não importava.
Ajude-me, eu disse silenciosamente, e abdiquei de meus próprios
limites.
1712

148

NÃO... AINDA...

FICAMOS LÁ, NÓS QUATRO, o resto do dia, a noite seguinte


e a maior parte do dia seguinte.
Quando finalmente retomei o contato com o mundo, estava
enrolada ao lado de Jamie, uma folha de lona balançando com
um vento suave acima de nós.
“Aqui, tia.” As mãos do jovem Ian deslizaram sob meus braços,
e ele me levantou suavemente para a posição sentada.
"O que…?" Eu resmunguei, e ele colocou um cantil na minha
boca. eu bebi. Era cidra e eu nunca tinha provado nada melhor.
Então me lembrei.
"Jamie?" Eu olhei turva para ele, mas não consegui fazer meus
olhos focalizarem.
"Ele está vivo, Claire." Era Roger, agachado ao meu lado,
sorrindo.
Injetado de sangue e barba por fazer, mas sorridente. “Eu não
sei como você fez isso, mas ele está vivo. Tínhamos medo de
movê-los - vocês dois, quero dizer, porque você não desistiria
dele.”
Eu olhei em volta. Ainda estávamos atrás do afloramento
rochoso, protegidos do campo de batalha, mas eu podia ouvir -
e cheirar - a limpeza. Grunhidos e conversa e o barulho de pás
e o baque suave de terra jogada de lado. Enterrando os mortos.
Mas não nós.
1713

Eu coloquei a mão em Jamie. Ele parecia morto. Eu certamente


me sentia morta. Mas aparentemente não estávamos.
O peito de Jamie se moveu sob minha mão. Ele estava
respirando, e leve como o movimento era, eu senti como se o
vento suave se movesse através de mim.
“Você acha que é seguro movê-lo, tia?” O jovem Ian perguntou.
“Roger Mac encontrou uma casa de fazenda, não muito longe,
onde vocês podem ficar um pouco, até que ambos estejam fortes
o suficiente para viajar."
Molhei meus lábios rachados e me inclinei sobre Jamie.
"Você pode me ouvir?" Eu disse.
Seu rosto se contraiu brevemente, ficou imóvel e então – depois
de um momento agonizantemente longo – seus olhos se abriram.
Apenas uma fenda azul-escura com borda vermelha, mas aberta.
“Sim,” ele sussurrou.
“A batalha acabou. Você não está morto.”
Ele me olhou por um longo momento, sua boca ligeiramente
aberta.
“Não... ainda,” ele disse, no que eu pensei ser um tom bastante
relutante.
"Vamos para casa", eu disse.
Ele respirou por um minuto, então disse: "Bom", e fechou os
olhos novamente
1714

149

FILHOS DA PUTA BRAVOS, IRASCÍVEIS E DIFÍCEIS

Fraser's Ridge
22 de outubro de 1780

"EU NÃO VOU MORRER dormindo", Jamie disse


teimosamente. “Quero dizer, se o Senhor escolher me levar
enquanto eu estiver na minha cama, eu irei, é claro. Mas se vou
morrer pelas suas mãos, quero estar acordado.”
Minhas mãos tremiam; dobrei-as sob o avental, tanto para
esconder meu tremor quanto para controlar a vontade de
estrangulá-lo.
"Você tem que estar adormecido", eu disse, tão razoavelmente
quanto pude, o que não era tão razoável assim. “Sua perna tem
que ficar completamente imóvel, e eu não consigo controlar isso
se você estiver acordado. Eu não me importo o quanto você
pensa que é forte, você não vai conseguir ficar quieto o
suficiente, e até mesmo amarrando você à mesa - o que eu
realmente pretendo fazer” – eu o encarei – “não seria o suficiente
para te imobilizar."
"Então." Minhas mãos pararam, graças a Deus, e eu as tirei de
debaixo do avental, peguei a máscara de éter e apontei um dedo
para ele.
“Ou você se deita agora e a usa, ou eu faço Roger e Ian te
amarrar e então você a usa. Mas você vai usá-la, goste ou não.”
Ele imediatamente se sentou e tirou os pés da mesa,
1715

aparentemente com a intenção de tentar fugir, rótula rachada ou


não.
“Não, camarada.” Roger agarrou-o por um braço e um ombro, e
Ian, deslizando atrás da mesa como um mocassim d'água732,
agarrou o outro braço de Jamie com uma mão e o antebraço na
garganta.
“Deite-se, tio,” ele disse suavemente, apertando o cotovelo na
garganta e puxando Jamie de volta contra ele. "Vai ficar tudo
bem. Tia Claire não quer matá-lo, e se por acidente ela o fizer,
Roger Mac é um ministro legítimo agora e ele lhe dará um belo
funeral."
Jamie fez um barulho em algum lugar entre um gorgolejo e um
rosnado, seu rosto ficando vermelho escuro e congestionado
enquanto lutava. Eu estava realmente feliz em ver que ele tinha
sangue suficiente agora para conseguir tal cor.
"Deixem-no ir." Eu acenei para Roger e Ian, e eles
relutantemente o soltaram. Ele me olhou, seu peito arfando, mas
não tentou fugir quando eu cheguei mais perto. Eu coloquei
minha mão em seu joelho ileso e me inclinei para falar
calmamente para ele.
"Se você se deitar sozinho, eu vou te deixar inconsciente antes
que eles te amarrem", eu disse.
“E vou desamarrar você assim que terminar a cirurgia. eu não
vou deixar você acordar amarrado. Eu prometo."
Ele estava conseguindo respirar ar suficiente agora, e seu rosto
perdeu o olhar de apreensão incipiente.
"Você pode me prometer que eu vou acordar?"
Ele falou rouco, e não só por causa do engasgo.

732
Tipo de serpente nativa da região sudeste dos Estados Unidos. É a única víbora semi-aquática
conhecida no mundo.
1716

"Eu não posso prometer isso", eu disse, tão firmemente quanto


pude. Eu apertei seu joelho.
"Mas eu aposto na base de cem para um que você vai acordar."
Ele olhou para mim inquisitivamente por um longo momento,
então suspirou.
“Sim, bem. Sou jogador desde pequeno. Suponho que não é hora
de desistir de apostar.”
Inclinando-se para trás nas palmas de suas mãos, ele trouxe as
pernas de volta para cima da mesa. O esforço para mover a perna
ferida fez o suor brotar em sua testa, mas ele manteve os lábios
apertados e não fez nenhum som quando Roger e Ian pegaram
seus ombros e o ajudaram a deitar.
Um guardanapo fervido estava no balcão atrás de mim, exibindo
quatro tiras de ouro martelado. Bree os fez e furou
meticulosamente os pequenos orifícios que eu usaria para
aparafusá-los no osso – os parafusos de aço cortesia do relógio
de Jenny, oferecidos imediatamente quando pedi.
Esta seria uma cirurgia complicada e meticulosa, mas eu estava
sorrindo por trás da minha máscara enquanto eu ensaboava e
barbeava, depois esfregava a pele do joelho com álcool. A
situação me lembrou fortemente do dia em que estava
preparando para amputar sua perna mordida por uma cobra - esta
perna; eu ainda conseguia ver o sulco estreito que a mordida
deixou, logo acima do tornozelo, quase escondido pela topete de
cabelo louro-ruivo. Hoje, não temi por sua vida, e me alegrei por
saber que o que eu ia fazer com o joelho dele não iria machucá-
lo enquanto eu estava fazendo isso. Olhei para cima da mesa
para ele; ele encontrou meu olhar, e fez uma careta para mim.
Eu movi minhas sobrancelhas para ele e fiz uma careta também,
zombando dele. Ele bufou e se deitou, mas seu rosto relaxou.
Era com isso que eu estava mais feliz; ele lutou comigo, e
1717

mesmo tendo sido forçado a ceder, ele não estava abrindo mão
de seu direito de ficar de mal humor a esse respeito.
Ao longo dos anos, eu tinha visto muitos pacientes doces,
amigáveis e obedientes, que sucumbiram em poucas horas às
suas doenças. Os filhos da puta (de ambos os sexos) bravos,
irascíveis e difíceis quase sempre sobreviviam.
A gaze de algodão da máscara ficou úmida na minha mão e eu
limpei minha mão no meu avental. Acenei para a garrafa de éter
no balcão, e Bree me entregou, olhos preocupados fixos em seu
pai, que havia cruzado as mãos sobre a barriga e estava olhando
obstinadamente para o teto, parecendo perturbadoramente um
cavaleiro medieval na cripta de alguma catedral.
“Tudo o que você precisa é de uma espada presa ao peito e um
cachorrinho sob seus pés,” ela disse a ele. "E talvez uma
armadura".
Ele bufou levemente, mas seu rosto relaxou um pouco.

“Respire lenta e profundamente,” eu disse, em uma voz baixa e


calma. O cheiro de éter havia subido como um fantasma quando
abri a garrafa e vi Ian segurar sua respiração quando o alcançou.
Os olhos de Jamie encontraram os meus e seus músculos ficaram
tensos enquanto eu colocava a máscara sobre o nariz e a boca
dele.
"Só respire. Você vai se sentir tonto por um momento, mas
apenas por um momento.” As gotas claras caíram uma a uma na
gaze e desapareceram. “Respire. Conte para ele, Bree,
retroativamente a partir de dez.
Ela pareceu assustada, mas obedientemente começou: "Dez...
nove... oito... sete..." As pálpebras dele tremeram e então se
abriram quando ele sentiu o éter.
"Respire", eu disse com firmeza. “… seis… cinco…”
1718

“Ele se foi,” Roger disse calmamente, então percebeu o que ele


disse. "Quero dizer - ele está dormindo."
"…três dois um."
Entreguei a garrafa a Roger.
“Certifique-se de que ele permaneça assim,” eu disse. “Uma
gota a cada trinta segundos.”
Fui lavar as mãos com álcool uma última vez e verifiquei os
instrumentos e suprimentos que havia preparado, enquanto Ian
e Bree o amarravam firmemente à mesa com trapos e bandagens
de linho. Seus dedos relaxaram e suas mãos pendiam flácidas
quando pousaram seus braços ao lado do corpo. A luz era boa;
os pelos finos de seus braços e pernas brilhavam dourados, e o
sangue que escorria de seu curativo era da cor do coração de uma
rosa. Minha própria respiração se acalmou e meu coração batia
devagar; eu podia sentir isso na ponta dos meus dedos. Algum
santo estava comigo agora. Eu queria alisar o cabelo macio para
trás da testa dele, mas não queria quebrar o arremedo de
esterilidade que eu tinha, então deixei isso para lá.
Jamie estava amarrado tão firmemente quanto um barril de
tabaco no porão de um navio, mas Brianna segurou sua perna e
a firmou, só para ter certeza. Eu acenei com a cabeça para ela,
me virei para o meu trabalho e abri a pele sobre a rótula de Jamie
o mais esticada que pude.
Peguei uma compressa, e o cheiro ardente de álcool juntou-se ao
almiscarado do éter, abafando o cheiro dos pinheiros e do tronco
do castanheiro da janela.
"Cheira a um hospital de verdade, não é?" eu disse, e amarrei
minha própria máscara apertada no meu rosto.
-.-.-
1719

VI JAMIE acordar em segurança, com o joelho enfaixado e com


a tala, e uma considerável dose de láudano administrada para
dor. Deixando-o dormindo no consultório por enquanto,
caminhei pelo corredor em direção à cozinha, me sentindo um
pouco faminta, embora com um profundo sentimento de
satisfação. A cirurgia tinha transcorrido muito bem; ele tinha
ossos bons e densos que se juntariam bem, e enquanto a
recuperação seria sem dúvida dolorosa, eu tinha certeza de que
ele andaria facilmente novamente, no tempo adequado.
A casa estava silenciosa; meus assistentes se dispersaram: Fanny
estava andando em algum lugar com Cyrus, e o resto deles tinha
ido todos para a cabana dos Murrays para beber cidra de maçã e
ordenhar as cabras. Fiquei, portanto, um tanto surpresa ao ver
Jenny na cozinha, sentada sozinha no banco, olhando
contemplativamente para o grande caldeirão, fumegando
suavemente no fogo.
"Seu irmão está indo bem", eu disse casualmente, e abri o
guarda-comidas para ver o que estava disponível.
“Bom,” ela disse, distraidamente, mas então prestou atenção.
"Isto é - sim, isso é muito bom. Ele vai andar sem poblemas,
você acha?
“Não por algumas semanas, provavelmente,” eu disse. “Mas ele
certamente vai andar, e vai ficar cada vez mais fácil, quanto mais
ele fizer isso.” Encontrei três quartos de uma torta de pêssego
seco e trouxe de volta para a mesa. "Você quer comer um pedaço
disso comigo?"
“Não,” ela disse automaticamente, mas então percebeu o que
era. “Ah. Eu quero, obrigada."
Cortei a torta, peguei leite na cisterna de resfriamento que Bree
havia construído no canto do chão da cozinha, e preparei a
1720

comida. Ela se levantou lentamente e veio sentar-se à minha


frente.
“O Sachem veio à minha casa esta manhã, para dizer que é hora
dele ir para o norte”, ela disse.
"Oh?" Dei uma garfada na torta — deliciosa. Provavelmente
Fanny tinha feito; ela era a melhor das padeiras da família. Jenny
não disse nada, e embora ela estivesse com um garfo na mão, ela
ainda não tinha enfiado na torta.
"E?" Eu disse.
Nenhuma resposta. Dei outra mordida e esperei.
“Bem,” ela disse finalmente. "Ele me beijou."
Eu levantei uma sobrancelha para ela.
"Você correspondeu ao beijo?"
"Sim", disse ela, parecendo surpresa. Ela se sentou por um
momento, contemplando, então olhou para mim de lado. "Eu
não tinha a intenção", disse ela, e eu sorri.
"Você gostou?"
“Bem, eu não vou mentir para você, Claire. Eu gostei." Ela
deixou a cabeça cair para trás e olhou para o teto. "E agora?"
"Você está me perguntando?"
"Não, estou me perguntando", disse ela, acrescentando um
pequeno ruído escocês para enfatizar. “Ele está indo para o
norte, voltando para seu sobrinho. Para dizer a ele o que ele
aprendeu sobre a guerra, então ele pode decidir se vai ficar com
os britânicos ou...” Sua voz sumiu. “Ele tinha que ir antes que o
tempo mudasse.”
"Ele pediu para você ir com ele?" eu perguntei, suavemente.
Ela balançou a cabeça. “Ele não precisava perguntar e eu não
precisava responder. Ele me quer, e eu... bem, se fosse só ele e
1721

eu, isso seria uma coisa, mas não é, então é a outra coisa. Eu não
posso ir e deixar minha família aqui, especialmente quando eu
sei todas as coisas que podem acontecer com todos vocês. E
então existe Ian…”
A suavidade em sua voz me disse que era Ian Mòr que ela queria
dizer; o marido dela, e não o filho.
“Eu sei que ele não se importaria,” ela disse, “e não só porque o
Sachem me disse isso,” ela adicionou, me dando um olhar azul
direto. “Mas ele vê Ian comigo, e eu não precisava ouvir; eu sei
que ele está comigo. Ele sempre estará”, ela disse, mais
suavemente. “Um dia pode ser diferente. Não que Ian vá me
deixar, mas... pode ser diferente. Eu disse isso, e o Sachem diz
que vai voltar. Quando a guerra acabar.”
Quando a guerra acabar. Senti um enorme nó na garganta. Eu
tinha ouvido isso antes, muito tempo atrás, presa nas garras de
outra guerra. Falado nesse mesmo tom de saudade, de
antecipação, de resignação. Conhecimento de que se a guerra
deveria terminar - ela nunca realmente terminaria. As coisas
seriam diferentes.
"Tenho certeza que ele vai", eu disse.
1722

150

E QUANTO A LÁZARO?733

Fraser’s Ridge
11 de fevereiro de 1781

SENTI JAMIE ACORDAR ao meu lado. Ele se espreguiçou,


então fez um barulho horrível e travou. Eu bocejei e me apoiei
num cotovelo.
“Não sei por que deveria ser o caso”, comentei, “mas com lesões
no joelho e no pé, deitar na verdade os faz doer mais do que ficar
em pé.”
“Dói quando eu me levanto também,” ele me assegurou, mas ele
deu de ombros para minha oferta de ajuda e cuidadosamente
balançou sua perna ruim para fora da beira da cama com não
mais do que um silvo de dor e um abafado “Mãe de Deus." Ele
usou o penico e sentou-se reunindo forças antes de se levantar
com a mão na mesa de cabeceira e ficar balançando como uma
flor na brisa.
Pulei da cama, peguei a bengala dele no canto onde ele a havia

733
Referência bíblica à ressureição de Lázaro relatada na Bíblia (João 11:1 a 46). Maria e Marta, irmãs de
Lázaro, pedem a Jesus que venha visitar o irmão, que estava muito doente, mas quando Jesus chega, ele já
havia morrido há 4 dias. Mesmo assim, Jesus ordena, Lázaro se levanta do túmulo e continua a sua vida.
1723

jogado na noite anterior e a coloquei na mão, imaginando como


teria sido a vida de Maria e Marta depois que seu irmão, Lázaro,
voltou dos mortos. Então – vendo Jamie lutar para colocar suas
roupas – eu me perguntei como teria sido para Lázaro.
Qualquer que fosse seu estado de espírito ao morrer, o pobre
homem presumivelmente teria deixado seu corpo com a noção
de que estava acabado para o mundo. Ser reinserido sem
cerimônia no referido corpo era uma coisa - retornar a uma vida
que você nunca esperava levar novamente era outra coisa.
Jamie lançou um olhar sombrio para si mesmo no espelho,
esfregou a mão na barba por fazer, murmurou algo em gaélico,
passou a mesma mão pelo cabelo, balançou a cabeça e desceu
para o café da manhã, sua passagem marcada pelo baque de sua
bengala a cada dois passos.
Começando a me vestir, pensei que, de fato, uma coisa dessas
acontecia com um monte de gente, que talvez não tivesse
chegado tão perto da morte física quanto Jamie, mas ainda assim
havia perdido a vida a que estavam acostumadas. Percebi, com
um pequeno choque, que eu mesma tive exatamente essa
experiência – e mais de uma vez. Quando atravessei as pedras
pela primeira vez, me afastei de Frank e de uma nova vida que
acabamos de começar, depois da guerra – e novamente quando
tive que deixar Jamie antes de Culloden.
Fazia muito tempo que eu não revisitava essas memórias. Eu
também não as queria de volta agora, mas na verdade era um
pequeno conforto lembrar que elas aconteceram... e que eu
sobrevivi ao ser desenraizada, perdendo tudo que eu conhecia e
amava - e ainda assim, eu floresci de novo.
Isso foi um consolo, e me confortei ainda mais ao considerar
Jenny, que havia perdido a maior parte de sua vida quando Ian
morreu, e então corajosamente deu as costas ao que restava dela,
1724

para vir para a América com Jamie.


Os prisioneiros provinciais da batalha foram desarmados,
cercados e levados embora; eu não sabia onde. Mas todas as
milícias se desfizeram, essencialmente assim que o tiroteio
parou, homens voltando para casa em pequenos grupos,
procurando os pedaços de suas vidas que perderam ao longo do
caminho.
Quanto tempo levaria, eu me perguntava, antes que pudéssemos
ser compelidos a fazer isso de novo? Era 1781. Em outubro, a
Batalha de Yorktown seria travada — e vencida. A guerra estaria
terminada — ou tão acabada quanto as guerras sempre estão.
Haveria mais lutas entre agora e até lá. Muitas delas no Sul, mas
não perto de nós. Ou assim dizia o livro de Frank.
"Ele vai estar bem, então", eu disse ao meu reflexo no espelho.
Jamie se curou bem, fisicamente; seu joelho melhorava com o
uso — e ele estava de volta à casa que amava. A maior parte de
sua milícia havia sobrevivido à batalha com ferimentos leves,
embora tivéssemos perdido dois homens: o segundo filho mais
velho de Tom McHugh, Greg, e Balgair Finney, um homem
solteiro na casa dos cinquenta de Ullapool que morava em Ridge
há menos de um ano. Se Jamie estava inclinado a se sentar em
seu escritório e olhar pensativo para o fogo, ou partir para a
destilaria e voltar – ele ainda não tinha ido até lá, e eu não sabia
se ele não aguentaria vê-la deserta e em mau estado, ou ainda
não conseguiria enfrentar o trabalho de colocá-la de volta em
produção - eu tinha fé que ele voltaria.
O pequeno Davy tinha sido de grande ajuda. O garotinho havia
alegrado o coração de todos, e Jamie adorava sentar com ele e
dizer coisas em gaélico para ele que faziam Fanny rir quando as
ouvia.
Ainda assim... havia algo faltando nele. Olhei de volta para a
1725

cama desarrumada. Ele não teve vontade de fazer amor por mais
de dois meses depois que voltamos para casa - não é de admirar
- e enquanto eu tinha sido capaz de despertá-lo fisicamente
enquanto ele se curava... algo estava faltando.
“Paciência, Beauchamp,” eu disse para o espelho, e peguei
minha escova de cabelo.
"Ele vai se recuperar." Eu normalmente escovava meu cabelo
pelo tato, mas ainda estava olhando para o espelho quando
levantei a escova e parei.
"Bem, que diabos", eu disse. Meu cabelo era branco. Jamie havia
me dito que meu cabelo era da cor do luar, uma vez, mas não
eram mais do que mechas brancas ao redor do meu rosto. Não
estava inteiramente branco agora; a massa de cachos que
espumava ao redor dos meus ombros ainda era uma mistura de
castanho, loiro e prateado, mas os mais recentes que cresciam
acima das minhas orelhas eram de um branco puro e simples que
brilhava ao sol da manhã.
Larguei a escova e olhei para minha mão, virando-a para frente
e para trás. Parecia como de costume: fina e com dedos
compridos, com tendões fortemente marcados e veias azuis
visíveis…
Lembrei-me de Nayawenne então, e do que ela me disse:
“Quando seu cabelo estiver branco... isso será quando você vai
encontrar seu poder completo”. Fazia tempo que eu não pensava
nisso e agora senti um arrepio na espinha. A memória de segurar
a alma de Jamie no topo da montanha, chamando-o de volta ao
seu corpo... Roger me disse, baixinho, quando ninguém estava
por perto para ouvir, que ele pensou ter visto uma fraca luz azul
indo e vindo de minhas mãos quando eu toquei Jamie,
tremeluzindo como o fogo fátuo.734

734
Luz que aparece à noite, geralmente originada de terrenos pantanosos ou sepulturas, atribuída à ação
1726

"Jesus H. Roosevelt Cristo", eu disse, muito calmamente.

-.-.-

À TARDE, fui ao meu jardim. O ar ainda estava frio, mas


trechos de terra nua estavam começando a aparecer através da
neve derretida, e era hora de preparar valas para as ervilhas e os
feijões.
Jamie veio comigo, dizendo que precisava de ar, e caminhamos
— devagar, para acomodar seu joelho — ladeira acima.
Os dois tenentes, Gilbert e Oliver, haviam cavado boas valas
para mim no ano anterior – antes que o inferno começasse, e eu
fiz uma breve oração por eles, e por Agnes (com qual ela se
casou? me perguntei) e Charles Cunningham. Eles haviam todos
retornado à Inglaterra agora? — para ervilhas-de-cheiro, vagens
e ervilhas comestíveis, estas todas cuidadosamente guardadas
das colheitas do ano passado. Jamie gentilmente despejou o
estrume em uma vala e começou o trabalho de escavar a terra e
misturá-la bem com o estrume, apenas assobiando entre os
dentes quando seu joelho machucado doía.
Esta vala corria atrás das colmeias. Havia onze colmeias agora:
um enxame havia se dividido antes de Kings Mountain e eu tinha
chegado a tempo de pegar uma nova rainha que estava partindo
e instalá-la em uma nova colmeia com seus seguidores, e o
jovem Ian havia encontrado um enxame selvagem e ido com
Rachel e Jenny capturá-las e trazê-las de volta. Todas elas
haviam sobrevivido ao inverno, e algumas abelhas de vez em
quando saíam e passeavam lentamente pelo jardim antes de
retornar. Jamie olhou cautelosamente atrás de mim, para ter
certeza que não iria bater em nenhuma colmeia com sua pá,

de gases originados de decomposição de matérias orgânicas.


1727

então olhou para mim com surpresa.


“Eu as ouço!” ele disse. “Ou pelo menos eu acho que sim...” Ele
avançou cautelosamente, colocando sua orelha perto da palha
trançada dos cestos.
“Sim, você as ouve,” eu disse, divertida com sua expressão. “As
abelhas não morrem no inverno e também não hibernam – desde
que tenham mel suficiente armazenado para durar até a
primavera. Elas se agrupam e tremem para gerar calor, mas por
outro lado elas apenas comem e... dormem, suponho.”
"Posso pensar em maneiras piores de passar o inverno", disse
ele, e sorriu. “Segurando seus pés.”
A pergunta interessante sobre quais partes dele eu gostaria de
segurar enquanto dormia foi obrigada a esperar, enquanto
ouvíamos o farfalhar e o arrastar de passos pesados subindo o
caminho.
Não fiquei surpresa ao ver John Quincy Myers — ele costumava
parar em Fraser's Ridge rotineiramente quando voltava das
aldeias Cherokee, onde costumava passar o inverno —, mas
fiquei muito satisfeita.
"Como você está?" Eu perguntei, me afastando para olhar para
ele depois que cumprimentos e abraços foram trocados. Ele
aparentemente havia deixado sua mochila em casa e parecia
quase como sempre, mas magro do inverno, como todos os
outros.
“Animado, senhora, animado,” ele disse, me dando um sorriso
largo que tinha um ou dois dentes a menos do que quando o vi
pela última vez. “E vejo que suas abelhas também estão
prosperando.”
“Sim, parecem estar – e obrigado novamente por me dá-las.
Estávamos falando sobre o que as abelhas fazem no inverno.
1728

Comer e dormir, imagino."


“Ah, tenho certeza de que elas fazem isso”, disse ele, e estendeu
a mão delicadamente para colocar a mão em uma das colmeias.
Ele sorriu, sentindo o leve zumbido em sua pele. “Mas acho que
elas passam o tempo tanto quanto nós no frio, contando estórias
umas para as outras durante as longas noites.”
Jamie riu disso, mas se aproximou cautelosamente, colocando a
mão em uma das colmeias também. “Que tipo de estória você
acha que as abelhas contam, a charaid?”
“Contos de ursos e flores, eu acho. Embora uma rainha talvez
sonhe com outras coisas."
“Se você quer dizer colocar milhares de ovos, isso soa mais
como um pesadelo”, eu disse. John Quincy riu, mas inclinou a
cabeça para frente e para trás de forma ambígua.
“Não é para um homem dizer, mas acho que ela talvez sonhe em
voar livre e alto com uma centena de zangões em uma nuvem de
desejo louco. Oh—” Ele parou, sentindo em sua bolsa. “Eu
quase esqueci, senhora. Eu trouxe isso aqui para você.” Ele tirou
um pequeno pacote, embrulhado em um pedaço de chita rosa
encardida.

“De quem é?” Eu perguntei, pegando. Era leve, não mais do que
alguns gramas, e algo estalou levemente dentro.
“Isso eu não sei direito, Senhora Claire,” ele disse. “Foi-me dado
por uma mulher que mantém uma taverna perto de Charlotte, em
janeiro. Ela disse que foi um homem negro que a deixou,
dizendo que era para a curandeira que morava em Fraser's Ridge,
e ela poderia gentilmente repassá-la quando alguém estivesse
vindo para cá. Eu suponho que ele quis dizer você,” ele
adicionou com um sorriso. "Não há muitas curandeiras neste
pedaço de floresta."
1729

Intrigada, abri o pequeno embrulho para encontrar uma folha de


papel grosso, cuidadosamente dobrada em torno de um objeto
duro. Eu a desdobrei e uma pedra do tamanho de um ovo de
galinha – e aproximadamente da mesma forma – caiu na minha
mão. Era de uma cor cinza salpicada com manchas brancas e
verdes. Era suave e notavelmente quente, considerando a frieza
do ar. Entreguei-a a Jamie e desdobrei a grande folha de papel
em que estava embrulhado. O bilhete estava escrito com pena e
tinta, a escrita um pouco irregular, mas bastante legível.
Deixei o exército e voltei para minha casa. Minha avó manda
isso para você, em agradecimento. É uma pedra azul735 de um
lugar antigo e ela diz que curará doenças do espírito e do corpo.
Li isso, atônita, e estava prestes a dizer a Jamie que devia ser do
cabo — evidentemente agora ex-cabo — Sipio Jackson, quando
de repente ele estendeu a mão e tirou o papel da minha mão.
“A Mhoire Mhàthair!”736
John Quincy esticou o pescoço para ver, interessado.
"Diabos me levem", disse ele. “Esse é o seu nome, não é,
Jamie?”
Estava substancialmente desgastado; estava rasgado em um
canto, esfregado e sujo, um pouco da tinta tinha evidentemente
se molhado e escorrido, e o lacre de cera vermelha havia caído,
deixando para trás uma mancha vermelha redonda — mas não
havia dúvida do que era.
Era uma cópia — a cópia original, assinada pelo governador
William Tryon — da concessão de dez mil acres de terra na
Colônia Real da Carolina do Norte a um certo James Fraser, em
reconhecimento aos seus serviços à Coroa. E costurada a ela

735
No original, ‘bluestone’. É um termo genérico que pode designar alguns tipos de pedras (basalto azul,
calcantita, vitríolo-azul). As pedras que constituem uma boa parte de Stonehenge são chamadas de
‘bluestone
736
Literalmente, “Mãe Maria!” em gaélico, mas pode ser entendido como “Nossa Senhora”
1730

com uma grossa linha preta estava a carta de lorde George


Germain.
1731

151

UMA MENSAGEM EM UMA GARRAFA

A bordo do Pallas

FOI PERMITIDO A JOHN GREY que se exercitasse


no convés duas vezes por dia – pelo tempo que ele quisesse,
enquanto estivessem ancorados. Ele era acompanhado o tempo
todo por um marinheiro monoglota poderosamente constituído,
cujo único propósito era impedi-lo de pular para fora e nadar
pelo mar, e cujo único idioma não era inglês, francês, alemão,
latim, hebreu ou grego. Ele pensou que poderia ser, de maneira
concebível, polonês, mas se fosse, saber isso não o ajudaria.
Pelo resto do tempo, ele não ficava apenas confinado à sua
cabine, mas preso a ela por meio de uma algema em volta do
tornozelo, esta equipada com uma longa corrente, esta por sua
vez presa a um anel colocado na parede divisória. Ele se sentia
como uma lapa737.
Refeições razoavelmente adequadas eram fornecidas, assim
como um penico e uma pequena pilha de livros, incluindo vários
tratados sobre os males da escravidão. Se a intenção deles era
reconciliá-lo com seu destino presumivelmente eventual,
eles haviam perdido seu alvo por vários quilômetros, e ele os
empurrou para fora do pequeno espaço antes de se sentar com
uma tradução de Dom Quixote.
Ele já havia sido mantido em cativeiro antes, mas não com
frequência, graças a Deus – e nunca por muito tempo, embora a
noite que ele passou – aos dezesseis anos – amarrado a uma
árvore em uma escura montanha escocesa com um braço
737
Lapa é uma espécie de molusco marinho com uma concha cônica rasa e patas fortes e musculosas, que
o mantém preso às rochas.
1732

quebrado tenha parecido interminável738. Por que pensar


nisso agora? Ele tinha em grande parte esquecido disso na
confusão das circunstâncias que resultaram em seu
conhecimento com um homem que ele pensara que nunca veria
novamente, e tudo bem. Mas Jamie Fraser não era um homem
para ser facilmente esquecido, maldito seja.
Ele se perguntou brevemente o que Jamie pensaria de suas atuais
circunstâncias – ou pior, das circunstâncias de sua eventual
morte – mas empurrou isso para fora de sua mente como algo
inútil. Ele não pretendia morrer, então por que perder tempo
imaginando isso?
A única coisa sobre a qual ele estava razoavelmente certo, em
relação a Richardson e aos motivos singulares daquele
cavalheiro, era que ele, Grey, não seria
morto até Richardson conseguir localizar Hal, pois sua vida
tinha valor – para Richardson – somente como uma alavanca
para afetar as ações de Hal.
Quanto a isso... Ele coçou distraidamente a mandíbula.
Richardson não confiava nele com uma navalha; sua barba
estava crescendo e coçava consideravelmente.
Hal tinha, agora e sempre, feito observações intempestivas sobre
a conduta da guerra, e tinha, mais de uma vez, ameaçado ir para
a Inglaterra e denunciar Lorde North em sua cara sobre o
desperdício de vidas e dinheiro. “Há coisas que precisam ser
ditas, por Deus – e eu sou um dos poucos que pode dizê-las” foi
a última de tais observações que Grey ouvira de seu irmão...
quando foi isso? Seis semanas, pelo menos, talvez mais.
Mas John estava moralmente certo de que Hal tinha ido ao norte
para encontrar Ben – uma convicção baseada no fato de que
Richardson havia até agora, aparentemente, falhado em

738
Lembrança do que ocorreu no livro 2.
1733

encontrá-lo em qualquer um dos portos do sul. Ele sabia muito


sobre as idas e vindas dos agentes da costa de Richardson; sua
cabine ficava diretamente abaixo da grande cabine de popa, e
enquanto ele não conseguisse entender muitas palavras, o tom
de frustração – com a batida ocasional de uma bota no alto – não
poderia estar enganado.
Quanto tempo Hal levaria para encontrar Ben? ele se
perguntou. E o que diabos aconteceria quando ele o
fizesse? Conhecendo Hal, a única circunstância em que
ele não encontraria seu filho errante seria se o maldito menino
realmente estivesse morto agora, seja em batalha ou por doença
– ele se lembrou da descrição de William sobre a vacinação da
população de Nova Jersey, feita pelo Dr. Hunter, contra
a varíola.
O vento mudou. Soprou no minúsculo quarto, levantou seu
cabelo e arrepiou sua pele. Ele fechou os olhos instintivamente
e virou sua face para o porto. Então ele percebeu que não era o
vento que tinha mudado; o barco havia se movido. Ele ergueu
os olhos, então foi até a porta da cabine, onde uma pequena
abertura de treliça no topo fornecia luz ocasional pelas
escotilhas. Pressionou a orelha contra a abertura e apurou os
ouvidos. Não. Não havia sons de ordem, passos rápidos e o
estrondo e estalo de velas sendo desenroladas. Graças a Deus,
eles não iriam levantar âncora e partir.
“Suponho que foi só um pé de vento, como minha velha avó
costumava dizer sobre uma brisa forte”, murmurou, tentando
ignorar o espasmo de alarme que apertou seu estômago por um
momento quando ele pensou que o navio poderia estar pronto
para navegar.
Richardson movera o navio diversas vezes, embora não muito.
Grey havia reconhecido o porto de Charles Town, mas houvera
dois outros portos menores que ele não conhecia. Agora eles
1734

estavam de volta a Savannah; ele podia ver a torre atarracada da


pequena igreja perto de sua casa.
Ele tentou não falar com ele mesmo, com medo de que pudesse
ficar louco, mas descobriu que o esforço para não o fazer estava
fazendo com que ele cerrasse os maxilares, então ele permitiu-
se a estranha observação. Ele também falou com o talvez-
polonês, o que foi a mesma coisa, mas foi menos socialmente
condenável.
Ainda assim, ele se viu olhando distraidamente para fora do
porto por períodos cada vez maiores, os olhos seguindo os
pequenos barcos, as revoadas dos pelicanos ou, de vez em
quando, uma visão fugaz de golfinhos, às vezes um ou dois, às
vezes dezenas, que seguiam de uma forma notavelmente
graciosa, saltando ao invés de nadar, mas de forma tão suave que
parecia que eles eram parte da água.
Ele estava envolvido nesse tipo de abstrações sem sentido
quando ouviu uma chave girar na fechadura atrás dele e girou
para ver o maldito Percy Wainwright.
Que, para adicionar insulto à injúria. ficou olhando para ele por
um momento, boquiaberto, e então caiu na gargalhada.
“O que?” John estourou, e Percy parou de rir, embora sua boca
ainda se contraísse. Ele não via Percy há semanas.
Evidentemente Percy havia servido ao seu propósito e foi
autorizado a desembarcar.
“Sinto muito, John”, ele disse. “Eu não esperava – quero
dizer...” Ele riu. “Você parece o Papai Noel. Quero dizer – um
Papai Noel muito jovem, mas...”
“Malditos sejam seus olhos, Perseverance”, John disse irritado.
Ele tocou sua barba, constrangido. “Está realmente branca?”
Percy afirmou com a cabeça e se aproximou. “Bem, não
1735

inteiramente branca; é só que seu cabelo é tão claro que de


alguma maneira, hum, se mistura, bastante”
John fez um gesto de irritação e se sentou.
“O que você está fazendo aqui, afinal? Eu não acho que você
tenha vindo para me libertar.” Alguém havia acompanhado
Percy; ele ouvira o clique da chave na fechadura novamente
quando a porta se fechou atrás de seu visitante.
“Não”, disse Percy, repentinamente sério. “Não. Eu faria se
pudesse, John. Por favor, acredite em mim.”
“Se isso o ajuda a dormir à noite, eu acredito em você”, John
disse, com a maior acidez que conseguiu colocar nas palavras, e
teve a satisfação sombria de ver o desapontamento no rosto de
Percy. John suspirou.
“O que diabos você quer, Perseverance?”
“Eu – bem.” Percy endureceu o suficiente para olhar para cima
e encontrar os olhos de John diretamente. “Eu queria dizer duas
coisas para você. Primeiro... que eu sinto muito. Realmente sinto
muito.” John olhou para ele por um momento, então acenou com
a cabeça.
“Tudo bem. Eu acredito nisso, também, pelo que vale a pena. O
que não é muito, já que eu provavelmente estarei morto em
breve, mas ainda assim. E a segunda.”
“Que eu te amo.” As palavras vieram suavemente, parecendo
dirigidas mais à mesa que a John, mas ele as ouviu e ficou tão
chocado e irritado que sentiu um pequeno nó na garganta. Ele
olhou para baixo também, sem responder. Os sons do rio, do
pântano e do mar distante encheram o pequeno quarto, e ele
pôde sentir o sangue pulsando nas pontas dos seus dedos onde
eles descansavam sobre a madeira áspera.
Eu estou vivo. Eu não sei ser outra coisa. Ele pigarreou.
1736

“Por que você acha que os pelicanos não gritam?”, ele disse. “As
gaivotas gritam e gargalham como bruxas, o tempo todo, mas eu
nunca ouvi os pelicanos fazerem qualquer tipo de barulho.”
“Eu não sei.” A voz de Percy estava mais forte agora, embora
ele também tivesse parado para limpar a garganta. “Eu... isso é
tudo que eu queria – tudo que eu precisava dizer a você, John.
Você tem... algo a dizer para mim?”
“Deus. Por onde eu começaria?” Mas ele não disse isso de
maneira indelicada. “Não. Ou – não, espere. Tem uma coisa.” A
ideia acabara de lhe ocorrer, e ele duvidava que fosse de alguma
ajuda; Percy era um covarde e sempre seria. Mas talvez... Ele se
endireitou e se inclinou para Percy, a corrente chacoalhando no
chão.
“Richardson não me permite papel ou tinta – provavelmente
pensando que eu tentaria jogar uma mensagem para algum barco
que esteja passando lá embaixo. Não posso escrever para
ninguém – últimas palavras, quero dizer, ou adeus, ou o que quer
que seja. Acho que você tem alguma liberdade, no entanto.” Ele
tinha visto, de sua cabine, Percy sendo levado em um barco a
remos até a praia de vez em quando, provavelmente realizando
tarefas para Richardson. “Se você puder, pelo menos vá até a
minha casa – é a número doze da Rua Oglethorpe...”
“Eu sei onde é.” Percy estava pálido, mas seu rosto estava
decidido.
“Claro que você sabe. Bem, se você quis dizer o que acabou de
dizer, então pelo bem de qualquer amor que você já teve por
mim – vá e diga ao meu filho que eu o amo.” Ele queria mesmo
era gritar, “Pelo amor de Deus, diga a William o que aconteceu!
Diga a ele para ir até Prévost e pedir ajuda!” Mas Percy tinha
medo de Richardson – e de tudo mais no mundo, ele pensou com
um pouco de pena – e pedir a ele que arriscasse algo como aquilo
1737

era o mesmo que fazê-lo sair correndo, ficar bêbado, ou cortar


sua própria garganta.
“Por favor”, ele acrescentou, gentilmente.
Um longo momento passou, e ele imaginou ter ouvido o bater
de asas dos pelicanos passando sobriamente sobre o rio abaixo,
mas Percy finalmente assentiu e se levantou.
“Adeus, John”, ele sussurrou.
“Adeus, Perseverance.”
1738

152

TITUS ANDRONICUS739

WILLIAM VOLTOU PARA casa depois de outra pesquisa


infrutífera nas docas e tavernas nas estradas que levam para fora
de Savannah, para encontrar Amaranthus andando para frente e
para trás no jardim da frente.
“Aí está você”, ela disse, em um tom que mesclava acusação e
alívio. “Um homem veio; eu o vi no chá da sra. Fleury, mas eu
não sei o nome dele. Ele disse que é amigo de Lorde John e que
conhece você. Eu o coloquei na sala de estar.”
Ele encontrou o homem que fora apresentado a ele na casa da
sra. Fleury como o Cavalier Saint-Honoré na sala de estar. Ele
pegara uma das preciosas porcelanas Meissen 740 de lorde John
do aparador, e estava correndo um dedo suavemente em torno
da borda dourada. Sim, era o mesmo homem, um francês; ele o
vira brevemente também no almoço na casa de Madame Prévost.
“Seu servo, senhor. Puis-je vous aider741?” William perguntou,
com a voz mais neutra que conseguiu. O homem virou-se e sua
face mudou quando viu William, indo de exaustão e pressão para
algo como alívio.
“Lorde Ellesmere?”, ele disse, em um sotaque totalmente inglês.
William estava muito cansado e de muito mau humor para fazer
tanto perguntas quanto dar explicações.

739
“Titus Andronicus” é considerada a peça mais sangrenta escrita por William Shakespeare
740
Meissen é o nome de uma cidade alemã, próxima a Dresden, onde se produziu a primeira porcelana de
pasta dura da Europa, a partir de 1708. A cidade deu seu nome à porcelana ali produzida, e a fábrica existe
ainda hoje com o nome Staatliche Porzellan-Manufaktur Meissen GmbH
741
Posso ajudá-lo?
1739

“Sim”, ele disse bruscamente. “O que você quer?” O sujeito


estava muito menos soigné742 que da última vez que ele o viu;
sem a peruca, seu cabelo era curto e encaracolado, polvilhado de
cinza e emaranhado com suor, e suas roupas estavam sujas, seu
terno caro amassado.
“Meu nome é – Percy Wainwright”, o sujeito disse, como se não
tivesse certeza sobre aquilo. “Eu sou... eu era... bem, eu suponho
que eu ainda seja, pensando bem... eu sou meio-irmão743 de
Lorde John.”
“O que?” Por reflexo, William pegou a porcelana Meissen antes
que o sujeito pudesse soltá-la e colocou-a novamente no
aparador. “Que diabos você quer dizer com meio-irmão? Eu
nunca ouvi falar de um meio-irmão.”
“Eu não suponho que você teria.” Uma leve careta que poderia
ter começado como um sorriso desapareceu, deixando o rosto de
Wainwright pálido e exausto.
“A família, sem dúvida, fez o seu melhor para me eliminar da
memória, depois... bem, isso não interessa. Houve um
rompimento, e uma separação de caminhos – mas eu ainda
considero John meu irmão.” Ele engoliu em seco, cambaleando
um pouco, e William achou que o homem não estava bem.
“Sente-se”, ele disse, pegando uma das pequenas poltronas e
virando-a, “e me diga o que está acontecendo. Você sabe onde
Lorde John está?”
Wainwright negou com a cabeça.
“Não. Quer dizer... sim, mas ele não está...”

742
Soigné se refere a uma pessoa que cuida de si mesmo, que tem uma boa imagem. Neste caso, refere-se
ao fato de que Percy estava “desajeitado”, não havia cuidado de sua aparência .
743
Stepbrother é um termo cuja tradução para o português é, geralmente, meio-irmão. Mas Percy era
enteado do terceiro marido de Benedicta Grey, mãe de Lorde John, ou seja, a relação aqui existente é bem
mais complexa, não havendo um parentesco direto, tal como sugere o termo em português.
1740

“Filius canis”744, William murmurou. Ele olhou em volta e viu


Amaranthus, espreitando curiosamente do lado de fora da porta,
e apontou o queixo para ela como se ela fosse a criada. “Traga-
nos um pouco de conhaque, por favor.”
Ele não esperou que chegasse, mas sentou-se em frente a
Wainwright. Seu estômago se enrolou em uma bola, tenso com
a apreensão e a excitação.
“Onde você o viu pela última vez?”, perguntou, esperando
restaurar a coerência de Wainwright por meio de perguntas
simples e lógicas. Para sua surpresa, funcionou.
“A bordo de um navio”, disse Wainwright, e se endireitou um
pouco. “Um... um Indiaman745, chamado Pallas. Um nome
grego, quero dizer – um deus de algum tipo?”
“O deus da batalha”, disse Amaranthus, entrando com um copo
de conhaque em uma bandeja. Ela estreitou os olhos para
Wainwright, então olhou para William, levantando uma
sobrancelha. Ela deveria ficar ou sair? Ele gesticulou
brevemente para a outra cadeira e se voltou para Wainwright.
“Um barco. Tudo bem. Onde está este navio?”
“Eu não sei. Eles... eles o movem. Eles estavam levantando
âncora enquanto eu... enquanto eu saía. Eu não o abandonei!”,
ele gritou, vendo a testa franzida de William. “Eu... eu nunca o
teria deixado, mas não poderia fazer nada de bom por ele, e
pensei – bem, ele me disse, na verdade. Ele me disse para ir e
encontrar você.”
Amaranthus fez um pequeno murmúrio, expressando dúvida.
William compartilhou isso, mas não tinha escolha a não ser
continuar e esperar que o homem pudesse ser encorajado a fazer-
se mais lógico.

744
Filho de um cão, em latim.
745
Trata-se de um navio engajado no comércio com a Índia ou com as Índias Oriental ou Ocidental.
1741

“Claro”, ele disse, tentando manter-se calmo. “E o que ele disse


para você dizer quando me encontrasse?”
“Ele não... disse... exatamente. Quero dizer, não havia tempo
para uma mensagem, eles estavam se preparando...”
“Mais conhaque?” Amaranthus perguntou, colocando seus pés
para baixo.
“Ainda não.” William levantou a mão e ela se sentou, os olhos
fixos com cautela em Wainwright, que parecia mais miserável
no momento. Todos os três estavam em silêncio, enquanto o
relógio de lorde John tiquetaqueava pacificamente sobre a
lareira, a borboleta esmaltada746 dentro de sua cúpula levantando
e abaixando lentamente suas asas azul e ouro. Por fim
Wainwright ergueu os olhos das mãos fortemente entrelaçadas.
“É minha culpa”, ele disse. Sua voz tremeu. “Eu não sabia, eu
juro. Mas...” Ele lambeu os lábios e endireitou os ombros.
“Lorde John foi raptado e está nas mãos de um louco. Ele está
em grande perigo. E sim, por favor, mais conhaque.”
“Em um momento”, disse Amaranthus, sentando-se na ponta de
sua cadeira. “Conte-nos quem é esse louco, por favor.”
Wainwright olhou para ela e piscou.
“Oh. Seu nome é Richardson. Ezekiel Richardson.”
“Jesus Cristo!” William ficou em pé e puxou Wainwright de sua
cadeira pela camisa em um instante. “O que diabos ele quer com
meu pai? Diga-me, droga!”
“Oh”, disse Amaranthus, levantando-se. “Então ele realmente é
um louco? Talvez seja melhor colocar o sr. Wainwright no chão,
William; ele não pode falar assim.”

746
Cloisoneé é uma técnica de trabalho em esmalte na qual tiras finas de metal são coladas sobre uma
superfície, formando um desenho composto por vários pequenos compartimentos preenchidos com pasta
de esmalte vitrificado. Usamos “esmaltada” por ser o que temos de mais próximo em nosso vocabulário .
1742

William fez isso com relutância. O sangue latejava em suas


têmporas, e ele sentiu com se sua cabeça fosse explodir a
qualquer minuto. Ele soltou Wainwright e deu um passo para
trás, respirando o mais uniformemente que podia.
“Diga-me”, ele disse novamente. Wainwright estava tremendo
por toda parte agora e suando muito, mas ele acenou com a
cabeça, espasmódico como uma marionete, e começou a falar.
Levou vários minutos para que ele falasse tudo, mas Wainwright
gradualmente se acalmou enquanto falava e ao final ficou em
silêncio, olhando para o tapete verde estampado sob seus pés,
William e Amaranthus trocaram olhares sobre sua cabeça
curvada.
“Então este cavalheiro – bem, esta pessoa”, Amaranthus disse,
a boca franzida como se fosse cuspir, “quer que o duque não vá
para a Inglaterra e conte a Lorde North coisas sobre a guerra, e
então ele sequestrou Lorde John e está ameaçando matá-lo a
menos que seu tio concorde?” Ela parecia incrédula, pensou
William. A carta de Richardson fora difícil de acreditar, mas
ouvir fatos como estes... Wainwright estava assentindo.
“É isso”, disse, aborrecido. “Ele... tem seus próprios motivos
para querer que a guerra continue, e pensa que Pardloe pode ser
capaz de convencer o primeiro-ministro do contrário.”
“Bem, ele não seria a única pessoa com interesse de que a guerra
continuasse”, William disse, começando a se controlar. “A
guerra é um negócio caro – e isso significa que os homens que a
sustentam estão ganhando muito dinheiro. Posso pensar em dois
ou três que gostariam de impedir o duque de espalhar noções
contrárias pela Inglaterra. Mas Richardson...” Ele estreitou os
olhos para Wainwright, mas o homem não deu sinais de engano
deliberado – ou de nada, realmente, exceto de uma profunda
angústia.
1743

“Eu disse a você, conheço esse Ricardson”, disse William


abruptamente, voltando-se para Amaranthus. “E Deus me ajude,
mas eu acho que ele provavelmente é louco. Algumas das coisas
que ele fez...” Ele balançou a cabeça.
“Espere aqui”, disse a Wainwright, e estendeu a mão para
Amaranthus. “Venha comigo por um momento.”

-.-.-

A CASA ESTAVA quieta; Moira havia ido ao mercado e a srta.


Crabb estava deitada. Até Trevor estava dormindo, graças a
Deus. Ainda assim, William guiou Amaranthus para o jardim,
apenas para garantir. A visão do pequeno caramanchão o fez
pensar vagamente que nenhum dos dois havia mencionado sua
proposta desde seu retorno, mas o pensamento desapareceu
como fumaça.
“O que você acha?”, ele perguntou, olhando por cima do ombro
para a casa.
“Eu acho que deve haver mais verdade na carta enviada por esse
Richardson do que nós sequer pensamos. O sr. Wainwright
parece mais ou menos sensato, mas eu não sei sobre o Capitão
Richardson – é esta a sua patente, capitão?”
“Bem, isso era quando ele estava no nosso lado”, William disse
com um dar de ombros. “Ele virou a casaca agora, e eu acho que
os americanos podem ter dado a ele a comissão de major, ou
mesmo a de um coronel de algum tipo; eles roubam oficiais dos
exércitos europeus com patente porque eles não têm dinheiro.
Os americanos, quero dizer.”
“Então este Richardson é um vira-casaca e um louco? Os
americanos não parecem ser muito exigentes, não é?”
1744

“Eu suponho que eles fizeram de James Fraser um general, se


isso lhe diz alguma coisa.”
As sobrancelhas de Amaranthus se ergueram em surpresa.
“Eu espero que ele não seja louco”, disse, e olhou
especulativamente para William. “Não acredito que a traição
apareça no sangue, necessariamente, mas tenho quase certeza de
que a loucura é hereditária. Quer dizer, veja o Rei.”747
“Não”, disse William. “O sr. Fraser pode ser bom em muitas
coisas, mas não é louco. E eu concordo com você sobre o sr.
Wainwright. Ele pode estar dizendo a verdade sobre ser meio-
irmão de papai; minha avó Benedicta casou-se com um viúvo, e
ele poderia muito bem ter tido um filho. Mas o fato de ele ser
meio-irmão de papai não é uma boa explicação para a sua
preocupação, não é?”
“Você quer dizer que ele pode ter outra razão para ter vindo
encontrar você?” Amaranthus inclinou-se para o lado, olhando
ao redor de Willliam na direção da casa.
“Talvez.” Willliam descartou isso com um aceno de mão. “Mas
os fatos básicos são – de acordo com ele e com a carta, agora –
estes: um, papai está na realidade nas mãos de Richardson, que
é verdadeiramente perigoso. Dois, Richardson aparentemente o
está mantendo como refém para obrigar tio Hal a fazer – ou
melhor, a não fazer algo. E três, não importa se é possível para
qualquer um obrigar tio Hal a fazer o que quer que seja – ele não
está aqui para fazer isso, de qualquer maneira.”
“Bem, mas isso é bom, não é?” Amaranthus contestou.
“Presumivelmente, se o único motivo desse Richardson estar
mantendo seu pai refém é fazer o duque fazer o que ele quer,
então Lorde John está seguro enquanto o duque não puder ser

747
Referência a Jorge III, então rei, que sofria de problemas mentais.
1745

encontrado. Não está?”


“Mmphm”, disse William, em concordância duvidosa. “Eu não
sei; Wainwright disse que meu pai está em perigo, e ele deve ter
razão para pensar assim. Independentemente disso, eu preciso
encontrá-lo, e o mais rápido possível. Se Richardson é realmente
louco, então ele é imprevisível; ele pode ter uma vontade
repentina de atirar papai no meio do mar – ou navegar para as
Índias Ocidentais.” O pensamento o atingiu como um furador de
gelo no coração. No choque com a aparência de Wainwright, ele
esqueceu momentaneamente da coisa mais importante que o
homem falou.
“Ele disse que eles estavam se preparando para partir assim que
ele partiu...” Ele agarrou o braço de Amaranthus tão
repentinamente que ela gritou. “Eu tenho que ir para as docas!
Se eles ainda não navegaram...”
“Mas eles navegaram! Ele disse que eles estavam levantando
âncora – já terão ido embora, agora!”
“Vamos, preciso descobrir onde este navio está – ou estava!” Ele
largou o braço dela e, virando-se, correu em direção à casa, com
Amaranthus logo atrás dele.
William atingiu o corredor a toda velocidade, assustando Moira,
que estava descendo com uma enorme cesta transbordando de
peixes e pães. Ela saltou para fora de seu caminho, mas perdeu
o controle da cesta. William ouviu gritos femininos, mas não
parou.
A porta para a sala de estar estava entreaberta e ele estava
vagamente consciente de um cheiro que o impeliu a abri-la.
Conhaque. E... vômito.
A fonte de ambos era Percy Wainwright, que estava deitado no
chão, enrolado como um ouriço, as costas arfantes enquanto ele
vomitava. Ele já havia vomitado profusamente, mas o cheiro foi
1746

encoberto pelo cheiro mais forte do conhaque derramado.


“Jesus”, William disse, engolindo em seco, e ajoelhou-se para
segurar Wainwright pelo ombro. “Moira!”, ele gritou, vendo o
rosto do homem. “Amaranthus! Chame um médico! Traga um
pouco de água e sal, rápido!”
Wainwright estava consciente, mas seu rosto estava cerrado
como o punho de um bebê, cheio de protuberâncias e rugas. Seus
lábios estavam azuis – realmente azuis. William não tinha visto
isso antes, mas ele sabia que não era bom.
“O que aconteceu?”, perguntou com urgência, tentando
desdobrar Wainwright e o colocou em uma posição mais
confortável. “Qual é o problema com você?”
Wainwright o ouviu. Ele levou uma mão trêmula ao peito,
pressionando com força no meio.
“É... isso não... eu não posso...”
William tinha visto Mãe Claire tomar o pulso de alguém, mais
de uma vez, e ele pressionou apressadamente os dedos na lateral
do pescoço de Wainwright. Não sentiu nada, moveu seus dedos,
nada... ali. Ele sentiu uma única pulsação. E então outra. Mais
uma – então uma batida leve e rápida – mas não era nada
parecido com a maneira como um coração deveria bater.
“Aqui estão a água e o saleiro.” Amaranthus falou atrás dele,
sem fôlego. “Moira foi chamar o dr. Erasmus. O que há de
errado com ele?”
“Oh, Deus, ele deve ter bebido o conhaque!” O pulso – se é que
era isso – estava ficando mais lento, e o corpo de Wainwright se
retorceu, a boca escancarada, procurando por ar. “O coração
dele, eu acho, talvez... Aqui, dê-me isso!” Ele tirou a garrafa de
sua mão e espirrou um pouco no rosto de Wainwright, fazendo-
o abrir os olhos, então derramou um pouco na sua boca aberta.
1747

A água escorreu para o lado, assim como a próxima tentativa.


“Sal?” Amaranthus disse, muito duvidosamente.
“Você dá isso aos soldados com insolação”, William disse, e não
tendo outra possibilidade em mãos, pegou o saleiro e bateu
levemente o sal na parte traseira da língua de Wainwright,
tentando fazê-lo engolir com água.
Isso funcionou, até que ele fez Wainwright voltar a si
suficientemente assim como engolir, mas dentro de alguns
instantes um novo espasmo se desprendeu dele e ele arrotou em
um jorro de sal, água... e sangue. Não um monte de sangue, mas
a visão alarmou William além de qualquer coisa que ele já tinha
visto.
“Conhaque”, ele disse urgentemente, e sentou-se sobre os
calcanhares. Este era o remédio mais popular para quase tudo,
talvez... Ele avistou a garrafa no chão e a agarrou, ouvindo o
grito de Amaranthus enquanto seus dedos tocavam o vidro
curvo, redondo e escuro.
“Esse não!”, ela disse, e se abaixou para arrancá-lo de sua mão.
A garrafa escorregou e rolou pelo tapete, derramando as últimas
de suas gotas aromáticas avermelhadas e exibindo seu rótulo:
Blut der Märtyrer.
Wainwright fez um suave ruído gorgolejante que se desvaneceu
em um suspiro, ecoado pelo leve estalar de seus intestinos soltos.
Houve um silêncio profundo na sala, mas além dele, William
ouviu os gritos fracos de gaivotas distantes.
“Jesus”, disse suavemente. “O navio já terá partido neste
momento.”
1748

153

ENTREGA ESPECIAL

EU ESTAVA NO jardim, semeando nabos e conversando com


as abelhas, que estavam começando a flutuar no ar, sozinhas ou
em duplas, seguindo os cheiros elusivos de cornizo e redbud748
prematuros, quando ouvi o ruído fraco de uma carroça subindo
a estrada para o pátio. Então eu ouvi um inconfundível chamado,
carregado pela brisa.
“Esse é John Quincy!” Eu disse às abelhas e, largando minha
espátula, corri para a casa, esfregando a sujeira das mãos com o
avental.
Era, de fato, John Quincy, radiante de prazer.
“Trouxe para você uma entrega especial, senhora”, ele falou, e
puxou a lona de seu vagão, revelando os rostos excitados de
Germain, Joanie e Félicité, onde estavam escondidos,
embalados entre caixas e barris como cabeças de repolho.
“Grand-mère!” “Vovó!” “Vó!” As crianças pularam da carroça
e correram para mim, todas falando ao mesmo tempo. Abracei a
todos, esmagada pelos corpos desengonçados e de pernas
compridas das meninas e o cheiro docemente sujo de crianças
não lavadas. Germain ficou para trás, sorrindo timidamente, mas
então Jamie deu a volta no canto da casa e gritou: “Germain!”,
e Germain desatou a correr e saltou nos braços do avô, quase o
derrubando.
Jamie grunhiu com o impacto, riu e o beijou, então olhou para
John Quincy, uma pergunta clara em seus olhos. Onde está o

748
Redbud é uma planta nativa da América do Norte, cujo nome científico é Cercis canadensis. No
Brasil, também é conhecida como “árvore de Judas”.
1749

resto deles? O que aconteceu?


“Fergus e Marsali enviaram a vocês o seu amor”, John Quincy
assegurou, interpretando seu olhar. “E eles estão todos bem. Eles
pensaram sobre como poderia ser mais saudável para os
pequenos um pouco do ar da montanha, então, por isso, quando
eu passei por Wilmington, perguntaram se eu poderia trazê-los.
Eles também foram uma ótima companhia!”
“Mais saudável”, Jamie repetiu, olhos fixos em John Quincy,
que assentiu. Os braços de Germain ainda estavam em torno da
cintura de Jamie, seu rosto enterrado na camisa de Jamie. Ele
deu um tapinha nas costas do menino. “Sim. Eu espero que sim.
Venha para dentro e pegue alguma comida e alguma bebida. Há
creme de leite fresco e as meninas fizeram cerveja.”

-.-.-

GERMAIN TINHA MUDADO. Crianças mudam, claro, e com


uma rapidez surpreendente, mas ele tinha cruzado aquele
abismo abrupto para a puberdade enquanto esteve fora, e ver a
nova versão era uma espécie de choque. Não é que ele estivesse
apenas mais alto – embora estivesse, por uns bons dez
centímetros – é que os ossos de seu rosto agora emolduravam os
olhos de um homem, e aqueles olhos vigiavam cuidadosamente
suas irmãs e qualquer ameaça sobre elas.
Fizemos um estardalhaço com todos e os trouxemos, e a John
Quincy, para dentro para comer. As meninas me beijaram, então
se lançaram sobre Jamie com gritos de alegria, questionando e
exclamando com horror sobre a bandagem em volta de seu
joelho e a cicatriz crua em seu braço, e aquelas curadas e meio-
curadas em seu peito...
1750

“Grand-père ficará bem”, eu disse com firmeza, atraindo-os


com biscoitos de melaço. “Tudo que ele precisa é de descanso.”
Eu levantei minhas sobrancelhas, indicando que ele poderia
fugir para o quarto, mas ele sorriu e balançou a cabeça.
“Eu irei, a nighean. E certamente você não acha que eu sairia
enquanto você tem uma tigela cheia de doces em sua mão?”
Fanny serviu leite para todos, sorrindo – com um sorriso especial
para Germain, que ficou com o rosto vermelho e enterrou o nariz
na xícara – e eu distribuí os biscoitos.
“Agradeço-lhe gentilmente, senhora”, disse John Quincy, e
mordiscou seu biscoito como um rato, seus dentes não
permitindo comer de forma mais robusta. “Germain, você deu
ao seu avô e à sua avó o que você trouxe para eles?”
“Oh!” Germain bateu com a mão na pequena bolsa de couro que
ele carregava, com uma alça sobre o peito. Ele deu a Jamie um
olhar ligeiramente culpado, mas enfiou a mão na bolsa e
entregou uma carta para mim, pois eu estava mais perto. Estava
escrita em um bom papel de trapo749 e selado com cera verde.
“Para você e Grand-père”, ele disse, franzindo a testa enquanto
sua voz subiu e quebrou no meio da última palavra. “Grand-
père”, ele repetiu, em na voz mais profunda que ele conseguiu.
Mantive meu rosto o mais sério possível, e quebrei o selo.

Milord, Milady –

Houve um evento no último mês, aqui em Wilmington, que nos


perturbou muito. Não vou descrever isso porque, embora confie
inteiramente em todos os meus filhos, não é incomum os selos

749
Rag paper é um papel confeccionado com algodão, originalmente com trapos de algodão; daí a tradução
do nome.
1751

das cartas serem quebrados por acidente. Digo apenas que dois
homens foram mortos, e de uma maneira que nos causou grande
inquietação. É um tanto irônico que tenhamos deixado
Richmond, sentindo-nos inseguros, e retornado para o familiar
solo da Carolina do Norte.
Eu gostaria que Marsali e todas as crianças fossem até você e,
se aqui as coisas tornarem-se piores, ela prometeu que ela e os
gêmeos irão para a Cordilheira. Mas, por enquanto, ela diz que
não vai me deixar – e eu não posso deixar por fazer o trabalho
para a liberdade para o qual eu fui chamado. Você colocou a
espada em minhas mãos, milord, e eu não vou largá-la.

Votre fils et votre fille750,


Fergus Claudel Fraser
Marsali Jane MacKimmie Fraser

“Oh”, eu disse suavemente. Os lábios de Germain estavam


pressionados com força e seus olhos brilhavam. “Germain”, eu
disse, e beijei sua testa. “Estamos tão felizes em ver você. E que
trabalho maravilhoso você fez, mantendo suas irmãs em
segurança por todo esse caminho.”
“Mph”, ele disse, mas parecia um pouco mais feliz.

-.-.-

DOIS DIAS DEPOIS, estávamos em nosso quarto no meio da


tarde, eu tentando ler Manon Lescaut em francês enquanto
impedia Jamie de dar uma espiada silenciosa para evitar o que

750
Vosso filho e vossa filha, em francês.
1752

ele chamava de terceiro nível do Purgatório.


“Algum dos bairns contou a você qual foi o acontecimento
desagradável de Fergus, Sassenach?” Jamie fez uma pausa no
meio de uma série de exercícios que eu havia definido para ele,
e eu fiz uma careta para ele.
“Você está apenas tentando escapar dos exercícios”, eu disse.
“Eu sei que isso dói. Faça de qualquer maneira, se você espera
andar sem uma bengala novamente.” Ele me lançou um olhar
longo e plano, então balançou a cabeça.
“Quando a dor e a angústia torcem a fronte, Tu és um anjo
ministrador”, ele murmurou.
Eu ri.
“Oh, Mulher, em nossas horas de folga”, citei de volta, “incerta,
tímida, e difícil de agradar751. Onde diabos você conseguiu
isso?”
“Roger Mac”, disse ele, dobrando cautelosamente seu joelho
machucado enquanto aliviava o peso sobre ele. “Ifrinn!”
“Alguém – ou vários alguéns – atira em você, enche de buracos
e fratura seu esterno e você não dá um pio”, observei. “Peço a
você para alongar alguns músculos...”
“Eu estava ocupado morrendo”, ele disse com os dentes
cerrados. “E se você acha que é fácil falar com um esterno
fraturado... Oh, Deus...”
“Só mais três”, eu o persuadi. “Se você prometer fazer as
rotações e flexões de braço em seguida, eu irei falar com Fanny.
751
Os versos pertencem ao Canto 6, estrofe XXX, da obra Marmion, a tale of Flodden Field, de Sir Walter
Scott, publicado originalmente em 1808. No original: “O, Woman! in our hours of ease, / Uncertain, coy,
and hard to please, / And variable as the shade / By the light quivering aspen made; / When pain and anguish
wring the brow, / A ministering angel thou!—” O poema conta como Lord Marmion, um favorito de
Henrique VIII da Inglaterra, deseja Clara de Clare, uma mulher rica. Ele e sua amante, Constance de
Beverley, forjam uma carta envolvendo o noivo de Clare, Sir Ralph de Wilton, em traição. O canto 6 refere-
se a uma batalha, que resulta na morte de Marmion e seu enterro em uma cova sem identificação. Clara
casa-se, então, com de Wilton. Como não há uma tradução para a língua portuguesa, aqui apresentamos
uma tradução livre.
1753

Germain está passando muito tempo com ela desde que ele
voltou; se ele contou a alguém, foi a ela.”
Ele fez um barulho que eu tomei como concordância, e eu limpei
seu rosto com uma toalha úmida e fui procurar Fanny.
Felizmente ela estava no porão, e sozinha.
“Oh”, ela disse, quando eu expliquei minha curiosidade. “Sim,
ele contou. Eu perguntei a ele”, ela adicionou honestamente.
“Ele disse que não se importava de contar para mim, mas ele não
queria que suas irmãzinhas ou as outras meninas descobrissem.
Eu tenho certeza de que ele não quis dizer você, no entanto”, ela
me assegurou.
A guerra estava em toda parte, e por isso não foi surpresa ouvir
que a nova gráfica de Fergus em Wilmington tinha sofrido o
mesmo tipo de pequenos vandalismos e ameaças anônimas
enfiadas sob a porta como havia acontecido em Charles Town.
Nada pior havia acontecido, no entanto, e a cidade como um
todo estava bastante quieta.
A família teve o cuidado de trancar as portas à noite e trancar as
venezianas, mas eles sentiam-se seguros durante o dia.
“Germain e o sr. Fergus estavam trabalhando na prensa, ele
disse, e sua mãe e as meninas tinham saído. Dois homens
entraram, e Germain foi ao balcão para ver o que eles queriam.”
Um dos homens disse que queria ver o proprietário, e tudo bem.
Mas o outro tinha uma pequena peça de caça sob seu casaco e
Germain viu. Ele não sabia o que fazer, mas gaguejou que iria
buscar seu pai. Ele se virou para voltar para a prensa, quando o
primeiro homem abriu rapidamente a escotilha do balcão e
empurrou Germain para o chão. Os dois homens correram para
a sala dos fundos, onde Fergus estava trabalhando, mas Germain
conseguiu se agarrar à perna do segundo homem e gritou a
plenos pulmões.
1754

“Ele disse que estava olhando direto para o cano da arma”,


Fanny disse, os olhos arregalados com a narrativa. “Ele pensou
que seria morto a qualquer momento, e suponho que poderia ter
sido, se o sr. Fergus não tivesse disparado da sala dos fundos
com uma concha cheia de chumbo quente da forja e atirado no
primeiro homem.”
Não sem razão, o homem gritou de dor e pânico, virou-se e
tentou correr, cego, tropeçou em Germain, que ainda estava no
chão, e colidiu com o segundo homem, que tentava levantar sua
arma.
“O sr. Fergus agarrou a arma com sua única mão, Germain disse,
e eles lutaram pela arma e o outro homem estava rastejando pelo
chão gritando. Então a arma disparou e abriu um buraco no teto,
e havia gesso e pedaços de madeira por toda parte. Germain
estava com muito medo de se mover, mas seu pai tinha uma
grande pistola em um coldre e a pegou e atirou direto na cabeça
do homem.” Fanny engoliu em seco, parecendo um pouco
doente. “E... então ele disse a Germain para ir para a sala dos
fundos e ele foi, mas ele olhou para trás e viu seu pai ajoelhar-
se e atirar na cabeça do outro homem também. Ele disse que a
arma do sr. Fergus era uma especial com dois canhões”, ela
acrescentou, obviamente impressionada com este detalhe.
“Porque ele tem apenas uma mão.”
“Oh, meu Deus.” Eu fiquei tão chocada como se eu tivesse visto
por mim – a gráfica respingada com sangue e gesso quebrado,
Fergus pálido e trêmulo com a reação, e Germain paralisado com
o choque.
“Germain e seu pai tiveram que arrastar os corpos pela porta dos
fundos até o beco antes que sua mãe e as meninas voltassem. Ele
disse que seus irmãozinhos estavam gritando em seu berço, mas
eles não podiam parar para fazer algo a respeito.”
1755

Eles tinham colocado os corpos sob algum lixo e depois


varreram a loja e limparam as coisas como podiam, e quando a
mãe de Germain chegou em casa com as meninas, seu pai disse
a Germain para levar as meninas até a hospedaria e trazer a
comida para a ceia. O sr. Fergus deve ter contado à mãe de
Germain o que aconteceu, porque ela tinha saído quando ele
voltou, e então ela veio um pouco mais tarde e disse algo
baixinho para o sr. Fergus, e Germain ouviu uma carroça no
beco aquela noite e quando ele espiou pela manhã, os homens
tinham desaparecido.
“Germain acha que foram os Filhos da Liberdade de
Wilmington que vieram e levaram os homens”, Fanny disse
séria. “O pai dele conhece todos eles.”
“Eu... suponho que sim”, eu murmurei, sentindo alguma
gratidão porque pelo menos Fergus e Marsali não estavam
completamente sem apoio e proteção. Esse conhecimento não
fez nada para diminuir a bola de gelo que havia se formado em
meu peito.
“Eu não posso deixar por fazer o trabalho para a liberdade para
o qual eu fui chamado.”
“Oh, Marsali”, eu disse, sob minha respiração. “Oh, querida.”

-.-.-

EU ACORDEI COM o sussurro da neve caindo, e a estranha luz


cinzenta da neve escoando através das persianas. Olhando para
fora, eu vi o mundo da floresta – coníferas escuras bem como os
brotos das plantas primaveris – vestidas em um branco puro e
delicado. Era uma neve de primavera e poderia durar horas –
mas, no momento, era bonita, e coloquei as mãos contra a janela
1756

fria e respirei seu frescor, querendo fazer parte disso.


Jamie ainda estava dormindo, e eu não fiz nenhum movimento
para acordá-lo; Roger cuidaria dos animais esta manhã,
auxiliado pelas crianças mais novas. Saí do quarto nas pontas
dos pés e caminhei até a cozinha, onde Silvia e Fanny estavam
sentadas à mesa, mordiscando torradas antes de começar a
preparar o café da manhã. Bree estava cochilando no canto do
assento, Davy em seu seio, fazendo barulhos de sucção enquanto
ela o amamentava.
Eu bocejei, pisquei e balancei a cabeça, mas não me juntei a elas.
Eu havia feito caldo de carne752 no dia anterior e pensei que
talvez uma boa xícara de caldo quente poderia alegrar Jamie.
Ele teve uma noite ruim; umas daquelas noites que todos acima
dos quarenta anos têm de vez em quando, quando o corpo é
afligido por câimbras, dor nas articulações, e tremores súbitos
que lhe sacodem dos limites do sono como se você tivesse sido
arremessado de uma forca. E, no caso dele, sem dúvida, a
queima repentina de suas feridas quase totalmente curadas
enquanto ele se contorcia e virava.
Ele estava acordado quando eu subi as escadas, sentado na
beirada da cama apenas com a camisa, amarrotado, com a barba
por fazer e aparentemente ainda meio adormecido, as mãos
penduradas entre as coxas.
Pousei as duas xícaras que trouxe e passei a mão suavemente por
seu cabelo despenteado.
“Como você se sente esta manhã?”, eu disse.
Ele gemeu e abriu seus olhos um pouco mais.
“Como se alguém tivesse pisado no meu pau.”

752
No original, beef tea. A receita indica que se trata de um caldo de carne, feito com a carne cortada em
cubos, sal e água.
1757

“Mesmo? Quem?”, perguntei de maneira leve.


Ele fechou os olhos novamente. “Não sei, mas parece que foi
alguém pesado.”
“Mmm.” Coloquei a mão em sua testa; ele estava quente, mas
quente da cama, não febril. Peguei uma xícara de caldo de carne
e coloquei em suas mãos. Ele respirou o vapor, então tomou um
gole, mas deixou-o de lado e espreguiçou-se lentamente,
gemendo.
Olhei para ele por um momento, então ajoelhei-me no chão em
frente a ele e peguei a bainha de sua camisa. “Deixe-me ver
isso”, disse.
Seus olhos estavam totalmente abertos e fixos em mim. “Você
sabe o que é uma metáfora, Sassenach...”, ele começou, fazendo
um grande esforço para pegar minhas mãos, mas meu toque,
muito quente devido às xícaras de caldo, o fez expirar e inclinar-
se um pouco para trás.
“Hum...” Esfreguei um pouco com as duas mãos, lentamente.
“Acho que sua circulação está em ordem... Algum hematoma?”
“Bem, não ainda”, ele disse, soando um pouco apreensivo.
“Sassenach, você poderia...”
Empurrei a camisa para trás e me abaixei, e ele parou de falar
abruptamente. Alcancei mais abaixo, fazendo-o abrir as coxas
por reflexo, e vi os pequenos pelos encaracolados se erguerem.
“Você soltaria minhas bolas, Sassenach?”, ele disse, mexendo-
se inquieto. “Não é que eu não confie em você, mas...”
“Estou verificando se há algum sinal de uma hérnia incipiente”,
disse a ele, e corri dois dedos para cima, sondando gentilmente
o calor profundo da carne entre suas pernas. Suas coxas eram
magras e frias, mas...
“Oh, eu tenho uma incipiência”, disse ele, se contorcendo um
1758

pouco. “Mas tenho certeza de que não é uma hérnia. O que


diabos você está fazendo agora?”
Eu deixaria passar. Virando-me, estendi a mão para a mesinha
de cabeceira onde eu deixava um amontoado de coisas – coisas
que eu retirava dos bolsos do meu avental à noite e nem sempre
recolocava pela manhã. A pedra azul que o Cabo Jackson havia
me enviado estava lá, e a peguei da desordem, esfregando-a
entre minhas mãos para aquecê-la. Havia uma pequena garrafa
de óleo doce sobre a mesa, também, e eu gotejei um pouco sobre
a pedra. Jamie estava observando todo o processo, ainda
apreensivo.
“Se você pretende colocar isso na minha bunda, Sassenach”,
disse ele, “eu ficaria muito agradecido se você não o fizesse.”
“Você pode gostar”, sugeri, e segurando-o com uma mão,
apliquei a pedra quente e oleosa de uma forma terapêutica com
a outra.
“Sim, é disso que tenho medo.” Mas ele relaxou um pouco,
apoiando-se nas mãos. E então relaxou um pouco mais,
suspirando, seus olhos fechando novamente. Eu continuei com
a massagem lenta, mas estendi minha outra mão e peguei uma
das xícaras, tomando um gole do caldo de carne ainda quente. O
gosto era maravilhoso, relaxante e delicioso. Engoli, pousei a
xícara, e coloquei minha boca nele.
Seus olhos se abriram e suas mãos cerraram-se nas roupas de
cama.
“Hmmm?” Eu disse.
Ele disse algo baixinho em gaélico, mas não era uma palavra que
eu conhecia. Ri, mas silenciosamente, e sei que ele sentiu a
vibração; sua mão estava descansando em minhas costas, grande
e quente.
1759

Algo havia acontecido entre nós, no campo de batalha, e


enquanto grande parte disso tinha passado, eu ainda podia sentir
os ecos de seu corpo de uma maneira mais profunda que antes.
Senti seu sangue subir, pulsando, aquecendo sua pele, e o ar que
ele respirava, profundo e puro em meus próprios pulmões.
De repente suas mãos estavam embaixo de meus braços, e ele
me levantou, com urgência.
“Dentro de você”, ele disse, sua voz rouca. “Eu quero estar
dentro de você.”
Eu me levantei em uma enxurrada de saias e ele se deitou na
cama. Uma breve disputa e então aquela união súbita, sólida e
deslizante que nunca era um choque e sempre era um choque.
Ambos suspiramos e nos encontramos um no outro.
Eu me deitei sobre ele momentos mais tarde, sentindo seu
coração bater embaixo de mim, lento e forte. Respirei e senti o
cheiro forte e amargo dele.
“Você tem um cheiro maravilhoso”, eu disse. Eu me sentia
sonolenta e profundamente feliz.
“O que?” Ele ergueu a cabeça e a virou, cheirando a gola da
camisa. “Jesus, estou fedido como um javali morto.”
“Você está”, eu disse. “Graças a Deus.”
1760

154

NUNCA TENHA MEDO DE NEGOCIAR;


NUNCA NEGOCIE POR MEDO753

EU ESTAVA QUEBRANDO PEDAÇOS de resina de asafetida


com um martelo quando Jamie colocou a cabeça em meu
consultório.
“Jesus, Sassenach.” Ele tapou o nariz com dois dedos. “O que
diabos é isso? E por que você está batendo nisso com um
martelo?”
“Asafetida”, eu disso, soltando a respiração que eu estava
segurando e dando um passo para trás. “Primeiro você extrai a
resina das raízes da Ferula, o que é relativamente simples – mas
a resina é muito dura e não pode ralar, então você precisa
quebrar os pedaços com um martelo – ou pedras, se você não
tiver um martelo. Hum...” Ocorreu-me que o martelo que eu
tinha era de fato dele, e o inverti em minha mão, oferecendo a
ele o punho como se fosse uma espada rendida. “Você quer isso
de volta?”
Ele pegou o martelo, inspecionou-o com o braço esticado à
procura de danos, então balançou a cabeça e o devolveu.
“Está tudo bem. Lave antes de trazê-lo de volta para mim, sim?
Isso é o que eles chamam de esterco do diabo?”
“Bem, sim. Mas eu disse que as pessoas onde isso cresce usam-
no como uma especiaria. Na comida, quero dizer.”
Ele olhou como se quisesse cuspir, mas conteve-se. “Quem lhe
753
No original, “Never fear to negotiate; never negotiate from fear” Frases tiradas do discurso de posse
do presidente John F Kennedy, em 20 de janeiro de 1961.
1761

disse isso?”
“John Grey. Isso provavelmente tem um gosto melhor quando
cozido”, eu disse apressadamente. “Você veio até aqui para
alguma coisa, ou estava somente procurando por seu martelo?”
“Och. Sim, eu fui enviado para perguntar se você seria uma
testemunha.”
“Para quê?” Eu já estava esfregando pó de carvão nas mãos para
eliminar o fedor.
“Eu não tenho certeza. Neste momento é uma pequena confusão,
mas pode ser um casamento, se eles pararem de chorar um para
o outro.”
Eu não perdi tempo perguntando por detalhes, mas enxaguei
rapidamente o carvão e sequei minhas mãos no avental enquanto
o seguia pelo corredor até a sala de estar.
Rachel, Ian, Jenny e Silvia Hardman estavam lá, junto com
Prudence, Patience e Chastity, e também Bobby Higgins e seus
filhos, Aidan, Orrie e Rob. As Hardmans e os Higginses estavam
preparados como exércitos inimigos, Silvia e suas filhas no sofá
com Bobby voltado para elas das profundezas da grande cadeira
de Jamie, Aidan em pé ao seu lado e Orrie e Rob sentados – na
medida em que se pode usar essa palavra ao descrever jovens do
sexo masculino abaixo com menos de seis anos – no tapete a
seus pés.
Rachel, Jenny e Ian estavam no final do sofá. Todos se viraram
para olhar quando nós entramos, e senti imediatamente uma
atmosfera tumultuada na sala. Não era como se eles estivessem
brigando, mas claramente havia alguma tensão.
Jamie tocou a parte de baixo de minhas costas e me guiou para
o lado de Bobby da sala, onde ele mesmo posicionou-se atrás da
grande cadeira.
1762

“Estamos prontos”, ele anunciou. “O que você estava dizendo


quando saí, Amiga Silvia?”
Ela estreitou o olhar e preparou-se com dignidade.
“Eu disse ao Amigo Higgins”, anunciou casualmente, “que ele
deveria saber que eu fui conhecida como uma prostituta.”
“Assim me foi dito”, Bobby disse, diplomaticamente não
dizendo quem lhe disse. Ele olhou para ela e tocou a
desaparecida – mas ainda gritante – marca branca em sua
bochecha. “Sou um assassino condenado. Eu acho que talvez
você possa ficar mais incomodada que eu.”
As bochechas de Silvia ficaram vermelhas, mas ela não olhou
para longe.
“Não precisava me dizer”, ela disse, “mas te agradeço por tua
consideração. Enquanto Amiga, eu naturalmente devo deplorar
a violência, eu entendo que tuas circunstâncias foram tais que te
fizeram acreditar que não fizeste mais que teu dever.”
Bobby olhou para baixo brevemente, mas seus olhos voltaram-
se para os dela.
“Isso é verdade”, ele disse calmamente, e inclinando-se para a
frente ele estendeu a mão para colocá-la levemente na bochecha
macia de Chastity. “Eu considero que você fez o seu.”
Sua boca se abriu, mas nenhuma palavra saiu, e vi que seus olhos
estavam brilhando com lágrimas não derramadas. Ela conseguiu
dar um pequeno aceno irregular, e Patience e Prudence emitiram
pequenos sons de aprovação, embora tenham sentado eretas,
com as mãos colocadas cuidadosamente sobre o colo.
“Não sou mais um soldado”, Bobby disse. “Jurarei de bom grado
– se jurar não a desagrada, quero dizer – não pegar em armas
novamente, a não ser para caçar para comida. E eu, hum, acho
que você não pretende... er... retornar às suas circunstâncias
1763

anteriores?”
Silvia olhou para Jamie, seu longo lábio superior puxado para
baixo sobre o inferior.
“Não, ela não vai”, Jamie disse com firmeza. “Nunca.”
Bobby concordou.
“Então”, Bobby disse, sentando-se e olhando para ela muito
diretamente. “Queres casar-te comigo, Amiga?”
Ela engoliu em seco, os olhos muito brilhantes, e inclinou-se
para a frente, mas Aidan interrompeu sua resposta.
“Por favor, case-se com ele, sra. Hardman”, ele disse com
urgência. “Ele não sabe cozinhar nada além de mingau e feijão
com bacon queimado.”
“E tu achas que eu sei?”, disse ela, o canto de sua boca se
contraindo.
“Ela também não é uma boa cozinheira”, disse Prudence, como
alguém obrigado a ser verdadeiro. “Mas ela consegue assar
pão.”
“E nós sabemos como fazer guisado com nabos, batatas, feijões,
cebolas e um osso de porco”, Patience encaixou. “Nós não
vamos deixar-te morrer de fome.”
Silvia, com o rosto muito vermelho neste momento, limpou a
garganta como forma de advertência.
“Se tu podes atirar em um animal para a panela, Amigo Higgins,
eu acredito que eu posso carneá-lo e assá-lo.”, ela disse. “Pode-
se sempre cortar os pedaços queimados.”
“Esplêndido!”, disse Aidan, encantado. “Então isto é uma
barganha, não é?”
“Bem, isso pode ser, se você parar de falar”, Bobby disse, dando
a Aidan um olhar de suave exasperação.
1764

“Papai?”, disse Chastity brilhantemente, estendendo seus braços


para Bobby. Silvia ficou com uma cor de vermelho vivo, e todos
riram. Ela colocou a mão sobre a boca de Chastity.
“Eu aceito”, ela disse.
1765

155

CASAMENTO QUACRE, REVISITADO

JAMIE LEMBROU-SE DO PRIMEIRO casamento quacre a


que comparecera, vividamente. Tinha sido na Filadélfia, em
uma igreja metodista, e a congregação consistira em grande
parte de Amigos – o tipo que defendia a liberdade – mais um par
de soldados ingleses em seu uniforme completo, embora lorde
John e o duque de Pardloe tivessem delicadamente deixado suas
espadas em casa. O serviço tinha sido único, e ele pensou que
era provável que o mesmo acontecesse hoje.
A coisa mais impressionante sobre este casamento era o número
de crianças presentes. Havia dois bancos na frente da Casa de
Reunião, com a família Higgins inteira sentada em um, e todas
as Hardmans no outro. Bree e Roger sentaram-se na frente,
Brianna com o pequeno Davy em seus braços. Fanny, Jem,
Amanda, Tòtis, Germain, Joanie e Félicité (tão apropriadamente
chamada Fizzy) estavam se contorcendo no banco em frente a
Claire e a ele, presumivelmente com a ideia de que um suave
mas ameaçador limpar de garganta da parte dele pudesse
garantir que eles se controlassem. Ele cantarolava um pouco,
baixo em seu peito, para ter certeza de que sua voz estava em
boas condições, e viu Jem e Germain enrijecerem-se um pouco.
Bom.
Seu peito ainda doía quando ele respirava fundo, mas ele
poderia respirar profundamente, e ele agradeceu a Deus por isso.
Ele tinha caminhado todo o caminho até a igreja. Lentamente, e
1766

seu joelho esquerdo doía como o diabo, mas seu coração estava
leve. Ele estava vivo, ele podia andar, Claire estava ao seu lado,
e a morte era mais uma vez um problema com o qual ele não
precisava se preocupar.
Bobby Higgins levantou-se abruptamente, e a congregação
silenciou abruptamente.
“Eu agradeço a todos por estarem aqui hoje”, ele disse, mas sua
voz estava estridente e ele limpou a garganta audivelmente e
repetiu a fala, acenando para a congregação. Seu rosto estava
corado – ele era muito tímido, e não um orador – mas ele ficou
firme e segurou a mão de Silvia, que estava pálida, mas pronta.
Ela levantou-se, pegou a mão dele, e voltou-se para a
congregação.
“Como Robert disse, nós vos agradecemos por virem”, ela disse
simplesmente.
“Eu nunca fiz isso antes”, Bobby disse a ela. “Você talvez
precise me guiar.”
“Não é difícil”, Patience Hardman disse, encorajadoramente.
“Não”, Prudence concordou. “Tudo o que tu tens que dizer é que
tu vais te casar com ela.”
“Bem, mas ele precisa dizer que ele vai alimentá-la – bem,
alimentar-nos – não é?”, Prudence colocou. “E nos proteger?”
“Ele poderia dizer isso”, Patience concordou em dúvida, “mas
ele não tem que dizer. ‘Eu caso contigo’ é suficiente. Não é,
mamãe?”
Silvia estava com os olhos semicerrados e estava rapidamente
ficando tão vermelha quanto seu futuro marido.
“Meninas”, ela murmurou. “Por favor.”
A onda de diversão entre a congregação foi gradualmente
parando. Bobby e Silvia olharam um para o outro, para longe,
1767

os rostos brilhantes, então se olharam novamente. Aidan


McCallum levantou-se do banco e caminhou até estar ao lado de
seu padrasto. Aidan tinha treze anos e era quase tão alto quanto
Bobby.
“Está tudo bem, Pa”, ele disse e virou-se para os seus irmãos
mais novos, que se mexeram ao seu lado. Ele acenou para as
meninas Hardman, que se entreolharam em dúvida, então
chegaram a um acordo silencioso e se levantaram também.
“Nós estamos nos casando com vocês”, Aidan disse com
firmeza para as meninas. “Todos nós estamos nos casando com
todas vocês. Vocês... Oh, desculpa, todas vós quereis casar-vos
com todos nós?”
“Nós aceitamos!”, Patience e Prudence disseram juntas,
radiantes. Patience se abaixou e murmurou para Chastity, que
voltou seu rosto angelical e sorridente para Rob, e disse em voz
alta, “Eu caso contigo” e, cambaleando, agarrou-se a ele pela
cintura. “Beija eu!”, ela adicionou, e ficando na ponta dos pés,
plantou um alto “Mwah!” em sua bochecha.
Demorou algum tempo até a ordem ser restaurada.
O esterno meio curado de Jamie doía surpreendentemente e ele
não era o único membro da congregação que ria até as lágrimas.
Descobriu que não conseguia parar, no entanto. Claire entregou
a ele um lenço limpo e ele enterrou seu rosto nele, lembrando da
dor e da alegria, do medo e da paz presentes, todos derramando-
se como água fria e pura.

-.-.-

TODOS DESCERAM a colina para a Casa Nova, onde


tínhamos desempacotado as cestas que as mulheres haviam
1768

trazido e disposto os elementos para a festa de casamento antes


de seguir para a Casa de Reunião. Agora a cozinha estava um
caos – em grande parte – organizado, e nós corremos para fatiar
frutas, carnes, tortas e pães, para agitar a manteiga de seus
moldes e colocar geleias, molhos de tomate e temperos e gotas
de mel sobre inhames torrados e castanhas.
Jamie, Roger e o Jovem Ian tinham trazido três barris de uísque
envelhecido por dois anos, e Lizzie e Rachel tinham feito cerveja
suficiente para afogar um exército de alces sedentos; eu esperava
que fosse o suficiente.
Vislumbrei Mandy pela janela, seus cachos amarrados com um
laço de seda azul, séria, colocando pedacinhos de comida na
boca de Chastity como uma mamãe pisco-de-peito-ruivo
alimentando sua ninhada, embora Chastity já tivesse idade
suficiente para comer sozinha com uma colher. Sorri e busquei
em volta pelas outras meninas, somente para encontrá-las bem
embaixo do meu nariz, seriamente colocando succotash754 em
várias tigelas grandes de madeira, tagarelando como pombos.
“Vocês são tão sortudas”, Fanny estava dizendo, inveja em sua
voz. “Três irmãos! Eu nunca tive nem um!”
Prudence e Patience estavam completamente fora de si, coradas
com o entusiasmo sob suas novas toucas engomadas, e ambas
riram com isso.
“Nós vamos compartilhá-los contigo, Frances”, Patiente
assegurou a ela. “Especialmente Rob.”
“E nós vamos ser tuas irmãs”, Prudence adicionou gentilmente.
“Não faltará família para ti.”
Eu vi o rosto de Fanny mudar e ela olhou para baixo para
escondê-lo, percebendo só então que ela havia acidentalmente

754
Succotash é uma mistura de grãos de milho doce cozidos e feijão-de-lima, servido como um vegetal.
1769

derrubado uma colher cheia de feijões-manteiga e milho sobre a


mesa, em vez de na tigela.
“Maldição!”, ela disse. Prudence e Patience engasgaram e eu dei
um passo à frente, com a intenção de fazer uma intervenção, mas
Patience piscou, de repente avistando algo, e eu virei para ver o
que ela estava olhando.
Os Crombies não compareceram ao casamento, pois achavam
que pessoas se casando sem o benefício do clero era, se não
ímpio, pelo menos ligeiramente imoral. Roger explicara a eles
que uma cerimônia quacre era essencialmente a mesma coisa
que um handfasting, que como escoceses das Terras Altas eles
respeitavam. Ao que Hiram respondeu que o handfasting era
necessário quando não havia um ministro, com o intuito de
prevenir o pecado absoluto e crianças ilegítimas, mas como na
Cordilheira havia um ministro presente, como o sr. MacKenzie
não estava pessoalmente ofendido com a recusa de seus
serviços?
Rachel tinha enviado Ian para dizer aos Crombies que eles
seriam mais que bem-vindos à festa depois do casamento,
mesmo que eles não sentissem que poderiam aprovar a reunião
na qual o casamento ocorreu, mas eu duvidava que alguns deles
poderia.
E a maioria deles não o fez. Cyrus, no entanto, estava agora
parado na porta da cozinha, os olhos fixos resolutamente em
Fanny, apesar do intenso rubor em suas bochechas. Ele estava
vestido em suas melhores roupas de domingo, como o que tinha
que ser o velho, mas bem cuidado, tartan azul-escuro de Hiram
sobre o ombro, e seu cabelo trançado formalmente sobre cada
orelha.
“Er...” Peguei a colher da mão de Fanny e acenei para Cyrus,
que tinha um pequeno pacote embrulhado em um guardanapo de
1770

linho em uma das mãos. “Por que você não leva Cyrus para dar
os parabéns para o casal feliz?”
Fanny estava tão vermelha quanto Cyrus neste momento, mas
ela arrumou sua touca, alisou a frente de seu bom vestido branco
com bordados em azul e amarelo, e foi encontrá-lo com todas as
evidências de seu autocontrole.
“Ooh”, disse Patience, com respeito. “Ele é o... pretendente de
Fanny?”
“O Amigo Jamie aprova isso? Prudence perguntou, franzindo a
testa para eles. “Fanny é muito jovem para essas coisas, não é?”
“Ela já tem suas regras”, Patience disse, com um encolher de
ombros. “Ela me contou.”
“Mas ele é tão alto. Como eles poderiam...”
“É um pouco cedo para Cyrus ser chamado de qualquer coisa
assim, eu acho”, eu disse com firmeza. “Eles são amigos, isso é
tudo. Aqui, me deem uma mão com estas bandejas de peixe frito;
eles devem ir para a grande mesa abaixo da árvore de abeto.”
Ajudei-as a irem para a varanda, depois parei um pouco,
observando as festividades. Silvia e Bobby estavam sentados em
cadeiras um ao lado do outro sob o grande carvalho branco, e eu
vi Fanny conduzindo Cyrus através da multidão para falar com
eles. Era cedo demais para as pessoas estarem bêbadas, mas um
número delas estaria nas próximas uma ou duas horas.
As pessoas comiam em mesas armadas na grama, na varanda e
nos degraus, e os cheiros deliciosos de porco assado e bolo de
canela, misturados com os vapores do uísque, perfumavam o ar.
Meu estômago roncou de repente, e Jamie, que havia saído da
casa atrás de mim, riu.
“Você ainda não comeu nada, Sassenach?”
“Bem... não. Eu estava ocupada.”
1771

“Bem, agora não está”, ele disse com firmeza, e me entregou o


prato de milho com manteiga, porco assado fresco e inhame com
castanhas que ele estava segurando. “Sente-se e coma, a
nighean. Você está exausta.”
“Bem, mas ainda há...”, eu engoli um bocado de saliva. “Bem,
talvez...”
Ele pegou meu cotovelo e me levou até minha cadeira de
balanço, esta temporariamente vazia. Sentei-me, de repente
grata pela sensação de alívio que subiu dos meus tornozelos até
a nuca. Jamie colocou o prato no meu colo e enfiou um garfo na
minha mão.
“Você não vai a lugar nenhum, Sassenach, até que você tenha
comido isso, então não me diga o contrário. Jem! Traga para a
sua avó pão de castanhas e torta de pêssego – com uma boa
porção de creme sobre ela.”
“Eu... isto é... bem... se você insiste...” Eu sorri para ele, dando
uma garfada em um pedaço de inhame com mel, e fechei os
olhos, entregando-me ao êxtase.
Então os abri, ouvindo uma ligeira mudança no barulho e
tagarelice da multidão.
O restante dos Crombies tinha vindo, afinal? Mas não – era um
cavaleiro em um cavalo cinza, um único homem alto com um
tricórnio e um sobretudo escuro que batia como asas enquanto
ele cavalgava, subindo a estrada de carroças e fazendo isso a
galope.
“Se for o maldito Benjamin Cleveland...”, eu comecei,
colocando meus pés para baixo. Jamie me parou, com a mão no
meu ombro.
“Não, não é.” Algo em sua voz me fez levantar lentamente. Eu
coloquei meu prato abaixo da cadeira de balanço e fiquei ao lado
1772

de Jamie. Ele estava suficientemente estável, mas sua mão


direita estava cerrada na cabeça de sua bengala, os nós dos dedos
brancos.
As pessoas estavam se virando para olhar para o cavaleiro,
distraídas de suas conversas. Jamie ficou imóvel, o rosto
ilegível.
Então o cavaleiro veio direto para a borda do alpendre e freou e
meu coração saltou quando vi quem era. William tirou o chapéu
e inclinou-se na sela. Ele estava respirando com dificuldade, seu
cabelo escuro estava colado à cabeça com suor, e havia manchas
vermelhas em suas maçãs do rosto largas. Ele engoliu o ar, os
olhos fixos em Jamie.
“Senhor”, ele disse e engoliu em seco. “Preciso de sua ajuda.”
1773
1774
1775

NOTAS DA AUTORA

Figuras de linguagem históricas e escocesas

uma aranha cheia de bacon = a spider full of bacon – Uma


"aranha" é/era uma frigideira grande com um grande cabo e três
pernas longas, para que pudesse ficar em uma cama de brasas,
assim desempenhando a função de uma grelha, para fritar bacon
ou cozinhar panquecas ou corn dodgers (também conhecido
como "bolinho de viagem"). Além disso, era colocada sob um
encaixe de assar carne para apanhar os gotejamentos e também
para refogar vegetais (nos referidos gotejamentos).

girdle e crud cremoso = girdle and creamed crud – Estas são as


versões do dialeto escocês de (respectivamente) “grelha” e
“coalhada com creme”. Você teria que perguntar a algum escocês
por que é assim.

toe gunge (da lista de compras de Claire) - “Gunge” (gosma) é


uma gíria americana da década de 1960 referindo-se a qualquer
substância desagradável, mas mal definida; Claire saberia disso.
Toe – dedo do pé.

lata de cerveja = can of ale – Antes de haver latas de cerveja de


alumínio, havia pequenas latas (também chamados de “cannikins”)
feitas (geralmente) de estanho. Estas não eram descartáveis,
contudo.

Palavras, palavras, palavras...

imminent versus immanent – iminente versus imanente –


1776

Semelhante, mas não o mesmo:


“imminent” - “iminente” significa – prestes a acontecer”.
“immanent” “imanente” significa – “existente ou operando dentro;
inerente."

metanoia – metanóia – “Uma mudança transformadora de


coração”, particularmente uma mudança espiritual ou conversão.

reducing a dislocation or fracture – reduzir uma luxação ou fratura


– O termo médico apropriado para colocar uma articulação
deslocada ou um osso quebrado de volta no lugar.

Pessoas úteis e bons amigos cujos nomes eu roubei

Stephen Moore – gerente administrativo dos escritórios de


produção do Outlander e um Cavalheiro Muito Capaz, também!

Gillebride MacIllemhaoil (traduzido para a grafia em Inglês


como “MacMillan” por conveniência) – Gillebride é o talentoso
músico/cantor que interpretou Gwyllym, o Bardo na temporada 1
(episódio3) da série de TV Outlander e generosamente me permitiu
usá-lo como um caçador de ursos e um dos valiosos inquilinos de
Jamie.

Chris Humphreys (também conhecido como CC Humphreys)


– Chris é um maravilhoso romancista histórico e um bom amigo
meu. Se você está procurando algo para ler depois de Bees, eu
aconselharia dar uma olhada nele.

Carmina Gadelica e Gaélico/Gàidhlig neste livro


1777

A maioria das expressões gaélicas (e muitas das francesas) neste


livro foram fornecidas com a gentil assistência de Catherine
MacGregor, Ph.D.
Formas de versos gaélicos traduzidos foram tomados (com
permissão da Carmina Gadelica Society) da Carmina Gadelica,
uma compilação de “hinos, orações e encantamentos” orais das
Terras Altas e Ilhas da Escócia, feitas no início do século XIX pelo
reverendo Alexander Carmichael. (Algumas edições da Carmina
Gadelica estão disponíveis online, se você quiser explorar mais.)

Jornais

Jornais do período foram impressos por indivíduos, e seus nomes


refletiam as simpatias políticas, princípios ideológicos e
personalidades de seus proprietários, como fazem hoje.
The Impartial Intelligencer*755 era um jornal real, publicado na
Carolina do Norte durante a década de 1770. Para que ninguém
pense que L'Oignon de Fergus e Marsali é uma improbabilidade
fantasiosa, quero dizer... em meio a uma infinidade de sérios
“centinals” [sic]756, “gazetas”, “jornais” e “anunciantes”, nós
também encontramos na Carolina do Norte do século XVIII: The
Herald of Freedom; The Post-Angel ou Universal Entertainment;
The North Carolina Minerva, ou Anti-jacobin (NB: o "Anti-
jacobin"*757 foi evidentemente adicionado em 1803, então não é

755
Nota da autora - Nota histórica: Este jornal foi publicado em New Bern, Carolina do Norte, entre
(aproximadamente) 1764 e 1775; The Cape-Fear Mercury um pouco mais tarde, por volta de 1783. Não há
publicação de registros de jornais da Carolina do Norte durante os anos de guerra da Revolução Americana.
Isso não significa que não houvesse jornais, apenas que tais periódicos não sobreviveram. Às vezes, nem
os jornalistas. Reportagem era um negócio arriscado.
756
Nota da Tradução – “sic” é um advérbio latino que significa ‘assim’, ‘desse modo’, ‘desta forma’.
Indica ao leitor que o texto, a expressão ou a palavra foi transcrita exatamente como foi encontrada. Não
foi encontrado significado da palavra ‘centinals’. Em alguns textos históricos antigos, essa palavra foi
encontrada com um sentido semelhante a sentinelas. Podemos supor que se trata de algum tipo de jornal,
impresso e divulgado quando necessário.
757
“Jacobino” era/não era a mesma coisa que “Jacobita”. Há mais de um significado para "Jacobino"
(havia uma ordem de monges dominicanos franceses assim chamados, para começar), mas o mais comum
significado é/era: “um membro de um grupo político extremista ou radical, especialmente: um membro de
um tal grupo que defende a democracia igualitária e se engajarou em atividades terroristas durante o
1778

tecnicamente um jornal do século XVIII, mas ainda assim).

Esportes

Golfe e bolas de golfe

O golfe é praticado nas Ilhas Britânicas desde o século XV, e


portanto, as bolas de golfe são bastante familiares a William (parte
3).
"o suficiente sobre a questão para tirar a pele da mão de Percy
se ele tentasse pegá-la” – Esta é uma referência ao críquete, não
ao beisebol.

Pessoas e lugares reais

Sargento Bradford – Lamento não saber o primeiro nome do


Sargento Bradford. Ele é o encantador ator de reencenações que
(em 2019, pelo menos) levava os visitantes ao Museu de História
de Savannah através de um passeio a pé pela Batalha de Savannah,
tanto pelo museu quanto pelo campo de batalha, incluindo a chance
de atirar com armas de época (descarregadas, infelizmente) no
abrigo. Ele deu a mim/nós um maravilhoso relato detalhado da
batalha, com notas laterais sobre muitos aspectos políticos e figuras
militares envolvidas, bem como a forma de mitra achatada do seu
boné da farda característica.

Joseph Brant (Thayendanegea) – Uma das personalidades mais


interessantes do período da Guerra Revolucionária, Joseph Brant
viveu em dois mundos, muito eficazmente. Um importante líder

período da Revolução Francesa de 1789.” (Daí a adição de "Anti-Jacobino" ao nome do jornal em 1803.)
O Jacobita, como presumivelmente todos nós sabemos agora, era especificamente um defensor da
monarquia Stuart, encabeçado - no início - pelo Rei Jaime III (o Velho Pretendente), sendo "Jacobita"
derivado de “Jacobus”, a forma latina do nome “James”.
1779

militar entre os iroqueses (embora ele acabou por ser denunciado


como um traidor pela venda de terras para os britânicos e expulso
da confederação iroquesa), ele também tinha educação
universitária e viajou para a Inglaterra (a convite) para visitar o rei
– que, não injustificadamente, queria estabelecer uma relação
cordial com os Iroqueses e outros grupos nativos para que
ajudassem na repressão dos Rebeldes americanos.

Patrick Ferguson – Definitivamente uma pessoa real, o Major


Ferguson recebeu o trabalho de formar uma milícia legalista no Sul
e usá-la para forçar a submissão dos rebeldes locais. Algumas
vezes, isso funcionou melhor que em outras ...

Frederick Hambright - Um dos comandantes da milícia (na


verdade, um segundo no comando de William Chronicle, que foi
morto no início da batalha), quem participou da Batalha de Kings
Mountain foi um Frederick Hambright, que tinha sido um oficial
colonial antes e patriota local. Eu geralmente ando nos campos de
batalha sobre os quais escrevo – frequentemente mais de uma vez.
Eu andei em Kings Montain talvez quinze anos atrás, mas tive a
chance de fazê-lo novamente, mais recentemente. Nesta ocasião,
eu cheguei tarde no dia e, tendo passado através do saguão de
entrada, fui saudada por um guarda florestal cujo crachá lia-se
Hambright. Ele me disse que faltava apenas uma hora para o
parque ser fechado, e talvez eu não conseguisse contornar a trilha
(circular). Eu assegurei a ele que conseguiria – é menos de uma
milha – e eu consegui. Eu o encontrei novamente na saída e fiz uma
pausa para me despedir. Conversamos um pouco e ele me disse que
um de seus antepassados lutou na Batalha de Kings Mountain.
Agradeci e garanti a ele que mencionaria seu ancestral no livro –
que eu ainda não tinha começado a escrever. Eu me lembrei, no
entanto; quero dizer, “Hambright” não é um nome você esqueceria.

Benjamin Lincoln e a narcolepsia – General Benjamin Lincoln


foi um importante participante na Campanha Sulista da Revolução.
1780

Ele teve a infeliz distinção de ter se rendido quatro vezes aos


britânicos, na última vez (o Cerco de Charles Town) tendo que
entregar um exército inteiro como prisioneiros. Ele também
pensava que sofria de narcolepsia – uma aflição em que o sofredor
frequentemente adormece sem aviso prévio. Isso naturalmente não
pôde ser documentado com certeza, mas a menção de que é comum
o suficiente, então eu permiti que ele dormisse quando Roger foi
procurar Francis Marion, pouco antes da Batalha de Savannah.

Francis Locke – O comandante do “Regimento das Milícias” na


Carolina do Norte durante a Revolução Americana. Como você
deve ter notado, na leitura neste livro, havia muitas unidades de
milícias independentes, devido ao terreno irregular e distribuição
irregular de pessoas. Foi a ideia de Locke reunir todas essas
unidades para que pudessem trabalhar em conjunto – uma noção de
que provavelmente era melhor em conceito do que em execução. O
Regimento de Milícias (ou parte delas) lutaram em apenas duas
pequenas ações durante a Revolução. Como observa Jamie,
distância e dificuldades de comunicação fez o regimento
inadequados para pequenas emergências e difícil de executar em
grandes ocasiões.

Francis Marion – também conhecido como “a Raposa do


Pântano”. Francis Marion foi uma pessoa notável na Campanha do
Sul. Começando como um comandante independente de sua
própria companhia (que poderia ter sido descrita como milícia, mas
que também poderia ter sido descrita como invasores de guerrilha
independentes; ele realmente perseguiu e matou escravos libertos
que lutavam pelos britânicos, que – como Claire observa – não é
algo que a Disney escolheu incluir em sua série sobre ele), mais
tarde ele lutou de uma forma mais convencional, como parte do
exército continental, onde serviu como tenente-coronel e depois
general de brigada.

Casimir (Kasimierz) Pulaski – Um arrojado e eficaz cavaleiro


1781

polonês que se ofereceu para lutar com o exército continental e se


tornou um general e o comandante de cavalaria do exército. Pulaski
foi morto em uma incumbência arriscada durante a batalha de
Savannah – exceto que ele não morreu imediatamente. E aí começa
uma série de mistérios que perduram até os dias atuais.
Pulaski foi gravemente ferido por uma metralhadora –
atingido na cabeça e no corpo (você vê Roger tentando estancar o
sangramento no campo de batalha, antes que os homens de Pulaski
viessem buscá-lo) – mas não morreu imediatamente. Ele foi visto
rapidamente por um cirurgião Continental, mas então, a seu próprio
pedido – supostamente – ele foi colocado a bordo da chalupa
Wasp (que estava à espreita nas proximidades) e foi levado ao mar,
sob os cuidados de outro médico. Ele morreu a bordo do navio um
ou dois dias depois, e seu corpo foi levado para terra.
Supostamente, ele foi enterrado em algum lugar próximo, embora
seus (presumivelmente seus) ossos foram posteriormente
enterrados sob um monumento na cidade de Savannah (o
monumento ainda está lá).
Este comportamento bastante estranho pode ser explicado por
uma descoberta no século XXI, feita quando o que se supunha
serem os ossos de Pulaski foram removidos temporariamente
durante uma renovação do monumento – e os referidos ossos foram
descobertos como sendo (aparentemente) de uma mulher.
Bem, coisas estranhas aconteceram; vide a agitação recente
quando o caixão de chumbo (presumivelmente) de Simon Fraser, a
Velho Raposa, foi aberto e provado conter o corpo de uma jovem.
Neste caso, porém, é possível que os ossos de aparência feminina
podem realmente ter sido os de Casimir Pulaski, como uma análise
recente de DNA parece indicar que os ossos pertenciam a uma
pessoa “intersexo” ou hermafrodita.
Se os ossos forem de fato de Pulaski e se ele for de fato
intersexo ou mulher, essa é uma explicação muito boa para porque
ele queria ser levado a bordo do Wasp, em vez de ser tratado por
um médico do exército em terra, onde seu segredo teria sido
descoberto e tornado público.

Haym Salomon – “O Financiador da Revolução”. Um judeu


1782

polonês com um talento para o setor bancário, Salomon foi um dos


colaboradores mais importantes para o sucesso da Revolução
Americana, pois sucessivamente ele conseguia obtenção de
empréstimos que mantiveram o exército de Washington à tona.

Ilha de St. John – Mais tarde foi chamada de "Ilha Príncipe


Edward", como é chamada hoje. Foi para este local que Jocasta
MacKenzie Cameron Cameron Cameron Innes e seu quarto
marido, Duncan Innes, mudaram-se após o início do Revolução.

The City Tavern era uma taverna real em Salisbury e na verdade


se chamava “City Tavern.” (Para o benefício de leitores
perspicazes que estarão pensando para si mesmos que "taverna da
cidade" não deve ser maiúsculo...) Os Salisburyitas eram
aparentemente um bando pragmático, dados os nomes das atrações
locais, tais como “Town Creek” e “Old Stone House (1766)”.
“Great Wagon Road” é tão romântico quanto pode ser aquele
pedaço de madeira – e Salisbury não deu o nome da rua, apenas
limitou-a.

Coronel Johnson do Departamento do Sul (agentes indígenas) –


Havia dois Johnsons que chefiavam o departamento, um sucedendo
o outro, embora eu não pense que eles fossem parentes.

Figuras de linguagem não inglesas

a vos souhaits / a tes amours – A tradicional bênção franco-


canadense ao ouvir alguém espirrar. Traduzido literalmente,
significa “aos seus sonhos/ aos seus amores.” (Um pouco mais
gracioso do que "Gesundheit" ou o onomatopoético “Blesshu”
talvez...)

stercus - “excremento” (latim).


1783

filium scorti - “Filho da puta” (latim).

cloaca obscaena - “Esgoto obsceno” (latim).

“tace é o latim para vela” – Esta é uma tradição comum no século


dezoito nas conversas entre as classes superiores (que falavam
latim). “Tace” é o imperativo que significa “fique em silêncio”, e
a vela é um símbolo de luz. Portanto, a expressão significa
(essencialmente) "manter no escuro" – em outras palavras, “seja
discreto e não diga nada sobre o que falamos."

pozegnanie – “adeus ou até a próxima” (polonês).

As frases e figuras de linguagem em Gáidhlig são definidas no


texto.

William Butler Yeats (1865 – 1939)

Innisfree, a ilha do lago

(Versão de Pedro Belo Clara a partir do original publicado em


1890, no jornal britânico The National Observer.)

Erguei-me-ei e de pronto partirei, para Innisfree partirei,


e uma pequena cabana farei, com argila e canas por telhas:
nove renques de feijão plantarei, uma colmeia terei,
1784

e só viverei no seio do alto rumor das abelhas


-
E alguma paz aí terei, pois a paz goteja lentamente,
goteja dos véus da manhã até onde o grilo canta;
onde a meia-noite é cintilante, e o meio-dia um brilho fulgente
e o entardecer cobre-se de asas de pintarroxo, qual manta.
-
Erguei-me-ei e de pronto partirei, pois noite e dia
escuto as águas na margem em suave ondulação;
esteja na estrada, ou nos passeios de cinza agonia,
Escuto o seu murmúrio no mais fundo do coração.

Miscelânea

Shreddies – roupa íntima da RAF. Assim chamada,


aparentemente, porque o padrão de tecido da qual elas foram feitas
se assemelhava fortemente à aparência de um biscoito Shredded
Wheat.

O título da Parte Três é derivado de uma citação da romancista


Florence King:
“Nas questões sociais, convenções inúteis não são apenas a
picada de abelha da etiqueta, mas a picada de cobra da ordem
moral.”
Florence King

Maçons Negros – A certa altura, Claire se pergunta se existem


Maçons Negros. Na verdade, havia. Prince Hall, um conhecido
abolicionista e líder negro, estabeleceu a Maçonaria Prince Hall
(Boston).

Marinha do Haiti
1785

Você vê referências frequentes de relatos históricos da "Marinha


do Haiti" Chasseurs-Volontaires (caçadores voluntários), que
lutaram com os americanos durante o Cerco de Savana. Na
verdade, o Haiti não existia como um governo neste momento da
história, e esses voluntários negros eram, na verdade, de Saint-
Domingue (mais tarde a República Dominicana) e outros lugares,
e seu histórico é fascinante, mas não foi algo que fui capaz de
abordar durante minha discussão sobre a batalha de Savannah. Os
detalhes a seguir, no entanto, são do site blackpast.org e nos dão
uma imagem mais completa:

As tropas de D'Estaing eram compostas principalmente por


regimentos coloniais vindo de vários locais, como Guadalupe,
Martinica e Saint-Domingue. Os 800 homens das colônias
francesas do Caribe foram organizados em um regimento chamado
Chasseurs-Volontaires de Saint- Domingue. Esses soldados eram
des gens de couleurs libres (pessoas de cor livres) que se juntaram
voluntariamente às forças coloniais francesas. A gens de couleur
eram homens mestiços de origem africana e europeia de Saint-
Domingue. Eles nasceram livres e, portanto, eram distintos dos
escravos libertos, ou franqueados, que nasceram escravos ou
tornaram-se escravos durante suas vidas e então se libertaram ou
foram libertados. Essa distinção permitiu à gens de couleur um
papel de maior posição social e política na colônia Francesa das
Índias Ocidentais. De acordo com o Black Code Francês de 1685,
eles tinham os mesmos direitos e privilégios que os brancos da
população colonial. Na prática, no entanto, forte discriminação por
parte dos residentes coloniais franceses brancos impediam a gens
de couleurs de exercitá-los plenamente.

Culturas e linguagem

Este não é o momento ou lugar para discutir o retrato de culturas


na ficção, salvo dizer que

1. Não há duas pessoas que pertençam a uma cultura e a


1786

experimentam da mesma forma, e


2. Se os escritores se sentirem constrangidos a escrever
apenas sobre suas próprias experiências, cultura, história ou
formação... bibliotecas estariam cheias de biografias enfadonhas, e
muitos que fazem uma cultura – a variedade e o vigor de sua arte –
se perderia e a cultura morreria.

Dito isso, quando você escreve sobre qualquer coisa que não
seja sua experiência, você precisa da ajuda de outras pessoas,
independentemente de recebê-la de livros (necessário, se você está
escrevendo sobre situações e eventos históricos) ou de histórias e
conselhos pessoais.
Durante os últimos trinta e três anos, tive a sorte de encontrar
várias pessoas gentis e prestativas que estavam mais do que
dispostas a me aconselhar sobre os detalhes de sua própria cultura
(conforme vivenciada por elas), e consequentemente, acho que as
várias representações dessas culturas se aprofundaram e
melhoraram ao longo da escrita desses livros. Espero que sim.
Quando isso acontece, porém, os detalhes naturalmente irão
variar, e conforme você adquirir mais contatos e mais
conhecimento, você se deparará com alguns conflitos entre relatos.
Dado que você realmente não pode voltar e revisar eventos e
personagens em um livro anterior, o melhor que você pode fazer é
ajustar a escrita atual, na medida do possível, e usar as informações
aprimoradas quando escrever o próximo livro.
Nas fases finais da escrita de Go Tell the Bees That I Am
Gone, eu tive a honra de conhecer urso kahentinetha, uma ativista
Mohawk, de oitenta e dois anos de idade, que foi mais do que útil
em me fornecer informações culturais detalhadas, bem como Eva
Fadden, a consultora da linguagem Mohawk para o Programa de
TV de Outlander. Eva e sua família são as curadoras das Seis
Nações do Centro Cultural Iroquês (www.6nicc.com). Ambas as
senhoras me deram informações fascinantes, algumas das quais
estavam em desacordo com os relatos históricos (todos escritos por
pessoas não-mohawk) que eu usei em livros anteriores. Então, usei
as informações úteis dessas mulheres o máximo possível, e
continuarei a aplicá-las (e qualquer conselho adicional que elas e
outras pessoas me dão) em livros futuros.
1787

Como um breve exemplo, aqui está a descrição de


kahentinetha758 a nomenclatura, a qual não está de acordo com o
nome do filho de Ian Murray nos romances. Alguém poderia
argumentar que as circunstâncias eram bastante diferentes e que as
pessoas envolvidas estavam ligadas a Joseph Brant e, portanto, não
viviam inteiramente dentro do ambiente cultural normal, e acho
que isso é válido. Mas eu quis fornecer informações de
kahentinetha, apenas como ilustração (e em agradecimento por seu
comentário muito elegante):

Oramos – nós não oramos como cristãos. Nos reunimos em


nossa tribo e descrevemos o sonho. Não interpretamos o sonho.
Nós estamos à espera do próximo sonho e um sinal que dará
sentido ao sonho inicial. Também o nome é dado pelo povo e o
bebê é apresentado a todos na tribo na maloca. Quando a pessoa
morre, na última noite, antes de ser enterrada, há uma cerimônia
para pegar de volta o nome para que ele ou ela saia sem ele. Agora,
outra pessoa pode usá-lo. No mundo duas pessoas não podem ter
o mesmo nome. A pessoa mais velha com o nome pode mantê-lo,
mas o mais jovem tem que voltar para a maloca, vestir roupas
novas e receber um novo nome.
KAHENTINETHA BEAR (citado com permissão)

758
3 kahentinetha (seu nome significa "ela faz a grama se mover") me informara que os moicanos não usam
letras maiúsculas, embora ela abra uma exceção para seu blog, Mohawk Nation News, para torná-lo mais
acessível aos leitores em geral. (www.mohawknationnews.com).
1788

Este é para Doug


Norte verdadeiro
1789

AGRADECIMENTOS

Como sempre, este livro é um Grande Monstro que levou vários


anos para ser escrito. Desta vez, dezenas – se não centenas – de
pessoas úteis me deram assistência e informações, e enquanto eu
tenho tentado anotar e lembrar de todas elas, tenho certeza de que
estou omitindo qualquer quantidade de almas bondosas – que, no
entanto, são Apreciadas Profundamente!

Eu gostaria de agradecer especialmente ...


… Minhas valiosas editoras, Jennifer Hershey (EUA) e
Selina Walker (Reino Unido), Erin Kane (associada editorial) e a
“Equipe” da Penguin Random House que tem sido de grande valor
na edição, publicação e promoção dos meus livros ao longo de
tantos anos – e ainda estou nisso:
… Kara Welsh, Kim Hovey, Allison Schuster, Quinne
Rogers, Melanie DeNardo, Jordan Pace, Bridget Kearney – e –
... As pessoas nobres e sofredoras da produção que realmente
conseguem um manuscrito pesado entre as capas: Lisa Feuer, Kelly
Chian e Maggie Hart. E –
… Laura Jorstad e Kathy Lord, revisoras, cuja incansável
habilidade manteve este livro no (principalmente) caminho direto
e estreito da grafia correta, uso e outras coisas que eu não teria
pensado. E –
… Mais particularmente, Virginia Norey, a Deusa do Livro,
a designer deste lindo livro e muito mais!
... e um agradecimento muito especial à minha querida amiga
e tradutora alemã, Barbara Schnell, pois sem seu olhar perspicaz e
comentários prestativos, este livro teria MUITO mais erros do que
ele (sem dúvida) tem.

Também…
1790

… A reverenda Julia Wiley, da Igreja da Escócia, por suas


inestimáveis percepções e conselhos sobre o desenvolvimento
espiritual e ordenação de um Ministro presbiteriano;
… Dra. Karmen Schmidt, por seus elegantes conselhos sobre
questões médicas, anatômicas e apiariais
… Susan Butler, assistente pessoal e revisora, sem a qual
nada jamais seria enviado pelo correio e a família cairia em
desordem completa;
… Loretta McKibben, minha mestre da web (de
dianagabaldon.com), a mais antiga amiga e especialista em
assuntos astronômicos e astrofísicos;
… Janice Millford, que mantém os e-mails recebidos em
ordem e evita de eu estar permanentemente submersa;
… Karen Henry, moderadora e chefe Bumblebee-Herder
(NT: Pastora de Zangões) da Seção do Fórum Literário de Diana
Gabaldon (TheLitForum.com), pela atenção nestes muitos anos, e
… Sandy Parker, que, com Karen, é membro do Cadre of
Eyeball-Numbing Nitpickery (NT : Facção Detalhista dos Olhos
Entorpecidos), sem a qual haveria muitos mais erros nesses livros
do que existem;
... meus dois agentes, Russell Galen e Danny Baror, que
juntos conquistaram Grandes Coisas ao longo dos anos, para
Outlander e para mim;
… a fabulosa Catherine MacGregor – tradutora multilíngue
por excelência, e as maravilhosas Cathy-Ann MacPhee e Madame
Claire Fluet, que forneceram a maioria das expressões gaélicas e
francesas usadas neste livro; também –
… Adhamh O'Broin, que forneceu a versão gaélica de
execração das formigas de Amy Higgins e –
kahentinetha bear, que foi muito útil com as representações
de língua e cultura kanienkehaka; e Eva Fadden, que assessorou e
ajudou com o diálogo Mohawk tanto para este livro quanto para a
série Outlander da TV, e –
... às muitas, muitas almas amáveis diversas das redes sociais
que têm contribuído com observações geográficas ou históricas
locais, conselhos sobre ortografia e pronúncia de palavras em
idiomas que não falo, e anedotas úteis – bem como centenas de
fabulosas fotos de abelhas.
1791

Além disso, um agradecimento especial a Tina Anderson e


Dr. Bill Amos, que doaram uma grande quantia em leilão no
Amelia Island Book Festival, para a promoção dos objetivos
educacionais da Amelia Island Foundation (fornecendo livros de
propriedade individual para cada criança na ilha), e que em
consequência, são representados neste livro como a.) uma
glamourosa socialite Savannah e b.) (por solicitação) "um
Highlander corpulento e de cabelos negros".
Minhas desculpas a todas as pessoas que eu tenha
momentaneamente esquecido; você vive em meu coração e retorna
(ainda que esporadicamente) sempre às minhas memórias.
1792

De Diana Gabaldon

Série Outlander
A VIAJANTE DO TEMPO
A LIBÉLULA NO ÂMBAR
O RESGATE NO MAR
OS TAMBORES DO OUTONO
A CRUZ DE FOGO
UM SOPRO DE NEVE E CINZAS
ECOS DO PASSADO
ESCRITO COM O SANGUE DO MEU PRÓPRIO CORAÇÃO
VÁ, DIGA ÀS ABELHAS QUE EU PARTI

Série de Lord John


LORD JOHN E O ASSUNTO PRIVADO
LORD JOHN E A IRMANDADE DA ESPADA
O COSTUME DO EXÉRCITO (CONTO)
LORD JOHN E A MÃO DOS DEMÔNIOS (COLETÂNEA DE
CONTOS)
O PRISIONEIRO ESCOCÊS
UMA PRAGA DE ZUMBIS (CONTO)
SITIADO (CONTO)

Salmagundi759
THE OUTLANDISH COMPANION (NÃO-FICÇÃO)
O EXÍLIO (NOVELA GRÁFICA)
THE OUTLANDISH COMPANION VOLUME DOIS (NÃO-
FICÇÃO)
UMA FOLHA AO VENTO DE TODOS OS SANTOS (CONTO)
O ESPAÇO INTERMEDIÁRIO (CONTO)
VIRGENS (CONTO)
UM VERDE FUGIDIO (CONTO)
“EU TE DOU MEU CORPO…” (NÃO-FICÇÃO)

759
Uma coleção de elementos díspares.
1793

O CÍRCULO DAS SETE PEDRAS (COLETÂNEA DE


CONTOS)
1794

Você também pode gostar