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Competências federativas: uma análise da decisão do STF

no caso das medidas de combate ao Covid-19


POR: GUILHERME FRANCISCO SOUZA AMARAL

RESUMO: A Constituição Federal estabelece um sistema complexo de repartição de


competências federativas, envolvendo tanto repartições verticais (em que mais de um
ente federado compartilha a mesma competência) como repartições horizontais (em que
apenas um ente goza de determinada competência). O critério doutrinário extraído da
constituição para se repartir as competências verticais é o da Predominância dos
Interesses. Por meio desse princípio, cabe à União legislar sobre normais de interesse
nacional, aos Estados normais de interesse regional e aos municípios normas de
interesse local. Recentemente, encontra-se sob julgamento na Suprema Corte a Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6341, na qual foi discutida a repartição de
competências relativas às medidas de enfrentamento do COVID-19. Serão analisadas a
cautelar e sua posterior manutenção proferidas, respectivamente, pelo Ministro Marco
Aurélio e pelo plenário do STF, tendo como base o princípio da Predominância dos
Interesses. Assim, concluir-se-á que foi acertada a decisão do STF, uma vez que o
Princípio da Preponderância, efetivamente, aponta para a impossibilidade de que a
União esgote a competência federal para proteger a saúde pública, no âmbito do
enfrentamento ao COVID-19.
PALAVRAS-CHAVE: repartição de competências federativas; princípio da
preponderância dos interesses; ADI nº 6341.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Do federalismo e das competências federativas. 2.1. Das
técnicas de repartição de competências. 2.2. Da repartição de competências
administrativas e legislativas. 2.3. Do princípio da preponderância dos interesses. 2.4.
Da competência suplementar e delegada. 3. Do objeto da ADI nº 6341. 4. Da análise da
decisão do Supremo Tribunal Federal. 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a decisão proferida na Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6341, na qual foi discutida a competência dos
entes federados em relação às medidas para enfrentamento da pandemia do COVID-19.

A matéria é de vital importância em razão do cenário pandêmico atual, que exige


esforços de âmbito nacional, com cooperação mútua da União com Estados e
Municípios.

Nesse sentido, primeiramente será necessária uma distinção conceitual dos tipos
de competência existentes no texto da Constituição Federal (CF), de acordo com a
doutrina. Após, far-se-á uma análise da decisão em si do Supremo Tribunal Federal
(STF), verificando-se se o entendimento da Suprema Corte vai ao encontro ou não da
doutrina constitucional majoritária.

2. DO FEDERALISMO E DAS COMPETÊNCIAS FEDERATIVAS


A Constituição Federal determina em seu primeiro artigo que o Estado Brasileiro
é uma federação indissolúvel entre a União, os Estados, o Distrito Federal e o
Município:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;        

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
(BRASIL,2020).

O termo “indissolúvel” nesse contexto tem como finalidade tornar impossível,


enquanto vigora a Constituição Federal, qualquer rediscussão do pacto federativo.
Posteriormente, no art. 60, §4º, o constituinte originário reforça a indivisibilidade e
torna o pacto federativo cláusula pétrea, impossível de se abolir, portanto, mesmo por
eventual emenda à constituição:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

(...)

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;


(...). (BRASIL,2020).

A forma federativa de um Estado traz diversas implicações à sua forma de


administração e de existência. Todavia, a mais evidente e precisamente o objeto do
presente trabalho é a distribuição das competências federativas.

Resumidamente, os entes federados são proibidos de usurpar as competências


federativas uns dos outros, de modo que não é possível que a União legisle ou exerça
sua competência sobre aquilo que não lhe foi atribuída capacidade, nem que os demais
entes o façam quando a capacidade foi atribuída à União.

Destaca-se que cada Estado federativo existente possui sua própria forma de
divisão de competências, que costumam variar segundo o processo histórico de
formação da própria federação. Não se realizará qualquer análise crítica a respeito da
razoabilidade ou da adequação da forma pela qual a República Federativa do Brasil
optou por distribuir as competências legislativas de seus entes federados.

Nesse sentido, o presente trabalho fará uma análise mais prática, no sentido de se
verificar apenas como foi feita essa distribuição de competências e de como o Supremo
Tribunal Federal as interpretou e aplicou no julgado objeto do trabalho.

2.1 Das técnicas de repartição de competências.


Para o objetivo do trabalho, é necessário se entender de qual maneira a
República Federativa do Brasil escolheu distribuir as competências de seus entes
federados. A doutrina elenca que, entre as federações, há duas formas (ou duas técnicas)
pelas quais as competências podem ser distribuídas (ou repartidas). São elas: a
repartição horizontal e a repartição vertical.

Ocorre a repartição horizontal quando determinada matéria não é compartilhada


entre os entes federados. Em outras palavras: se determinada competência é atribuída a
um ente, ele a exercerá com autonomia plena, independentemente de como os demais
entes o fazem.

Nas palavras de Fernandes (2018):


É a técnica na qual, há uma distribuição estanque (fechada) de competência
entre os entes, ou seja, cada ente terá suas competências definidas de forma
enumerada e específica, não as dividindo com nenhum outro ente. Essa
técnica advém do federalismo dual ou clássico. (FERNANDES, 2017, p.
884).

Por sua vez, a repartição vertical se demonstra quando determinada matéria é,


simultaneamente, de competência de mais de um ente federativo. Em outras palavras: a
Constituição Federal permite que mais de um ente exerça ou legisle sobre determinado
assunto.

Segundo Fernandes (2018):

É aquela técnica na qual dois ou mais entes vão atuar conjuntamente ou


concorrentemente para uma mesma matéria. A repartição vertical surge na
Constituição alemã de Weimar, de 1919. No Brasil, aparece pela primeira vez
na Constituição de 1934. Atualmente, ela existe na Constituição de 1988.
Essa técnica advém do modelo de federalismo cooperativo ou de integração.
(FERNANDES, 2017, p. 885).

Nota-se que as duas técnicas de repartição podem coexistir em um ordenamento


jurídico, desde que aplicadas para matérias distintas. É precisamente isso que se verifica
na Constituição Federal, na qual há determinadas competências federativas que foram
verticalmente repartidas (atribuídas simultaneamente a mais de um ente), e outras que o
foram horizontalmente (atribuídas exclusivamente a um ente).

Nesse sentido, esclarece Fernandes (2018):

Portanto, temos que o Brasil adota um sistema complexo de repartição de


competências, trabalhando tanto a repartição horizontal (de competências
enumeradas

e remanescentes) quanto a repartição vertical (de competências concorrentes


e comuns), tendo o objetivo de desenvolver um federalismo de equilíbrio
(ainda em processo!), no qual permeiam competências privativas (ou
exclusivas), remanescentes, comuns e concorrentes entre os entes que
compõem a Federação (União, Estados-membros, Municípios e Distrito
Federal)

(FERNANDES, 2017, p. 885).

O objeto do presente trabalho será a repartição vertical de competências, uma


vez que é neste que reside o conflito relativo à ADI nº 6341.

2.2. Da repartição de competências administrativas e legislativas


Até o presente momento, têm-se falado de “repartição de competências
federativas” indistintamente. Faz-se necessário esclarecer que dentro do referido
conceito podemos extrair dois que o compõem: repartição administrativa (também
chamada pela doutrina de repartição material) e repartição legislativa.

Elucida Fernandes (2017):


A competência legislativa é a competência que o ente tem para legislar. A
competência administrativa é a competência para a tomada de decisões ou
execução

de políticas públicas ou para o gerenciamento e desenvolvimento da máquina


administrativa. É também chamada por alguns doutrinadores de competência
material.

Pelos verbos é possível verificar na CR/88 quando se trata de competência


legislativa à luz do verbo legislar ou de competência administrativa que terá
como característica a explicitação dos verbos: manter, guardar, preservar,
emitir, declarar, decretar etc.

(FERNANDES, 2017, p. 891).

A repartição administrativa diz respeito à competência dos entes para agir sobre
determinado assunto. Nesse sentido, as competências administrativas podem ser
exclusivas ou comuns.

Tem-se, por exemplo, que a Constituição Federal estabelece que compete


exclusivamente à União emitir moeda (art. 21, VII, da CF). Por outro lado, estabelece
que é competência comum de todos os entes federados preservar as florestas, a fauna e a
flora (art. 23, VII).

A repartição legislativa, por sua vez, diz respeito à competência legislativa


propriamente dita, ou seja, à competência de cada ente para elaborar leis. Nesse sentido,
subdividem-se em: competências privativas (cabem, em regra, apenas a um ente) e
competências concorrentes (cabe a mais de um ente).

Como exemplo dos tipos de repartição legislativa, nota-se que compete à União,
privativamente, legislar sobre direito civil (art. 22, I, da CF). De outra forma, compete
concorrentemente à União e aos Estados e ao Distrito Federal legislarem sobre direito
tributário (art. 24, I, da CF).

2.3. Do princípio da preponderância dos interesses.


Já foi dito que a Constituição Federal adota um sistema complexo de repartição de
competências, ora se valendo da repartição horizontal (em que não há compartilhamento
da competência) e ora se valendo da repartição vertical (em que há compartilhamento da
competência por mais de um ente federado). Resta elucidar com base em qual princípio
é realizada esta última.

Interpretando-se o texto constitucional, a doutrina destaca que o princípio


norteador da repartição de competências federais é o “Princípio da Predominância dos
Interesses”.

Nas palavras de Fernandes (2018):


Além do princípio da indissolubilidade do vínculo Federativo (já citado),
existe um outro princípio importante para o federalismo e para o tema ora em
análise. Esse princípio é chamado de Princípio da predominância dos
interesses. Nesses termos, à luz do referido princípio: a União tem sempre
interesse geral; os Estados-membros,
interesse regional e os Municípios, interesse local. O Distrito Federal terá
interesse

tanto regional como local, conforme o art. 32 § lº da CR/88 (FERNANDES,


2018, p. 886).

A existência do referido princípio decorre, primeiramente, do §1º do art. 24 da


CF, que estabelece a competência da União para legislar sobre normas gerais:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar


concorrentemente sobre:

(...)

§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-


á a estabelecer normas gerais. (BRASIL,2020).

Posteriormente, estabelece-se no inciso I do art. 30 a competência dos Municípios


para legislar sobre normas de interesse local:
Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;


(BRASIL,2020).

Nota-se que, no âmbito da competência legislativa concorrente, a competência dos


Estados é remanescente, ou seja, cabe aos Estados legislar concorrentemente sobre tudo
aquilo que não seja de interesse geral (normais gerais da União), nem de interesse local
(normas locais dos Municípios). É o que dispõe o § 1º do art. 25 da CF:

Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que


adotarem, observados os princípios desta Constituição.

§ 1º São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas
por esta Constituição. (BRASIL,2020).

Por esse motivo, a doutrina elenca que aos Estados cabe legislar sobre normas que
não sejam de interesse geral (de competência da União), nem de interesse local (de
competência dos Municípios). Seriam, portanto, normas de interesse regional.

Nas palavras de Fernandes (2018):

Nesses termos, fica claro que os Estados poderão legislar sobre todas as
matérias que não lhes sejam vedadas expressamente ou mesmo
implicitamente pela Constituição. Como exemplo, para o exercício das
competências remanescentes dos Estados, podemos observar que quem
organiza e fiscaliza o transporte local são os Municípios, bem como o
transporte interestadual, é a União. Todavia, em relação ao intermunicipal,
não há previsão expressa. Aqui temos que a competência é remanescente dos
Estados-membros (FERNANDES, 2018, p. 886).
O Distrito Federal, por sua vez, sendo ente federado com atribuições típicas tanto
de Município como de Estado, possui competência para editar tanto leis de interesse
local como leis de interesse regional. É o que dispõe o art. 32, §1º, da CF:
Art. 32. O Distrito Federal, vedada sua divisão em Municípios, reger- se-á
por lei orgânica, votada em dois turnos com interstício mínimo de dez dias, e
aprovada por dois terços da Câmara Legislativa, que a promulgará, atendidos
os princípios estabelecidos nesta Constituição.

§ 1º Ao Distrito Federal são atribuídas as competências legislativas


reservadas aos Estados e Municípios. (BRASIL,2020).

Nesse sentido, elucida Fernandes (2018):


Sobre o art. 32, § 1°, afirma a Constituição que: ao Distrito Federal são
reservadas as competências legislativas dos Estados e dos Municípios. Nesses
termos, temos o chamado interesse regional conjugado com o interesse local.
(FERNANDES, 2018, p.  891)

Antes de se adentrar no julgado objeto de análise deste trabalho, convém


esclarecer mais algumas peculiaridades acerca da repartição de competências
legislativas dos entes.

2.4 – Da competência suplementar e delegada.


O legislador constituinte escolheu por conferir aos Estados duas competências
legislativas excepcionais: uma suplementar e uma delegada.

Nesse sentido, dispõe o art. 24, §3º, da CF, que, inexistindo legislação federal
em vigor, os Estados poderão exercer legislação de forma plena (isso significa, editar
normas de caráter geral). Todavia, legislando a União, posteriormente, sobre o tema,
ficam as normas estaduais existentes suspensas, conforme estabelece o §4º do art. 24 da
CF:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre:

(...)

§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-


á a estabelecer normas gerais.      

§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a


competência suplementar dos Estados.    

§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a


competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.      

§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia


da lei estadual, no que lhe for contrário

Há, ainda, a possibilidade de a União delegar aos Estados membros a


capacidade para legislar sobre normas gerais, que, a princípio, seriam de competência
legislativa da União, desde que o faça por Lei Complementar. É o que determina o
parágrafo único do art. 22:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:


(...)

Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar


sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.

Ressalta-se, todavia, que há requisitos elencados pela doutrina, conforme


esclarece Bernardo Fernandes (2018):

É mister salientar que existem requisitos para que possa ocorrer a delegação
das competências privativas da União para os Estados. Nesse sentido, os
requisitos de delegabilidade são: a) Requisito Formal: a União só pode
delegar para os Estados competência legislativa mediante lei complementar.
b) Requisito material: a União só poderá delegar questões específicas das
matérias presentes nos incisos - não podendo delegar o inciso sem
delimitação. c) Requisito Implícito: da isonomia, encontra-se no art. 19, inc.
Ili, CR/88. (FERNANDES, 2018, p. 888-889).
Salienta-se, também, que a delegação não se confunde com abdicação. Ainda
que a União delegue aos Estados a edição de determinada lei, não há óbice a que futura
lei federal seja editada pela União, revogando, portanto, a Lei Delegada naquilo que lhe
contrariar.

Nesse sentido, afirma Bernardo Fernandes (2018):


Por último, é mister salientar que a União, mesmo delegando competências
aos Estados-membros (e Distrito Federal), não abdica delas, podendo então
retomar a sua competência legislando sobre o assunto delegado a qualquer
momento. (FERNANDES, 2018, p. 888-889).

Destaca-se que os Municípios também possuem competência para legislar de


forma suplementar, tal como prevê o inciso II do art. 30 da CF:
Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; (BRASIL,


2020).
Após essa exposição, faz-se possível a análise da decisão do STF em face à
ADI nº 6341.

3. O OBJETO DA ADI Nº 6341.


A referida ADI foi impetrada pelo Partido dos Trabalhadores (PDT), tendo
como objeto as alterações promovidas pela Medida Provisória (MP) nº 926/2020, que
modificou o art. 3º, caput, da Lei 13.979/20, bem como seus incisos I, II, VI e
parágrafos 8º, 9º, 10 e 11. O diploma tem como objetivo regular as medidas de
enfrentamento à pandemia do COVID-19.
Analisar-se-á, brevemente, as mais polêmicas mudanças realizadas pela MP,
que foram questionadas pela referida ADI.

As primeiras principais alterações ocorreram no caput do art. 3º e no seu inciso


VI, bem como nos §6º e §7º:
Art. 3º  Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no
âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:
VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e
fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias,
portos ou aeroportos de:                (Redação dada pela Medida Provisória nº
926, de 2020)
a) entrada e saída do País; e            (Incluído pela Medida Provisória nº 926,
de 2020)

b) locomoção interestadual e intermunicipal;          (Incluído pela Medida


Provisória nº 926, de 2020)      
§ 6º  Ato conjunto dos Ministros de Estado da Saúde, da Justiça e Segurança
Pública e da Infraestrutura disporá sobre a medida prevista no inciso VI do
caput.       (Redação dada pela Medida Provisória nº 927, de 2020)
§ 6º-A  O ato conjunto a que se refere o § 6º poderá estabelecer delegação de
competência para a resolução dos casos nele omissos.       (Incluído pela
Medida Provisória nº 927, de 2020)

§ 7º  As medidas previstas neste artigo poderão ser adotadas:

I – pelo Ministério da Saúde, exceto a constante do inciso VIII do caput


deste artigo;   (Redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020)
nas hipóteses dos incisos I, II, V e VI do caput deste artigo;   (Redação dada
pela Lei nº 14.006, de 2020)      (Vide ADI 6343)

III - pelos gestores locais de saúde, nas hipóteses dos incisos III, IV e VII do
caput deste artigo.

IV – pela Anvisa, na hipótese do inciso VIII do caput deste artigo.        

(...).

Segundo a nova redação, todas as medidas de restrição do inciso VI, inclusive


a restrição de transporte interestadual e intermunicipal, apenas poderiam ocorrer se em
conformidade com ato conjunto elaborado pelo Ministério da Saúde e da Justiça e
Segurança Pública (§6º). Da mesma forma, os gestores locais (gestores estaduais e
municipais) apenas poderiam decidir sobre o tema se assim o fossem autorizados pelo
Ministério da Saúde (§7º, inciso I).

Ademais, a MP também dispôs que nenhuma medida de restrição poderia


obstruir o exercício de atividades essenciais, determinando, ainda, que essas atividades
seriam reguladas por meio de decreto do Poder Executivo Federal. Assim dispõem os
parágrafos 8º e 9º do art. 3º:

§ 8º  As medidas previstas neste artigo, quando adotadas, deverão


resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades
essenciais.          (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
§ 9º  O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços
públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º.          (Incluído pela
Medida Provisória nº 926, de 2020)
Em síntese, a MP 926/20 almejava limitar as capacidades dos Municípios e dos
Estados de editar medidas de restrição de locomoção e de exercício e funcionamento de
atividades essenciais, concentrando na União a capacidade para fazê-lo.

Destaca-se que a ADI 6341 almejava a declaração da inconstitucionalidade dos


dispositivos citados da MP 926/20 por mais de um motivo: inconstitucionalidade formal
por legislar sobre matéria alegadamente reservada à Lei Complementar,
inconstitucionalidade material por abuso de poder ao expedir medida provisória sobre o
tema e, por fim, inconstitucionalidade formal por esvaziar, na competência da União,
competências legislativas e administrativas que caberiam aos demais entes federados.
Dos pedidos da ADI, apenas o último foi parcialmente deferido, até o momento,
pelo STF. Por essa razão, é ele o objeto do presente trabalho.

4. DA ANÁLISE DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.


A primeira decisão de mérito proferida na referida ação foi a do relator, Ministro
Marco Aurélio, em sede de liminar. Em síntese, após negar, cautelarmente, os primeiros
pedidos, o Ministro deu parcial provimento ao pedido de inconstitucionalidade por
usurpação das competências dos demais entes federados.

Assim foi a decisão do Ministro relator:


Surge acolhível o que pretendido, sob o ângulo acautelador, no item a.2 da
peça inicial, assentando-se, no campo, há de ser reconhecido, simplesmente
formal, que a disciplina decorrente da Medida Provisória nº 926/2020, no que
imprimiu nova redação ao artigo 3º da Lei federal nº 9.868/1999, não afasta a
tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito
Federal e Municípios.

3. Defiro, em parte, a medida acauteladora, para tornar explícita, no campo


pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente. (BRASIL,
ADI 6341/DF, 2020).
Destaca-se, primeiramente, que o Ministro utilizou a terminologia “competência
concorrente”. Todavia, a doutrina majoritária classifica as competências do art. 23 como
“competências comuns”, por serem competências federais administrativas. Reserva-se o
termo “competências concorrentes” para as competências federativas legislativas,
previstas no art. 24 da CF.

Não obstante, trata-se de distinção meramente doutrinária. Efetivamente, tal como


exposto, tanto as competências comuns como as concorrentes são espécies de repartição
vertical de competências, as quais, indistintamente, orientam-se segundo o princípio da
Preponderância dos Interesses. Dessa maneira, o termo “competência concorrente”, de
que se valeu o Ministro, se doutrinariamente adequado ou não, em nada prejudica o
mérito da questão.

Ademais, embora o Ministro não utilizado expressamente dessas palavras,


conclui-se ter ocorrido a aplicação da técnica de julgamento da “interpretação conforme
a constituição”. Em síntese, em vez de se ter como inconstitucional o dispositivo
questionado, sublimando-o do ordenamento jurídico, o órgão julgador opta por conferir-
lhe uma única interpretação jurídica possível que o torna constitucionalmente válido.

Nas palavras de Fernandes (2018):

A primeira modalidade de sentenças interpretativas é a conhecida e aqui já


trabalhada interpretação conforme a Constituição, cujo escopo é fixar
uma interpretação pelo Tribunal que seja tida como compatível (em
consonância) com o Diploma Constitucional, de modo a não se declarar a
norma inconstitucional desde que seja aplicada tal interpretação
(FERNANDES, 2018, p. 1578-1579).

Posteriormente, tendo a cautelar sido submetida ao plenário do STF por meio de


sessão virtual, obteve-se a ratificação da decisão do Ministro relator, conforme certidão
de julgamento:
Decisão: O Tribunal, por maioria, referendou a medida cautelar deferida pelo
Ministro Marco Aurélio (Relator), acrescida de interpretação conforme à
Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de explicitar que,
preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do
art. 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante
decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais, vencidos, neste
ponto, o Ministro Relator e o Ministro Dias Toffoli (Presidente), e, em parte,
quanto à interpretação conforme à letra b do inciso VI do art. 3º, os Ministros
Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Redigirá o acórdão o Ministro Edson
Fachin. Falaram: pelo requerente, o Dr. Lucas de Castro Rivas; pelo amicus
curiae Federação Brasileira de Telecomunicações – FEBRATEL, o Dr.
Felipe Monnerat Solon de Pontes Rodrigues; pelo interessado, o Ministro
André Luiz de Almeida Mendonça, Advogado-Geral da União; e, pela
Procuradoria-Geral da República, o Dr. Antônio Augusto Brandão de Aras,
Procurador-Geral da República. Afirmou suspeição o Ministro Roberto
Barroso. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Plenário,
15.04.2020

(Sessão realizada inteiramente por videoconferência - Resolução


672/2020/STF).

(BRASIL, ADI 6341/DF, 2020).

Percebe-se que o STF, por meio de técnica de interpretação conforme à


constituição, entendeu que as alterações promovidas pela MP 926/20, desde que sua
interpretação e aplicação fosse compreendida com não redutora da competência
concorrente dos Estados, Municípios e Distrito Federal. Assim, as normas fixadas pela
União na referida lei não vinculam os demais entes federados, que podem legislar sobre
o tema, inclusive em sentido diverso à lei federal, segundo seus interesses regionais e
locais.

Após o exposto, faz-se possível a análise da adequação da referida decisão em


relação ao conteúdo doutrinário já trabalhado.

Como bem salientado pelo Ministro Marco Aurélio, a competência federativa


tutelada pela MP 926/20 é a saúde pública. Segundo a Constituição Federal, trata-se de
competência federativa comum, ou seja, compartilhada entre os entes federados.

Isso se extrai tanto da leitura do art. 23, II, da CF, como do inciso I do art. 198,
que estabelece o princípio da descentralização administrativa do Sistema Único de
Saúde (SUS):
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios:

(...).

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das


pessoas portadoras de deficiência;
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede
regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de
acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;


(...). (BRASIL, 2020).
Ademais, na própria Lei nº 8080/90 (Lei do SUS), é garantida que a organização
do SUS será feita por cada esfera de governo, ratificando-se o princípio da
descentralização do sistema único de saúde:
Art. 9º A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o
inciso I do art. 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de
governo pelos seguintes órgãos:

I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde;

II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de


Saúde ou órgão equivalente; e

III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão


equivalente. (BRASIL, 2020).

Tratando-se de competência comum entre os entes federados, aplica-se à questão


o referido princípio da Preponderância dos Interesses. Por meio deste, nota-se que não é
possível que seja competência apenas da União decidir ou autorizar os demais entes a
restringir o transporte intermunicipal e interestadual. Da mesma forma, não se torna
viável que a União delimite genericamente quais são as atividades essenciais, de que
cujo funcionamento os entes não podem restringir.

A razão disso se encontra no fato de a pandemia não atingir uniformemente todas


as cidades, nem todos os Estados do Brasil. Isso significa que a União não possui
profundidade de conhecimento para decidir de maneira uniforme sobre o tema,
ignorando as peculiaridades locais e regionais de cada Município ou Estado, tais como
taxa de contágio, tipo de economia, principais atividades econômicas da região,
quantidade de leitos disponíveis, entre tantas outras variáveis.

Destaca-se que, segundo julgado do STF, não é possível sequer que os Estados e
Municípios se omitam de exercer sua competência concorrente, sendo inconstitucional
que determinado tema seja regido por simples remissão à lei federal.

Nesse sentido, pronunciou-se a corte a respeito de lei estadual que se eximia de


legislar acerca do cultivo comercial de organismos geneticamente modificados, fazendo
simples remissão à Lei Federal:
EMENTA: ALIMENTOS TRANSGÊNICOS. COMPETÊNCIA
CONCORRENTE DO ESTADO-MEMBRO. LEI ESTADUAL QUE
MANDA OBSERVAR A LEGISLAÇÃO FEDERAL. 1. Entendimento
vencido do Relator de que o diploma legal impugnado não afasta a
competência concorrente do Estado-membro para legislar sobre produtos
transgênicos, inclusive, ao estabelecer, malgrado superfetação, acerca da
obrigatoriedade da observância da legislação federal. 2. Prevalência do voto
da maioria que entendeu ser a norma atentatória à autonomia do Estado
quando submete, indevidamente, à competência da União, matéria de que
pode dispor. Cautelar deferida.

(STF. Plenário. ADI 2303/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em


5/9/2018).

Da mesma forma que não seria possível que um ente federado (no caso, o Estado)
legislasse sobre interesse regional com mera remissão à Lei Federal, também não o seria
no caso da COVID-19. Ou seja, não é possível que a União obrigue os demais entes a
legislar por remissão à lei federal, no que tange à matéria de competência concorrente.

Isso não significa, contudo, que a União não possui competência para tratar das
medidas de isolamento relativas à COVID-19. A existência dessa competência,
inclusive, foi a razão pela qual não se declarou a inconstitucionalidade da norma
federal. É ampla a capacidade da União para legislar sobre o tema, desde que, ao fazê-
lo, não esgote por completo as capacidades dos demais entes federativos.

5. CONCLUSÃO.
O presente artigo conclui que há, no ordenamento jurídico brasileiro, duas
técnicas de repartição de competências federativas: uma vertical e uma horizontal. A
vertical é a que prevê o compartilhamento de competências federativas pelos entes
federados, estando prevista, precipuamente, nos artigos 23, 24 e 30, I, da Constituição
Federal.

Quando for caso de competência federativa de repartição vertical, seja ela de


nomenclatura concorrente ou comum, o critério de repartição deve observar o princípio
da Preponderância dos Interesses. Segundo esse princípio, cabe à União a competência
para exercer e legislar sobre interesse nacional e aos Municípios sobre o interesse local,
cabendo, portanto, aos Estados a competência remanescente, que se trata de interesse
regional.

No caso das medidas de isolamento social de enfrentamento ao COVID 19, por se


tratarem de matérias afetas à competência federativa da proteção à saúde pública, a sua
aplicação é de competência comum a todos os entes federados. Nesse espectro, não
pode a União decidir unilateralmente sobre as medidas de isolamento, exigindo a
autorização dos demais entes para quando a matéria for de seu interesse regional ou
local. Da mesma forma, não pode ela decidir uniformemente quais são as atividades que
podem vir a ser restringidas, ignorando as peculiaridades de cada cidade ou estado.
Qualquer norma federal nesse sentido deve ser interpretada como manifestação da
competência comum ou concorrente da União sobre o tema, não vinculando, portanto,
os Estados e os Municípios quando agirem dentro de seus interesses regionais e locais.

Dentro desse panorama, nota-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal no


bojo da ADI nº 6341 foi ao encontro do que já estabelece a doutrina acerca do tema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 09. ed. –
Bahia: Juspodium, 2018.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Os Municípios detêm competência para legislar
sobre assuntos de interesse local, ainda que de modo reflexo, tratem de direito comercial
ou do consumidor. Buscador Dizer o Direito, Manaus.

Disponível em:
<https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/b075703bbe07a50d
dcccfaac424bb6d9>. Acesso em: 21/07/2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Ação Declaratória de


Inconstitucionalidade 6341/DF. Relator: Marco Aurélio, 15 ago. 2020.
Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5880765>.
Acesso em: 21/07/2020.

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. É constitucional lei estadual que autoriza a


comercialização de bebidas alcoólicas nas arenas desportivas e nos estádios. Buscador
Dizer o Direito, Manaus.

Disponível em:
<https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/51311013e51adebc
3c34d2cc591fefee>. Acesso em: 23/07/2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Segunda Turma). Recurso Extraordinário


1052719. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, 04 abr. 2018.

Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5201979>.
Acesso em 21/07/2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Ação Declaratória de


Inconstitucionalidade 2303/RS. Relator: Ministro Ricardo Lewandoeski, 05 set. 2018.

Disponível
em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo914.htm>.
Acesso em 21/07/2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988.


Brasília, DF: Congresso Nacional.

Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>,
Acesso em 21/07/2020,

BRASIL. Medida Provisória nº 926 de 20 de março de 2020. Brasília, DF: Presidência


da República.

Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2020/Mpv/mpv926.htm>. Acesso em 21/07/2020.

BRASIL. Lei nº 13.979 de 06 de fevereiro de 2020. Brasília, DF: Presidência da


República.

Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2020/lei/l13979.htm>. Acesso em: 21/07/2020

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