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COMENTÁRIOS AO NOVO

REGULAMENTO DA
PREVIDÊNCIA SOCIAL
COMENTÁRIOS AO NOVO
REGULAMENTO DA
PREVIDÊNCIA SOCIAL
Autores:
Alberto Luiz Hanemann Bastos
Ana Paula Fernandes
Bruno Takahashi
Carlos Alberto Pereira de Castro
Heloisa Helena Silva Pancotti
Jesus Nagib Beschizza Feres
Manoela Lebarbenchon Massignan
Marco Aurélio Serau Junior
Omar Chamon
Renato Barth Pires
Roberto de Carvalho Santos
Sergio Geromes

Belo Horizonte

2021
Copyright © 2021 by Paideia Jurídica Editora

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que


citada a fonte.
Capa: Ricardo Xavier
Normalização e diagramação: Gilmar Gomes de Barros

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário
Gilmar Gomes de Barros, CRB 14/1693

C732
Comentários ao novo regulamento da Previdência
Social / Marco Aurélio Serau Junior (Organizador).
Prefácio de João Batista Lazzari – Belo Horizonte
: Paideia Jurídica Editora, 2021.
245 p. ; 22 cm.
ISBN: 978-65-88859-03-2
1. Marco Aurélio Serau Júnior. II. Prefácio de
João Batista Lazzari. III. Brasil - Decreto Nº
10.410, de 30 de junho de 2020. IV. Título.

CDU: 34(84)
Índice para o catálogo sistemático:

1. Direito Previdenciário - Brasil 34(84)


SUMÁRIO

PREFÁCIO ................................................................................ 7

INTRODUÇÃO ......................................................................... 9

PARTE I
ALCANCE DA COMPETÊNCIA REGULAMENTAR
E QUESTÕES PROCESSUAIS

REFLEXÕES INSTITUCIONAIS GENÉRICAS TENDO O


DECRETO N. 10.410/2020 .................................................... 13
Bruno Takahashi

NOVA DINÂMICA NO PROCESSO ADMINISTRATIVO


PREVIDENCIÁRIO: impactos processuais e reflexões em
torno do artigo 176 do decreto no 3.048/99 .............................. 31
Marco Aurélio Serau Junior; Alberto Luiz Hanemann Bastos

COMPETÊNCIA REGULAMENTAR NO DIREITO


PREVIDENCIÁRIO ................................................................ 63
Renato Barth Pires

PARTE II
QUESTÕES POLÊMICAS DA APLICAÇÃO
DO DECRETO 10.410/2020 EM MATÉRIA DE
BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS

A EXIGÊNCIA DE CONTRIBUIÇÃO MÍNIMA PARA O


SEGURADO EMPREGADO – O ART. 19-E DO RPS .......... 89
Carlos Alberto Pereira de Castro
O SALÁRIO MATERNIDADE DA MULHER
DESEMPREGADA NO DECRETO 10.410/2020 ................ 113
Heloisa Helena Silva Pancotti

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E


À PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE
HUMANA PELA EXCLUSÃO DO CÔMPUTO COMO
TEMPO ESPECIUAL DOS PERÍODOS EM GOZO DE
BENEFÍCIOS POR INCAPACIDADE ADVINDA DO
DECRETO 10.410/2020 ........................................................ 131
Jesus Nagib Beschizza Feres

REFLEXOS DA ATUALIZAÇÃO DO REGULAMENTO


DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NOS BENEFÍCIOS PARA O
MIGRANTE .......................................................................... 153
Manoela Lebarbenchon Massignan

A PROVA DA INSALUBRIDADE NA APOSENTADORIA


ESPECIAL E O DECRETO 3048/99 .................................... 173
Omar Chamon

BREVES APONTAMENTOS SOBRE O PLANEJA-


MENTO PREVIDENCIÁRIO À LUZ DO DECRETO
Nº 10.410/2020 ...................................................................... 199
Roberto de Carvalho Santos

AS INCONSTITUCIONALIDADES E ILEGALIDADES DAS


REGRAS DE CÁLCULO APLICÁVEIS AOS BENEFÍCIOS
PREVIDENCIÁRIOS CONCEDIDOS APÓS EC 103/2019:
uma análise a partir do decreto 10.410/2020 ......................... 223
Ana Paula Fernandes; Sergio Geromes
7

PREFÁCIO

Recebi com alegria o honroso convite do estimado amigo


e Professor Doutor Marco Aurélio Serau Júnior para prefaciar
esta importante obra doutrinária voltada a analisar o Novo Regu-
lamento da Previdência Social.
Esta publicação mostra-se apropriada nesse desafiador
período histórico que estamos passando, marcado por crises, em
especial no campo sanitário, econômico e social, que fragilizam
os ideais da proteção do exercício dos direitos individuais e co-
letivos, a segurança e o bem-estar, essenciais em um Estado De-
mocrático.
No ano de 2019, em face do baixo crescimento do Produto
Interno Bruto (PIB), o Congresso Nacional aprovou, de forma
açodada, a Emenda Constitucional n. 103/2019, chamada de
Nova Previdência, com o objetivo declarado de reduzir o orça-
mento público voltado à área da Seguridade Social e, com isso,
impactou negativamente o nível de proteção social dos segurados
do RGPS e também dos servidores públicos vinculados a RPPS.
Não bastasse isso, a regulamentação da citada Emenda
Constitucional não ocorreu por meio de normas legais (leis com-
plementares e ordinárias), mas com o inusitado Decreto Presi-
dencial nº. 10.410/2020, trazendo uma infinidade de dispositivos
com regras não só regulamentadoras, mas muitas delas inovado-
ras, sem a devida observância ao princípio da legalidade.
Para avaliar as distorções contidas nesse Novo Regula-
mento, o Professor Serau, valendo-se de sua larga experiência
acadêmica, reuniu autores renomados do Direito Previdenciário
para desenvolver estudos aprofundados sobre aspectos desta-
cados do Decreto n. 10.410/2020, que deu novos contornos ao
Decreto n. 3.048/1999.
A obra é dividida em duas partes, a primeira aborda o
alcance da competência regulamentar e questões processuais e, a
8

segunda, questões polêmicas da aplicação do Decreto 10.410/2020


em matéria de benefícios previdenciários.
Esta obra coletiva apresenta, assim, uma visão crítica para a
superação dos obstáculos provenientes da inadequada regulamen-
tação da Reforma da Previdência, demonstrando a contribuição
de juristas especializados nesse ramo do Direito, são eles: Alberto
Luiz Hanemann Bastos; Bruno Takahashi; Carlos Alberto Pereira
de Castro; Heloisa Helena Silva Pancotti; Jesus Nagib Beschizza
Feres; Manoela Lebarbenchon Massignan; Marco Aurélio Serau
Júnior; Omar Chamon; Renato Barth Pires e Roberto de Carvalho
Santos.
É uma obra que possui conteúdo científico inovador, cum-
prindo a função de desvendar novos horizontes diante de um
emaranhado de dispositivos, nem sempre claros e precisos. A
riqueza dos comentários constantes em cada capítulo acaba por
demonstrar a urgente necessidade de uma sistematização e sim-
plificação das normas que regem o Direito Previdenciário para,
assim, facilitar a compreensão das regras de acesso às prestações
previdenciárias.
Por tudo isso, aproveito para recomendar a leitura desse
importante trabalho, neste período de incertezas e inquietudes,
em que a expressão de ideias é cada vez mais necessária para que
se possa enfrentar e superar as atuais barreiras que impedem a
concretização do ideal de uma sociedade mais justa, igualitária,
fraterna e solidária.
Boa leitura!

João Batista Lazzari


Juiz Federal e Professor
9

INTRODUÇÃO

Em junho de 2020 foi publicado o Decreto 10.410, cuja fi-


nalidade anunciada foi de “regulamentar” a Emenda Constitucio-
nal 103/2019, adaptando a legislação então vigente às alterações
promovidas pela Reforma da Previdência.
O Decreto 10.410/2020 promoveu a atualização do Re-
gulamento da Previdência Social (Decreto 3.048/99) em impor-
tantes aspectos que há haviam sido alterados em virtude da le-
gislação editada nos últimos anos, propiciando aos servidores do
INSS um roteiro procedimental mais seguro e correto em relação
à aplicação do Direito Previdenciário.
Porém, nessa pretensão de “regulamentar” a Emenda
Constitucional 103/2019, o Decreto 10.410/2020 também foi
responsável por trazer ao ordenamento jurídico diversos pontos
polêmicos, muitos dos quais podem ser considerados ilegais ou
mesmo inconstitucionais.
O artigo 84, inciso IV, da Constituição Federal, estabelece
que os Decretos serão expedidos com a finalidade de propiciar a
“fiel execução das leis”. Ou seja, os Decretos não possuem a fina-
lidade de “criação” do Direito, mas tão somente de pormenoriza-
ção dos detalhes e requisitos necessários à aplicação do Direito,
criado a partir de uma norma previamente aprovada pelo Poder
Legislativo.
O escopo de inovação do ordenamento jurídico compete
exclusivamente à lei, em sentido estrito, analisada e debatida no
Congresso Nacional em uma perspectiva democrática, em que
participem as diversas matizes políticas componentes do Par-
lamento, bem como mediante a participação e oitiva dos mais
diversos atores sociais (especialistas em Direito Previdenciário,
Institutos, Ordem dos Advogados do Brasil, etc).
Nesse quadro, percebe-se que a elaboração unilateral do
conteúdo do Decreto 10.410/2020 deu margem a algumas pos-
10

síveis incongruências e incompatibilidades com o ordenamento


jurídico.
Muitos destes assuntos são retratados nos diversos artigos
que compõem este livro.
Há uma primeira parte, que traz considerações gerais a
respeito do papel estrutural dos Decretos dentro do ordenamento
jurídico e das possibilidades de questionamento judicial. Na se-
quência, há uma segunda parte, em que os artigos discutem temas
específicos do Decreto 10.410/2020, todos eles dotados de acen-
tuada polêmica quando à sua legalidade/constitucionalidade.
Com exceção dos textos apresentados por Roberto de Car-
valho Santos, Marco Aurélio Serau Junior e Alberto Luiz Hane-
mann Bastos, publicados anteriormente no livro “A Previdência
Social no Brasil pós-reforma – EC 103/2019” (obra referente ao
VI do Congresso Brasileiro de Direito Previdenciário, realizado
pelo IEPREV em 2020), todos os demais artigos são inéditos e
foram elaborados especialmente para esta coletânea.
Assim, agradecemos a todas e todos que se dedicaram aos
trabalhos que ora compõem esta obra, cuja leitura é indispensável
para lidar com as inovações, nem sempre harmônicas, decorrente
do Decreto 10.410/2020.
Belo Horizonte, verão de 2021.

Marco Aurélio Serau Junior


Professor da UFPR – Universidade Federal do Paraná.
Doutor e Mestre em Direitos Humanos (USP). Diretor Científico
do IEPREV. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas.
11

PARTE I

ALCANCE DA COMPETÊNCIA
REGULAMENTAR E QUESTÕES
PROCESSUAIS
12
13

REFLEXÕES INSTITUCIONAIS GENÉRICAS


TENDO O DECRETO N. 10.410/2020
COMO PRETEXTO

Bruno Takahashi1

Consta de uma busca aleatória na internet, em reitera-


das fontes que parecem ter se copiado uma das outras e que, por
isso, dispensam a citação individualizada, que: i) o Decreto n.
10.410/2020 atualizou o Decreto n. 3.048/99 (Regulamento da Pre-
vidência Social), em decorrência da aprovação da Nova Previdên-
cia (Emenda Constitucional n. 103/2019); ii) entre as mudanças,
houve a inclusão de novas categorias de segurados, extensão de
benefícios a empregados domésticos, consolidação do pagamen-
to em duas parcelas do 13º, incentivo a processos informatizados,
mudança na forma de contagem do tempo de contribuição, etc.
Comentários específicos serão objeto de artigos próprios
feitos por especialistas. Não é o meu caso. De fato, embora tenha
trabalhado por mais de dez anos na área, estou há quase quatro
sem lidar especificamente com a matéria previdenciária. Esse
período, como sabem, inclui a Nova Previdência e o próprio
Decreto n. 10.410/2020.
Por isso, não sei explicar o que houve entre o passado e
a Previdência de hoje. Posso apenas fazer algumas suposições
panorâmicas e compartilhar impressões genéricas de viagem.
Guiado pela análise institucional comparada, via Neil Komesar,2
este é o destino do artigo.3

1
Doutor e Mestre em Direito Processual pela Universidade de São
Paulo. Juiz Federal.
2
Sobretudo, em Komesar (1994) e Komesar (2001).
3
Muitas das ideais apresentadas neste texto são baseadas em:
Takahashi (2019).
14

UM MAPA CONCEITUAL

Para tanto, algumas premissas conceituais são necessárias:

► i. Não se nega que Decreto, como ato infralegal que é,


subordina-se à Lei e à Constituição Federal, incluindo a posição
refinada de alguns no sentido de que não poderia haver “saltos”
diretos da Constituição para o Decreto. A máxima, em suma, é
que não pode inovar no ordenamento jurídico. Essa ideia, porém,
parte do Dever-Ser. A questão que se coloca relaciona-se ao Ser:
e se houver inovação? E se, instado, o Judiciário entender que
não houve inovação ou, quiçá, que essa inovação era excepcio-
nalmente permitida (o que, em termos analíticos, parece pratica-
mente idêntico)?
► ii. Assim como a saúde não está somente nos hospi-
tais, a justiça não está apenas nos tribunais, conforme bem lembra
Marc Galanter (1981). Logo, a ideia de acesso à justiça expan-
de-se para abranges outras instituições, incluindo, entre outras, a
Agência da Previdência Social mais próxima.
► iii. O ser humano é imperfeito, as instituições humanas
são imperfeitas. Não há a instituição perfeita. Cada uma possui
suas virtudes e seus defeitos. Por isso, diante de determinada
questão, a chave não está na escolha da instituição mais perfei-
ta para tomar a decisão, mas sim de optar entre alternativas im-
perfeitas. A instituição a ser escolhida não é a adequada, mas a
menos inadequada, a depender dos objetivos sociais que se busca.
► iv. A escolha de quem decide é a escolha do que se
decide. Isso significa que o conteúdo da decisão depende da insti-
tuição escolhida para tomá-la. Uma decisão tomada por um órgão
administrativo baseia-se em pressupostos diversos da decisão ju-
dicial.
► v. Dentre inúmeras instituições encarregadas de decidir,
é possível destacar quatro: o processo de trocas (mercado), o pro-
cesso comunitário (comunidade), o processo judicial (Judiciário)
15

e o processo político (Executivo e Legislativo). Cada uma dessas


instituições, e suas respectivas subdivisões, contém característi-
cas que vão condicionar a decisão a ser tomada.
► vi. Uma instituição possui requisitos próprios para ser
acionada, o que se insere na noção de custos de participação. De-
terminada pessoa ou grupo estará disposta a valer-se da institui-
ção quando os benefícios da participação forem superiores aos
custos envolvidos.

Com exceção das duas primeiras, os demais pontos são


uma síntese simplista de aspectos centrais da análise institucional
comparada de Neil Komesar. Com tais premissas, alguns desdo-
bramentos são possíveis.

PARA ONDE ESTAMOS INDO?

Pensando nas quatro grandes instituições indicadas, duas


estão mais diretamente associadas à esfera estatal (Judiciário,
processo político) e duas ao âmbito não-estatal (mercado, comu-
nidade).
Parar reforçar essa divisão binária das instituições, lembro
que, segundo Komesar, em agrupamentos humanos reduzidos,
as trocas realizadas no interior do grupo podem ser vistas tanto
como parte da comunidade como do mercado. 4 Imagino, por
exemplo, a situação de uma pequena comunidade rural em que
famílias cultivam produtos diversos e os trocam entre si para a
mútua subsistência. O que é mercado e o que é comunidade se
confundem.
Em sentido semelhante, entendo que, em grupos reduzi-
dos, as funções tidas como do Judiciário se confundem com o do

4
Saliente-se que, em boa parte de sua obra, Komesar limita-se a iden-
tificar e analisar três (e não quatro) instituições, excluindo a comuni-
dade da enumeração. (KOMESAR, 2001, p. 150).
16

processo político. (TAKAHASHI, 2019). Isso ocorreria, quando


o líder de uma pequena comunidade não apenas faz as vezes de
governante e legislador, mas também de juiz. Desse modo, de-
pendendo da configuração, assim como o mercado poderia ser
visto como parte da comunidade, o Judiciário poderia ser visto
como parte do processo político.
Assim sendo, dada questão social pode ser enfrentada
por quatro instituições (Judiciário, processo político, mercado
e comunidade) que, por sua vez, associam-se a duas categorias
(estatal e não-estatal). Sinteticamente, o quadro é o seguinte:

A figura permite visualizar ainda que, em certos cenários,


a escolha da instituição decisória pode ser associada com mo-
vimentos mais amplos, tais como os de desjudicialização (Judi-
ciário para outras instituições), desestatização (do estatal para o
não-estatal), deslegalização (do processo político para outras ins-
tituições), etc.
Nesse contexto, em se tratando das reformas previdenciá-
rias, algumas inferências de um estranho em numa terra estranha,
podem ser feitas:
17

►A) talvez haja uma tendência à desestatização da matéria


previdenciária, no sentido de deixar os rumos da previdência para
os critérios do mercado. Esse movimento pendular pode ser vis-
lumbrado em uma análise superficial do histórico da previdência
social.
Fábio Zambitte Ibrahim afirma que, em um primeiro
momento, “a proteção contra os infortúnios da vida tinha caráter
eminentemente familiar, com os mais novos auxiliando os idosos
e demais incapacitados para o trabalho”. (IBRAHIM, 2009, p. 46).
Mais adiante,

a proteção adicional existente tinha caráter


privado, de fundos mutualistas, onde
determinado grupo de pessoas unia-se,
voluntariamente, para a proteção mútua contra
os riscos sociais”. Em 1883, por idealização
do chancelar Otto Von Bismarck, surge então,
o que é considerado o primeiro sistema de
seguro social. Segundo Ibrahim, tal medida
foi “a gênese da proteção garantida pelo
Estado, funcionando este como arrecadador
de contribuições exigidas compulsoriamente
dos participantes do sistema securitário.
(IBRAHIM, 2009, p. 45-46).

Dessa forma, no quadro proposto, a evolução histórica da


previdência pode ser associada a um percurso do não-estatal (co-
munidade sob a forma de família ou categorias profissionais) para
o estatal (proteção via seguro social). Em linhas gerais, o mesmo
movimento pode ser percebido no Brasil, isto é, “origem privada
e voluntária, formação dos primeiros planos mutualistas e a inter-
venção cada vez maior do Estado.” (IBRAHIM, 2009, p. 54)..
A sempre lembrada Lei Eloy Chaves (Decreto-legislativo
n. 4.682/1923), ao determinar a criação, por empresa, de caixas de
aposentadorias e pensões para ferroviários, liga-se mais à origem
privada da previdência brasileira do que a posterior estatização.
Nas lições de Ibrahim ao comentar referido diploma legal:
18

[...] a responsabilidade pela manutenção


e administração do sistema era dos
empregadores. O Estado somente determinara
a sua criação e o seu funcionamento, de
acordo com os procedimentos previstos na
legislação. A ingerência estatal na previdência
social somente tomou lugar com o advento
dos institutos de aposentadorias e pensões.
(IBRAHIM, 2009, p. 56).

Como consequência da proteção dada dos ferroviários,


outras categorias buscaram idêntica cobertura, resultando em
normas como a Lei n. 5.109/1926 (que estendeu o regime da Lei
Eloy Chaves aos portuários e marítimos), e a Lei n. 5.485/1928
(que tratou do pessoal das empresas de serviços telegráficos e ra-
diotelegráficos). (IBRAHIM, 2009, p. 57).
Ibrahim lembra ainda que, após a Revolução de 1930 e o
início do Governo Vargas, as caixas deixaram de ser organizadas
por empresas e passaram a ser aglutinadas por categoria profis-
sional, nos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP). Segundo
ele, tal unificação também ampliou a intervenção estatal na área,
pois os institutos possuíam natureza autárquica e eram subordi-
nados diretamente à União. (IBRAHIM, 2009). A isso se seguiu a
unificação dos diversos institutos, em um modelo que resultou no
Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e, de certo modo,
mantido com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
No esquema proposto, nota-se, assim, um percurso do
não-estatal (proteção por caixas, por empresa) para o estatal
(unificação das caixas em institutos e unificação dos institutos,
com crescente intervenção do Estado). Curiosamente, no movi-
mento atual, vislumbra-se um direcionamento do estatal (regime
público de previdência) para o não-estatal (p. ex. planos de pre-
vidência privada).5

5
Curiosamente também, vê-se um certo movimento de determinadas
categorias profissionais para manterem vantagens do regime público.
19

►B) talvez, paralelamente a este movimento de desesta-


6
tização, haja, no interior da parcela estatal da previdência, um
duplo movimento, que se desloca do Judiciário para o processo
político e, no interior do processo político, do Legislativo para o
Executivo. Decisões das próprias instituições envolvidas parecem
corroborar essa movimentação.
Do Judiciário para o processo político destaca-se o reco-
nhecimento da exigência do prévio requerimento administrativo
para ingressar com uma ação judicial pleiteando a concessão de
benefício previdenciário (Recurso Extraordinário n. 631.240/
MG, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 03 de setembro
de 2014). Cabe recordar que essa decisão alterou o movimento
jurisprudencial que perdurou por anos no sentido de se dispensar
o prévio requerimento. Modificou-se, assim, a própria instituição
encarregada de decidir, em primeira mão, acerca da concessão de
um benefício previdenciário.

► C) talvez, haja uma atuação do processo legislativo que


reforça o movimento de valorização da decisão administrativa em
detrimento da judicial. Não se trata, simplesmente, de inserir a
decisão administrativa como pressuposto para que seja possível
uma final decisão judicial. Trata-se de permitir que, em certas hi-
póteses, a própria decisão judicial seja revista pela via adminis-
trativa.
Isso fica marcante na Medida Provisória n. 739/2016, ree-
ditada como MP n. 767/2017 e convertida na Lei n. 13.457, de
26 de junho de 2017. Tais normas, alterando a Lei n. 8.213/91,
voltaram-se em especial aos benefícios de auxílio-doença e à apo-
sentadoria por invalidez. A sobreposição da decisão administra-
tiva sobre a judicial pode ser observada nos seguintes aspectos:
necessidade da fixação de um prazo estimado para a duração do
benefício de auxílio-doença concedido administrativa ou judi-
cialmente (acréscimo do §8º ao artigo 60 da Lei n. 8.213/91);

6
Alguns dirão privatização, mas evito polêmicas.
20

cessação automática do benefício em 120 dias no caso de não


fixação do prazo referido no §8º, salvo se houver requerimento
de prorrogação perante o INSS (§9º acrescentado ao artigo 60 da
Lei n. 8.213/91); possibilidade de convocação a qualquer tempo
do beneficiário de auxílio-doença ou de aposentadoria por inva-
lidez para reavaliação das condições que ensejaram a concessão
do benefício (inclusão do §4º ao artigo 43 e o §10 ao artigo 60,
ambos da Lei n. 8.213/91); instituição do BESP-PMBI, que será
pago ao médico do INSS pela realização de perícias extraordi-
nárias em relação a benefícios por incapacidade mantidos sem
perícia há mais de dois anos (artigos 2º a 10 da MP). Como se
sabe, essa revisão administrativa de benefícios de auxílio-doença
e aposentadoria por invalidez concedidos há mais de dois anos
ficou popularmente conhecida como “pente-fino”.

► D) talvez, para completar o panorama trazido, haja


ainda um fortalecimento das normas administrativas em detri-
mento às leis formais, isto é, uma passagem interna ao processo
político, mas que vai do Legislativo para o Executivo.
Isso, nos dizeres de Marco Aurélio Serau Júnior, expres-
sa a retomada de uma prática, predominante outrora, e que ele
denomina “portarização do Direito Previdenciário”, ou seja, “a
tentativa de normatização e regulamentação de inúmeras temas
previdenciários a partir de normas infralegais: portarias, ordens
de serviços, instruções normativas, etc.” (SERAU JUNIOR,
2020).
Dentre exemplos recentes, Serau Jr. destaca o Ofício Cir-
cular n. 64/2019 e a Portaria n. 450/2020. Ainda que um Decreto
possa ser visto como norma hierarquicamente superior a porta-
rias e congêneres, vislumbro que o fenômeno é idêntico: a pro-
liferação de atos infralegais em detrimento de leis. Assim sendo,
o Decreto 10.410/2020 não se contrapõe ao movimento, mas o
integra.
21

ESTE É O MELHOR CAMINHO?

Diante dessa movimentação toda, respostas prontas defen-


deriam uma maior intervenção estatal e, mais especificamente,
uma maior atuação judicial. Caberia ao Judiciário, por meio de
um ativismo necessário, conter desmandos e garantir a proteção
social do segurado. No entanto, no mundo real, as coisas não cos-
tumam ser tão simples assim.
Os méritos e deméritos de uma instituição são relati-
vos, no sentido de que devem ser considerados em comparação
aos méritos e deméritos de outra. É corriqueiro apontar o dedo
para os defeitos do processo administrativo previdenciário, tais
como: desconhecimento da legislação pelos agentes administra-
tivos, condições precárias de trabalho, parcialidade nas decisões,
demora na análise (e/ou na marcação de perícias), etc. No entanto,
o Judiciário possui também suas próprias limitações e que acabam
por impedir a revisão ampla da atuação administrativa.
Cabe enumerar algumas dificuldades do Judiciário em
assumir um papel abrangente na revisão das decisões administra-
tivas em matéria previdenciária, aqui incluídas às relacionadas ao
Decreto n. 10.410/2020:

O Decreto ora em comento ocupa quase 110 laudas.7


► I.
Somente pelo seu tamanho é possível considerar que há aspectos
que inovaram no ordenamento jurídico, bem como que nem todas
essas inovações serão levadas a controle judicial ou, se levadas,
não necessariamente serão invalidadas pelo Judiciário. Imagine
se considerarmos não apenas o Decreto n. 10.410/2020, mas todo
o emaranhado das normas infralegais...

7
Isso no formato Times New Roman 12, espaçamento 1,5.
22

II. Segundo Komesar,8 o processo judicial caracteriza-



-se, sobretudo por ser: formalmente mais definido e com maiores
requisitos formais de participação que as demais instituições;
possuir maiores obstáculos para a sua expansão do que as outras
instituições; contar com os agentes decisórios (juízes) mais inde-
pendentes.

Em geral, valoriza-se a independência dos juízes ao se de-


fender o seu protagonismo na construção de políticas públicas
– inclusive em matéria previdenciária. Todavia, seus requisitos
formais vão dificultar a participação generalizada.9 Além disso,
das quatro grandes, o Judiciário é a instituição que mais possui
restrições para expansão, estando sujeito tanto a limites orçamen-
tários como à vontade de outras instituições (em especial, do pro-
cesso político).
De fato, no que tange à expansão, em geral se diz que o
mercado segue a regra da oferta e demanda, crescendo à medida
do que for desejado pela sociedade (ou, ao menos, pelos consu-
midores). A comunidade, em termos amplos, também pode, em
princípio, expandir seus mecanismos e funções conforme seus
membros necessitem. Mesmo no processo político, ainda que
também haja restrições orçamentárias e do próprio regime de
direito administrativo, não há uma limitação tão grande como a
do Judiciário. Basta se pensar, por exemplo, na possibilidade de
criação de novos ministérios quando comparada com a criação de
tribunais.

► III.
Tal dificuldade estrutural de expansão por parte do
Judiciário, por vezes, representa não apenas um detalhe formal,
mas invade a própria decisão a ser tomada. Deferência judicial
pode representar tanto convencimento teórico do papel do Judi-

8
Imperfect Alternatives, cit. p. 123; e Law’s Limits, cit. p.35.
9
Esse aspecto será um pouco mais detalhado no item 4 do texto, infra.
23

ciário como também reconhecimento de seus limites práticos.


Falar que o agente administrativo possui maiores condições de
decidir determinada matéria pode incluir ter uma estrutura mais
adequada para tanto.
Na ocasião do julgamento do já referido Recurso Extraor-
dinário n. 631.240/MG, que consagrou a exigência do prévio in-
deferimento administrativo, o argumento “jurídico” utilizado foi
o interesse de agir como condição da ação, do que aliás não se
discorda. No entanto, o próprio conceito de interesse de agir foi
explicitamente associado aos princípios da economicidade e da
eficiência, como se nota do seguinte trecho do voto do relator,
Ministro Luís Roberto Barroso:

Como se percebe, o interesse em agir é uma


condição da ação essencialmente ligada aos
princípios da economicidade e da eficiência.
Partindo-se da premissa de que os recursos
públicos são escassos, o que se traduz
em limitações na estrutura e na força de
trabalho do Poder Judiciário, é preciso
racionalizar a demanda, de modo a não
permitir o prosseguimento de processos que,
de plano, revelem-se inúteis, inadequados
ou desnecessários. Do contrário, o acúmulo
de ações inviáveis poderia comprometer o
bom funcionamento do sistema judiciário,
inviabilizando a tutela efetiva das pretensões
idôneas. (grifo nosso).

Inclusive, o Ministro relator também reserva um item es-


pecífico intitulado “Considerações práticas”, do que se destaca a
seguinte passagem:

A pretendida subversão da função


jurisdicional, por meio da submissão direta
de casos sem prévia análise administrativa,
acarreta grande prejuízo ao Poder Público e
aos segurados coletivamente considerados.
Isto porque a abertura desse “atalho” à via
24

judicial gera uma tendência de aumento


da demanda sobre os órgãos judiciais
competentes para apreciar esta espécie de
pretensão, sobrecarregando-os ainda mais,
em prejuízo de todos os que aguardam a
tutela jurisdicional. Por outro lado, os órgãos
da Previdência, estruturados para receber
demandas originárias, teriam sua atuação
esvaziada pela judicialização.

Desse modo, a limitação da estrutura do Judiciário, asso-


ciada à preocupação em se reduzir o número de processos, foi, a
meu ver, decisiva para a alteração jurisprudencial ocorrida. As de-
ficiências estruturais do Judiciário, então, levaram à escolha pela
preponderância da via administrativa.

► IV. O quarto aspecto que gostaria de salientar é a ressal-


va de Komesar (2001) no sentido de que de que há uma tendência
de as instituições se moverem em conjunto, isto é, os fatores que
afetam uma instituição tendem a afetar as outras. Como regra, o
aumento da complexidade e da quantidade de envolvidos provoca
o declínio da performance institucional, seja qual for a institui-
ção. Em outras palavras, questões simples, envolvendo poucas
pessoas, são bem resolvidas em qualquer instituição. Questões
complexas trazem dificuldades para todas.
Ocorre que, por vezes, tenho a impressão de que se compara
o melhor cenário do Judiciário com o pior cenário da Agência
da Previdência Social. Destaca-se, por exemplo, a independên-
cia e conhecimento técnico dos juízes quando comparados com
os agentes administrativos. Deixa-se em segundo plano, porém,
que, em algumas questões, a reduzida estrutura judicial limita
a própria atuação criteriosa do magistrado. Citar, por exemplo,
que o processo judicial é mais adequado que o processo admi-
nistrativo previdenciário para analisar a concessão de benefícios
por incapacidade, por permitir maior grau de cognição do juiz e
produção de perícia médica especializada, é ignorar que, em um
contexto envolvendo a pressão de se resolverem muitos processos
25

em pouco tempo, também o processo judicial vai enfrentar difi-


culdades parecidas com o administrativo.

ALGUÉM VAI AVISAR O MOTORISTA?

Desse modo, tendo o Decreto n. 10.410/2020 como um


distante pano de fundo, o que tentei indicar nos itens precedentes
foi que há uma tendência à preponderância da esfera adminis-
trativa sobre a judicial ou, em termos institucionais, do processo
político sobre o Judiciário. Todavia, simplesmente defender um
movimento contrário baseado no protagonismo dos juízes ignora
as limitações estruturais do próprio Judiciário. Além disso, nem
sempre o Judiciário será a instituição mais adequada, pois os
méritos institucionais são relativos.
O ponto fulcral, assim, é ponderar qual é a instituição
menos imperfeita para o tratamento de determinada questão ou
dado conflito. Na amplitude do Decreto n. 10.410/2020, isso sig-
nifica investigar quais aspectos devem ser direcionados à revisão
judicial e quais merecem ser relegados à atividade administrativa.
A premissa é de que ambas as instituições podem oferecer justiça
e, assim, não se trata meramente de propor uma revisão judicial
generalizada dos atos administrativos, sobretudo se considerado
que nem sempre essa é a melhor opção.
No entanto, em uma proposta como a de Komesar,
baseada na imperfeição do real em vez da perfeição do ideal, a
própria dinâmica da ponderação precisa ser inserida na vida das
instituições. Não se trata, assim, de abstratamente ponderar qual
a instituição mais adequada, mas de considerar como ela pode ser
acionada em concreto. É por isso que a escolha efetiva da institui-
ção não é alheia aos requisitos para que haja a participação nessa
instituição.
Alguns pontos merecem ser ressaltados para que esse ra-
ciocínio se torne um pouco mais claro:
26

► A) Cada instituição possui custos e benefícios de partici-


pação. Komesar (1994, p. 30) afirma que, assim como o mercado
possui custos de transação, também existem os custos de parti-
cipar do processo judicial e do processo político (e, acredito, do
processo comunitário). Os custos de participação envolveriam,
basicamente, custos de acesso, de organização e de informação,
com destaque para o último.
Arthur Badin (2011, p. 117) bem resume este ponto da se-
guinte forma:

Os custos de participação geralmente


estão associados à informação, acesso e
organização. Os custos de informação são
aqueles incorridos para se compreender o
problema ou a questão a ser decidida, levantar
dados que subsidiem seus argumentos,
enfrentar matérias técnicas etc. Os custos de
acesso estão atrelados às barreiras à entrada
(jurídicas, políticas e econômicas), ao cálculo
da probabilidade de êxito etc. Os custos de
organização, por fim, são aqueles necessários
à mobilização de uma classe ou grupo de
pessoas, coordenação de seus membros,
fiscalização e monitoramento etc.

Os benefícios da participação, por sua vez, vão depender


dos interesses em jogo (stakes). Assim sendo, a efetiva partici-
pação institucional depende da ponderação entre os custos e os
benefícios existentes.

► B) No processo judicial, por exemplo, comumente


se enumeram custos que poderiam ser categorizados como de
acesso, como as despesas processuais ou os honorários a serem
pagos ao advogado. Custos de participação no processo judicial
vão além disso, incluindo o próprio custo de se obter determinada
informação processual (por exemplo, como entro com o proces-
so no Juizado Especial?), ou de saber o direito que se pretende
defender em juízo (o que preciso para me aposentar?). Há ainda
27

o custo de se mobilizar para entrar com um processo, o que, pa-


rece-me, inclui inclusive casos individuais, em que, apesar de
não haver uma mobilização de grupo, existe a necessidade de se
movimentar para ingressar com a ação (ir atrás de um advogado,
reservar determinado tempo para questão, etc.). O processo admi-
nistrativo possui custos paralelos, talvez com menores custos de
acesso e menos requisitos para ingresso, gerando menores custos
de informação (ao menos processuais).
Quando os benefícios que se pretende obter (uma alta in-
denização, um benefício previdenciário, etc.) superarem os custos
existentes, então a tendência é que a pessoa ou grupo participe do
processo escolhido.

► C) Ocorre que, frequentemente, os custos e benefícios


não são distribuídos de maneira uniforme entre as partes envol-
vidas. Em se tratando de processo judicial envolvendo benefícios
previdenciários, é comum a oposição entre o segurado hipossufi-
ciente e o ente público com maiores recursos. Custos de acesso,
informação e organização tendem a ser menores para o INSS. Em
contrapartida, segurados dispersos podem ter maior dificuldade
em arcar sozinhos com os custos, dificultando a sua participação.
Não por acaso, essa distribuição desigual dos valores em jogo
(stakes) aproxima-se da difundida oposição de jogadores habi-
tuais (repeat players) e participantes eventuais (one-shotters) de
Marc Galanter.10

10
Why the “Haves” Come out Ahead: Speculations on the Limits of
Legal Change. Law and Society Review, 1974, v. 9, n. 1, p. 95-160.
Note-se que o próprio Komesar indica essa aproximação quando
observa que Galanter, em Why the “Haves”, enfrenta a questão das
vítimas e dos culpados como litigantes em termos de variação do com-
portamento de acordo com a diversidade de distribuição dos stakes.
(KOMESAR, 1994, p.162-163, nota 19).
28

► D) Para complicar, mesmo entre os segurados há uma


grande diversidade de renda. Como se sabe, praticamente todos
que exercem alguma atividade remunerada são segurados obriga-
tórios da Previdência Social. A distinção entre as faixas salariais
implica diferença no valor dos benefícios, dado que o valor pago
(salário-de-contribuição) repercute no valor recebido (salário-
-de-benefício). Em fevereiro de 2020, por exemplo, foi fixado o
salário-mínimo nacional como piso do salário-de-benefício, ou
seja, R$ 1.045,00; o teto, por sua vez, foi estabelecido em R$
6.101,06 (Portaria do Ministério da Economia/ Secretaria Espe-
cial de Previdência e Trabalho n. 3.659, de 10 de fevereiro de
2020). Desse modo, o piso equivale a um salário-mínimo e o
teto a aproximadamente seis salários-mínimos. Ademais, como
existe um teto para o pagamento de benefícios previdenciários, as
pessoas que auferem o benefício no teto receberam rendimentos a
partir de seis salários-mínimos e não necessariamente neste valor.
Assim sendo, há segurados mais capazes que outros de suportar
os custos existentes para participação.

Temos, então, um quadro mais complexo do que se podia


imaginar no princípio. A ampla revisão judicial do Decreto n.
10.410/2020 provavelmente não irá ocorrer. Isso porque, do
lado da oferta, o Judiciário não possui condições estruturais de
proceder a uma revisão tão ampla. Em contrapartida, do lado da
demanda, muitos segurados não conseguirão suportar os custos
para tanto, ao menos se comparado com os potenciais benefícios.
Não há respostas simples para resolver essa questão.
Reduzir custos de acesso, por exemplo, pode apenas facilitar a
vida de quem já pode arcar com os custos. Talvez alguma pers-
pectiva mais otimista envolva a redução de custos de informação,
com a difusão mais ampla do direito previdenciário e dos requisi-
tos para se pleitear uma prestação (seja administrativa ou judicial-
mente). Ou ainda a redução de custos de organização, com entida-
des públicas e/ou da sociedade civil que mobilizem as demandas
da população mais carente.
29

Em uma análise institucional comparada, e que parece ser


mais realista, talvez a opção não seja propugnar pela ilegalidade
ou inconstitucionalidade do Decreto em termos amplos, mas ver
em que aspectos o processo judicial é menos imperfeito que o
processo administrativo.

CONCLUSÃO

Esses apontamentos genéricos indicam um percurso aci-


dentado e tortuoso. Vislumbrando uma tendência de valorização
do processo político (por meio de normas infralegais e da prepon-
derância da esfera administrativa), tentei destacar algumas difi-
culdades práticas envolvendo a revisão judicial ampla do Decreto
n. 10.410/2020. Para tanto, tomei como base, sobretudo, a análise
institucional comparada de Neil Komesar.
Concordo que do Decreto n. 10.410/2020, em si, falei
quase nada. Referida norma serviu apenas como pretexto para
outras divagações. Este texto, assim, não traz qualquer utilidade
ou novidade para quem queira se aprofundar no Decreto. Mas
talvez haja algum interesse para a análise do quadro mais amplo
das reformas previdenciárias pelas quais estamos passando. Seja
como for, fica o alerta de Komesar: “De modo geral, é uma estra-
tégia medíocre cortar custos sociais sem considerar a gravidade
associada aos cortes nos benefícios sociais”. (KOMESAR, 1994,
p. 148, tradução nossa).
30

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BADIN, Arthur Sanchez. Controle Judicial das Políticas


Públicas: Contribuição ao estudo do tema da judicialização
da política pela abordagem da análise institucional comparada
de Neil K. Komesar. Dissertação (Mestrado em Direito)
- Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

GALANTER, Marc. Justice in Many Rooms: Courts, Private


Ordering and Indigenous Law. Madison: University of
Wisconsin. Reimpressão do artigo publicado no Journal of
Legal Pluralism, n. 19, 1981, p. 1-47, 1981.

GALANTER, Marc. Why the “Haves” Come out Ahead:


Speculations on the Limits of Legal Change. Law and Society
Review, v. 9, n. 1, p. 95-160, 1974.

IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário.


14. ed. Niterói: Impetus, 2009.

KOMESAR, Neil. Imperfect Alternatives: Choosing Institutions


in Law, Economics and Public Policy. Chicago: University of
Chicago, 1994.

KOMESAR, Neil. Law’s Limits: Rule of Law and the Supply


and Demand of Rights. New York: Cambridge University Press,
2001.

SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. A “portarização” do


Direito Previdenciário, GENJURÍDICO, São Paulo, 15 maio
2020. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/05/15/
portarizacao-do-direito-previdenciario/. Acesso em: 12 out.
2020.

TAKAHASHI, Bruno. Jurisdição e Litigiosidade: partes


e instituições em conflito. Tese (Doutorado em Direito)
- Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
31

NOVA DINÂMICA NO PROCESSO


ADMINISTRATIVO PREVIDENCIÁRIO:
IMPACTOS PROCESSUAIS E REFLEXÕES
EM TORNO DO ARTIGO 176 DO DECRETO No 3.048/99

Marco Aurélio Serau Junior1


Alberto Bastos2

INTRODUÇÃO

O presente artigo se propõe a realizar uma análise crítica


do recém publicado Decreto no 10.410/2020, com ênfase nas al-
terações processuais e procedimentais engendradas por este novo
marco normativo.
O Decreto 10.410/2020 altera Decreto 3.048/99 (RPS –
Regulamento da Previdência Social), atualizando-o a partir de
muitas leis novas que haviam sido publicadas nos últimos anos
e buscando, também, sua compatibilização ao texto da Emenda
Constitucional no 103/2019 (Reforma Previdenciária).
Embora não se olvide que o ordenamento jurídico se trata
de uma estrutura fluída e mutável, cujos parâmetros devem acom-
panhar as mudanças ocorridas nos campos social, econômico e
cultural, é de se reconhecer que toda a alteração normativa arqui-
tetada no processo administrativo/judicial previdenciário deve ser

1
Professor da UFPR – Universidade Federal do Paraná, nas áreas de
Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. Doutor e Mestre em D.
Humanos (USP). Autor e coordenador de diversas obras jurídicas.
2
Advogado, com atuação especializada em Direito Previdenciário.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Pós-graduando em Processo Civil pelo Instituto de Direito Romeu
Felipe Bacellar – IDRFB.
32

recebida com parcimônia.


Por manejar um bem jurídico intimamente ligado ao
mínimo existencial e à dignidade humana, o tratamento normati-
vo dos litígios previdenciários encontra respaldo no núcleo duro
das garantias do devido processo legal substantivo, razão pela
qual as regras procedimentais administrativas e judiciais devem
ser precipuamente direcionadas à maximização do direito funda-
mental de acesso à previdência social.
Assim, o objetivo deste estudo é o de refletir sobre a nova
dinâmica instaurada pelo novo art. 176 do Decreto no 3.048/99, de
modo a perquirir se mudança por ele instaurada mostra-se com-
patível com as balizas do devido processo legal substancial que
revolve a esfera previdenciária.

UMA DISTINÇÃO NECESSÁRIA: O PROCESSO CIVIL


ORDINÁRIO E O PROCESSO PREVIDENCIÁRIO

A partir da guinada proporcionada pela constitucionaliza-


ção do diversos ramos do direito, é lícito reconhecer que a dis-
ciplina do direito processual civil também passou por uma rele-
vante ressignificação. Neste novo âmbito, o processo detém uma
clara finalidade existencial: muito além de idealizar conceitos e
institutos abstratos, passa a primar pela concretização de direitos
fundamentais e, também, pela promoção dos objetivos políticos e
sociais delineados pelo constituinte. (DINAMARCO, 2009).
Conforme apontam Marinoni, Arenhart e Mitidiero, “o
processo é o instrumento pelo qual a jurisdição tutela os direitos
na dimensão da Constituição”, bem como

é a via que garante o acesso de todos ao


Poder Judiciário e, além disso, é o conduto
para a participação popular no poder e na
reivindicação da concretização e da proteção
dos direitos fundamentais. (ARENHART,
2017, p. 546).

Daí se extraí uma importante conclusão: os princípios e


33

regras processuais devem se adaptar aos contornos do direito


material discutido em juízo, com vistas a proporcionar a tutela
efetiva, tempestiva e adequada à situação jurídica concretamen-
te lesada. Numa síntese, “a realização do direito fundamental à
tutela jurisdicional efetiva depende da possibilidade do uso da
técnica processual adequada às especificidades do caso concre-
to.” (ARENHART, 2017, p. 53).
Isso significa admitir que as características plasmadas no
conflito levado à jurisdição influenciam todo o modo como o pro-
cesso é conduzido: algumas modalidades de litígios demandarão a
aplicação rígida e inflexível dos institutos processuais (v.g. preclu-
são, ônus probatório e coisa julgada), ao passo que outros clama-
rão pela flexibilização das regras procedimentais do procedimen-
to comum. Este é justamente o caso dos litígios previdenciários.
Seja em requerimentos administrativos formulados perante
o INSS, seja em demandas judiciais objetivando a concessão,
revisão ou restabelecimento de benefícios previdenciários, não há
dúvidas de que o contexto no qual se insere o conflito previden-
ciário3 é permeado por uma ampla gama de características que
impõe a flexibilização das normas de direito processual.4
O primeiro atributo que particulariza os litígios previden-
ciários, que o diferencia das demandas cíveis ordinárias, trata-se
da usual situação de vulnerabilidade que permeia os indivíduos
que pleiteiam benefícios perante o seguro social.
De início, cabe consignar que o direito previdenciário –

3
Para uma definição pormenorizada do termo conflito previdenciário:
SERAU JUNIOR (2015, p. 50-56).
4
Isso é, inclusive, reconhecido pela jurisprudência pátria, confira-se:
“(...) as normas de Direito Processual Civil devem ser aplicadas ao
Processo Judicial Previdenciário, levando-se em conta os cânones
constitucionais atinentes à Seguridade Social, que têm como base o
contexto social adverso em que se inserem os que buscam judicial-
mente os benefícios previdenciários” (STJ, REsp 1.840.369/RS, Rel.:
Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 12.11.2019, DJe.
19.12.2019).
34

na acepção mais elementar do termo – possui uma ligação muito


próxima à noção de risco social. Com efeito, o indivíduo que busca
uma prestação previdenciária encontra-se numa presumível situação
de risco, na qual alguma contingência social – a exemplo da invalidez,
da doença ou da idade avançada – está paulatinamente consumindo a
sua integridade física e psíquica. (SAVARIS, 2018, p. 59-60).
De fato, se um segurado da previdência social pleiteia alguma
espécie de benefício, é lícito assumir, ao menos numa crença prima
facie (“justificável até prova em contrário”),5 a existência de algum
entrave material que impede o seu acesso ao bem-estar social.
Somado a isso, não raro o autor de demandas previdenciá-
rias está abarcado por uma insuficiência econômica, informacio-
nal e material. Como bem descreve Savaris:

Trata-se de uma hipossuficiência econômica


e informacional, assim considerada a
insuficiência de conhecimento acerca da sua
situação jurídica, seus direitos e deveres. Em
face da grande complexidade dos mecanismos
de proteção e da respectiva legislação, os
indivíduos não se encontram em situação
de tomar decisões de forma informada e
responsável, tendo em conta as possíveis
consequências. (SAVARIS, 2018, p. 60).

Também, outro importante fator responsável por particu-


larizar a ação previdenciária se trata do aspecto etário. Salvante
as hipóteses dos chamados “benefícios não-programados” (tais
como a aposentadoria por invalidez, o auxílio-doença e a pensão
por morte), o cenário mais comum vislumbrado no cotidiano pre-
videnciário consiste naquele em que indivíduos de idade avançada
almejam aposentadorias em virtude de um longo histórico laboral.
(SERAU JUNIOR, 2014, p. 58). Via de regra, o litígio previden-
ciário envolve indivíduos combalidos pelo avanço da idade, de-

5
Para maiores explanações acerca dos “fatos justificados prima facie”,
confira-se: GUERRA (2016, p. 221).
35

tentores de um quadro de saúde fragilizado e desprovidos do vigor


físico necessário para o exercício de uma profissão remunerada.
De outra sorte, o réu usual das demandas previdenciárias
apresenta características diametralmente opostas. Ocorre que o Ins-
tituto Nacional do Seguro Social (INSS) se trata de uma autarquia
federal, isto é, “o Estado em sentido amplo”, que detém amplos
recursos financeiros, materiais e estruturais para suportar o “tempo
do processo” sem grandes prejuízos. (SAVARIS, 2018, p. 61).
Se, na perspectiva do segurado, a demora na prática dos
atos processuais acarreta-lhe intensos agravos de índole financei-
ra, vital e psicológica; na ótica do INSS, a morosidade na tramita-
ção de requerimentos previdenciários administrativos e judiciais
não lhe causa nenhum tipo de gravame – de todo o contrário, na
realidade, é possível diagnosticar que a autarquia previdenciária
costuma utilizar-se dos incidentes processuais previstos no rito
judiciário como mecanismo para postergar a implementação da
prestação almejada, adotando uma “postura de excessiva litigân-
cia e recorribilidade, sendo historicamente refratário à realização
de acordos.” (SERAU JUNIOR, 2015, p. 60-61).
Além disso, o INSS se encaixa no típico perfil do “litigante
habitual”, o qual, por litigar de maneira massiva no campo previden-
ciário, possui aptidão extremamente acurada para delinear estratégias
processuais capazes de atender aos seus interesses e, consequente-
mente, utilizar todos os artifícios jurídicos disponíveis para atravan-
car a concessão do benefício requerido pelo autor da demanda.6

6
Neste particular, é possível traçar um interessante paralelo com os
escritos de Laércio Augusto Becker, o qual aponta que “eles [litigan-
tes habituais] têm à disposição departamentos jurídicos permanentes,
acostumados a um ritmo industrial de litigância, que trabalham em
regime de economia de escala. Com isso, o custo de um novo litígio,
para eles, é pequeno perante a grande massa de litígios que adminis-
tram, de sorte que não tem um freio econômico para desestimular
aventuras jurídicas. Aqui, ao contrário da litigiosidade contida de que
fala Watanabe, tem-se exatamente o fenômeno contrário: a litigiosida-
de desinibida.” (BECKER, 2012, p. 32).
36

Com efeito, a posição de “litigante habitual” confere uma


ampla gama de vantagens ao INSS nos processos administrati-
vos e judiciais, tais como: a construção de um amplo acervo de
conhecimento sobre teses jurídicas exitosas no campo previden-
ciário; a possibilidade de centrar a sua força de trabalho para a
formação de precedentes judiciais favoráveis; e a utilização da
inconstância de posicionamentos de juízos singulares e Tribunais
para maximizar o índice de vitórias em litígios judiciais.7
Vê-se, assim, que o processo previdenciário é caracteriza-
do por uma inarredável assimetria processual: de um lado, existe
um autor numa presumível situação de risco e inserido num con-
texto de hipossuficiência econômica, material e informacional,
ao passo que, de outro, tem-se uma autarquia federal dotada de
amplas prerrogativas para defender os seus interesses em juízo e,
também, na esfera administrativa. (SAVARIS, p. 56-57).8
Por fim, destaca-se que toda esta dinâmica ocorre num
litígio que envolve o acesso a um direito fundamental. Não se pode
olvidar que as prestações previdenciárias possuem uma íntima
ligação com a dignidade humana e com a garantia ao mínimo
existencial, motivo pelo qual, segundo Savaris, “dizer-lhe que não
detém o direito invocado é recusar-lhe o gozo de direito funda-
mental aos meios de subsistência em situação de adversidade”.
(SAVARIS, 2018, p. 56-57). Sendo assim, é possível concluir:

[...] os benefícios previdenciários são


substitutivos do salário/rendimento pessoal.
Possuem, ademais, íntima ligação com a
garantia de subsistência e sobrevivência dos
indivíduos, derivados que são dos direitos
fundamentais sociais, principalmente pelo
aspecto da garantia da dignidade da pessoa
humana. (SERAU JUNIOR, 2014, p. 59).

7
Nesse sentido: Serau Junior (2015, p. 62-65).
8
Para um pormenorizado estudo sobre as formas de redução das assi-
metrias entre polos litigantes, veja-se: TARTUCE (2012).
37

Ante todas as particularidades delineadas, conclui-se que


as normas do “processo civil ordinário/procedimento comum”
simplesmente não comportam aplicação direta e açodada no
escopo do processo previdenciário.
As características próprias desta modalidade de litígio
impõem que os institutos do processo civil clássico perpassem
por uma espécie de “filtro de adequação”, de modo a direcionar
o processo a sua finalidade última: proporcionar a tutela efetiva
tempestiva e adequada ao direito material postulado em juízo e,
em especial, promover a maximização do acesso à previdência
social. (SAVARIS, 2018, p. 83-84).
Com fulcro nessas premissas, serão propostas algumas re-
flexões sobre o novel art. 176 do Decreto no 3.048/99, de modo
a avaliar a sua compatibilidade com as vicissitudes do processo
administrativo e judicial previdenciário.

O DECRETO 10.410/2020 E A INSERÇÃO DA DECISÃO


TERMINATIVA NO PROCESSO JUDICIAL
PREVIDENCIÁRIO

Como já exposto, o Decreto 10.410/2020 teve como prin-


cipal desiderato a atualização do Decreto 3.048/99.
No âmbito do processo administrativo, a par de algumas
mudanças nas atribuições do CRPS – que já haviam sido introdu-
zidas pela Lei 13.846 –, o Decreto 10.410/2020 engendrou uma
significativa mudança na fase decisória do processo administrati-
vo previdenciário.
Nesse sentido, são relevantes algumas alterações no fluxo
do processo administrativo impostas ao artigo 176 do Decreto
3.048/99, as quais podem ter diversos reflexos procedimentos e
também quanto ao processo judicial.
Para melhor compreensão do que vamos discutir, segue
abaixo a transcrição parcial do mencionado dispositivo, já com a
nova redação:
38

Art. 176. A apresentação de documentação


incompleta não constitui, por si só, motivo
para recusa do requerimento de benefício ou
serviço, ainda que seja possível identificar
previamente que o segurado não faça jus ao
benefício ou serviço pretendido.
§ 1º Na hipótese de que trata o caput, o INSS
deverá proferir decisão administrativa, com
ou sem análise de mérito, em todos os pedidos
administrativos formulados, e, quando for
o caso, emitirá carta de exigência prévia ao
requerente.
§ 2º Encerrado o prazo para cumprimento da
exigência sem que os documentos solicitados
tenham sido apresentados pelo requerente, o
INSS:
I – decidirá pelo reconhecimento do direito,
caso haja elementos suficientes para subsidiar
a sua decisão; ou
II – decidirá pelo arquivamento do processo
sem análise de mérito do requerimento,
caso não haja elementos suficientes ao
reconhecimento do direito nos termos do
disposto no art. 40 da Lei no 9.784, de 29 de
janeiro de 1999.
§ 3º Não caberá recurso ao CRPS da decisão que
determine o arquivamento do requerimento
sem análise de mérito decorrente da não
apresentação de documentação indispensável
ao exame do requerimento.
§ 4º Caso haja manifestação formal do
segurado no sentido de não dispor de outras
informações ou documentos úteis, diversos
daqueles apresentados ou disponíveis ao
INSS, será proferida a decisão administrativa
com análise de mérito do requerimento.
§ 5º O arquivamento do processo não
inviabilizará a apresentação de novo
requerimento pelo interessado, que terá
efeitos a partir da data de apresentação da
nova solicitação.
§ 6º O reconhecimento do direito ao benefício
com base em documento apresentado após
a decisão administrativa proferida pelo
39

INSS considerará como data de entrada


do requerimento a data de apresentação do
referido documento.
§ 7º O disposto neste artigo aplica-se aos
pedidos de revisão e recursos fundamentos
em documentos não apresentados no
momento do requerimento administrativo e,
quanto aos seus efeitos financeiros, aplica-se
o disposto no § 4º do art. 347.

Em suma, segundo se depreende do novo teor do disposi-


tivo, houve uma inserção da figura da decisão sem a resolução de
mérito no processo administrativo previdenciário, isto é, confe-
riu-se à possibilidade de que o INSS, na análise de requerimentos
administrativos, possa aplicar uma solução correlata àquela em
que o juiz deixa de analisar o conteúdo da demanda em virtude da
inexistência dos chamados “pressupostos de admissibilidade do
julgamento de mérito.” (DINAMARCO, 2019, p. 180-181).
Ao que tudo indica, doravante, o segurado que não apre-
sentar documentação apta a comprovar os fatos constitutivos de
seu direito junto ao requerimento administrativo será intimado,
mediante “carta de exigências”, para amostrar provas comple-
mentares. (BRASIL, 1999, art. 176, § 1º).
Caso o segurado não se manifeste, ou não cumpra as exigên-
cias estipuladas, abrem-se duas alternativas ao seu pleito: a uma, se
a documentação inicialmente apresentada mostra-se suficiente para
a comprovação dos requisitos necessários ao benefício almejado, o
INSS julgará procedente o seu pedido; a duas, se a documentação
mostrar-se insuficiente, haverá o arquivamento do processo sem o
julgamento do mérito (BRASIL, 1999, art. 176, § 2º).
Portanto, no regramento atual, ao invés de constituir um
motivo de indeferimento do requerimento, a carência de docu-
mentação suficiente para comprovar o direito a um benefício pre-
videnciário acarreta o arquivamento do processo administrativo
perante o INSS. Pode-se afirmar com as devidas ressalvas, que a
categoria da decisão terminativa foi trazida, em alguma medida,
para o campo do processo administrativo previdenciário.
40

PRIMEIRA REFLEXÃO: O IMPEDIMENTO DO ACESSO


À VIA RECURSAL ADMINISTRATIVA (ART. 176, § 3º,
DO DECRETO 3.048/99)

Na análise crítica ora perscrutada, um primeiro elemento


que merece destaque se trata da disposição contida no § 3º do
artigo 176 do Decreto 3.048/99, cujo teor disciplina que

não caberá recurso ao CRPS da decisão que


determine o arquivamento do requerimento
sem a análise de mérito decorrente da não
apresentação de documentação indispensável
ao exame do mérito.

Primeiramente, cabe consignar que o impedimento à in-


terposição de recursos parece configurar clara impropriedade,
seja à luz do princípio do devido processo legal (art. 5º, LXI, da
Constituição Federal), seja à luz do art. 56, da Lei 9.874/99, cuja
redação se encontra a seguir: “Art. 56. Das decisões administra-
tivas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito”.
A simples leitura do texto legal faz ver que haverá sempre
o direito ao recurso administrativo, percebendo-se que o disposi-
tivo contido no Decreto 10.410/2020 claramente extrapolou sua
hierarquia normativa.
Segundo a doutrina, visando ao equilíbrio entre os Poderes
da República,

a Constituição reserva um núcleo de


assuntos relevantes que somente podem
ser normatizados por atos primários
(especialmente ordinários e complementares),
correspondente à ‘reserva absoluta de lei’ ou
‘estrita legalidade’. (FRANCISCO, 2018).

De fato, nos âmbitos em que o constituinte reservou o tra-


tamento de um dado tema à iniciativa de lei, cria-se um campo
normativo blindado à incursão de decretos ou portarias, salvante
41

nas hipóteses em que sirvam para “dar fiel execução” aos precei-
tos já insculpidos pelo legislador (art. 84, inciso IV, in fine, da
Constituição Federal)9.
Ocorre que o referido art. 176, § 3º, do Decreto 3.048/99,
ao estabelecer uma hipótese de vedação do manejo de recurso,
inova o funcionamento das regras de processo administrativo
federal, em clara violação ao art. 22, inciso I, da Constituição
Federal, o qual disciplina que compete privativamente à União
legislar sobre direito processual.10
Além de confrontar o texto constitucional, a regra também
não se harmoniza com o conjunto de disposições regulamentares
internas ao próprio INSS.
Com efeito, a Instrução Normativa no 77, em seu art. 658,
parágrafo único, preleciona que “o processo administrativo pre-
videnciário contemplará as fases inicial, instrutória, decisória e
recursal”. A rigor, o dispositivo é taxativo ao definir que o proces-
so administrativo previdenciário “contemplará a fase recursal”,
subvencionando uma espécie de mandamento à administração
pública no sentido de que não se pode privar o segurado do direito
a questionar a decisão da primeira instância pela via do recurso
administrativo.
Ademais, o direito ao recurso encontra manifesta guarida
na Lei 9.874/99, que atrela a referida garantia ao princípio da
ampla defesa, núcleo-duro do processo administrativo federal.
Nesse sentido, sinaliza o art. 2º, parágrafo único, inciso X, da Lei
de Processo Administrativo:

9
Nesse sentido, também vale citar: Meirelles (2016, p. 149-150).
10
Acerca da competência legislativa privativa da União, Fernanda
Dias Menezes de Almeida pondera que “é na capacidade de estabele-
cer as leis que vão reger as suas próprias atividades, sem a subordina-
ção hierárquica e sem a intromissão das demais esferas de poder, que
se traduz fundamentalmente a autonomia de cada uma dessas esferas.
Autogovernar-se não significa outra coisa senão ditar-se as próprias
regras.” (ALMEIDA, 2005, p. 97).
42

Art. 2º [...]
Parágrafo único. Nos processos
administrativos serão observados, entre
outros, os critérios de:
[...]
X – garantia dos direitos à comunicação, à
apresentação de alegações finais, à produção
de provas e à interposição de recursos, nos
processos de que possam resultar sanções e
nas situações de litígio.

O célebre jurista Celso Antônio Bandeira de Mello leciona


que, mais do que um preceito expresso da Lei 9.874/99, o direito
ao recurso perfaz uma espécie de princípio geral de direito apli-
cável a todas as modalidades de processo, incluindo o adminis-
trativo:

O princípio da revisibilidade, além de dever


ser considerado um princípio geral de direito,
embasa-se no direito de petição, previsto no
art. 5º, XXXIV, “a”, a teor do qual todos têm
assegurado “o direito de petição aos Poderes
Públicos, em defesa de direitos ou contra
ilegalidade ou abuso de poder”.
Ora, tal direito presume uma atuação
administrativa que o cidadão repute
desconforme com a ordem jurídica. Assim,
peticionará a revisão dela, tanto mais porque a
Administração se estrutura hierarquicamente,
no que vai implícito um princípio de
revisibilidade. (MELLO, 2010, p. 508).

Portanto, o art. 176, § 3º, do Decreto 3.048/99 carece de


legitimidade jurídica na medida em que não apenas viola o con-
teúdo expresso da ampla defesa (art. 2º, parágrafo único, inciso
X, da Lei 9.874/99), como também vilipendia um princípio geral
de direito.
Ainda, vale destacar que o conteúdo do dispositivo também
43

vai na contramão do movimento de desjudicialização idealizado


pelo Conselho Nacional de Justiça.11
De fato, ao restringir o manejo do recurso administrativo
nas hipóteses de arquivamento do processo previdenciário, existe
uma espécie de estímulo à judicialização. Em termos práticos:
o segurado, diante da impossibilidade de lograr o seu benefício
previdenciário pelas vias recursais administrativas, será indireta-
mente compelido a mover uma ação judicial visando à concessão
da prestação almejada.
O contexto de degradação qualitativa dos serviços jurisdi-
cionais, em razão do excesso de litígios remetidos ao Poder Ju-
diciário, trata-se de questão de notória, abordada pelo relatório
anual “Justiça em Números”12 do CNJ e, no campo previdenciá-
rio, pelos estudos fornecido pelo “Observatório da Estratégia da
Justiça Federal”.13
Ante a premente necessidade de diminuição do contingen-
te de litígios judiciais, o fenômeno da desjudicialização desponta
como possível solução para tal problemática. Com efeito, deve-se
conferir a devida credibilidade aos mecanismos de solução de
conflitos paralelos à adjudicação judicial (a exemplo do processo
administrativo), para que a população deixe de remeter toda a

11
Para maiores informações, vale conferir o conteúdo disponibilizado
no sítio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/planos-de-acao-vao-fomentar-a-desjudicializa-
cao-nos-tribunais/. Acesso em: 19 jul. 2020
12
A última edição do relatório “Justiça em Números” pode ser acessa-
da no sítio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/
justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
13
Os informes detalhados das pesquisas empreendidas pelo “Obser-
vatório da Estratégia da Justiça Federal” constam no endereço eletrô-
nico fornecido pela instituição. Disponível em: https://app.powerbi.
com/view?r=eyJrIjoiMjViYTliYzctODY3Mi00OWQ0LTkyOWE-
tYzQ5Y2U0NTJiNmFiIiwidCI6IjQ1NjM1N2JmLTAxMmYtNDhl-
Ny1iYTNhLTUwODUzMTRjNjA3YiJ9. Acesso em: 24 abr. 2020.
44

sorte de litígios ao crivo da jurisdição, como bem pontua Rodolfo


de Camargo Mancuso:

Não se pode, assim, atrelar (ao menos não


necessariamente), os valores justiça/certeza/
prestação jurisdicional, e, com mais razão,
não se pode mais vislumbrar qualquer laivo
de exclusividade estatal na “distribuição da
justiça”, até porque, presentes as diretrizes
constitucionais da democracia participativa
e do pluralismo nas iniciativas, hoje se
disponibilizaram muitos outros meios e
modos pelos quais aquele desiderato pode ser
alcançado, a saber, mediante o concurso dos
meios ditos alternativos, não por acaso também
chamados equivalentes jurisdicionais, dentre
os quais se vem destacando a arbitragem,
mas também as instâncias de conciliação e
mediação, além das formas combinadas de
um e outros (v;g;, mediação e arbitragem).
(MANCUSO, 2019, p. 427).

De maneira similar, Pinho e Stancati lecionam que o fe-


nômeno da desjudicialização surge como alternativa à incapaci-
dade estrutural do Poder Judiciário de conferir resposta adequa-
da ao número crescente de litígios da sociedade contemporânea.
Assim, de acordo com os autores, algumas questões “devem ser
desjudicializadas para que novas questões sejam judicializadas,
dando espaço, no seio do Poder Judiciário, para novos debates”, de
modo que “os conceitos de informalização e desjudicialização, em
sentido amplo, manifestam-se através de diferentes realidades que
permitem prevenir ou resolver um litígio.” (PINHO, 2016, p. 22).
No caso dos litígios de índole previdenciária, o processo
administrativo desenrolado nas Agências da Previdência Social,
bem como nas Juntas e Câmaras de Recurso do CRPS, tratam-se
de instâncias essenciais para a concretização da chamada desjudi-
cialização: caso o segurado sinta-se satisfeito com a análise em-
preendida no processo administrativo previdenciário, existe uma
elevada possibilidade de que a sua pretensão não seja remetida ao
45

Poder Judiciário.
No entanto, o novel § 3º do art. 176, ao invés de alçar
o processo administrativo previdenciário a um profícuo método
extrajudicial de solução de conflitos, opta pelo caminho inverso:
proíbe a via recursal administrativa, cuja consequência certamen-
te imediata será a desjudicialização, pois a discussão sobre essa
gama do conflito previdenciário será automaticamente translada-
da para o campo judicial.

SEGUNDA REFLEXÃO: A POSTERGAÇÃO DA DIB DOS


PROCESSOS ARQUIVADOS SEM A ANÁLISE DE MÉRITO
(ART. 176, § 6º, DO DECRETO 3.048/99)

Merece destaque, também, o art. 176, § 6º, do Decreto


3.048/99. O referido dispositivo assinala que, nas hipóteses de
arquivamento do processo administrativo sem a análise de mérito
do requerimento,

o reconhecimento do direito ao benefício


com base em documento apresentado após
a decisão administrativa proferida pelo
INSS considerará como data de entrada
do requerimento a data de apresentação do
referido documento.

É importante salientar que, embora essa nova redação do


Decreto 3.048/99 não impeça novo requerimento administrati-
vo (nem poderia, diante do direito de petição, previsto no art.
5º, inciso XXXIV, da Constituição Federal), causa prejuízo em
relação a eventuais atrasados devidos aos segurados e seguradas,
pois terá como DIB o segundo momento de apresentação da do-
cumentação complementar e não aquele primeiro do requerimen-
to administrativo inicial.
Desenvolver esse argumento a partir de um caso hipotéti-
co pode ser útil para exemplificar essa hipótese, dando contornos
mais práticos a essa preocupação.
Imagine-se que um indivíduo formula requerimento ad-
46

ministrativo perante o INSS em agosto de 2020, objetivando a


concessão de benefício de aposentadoria especial.
Ocorre que a Agência da Previdência Social (APS), devido
ao elevado contingente de requerimentos administrativos penden-
tes de avaliação, somente consegue analisar o pedido do autor em
junho de 2021, ocasião na qual requisita ao segurado, mediante
Carta de Exigências, a apresentação de documentação comple-
mentar, sob o fundamento de que os laudos técnicos juntados não
são suficientes para demonstrar a efetiva exposição aos agentes
nocivos alegados.
Esse segurado, no entanto, deixa de cumprir as requisições
do INSS no prazo estipulado, motivo pelo qual o seu processo ad-
ministrativo é arquivado sem análise de mérito do requerimento.
Suponha-se que, no mês de agosto de 2021, este indivíduo logra
a documentação complementar outrora solicitada, de modo que,
após a apresentação dos novos comprovantes, é-lhe deferida a
aposentadoria especial almejada.
Aplicando o novo teor do art. 176, § 6º, do Decreto
3.048/99 à hipótese acima ilustrada, tem-se que os efeitos finan-
ceiros da aposentadoria especial do segurado teriam início apenas
em agosto de 2021 (data de apresentação da documentação com-
plementar), muito embora tenha requerido a sua aposentadoria
em agosto de 2020.
Em suma, no caso hipotético, o § 6º do art. 176 acarretaria
um prejuízo equivalente ao valor de uma anualidade da aposenta-
doria especial requerida, eis que o segurado deixaria de perceber o
benefício durante o interregno de agosto de 2020 a agosto de 2021.
Além de causar flagrantes prejuízos econômicos aos se-
gurados, vale salientar que o dispositivo regulamentar reflete um
problema corrente no âmbito previdenciário: a falta de concor-
dância entre os posicionamentos do Poder Judiciário e do INSS.
Como bem nota José Antônio Savaris, ao abordar a presente te-
mática, são inúmeros os casos em que, ainda que a jurisprudência
se encontre remansosa em determinado tema, a Administração
Previdenciária persiste em um comportamento gravoso ao poten-
47

cial beneficiário da seguridade social. (SAVARIS, 2018, p. 151)..


Este é justamente o caso da disposição ora analisada, visto
que o novel preceito carreado pelo Decreto 10.410/2020 contraria
frontalmente precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Com
efeito, em sede de incidente de uniformização de jurisprudên-
cia, a Corte Superior já fixou a tese de que os efeitos financeiros
do benefício previdenciário têm início na data do requerimento
administrativo, independentemente do momento de juntada da
documentação responsável pela comprovação dos requisitos da
prestação almejada:

PREVIDENCIÁRIO. INCIDENTE DE UNI-


FORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
APOSENTADORIA ESPECIAL. TERMO
INICIAL: DATA DO REQUERIMENTO
ADMINISTRATIVO, QUANDO JÁ PRE-
ENCHIDOS OS REQUISITOS PARA A
CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. INCIDEN-
TE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRU-
DÊNCIA PROVIDO.
1. O art. 57, § 2º., da Lei 8.213/91 confere
à aposentadoria especial o mesmo tratamento
dado para a fixação do  termo inicial  da
aposentadoria por idade, qual seja, a data de
entrada do requerimento administrativo para
todos os segurados, exceto o empregado.
2. A comprovação extemporânea da situação
jurídica consolidada em momento anterior
não tem o condão de afastar o direito adquirido
do segurado, impondo-se o reconhecimento
do direito ao benefício previdenciário no
momento do requerimento administrativo,
quando preenchidos os requisitos para a
concessão da aposentadoria.
3. In casu, merece reparos o acórdão recorrido
que, a despeito de reconhecer que o segurado
já havia implementado os requisitos para a
concessão de aposentadoria especial na data
do requerimento administrativo, determinou
a data inicial do benefício em momento
posterior, quando foram apresentados em
48

juízo os documentos comprobatórios do


tempo laborado em condições especiais.
4. Incidente de uniformização provido para
fazer prevalecer a orientação ora firmada.14

Portanto, o Decreto no 10.410/2020 ignora os critérios


previdenciários formulados pelo Superior Tribunal de Justiça,
representando mais uma hipótese em que se intenta obstruir, ao
máximo, a implementação de benefícios previdenciários, ainda
que isso represente uma afronta à adequada interpretação da lei
conferida pelo Poder Judiciário.
De fato, tal circunstância apenas reitera o padrão de
conduta de “ausência de internalização desse sentimento de res-
peito às normas jurídicas por parte do INSS”, o que decorre, in-
clusive, “do histórico e características burocrático-autoritárias do
INSS”. (SERAU JUNIOR, 2015, p. 75).
Conforme bem sugere Alexandre Schumacher Triches,
essa incongruência dos atos normativos com a jurisprudência dos
Tribunais Superiores também redunda no aumento da judicializa-
ção na esfera previdenciária:

O excesso de ações judiciais previdenciárias,


em muitos casos, decorre da incongruência
verificada entre a legislação administrativa e
o posicionamento jurisprudencial.
[...]
Isso faz com que a situação do segurado em
face da Previdência Social transforme-se
precocemente em um litígio previdenciário,
consolidando uma consciência de que a
entidade previdenciária é um obstáculo à
obtenção da prestação previdenciária, pois, ao
final, acredita-se que será no âmbito do Poder
Judiciário que o problema será resolvido.
(TRICHES, 2014, 149-150).

14
STJ, Pet 9.582-RS, Primeira Seção, Relator Ministro NAPOLEÃO
NUNES MAIA FILHO, DJe 16/09/2015.
49

Compreendemos que seria muito desejável, em alguma


medida, a internalização, no âmbito administrativo, de certos po-
sicionamentos emanados da via judicial – o que deveria ocorrer
ao menos em relação àqueles que decorrem de julgamentos de re-
cursos repetitivos, nos termos dos artigos 926 a 928 do CPC/2015.
É bastante provável que essa nova regra gere inúmeras
ações judiciais previdenciárias, sobretudo de cunho revisional, no
sentido de compelir o INSS a aplicar o entendimento do Superior
Tribunal de Justiça.15
Além disso, ao que nos parece, essa disposição é ilegal, à
luz do art. 105, da Lei 8.213/91 e, inclusive, a partir da perspecti-
va constitucional do direito adquirido, pois a vinda superveniente
de documentação hábil à demonstração do direito não afasta o
fato de que este direito já estaria constituído desde momento pre-
térito.16
É que o preenchimento dos requisitos necessários à ob-
tenção de benefícios previdenciários, em regra, perpassa por um
paulatino processo de consolidação, destacado pela doutrina de
Marcelo Lima Barroso:

Em Direito Previdenciário as expectativas


de direitos não são simples, pois a cada dia,
a cada minuto, a cada segundo, o segurado
incorpora ao seu patrimônio, o tempo e as
suas consequências, que a qualquer momento
pode ser exigido como requisito de um
benefício a ser concedido em decorrência de
um sinistro.
[...]
A relação jurídica previdenciária impõe
a superação do preconceito segundo o
qual as expectativas de direito constituem

15
É possível cogitar, inclusive, a aplicação de precedentes vinculantes
judiciais na esfera do processo administrativo previdenciário. Para
maiores informações, vale conferir: CEZNE; SCHMITZ (2017, p. 203).
16
Para interessante explanação acerca da incidência do direito adqui-
rido na esfera previdenciária, sugere-se: SOUZA (2018, p. 121-133).
50

meras pretensões frágeis a adquirir direitos.


(BARROSO, 2012, p. 144).17

Assim, disciplinar que o segurado somente possui direito


ao benefício previdenciário quando da apresentação da documen-
tação complementar significa o mesmo que negar todo o processo
de incorporação do tempo e das suas consequências ao seu patri-
mônio jurídico, conforme afirma Lima Barroso.
Nesse âmbito, deve prevalecer a máxima de que o marco
inicial da aposentadoria corresponde ao momento em que o segura-
do preencheu os requisitos subjacentes ao benefício almejado ou, em
se tratando de benefícios de caráter voluntário, na data de entrada do
requerimento administrativo. A data de apresentação da documenta-
ção complementar após o arquivamento do processo sem a análise
do mérito do requerimento se trata de um marco superveniente e de-
simportante para a delimitação dos efeitos financeiros do benefício.
Em suma, se o indivíduo já preencheu todos os pressupos-
tos para a concessão do benefício previdenciário, a ordem consti-
tucional resguarda-lhe o direito adquirido à obtenção da prestação
almejada desde a data em que tais requisitos foram preenchidos.18
Ainda, vale ressaltar que o art. 176, § 6º, do Decreto
3.048/99 também contém uma complicação de ordem prática.
Na maioria das situações, a morosidade do andamento do
processo administrativo decorre exclusivamente da ineficiência
do INSS em proceder à análise dos requerimentos que lhes são

17
Embora o autor se refira ao contexto previdenciário dos servidores
públicos, não há qualquer óbice para que a sua tese sobre os “direitos
previdenciários expectados” seja aplicada aos segurados do Regime
Geral da Previdência Social.
18
“O direito adquirido também assume extrema importância no Direi-
to Previdenciário, em especial devido às constantes alterações da le-
gislação e até da própria Constituição (art. 5º, XXXVI, da CRFB/88).
O direito adquirido é aquele que já se integrou ao patrimônio jurídico
do indivíduo, sendo defeso ao Estado sua exclusão por qualquer
meio.” (IBRAHIM, 2015, p. 63).
51

remetidos. De fato, não são raras as situações em que requerimen-


tos administrativos são formulados perante a autarquia previden-
ciária e, devido à sobrecarga de trabalho enfrentada pelos analis-
tas da previdência social, permanecem durante meses pendentes
de apreciação.
A excessiva demora por parte das Agências da Previdência
Social em dar o devido andamento a processos administrativos
previdenciários trata-se de tema constantemente suscitado em de-
mandas judiciais coletivas. A título exemplificativo, vale desta-
car a Ação Civil Pública no 5025299-96.2011.404.7100, ajuizada
pela Defensoria Pública da União no ano de 2011, em que foram
debatidas possíveis medidas para solucionar os constantes atrasos
na designação de perícias médicas necessárias à concessão de be-
nefícios por incapacidade.19
Do mesmo modo, já existe notícia de inúmeras ações co-
letivas que objetivam aumentar a eficiência do processamento de
pedidos administrativos formulados perante o INSS. É o caso da
Ação Civil Pública no 102115073.2019.4.01.3400, ajuizada pelo
Ministério Público Federal do DF,20 da Ação Civil Pública no
1005547.91.2018.4.01.3400, ajuizada pela Defensoria Pública da
União e da Ação Civil Pública no 5029390-91.2019.4.02.5101,
ajuizada pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro.21
Diagnostica-se, portanto, que a morosidade da tramitação
do processo administrativo decorre de uma ineficiência estrutural
inerente ao INSS.

19
TRF4, APELREEX 5025299-96.2011.4.04.7100, SEXTA TURMA,
Relator CELSO KIPPER, juntado aos autos em 16/09/2013.
20
O inteiro teor da petição inicial foi disponibilizado no sítio eletrô-
nico do Ministério Público Federal. Disponível em: http://www.mpf.
mp.br/df/sala-de-imprensa/docs/inicial-acp-serv-inss.pdf. Acesso em:
17 maio 2020.
21
De igual forma, o inteiro teor da petição inicial também pode ser
consultado no sítio eletrônico do Ministério Público Federal. Disponível
em: http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/f86ad5c92a-
18b25e15f9a2b7ee53bc3e982569.pdf/view. Acesso em: 20 jul. 2020.
52

Logo, necessário reconhecer que o art. 176, § 6º, do


Decreto no 3.048/99 traz um prejuízo indevido aos segurados,
pois a perda do direito às verbas retroativas devidas entre a DER
originária e a data de juntada da documentação complementar
decorre da desídia do INSS em processar com a devida celeri-
dade os requerimentos previdenciários que lhes são submetidos.
Noutros termos, o prejuízo financeiro é majorado à medida que a
própria autarquia demora em impulsionar o processo administra-
tivo previdenciário.
Basta cogitar que, se o INSS analisasse de maneira ime-
diata o requerimento do segurado e, em prazo exíguo, emitisse
Carta de Exigências requisitando-lhe provas complementares,
haveria poucas parcelas retroativas a serem arcadas entre a DER
originária e a efetiva data de apresentação dos novos documentos.
No entanto, se o lapso temporal supramencionado é excessiva-
mente extenso, tal circunstância tem como causa a ineficiência do
INSS, razão pela qual o segurado não pode ser sancionado com a
perda do direito à percepção das prestações retroativas.
Assim, necessário reconhecer que o § 6º do art. 176 do
Decreto 3.048/99, a par de violar a jurisprudência consolidada do
STJ e de afrontar o direito adquirido dos segurados, também lhes
propicia um prejuízo financeiro indevido, visto que são punidos
indiretamente pela morosidade da própria autarquia.

TERCEIRA REFLEXÃO: A FORMAÇÃO DO INTERESSE


PROCESSUAL PARA O AJUIZAMENTO DE DEMANDA
JUDICIAL

Daremos atenção, agora, aos possíveis desdobramentos


judiciais do art. 176 do Decreto 3.048/99, com redação dada pelo
Decreto 10.410/2020, com especial ênfase na questão do interes-
se processual para o ajuizamento de demandas previdenciárias.
É interessante notar que, nesse ponto, a nova redação do
art. 176 do RPS adota o conteúdo trazido pela Instrução Norma-
tiva 102, de 14.8.2019, que acrescentou alguns parágrafos ao art.
678 da IN 77/2015, que é uma espécie de consolidação dos atos
53

administrativos que devem ser observados pelos servidores do


INSS. Veja-se o teor do que foi acrescido pela IN 102/2019:

Art. 678.
[...]
§ 7º Esgotado o prazo para cumprimento da
exigência sem que os documentos solicitados
pelo INSS tenham sido apresentados pelo
segurado requerente, e em havendo elementos
suficientes ao reconhecimento do direito,
o processo será decidido neste sentido,
observado o disposto neste Capítulo.
§ 8º Na hipótese do parágrafo anterior,
não havendo elementos que permitam o
reconhecimento do direito ao segurado, o
requerimento será encerrado sem análise
do mérito, por desistência do pedido, após
decorridos 75 (setenta e cinco) dias da ciência
da referida exigência.
§ 9º O encerramento do processo sem
análise do mérito, por desistência do pedido,
não prejudica a apresentação de novo
requerimento pelo interessado, que terá
efeitos a partir da data da nova solicitação.

A IN no 102/2019 criou uma figura de “desistência tácita” do


requerimento administrativo, pois passou a tratar desta maneira os pro-
cessos administrativos em que não houvesse a apresentação tempesti-
va da documentação requerida pelo INSS em carta de exigências.
Não se pode desprezar que exista a figura jurídica da de-
sistência do processo administrativo, conforme consta da redação
do art. 40 da Lei 9.874/99, que disciplina o processo administra-
tivo federal:

Art. 40. Quando dados, atuações ou


documentos solicitados ao interessado
forem necessários à apreciação de pedido
formulado, o não atendimento no prazo
fixado pela Administração para a respectiva
apresentação implicará arquivamento do
processo.
54

De fato, a norma que cuida do Processo Administrativo


efetivamente possibilita o arquivamento dos requerimentos admi-
nistrativos quando ausente apresentação de documento por parte
do interessado.
Porém, indagamos se esse é o melhor encaminhamento para
a análise do Processo Administrativo Previdenciário, que atende a
um público específico, com demandas bastante específicas e parti-
cularidades sócio-econômicas que os colocam em situação de vul-
nerabilidade processual, como já destacado anteriormente.
O exame do enquadramento da situação de descumprimen-
to da Carta de Exigências como se fosse uma “desistência tácita”
ou, agora, uma possibilidade de arquivamento do requerimento
administrativo (art. 176, § 2º, inciso II, do Decreto 3.048/99),
deve ser efetuado não em virtude de preciosismo acadêmico, mas
por conta dos vários e relevantes aspectos processuais que podem
ser verificados.
Isso porque, a depender da interpretação que se confira ao
instituto da “desistência tácita”/“arquivamento”, diferentes reper-
cussões despontarão na delimitação do interesse processual do
autor de ações judiciais previdenciárias.
Conforme preconiza o art. 17 do CPC, “para postular em
juízo é necessário ter interesse e legitimidade”. Em se tratando de
litígios previdenciários, é de se reconhecer que essa regra assume
contornos peculiares.
Ocorre que a configuração do interesse de agir necessário
ao ajuizamento de uma demanda previdenciária pressupõe que o
pedido do benefício almejado pelo segurado tenha sido apreciado
por decisão pretérita do INSS.22 Em outras palavras:

22
O ponto é bem elucidado por Savaris: “A garantia de tutela indivi-
dual para satisfação do direito material previdenciário deve ser com-
preendida na perspectiva de que ele deve, inicialmente, ser apreciado
pelo órgão gestor da previdência social [...]. Na busca de uma pres-
tação da seguridade social, o ordinário é que o indivíduo interessado
dirija sua pretensão inicialmente à entidade responsável por prestar-lhe
a chamada tutela administrativa.” (SAVARIS, 2018, p. 234-235).
55

a jurisprudência exige a existência de conflito


de interesses entre segurado e INSS [...].
Faz-se necessário, ao menos, a prova do
requerimento administrativo para demonstrar
a configuração da lide previdenciária.
(SERAU JUNIOR, 2014, p. 165).

A temática do interesse processual na esfera previdenciá-


ria possui contornos bem precisos estabelecidos pelo STF no RE
631.240/MG, julgado na sistemática da repercussão geral:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPER-


CUSSÃO GERAL. PRÉVIO REQUERI-
MENTO ADMINISTRATIVO E INTERES-
SE EM AGIR.
1. A instituição de condições para o regular
exercício do direito de ação é compatível
com o art. 5º, XXXV, da Constituição. Para
se caracterizar a presença de interesse em
agir, é preciso haver necessidade de ir a juízo.
2. A concessão de benefícios previdenciários
depende de requerimento do interessado, não
se caracterizando ameaça ou lesão a direito
antes de sua apreciação e indeferimento
pelo INSS, ou se excedido o prazo legal
para sua análise. É bem de ver, no entanto,
que a exigência de prévio requerimento não
se confunde com o exaurimento das vias
administrativas.
3. A exigência de prévio requerimento
administrativo não deve prevalecer quando
o entendimento da Administração for notória
e reiteradamente contrário à postulação do
segurado.
4. Na hipótese de pretensão de revisão,
restabelecimento ou manutenção de benefício
anteriormente concedido, considerando que
o INSS tem o dever legal de conceder a
prestação mais vantajosa possível, o pedido
poderá ser formulado diretamente em juízo
– salvo se depender da análise de matéria
de fato ainda não levada ao conhecimento
56

da Administração –, uma vez que, nesses


casos, a conduta do INSS já configura o não
acolhimento ao menos tácito da pretensão.
[...]
9. Recurso extraordinário a que se dá
parcial provimento, reformando-se o
acórdão recorrido para determinar a baixa
dos autos ao juiz de primeiro grau, o qual
deverá intimar a autora – que alega ser
trabalhadora rural informal – a dar entrada
no pedido administrativo em 30 dias, sob
pena de extinção. Comprovada a postulação
administrativa, o INSS será intimado para
que, em 90 dias, colha as provas necessárias e
profira decisão administrativa, considerando
como data de entrada do requerimento a data
do início da ação, para todos os efeitos legais.
O resultado será comunicado ao juiz, que
apreciará a subsistência ou não do interesse
em agir.23

Fixadas tais premissas, urge indagar: ocorrida a hipótese


descrita no art. 176, § 2º, inciso II, do Decreto 3.048/99 (arqui-
vamento do processo sem análise de mérito do requerimento),
estaria configurado o interesse processual do segurado para o
ajuizamento de demanda judicial?
De fato, essas situações de arquivamento e desistência
tácita do processo administrativo previdenciário, assim como
a perspectiva de anuência do segurado com a ideia de que não
disporia de outras informações ou documentos úteis à análise do
caso (art. 176, § 4º, do RPS), podem implicar limitações à confi-
guração do interesse processual e obstar ou restringir o acesso à
jurisdição.
Em uma perspectiva extremamente formalista da juris-
prudência, pautada pela estrita legalidade, que infelizmente não
é estranha ao Direito Previdenciário, vislumbra-se o risco de que

23
STF, RE 631.240, Rel.: Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno,
julgado em 03.09.2014, DJe. 07.11.2014.
57

se alegue a inexistência do interesse processual nessas hipóteses


envolvendo decisões de arquivamento de processos administrati-
vos previdenciários, sem análise de mérito, bem como aquelas em
que o segurado afirme que não possui informações ou documen-
tos pertinentes aos fatos previdenciários que pretende demonstrar.
(SERAU JUNIOR, 2015, p. 74-76).
Inúmeros são os arrestos que reconheceram a inexistên-
cia de interesse de agir do segurado, sob o fundamento de que
a autarquia previdenciária extinguira o processo administrativo
antecessor, sem a apreciação do mérito do requerimento. A título
meramente ilustrativo, pode-se destacar as situações em que a
demanda judicial referente à pedido de benefício por incapaci-
dade é extinta em razão da ausência de comparecimento do se-
gurado à perícia administrativa efetuada pelo INSS. Eis recente
exemplo da jurisprudência:

PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-DOENÇA.
PERÍCIA. NÃO COMPARECIMENTO.
FALTA DE INTERESSE DE AGIR.
EXTINÇÃO DO FEITO SEM EXAME DE
MÉRITO. ART. 485, IV, DO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL.
1. O não comparecimento do segurado à
complementação de perícia médica na via
administrativa, sem comprovação do justo
motivo para a ausência, inviabilizando
a decisão e conclusão do processo
administrativo, e descaracterizando a
pretensão resistida, implica falta de interesse
de agir, nos termos do art. 17, do Código de
Processo Civil, o que enseja a extinção do
feito sem julgamento do mérito, consoante
art. 485, IV, do Código de Processo Civil.24

24
TRF4, AC 5017675-48.2019.4.04.9999, TURMA REGIONAL
SUPLEMENTAR DO PR, Relator MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA,
juntado aos autos em 16/07/2020.
58

Guardadas as devidas proporções, é possível que julgadores


lancem deste mesmo fundamento para declarar a inexistência de
interesse processual dos segurados cujos processos tenham sido en-
quadrados nas hipóteses de desistência tácita ou de arquivamento.
Tal perspectiva parte do pressuposto de que o interesse de
agir para o ajuizamento de demanda previdenciária somente se
configura na existência de uma efetiva recusa (indeferimento) do
benefício pelo INSS. No entanto, necessário sopesar que, no caso
específico do art. 176, § 2º, inciso I, esta premissa necessita de
certa mitigação.
Conforme aponta Savaris, a necessidade de intervenção
jurisdicional, bem como a configuração do interesse de agir,
não estão necessariamente condicionadas à externação de uma
decisão administrativa ilegal do INSS, visto que a função do
Poder Judiciário não é a de tão somente revisar a legalidade do
ato administrativo exarado pela autarquia, mas sim de realizar
uma efetiva análise do quadro fático do segurado e, caso viável,
proporcionar-lhe o acesso ao direito fundamental à previdência
social. Trata-se do que o autor bem nomeia de princípio da pri-
mazia do acertamento:

Percebe-se, assim, a necessidade de superação


da concepção consoante a qual a satisfação
judicial do direito fundamental à proteção
social está condicionada à ilegalidade do
ato administrativo. Constituem questão de
menor importância os motivos pelos quais
determinado direito não foi reconhecido na
esfera administrativa. Uma vez provocada
a tutela administrativa, a recusa de proteção
abre espaço para que se busque o acertamento
mediante intervenção jurisdicional. Em
juízo, identificada a existência de direito
fundamental social, o princípio da primazia
do acertamento impõe sua satisfação em toda
amplidão, isto é, conduz à definição da relação
jurídica de proteção social, mediante outorga
da prestação devida nos estritos termos a que
a pessoa faz jus. (SAVARIS, 2012, p. 428).
59

Isso significa que, se o processo previdenciário restar ar-


quivado com fundamento no art. 176, § 2º, inciso I, do RPS, não
se deve declarar, de imediato, a inexistência de interesse proces-
sual para o ajuizamento de demanda previdenciária. Antes deste
expediente, deve-se perquirir se, apesar do arquivamento dos
autos administrativos, existe algum direito fundamental apto a
ser tutelado em juízo.
Com efeito, caso se constate que o indivíduo detém todas
as provas necessárias para a comprovação do fato constitutivo do
direito ao benefício almejado, o arquivamento do processo admi-
nistrativo não pode acarretar óbice para que a prestação lhe seja
concedida pela via judicial.
Como já sinalizado anteriormente, as regras do processo
civil ordinário devem se adequar às peculiaridades do litígio pre-
videnciário, de modo a direcionar a atividade judicial sempre à
maximização do acesso à previdência social.

CONCLUSÃO

Ao longo do artigo, realizou-se uma análise crítica das


principais disposições de caráter processual contidas na nova
redação do art. 176 do Decreto 3.048/99, com redação dada pelo
Decreto 10.410/2020, tomando como premissa a necessidade de
adequação das regras e institutos do processo civil ordinário às
particularidades dos litígios previdenciários.
Em suma, compreendeu-se que parte significativa das
normas contidas no novo dispositivo regulamentar esbarra em ga-
rantias constitucionais dos segurados, em preceitos expressos da
Lei 8.213/91 e da Lei 9.874/99, em cláusulas inerentes ao campo
do processo previdenciário, bem como no necessário movimento
de desjudicializaçao.
Diante disso, desponta a premente necessidade de que o
art. 176 do Decreto 3.048/99, em sua configuração atual, seja in-
terpretado de maneira crítica pela instância administrativa (Agên-
cias da Previdência Social, Juntas de Recurso e Câmaras de
60

Julgamento do CRPS) e, principalmente, pela instância judicial


(Varas, Tribunais Regionais Federais, Tribunais de Justiça, Tribu-
nais Superiores), a fim de que o direito fundamental à previdência
social não seja olvidado por uma aplicação estrita e irrefletida das
disposições normativas discutidas.

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NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 16/09/2015.
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TRF4, APELREEX 5025299-96.2011.4.04.7100, SEXTA


TURMA, Relator CELSO KIPPER, juntado aos autos em
16/09/2013.

TRF4, AC 5017675-48.2019.4.04.9999, TURMA REGIONAL


SUPLEMENTAR DO PR, Relator MÁRCIO ANTÔNIO
ROCHA, juntado aos autos em 16/07/2020.

TRICHES, Alexandre Schumacher. Direito processual


administrativo previdenciário. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014.
63

COMPETÊNCIA REGULAMENTAR NO
DIREITO PREVIDENCIÁRIO

Renato Barth Pires1

INTRODUÇÃO

O tema da competência regulamentar retornou à ordem


do dia, no estudo do Direito Previdenciário (Direito da Seguri-
dade Social), com a edição do Decreto nº 10.410, de 30 de junho
de 2020, que promoveu alterações profundas no Regulamento da
Previdência Social (Decreto nº 3.048/99).
Esta competência, que parte da doutrina prefere deno-
minar poder regulamentar, recebeu um regramento estrito na
ordem jurídica brasileira, dado que se encontram diretamente na
Constituição Federal os limites para o seu exercício.
A proposta deste estudo é analisar a conformação constitu-
cional da competência regulamentar, suas características, limites
e possibilidades. A ideia é também examinar uma anomalia muito
presente entre nós, que se traduz nas situações de delegação le-
gislativa disfarçada, isto é, situações em que o legislador de-
liberadamente transfere ao Poder Executivo a competência para
disciplinar certos assuntos, ou pormenorizar essa disciplina, abdi-
cando de suas próprias competências constitucionais. Outro tema
a ser enfrentado diz respeito àquelas situações em que o exercício

1 Renato Barth Pires é Juiz Federal na Seção Judiciária de São Paulo e


Professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo – PUC/SP, onde se gradou e obteve o título de Mestre
em Direito. Ministra cursos e aulas em temas relacionados ao Direito
Constitucional e ao Direito Previdenciário. Autor de artigos e livros
jurídicos, dentre os quais o Mandado de segurança em matéria previ-
denciária, 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
64

irregular da competência reformadora acarreta situações juri-


dicamente favoráveis ao segurado ou dependente, no Regime
Geral de Previdência Social. A questão a resolver, neste ponto, é
saber se é possível extrair consequências jurídicas válidas, lícitas,
a partir de uma competência exercida em aparente afronta aos
limites constitucionais.
O trabalho também realiza uma aproximação de alguns
tópicos do Decreto nº 10.410/2020 e suas relações com o regime
constitucional da competência regulamentar.

A COMPETÊNCIA REGULAMENTAR NO REGIME


CONSTITUCIONAL DA LEGALIDADE E A SEPARAÇÃO
DAS FUNÇÕES DO ESTADO

A competência regulamentar é tema que se insere no


campo dos poderes normativos atribuídos ao Chefe do Poder Exe-
cutivo. Na doutrina previdenciária, a competência regulamentar é
habitualmente tratada no âmbito das fontes do Direito Previden-
ciário, considerando-se o decreto regulamentar uma espécie de
fonte secundária2.
Tratando-se de um assunto típico da organização do
Estado, é elementar que se ache uma literatura jurídica muito
profusa a respeito, inclusive no direito comparado. Pelo fato de se
cuidar de assunto muito rotineiro, não raro se encontram autores
que pretendem incorporar à ordem jurídica brasileira noções que
não se amoldam ao perfil constitucional do instituto3.

2
Nesse sentido, CORREIA; CORREIA (2012, p. 35); GARCIA,
(2017, p. 34); TAVARES (2015, p. 67-68); VIANNA (2013, p. 53).
3
A propósito do tema da competência regulamentar, Celso Antonio
Bandeira de Mello adverte que “é absolutamente ingênuo e impróprio
caracterizar o regulamento, em nosso Direito, buscando assimilações
com o Direito alienígena ou pretendendo irrogar-lhe potencialidades
normativas que lhe são conferidas em sistemas alheios, como se hou-
vesse uma acepção universalmente válida e precisa para os atos des-
tarte denominados” (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de
direito administrativo. 21. ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 322).
65

Assim, não é possível realizar uma interpretação adequada


da competência regulamentar senão a partir de sua conformação
específica instituída pela Constituição Federal de 1988, que o fez
em termos bastante precisos.
Esta é uma imposição que decorre do próprio sistema cons-
titucional, que contempla a separação das funções do Estado tanto
como um princípio fundamental (artigo 2º)1, como também
como uma das limitações materiais à competência de reforma da
Constituição, isto é, uma cláusula pétrea (artigo 60, § 4º, III)2.
Dentro do contexto da separação das funções de Estado
é que se deve examinar o postulado fundamental da legalidade.
Ao prescrever que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (artigo 5º, II), a
Constituição brasileira estabelece uma competência estrita para a
possibilidade de inovar originariamente o ordenamento jurídico.
Mais ainda, trata-se de prestigiar o Estado de Direito, submetendo
a todos (particulares e órgãos estatais) ao império da lei. Como
lembra Geraldo Ataliba, referindo-se ao magistério de Ruy Cirne
Lima, em nosso sistema jurídico a lei é sempre “necessária”, de
tal modo que

nenhuma outra manifestação estatal,


judiciária ou administrativa, lhe pode suprir a
ausência, seja nos casos constitucionalmente
explícitos, que se requer, seja para criar
obrigação, dever, encargo ou ônus para os
súditos do Estado. (ATALIBA, 1981, p. 184).

É claro que tais afirmações devem ser compreendidas em


um contexto de limitação à atuação do Estado. É possível encon-
trar na doutrina e na jurisprudência inúmeras hipóteses de aplica-

1
“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si,
o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
2
“Artigo 60 [...] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de
emenda tendente a abolir: [...] III - a separação dos Poderes”.
66

ção direta da Constituição Federal no tocante à concretização


de direitos fundamentais, particularmente nos casos de proteção
insuficiente da lei. Por exemplo, Marco Aurélio Serau Júnior, à luz
da fundamentalidade dos direitos de Seguridade Social, invoca a
aplicação do princípio da juridicidade, superando a questão da
legalidade formal para efeito de concretizar tais direitos3. (SERAU
JUNIOR, 2020, p. 200-201). Em outras situações, tem-se adotado
a técnica decisória de interpretação conforme a Constituição,
quando o conteúdo normativo da lei não propicia a proteção ade-
quada do direito fundamental em discussão4.
Mas, quando se trata de delimitar a atuação do Estado, a
disciplina da lei é necessária exatamente para que se tenha respei-
to à vontade expressa dos representantes do povo, que é o titular
do poder (art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal)5.

3
Também a respeito do tema da concretização de direitos sociais e a re-
serva de lei, ver BELÉM, Bruno Moraes Faria Monteiro. A competência
regulamentar e a reserva de lei: revisão do enquadramento constitucio-
nal do espaço de concretização dos direitos sociais pela Administração
Pública. Revista dos Tribunais. V. 912, p. 21-92, out./2011.
4
Assim entendeu o STF na ADI 6.327 (conhecida como ADPF), em que
o Plenário referendou medida liminar para considerar, como termo ini-
cial da licença maternidade (trabalhista) e do salário maternidade (pre-
videnciário), a data da alta hospitalar do recém-nascido ou de sua
mãe, quando o período de internação exceder a duas semanas (Rel. Min.
Edson Fachin, j. em 03.4.2020, DJe 19.6.2020). O Tribunal realizou, na
ocasião, uma interpretação conforme à Constituição das regras do artigo
392, § 1º, da CLT, do artigo 71 da Lei nº 8.213/91, e do artigo 93 do
Decreto nº 3.048/99 (por arrastamento), resultando, em termos práticos,
em uma proteção mais ampla do que a estabelecida pela lei formal.
5
Artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal: “Todo o poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou dire-
tamente, nos termos desta Constituição”. Geraldo Ataliba esclarece que
“não tolera a nossa Constituição que o Executivo exerça nenhum tipo de
competência normativa inaugural, nem mesmo em matéria administrati-
va. Essa seara foi categoricamente reservada aos órgãos da representação
popular. E a sistemática é cerrada, inflexível. Se a tal conclusão não for
levado o intérprete, pela leitura das disposições que delineiam a compe-
67

Em resumo, tem-se que a lei, em sentido estrito, é o veículo


adequado para uma inovação originária do ordenamento jurídico,
o que se reforça pela posição nitidamente subalterna que a Cons-
tituição da República atribuiu ao decreto regulamentar.
De fato, o artigo 84, IV, da Constituição Federal, é expres-
so ao determinar que é da competência privativa do Presidente
da República “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem
como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execu-
ção”. Portanto, diante de uma determinação constitucional das
mais claras, o decreto regulamentar tem a função de prover a
fiel execução das leis, isto é, de explicitar a forma pela qual as
leis serão executadas. Como é intuitivo, a “fiel execução” das leis
impede que o decreto regulamentar possa, por si, criar deveres,
obrigações, impor restrições ou proibições que já não estejam, de
antemão, fixadas em lei6.
Esta imposição constitucional é também reforçada pelo
disposto no artigo 49, V, também da Constituição Federal, que
prescreve ser de competência exclusiva do Congresso Nacional

tência regulamentar, certamente esbarrará no princípio da legalidade, tal


como formulado: ninguém, nenhuma pessoa, nenhum sujeito de direito
poderá ser constrangido por norma que não emane do legislador” (Poder
Regulamentar do Executivo, cit., mesma página, grifo nosso).
6
O artigo 84, VI, “b”, da Constituição Federal, com a redação que lhe
foi dada pela Emenda nº 32/2001, passou a prever a competência do
Presidente da República para “dispor, mediante decreto”, sobre a “ex-
tinção de funções ou cargos públicos, quando vagos”. Temos sustenta-
do, todavia, a inconstitucionalidade da Emenda, neste ponto, por ferir
tanto o princípio da separação das funções do Estado, como também
o princípio da legalidade, ambos cláusulas pétreas. Em sentido diver-
so, MODESTO, Paulo. Os regulamentos de organização no direito
brasileiro e os decretos autônomos de extinção de cargos públicos
vagos: uma distinção necessária. Revista Brasileira de Direito Público.
Belo Horizonte, ano 8, nº 28, jan./ 2010. Compreendendo tal preceito
como exceção ao regime constitucional da competência regulamentar,
NERY JUNIOR, Nelson. Limites do Poder Regulamentar do Presiden-
te da República. Soluções práticas de Direito. v. 1, 2014, set./2014, p.
109-155.
68

sustar os atos normativos do Poder Executivo


que exorbitem do poder regulamentar ou dos
limites de delegação legislativa”. Em reforço
a essas ideias, o inciso XI do mesmo artigo
49 prescreve que cabe ao Congresso Nacional
“zelar pela preservação de sua competência
legislativa em face da atribuição normativa dos
outros Poderes. (BOTELHO, 2020, p. 13-14).

Há, portanto, uma coerência normativa no sistema consti-


tucional, pois se não é dado ao decreto regulamentar inovar origi-
nariamente a ordem jurídica, eventual extrapolação desses limites
poderá ser coartada não apenas pela via judicial, com a declara-
ção da invalidade do decreto, mas também pela via legislativa.
Afinal, é o próprio Congresso Nacional que se virá afrontado, em
suas competências constitucionais, se o Poder Executivo ultra-
passar os limites da competência regulamentar7.
É claro que o decreto regulamentar irá, em alguma medida,
inovar a ordem jurídica. Afinal, ao disciplinar como a lei será exe-
cutada, é natural que o regulamento acresça algo ao ordenamento

7
Já decidiu o Supremo Tribunal Federal que “o princípio da reserva
de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do
Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste
de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou
criar obrigações. Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou
restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmen-
te reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal”.
Assim, “o abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em
que o Estado atua contra legem ou praeter legem, não só expõe o ato
transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal
a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo
Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere
o art. 49, V, da Constituição da República e que lhe permite ‘sustar os
atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regu-
lamentar [...]’”(AC 1.033 AgR-QO, Rel. Min. Celso de Mello, DJ
16.6.2006).
69

jurídico8. O que não pode, efetivamente, é instituir novas obriga-


ções, deveres, restrições ou proibições que já não estejam fixados
previamente na lei.
Deve-se também observar que a competência regulamen-
tar não se encontra dentro do rol de competências do Presidente
da República que podem ser delegadas a Ministros de Estado, ao
Advogado Geral da União ou ao Procurador Geral da Repúbli-
ca (artigo 84, parágrafo único, da Constituição Federal9). Com
maior razão, tal delegação tampouco pode ser atribuída a autori-
dades administrativas inferiores, como é o caso do Presidente do
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Nestes termos, deve-se reconhecer que andou bem o Pre-
sidente da República, ao editar o Decreto nº 10.410/2020 e incluir
no Regulamento da Previdência Social (Decreto nº 3.048/99) pre-
ceitos que figuravam apenas na Instrução Normativa INSS/PRES
nº 77/2015. É o caso, por exemplo, da disciplina da denominada
“reafirmação da DER” (data de entrada do requerimento admi-
nistrativo). Lembre-se que a “reafirmação da DER” é aplicável
naquelas situações em que o segurado ou dependente não havia
completado os requisitos para a concessão do benefício na data
de entrada do requerimento administrativo, mas vem a fazê-lo
em momento posterior. Assim, “reafirma-se” a data de entrada
do requerimento administrativo para esse momento posterior, que

8
Ensina Roque Antonio Carrazza que “para executar a lei [o regula-
mento] deve necessariamente lhe agregar algo, até porque um ato nor-
mativo que não cria nova situação jurídica é, no mínimo, irrelevante,
não tendo, por isso, qualquer razão de ser” (O regulamento no direito
tributário brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 16).
9
“O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencio-
nadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de
Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da
União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações”.
A competência regulamentar, que está no inciso IV do artigo 84 da
Constituição Federal, ficou evidentemente fora dessas hipóteses de
delegação.
70

passa a ser a data de início do benefício (DIB).


Como sabido, a “reafirmação da DER” vinha prevista
apenas na Instrução Normativa INSS/PRES nº 77/2015 (artigo
690) e, com a edição do Decreto nº 10.410/2020, passou a estar
formalmente incorporada ao regulamento da Previdência Social
(artigo 176-D)10. Como se viu, o veículo normativo correto para
regulamentação da lei é realmente o decreto regulamentar, razão
pela qual o tema foi corretamente inserido no Decreto 3.048/9911.
Resta examinar, ainda neste tópico, a natureza do vício de
que padece o decreto regulamentar que extrapola os seus limites
constitucionais. Ou seja, qual é a irregularidade que terá o decreto

10
“Art. 176-D. Se, na data de entrada do requerimento do benefício, o
segurado não satisfizer os requisitos para o reconhecimento do direito,
mas implementá-los em momento posterior, antes da decisão do INSS,
o requerimento poderá ser reafirmado para a data em que satisfizer
os requisitos, que será fixada como início do benefício, exigindo-se,
para tanto, a concordância formal do interessado, admitida a sua
manifestação de vontade por meio eletrônico”. A reafirmação da DER
foi reconhecida como direito do segurado ou dependente também no
processo judicial, por força de julgado firmado pelo Superior Tribunal
de Justiça em recurso especial repetitivo (Tema 995), fixando-se a
seguinte tese: “É possível a reafirmação da DER (Data de Entrada do
Requerimento) para o momento em que implementados os requisitos
para a concessão do benefício, mesmo que isso se dê no interstício
entre o ajuizamento da ação e a entrega da prestação jurisdicional nas
instâncias ordinárias, nos termos dos artigos 493 e 933 do CPC/2015,
observada a causa de pedir” (RESP 1.727.063, Rel. Min. Mauro Cam-
pbell Marques, DJe 02.12.2019).
11
Tenha-se em mente, ainda, que a “reafirmação da DER” é um
assunto próprio do processo (ou procedimento) administrativo, cujas
raízes podem ser extraídas tanto do princípio constitucional da efici-
ência da Administração Pública (artigo 37 da Constituição Federal),
como também da proteção ao direito adquirido (artigo 5ª, XXXVI, da
CF/88), inclusive sob a perspectiva do direito adquirido ao benefício
mais vantajoso possível (STF, RE 630.501, Rel. Min. Marco Aurélio,
em regime de repercussão geral, DJe 23.11.2010). Portanto, embora
seja recomendável, não é absolutamente necessária a interposição de
lei para reconhecimento desse direito à reafirmação da DER.
71

que, a pretexto de regulamentar a lei, estabelece uma proibição,


restrição, dever ou obrigação que não estão estabelecidos na
própria lei?

Esta discussão não tem interesse meramente teórico. Se


o vício está situado no plano da legalidade, a sua resolução irá
se dar, judicialmente, em última instância, pelo Superior Tribu-
nal de Justiça. O STJ é, como sabido, em nosso sistema, o órgão
jurisdicional encarregado de dar a última palavra em matéria
de interpretação das leis federais (art. 105, III, da Constituição
Federal). Caso o vício em questão for uma inconstitucionalidade
(por suposta afronta aos artigos 5º, II, 49, V e XI, e 84, IV, todos
da Constituição Federal), a solução definitiva da questão depen-
derá de decisão do Supremo Tribunal Federal, a quem incumbe
“precipuamente” a guarda da Constituição Federal (artigo 102 da
CF/88).
O Supremo Tribunal Federal tem uma jurisprudência bas-
tante sedimentada, construída no âmbito do controle concentra-
do de constitucionalidade, que reconhece que o decreto regula-
mentar que extrapola os limites da lei é, fundamentalmente, um
decreto ilegal. A ofensa à Constituição Federal, nesses casos, é
meramente indireta, reflexa ou oblíqua, razão pela qual o Tribunal
não conhece, como regra, das ações diretas de inconstitucionali-
dade propostas em face de decretos regulamentares.
Já se decidiu, por exemplo, que

os atos regulamentares ou de cunho interno


dos órgãos da Administração não podem
ser impugnados pela via da ação direta
de inconstitucionalidade, porquanto a
controvérsia a respeito da harmonia de
decreto executivo em face da lei que lhe
dá fundamento de validade não caracteriza
questão de constitucionalidade, mas sim de
legalidade. (ADI 5.495 AgR, Rel. Min. Luiz
Fux, DJe 04.6.2019). Nesse mesmo sentido,
dentre tantos outros julgados: AI 375.651
72

AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 04.10.2002,


p. 111; ADI 5.747, Rel. Min. Luiz Fux, DJe
12.5.2020; ADI 4.409, Rel. Min. Alexandre
de Moraes, DJe 23.10.2018.

A solução tem sido distinta, todavia, quando se trata dos


denominados regulamentos autônomos, isto é, dos decretos que
acabam por estabelecer restrições ou proibições sem nenhuma
pretensão de regulamentar qualquer lei. Ou seja, não há lei
a ser regulamentada e o Chefe do Poder Executivo expede
um decreto que impõe por si deveres, obrigações ou proibições.
Nestes casos, o STF entende que a violação da Constituição é
direta, dado que simplesmente não existe nenhuma lei inter-
posta, razão pela qual são cabíveis as ações diretas de inconstitu-
cionalidade12.
Adotando tais premissas, deve-se concluir que a maioria,
senão a quase totalidade das discussões envolvendo o Regula-
mento da Previdência Social serão solucionadas no plano da le-
galidade, dado que o Decreto nº 3.048/99 tem por objetivo a re-
gulamentação da Lei nº 8.213/91.
O Decreto 10.410/2020 trouxe novidades que põem par-
cialmente em xeque essas conclusões, dado que, em alguns de
seus dispositivos, pretendeu disciplinar diretamente as inova-
ções postas pela Emenda Constitucional nº 103/2019.
Em primeiro lugar, deve-se lamentar tal expediente, dado
que a tentativa de suprimir ou dispensar a atuação do legisla-
dor infraconstitucional não é propriamente reverenciadora do
princípio da separação das funções do Estado. Sem falar que,
como consequência dessa opção, remanesceram certos parado-
xos, como a adoção, pelo Decreto, da terminologia “auxílio por
incapacidade temporária” (artigos 5º, I, 25, I, “e”, 27-A, 71,
etc.). Embora a Emenda nº 103/2019 realmente tenha passado a

12
Por exemplo, ADI 3.239, Rel. Min. Cezar Peluso, red. p/ acórdão
Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, DJe 01.02.2019; ADI 1.335, Rel.
Min Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, DJe 18.10.2019.
73

apontar como evento (ou contingência) coberto pela Previdên-


cia Social a “incapacidade temporária”, e não mais a “doença”
(conforme a redação dada ao artigo 201, I, da Constituição Fe-
deral)13, a Lei nº 8.213/91 continua a se referir ao auxílio-doen-
ça. Ficamos, assim, com uma normatização um tanto claudicante,
dado que a alteração terminológica se operou apenas no plano
do regulamento, não da lei. É claro que essa mudança tem um
caráter pedagógico importante, pois a “incapacidade temporária”
resume com muito maior clareza o benefício. Mas era realmente
fundamental que a mudança do decreto fosse precedida de uma
mudança da lei por ele regulamentada.
Observe-se, é certo, que se contêm na Emenda nº 103/2019
vários dispositivos com regras provisórias, já que a própria
Emenda admitiu sua alteração por meio de lei ordinária ou comple-
mentar. Diante disso, o envio de projeto de lei encerraria um risco
político de que algumas regras da Emenda fossem modificadas,
para amenizar sua rigidez quase draconiana, a depender do que
deliberasse o Congresso Nacional. Mas o projeto de lei também
representaria sinal de respeito e consideração ao Parlamento bra-
sileiro. Até é compreensível, em alguma medida, a opção política
de editar o decreto. Afinal, existem preceitos da Emenda que sim-
plesmente dispensam regulamentação e o decreto assumiria um
papel de orientação aos servidores do INSS. Mas a solução cons-
titucionalmente adequada seria enviar um projeto de lei alterando
a Lei nº 8.213/91, para só então promover a alteração no decreto
regulamentar.
Pois bem, é possível identificar uma inconstitucionalidade
direta no Decreto nº 10.410/2020, ao tratar da fórmula de cálculo
das aposentadorias das pessoas com deficiência. Lembre-se que

13
“Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Re-
gime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação
obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financei-
ro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a: I - cobertura dos eventos
de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade
avançada; [...]”.
74

a Emenda nº 103/2019 determinou que, até que sobrevenha alte-


ração legislativa, esse benefício deve observar o que estabelece a
Lei Complementar nº 142/2013, “inclusive quanto aos critérios
de cálculo dos benefícios” (artigo 22). Aqui a inconstitucionali-
dade é direta porque o Decreto determinou que o cálculo deva
levar em conta o salário de benefício, calculado pela média de
100% das contribuições (artigos 32 e 70-J, I). Já a citada Lei
Complementar, ao fazer referência ao artigo 29 da Lei nº 8.213/91,
acabou por manter o salário de benefício calculado pela média de
80% das maiores contribuições (artigo 8º da Lei Complementar
nº 142/2013). Se foi a norma constitucional que incorporou ao
seu texto a fórmula de cálculo prevista na Lei Complementar, a
invalidade do decreto atinge diretamente a Constituição. Por-
tanto, a solução definitiva de eventual controvérsia judicial irá se
dar, se for o caso, pelo Supremo Tribunal Federal.
Mas, como já assinalado, a maior parte das controvérsias
envolvendo o decreto regulamentar será resolvida no plano da
legalidade.

A DELEGAÇÃO LEGISLATIVA DISFARÇADA: “AUTO


DEPRECIAÇÃO” DO PODER LEGISLATIVO E DIFICUL-
DADES PRÁTICAS EM QUESTÕES PREVIDENCIÁRIAS

A delegação legislativa é o fenômeno pelo qual a compe-


tência para legislar sobre certo tema é transferida ao Poder Exe-
cutivo. Trata-se de uma clara exceção à separação das funções do
Estado, bem como ao conhecido princípio da indelegabilidade
das competências. É bastante disseminada a noção segundo a
qual a Constituição Federal, quando atribui certa competência
a determinado órgão, está implicitamente impedindo o exercí-
cio dessa mesma competência por outros órgãos. Nestes termos,
se a Constituição da República atribui a função legislativa ao
Congresso Nacional (artigos 44 e 48) implicitamente excluiu
tal função dos demais “poderes”, que só poderão exercê-la, em
caráter excepcional, nas hipóteses expressamente contempladas
na mesma Constituição.
75

Uma dessas exceções é o caso das Medidas Provisórias


(artigo 62), que, expedidas pelo Presidente da República, terão
força de lei e deverão ser apreciadas pelo Congresso Nacional,
no prazo de 60 dias, prorrogável por mais 60, ao cabo do qual
deverão ser convertidas em lei, ou perderão sua eficácia, desde a
sua edição.
A outra exceção, que, frise-se, está em absoluto desuso
nestes mais de trinta anos de vigência da Constituição, é a das
leis delegadas. As leis delegadas são elaboradas pelo Presidente
da República, depois de autorizado pelo Congresso Nacional,
devendo respeitar as exigências fixadas no artigo 68 da Consti-
tuição Federal14.
As leis delegadas transformaram-se em um instrumento
normativo quase não utilizado em nosso sistema exatamente pela
amplitude de cabimento das Medidas Provisórias, bem como da
interpretação que lhes foi dada pelo Supremo Tribunal Federal, e
mesmo pelo perfil que assumiram a partir da vigência da Emenda
Constitucional nº 32/2001.
Esta introdução é necessária porque as leis delegadas
são o instrumento constitucionalmente adequado para que a
competência legislativa seja validamente transferida ao Pre-
sidente da República. São as hipóteses, assim, constitucional-
mente válidas por meio das quais a delegação legislativa pode se

14
“Art. 68. As leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da
República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional. §
1º Não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do
Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos De-
putados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar,
nem a legislação sobre: I - organização do Poder Judiciário e do Minis-
tério Público, a carreira e a garantia de seus membros; II - nacionali-
dade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; III - planos
plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos. § 2º A delegação
ao Presidente da República terá a forma de resolução do Congresso
Nacional, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício.
§ 3º Se a resolução determinar a apreciação do projeto pelo Congresso
Nacional, este a fará em votação única, vedada qualquer emenda”.
76

aperfeiçoar.
O problema é que o ordenamento jurídico brasileiro
assiste, há longos anos, outro fenômeno, que a doutrina cuidou
de denominar “delegação legislativa disfarçada”. “Disfarçada”
porque a própria lei, sem que sejam respeitadas as exigências do
artigo 68 da Constituição Federal, acaba transferindo ao Poder
Executivo a competência para regulamentar certos assuntos.
Como ensina Celso Antonio Bandeira de Mello,

Considera-se que há delegação disfarçada


e inconstitucional, efetuada fora do
procedimento regular, toda vez que a lei
remete ao Executivo a criação das regras que
configuram o direito ou que geram a obrigação,
o dever ou a restrição à liberdade. Isto sucede
quando fica deferido ao regulamento definir
por si mesmo as condições ou requisitos
necessários ao nascimento do direito material
ou ao nascimento da obrigação, dever ou
restrição. Ocorre, mais evidentemente,
quando a lei faculta ao regulamento determinar
obrigações, deveres, limitações ou restrições
que já não estejam previamente definidos
e estabelecidos na própria lei. Em suma:
quando se faculta ao regulamento inovar
inicialmente na ordem jurídica. E inovar
quer dizer introduzir algo cuja preexistência
não se pode conclusivamente deduzir da lei
regulamentada. (MELLO, 2006, p. 340-341).

Veja-se que, em muitas situações, trata-se de uma solução


incompreensível, dado que é o próprio legislador quem abre
mão de suas competências constitucionais e as transfere ao Poder
Executivo. Daí falarmos em “auto depreciação” do Congresso
Nacional, que abdica de suas funções e abre campo para um agi-
gantamento do Poder Executivo que raramente é bem-vindo em
um sistema democrático e que contemple a separação das funções
do Estado como princípio fundamental, como é o brasileiro.
Encontram-se na lei previdenciária diversas passagens que
77

estabelecem que estes ou aqueles assuntos serão disciplinados “na


forma do regulamento”, “nos termos do regulamento”, ou “pelo
Poder Executivo”. A simples remissão ao regulamento não é sufi-
ciente, todavia, para que se reconheça presente uma delegação le-
gislativa inconstitucional. É necessário que se analise não apenas
o teor da norma da lei, mas também o conteúdo do decreto regu-
lamentar, para só então firmar uma conclusão segura a respeito.
Tome-se o exemplo da regra contida no artigo 58 da Lei
nº 8.213/91, que, ao tratar da aposentadoria especial, estabeleceu
que “a relação dos agentes nocivos químicos, físicos e biológi-
cos ou associação de agentes prejudiciais à saúde ou à integri-
dade física” [...] “será definida pelo Poder Executivo” (redação
dada pela Lei nº 9.528/97). Muito embora a redação original
desse dispositivo legal determinasse que essa relação de agentes
nocivos seria estabelecida em lei específica, tem-se aqui um raro
caso em que a remissão ao decreto regulamentar foi absolutamen-
te razoável e pertinente.
De fato, essa relação de agentes nocivos é de tal especifi-
cidade que não se pode exigir que venha minudentemente esta-
belecida na lei. Ao contrário, a evolução científica e tecnológica
ininterrupta torna razoável que esses agentes venham definidos
em normas de estatura infralegal. Isso não importa, no entanto,
sujeitar o segurado ao exclusivo arbítrio do Poder Executivo, que
não tem competência para inovar originariamente o ordenamento
jurídico, mas sim uma margem de regulamentação que deve ceder
passo diante da prova inequívoca de afronta aos princípios da ra-
zoabilidade e da proporcionalidade, como deve acontecer, aliás,
sempre que se está diante do exercício de qualquer competência
discricionária.
Portanto, neste exemplo, não há problemas na referência
ao regulamento, em si, ou ao Poder Executivo. Poderá haver pro-
blemas, todavia, quando se analisa o conteúdo do decreto re-
gulamentar, inclusive quando da eventual modificação deste,
que deve ser devidamente motivada e amparada em fundamentos
técnicos sólidos.
78

Um caso bastante emblemático, em que se discutiu a mo-


dificação do regulamento, envolveu a alteração dos níveis de to-
lerância para ruído (de 80 para 90 e depois 85 dB [A]), conse-
quência dos Decretos de nº 2.172/97, 3.048/99 e 4.882/2003. O
Superior Tribunal de Justiça resolveu definitivamente a questão
no julgamento do RESP 1.398.260/PR, Rel. Min. Herman Ben-
jamin, na sistemática dos recursos especiais repetitivos (DJe
05.12.2014)15. É curioso que o ponto fulcral sobre o qual recaí-
ram os debates tenha sido a aplicação (ou não) da máxima tempus
regit actum, mas quase nada se viu a respeito da suficiência (ou
não) dos fundamentos que (presume-se) tenham subsidiado tecni-

15
“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MATÉRIA REPE-
TITIVA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ 8/2008. RECUR-
SO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. PREVIDENCIÁRIO.
REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL. TEMPO ESPECIAL.
RUÍDO. LIMITE DE 90DB NO PERÍODO DE 6.3.1997 A 18.11.2003.
DECRETO 4.882/2003. LIMITE DE 85 DB. RETROAÇÃO. IMPOS-
SIBILIDADE. APLICAÇÃO DA LEI VIGENTE À ÉPOCA DA PRES-
TAÇÃO DO SERVIÇO. Controvérsia submetida ao rito do art. 543-C
do CPC 1. Está pacificado no STJ o entendimento de que a lei que rege
o tempo de serviço é aquela vigente no momento da prestação do labor.
Nessa mesma linha: REsp 1.151.363/MG, Rel. Ministro Jorge Mussi,
Terceira Seção, DJe 5.4.2011; REsp 1.310.034/PR, Rel. Ministro Her-
man Benjamin, Primeira Seção, DJe 19.12.2012, ambos julgados sob o
regime do art. 543-C do CPC. 2. O limite de tolerância para configura-
ção da especialidade do tempo de serviço para o agente ruído deve ser
de 90 dB no período de 6.3.1997 a 18.11.2003, conforme Anexo IV do
Decreto 2.172/1997 e Anexo IV do Decreto 3.048/1999, sendo impossí-
vel aplicação retroativa do Decreto 4.882/2003, que reduziu o patamar
para 85 dB, sob pena de ofensa ao art. 6º da LINDB (ex-LICC). Pre-
cedentes do STJ. Caso concreto 3. Na hipótese dos autos, a redução do
tempo de serviço decorrente da supressão do acréscimo da especialida-
de do período controvertido não prejudica a concessão da aposentadoria
integral. 4. Recurso Especial parcialmente provido. Acórdão submetido
ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 8/2008” (REsp
1.398.260/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe
05.12.2014). O voto do Ministro Ari Pargendler referiu-se, solitaria-
mente, aos avanços da Ciência influenciando as regras jurídicas. Mas
ficou vencido no julgamento em questão.
79

camente as sucessivas alterações do decreto regulamentar.


Neste caso, embora a remissão ao decreto regulamentar
não fosse, em si, inválida, uma análise técnica mais aprofundada
sobre as razões das alterações do regulamento poderia resultar em
uma solução diversa.
As mesmas considerações podem ser feitas quando da
consideração do nexo técnico epidemiológico, para fins de ca-
racterização da natureza acidentária da incapacidade para o tra-
balho. O artigo 21-A da Lei nº 8.213/91 estabelece que o NTEP
e sua correlação com a classificação internacional de doenças
(CID) deverão disciplinados em regulamento16. Aqui também há
uma disciplina técnica que convém seja fixada por ato de estatu-
ra infralegal, que possa ser adaptado às inovações científicas e
às contribuições da Medicina do Trabalho. Tudo isso, repita-se,
sujeito à análise da suficiência da motivação e da solidez técnica
das regras do decreto regulamentar.
Outro exemplo que também pode ser mencionado é o da
prova de tempo de serviço, que será feita “na forma estabelecida no
Regulamento”, a teor do que prescreve o artigo 55 da Lei nº 8.213/91.
Aqui, entra-se em um campo bastante nebuloso, pois a lei
transferiu para o decreto a disciplina de um tema relacionado com
a garantia constitucional da ampla defesa, que é expressamen-
te aplicável tanto a processos judiciais como a processos adminis-
trativos17. Trata-se de assunto que ficaria mais bem resolvido se

16
“Art. 21-A. A perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS) considerará caracterizada a natureza acidentária da incapa-
cidade quando constatar ocorrência de nexo técnico epidemiológico
entre o trabalho e o agravo, decorrente da relação entre a atividade da
empresa ou do empregado doméstico e a entidade mórbida motivadora
da incapacidade elencada na Classificação Internacional de Doenças
(CID), em conformidade com o que dispuser o regulamento” (grifo
nosso).
17
Constituição Federal, artigo 5º, LV: “aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
80

estivesse regulamentado diretamente pela lei. Não por acaso este


é um dos temas responsáveis por uma judicialização excessiva,
não apenas pelos termos muito restritivos com que o Decreto nº
3.048/99 tratou do assunto (artigo 62), mas pela aplicação ainda
mais restritiva que é normalmente observada nos processos ad-
ministrativos. São conhecidas as decisões administrativas que
consideram que um segurado exerceu certa atividade ao longo
de vários anos, que é repentinamente interrompida por um ano, e
depois retomada por mais dois ou três. Quando se vai tentar iden-
tificar as razões desse entendimento, a decisão é “explicável” pelo
fato de o segurado não ter conseguido juntar prova documental
relativa àquele ano específico. Isso, claro, como se o segurado
tivesse tirado um ano “sabático” e se afastado daquela atividade
por esse intervalo de tempo. Trata-se de conclusão estranhíssima
e, ainda assim, muito vista na realidade dos processos administra-
tivos previdenciários.
Assim, mesmo que não se sustente que a regra do artigo
55 da Lei nº 8.213/91 seja inconstitucional, por instituir espécie
de delegação legislativa disfarçada, deve merecer uma interpre-
tação conforme a Constituição, para que a análise do conjunto
probatório não se dê apenas nos termos restritivos disciplinados
no decreto regulamentar. Ainda que esta solução não aparente
ter viabilidade prática no processo administrativo previdenciário
(nos moldes em que atualmente conduzido), certamente deve ser
considerada em eventual processo judicial.

O EXERCÍCIO “IRREGULAR” DA COMPETÊNCIA


REGULAMENTAR E AS SITUAÇÕES JURIDICAMENTE
FAVORÁVEIS AOS BENEFICIÁRIOS DA PREVIDÊNCIA
SOCIAL

Como já observado, a experiência brasileira é pródiga em


situações em que o decreto regulamentar atua em campo não au-
torizado pela Constituição Federal, impondo deveres, obrigações,
proibições ou restrições sem o necessário fundamento legal de
81

validade. Mas o reverso também é verdade: situações em que o


decreto regulamentar institui direitos ou vantagens sem previsão
legal expressa. São as “situações juridicamente favoráveis” aos
beneficiários da Previdência Social, previstas no decreto regula-
mentar, mas não em lei ou na Constituição Federal.
É exemplo dessa situação a possibilidade de conversão de
tempo especial (com exposição a agentes prejudiciais à saúde)
em tempo de pessoa com deficiência, para fins de concessão da
aposentadoria por tempo de contribuição da pessoa com deficiên-
cia, que não está prevista na Lei Complementar nº 142/2013, mas
apenas no artigo 70-F do Decreto nº 3.048/9918. Outro caso que
pode ser citado diz respeito ao “mínimo divisor” de 60% pre-
visto na Lei nº 9.876/99 (art. 3º, § 2º19), mas que foi dispensado
pelo Decreto nº 10.410/2020, que revogou a regra que estava no
artigo 188-A, § 1º, do Decreto nº 3.048/99. Por último, cite-se a

18
“Art. 70-F. A redução do tempo de contribuição da pessoa com
deficiência não poderá ser acumulada, no mesmo período contributivo,
com a redução aplicada aos períodos de contribuição relativos a ativi-
dades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou
a integridade física. § 1º É garantida a conversão do tempo de contri-
buição cumprido em condições especiais que prejudiquem a saúde ou
a integridade física do segurado, inclusive da pessoa com deficiência,
para fins da aposentadoria de que trata o art. 70-B, se resultar mais
favorável ao segurado, conforme tabela abaixo: [...]”.
19
“Art. 3º Para o segurado filiado à Previdência Social até o dia
anterior à data de publicação desta Lei, que vier a cumprir as condi-
ções exigidas para a concessão dos benefícios do Regime Geral de
Previdência Social, no cálculo do salário-de-benefício será considera-
da a média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição,
correspondentes a, no mínimo, oitenta por cento de todo o período
contributivo decorrido desde a competência julho de 1994, observado
o disposto nos incisos I e II do caput do art. 29 da Lei nº 8.213, de
1991, com a redação dada por esta Lei. [...].§ 2º No caso das apo-
sentadorias de que tratam as alíneas b, c e d do inciso I do art. 18, o
divisor considerado no cálculo da média a que se refere o caput e o §
1º não poderá ser inferior a sessenta por cento do período decorrido da
competência julho de 1994 até a data de início do benefício, limitado a
cem por cento de todo o período contributivo”.
82

possibilidade de complementação das contribuições relativas


a remunerações mensais menores que o salário mínimo, que a
Emenda Constitucional nº 103/2019 determina seja feita

ao longo do mesmo ano civil” (artigo 29,


parágrafo único). O Decreto nº 10.410/2020,
ao inserir o artigo 19-E no Decreto nº
3.048/99, previu que tal regularização possa
ser feita “a qualquer tempo. (BRASIL, 2019,
§ 2º).

São situações, portanto, de clara “ilegalidade” do decreto


regulamentar, ou mesmo de “inconstitucionalidade”, como no
último caso citado, pois o regulamento acabou por colocar o se-
gurado em situação de maior vantagem jurídica frente ao que es-
tabeleceu a lei ou a Constituição.
Uma solução possível para esses casos passa pela aplica-
ção do princípio da juridicidade referido linha atrás, na medida
em que, tratando-se de concretizar o direito fundamental à Previ-
dência Social, todo o ordenamento jurídico deverá ser aplicado,
sem os limites da lei formal. (SERAU JUNIOR, 2020, p. 200-
201). Cármen Lúcia Antunes Rocha, ao se referir a esse princí-
pio, afirma que o Estado Democrático de Direito impõe que se
deva transitar da “legalidade” para a “juridicidade”, atentando-se
muito mais ao conteúdo da norma, não à forma em que esteja
veiculada. (ROCHA, 1994, 108-109).
Em acréscimo, deve-se lembrar que o Direito à Previdên-
cia Social é expressamente definido pela Constituição Federal de
1988 como um direito fundamental, assim enunciado no artigo
6º como um dos direitos sociais. Por isso é que a interpretação
do Direito à Previdência Social deve ser realizada tendo em vista
o princípio da máxima efetividade, plenamente invocável em
matéria de hermenêutica constitucional20. Assim, se o decreto re-

20
A respeito deste princípio de interpretação constitucional, confira-se
o nosso Mandado de segurança em matéria previdenciária. 2. ed.
Salvador: Juspodivm, 2020, p. 48.
83

gulamentar avança na proteção do direito, além do que prevê a


lei, cabe ao intérprete acompanhar tal evolução, também esten-
dendo a proteção previdenciária, mesmo que deva fazer uso de
uma fonte secundária do Direito Previdenciário, como é o caso.

CONCLUSÕES

A competência regulamentar, no sistema constitucional


brasileiro, destina-se a prover a fiel execução das leis, a expli-
citar como as leis serão executadas, de tal forma que não pode o
decreto regulamentar estabelecer deveres, obrigações, proibições
ou restrições que já não estejam fixados, de antemão, na própria
lei.
Doutrina e jurisprudência reconhecem que esse regime
deve ser compreendido em um contexto de limitar a atuação do
Estado, podendo ceder passo, todavia, quando se trata de concre-
tizar direitos fundamentais, em particular nos casos de proteção
insuficiente da lei.
O decreto regulamentar que ultrapassa os limites consti-
tucionais para sua edição é, de regra, ilegal. Poderá haver uma
inconstitucionalidade direta nos casos dos “regulamentos autôno-
mos”, decretos editados sem pretensão de regulamentar qualquer
lei.
A Constituição Federal de 1988 tem regramento expresso
para as delegações legislativas, não tolerando que o legislador
ordinário abdique de suas competências para transferir ao Poder
Executivo a regulamentação de temas que devem figurar em lei.
O fenômeno das “delegações legislativas disfarçadas” também
está presente em questões previdenciárias, podendo levar ora à
declaração de inconstitucionalidade da lei delegadora, ora à ne-
cessidade de uma avaliação criteriosa do regulamento, que não
tem competência para inovar originariamente a ordem jurídica.
O princípio da juridicidade e o princípio da máxima efe-
tividade em matéria de hermenêutica de direitos fundamentais
84

justificam reconhecer a validade do decreto regulamentar que, a


despeito de ultrapassar os limites legais e constitucionais, atribui
situação juridicamente vantajosa ao segurado ou dependente da
Previdência Social.

REFERÊNCIAS

ATALIBA, Geraldo. Poder Regulamentar do Executivo. Revista


de Direito Público (RDP). nº 57-58, jan./jun.1981.

BELÉM, Bruno Moraes Faria Monteiro. A competência


regulamentar e a reserva de lei: revisão do enquadramento
constitucional do espaço de concretização dos direitos sociais
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p. 21-92, out./2011.

BOTELHO, Eduardo R. A competência legislativa para sustar


atos do Poder Executivo. Revista de Direito Constitucional e
Internacional. Ano 28, v. 117, jan./fev. 2020, p. 13-40.

CARRAZZA, Roque Antonio. O regulamento no direito


tributário brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.

CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, Érica Paula


Barcha. Curso de direito da seguridade social. 6. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012.

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seguridade social. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito


administrativo. 21. ed., São Paulo: Malheiros, 2006.

MODESTO, Paulo. Os regulamentos de organização no direito


brasileiro e os decretos autônomos de extinção de cargos
públicos vagos: uma distinção necessária. Revista Brasileira de
Direito Público. Belo Horizonte, v. 8, n. 28, jan. 2010.
85

NERY JUNIOR, Nelson. Limites do Poder Regulamentar do


Presidente da República. Soluções Práticas de Direito. v. 1, p.
109-155, set./2014.

PIRES, Renato Barth. Mandado de segurança em matéria


previdenciária. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da


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SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. Seguridade Social e Direitos


Fundamentais. 4. ed., Curitiba: Juruá, 2020.

TAVARES, Marcelo Leonardo. Direito previdenciário. 16. ed.


Niterói: Impetus, 2015.

VIANNA, João Ernesto Aragonés. Curso de direito


previdenciário. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
86
87

PARTE II

QUESTÕES POLÊMICAS
DA APLICAÇÃO DO
DECRETO 10.410/2020 EM
MATÉRIA DE BENEFÍCIOS
PREVIDENCIÁRIOS
88
89

A EXIGÊNCIA DE CONTRIBUIÇÃO
MÍNIMA PARA O SEGURADO EMPREGADO –
O ART. 19-E DO RPS

Carlos Alberto Pereira de Castro1

INTRODUÇÃO

Há, como plano de fundo de todo o debate sobre rumos do


Estado Contemporâneo em matéria de proteção social, um ingre-
diente puramente ético: qual a responsabilidade de cada um pelo
futuro não apenas seu e de seus dependentes, mas de todo o con-
junto de pessoas que depende ou possa vir a depender do sistema?
Aí se funda o ideal de solidariedade, amálgama que por si
mantém a coesão social e a manutenção de sistemas públicos de
distribuição e redistribuição de renda aos que dela necessitem.
No tocante a esse aspecto, parece correto afirmar que se
trata de uma questão de equidade, só que agora não somente entre
gerações – a mais recente custeando a mais idosa – mas entre
favorecidos e desfavorecidos, independentemente da geração a
que pertençam:

Quando discutimos anteriormente os


princípios de segurança social à luz de um
hipotético contrato a três idades (jovens,
adultos no activo e reformados), admitimos

1
Juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 12.ª Região.
Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (Uni-
vali). Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma
de Lisboa. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoa-
mento de Magistrados do Trabalho (ENAMAT). Membro emérito do
Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário. Titular da cadeira n. 20
da Academia Catarinense de Letras Jurídicas.
90

a coerência de um preceito relativo a


discriminações positivas dirigidas aos mais
desfavorecidos de qualquer das gerações. O
argumento pode ser mais desenvolvido se o
apoiarmos em um entendimento substantivo
da equidade. Devemos definir, então, em
termos concretos o que deve ser garantido
a todos para o conforto de cada um – é a
preocupação da justiça distributiva e não
apenas processual.
No limite do ideal, a equidade substantiva
poderia traduzir-se em alcançar um nível
idêntico de bem-estar para todos os
beneficiários da segurança social. Dada a
subjectividade da noção de um montante
uniforme às prestações atribuídas, que
cada um financiaria segundo a respectiva
capacidade contributiva. (MENDES, 2011,
p. 107).

Pois bem, a Emenda Constitucional n. 103/2019 promo-


veu profundas alterações no principal regime previdenciário na
ordem interna, o Regime Geral de Previdência Social (RGPS),
que abrange obrigatoriamente todos os trabalhadores da iniciativa
privada e também os ocupantes de cargos públicos (desde que não
vinculados a regime próprio de previdência social), e os exercen-
tes de mandato eletivo federal, estadual ou municipal.
As inovações trazidas pela EC n. 103/2019 causaram um
sério desajuste na proteção previdenciária que estava em vigor,
em virtude da precarização das regras de concessão, de cálculo e
de manutenção dos benefícios do RGPS.
No bojo dessas alterações, a EC n. 103/2019 inseriu regra
inédita, impondo a todos os segurados – obrigatórios e faculta-
tivos – que, para que haja cômputo de tempo de contribuição, o
valor pago a título de contribuição, pelo segurado, deve ser igual
ou superior ao que corresponda à incidência da alíquota prevista
em lei sobre o menor salário de contribuição do mês respectivo
(no caso, o salário mínimo mensal) - como exige, a partir da sua
promulgação, a nova redação conferida ao § 14 do art. 195 da
91

Constituição de 1988 - havendo, ainda, a fixação de uma regra


transitória no art. 29 da referida Emenda.
O assunto ganha disposições mais detalhadas no Regula-
mento da Previdência Social, notadamente no art. 19-E, incluído
pelo Decreto n. 10.410/2020, que dá nova redação ao aludido Re-
gulamento.
São essas regras que nos dispomos a discutir neste traba-
lho, analisando possíveis colisões com os princípios e normas que
servem de alicerce ao Direito Previdenciário.

FILIAÇÃO PREVIDENCIÁRIA COMO DIREITO


FUNDAMENTAL

Relevante acentuar, de início, que a EC n. 103/2019, em


que pese as radicais alterações, manteve as premissas do caput
do art. 201 da CF, no sentido de que a previdência social será
organizada sob a forma de regime geral, “de caráter contributivo
e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o
equilíbrio financeiro e atuarial.”
Trata-se, como é necessário enfatizar, ainda que correndo
o risco do pleonasmo, de direito fundamental do indivíduo, assim
estabelecido no art. 6º da Constituição de 1988 e consagrado na
doutrina e na jurisprudência - vide, por exemplo, o expresso re-
conhecimento dessa natureza pelo STF no acórdão que julgou
o Tema 313 da Repercussão Geral, ainda que para reconhecer,
no mérito, o cabimento de um prazo de decadência do direito à
revisão da renda mensal inicial de benefícios (RE 626.489/SE,
Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, j. em 16.10.2013, DJe
23.9.2014).
Entre os objetivos fixados pelo constituinte originário no
sistema de Seguridade Social que foi criado, desponta como prin-
cipal deles o da “universalidade da cobertura e do atendimento”
(art. 194, p. único, inciso I). A universalidade do atendimento sig-
nifica a entrega das ações, prestações e serviços de seguridade
92

social a todos os que necessitem, tanto em termos de previdência


social – obedecido o princípio contributivo – como no caso da
saúde e da assistência social.
Conjuga-se a este verdadeiro princípio aquele que esta-
belece a filiação compulsória e automática de todo e qualquer
indivíduo trabalhador no território nacional a um regime de pre-
vidência social, mesmo que “contra a sua vontade”, e indepen-
dentemente de ter ou não vertido contribuições. Por esta diretriz,
a falta de recolhimento das contribuições não caracteriza ausência
de filiação, mas apenas uma inadimplência de índole tributária; é
dizer, diante do ideal de universalidade não merece prevalecer a
interpretação de que, “ausente a contribuição, não há vinculação
com a Previdência”. Como será visto adiante, a filiação decorre
do exercício de atividade remunerada, e não do pagamento da
contribuição.
O esforço do Estado em garantir o indivíduo em face dos
eventos protegidos pela Previdência não surtiria o efeito desejado
caso a filiação fosse meramente facultativa.
Não há que se confundir caráter contributivo com filiação
ao sistema. Esta última acontece ao passo em que há exercício de
atividade laboral remunerada, automaticamente (na expressa pre-
visão do art. 20 do Regulamento da Previdência Social), então in-
cluindo o indivíduo no campo da proteção previdenciária sem que
disso dependa um ato formal (a inscrição). Basta observar que se
um trabalhador, em seu primeiro dia de seu primeiro emprego,
sofre acidente do trabalho ou de qualquer outra natureza, mesmo
não tendo havido qualquer contribuição ainda ao sistema, fará jus
a benefícios, caso necessite. (princípio da seletividade - CF, art.
194, p. único, III).
O exemplo acima é também resultado da obrigatoriedade
de que o sistema de proteção social não seja apenas uma carta de
boas intenções, revelando-se, isto sim, como verdadeiro instru-
mento de bem-estar social, como discutiremos a seguir.
93

A NECESSIDADE DE CUMPRIMENTO DAS


PROMESSAS DE BEM-ESTAR SOCIAL PELA
NORMATIZAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL

Ao legislador infraconstitucional - aí incluído o constituin-


te derivado - cabe o encargo de manter um plano previdenciário
capaz de atender as necessidades básicas do cidadão, conforme
previsto na norma constitucional originária referida (art. 201).
O legislador constituinte fixou exatamente a cobertura
daqueles eventos que a Constituição assegurou estarem atendi-
dos. E não poderia ser de outra forma. O ordenamento que regula
o Regime Geral de Previdência Social - incluídas as Emendas
Constitucionais, Leis, Medidas Provisórias, bem como os Decre-
tos e atos administrativos normativos - é composto por normas
de direito público, que estabelecem direitos e obrigações entre
os indivíduos potencialmente beneficiários do aludido regime e
o Estado, gestor da Previdência Social. Dessa maneira, impõe-se
discriminar exaustivamente as obrigações que o ente previden-
ciário tem para com os segurados e seus dependentes. A estas
obrigações, de dar ou de fazer, consequentemente, correspondem
prestações, a que chamamos prestações previdenciárias.
A relação jurídica das prestações é objeto da análise de
Wladimir Novaes Martinez:

O legislador dá atenção especial à


prestação e cerca-a de muitos cuidados
(v.g., definitividade, continuidade,
irrenunciabilidade, indisponibilidade,
intransferibilidade, inalienabilidade e
impenhorabilidade), constituindo-se no
principal instituto jurídico previdenciário.
Devendose acrescer a substitutividade e a
alimentaridade, dados essenciais à relação.
[...] A razão de ser da relação jurídica de
prestações são os benefícios e serviços,
isto é, atividade-fim da Previdência Social:
propiciar os meios de subsistência da pessoa
humana conforme estipulado na norma
jurídica. (MARTINEZ, 1997, p. 201-208).
94

Uma vez ocorrida a hipótese de que trata a norma, é obri-


gação do ente previdenciário conceder a prestação prevista em
lei, nos estritos ditames do que ali esteja determinado. Ao be-
neficiário, por seu turno, não comporta a renúncia do direito à
prestação que lhe é devida, salvo se visa outra, que lhe seja mais
benéfica.
Se, ao disciplinar o conteúdo material do Direito Previ-
denciário, o legislador ou o administrador se distancia, ou pior
que isso, entra em colisão com os princípios norteadores do
sistema de proteção social, petrificados na Constituição de 1988,
impõe-se a correção do rumo, o que pode comportar até mesmo a
arguição e consequente reconhecimento da existência de normas
inconstitucionais, que precisam ser banidas do ordenamento se
assim se revelarem.
Abordados estes aspectos propedêuticos, segue-se o exame
de aspectos ligados à contribuição de segurados empregados, haja
vista as reformas trabalhista e previdenciária mais recentes.

A INCIDÊNCIA DE CONTRIBUIÇÕES SOBRE OS


RENDIMENTOS HABITUAIS DOS SEGURADOS
EMPREGADOS

Os indivíduos vinculados a um contrato de trabalho, na


condição de empregados, são os que desde a origem da Previdên-
cia no Brasil merecem a proteção dessa política social.
Para tanto, é reconhecida sua “qualidade de segurado”
obrigatório, desde a admissão ao emprego; e é exigida contribui-
ção sobre os rendimentos decorrentes do trabalho nesta condição,
a qualquer título, respeitado o limite máximo do salário de contri-
buição, na forma do artigo 28, inciso I, da Lei n. 8.212/91.
O § 1º do art. 28 da Lei de Custeio, por seu turno, esclare-
ce que quando a admissão, a dispensa, o afastamento ou a falta do
empregado ocorrer no curso do mês, “o salário-de-contribuição
será proporcional ao número de dias de trabalho efetivo, na forma
estabelecida em regulamento.”
95

Essa contribuição deve ser retida pelo empregador antes do


pagamento do salário e recolhida no dia 20 do mês subsequente
ao da prestação do labor remunerado (art. 33 da Lei de Custeio),
devendo também ser discriminada mensalmente em Guia de Re-
colhimento do FGTS e Informações à Previdência Social - GFIP.
A respeito de quais “rubricas” pagas ao empregado sofrem
a incidência de contribuição, temos a primeira celeuma a que nos
propomos discutir.
O art. 201 da Constituição, em seu § 11, preceitua que “os
ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorpo-
rados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e con-
sequente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei”.
A redação da CLT, bem como da Lei n. 8.212/91, ante-
riormente à edição da Lei n. 13.467/2017 (apelidada de “reforma
trabalhista”), não excluía parcelas de caráter contraprestativo do
trabalho da incidência das aludidas contribuições previdenciárias.
Com a redação dada pela Lei n. 13.467/2017, os §§1.º e 2.º do art.
457 da CLT passaram a ter a seguinte redação:

Art. 457. [...]


§1o Integram o salário a importância fixa
estipulada, as gratificações legais e as
comissões pagas pelo empregador.
§2o As importâncias, ainda que habituais,
pagas a título de ajuda de custo, auxílio-
alimentação, vedado seu pagamento em
dinheiro, diárias para viagem, prêmios e
abonos não integram a remuneração do
empregado, não se incorporam ao contrato
de trabalho e não constituem base de
incidência de qualquer encargo trabalhista e
previdenciário.

E no § 9º do art. 28 da Lei de Custeio, passaram a ser ex-


pressamente excluídas da incidência de contribuições previden-
ciárias, na alínea “z”, “os prêmios e os abonos”.
Aqui estamos diante de uma evidente situação de perda
intencional de arrecadação pelo legislador, e os empregadores
96

conhecedores da regra certamente partirão para um modelo que


deixará de remunerar o empregado por quantia fixa e estabele-
cerá critérios de premiação, visando a redução de gastos com o
recolhimento de contribuições e demais repercussões trabalhistas
(sobre o cálculo de férias, 13º salários, FGTS).
A dúvida é se as regras em comento não colidem com o
texto constitucional.
Pois bem, na apreciação das ADIs n. 3.467-7/DF, n.
3.473-1/DF e n. 3.505-3/DF, o STF, em sede de controle concen-
trado, pelo voto do relator, Min. Marco Aurélio, se pronunciou
pela inconstitucionalidade da MP 242/2005 (que visava limitar o
cálculo do auxílio-doença, à época, pela média dos doze últimos
salários de contribuição), por afronta ao § 11 do art. 201 da CF.
Colhe-se da decisão, no que diz respeito ao dispositivo constitu-
cional adrede transcrito:

Evidentemente a alusão ‘nos casos e na forma


da lei’ não constitui uma carta em branco ao
legislador, muito menos ao individual, para
esvaziar o comando da primeira parte do
parágrafo, a revelar a necessidade de os ganhos
habituais do empregado, a qualquer título,
serem incorporados ao salário para efeito de
contribuição previdenciária, repercutindo,
consequentemente, nos benefícios.

Desta forma, com supedâneo no precedente acima, parece


restar configurada a hipótese de violação ao § 11 do art. 201 pela
Lei n. 13.467/2017, na alteração dos dispositivos da CLT e da Lei
n. 8.212/91 que dizem respeito às verbas que tem natureza sala-
rial, com necessária repercussão em contribuições e benefícios
previdenciários.
No entanto, esse foi, ao que iremos observar adiante,
apenas o primeiro passo para uma medida ainda mais drástica.
97

A EMENDA 103/2019 E A TENTATIVA DE LIMITAÇÃO


DO ACESSO À PREVIDÊNCIA SOCIAL DE TRABALHA-
DORES COM BAIXOS SALÁRIOS

O tópico central deste estudo, todavia, envolve a inominá-


vel tentativa, constante da reforma previdenciária levada a efeito
pela Emenda Constitucional n. 103/2019, de excluir da proteção
previdenciária empregados de salários de contribuição inferiores
ao salário mínimo, e sua “regulamentação” pelo artigo 19-E do
Decreto n. 3.048/99, incluído pelo Decreto n. 10.410/2020.
Trata-se do novo conteúdo do § 14 do art. 195 da Consti-
tuição, que tem a seguinte redação:

O segurado somente terá reconhecida


como tempo de contribuição ao Regime
Geral de Previdência Social a competência
cuja contribuição seja igual ou superior à
contribuição mínima mensal exigida para
sua categoria, assegurado o agrupamento de
contribuições.

Em acréscimo, o art. 29 da mesma Emenda prevê:

Art. 29. Até que entre em vigor lei que


disponha sobre o § 14 do art. 195 da
Constituição Federal, o segurado que, no
somatório de remunerações auferidas no
período de 1 (um) mês, receber remuneração
inferior ao limite mínimo mensal do salário
de contribuição poderá:
I – complementar a sua contribuição, de
forma a alcançar o limite mínimo exigido;
II – utilizar o valor da contribuição que
exceder o limite mínimo de contribuição de
uma competência em outra; ou
III – agrupar contribuições inferiores ao
limite mínimo de diferentes competências,
para aproveitamento em contribuições
mínimas mensais.
98

Parágrafo único. Os ajustes de


complementação ou agrupamento de
contribuições previstos nos incisos I, II e III,
do caput somente poderão ser feitos ao longo
do mesmo ano civil.

E então chegamos ao artigo 19-E do Regulamento da


Previdência Social, com a redação conferida pelo Decreto
10.410/2020, verbis:

Artigo 19-E. A partir de 13 de novembro de


2019, para fins de aquisição e manutenção
da qualidade de segurado, de carência, de
tempo de contribuição e de cálculo do salário
de benefício exigidos para o reconhecimento
do direito aos benefícios do RGPS e para
fins de contagem recíproca, somente serão
consideradas as competências cujo salário de
contribuição seja igual ou superior ao limite
mínimo mensal do salário de contribuição.
§ 1º Para fins do disposto no caput, ao segurado
que, no somatório de remunerações auferidas
no período de um mês, receber remuneração
inferior ao limite mínimo mensal do salário
de contribuição será assegurado:
I - complementar a contribuição das
competências, de forma a alcançar o limite
mínimo do salário de contribuição exigido;
II - utilizar o excedente do salário de
contribuição superior ao limite mínimo de
uma competência para completar o salário de
contribuição de outra competência até atingir
o limite mínimo; ou
III - agrupar os salários de contribuição
inferiores ao limite mínimo de diferentes
competências para aproveitamento em uma
ou mais competências até que estas atinjam
o limite mínimo.
§ 2º Os ajustes de complementação,
utilização e agrupamento previstos no § 1º
poderão ser efetivados, a qualquer tempo, por
iniciativa do segurado, hipótese em que se
tornarão irreversíveis e irrenunciáveis após
99

processados.
§ 3º A complementação de que trata o inciso
I do § 1º poderá ser recolhida até o dia
quinze do mês subsequente ao da prestação
do serviço e, a partir dessa data, com os
acréscimos previstos no art. 35 da Lei nº
8.212, de 1991.
§ 4º Os ajustes de que tratam os incisos II e
III do § 1º serão efetuados na forma indicada
ou autorizada pelo segurado, desde que
utilizadas as competências do mesmo ano
civil definido no art. 181-E, em conformidade
com o disposto nos § 27-A ao § 27-D do art.
216.
§ 5º A efetivação do ajuste previsto no inciso
III do § 1º não impede o recolhimento da
contribuição referente à competência que
tenha o salário de contribuição transferido,
em todo ou em parte, para agrupamento com
outra competência a fim de atingir o limite
mínimo mensal do salário de contribuição.
§ 6º Para complementação ou recolhimento
da competência que tenha o salário de
contribuição transferido, em todo ou em parte,
na forma prevista no § 5º, será observado o
disposto no § 3º.
§ 7º Na hipótese de falecimento do segurado,
os ajustes previstos no § 1º poderão ser
solicitados por seus dependentes para fins de
reconhecimento de direito para benefício a
eles devidos até o dia quinze do mês de janeiro
subsequente ao do ano civil correspondente,
observado o disposto no § 4º.

Pela referida norma regulamentar, a complementação


seria devida já a partir da competência novembro de 2019 e a não
realização acarretará a desconsideração de contribuições menores
para todos os fins previdenciários, inclusive a manutenção da
qualidade de segurado.
Daí decorre que, para o segurado nas categorias de em-
pregado (urbano e rural), empregado doméstico e de trabalhador
avulso, é atualmente considerado como tempo de contribuição,
100

na forma do Regulamento, apenas, “o conjunto de competências


em que houve ou deveria ter havido contribuição em razão do
exercício de atividade remunerada sujeita à filiação obrigatória
ao RGPS, observado o disposto no art. 19-E” (art. 32, § 22, do
Decreto n. 3.048/1999, incluído pelo Decreto n. 10.410/2020).
Essas as regras que se propõe discutir.
O primeiro aspecto, evidentemente, é a análise da possível
- a nosso ver, evidente - inconstitucionalidade/ilegalidade desta
exigência.

AS NORMAS CONSTITUCIONAIS VIOLADAS

O artigo 19-E em comento entra, a nosso ver, em colisão


frontal com diversos princípios do Direito Previdenciário, bem
como com princípios de Direito Tributário, todos com assento no
Texto Constitucional de 1988 (redação original).
Pior que isso, como será identificado, em situação que,
além de inconstitucional, é flagrantemente ilegal (pois, sem pre-
visão legal alguma, vem totalmente regida por atos administrati-
vos, que, como se sabe, não podem restringir direitos ou impor
obrigações (princípio da legalidade).
Vejamos.
A nova exigência em questão é de flagrante inconstitucio-
nalidade, pois fere:

o objetivo mor do sistema, qual seja, o da


universalidade da cobertura e do atendimento
(CF, art. 194, p. único, inciso I), pois estando
o indivíduo classificado como segurado
obrigatório (Lei 8.213/91, art. 11, inciso I) e
filiado automaticamente a partir do início do
exercício de sua atividade (RPS, art. 20, § 1º),
não se vê como possível excluir a proteção
previdenciária apenas por se tratar de pessoa
com salário abaixo do mínimo legal;
o princípio da equidade da participação no
custeio (CF, art. 194, p. único, inciso V), na
101

medida em que um segurado que aufira, no


curso do mês, renda inferior a um salário
mínimo, contribuirá (proporcionalmente ao
seu rendimento) em percentual maior do que
outros segurados e contribuintes com maior
capacidade contributiva1 - exemplificando,
não faz sentido exigir de um trabalhador
empregado que tenha auferido, no curso de
um mês, R$ 100,00 ou R$ 200,00, que ele
faça uma contribuição de 7,5% sobre o salário
mínimo (cerca de R$ 75,00), comprometendo
sua renda em percentual bem maior do que um
empregado remunerado com salário superior2
(caráter confiscatório), lembrando-se ainda
que o Microempreendedor Individual pode
contribuir com apenas 5% do salário mínimo,
qualquer que seja a sua renda mensal;
a vedação à tributação com caráter
confiscatório (CF, art. 150, inciso IV), pois é
evidente que um indivíduo com rendimento
inferior ao salário mínimo legal não tem
capacidade contributiva para a aludida
complementação - com efeito, a disposição
não só inverte o princípio da capacidade
contributiva, pelo qual aquele que possui
mais capacidade econômica deve contribuir
em proporção maior em relação ao que recebe

1
O princípio da capacidade contributiva é tratado não só como um
valor de igualdade na tributação, mas também como um limitador à
incidência tributária. São identificados os limites de preservação ao
mínimo existencial, em que há ausência de capacidade contributiva, e
o limite de vedação ao confisco, em que se esgota a capacidade contri-
butiva (HACK, Érico. Princípio da capacidade contributiva: limites e
critérios para o tributo. Revista da SJRJ, n. 39, p. 83. Disponível em:
https://www.jfrj.jus.br/revista-sjrj/artigo/principio-da-capacidade-con-
tributiva-limites-e-criterios-para-o-tributo-ability. Acesso em: 21 jul.
2020.
2
Como didaticamente apontado por Marcelino Alcântara, “a equida-
de, quem possui maior poder aquisitivo contribui mais, ao passo que
o empregado que ganha um salário mínimo, por exemplo, contribuirá
proporcionalmente às suas condições” (ALCÂNTARA, 2010. p. 128).
102

menos, como pode acarretar tributação de


parcela dos ganhos de tal monta que impeça a
subsistência do indivíduo;
o princípio da anterioridade em matéria de
custeio (CF, art. 195, § 6º), pois se trata, sem
dúvida, da criação de uma nova contribuição
(adicional, complementar), antes inexistente,
sem observância do prazo nonagesimal (e que
não se pode chamar de facultativa, pois caso
não realizada acarreta efeitos prejudiciais aos
direitos do segurado e seus dependentes);
o princípio do tratamento isonômico em
matéria tributária (CF, art. 150, inciso
II), que veda o tratamento desigual entre
contribuintes que se encontrem em situação
equivalente, “proibida qualquer distinção em
razão de ocupação profissional ou função
por eles exercida, independentemente da
denominação jurídica dos rendimentos,
títulos ou direitos; e
o princípio da irretroatividade da lei tributária
(CF, 150, inciso III, alíneas ‘a’ e ‘b’, que
veda a cobrança de tributo sobre fato gerador
anterior à norma que o estabeleça (frisando-
se que o fato gerador da contribuição é a
prestação do trabalho, cf. art. 43, § 2º, da Lei
de Custeio), bem como no mesmo exercício
financeiro da publicação da lei - a EC 103,
que o art. 19-E do RPS visa regulamentar,
vigeu a partir de 14.11.2019, não podendo
assim ser voltada a fatos geradores daquele
mesmo ano.

Sobre este último aspecto, é importante ressaltar que, na


forma do § 4º do art. 19-E, os “ajustes” somente podem ser feitos
na forma indicada ou autorizada pelo segurado, desde que utiliza-
das as competências do mesmo ano civil, em conformidade com
o disposto nos § 27-A ao § 27-D do art. 216 do RPS. Desse modo
- e considerando que os segurados nesta condição são pessoas
que, além de baixa renda, são leigos no assunto - a regra fulmina
a possibilidade de contagem das competências novembro e de-
103

zembro de 2019, seja pela ausência de conhecimento do próprio


segurado a esse respeito, seja pela condição abrupta pela qual se
criou a exigência.
Note-se, no caso de segurados com contribuição apurada
em valor inferior ao salário mínimo de novembro de 2019 em
diante, mais uma vez, caso seja considerada lícita a exigência,
pode supostamente ocorrer, inclusive, pela desconsideração de
períodos com contribuição inferior a esta, a perda da qualidade
de segurado(?), mesmo estando o indivíduo em pleno contrato de
emprego, segundo o § 8º do art. 13 do RPS, com a redação con-
ferida pelo Decreto 10.410/2020, que prevê a partir de então que
o segurado que receber remuneração inferior ao limite mínimo
mensal do salário de contribuição “somente manterá a qualidade
de segurado se efetuar os ajustes de complementação, utilização
e agrupamento a que se referem o § 1º do art. 19-E e o § 27-A do
art. 216”.
Entendemos, ainda, pela existência de ilegalidade no
artigo 19-E do RPS. Expliquemos.
É de notar-se que o fato gerador da contribuição previ-
denciária do segurado sempre foi (e continua sendo, mesmo após
a EC n. 103) a remuneração auferida nas atividades laborativas
que acarretam sua filiação compulsória ao RGPS (CF, art. 195,
II), o que somente pode ser disciplinado por lei, estando vigente
a Lei 8.212/91, particularmente o art. 28. Como um Decreto - ato
administrativo - não pode revogar Lei, não há como considerar-se
válida a norma em questão por colidir frontalmente com a dispo-
sição da Lei de Custeio.
Ora, se a renda auferida for inferior a um salário mínimo
(hipótese que abrange uma gama bem grande de pessoas, como
empregados domésticos, aprendizes, trabalhadores a tempo
parcial e, mais recentemente, os intermitentes), temos que essas
pessoas, caso se admita válida a exigência, serão fulminadas em
seus direitos previdenciários, pois sequer se pode admitir, em sã
consciência, que tenham conhecimento dessa nova exigência.
A situação se agrava se recordarmos que durante o período
104

de pandemia do coronavírus, muitas pessoas tiveram seus contra-


tos suspensos (ou seja, não receberam remuneração) e, provavel-
mente, não contribuíram nesse interregno.
Em que pese todas as considerações feitas até aqui, há que
se apontar a necessidade de, quando possível, o segurado nesta
situação realizar os aportes exigidos, ao menos até que seja pro-
clamada a invalidade do artigo 19-E do RPS, e desta forma, o
próximo tópico tem por objetivo esta necessidade.

COMO DEVE PROCEDER O SEGURADO

Vejamos o que mais é tratado pelo art. 19-E do RPS.

O § 1º do art. 19-E identifica três “alternativas”


para o segurado que não auferiu rendimentos
superiores ao salário mínimo, para que
possa ter o período computado para fins
previdenciários e, desta forma, não correr o
risco de desproteção social:
I - complementar a contribuição das
competências, de forma a alcançar o limite
mínimo do salário de contribuição exigido;
II - utilizar o excedente do salário de
contribuição superior ao limite mínimo de
uma competência para completar o salário de
contribuição de outra competência até atingir
o limite mínimo; ou
III - agrupar os salários de contribuição
inferiores ao limite mínimo de diferentes
competências para aproveitamento em uma
ou mais competências até que estas atinjam
o limite mínimo.

Um ponto preliminar: com o afã de regulamentar esta


mesma matéria, antes mesmo do Decreto 10.410/2020, a Receita
Federal baixou atos administrativos neste sentido. A complemen-
tação da contribuição - o Ato Declaratório Executivo CODAC/
RFB n. 05, de 06.02.2020, instituiu para o fim da complemen-
105

tação em questão, o código de receita 1872 - Complemento de


Contribuição Previdenciária - Recolhimento Mensal - sem que
tenha havido fixação por lei em sentido estrito, e com efeitos niti-
damente retroativos(?).
Não fosse suficiente, o INSS publicou a Portaria 230, de
20.03.2020, dispondo sobre a matéria. Desse modo, as inconstitu-
cionalidades e ilegalidades já mencionadas se aplicam também a
estes atos administrativos, com mais uma ilegalidade: a tentativa
de regular, sem ser por decreto, matérias reservadas a essa espécie
de ato administrativo, por força do artigo 84 da Constituição.
A complementação, segundo a Portaria em comento,
deverá ser realizada por meio do Documento de Arrecadação de
Receitas Federais – DARF, com a utilização do número do CPF
do segurado/contribuinte, no código de receita 1872 – Comple-
mento de Contribuição Previdenciária.
Essa complementação, conforme o artigo 1º da Portaria,
e novamente sem base legal regulatória, deve ser realizada a
partir de 13 de novembro de 2019, para preservação do período
contributivo em questão. Ocorre que a contribuição do segurado
é mensal, e não por dia, de modo que há, sim, evidente caráter
retroativo na exigência, uma vez que o mês de novembro não
poderia, em hipótese alguma, ser incluído no âmbito dessa “com-
plementação”, ainda que fosse considerada lícita.
O cálculo e a geração do DARF, ainda conforme a Por-
taria, poderão ser realizados no SICALCWEB – Programa para
Cálculo e Impressão de Darf On Line, de gestão da Secretaria
Especial da Receita Federal do Brasil, no endereço eletrônico:
http://servicos.receita.fazenda.gov.br/Servicos/sicalcweb/default.
asp?Tip-Tributo=1&FormaPagto=1.
A complementação (do valor da contribuição) correspon-
derá, também segundo a norma administrativa já identificada,
“ao valor resultante da diferença entre o salário mínimo nacional
vigente no mês e a remuneração consolidada que não atingiu o
limite mínimo, multiplicado pela alíquota correspondente à cate-
goria de segurado”.
106

Para o empregado, empregado doméstico e trabalhador


avulso, prossegue a Portaria do INSS, devem ser aplicadas as alí-
quotas de 8% para as competências de 11/2019 a 02/2020; e 7,5%
para as competências a partir de março de 2020 e, para o Con-
tribuinte Individual (exclusivamente aquele que presta serviço à
empresa), deve ser aplicada a alíquota de 11%.
Caso o segurado exerça mais de uma atividade no mês e
a soma das remunerações não atinja o salário mínimo, a comple-
mentação (valor da contribuição) corresponderá ao valor resul-
tante da diferença entre o salário mínimo nacional vigente no mês
e o somatório de remunerações das atividades exercidas, multipli-
cado pela menor alíquota correspondente à categoria de segurado
na competência.
Assim, por exemplo, se o cidadão foi empregado e também
contribuinte individual prestador de serviço à empresa no mesmo
mês e a soma de remunerações não atingiu o salário mínimo, a alí-
quota incidente sobre a diferença para alcançar o salário mínimo
será a de empregado (8% entre 11/2019 e 02/2020 e 7,5% a partir
de 03/2020).
Prevê o Regulamento que os ajustes de complementa-
ção, utilização e agrupamento poderão ser efetivados, a qualquer
tempo, por iniciativa do segurado, hipótese em que se tornarão ir-
reversíveis e irrenunciáveis após processados (§ 2º do art. 19-E).
A regra, se analisada sem o devido espírito crítico, pode levar a
entender que a contribuição, uma vez feita, fica “perdida”. Mas,
em se tratando de cobrança indevida, isso não impede, uma vez
considerada inconstitucional ou ilegal a exigência, que o segura-
do ingresse com pedido de restituição do indébito, fazendo jus ao
recebimento do valor recolhido indevidamente, com juros equi-
valentes à taxa SELIC.
A complementação poderá ser recolhida até o dia quinze do
mês subsequente ao da prestação do serviço e, a partir dessa data,
com os acréscimos previstos no art. 35 da Lei n. 8.212/1991(§ 3º
do art. 19-E). Vê-se, novamente, que o Decreto supõe tratar-se de
tributo, já que o seu não pagamento no prazo fixado acarreta os
107

efeitos da mora tributária, é dizer, reputando-se devidos juros da


taxa SELIC e multa moratória de 0,33% ao dia, até o máximo de
20% (art. 35 da Lei de Custeio, que remete às sanções moratórias
aplicadas aos tributos federais em geral).
Nada resta esclarecido, todavia, quanto à fórmula e à efi-
cácia do “agrupamento” de salários de contribuição de mais de
um mês para fins de obter, ao menos em um mês, o valor mínimo
de contribuição draconianamente exigida. Por exemplo: se em
janeiro, fevereiro e março de 2020, o segurado auferiu apenas ⅓
do salário mínimo, poderá “agrupar” esses valores para que valha
um só mês de contribuição? Em caso positivo, qual mês seria
considerado? Importante lembrar que, dependendo da resposta a
esta última indagação, pode haver manutenção (ou não) da qua-
lidade de segurado, ou obtenção (ou não) de prazo carencial para
algum benefício que disso dependa.
E como apurar “acréscimos de mora” em caso de “agrupa-
mento”? Qual data será considerada para fins da suposta “mora”?
Por ora, o que há a esse respeito consta da Portaria INSS
230, é o reconhecimento, em seu art. 3º, que - apenas - “encon-
tram-se em desenvolvimento funcionalidades sistêmicas para
contemplar a utilização ou agrupamento” - demonstrando, mais
uma vez, a insaciável vontade de arrecadar, porém sem sequer
oportunizar os devidos meios para que o segurado providencie a
contribuição. Considerando-se que nada foi feito até ao menos a
publicação deste estudo, é nosso entendimento que a exigência
não pode ser realizada.

O PROBLEMA DO ÓBITO DO SEGURADO NESSA


CONDIÇÃO

Na hipótese de falecimento do segurado, os ajustes poderão


ser solicitados por seus dependentes para fins de reconhecimento
de direito para benefício a eles devidos até o dia quinze do mês
de janeiro subsequente ao do ano civil correspondente, desde que
108

utilizadas as competências do mesmo ano civil (§ 7º do art. 19-E).


Quanto a este aspecto, novamente temos que se trata de
regra fixando prazo fatal (15 de janeiro do ano seguinte ao do
óbito), desta feita para dependentes de segurado falecido (incluin-
do-se aí incapazes, pessoas deficientes etc.), com o que eviden-
temente não podemos concordar, por flagrante ilegalidade, pois
ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei (CF, art. 5º, I), e os prazos obri-
gacionais - ainda mais com o caráter peremptório, como este -
sempre devem estar dispostos em lei no sentido estrito, nunca em
decreto ou qualquer outro ato administrativo.
Essa regra, ademais, fere o princípio da isonomia ao tratar
os dependentes de forma diversa dos segurados, os quais poderão
promover a regularização a qualquer tempo (art. 19-E, § 2º), e
cria uma anomalia com a regra que fixa o prazo para solicitar a
pensão por morte (art. 74 da LBPS), já que a pensão tem início na
data do óbito, quando requerida em até 180 dias após o óbito, para
os filhos menores de 16 anos, ou em até 90 (noventa) dias após o
óbito, para os demais dependentes.
Nesse contexto, vejamos o exemplo de um segurado tra-
balhador intermitente que possuía contribuições abaixo de um
salário mínimo (há mais de 12 meses) e morreu em 15 de dezem-
bro. O cônjuge e os filhos menores comparecem no INSS para
requerer a pensão no dia 30 janeiro do ano subsequente, com a ex-
pectativa de receber o benefício desde o óbito. No entanto, são in-
formados pelo INSS de que o segurado havia perdido a qualidade
de segurado por ter contribuído abaixo de um salário mínimo e o
prazo para os dependentes regularizarem as contribuições venceu
no dia 15 de janeiro.
Esse entendimento lançado no RPS não pode se sustentar,
pois contraria os preceitos indicados e gera desproteção social
justamente aos dependentes que, via de regra, não possuem renda
para o sustento próprio.
109

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao concluir essa análise, não se pode perder de vista que o


principal tema a ser enfrentado, e de imediato, é o combate à infor-
malidade em matéria de proteção previdenciária. É dizer, pessoas
que devem ser (e são, conforme a legislação) compulsoriamente
filiadas ao regime geral (e algumas vezes até a regimes próprios)
de previdência – mas ora não são inscritas, ora suas contribuições
não são corretamente vertidas, e agora, com as normas aqui dis-
cutidas, até mesmo quando corretamente vertidas, mas abaixo do
salário mínimo mensal, correm o risco de ficarem desprotegidas.
Estudo realizado pelo Fórum de Debates sobre Políticas
de Emprego, Trabalho e Renda e de Previdência Social, publica-
do em maio de 2016, constatou que cerca de 72% da população
ocupada (ou seja, que exerce atividade remunerada) entre 16 a
59 anos conta com proteção previdenciária, mas o dado relevan-
te, para fins de análise, é o item denominado “os desprotegidos
do sistema previdenciário”: destes, 15% de indivíduos, ou 13,5
milhões de trabalhadores, são considerados “potenciais contri-
buintes da Previdência Social, com rendimento mensal igual ou
superior ao salário mínimo”. Esse número deve ser redimensio-
nado, pois em razão da crise econômica ocorrida neste lapso e
a “reforma trabalhista”, com diversas matérias discutíveis sob a
ótica da precarização do trabalho formal, não temos dúvidas de
seu crescimento. E a esse dado será necessário acrescentar, dora-
vante, os assalariados com renda menor que um salário mínimo
mensal.
Ou seja, está-se falando daquelas pessoas as quais o Fisco
simplesmente não se preocupa em fiscalizar e cobrar – e que
depois, quando forem à busca de proteção social, levarão um
sonoro “não” do órgão previdenciário, por suposta “falta da qua-
lidade de segurado”. Devem ser protegidos, pelos princípios da
universalidade e da compulsoriedade da filiação, mas a partir de
uma interpretação privatista do Direito Previdenciário, são consi-
derados “sem seguro” previdenciário - e também certamente sem
110

proteção assistencial (LOAS).


Um enorme “buraco negro” de desproteção social, capaz
de engolir uma geração inteira.
O Brasil, enquanto isso, bate recorde de empregados sem
carteira de trabalho assinada, como mostra o IBGE por meio
da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD). De
acordo com os dados divulgados em agosto de 2019, 38,6 milhões
de trabalhadores estão atuando na informalidade. Isso significa
que, da força total de trabalho, estimada em 105 milhões de bra-
sileiros, 41% desse total estão inseridos no mercado de trabalho
sem proteção social porque não fazem contribuição para a Pre-
vidência. Este número só aumentou em 2020, em face da trágica
situação causada pela pandemia da Covid-19.
Sem que estas pessoas estejam contribuindo para o sistema,
temos, a uma, problemas de custeio do Regime Geral (não se ar-
recada contribuição delas); e depois, e o que é mais importante
e grave, ausência da devida proteção social pelo Estado (dado o
entendimento predominante de que, apesar de filiado automatica-
mente ao sistema a partir do exercício de atividade remunerada
no território nacional, a falta de contribuição lhes impediria, e
a seus dependentes, de fruir da proteção previdenciária, o que a
nosso ver contraria o princípio da universalidade).
Este fenômeno se agrava sobremaneira com a regra do
§ 14 do art. 195 da CF trazida pela EC n. 103/2019, pois caso
não sejam consideradas inválidas tal regra e a sua regulamenta-
ção aqui comentada (hipótese na qual acreditamos, com base na
argumentação trazida ao texto), alijar-se-á da proteção previden-
ciária justamente os trabalhadores de baixíssima renda – inferior
a um salário mínimo mensal – e de menor discernimento sobre
as regras de contribuição, especialmente a do art. 29 da EC n.
103, regulamentada (?) pelo art. 19-E do Decreto n. 3.048/1999,
incluído pelo Decreto n. 10.410/2020.
Esta realidade corresponde, já neste momento, a uma
imediata desproteção, justamente quando o maior problema de
saúde pública de todos os tempos assola a população brasileira,
111

com centenas de milhares de óbitos e incapacidades temporárias


e permanentes, causados pelo coronavírus.
Estamos diante de uma espécie de “bomba-relógio” social,
montada para quando essas pessoas não tiverem mais condições
de subsistir com a força de seu trabalho e não puderem ter acesso
à aposentadoria, ou seus dependentes não tiverem acesso à pensão
por morte.
Se nada for feito em sentido inverso, a sociedade pagará
uma conta muito alta, pois a penúria será muito grande e atingirá
pessoas que sequer imaginam tal situação.
É urgente que se adotem novos mecanismos de inclusão
previdenciária, bem como que se proceda a uma mudança pa-
radigmática no conceito de Seguridade Social proposto, já que,
entre o discurso constitucional de universalidade e a prática de
acesso restrito aos que efetivamente contribuíram “acima de um
salário mínimo”, há um grande abismo que, futuramente, causará
danos irreparáveis ao tecido social.
E é mais urgente ainda que a comunidade jurídica se levante
e questione, perante o Judiciário, a (in)validade da exigência cons-
tante do artigo 19-E do Regulamento da Previdência Social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALCÂNTARA, Marcelino Alves de. O princípio da equidade


na forma de participação no custeio. Dissertação (Mestrado
em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2010.

BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Ato Declaratório


Executivo CODAC nº 5, de 06 de fevereiro de 2020.
Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível
em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.
action?visao=anotado&idAto=106643. Acesso em: 15 out. 2020.

BRASIL. INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL.


Portaria INSS nº 230 de 20 de março de 2020. Dispõe
112

sobre a complementação da contribuição do segurado que, no


somatório de remunerações auferidas no período de 1 (um) mês,
a partir de novembro de 2019, recebe remuneração inferior ao
limite mínimo mensal do salário de contribuição. Brasília, DF:
Presidência da República, [2020]. Disponível em: http://www.
normaslegais.com.br/legislacao/portaria-inss-230-2020.htm.
Acesso em: 15 out. 2020.

BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição n. 6, de 2019,


convertida na Emenda Constitucional 103, de 2019. Brasília,
DF: Câmara dos Deputados, [2019]. Parecer do Relator da
matéria na CCJC, Deputado Marcelo Freitas. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de et al. Comentários à


Reforma da Previdência: EC 103 de 2019. Rio de Janeiro:
Forense, 2019.

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista.


Manual de Direito Previdenciário. 23. ed. Rio de Janeiro:
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critérios para o tributo. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 39,
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LAZZARI, João Batista; CASTRO, Carlos Alberto Pereira


de; KRAVCHYNCHYN, Gisele Lemos; KRAVCHYNCHYN,
Jefferson Luiz. Prática processual previdenciária:
administrativa e judicial. 13. ed. rev. atual. Rio de Janeiro:
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MARTINEZ, Wladimir Novaes. Curso de direito


previdenciário. São Paulo: LTr, 1997. (Tomo I – Noções de
direito previdenciário).

MENDES, Fernando Ribeiro. Segurança social: o futuro


hipotecado. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2011.
113

O SALÁRIO MATERNIDADE DA MULHER


DESEMPREGADA NO DECRETO 10.410/2020

Heloisa Helena Silva Pancotti1

INTRODUÇÃO

O Decreto 10.410/20 de 30 de junho de 2020 faz parte do


conjunto de reformas que vem sendo empreendidas quanto aos
direito sociais. É importante contextualizar que tais mudanças
tem ocorrido em meio a um estado de coisas inconstitucionais
cujo marco inicial é a entrada em vigor da Emenda Constitucio-
nal 95/2016, que alterou o Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias para instituir novo regime fiscal que estabeleceu o
chamado Teto de Gastos.
A limitação dos investimentos destinados ao custeio dos
direitos sociais promoveu um desequilíbrio em favor do mercado.
Assim, vários dispositivos constitucionais tiveram sua eficácia
mitigada, sobretudo aqueles comprometidos com a dignida-
de da pessoa humana, o valor social trabalho, a erradicação da
pobreza, da marginalização, da redução das desigualdades sociais
regionais, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária,
aqueles previstos nos artigos 6º e 7º da Constituição Federal.
Além disso, o estado de coisas inconstitucional relaciona-
do aos direitos sociais encontra-se em absoluto desacordo com o
artigo 170 da CFRB in verbis:

A ordem econômica, fundada na valorização


do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência

1
Advogada. Mestra em Direito pela UNIVEM - Universidade de
Marília. Doutoranda em Direito pela Universidade Estadual do Norte
do Paraná - UENP. Autora de obras.
114

digna, conforme os ditames da justiça social,


observados os seguintes princípios: “[...]
VII - redução das desigualdades regionais e
sociais; VIII - busca do pleno emprego; [...]”.

Por esta razão, a entrada em vigor da EC 95/2016 pos-


sibilitou o desmonte dos direitos sociais brasileiros, sobretudo
com as Reformas Trabalhista e Previdenciária, assim como a
edição de normas infraconstitucionais num ritmo frenético e ace-
lerado, que alteram matérias relativas à proteção e regulação do
trabalho, seguridade social, gerando impacto negativo em toda a
sociedade brasileira, que submergiu numa crise sem precedentes,
que está produzindo resultados catastróficos como o aumento da
desigualdade social.
Um dos benefícios que sofreu impacto negativo é o do
salário maternidade, cujas repercussões tem aumentado a zona
de desproteção, também conhecida como zona límbica ou limbo.
Isso porque as alterações legais tornaram as regras de acesso cada
vez mais restritivas, sobretudo naquilo que pode repercutir no
direito da segurada desempregada.
Trataremos de vários vieses no âmbito deste trabalho.

DOS BENEFICIÁRIOS DO SALÁRIO MATERNIDADE

Concebido para ser destinado à mulher gestante, a evo-


lução legal e jurisprudencial do salário maternidade, ampliou o
rol de seus beneficiários. É comum a interpretação ampliativa em
favor do pai viúvo, por exemplo. Neste caso, a segurada falecida
já não ostentava a qualidade de segurada da previdência social. O
genitor no entanto, era segurado da previdência social, o que lhe
autorizou a perceber o salário maternidade:

RECORRIDO : LEONARDO BASILIO


DE ANDRADE JUNIOR ADVOGADO
: LEONICE FERREIRA DA CUNHA
ZANOLLI E OUTRO(S) - PR067276 [...]
115

PREVIDENCIÁRIO. SALÁRIO-
MATERNIDADE. ÓBITO DA MÃE.
CONCESSÃO DO BENEFÍCIO AO
CÔNJUGE SEGURADO. ART. 71-B,
DA LEI Nº 8.213/91. PROTEÇÃO DA
CRIANÇA. PAGAMENTO PELO INSS.
RENDA MENSAL INICIAL. SEGURADO
EMPREGADO. 1. O salário-maternidade
é devido à segurada da Previdência Social,
durante 120 (cento e vinte) dias, com início
no período entre 28 (vinte e oito) dias antes do
parto e a data de ocorrência deste, nos termos
do art. 71, da Lei 8.213/91. 2. O benefício
tem como fundamento assegurar garantia
salarial, que possibilite à mãe afastar-se de
suas atividades laborais, possibilitando a
proteção da criança e cuidados nos primeiros
meses de vida. 3. Na hipótese de falecimento
da genitora, há de se considerar o interesse
da criança em ter suas necessidades providas,
sendo possível a concessão do benefício,
por analogia, ao pai, a fim de concretizar
a garantia prevista no art. 227, CF. 4.
Prevê o art. 71-B, da Lei nº 8.213/1991, a
possibilidade da concessão do benefício ao
cônjuge ou companheiro viúvo, nos termos
do art. 71-B, da Lei 8.213/91 (Incluído pela
Lei nº 12.873, de 2013). 4. Embora a genitora
falecida não ostentasse a condição de
segurada da Previdência Social no momento
do óbito, considerando que o genitor, autor da
demanda, é segurado, não há razão para que
se negue a concessão do benefício.
[...] (grifo nosso).

O mesmo entendimento vem sendo aplicado com relação


aos pais adotantes. Não se privilegia mais a figura da mulher ges-
tante de forma exclusiva, mas sobretudo a necessidade da garan-
tia da renda do novo integrante do grupo familiar, assim como
a sua inserção, seja qual for o motivo, nascimento ou adoção.
Neste sentido, a nova redação do artigo 392-B da CLT, que recep-
cionou a extensão do benefício ao genitor viúvo, exceto em caso
116

de falecimento do filho ou seu abandono.


De sorte que neste mesmo diapasão, houve importante al-
teração legal que foi promovida pela Lei 12.873/2013 que mo-
dificou a redação dos artigos 392 A, § 5º da CLT, “em face do
reflexo trabalhista da proteção da maternidade a saber: o direito
à licença maternidade.” Conforme lição do ilustre jurista Miguel
Horvath Júnior (2020, p. 451-452), sendo licito afirmar “Sendo
assim, podemos sintetizar que o salário maternidade diz respeito
à proteção previdenciária, enquanto a licença maternidade diz
respeito à proteção trabalhista.”
A nova redação do dispositivo legal confere o benefício
de licença maternidade a apenas um dos adotantes ou guardiães
empregado ou empregada, o que veio a constituir um avanço, mas
também uma conformação da norma legal ao construto jurispru-
dencial dominante.
No campo previdenciário, alguns avanços puderam ser sen-
tidos, sobretudo para abranger as novas configurações familiares.
Naquilo que diz respeito ainda aos beneficiários, duas teses
relacionadas ao salário maternidade tem ganhado destaque. A pri-
meira diz respeito ao salário maternidade reverso, em que a mãe não
gestante de uma união homoafetiva pleiteia o pagamento do benefí-
cio- que é mais vantajoso- em razão da natureza de seus trabalhos.
A mãe gestante é empresária e não pode se ausentar do tra-
balho e a não gestante é servidora pública. Nada obsta a aplicação
desta tese em uniões heteroafetivas, razão pela qual o julgamento
do RE 1.211.446 pelo STF é de suma importância e deve ser rea-
lizado em breve, com alta probabilidade de procedência da tese,
inclusive com parecer favorável do PGR.
Além disso, a tese do duplo salário maternidade também
tem sido objeto de apreciação, ainda em instâncias judiciais inferio-
res. É sabido ser possível a percepção de dois salários maternidade
quando o beneficiário possui dois vínculos de trabalho ou emprego,
desde que contribua em cada um deles. O pleito não trata disso.
Basicamente, existem duas teses defendidas: Na primeira,
duas gestantes em uma união homoafetiva e que engravidaram por
117

dupla inseminação artificial pleiteiam o pagamento do benefício.


Na segunda, diz respeito ao pedido formulado por duas
genitoras em uma união homoafetiva, ambas responsáveis pela
amamentação das crianças, apenas uma gestou filhos gêmeos.
Nestes dois últimos casos, muito embora seja possível en-
contrar jurisprudência favorável, é comum que nas instâncias su-
periores, a decisão de primeira instância não se confirme.

DAS DISPOSIÇÕES RELATIVAS ÀS CONTRIBUIÇÕES,


PERÍODO DE GRAÇA E MANUTENÇÃO DA QUALIDA-
DE DE SEGURADA (O)

O salário maternidade possui carência híbrida de acordo


com a classe de segurados. De sorte que para as seguradas contri-
buintes individuais, seguradas especiais e seguradas facultativas
a carência exigida é de 10 meses. (BRASIL, 1991, art. 25, inciso
III). Para as seguradas empregadas, trabalhadoras avulsas e em-
pregadas domésticas, a concessão do salário maternidade inde-
pende de carência. (BRASIL, 1991, art. 26, inciso III).
Horvath Junior (2020, p. 456) aponta que a discrimina-
ção se deu em razão da necessidade de adequação à Convenção
103/1952 da OIT e visa proteger aquela classe de seguradas que
poderiam sofrer maior discriminação no trabalho em razão da
gestação.
No entanto, conforme o mesmo autor aponta, é possível
por força de orientação jurisprudencial a dispensa de carência em
caso de gravidez de alto risco, assim como diminuição de carên-
cia em casos de parto antecipado, onde se reduz a carência de
forma equivalente aos meses em que foi antecipado o parto.
O que diz a norma previdenciária quanto à segurada de-
sempregada? Nestes casos, há que se observar o instituto do
período de graça.
O período de graça é concebido como o período em que
se mantém a qualidade de segurado ainda que não se esteja con-
tribuindo ao INSS. O Decreto 10.410/20 promoveu importante
118

alteração na redação do artigo 97 do Decreto 3.048/99, a saber.


A alteração visou corrigir omissão relacionada com o pa-
gamento do salário maternidade em caso de empregada despedida
sem justa causa.

A redação anterior do parágrafo único do


artigo 97 do RPS não previa a possibilidade de
pagamento pelo INSS do salário maternidade
em caso de dispensa sem justa causa de
empregada gestante, uma vez que, nesta
situação, a empregada goza de estabilidade,
devendo ser reintegrada no emprego ou
indenizada pelo empregador com quantia
equivalente aos salários correspondentes
ao período de estabilidade. (KERTZMAN;
HORIUCHI, 2020, p. 206).

Neste sentido, é importante salientar regra estabelecida no


Memorando Circular 44 de 30/11/2017 a seguir na íntegra:

INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO


SOCIAL Memorando-Circular Conjunto nº
44 /DIRBEN/PFE/INSS Em 30 de novembro
de 2017. Aos Superintendentes-Regionais,
Gerentes-Executivos, Gerentes de Agência
da Previdência Social, Chefes de Divisão
de Gestão de Benefícios, de Divisão/
Serviço de Benefícios e de Serviço/Seção
de Reconhecimento de Direitos Assunto:
Decisão judicial com deferimento de tutela
provisória em sede de Agravo de Instrumento
de nº 5055114-88.2017.4.04.0000/PR
para estender a eficácia territorial da
decisão na Ação Civil Pública nº 5041315-
27.2017.4.04.7000/PR para todo território
nacional. Concessão de salário-maternidade
às seguradas demitidas sem justa causa,
preenchidos os demais requisitos ao benefício,
pagando-os diretamente, nas Agências
da Previdência Social. A decisão judicial
proferida com deferimento de tutela provisória
em sede de Agravo de Instrumento de nº
119

5055114-88.2017.4.04.0000/PR, estabeleceu
que na Ação Civil Pública nº 5041315-
27.2017.4.04.7000, em trâmite na 17ª Vara
Federal de Curitiba/PR, que determinou
ao INSS “conceder o benefício de salário-
maternidade às gestantes desempregadas
no curso da gravidez, preenchidos os
demais requisitos ao benefício, pagando-os
diretamente”, afastando-se o entendimento
de que o pagamento do benefício seria de
responsabilidade da empresa nos casos de
gestantes demitidas “sem justa causa”, de que
trata o art. 97 do Regulamento da Previdência
Social-RPS, aprovado pelo Decreto nº
3.048/99, deve abranger todo território
nacional, alcançando todas as Agências da
Previdência Social-APS. Em razão da decisão,
na análise dos requerimentos de benefício
de salário-maternidade, realizados a partir
de 27/09/2017, as APS de todo o território
nacional deverão observar as orientações
constantes neste Memorando-Circular
Conjunto. Mediante a publicação do Decreto
nº 6.122, de 13 de junho de 2007, que deu
nova redação ao art. 97 do RPS, o benefício de
salário-maternidade já é devido às seguradas
em período de manutenção de qualidade de
segurado, cabendo, em cumprimento aos
demais comandos da determinação judicial,
a concessão às seguradas em manutenção da
qualidade de segurado demitidas sem justa
causa durante o período de gestação, restando
afastada a aplicação da orientação contida no
inciso IV, art. 352, da Instrução Normativa
nº 77/INSS/PRES, de 21 janeiro de 2015.
A renda mensal do salário-maternidade será
calculada conforme o disposto no inciso IV
do artigo 206 da mencionada IN nº 77/INSS/
PRES, para as que mantenham a qualidade de
segurado, correspondendo a 1/12 (um doze
avos) da soma dos doze últimos salários-
de-contribuição, apurados em período não
superior a quinze meses, anteriores ao fato
gerador, sujeito aos limites mínimo e máximo
120

do salário-de-contribuição. A determinação
judicial produz efeitos para requerimentos
protocolados a partir de 27/09/2017, em todo
território nacional, alcançando requerimentos
de salário-maternidade em todas as APS. Os
efeitos desta decisão judicial, que abrange
todo o território nacional, alcançam as
orientações contidas no Memorando-
Circular Conjunto nº 39 /DIRBEN/PFE/
INSS, de 9 de novembro de 2017, a partir
da publicação deste Memorando- Circular
Conjunto. Com o objetivo de instruir o
processo com relação à identificação da
extinção do contrato de trabalho, deverá ser
utilizado o modelo de declaração de que
trata o Anexo II do Memorando-Circular
nº 25/DIRBEN/INSS, de 20 de julho de
2015. O Sistema Prisma será adequado para
o cumprimento da determinação judicial,
devendo os benefícios de salário-maternidade,
após a disponibilização da demanda,
serem concedidos com “Desp 00” e com
informação do número da Ação Civil Pública
50413152720174047000. Atenciosamente,
ALESSANDRO ROOSEVELT SILVA
RIBEIRO Diretor de Benefícios MARCIA
ELIZA DE SOUZA Procuradora-Chefe da
PFE/INSS Substituta.

Nestes casos de despedida ilegal, o benefício será pago de


forma direta pela Previdência Social.
No que se refere à forma de cálculo do salário maternida-
de da segurada desempregada, a teor do exposto no artigo 101,
inciso III, será calculado em um doze avos da soma dos doze
últimos salários de contribuição, observado o disposto no artigo
19- E, apurados em período não superior a quinze meses, desde
que em período de graça.
A maior problemática que se relaciona ao período de
graça da segurada desempregada, em razão das alterações opera-
das pelo Decreto 10.410/20 na redação do Decreto 3.048/99.
Isso porque a regra híbrida opera diferentes efeitos de
121

acordo com o tipo de segurado e por evidente reflete na regra do


período de graça, senão vejamos:
A nova redação do artigo 13 § 7º do Decreto 3.048/99 aduz
que para o contribuinte individual o período de graça se inicia no
primeiro dia do mês subseqüente ao da última contribuição com
valor igual ou superior ao salário mínimo. Houve, nesse caso nítida
antecipação do período de graça do décimo sexto dia do mês subse-
quente para o primeiro. (HORVATH JUNIOR, 2020, p. 260).
A alteração não se limitou em antecipar o marco inicial do
período de graça da segurada contribuinte individual que deixou
de verter recolhimentos.
Houve também, alteração no que se refere ao valor dos re-
colhimentos. Essa alteração atinge todos os tipos de segurado in-
distintamente. Segundo o § 8º do diploma legal, as contribuições
devem atingir o valor mínimo mensal do salário de contribuição
sob pena de não serem computadas para nenhum fim. Naquilo
que diz respeito às contribuintes individuais, a previsão já havia
desde 2003, com a edição da Lei. 10.666. Para segurados empre-
gados, domésticos e avulsos, a exigência somente poderá ser efe-
tivada a partir da entrada em vigor da EC 103/2019. (HORVATH
JUNIOR, 2020, p. 260).
Neste caso, as seguradas que não aferirem renda suficien-
te, devem proceder à complementação, ao agrupamento, ou apro-
veitamento de competências.
A extensão do período de graça e a sua prorrogação encon-
tra-se sistematizada no artigo 15 da Lei 8.213/91 in verbis:

Art. 15. Mantém a qualidade de segurado,


independentemente de contribuições:
I - sem limite de prazo, quem está em gozo
de benefício, exceto do auxílio-acidente;
II - até 12 (doze) meses após a cessação
das contribuições, o segurado que deixar de
exercer atividade remunerada abrangida pela
Previdência Social ou estiver suspenso ou
licenciado sem remuneração;
III - até 12 (doze) meses após cessar a
122

segregação, o segurado acometido de doença


de segregação compulsória;
IV - até 12 (doze) meses após o livramento, o
segurado retido ou recluso;
V - até 3 (três) meses após o licenciamento,
o segurado incorporado às Forças Armadas
para prestar serviço militar;
VI - até 6 (seis) meses após a cessação das
contribuições, o segurado facultativo.
§ 1º O prazo do inciso II será prorrogado para
até 24 (vinte e quatro) meses se o segurado
já tiver pago mais de 120 (cento e vinte)
contribuições mensais sem interrupção que
acarrete a perda da qualidade de segurado.
§ 2º Os prazos do inciso II ou do § 1º serão
acrescidos de 12 (doze) meses para o segurado
desempregado, desde que comprovada essa
situação pelo registro no órgão próprio do
Ministério do Trabalho e da Previdência
Social.
§ 3º Durante os prazos deste artigo, o
segurado conserva todos os seus direitos
perante a Previdência Social.
§ 4º A perda da qualidade de segurado ocorrerá
no dia seguinte ao do término do prazo
fixado no Plano de Custeio da Seguridade
Social para recolhimento da contribuição
referente ao mês imediatamente posterior ao
do final dos prazos fixados neste artigo e seus
parágrafos.

Todavia, alguns questionamentos desafiam a jurisprudên-


cia, como por exemplo, a questão da prorrogação do período de
graça do segurado desempregado. Para o benefício de salário ma-
ternidade, é necessário atentar que a segurada deve obrigatoria-
mente comprovar que está inserida no sistema do Serviço Nacio-
nal de Emprego da Secretaria Especial do Trabalho2.
Também é possível a comprovação num dos Programas

2
Disponível em: https://empregabrasil.mte.gov.br/. Acesso em 27 out.
2020.
123

Estaduais e municipais de empregabilidade. No Estado de São


Paulo, o cadastramento pode ser realizado no Portal Emprega São
Paulo3.
Outra possibilidade se dá com a apresentação das anota-
ções de percepção de Seguro Desemprego. Neste caso, a compro-
vação relativa ao desemprego involuntário se aperfeiçoa, o que
estende o período de graça por 12 meses.
Essa regra possui duas exceções:
► A) Não é válida para os segurados que se desvincularem
de Regime Próprio de Previdência Social.
► B) Não é válida para os segurados facultativos, que não
são segurados obrigatórios da previdência social posto que suben-
tende-se que não exercem atividade remunerada.
Caso a segurada não consiga comprovar, na forma da lei
a situação de desemprego involuntário, é possível utilizar-se de
outros meios de prova, inclusive a testemunhal:

PROCESSO CIVIL. PREVIDENCIÁRIO.


AUXÍLIO DOENÇA. PERDA DA
QUALIDADE DE SEGURADO.
SITUAÇÃO DE DESEMPREGO. PROVA
TESTEMUNHAL. ANULAÇÃO DA
SENTENÇA.
1. Nos termos do Art. 15, II e § 2º, da Lei
8.213/91, mantém a qualidade até doze meses,
o segurado que deixar de exercer atividade
remunerada abrangida pela Previdência
Social, acrescendo-se a este prazo outros doze
meses, desde que comprovada a situação de
desemprego.
2. A ausência de registro em CTPS ou no
CNIS não basta para comprovar a alegada
situação de desemprego, conforme orientação
da Corte Superior de Justiça.
3. A Corte Superior de Justiça firmou

3
Disponível em: https://www.empregasaopaulo.sp.gov.br/imoweb/.
Acesso em 27 out. 2020.
124

entendimento no sentido de que, não sendo


o registro da situação de desemprego no
órgão próprio do Ministério do Trabalho e
da Previdência So-cial o único meio hábil a
comprová-la, deve ser dada oportunidade à
parte autora para que comprove a alegação
por outros meios de prova, inclusive a
testemunhal.
4. Prudente dessa forma, oportunizar a
realização de prova oral com oitiva de
testemunhas, resguardando-se à autoria
produzir as provas constitutivas de seu
direito - o que a põe no processo em idêntico
patamar da ampla defesa assegurada ao réu, e
o devido processo legal, a rechaçar qualquer
nulidade processual, assegurando-se desta
forma eventual direito.
5. Sentença anulada, determinando-se
o retorno dos autos ao Juízo de origem
para a produção da prova testemunhal,
prosseguindo-se o feito em seus ulteriores
termos.
6. Apelação prejudicada.
(TRF 3ª Região, 10ª Turma, ApCiv
- APELAÇÃO CÍVEL - 5477470-
44.2019.4.03.9999, Rel. Desembargador
Federal PAULO OCTAVIO BAPTISTA
PEREIRA, julgado em 30/09/2020, e - DJF3
Judicial 1 DATA: 06/10/2020)

Neste sentido, é também importante destacar o teor da


Súmula 27 da TNU: “A ausência de registro em órgão do Minis-
tério do Trabalho não impede a comprovação do desemprego por
outros meios admitidos em Direito.”

DA PERCEPÇÃO DO SALÁRIO MATERNIDADE E SE-


GURO DESEMPREGO

A norma proíbe a percepção acumulada de salário mater-


nidade com seguro desemprego. O artigo 124 § único da Lei
125

8.213/91 veda o recebimento conjunto do seguro desemprego


com qualquer outro benefício de prestação continuada da Previ-
dência Social com exceção da Pensão por Morte e Auxílio Aci-
dente.
Ocorre que o prazo para postular o seguro desemprego é de
até 120 dias após o sétimo dia da rescisão do contrato de trabalho.
Excepcionalmente, enquanto durar a situação de calami-
dade pública em razão da pandemia de COVID 19, reconhecida
pelo Decreto nº 6, de 20 de março de 2020, o prazo para a pos-
tulação do seguro desemprego previsto no artigo 14 da Resolu-
ção CODEFAT nº 467/2005 (120 dias) e na Lei Complementar
150/2015 (90 dias) para as trabalhadoras domésticas encontram-
-se prorrogados.
As situações de excepcionalidade foram recepcionadas na
Resolução CODEFAT nº 873/2020. (BRASIL, 2020).
Da mesma forma, havia previsão de decadência para o
exercício do direito à percepção do salário maternidade de cento
e oitenta dias da ocorrência do parto ou da adoção, em razão da
redação dada pela MP 871/19 ao artigo 71-D da Lei 8.213/91. No
entanto, essa regra não sobreviveu à conversão da MP.
A única regra que subsiste é a necessidade do afastamento
do trabalho, o que torna possível concluir que, muito embora seja
vedado o recebimento conjunto de seguro desemprego e salário
maternidade, não há óbice para a percepção do primeiro e, findo
este, postular-se o salário maternidade.

DO REINGRESSO AO SISTEMA

Infelizmente, vivenciamos um período de grandes dificul-


dades naquilo que diz respeito aos direitos sociais no Brasil, con-
forme delimitamos na introdução deste trabalho.
Temos altíssimas taxas de desemprego e trabalho precari-
zado, vivenciamos uma crise sem precedentes que foi avolumada
pela pandemia mundial de COVID 19, que atingiu nosso sistema
126

de seguridade social em seu pior momento, em que a arrecadação


tem caído, os investimentos diminuídos e direitos restringidos.
É importante compreender sobretudo que a arrecadação
aumenta quanto maior for a taxa de desenvolvimento econômico,
de empregabilidade, de distribuição de renda.
Inegavelmente no Brasil, se tomou o rumo inverso, o que
aprofundou ainda mais a crise – se é que pode-se chamar assim
uma situação tão duradoura- num processo absolutamente autofá-
gico de deterioração do véu protetivo da seguridade social.
Isso afastou muitos segurados da regularidade contributi-
va, seja pelo incremento das jornadas parciais ou intermitentes,
seja pela imensa dificuldade em se colocar no mercado formal de
trabalho, seja pela dificuldade em prover o sustento da família.
Desta forma, é comum que o período de graça se encerre
sem que o segurado ou segurada tenha reunido condições de
voltar a recolher a contribuição social que lhe garante a qualidade
de segurado.
Quando ocorre a perda da qualidade de segurada, é neces-
sário retomar as contribuições por determinado período de tempo
para voltar a fazer jus às prestações da previdência social. Con-
forme já explicitado no item 3.0 desse capítulo, há ainda a neces-
sidade de observância da regularidade das contribuições em razão
das novas disposições trazidas pelo Decreto 10.410/20.
Devem ser em valor superior ao limite mínimo mensal
e devem ser recolhidos tempestivamente quando o responsável
pelo recolhimento é o próprio segurado ou segurada.
A EC 103/2019, artigo 195, §14 dispõe expressamente
que “as competências com recolhimentos abaixo da contribuição
mínima mensal ao serão reconhecidas como tempo de contribui-
ção”.
Segundo Kertzman e Horiuchi (2020, p. 112), o Decreto
10.410/20,

ao dispor que esses recolhimentos não


serão aceitos como tempo de contribuição,
como carência, e para fins da aquisição e
127

manutenção da qualidade de segurado, o


regulamento ultrapassa o texto da Emenda,
fazendo interpretação extensiva, limitando
direito que a emenda não limitou.

Outrossim, naquilo que se refere à reaquisição da qualida-


de de segurado, o Decreto 10.410/20 incorporou entendimento já
consolidado desde a edição da MP 871/19 que foi convertido na
Lei 13.457/19, sobre a necessidade de se contribuir por metade da
carência necessária para a concessão dos benefícios por incapaci-
dade, salário maternidade e auxílio reclusão, conforme o teor do
artigo 27-A.
O entendimento compreende inclusive, para efeito de
aproveitamento das contribuições vertidas em período anterior à
perda da qualidade de segurado.

CONCLUSÃO

Em diversos aspectos, o salário maternidade sofreu mo-


dificações, sobretudo com relação à interpretação ampliativa do
instituto para inclusão das mais variadas configurações familia-
res.
Sob outro o Decreto 10.410/20 que alterou a redação do
Decreto 3.048/99, ao disciplinar novas regras relacionadas às va-
lidades das contribuições para fins de carência, período de graça,
normas para reingresso, aquisição e manutenção da qualidade de
segurado, tornou o benefício mais inacessível.
Contudo tais regras são mais restritivas que o próprio texto
da EC 103/2019 que certamente suscitará discussão sobre a sua
constitucionalidade.
128

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130
131

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA
LEGALIDADE E À PROTEÇÃO
CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE HUMANA
PELA EXCLUSÃO DO CÔMPUTO COMO
TEMPO ESPECIUAL DOS PERÍODOS EM
GOZO DE BENEFÍCIOS POR INCAPACIDADE
ADVINDA DO DECRETO 10.410/2020

Jesus Nagib Beschizza Feres1

O presente artigo tem por objetivo apontar a violação ao


princípio da legalidade e à proteção constitucional da dignida-
de da pessoa humana perpetrada pelo Decreto nº 10.410/2020,
que ao conferir nova redação ao parágrafo único do artigo 65 do
Decreto nº 3.048/1999, acabou por manter a exclusão da possibi-
lidade de cômputo, como especial, do período em que o segurado
esteve em gozo de benefício por incapacidade não acidentário,
bem como retirou do rol dos períodos de afastamento computá-
veis como especial o interregno no qual o obreiro recebeu benefí-
cio por incapacidade de natureza acidentária.
Sabe-se que a Aposentadoria Especial tem como princi-
pal objetivo retirar o obreiro de forma antecipada e um ambiente

1
Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Ma-
rília – UNIVEM. Pós-graduado em Direito Previdenciário dos Servi-
dores Públicos pelo IEPREV (2018). Pós-graduado em Direito Previ-
denciário pela Uniderp (2012). Graduado em Direito pelo UNIFIPA
(2008). Professor de cursos de extensão e pós-graduação em Direito
Previdenciário. Palestrante do Departamento de Cultura e Eventos
da OAB/SP. Coordenador da Escola Superior da Advocacia da 41ª
Subseção da OAB/SP. Coordenador Regional do IEPREV. Diretor de
Acompanhamento da Legislação Previdenciária do IEPREV. Membro
efetivo da Comissão de Direito Previdenciário da OAB/SP. Advogado.
Email: jesus@feresadvogados.com.
132

nocivo, como forma de prevenir o seu adoecimento, ou até mesmo


o seu óbito. E retirar a possibilidade de cômputo como tempo es-
pecial do período em gozo de benefício por incapacidade, seja
ele de natureza acidentária ou previdenciária, acaba-se por tornar
ainda mais distante a concretização da proteção à saúde e à vida
visada pelo benefício especial.
Inicialmente serão trazidos alguns pontos indispensáveis
acerca da aposentadoria especial, especificamente no que diz
respeito à sua conceituação, natureza e requisitos, seja antes ou
depois da reforma da previdência social.
Em um segundo momento será objeto de análise os pe-
ríodos de afastamento considerados como tempo especial pelo
Decreto nº 3.048/1999, bem como pela Instrução Normativa
INSS nº 77/2015. Tratar-se-á, de igual modo, do tema 998 do Su-
perior Tribunal, em cuja tese restou atestada a ilegalidade da dis-
posição então contida no parágrafo único do artigo 65 do Decreto
nº 3.048/1999 (com redação anterior ao Decreto nº 10.410/2020).
Por fim, será objeto de estudo a violação ao princípio
da legalidade contida na novel redação do parágrafo único do
artigo 65 do Decreto nº 3.048/1999, conferida pelo Decreto nº
10.410/2020, bem como a afronta que tal dispositivo regulamen-
tador apresentou à proteção constitucional da dignidade da pessoa
humana.

APOSENTADORIA ESPECIAL

A aposentadoria especial constitui um benefício previden-


ciário de caráter preventivo, expressamente previsto em nossa
Carta Magna, em seu artigo 201, §1º, criado a fim de proteger o
segurado que laborou durante o período previsto em lei em con-
dições nocivas, retirando-lhe da atividade laborativa de forma an-
tecipada, evitando, assim, a ocorrência de sua incapacidade ou até
mesmo o seu óbito.
A natureza preventiva da aposentadoria especial restou
133

demonstrada, de forma magistral, pelo jurista Diego Henrique


Schuster ao discorrer sobre a teoria do risco em sua obra Apo-
sentadoria Especial: entre o Princípio da Precaução e da Proteção
Social:

É por meio do benefício da aposentadoria


especial que se percebe os desafios e
possibilidades da gestão dos riscos (doenças
e acidentes ocupacionais) aos quais estão
submetidos os trabalhadores/segurados,
na medida em que a redução do tempo de
serviço pode evitar a efetiva incapacidade
do trabalhador, seja em razão daquelas
doenças com longos períodos de latência,
que tem como causa a contínua absorção
(inalação pelas vias respiratórias) ou
contato com agentes químicos, tornando
grande o intervalo de tempo entre a causa e
manifestação de qualquer efeito prejudicial,
seja em razão dos acidentes de trabalho, que
acontecem em tempo real, no espaço de um
instante (explosão de uma caldeira, queda de
um andaime, eletrocução em sistema de alta
voltagem etc). E isso, porque prolongar o
tempo de trabalho pode causar danos e, com
muito mais razão, agravá-los, bem assim
aumentar a probabilidade de o trabalhador
sofrer acidentes. (SCHUSTER, 2016, p. 157).

No âmbito infraconstitucional o benefício previdenciário


ora em tela atualmente possui previsão na Lei nº 8.213/91 (artigo
57 e seguintes), no Decreto nº 3.048/992 (artigo 64 e seguintes),
e por fim, na Instrução Normativa INSS/PRES Nº 77/15 (artigo
246 e seguintes).
Nos termos do artigo 57, caput, da Lei nº 8.213/91, o
citado benefício previdenciário será devido, cumprida a carência
de 180 (cento e oitenta) contribuições mensais, ao segurado que
demonstrar o efetivo labor em condições prejudiciais à saúde ou

2
Regulamento da Previdência Social.
134

à integridade física, por um período equivalente a 15 (quinze), 20


(vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, a depender do agente nocivo a
que o mesmo estiver exposto durante a sua jornada laboral.
Com a reforma da Previdência, efetivada através da
Emenda Constitucional nº103/2019, o benefício de aposentadoria
especial recebeu graves mudanças em seus requisitos concessó-
rios, perdendo, em grande monta, o seu real e inicial objetivo, que
era evitar o adoecimento do trabalhador.
De acordo com o novo texto conferido ao art. 201, § 1º,
da Constituição Federal de 1988, poderão ser beneficiários da
aposentadoria especial somente os segurados que tenham desem-
penhado suas atividades com efetiva exposição a agentes quími-
cos, físicos e biológicos nocivos à saúde, ou associação de tais
agentes, vedando, expressamente, o enquadramento por categoria
profissional. A novel redação do citado dispositivo constitucional
além de trazer a necessidade da efetividade da exposição a agentes
agressivos para fins de reconhecimento do tempo especial, delegar
à lei complementar, como regra permanente, a fixação de idade
mínima, trouxe também a retirada do termo “integridade física”
(que dava ensejo à caracterização da especialidade das atividades
perigosas).
Como regra transitória, até que não seja publicada a res-
pectiva lei complementar, a Emenda Constitucional nº 103/2019
instituiu idade mínima em seu art. 19, §1º, inciso I, como novo
requisito de acesso à aposentadoria especial aos segurados filia-
dos ao RGPS a partir de sua entrada em vigor. A idade mínima
trazida com a reforma da Previdência irá variar em conformidade
com tempo de trabalho especial exigido, a depender da atividade
desempenhada: a) 55 anos de idade, quando se tratar de atividade
especial de 15 anos de contribuição; b) 58 anos de idade, em se
tratando de atividade especial de 20 anos de contribuição; ou c)
60 anos, no caso de atividade especial de 25 anos de contribuição.
Além da regra transitória, que diz respeito aos novos segu-
rados do regime geral de previdência social, o art. 21 da Emenda
Constitucional nº 103/2019 trouxe uma regra de transição, para
135

fins de acesso à aposentadoria especial, sem limite etário, àqueles


que já estavam filiados ao RGPS quando da entrada em vigor da
nova previdência. Para ter acesso a tal regra de transição, o se-
gurado terá somar a seguinte pontuação, a depender do grupo de
agentes nocivos ao qual estiver exposto: a) 66 pontos (15 anos de
efetiva exposição); b) 76 pontos (20 anos de efetiva exposição) e;
c) 86 pontos (25 anos de efetiva exposição).
No que diz respeito aos agentes nocivos, bem como às ca-
tegorias profissionais que até 28.04.1995 davam ensejo ao enqua-
dramento do tempo como especial por mera presunção, existem
em nosso ordenamento jurídico os Quadros anexos dos Decre-
tos nº 53.831/1964, 83.080/1979, 2.172/1997 e 3.048/1999, os
quais deverão ser utilizados como parâmetro para fins de reco-
nhecimento do tempo especial de acordo com a época em que foi
exercido o labor em condições especiais.3 Contudo, mesmo que o
agente nocivo não esteja inscrito em nenhum dos decretos men-
cionados, ainda assim será possível obter o reconhecimento de
sua nocividade para fins previdenciários, conforme entendimento
materializado pela súmula nº 1984, do extinto Tribunal Federal de
Recursos.
De acordo com os ensinamentos de Adriane Bramante de
Castro Ladenthin, referida espécie de benefício previdenciário
não deve ser considerada como espécie do gênero aposentadoria
por tempo de contribuição:

3
Em se tratando da comprovação do tempo de trabalho especial, já
se encontra sedimentado em nossos Tribunais o posicionamento de
que deverá ser aplicada, em obediência ao princípio tempus regit
actum e ao Direito Adquirido, a legislação em vigor no momento
do efetivo desempenho da atividade laborativa (STJ – AgRg-REsp
200700301749 – (924827 SP) – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJU
06.08.2007).
4
Súmula nº 198 do TFR: Atendidos os demais requisitos, é devida
a aposentadoria especial, se perícia judicial constata que a atividade
exercida pelo segurado é perigosa, insalubre ou penosa, mesmo não
inscrita em Regulamento.
136

Esta modalidade de aposentadoria difere das


demais aposentadorias e com elas não se
confunde.
Há quem diga que aposentadoria especial
seria espécie do gênero aposentadoria
por tempo de contribuição. Divirjo desse
entendimento. Aposentadoria especial é
um benefício autônomo e seu conceito
não se encontra atrelado a nenhum outro
benefício previdenciário. A aposentadoria
especial possui suas próprias características,
diferenciadas das demais prestações da
previdência Social. (LADENTHIN, 2018, p.
29).

Feitos os apontamentos gerais acerca do benefício de apo-


sentadoria especial, serão discutidos nos tópicos subsequentes as
especificidades inerentes ao cômputo do tempo em gozo de bene-
fício por incapacidade como tempo especial, seja ele de natureza
acidentária ou não, bem como a inequívoca violação ao princípio
da legalidade decorrente a exclusão de tal possibilidade através
do Decreto 10.410/2020.

PERÍODOS DE AFASTAMENTOS COMPUTADOS


COMO TEMPO ESPECIAL

Além dos períodos em que o segurado laborou, seja no


exercício de atividades consideradas como presumidamente
nocivas5, seja nas hipóteses em que houve a efetiva exposição
a agentes nocivos, existem períodos de afastamentos nos quais,
embora não tenha ocorrido o labor, as normas de regência enten-
deram por bem considera-los como tempo especial.
Nos termos do artigo 65, parágrafo único, do Decreto nº

5
Referida possibilidade persistiu em nosso ordenamento até
28.04.1995. Com o advento da Lei nº 9.032/95 restou extinto o enqua-
dramento por categoria profissional.
137

3.048/99, (redação conferida pelo Decreto nº 4.882/2003), serão


considerados como tempo especial, desde que à época do afasta-
mento o segurado estivesse desempenhando atividades considera-
das pela legislação como nocivas à saúde ou integridade física, os
períodos de descanso determinados pelas normas trabalhistas, in-
clusive férias, bem como o período de recebimento de benefícios
por incapacidade acidentários e salário maternidade. Vejamos:

Art. 65. Considera-se tempo de trabalho


permanente aquele que é exercido de forma
não ocasional nem intermitente, no qual a
exposição do empregado, do trabalhador
avulso ou do cooperado ao agente nocivo
seja indissociável da produção do bem ou da
prestação do serviço.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto
no  caput  aos períodos de descanso
determinados pela legislação trabalhista,
inclusive férias, aos de afastamento
decorrentes de gozo de benefícios de auxílio-
doença ou aposentadoria por invalidez
acidentários, bem como aos de percepção
de salário-maternidade, desde que, à data do
afastamento, o segurado estivesse exposto
aos fatores de risco de que trata o art. 68.
(NR).

Contudo, a norma acima analisada deixou de fora do rol


dos períodos de afastamentos computados como tempo especial
os interregnos em que o segurado esteve em gozo do benefício
por incapacidade de natureza comum (B31; B32), conforme ex-
pressamente previsto em seu parágrafo único. Referida exclusão
constou, de igual modo, no parágrafo único do artigo 291, da IN
77/2015:

Art. 291. São considerados para caracterização


de atividade exercida em condições especiais
os períodos de descanso determinados pela
legislação trabalhista, inclusive férias, os de
138

afastamento decorrentes de gozo de benefícios


de auxílio-doença ou aposentadoria por
invalidez acidentários, bem como os de
recebimento de salário maternidade, desde
que, à data do afastamento, o segurado
estivesse exercendo atividade considerada
especial.
Parágrafo único. Os períodos de afastamento
decorrentes de gozo de benefício por
incapacidade de espécie não acidentária não
serão considerados como sendo de trabalho
sob condições especiais.

A exclusão do tempo em gozo de benefícios por incapa-


cidade não acidentários do rol dos períodos computados como
tempo especial foi objeto de análise por parte do Superior Tribu-
nal de Justiça quando do julgamento do REsp 1759098 / RS (ad-
mitido como representativo da controvérsia), sendo considerado
pelo colegiado que a distinção feita pelo Decreto nº 3.048/99 às
duas modalidades de afastamento acarretou nítida afronta ao prin-
cípio da legalidade.
Ao concluir o julgamento do Recurso Especial acima, a
Primeira Seção do STJ fixou a seguinte tese, a qual foi cadastrada
no sistema de repetitivos sob o tema 9986:
O Segurado que exerce atividades em condições especiais,
quando em gozo de auxílio-doença, seja acidentário ou previden-
ciário, faz jus ao cômputo desse mesmo período como tempo de
serviço especial.
Será trazido abaixo, para melhor compreensão da matéria,
a ementa do recurso especial afetado como representativo da con-
trovérsia:

6
Disponível em: http://www.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/
pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&sg_classe=REs-
p&num_processo_classe=1759098. Acesso em: 23 ago. 2020.
139

PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPE-


CIAL ADMITIDO COMO REPRESEN-
TATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART.
1.036 DO CÓDIGO FUX. POSSIBILI-
DADE DE CÔMPUTO DO TEMPO DE
SERVIÇO ESPECIAL, PARA FINS DE
APOSENTADORIA, PRESTADO NO PE-
RÍODO EM QUE O SEGURADO ESTE-
VE EM GOZO DE AUXÍLIO-DOENÇA
DE NATUREZA NÃO ACIDENTÁRIA.
PARECER MINISTERIAL PELO PRO-
VIMENTO PARCIAL DO RECURSO.
RECURSO ESPECIAL DO INSS A QUE
SE NEGA PROVIMENTO.
1. Até a edição do Decreto 3.048/1999
inexistia na legislação qualquer restrição
ao cômputo do tempo de benefício por
incapacidade não acidentário para fins
de conversão de tempo especial. Assim,
comprovada a exposição do Segurado a
condições especiais que prejudicassem a
sua saúde e a integridade física, na forma
exigida pela legislação, reconhecer-se-ia a
especialidade pelo período de afastamento
em que o Segurado permanecesse em
gozo de auxílio-doença, seja este acidentário
ou previdenciário.
2. A partir da alteração então promovida
pelo Decreto 4.882/2003, nas hipóteses
em que o Segurado fosse afastado de suas
atividades habituais especiais por motivos de
auxílio-doença não acidentário, o período de
afastamento seria computado como tempo
de atividade comum.
3. A justificativa para tal distinção era
o fato de que, nos períodos de afastamento
em razão de benefício não acidentário, não
estaria o Segurado exposto a qualquer
agente nocivo, o que impossibilitaria a
contagem de tal período como tempo de
serviço especial.
4. Contudo, a legislação continuou a
permitir o cômputo, como atividade especial,
de períodos em que o Segurado estivesse em
140

gozo de salário-maternidade e férias, por


exemplo, afastamentos esses que também
suspendem o seu contrato de trabalho,
tal como ocorre com o auxílio-doença
não acidentário, e retiram o Trabalhador
da exposição aos agentes nocivos. Isso
denota irracionalidade na limitação imposta
pelo decreto regulamentar, afrontando
as premissas da interpretação das regras
de Direito Previdenciário, que prima pela
expansão da proteção preventiva ao
Segurado e pela máxima eficácia de suas
salvaguardas jurídicas e judiciais.
5. Não se pode esperar do poder judicial
qualquer interpretação jurídica que venha a
restringir ou prejudicar o plexo de garantias
das pessoas, com destaque para aquelas que
reivindicam legítima proteção do Direito
Previdenciário. Pelo contrário, o esperável
da atividade judicante é que restaure visão
humanística do Direito, que foi destruída
pelo positivismo jurídico.
5. Não se pode esperar do poder judicial
qualquer interpretação jurídica que ve-nha
a restringir ou prejudicar o plexo de garantias
das pessoas, com destaque para aquelas que
reivindicam legítima proteção do Direito
Previdenciário. Pelo contrário, o esperável
da atividade judicante é que restaure visão
humanística do Direito, que foi destruída
pelo posi-tivismo jurídico.
6. Deve-se levar em conta que a Lei de
Benefícios não traz qualquer distinção quanto
aos benefícios auxílio-doença acidentário
ou previdenciário. Por outro lado, a Lei
9.032/1995 ampliou a aproximação da
natureza jurídica dos dois institutos e o § 6o.
do artigo 57 da Lei 8.213/1991 determinou
expressamente que o direito ao benefício
previdenciário da aposentadoria especial
será financiado com os recursos provenientes
da contribuição deque trata o art. 22, II da
Lei 8.212/1991, cujas alíquotas são acrescidas
conforme a atividade exercida pelo Segurado
141

a serviço da empresa, alíquotas, estas, que


são recolhidas independentemente de estar
ou não o Trabalhador em gozo de benefício.
7. Note-se que o custeio do tempo de
contribuição especial se dá por intermédio de
fonte que não é diretamente relacionada à
natureza dada ao benefício por incapacidade
concedido ao Segurado, mas sim quanto
ao grau preponderante de risco existente
no local de trabalho deste, o que importa
concluir que, estando ou não afastado por
benefício movido por acidente do trabalho,
o Segurado exposto a condições nocivas à
sua saúde promove a ocorrência do fato
gerador
da contribuição previdenciária destinada
ao custeio do benefício de aposentadoria
especial.
8. Tais ponderações, permitem concluir que
o Decreto 4.882/2003 extrapolou o limite
do poder regulamentar administrativo,
restringindo ilegalmente a proteção exclu-
siva dada pela Previdência Social ao
trabalhador sujeito a condições especiais que
prejudi-quem a sua saúde ou a sua integridade
física.
9. Impõe-se reconhecer que o Segurado
faz jus à percepção de benefício por
incapacidade temporária, independente de sua
natureza, sem que seu recebimento implique
em qualquer prejuízo na contagem de seu
tempo de atividade especial, o que permite a
fixação da seguinte tese: O Segurado que
exerce atividades em condições especiais,
quando em gozo de auxílio-doença, seja
acidentário ou previdenciário, faz jus ao
cômputo desse mesmo período como tempo
de serviço especial.
10. Recurso especial do INSS a que se nega
provimento.
(REsp 1759098 / RS, S1 - PRIMEIRA
SEÇÃO, Rel. Ministro NAPOLEÃO
NUNES MAIA FILHO, DJe 01/08/2019).
(grifo nosso).
142

Embora tenha sido corrigida pelo STJ essa nítida vio-


lação ao princípio da legalidade, com a edição do Decreto nº
10.410/2020, o cenário previdenciário deparou-se com outra
afronta ao citado princípio, e dessa vez em um grau ainda maior,
haja vista que o novel Decreto, ao conferir nova redação ao pará-
grafo único do artigo 65 do Decreto nº 3.048/99, não só manteve
a exclusão do computo como tempo especial do período em gozo
de benefícios por incapacidade de natureza previdenciária, como
também retirou das hipóteses o tempo em que o segurado esteve
em gozo de benefícios por incapacidade acidentários.
Veja-se, conforme transcrição abaixo, que a nova redação
do parágrafo único do artigo 65 não fez menção a qualquer espécie
de benefício por incapacidade:

Art. 65.  [...]
Parágrafo único. Aplica-se o disposto
no  caput  aos períodos de descanso
determinados pela legislação trabalhista,
inclusive ao período de férias, e aos de
percepção de salário-maternidade, desde que,
à data do afastamento, o segurado estivesse
exposto aos fatores de risco de que trata o art.
68. (Redação dada pelo Decreto nº 10.410, de
2020).

Certamente o tema será novamente levado à discussão


no âmbito das nossas Cortes Superiores, e espera-se que, assim
como fixado no Tema 998, seja novamente declarada a violação
ao princípio da legalidade por parte da nova redação conferida
ao parágrafo único do artigo 65, do Decreto 3.048/99, pois assim
como ocorreu com a limitação advinda do Decreto nº 4.882/2003,
a qual deixou de fora do rol dos períodos de afastamento compu-
tados como tempo especial o interregno em que o segurado esteve
em gozo de auxílio doença não acidentário, este novel Decreto
traz um retrocesso social de maior amplitude ao retirar ambas a
categorias de auxílio doença do já mencionado rol.
143

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE POR


EXTRAPOLAÇÃO DA FUNÇÃO REGULATÓRIA DO
DECRETO 10.410/2020

No que diz respeito à figura do Decreto regulamentar, in-


dispensável se faz trazer no presente tópico qual a finalidade da
citada norma jurídica.
De acordo com os ensinamentos de Hely Lopes Meirelles:

Decreto regulamentar ou de execução: é o que


visa a explicar a lei e facilitar sua execução.
aclarando seus mandamentos e orientando
sua aplicação. Tal decreto comumente
aprova, em texto à parte, o regulamento a que
se refere.
[...]
Regulamentos – Os regulamentos são atos
administrativos, postos em vigência por
decreto, para especificar os mandamentos
da lei ou prover situações ainda não
disciplinadas por lei. Desta conceituação
ressaltam os caracteres marcantes do
regulamento: ato administrativo (e não
legislativo); ato explicativo ou supletivo da
lei: ato hierarquicamente inferior à lei [...].
(MEIRELLES, 1998, p. 160, grifo nosso).

No mesmo sentido está a conceituação trazida pelo Cons-


titucionalista José Afonso da Silva acerca do Decreto Regula-
mentar:

Chama-se, com efeito, ‘regulamento’, o


decreto que consigna um conjunto ordenado
de normas destinadas à melhor execução da
lei ,ou ao melhor exercício de uma atribuição
ou faculdade consagrada expressamente na
Constituição. (SILVA, 2006, p. 484, grifo
nosso).

Extrai-se da leitura das lições acima reproduzidas, que o


Decreto Regulamentar, espécie de ato administrativo, tem por
144

finalidade explicar, tornar fácil a execução da lei objeto de sua


regulamentação.
De modo que, caso haja a extrapolação/excesso da função
regulatória do Decreto, criando, por exemplo, restrições de acesso
aos benefícios previdenciários, restará configurada nítida afronta
ao princípio da legalidade.
Com efeito, seja a Lei nº 8.213/91, ou mesmo a CF/88,
ao tratarem dos períodos computados como tempo especial, além
daqueles de efetivo labor em tal condição, não apresentaram qual-
quer restrição quanto à consideração do interregno em que o se-
gurado esteve em gozo de benefícios por incapacidade, sejam eles
de natureza acidentária ou previdenciária.
E tal extrapolação/excesso da função regulatória do
Decreto, ao inovar a ordem jurídica com restrições de acesso ao
benefício previdenciário ora em tela, configura nítida afronta ao
princípio da legalidade, conforme nos ensina Hely Lopes Mei-
relles:

Como ato inferior à lei, o regulamento não pode


contrariá-la ou ir além do que ela permite. No
que o regulamento infringir ou extravasar da
lei, é irrito e nulo por caracterizar situação
de ilegalidade. (MEIRELLES, p. 160, grifo
nosso).

Vejamos, de igual modo, as lições de Celso Antônio Ban-


deira de Mello acerca da indiscutível diferenciação das funções
atribuídas às leis e aos decretos:

No Brasil, entre a lei e o regulamento não


existe diferença apenas quanto à origem. Não
é tão só o fato de uma provir do Legislativo e
outro do Executivo o que os aparta. Também
não é apenas a posição de supremacia da lei
sobre o regulamento que os discrimina. Esta
característica faz com que o regulamento
não possa contrariar a lei e firma seu caráter
subordinado com relação a ela, mas não basta
para esgotar a disseptação entre ambos no
145

Direito brasileiro. (MELLO, 2019, p. 352).

Há outro ponto diferencial e que possui relevo máximo e


consistente em que – conforme averbação precisa do Prof. O. A.
Bandeira de Mello – só a lei inova em caráter inicial na ordem
jurídica.
A distinção deles segundo a matéria, diz o citado mestre,
“está em que a lei inova originariamente na ordem jurídica,
enquanto o regulamento não o altera [...]. É fonte primária do
Direito, ao passo que o regulamento é fonte secundária, inferior”.
Percebe-se, que além de violar o princípio da legalidade,
quando o Decreto ultrapassar os seus limites regulamentares,
haverá, de igual modo, abuso de poder e usurpação de compe-
tência. E tais violações mostram-se presentes no dispositivo re-
gulamentar ora em tela, pois o mesmo, em que pese não possuir
tal competência/atribuição, acabou criando condição limitadora
ao retirar do rol dos períodos de afastamento computados como
tempo especial os interregnos nos quais o segurado esteve em
gozo de benefícios por incapacidade, independentemente de sua
natureza acidentária ou previdenciária.

DA VIOLAÇÃO À PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA


DIGNIDADE HUMANA

Ao dificultar o acesso do segurado ao seu benefício previ-


denciário de natureza preventiva e alimentar, com a inclusão de
dispositivo limitador até então inexistente em nosso ordenamento
jurídico, acaba-se feriando frontalmente, de igual modo, o princí-
pio da dignidade da pessoa, pois acaba tornando ainda mais dis-
tante a busca pela aposentação antecipada, cujo objetivo primevo
é justamente prevenir o adoecimento ou até mesmo o óbito do
segurado que exerce as suas atividades laborativas em condições
nocivas à saúde ou à integridade física.
A República Federativa do Brasil tem como fundamentos
basilares, conforme previsão contida no artigo 1º, da Constituição
Federal de 1988, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa
146

humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem


como o pluralismo político.
De acordo com os ensinamentos de José Afonso da Silva:

Dignidade da pessoa humana é um valor


supremo que atrai o conteúdo de todos os
direitos fundamentais do homem, desde o
direito à vida. “Concebido como referência
constitucional unificadora de todos os
direitos fundamentais [observam Gomes
Canotilho e Vital Moreira], o conceito de
dignidade da pessoas humana obriga a uma
densificação valorativa que tenha em conta o
seu amplo sentido normativo-constitucional
e não uma ideia qualquer apriorística do
homem, não podendo reduzir-se o sentido
da dignidade humana à defesa dos direitos
pessoais tradicionais, esquecendo-a nos
casos de direitos sociais, ou invoca-la para
construir ‘teoria do núcleo da personalidade’
individual, ignorando-a quando se trate de
garantir as bases da existência humana.
(SILVA, 2018, p. 107).

Segundo o pensamento kantiano, o status moral do ser


humano passou a ser utilizado como base para a atribuição da
dignidade aos indivíduos. Ao discorrer sobre o tema, Cunha
(CUNHA, 2005, p. 85-88) teceu os seguintes apontamentos:

O grande legado do pensamento kantiano para


a filosofia dos direitos humanos, contudo, é
a igualdade na atribuição da dignidade. Na
medida em que a liberdade no exercício da
razão prática é o único requisito para que um
ente se revista de dignidade, tem-se que a
condição humana é o suporte fático necessário
e suficiente à dignidade, independentemente
de qualquer tipo de reconhecimento social.
[...]
Para Kant, a dignidade é o valor de que se
reveste tudo aquilo que não tem preço, ou
seja, não é passível de ser substituído por
147

um equivalente. Dessa forma, a dignidade é


uma qualidade inerente aos seres humanos
enquanto entes morais: na medida em que
exercem de forma autônoma a sua razão
prática, os seres humanos constroem distintas
personalidades humanas, cada uma delas
absolutamente individual e insubstituível.
Consequentemente a dignidade é totalmente
inseparável da autonomia para o exercício da
razão prática, e é por esse motivo que apenas
os seres humanos revestem-se de dignidade.

De acordo com a teoria kantiana, cuja utilização tem por


objetivo tornar efetivos os direitos fundamentais, deverá sempre
haver uma reciprocidade de respeito entre os indivíduos.
Dentre os avanços doutrinários advindos do pensamen-
to concernentes à dignidade humana voltada ao status moral do
ser humano, foi a abominação de diversas práticas que tendiam
a “coisificar” o indivíduo. Vejamos, nesse sentido, as lições de
Comparato (2003, p. 21-22):

A escravidão acabou sendo universalmente


abolida, como instituto jurídico, somente
no século XX. Mas a concepção kantiana
da dignidade da pessoa como um fim em si
leva à condenação de muitas outras práticas
de aviltamento da pessoa a condição de coisa,
além da clássica escravidão, tais como o
engano de outem mediante falsas promessas,
ou os atentados cometidos contra os bens
alheios. Ademais, disse o filósofo, se o fim
natural de todos os homens é a realização
de sua própria felicidade, não basta agir de
modo a não prejudicar ninguém. Isto seria
uma máxima meramente negativa. Tratar a
humanidade como um fim em si implica o
dever de favorecer, tanto quanto possível, o
fim de outrem. Pois, sendo o sujeito um fim
em si mesmo, é preciso que os fins de outrem
sejam por mim considerados também como
meus.
148

A dignidade humana é considerada pela doutrina como a


bússola condutora de toda atuação, de Estado e Cidadania. Veja-se
que na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de
1948, a dignidade da pessoa humana teve tratamento expresso,
em seu artigo 1º, onde restou asseverado que “todos os homens
nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.
Em suma, todos os direitos fundamentais até hoje conquis-
tados, são oriundos de inúmeras e sofridas lutas de classes, as
quais buscavam torna efetiva a aplicação, o respeito, da dignidade
humana.
Ademais, o obstáculo trazido pela nova redação conferida
pelo Decreto nº 10.410/2020 ao parágrafo único do artigo 65 do
Decreto nº 3.048/1999 acaba resultando em uma situação de in-
justiça e causadora de pobreza e iniquidade social, isso sem falar
na perpetração de um indiscutível retrocesso social.
Segundo Marco Aurélio Serau Junior:

No Brasil ocorre um fenômeno singular


em termos de Seguridade Social e, em
particular, de Previdência Social. Produz-se
um retrocesso social indireto ou que não é
formal.
Promove-se a diminuição no alcance
dos direitos sociais (previdenciários em
particular) não a partir de sua supressão
direta e expressa, mas através do gradual
enrijecimento dos requisitos necessários para
obtenção dos benefícios previdenciários, em
particular as regras de prova das situações de
vida que produzem reflexo previdenciário.
Exemplo dessa afirmação pode ser encontrado
na Medida Provisória 871/2019, que passou a
exigir comprovação e cadastramento formal
dos segurados especiais (trabalhadores
rurais) para fins de obtenção dos benefícios
previdenciários (arts. 38-A e 38-B, da Lei
8.213/91).
No mesmo rumo a exigência, igualmente
trazida pela Medida Provisória 871/2019,
149

no sentido de prova formal da união estável,


sendo vedada a prova exclusivamente
testemunhal, o que certamente dificulta, em
inúmeros casos, a obtenção do benefício da
pensão por morte. (SERAU JUNIOR, 2019,
p. 103-104).

De modo que, não restam dúvidas de que a restrição


contida tanto no Decreto nº 3.048/99, com a redação conferida
pelo novel Decreto nº 10.410/2020, como na IN 77/2015, cons-
titui indiscutível afronta ao princípio da legalidade, bem como a
um dos pilares da nossa Constituição Federal, que é a proteção da
dignidade da pessoa humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É fato notório que a aposentadoria especial foi criada em


nosso ordenamento jurídico como mecanismo indiscutivelmente
protetivo aos segurados que trabalham em condições nocivas à
sua saúde ou integridade física, tanto é que o legislador, ao menos
até o advento da Reforma da Previdência Social, materializada
através da Emenda Constitucional nº 103/2019, permitia a sua ju-
bilação de forma antecipada e sem qualquer limitação etária para
tanto.
Buscou-se demonstrar, no presente trabalho, que a limi-
tação trazida pelo Decreto nº 10.410/2020 no que diz respeito
à impossibilidade do cômputo, como especial, dos períodos em
gozo de benefícios por incapacidade, sejam eles acidentários ou
previdenciários, acabou por ferir frontalmente o princípio da le-
galidade, tendo em vista que tal restrição de acesso a benefício
previdenciário não coaduna com a função regulamentadora da
figura do Decreto.
De igual modo buscou-se apontar a violação à proteção
constitucional da dignidade advinda da novel redação do parágra-
fo único do artigo 65 do Decreto nº 3.048/1999, a qual, além de
manter impossibilidade do cômputo dos períodos de recebimento
do benefício por incapacidade previdenciário como tempo espe-
150

cial, também retirou do rol dos interregnos de afastamento assim


considerados o tempo de recebimento dos benefícios por incapa-
cidade de natureza acidentária.
Mostra-as indispensável, portanto, uma maior e mais
efetiva mobilização por parte dos mais variados atores sociais, a
fim de que seja possível a corrigenda desse retrocesso perpetrado
com a limitação trazida no Decreto nº 10.410/2020. Tal mobili-
zação deve ser levantada não apenas pelos políticos, no intuito de
buscar melhorias nas normas voltadas à concessão da aposenta-
doria especial, mas também por parte dos advogados previdencia-
ristas, para que possam buscar, através do estudo técnico, meios
hábeis a declarar a ilegalidade e inconstitucionalidade encontra-
das no novel Decreto, que resultaram em uma inequívoca bar-
reira na busca do benefício especial. Possuem importante papel
no presente contexto, de igual modo, os magistrados que irão se
deparar com demandas buscando a tão necessária solução para os
retrocessos sociais criados pela já citada norma regulamentadora.

REFERÊNCIAS

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos


direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

CUNHA, Alexandre dos Santos. A normatividade da pessoa


humana: o estudo jurídico da personalidade e o Código Civil de
2002. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria


Especial: teoria e prática. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2018.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.


23. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
151

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito


administrativo. 34. ed. rev. e atual. até a E. C. 99, de
14.12.2017. São Paulo: Malheiros, 2019.

SCHUSTER, Diego Henrique. Aposentadoria especial: entre o


princípio da precaução e a proteção social. Curitiba: Juruá, 2016.

SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade social e direitos


fundamentais. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2019.

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à


Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional


positivo. 41. ed. ver. e atual. até a E.C. nº 99, de 14.12.2019.
São Paulo: Malheiros, 2018.
152
153

REFLEXOS DA ATUALIZAÇÃO DO
REGULAMENTO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
NOS BENEFÍCIOS PARA O MIGRANTE

Manoela Lebarbenchon Massignan1

INTRODUÇÃO

A Declaração Universal dos Direitos do Homem delineada


pela Carta da Organização das Nações Unidas é o marco normati-
vo fundamental para um sistema de proteção global dos direitos
humanos. (ONU, 1948). É a positivação internacional dos direi-
tos mínimos dos seres humanos tendo como fundamento a digni-
dade da pessoa humana. Declara a universalidade desses direitos
bastando ser pessoa para ser sujeita desses direitos e exigi-los em
qualquer situação. (MAZZUOLLI, 2018, p. 799).
Este marco normativo de proteção global dos direitos
humanos arvorou a segurança social como um destes direitos,
mencionando-a nos artigos 22 e 25 e, como direito fundamental
universal. Para que toda pessoa tenha acesso e possa exigi-lo em
qualquer lugar, propõe a cooperação internacional para criação
de um sistema de proteção social em harmonia com a organiza-
ção e recursos de cada país.
Nesta arena internacional, a Organização Internacional
do Trabalho através da Convenção 102, ocorrida em 1952 em
Genebra, elaborou normas mínimas para o reconhecimento de um

1
Manoela Lebarbenchon Massignan. Formada em Ciências Contábeis – PUC-PR,
Acadêmica do 6º período do Curso de Direito da FAE- Centro Universitário de Curi-
tiba. Pesquisadora do Observatório de Direitos de Gênero da FAE- Centro univer-
sitário e pesquisadora do grupo de pesquisas da UFPR – BIOTEC: Biotecnologia,
Sociedade e Direito. Técnica do Seguro Social do INSS.
154

sistema de seguridade social. (OIT, 2019).


O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais (PIDESC) celebrado em 1966, como fonte do Direito
Internacional Público, trouxe a obrigatoriedade dos Estados-
-Membros de criar um mecanismo de cooperação internacional
para efetivar os direitos reconhecidos por ele e, destacamos o
artigo 9º que reconhece o direito de toda a pessoa à previdên-
cia social, inclusive ao seguro social. (SAVARIS; GONÇALVES,
2018).
O PIDESC foi promulgado no ordenamento jurídi-
co interno através do Decreto nº 591 de 06 de julho de 1992.
(BRASIL, 1992)
Essa cooperação internacional para efetivar o direito a
previdência social é feita através dos acordos internacionais de
previdência social os quais são instrumentos de coordenação da
interação entre os sistemas de previdência social nacionais.
No aspecto legislativo interno, o Brasil revogou o Estatuto
do Estrangeiro pela promulgação da Lei de Migração Nº 13.445
de 24 de julho de 2017 elencando os princípios e diretrizes que
deverão reger a política migratória interna, dentre eles destaca-
mos: a universalidade, indivisibilidade e interdependência dos di-
reitos humanos; inclusão social, laboral e produtiva do migrante
por meio de políticas públicas; igualdade de tratamento e de opor-
tunidade ao migrante e acesso igualitário aos programas e benefí-
cios sociais e seguridade social [...]. (BRASIL, 2017, art. 3º).
O Brasil participa do sistema de cooperação internacional
para a proteção social realizando os primeiros acordos na década
de 1960 com Luxemburgo, Itália e Portugal. Atualmente mantém
acordo de previdência social celebrado com 24 países.
As normas internacionais não modificam a legislação
interna mas fazem obrigação entre as partes contratantes. O
texto do acordo é a representação literal da negociação entre os
Estados. Estes instrumentos de coordenação entre os sistemas de
previdência nacionais que visam a proteção do trabalhador mi-
grante proporcionando-lhe acesso a prestação previdenciária por
155

meio do sistema de totalização de períodos de seguro cumpridos


nos Estados Acordantes, descrevem como será feita a aplicação
desta norma e também a maneira como será analisado o benefício
quando o requerente não tiver tempo de contribuição suficien-
te ao abrigo da legislação do país do requerimento mas, por ter
estado sujeito à legislação de um país acordante poderá somar
o tempo de seguro para completar o tempo mínimo necessário
para a elegibilidade. Estes benefícios são chamados de benefícios
por totalização e tem a forma de cálculo também pactuada entre
as partes, pois como não há transferência de recursos financeiros
entre os países o valor da prestação é calculada de forma propor-
cional ao contribuído para a legislação que reconhece o direito.
Desta forma, cada Estado Acordante ao qual o migrante esteve
sujeito à legislação, analisará o direito a pensão e, se preenchido
os quesitos obrigatórios, pagará o benefício com valor proporcio-
nal e o migrante poderá acumular os benefícios.
Os benefícios por totalização apesar de serem reconhe-
cidos pela aplicação da norma internacional, são analisados em
conformidade a legislação nacional quanto aos critérios de elegi-
bilidade, análise do período contributivo nacional, forma de cal-
cular o salário de benefício, análise quanto ao reconhecimento da
invalidez ou incapacidade, documentos para comprovar o vínculo
dos dependentes.
Após a Reforma da Previdência Social promulgada pela
Emenda Constitucional nº 103, de 13 de novembro de 2019 o
Decreto nº 3.048/99 foi atualizado em junho de 2020.
O Decreto nº 10.410 de 30 de junho de 2020 trouxe mu-
danças significativas ao Regulamento da Previdência Social ob-
jetivando atualizá-lo com as normas da EC 103/2019 e também
com alterações legislativas ocorridas entre 2015 a 2019.
Dentro do contexto dos acordos internacionais, benefícios
por totalização e trabalhador migrante analisaremos três mudan-
ças trazidas pelo Decreto 10.410/2020 que interferem diretamen-
te na análise dos benefícios por totalização e na proteção social
ao trabalhador migrante. A primeira a ser estudada será a possi-
156

bilidade de o brasileiro residente no exterior filiar-se como facul-


tativo ao Regime Geral de Previdência Social; a segunda será a
alteração no cálculo do salário de benefício dos benefícios por
totalização e, por último, analisaremos uma regra processual que
garantirá a análise do requerimento quando a prestação previden-
ciária não for contemplada no campo material do país acordante
no qual o interessado esteve vinculado ao regime de previdência.

ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELO DECRETO Nº 10.410/2020

Na lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro o

Decreto é a forma de que se revestem os atos


individuais ou gerais, emanados do Chefe
do Poder Executivo. Pode conter, da mesma
forma que a lei, regras gerais e abstratas
que se dirigem a todas as pessoas que se
encontram na mesma situação. [...] Quando
produz efeitos gerais pode ser regulamentar
ou de execução, quando expedido com base
no artigo 84, IV, da Constituição, para fiel
execução da lei. (DI PIETRO, 2020, p. 273-
274).

Como ato normativo regulamentar o Decreto estabelece


regras para fiel execução da lei (ressaltamos a CF, art. 84, IV)
sem poder inovar no direito.
Partindo da função constitucional do Decreto passamos
analisar os artigos 11, X; 32 e 176-E do Decreto nº 10.410/2020.

AUTORIZAÇÃO PARA FILIAÇÃO COMO SEGURADO


FACULTATIVO PATA BRASILEIRO RESIDENTE E DO-
MICILIADO NO EXTERIOR

O Decreto nº 3.048/1999 até 30/06/2020 autorizava a fi-


liação como segurado facultativo ao brasileiro residente ou do-
miciliado no exterior desde que não estivesse vinculado obri-
157

gatoriamente a regime de previdência de país acordante. Caso


o brasileiro estivesse vinculado a regime de previdência em país
não acordante não havia impedimento a filiação como facultativo.
A nova redação deste dispositivo suprimiu essa restrição.
Transcrevemos abaixo a redação do artigo 11, X do
Decreto 3.048/99:

Art. 11: É segurado facultativo o maior de


16 anos de idade que se filiar ao Regime
Geral de Previdência Social, mediante
contribuição, na forma do art. 199, desde que
não esteja exercendo atividade remunerada
que o enquadre como segurado obrigatório
da previdência social.
§1º Podem se filiar como facultativo, entre
outros:
[...]
X- o brasileiro residente e domiciliado
no exterior, salvo se filiado a regime
previdenciário de país com o qual o Brasil
mantenha acordo internacional.
Nova redação do art. 11, X dada pelo Decreto
10.410/2020:
Art. 11 [...]
§ 1º [...]
X – o brasileiro residente e domiciliado no
exterior. (BRASIL, 1999, grifo nosso).

A Lei 8.213/91, art. 13, conceitua o segurado facultativo:


“É segurado facultativo o maior de 14 anos de idade que se filiar
ao Regime Geral de Previdência Social, mediante contribuição,
desde que não incluídos no artigo 11. (BRASIL, 1991).
A participação como segurado no Regime Geral de Previ-
dência Social é de caráter contributivo e ocorre de duas formas:
como segurado obrigatório, porque a filiação é compulsória pelo
exercício da atividade remunerada ou de forma volitiva, como
segurado facultativo, para as pessoas que não tem atividade re-
munerada. (SERAU JUNIOR, 2020, p. 57).
O limite de idade trazida pelo Decreto 3.048/99, filiação
158

a partir dos 16 anos, está em conformidade com a EC 20/98 que


alterou a idade mínima para o trabalho (CF, art. 7º, XXXIII).
(SERAU JUNIOR, 2020, p. 57).
A Constituição Federal veda a filiação como segurado fa-
cultativo ao RGPS para servidor público. (BRASIL, 1988, art.
201, § 5º).
Portanto, o exercício da atividade remunerada é o fato
gerador de filiação obrigatória ao RGPS ou, se for o caso, em
Regimes Próprios de Previdência.
Pelo princípio da territorialidade a legislação previdenciá-
ria aplicável é a do território em que a pessoa exerce sua atividade
remunerada, Lex Loci Laboris. Essa é a regra geral. No caso dos
acordos internacionais de previdência social, há exceções entre os
países acordantes para evitar a dupla tributação do imposto para
benefícios. A empresa, em relação ao funcionário expatriado,
faz esta solicitação e a instituição competente do país de origem
do vínculo autoriza a isenção da contribuição no país de destino
através da emissão do certificado de cobertura. Ficando o fun-
cionário sujeito exclusivamente a legislação de origem durante o
tempo autorizado.
Há casos de extraterritorialidade da lei previdenciária, ou
seja, mesmo exercendo a atividade remunerada em outro terri-
tório mantém-se vinculado a lei brasileira, estão na classificação
dos segurados obrigatórios da Lei 8.213/91, art. 11, c, d , e, f num
rol taxativo, somente nestes casos.
Transcrevemos parte do art. 11 da Lei 8.213/91:

Art. 11 São segurados obrigatórios da


Previdência Social as seguintes pessoas:
[...]
c) o brasileiro ou estrangeiro domiciliado e
contratado no Brasil para trabalhar como
empregado em sucursal ou agência de
empresa nacional no exterior;
d) aquele que presta serviço no Brasil a
missão diplomática ou a repartição consular
de carreira estrangeira e a órgãos a ela
159

subordinados, ou a membros dessas missões


e repartições, excluídos o não-brasileiro sem
residência permanente no Brasil e o brasileiro
amparado pela legislação previdenciária do
país da respectiva missão diplomática ou
repartição consular;
e) o brasileiro civil que trabalha para a União,
no exterior, em organismos oficiais brasileiros
ou internacionais dos quais o Brasil seja
membro efetivo, ainda que lá domiciliado e
contratado, salvo se segurado na forma da
legislação vigente do país do domicílio;
f) o brasileiro ou estrangeiro domiciliado
e contratado no Brasil para trabalhar como
empregado em empresa domiciliada no
exterior, cuja maioria do capital votante
pertença a empresa brasileira de capital
nacional.

Nestes casos o contrato é regido pela legislação brasileira,


fica sujeito exclusivamente à legislação previdenciária brasileira e
não precisa de Certificado de Deslocamento para evitar a tributa-
ção no país em que exerce atividade remunerada, caso acordante.
Após os conceitos de filiação facultativa e obrigatória re-
tomamos ao texto do artigo 11, X do Decreto 3.048/99; “X- o
brasileiro residente e domiciliado no exterior, salvo se filiado
a regime previdenciário de país com o qual o Brasil mantenha
acordo internacional”.
Pela exegese do artigo somente está-se considerando a
atividade remunerada exercida em país acordante e excluindo a
filiação obrigatória em regime de previdência em país com o qual
o Brasil não tenha acordo.
Ora, se o exercício da atividade remunerada é a condição
excludente da filiação como segurado facultativo no RGPS e se
a norma está considerando a extraterritorialidade da lei de país
acordante, então deveria reconhecer a atividade remunerada de
qualquer país como restrição a filiação facultativa ao RGPS para
brasileiro residente ou domiciliado no exterior.
O que se entende é que regulamento, por analogia, con-
160

siderou a filiação em país acordante como filiação em regime


próprio que impede a participação volitiva ao RGPS pela Cons-
tituição. (CF/88, art. 201, §5º). Vimos, na introdução deste artigo,
que os acordos internacionais são um instrumento de cooperação
entre os regimes de previdência nacionais que através do sistema
de totalização de períodos de seguro auxiliam o trabalhador mi-
grante para a elegibilidade ao benefício. Como não há transferên-
cia financeira, o mesmo tempo utilizado para o reconhecimento
de direito em um país acordante poderá ser utilizado no outro,
desde que tenha estado filiado neste também. Cada Estado Con-
tratante é responsável pelo pagamento do benefício proporcional-
mente ao que foi contribuído para a sua legislação. A aplicação
da norma internacional somente é feita se houver a necessidade
e se o requerente solicitar, Não é obrigatório a somar os tempos
de seguro, pode escolher por completar o tempo necessário para
se aposentar somente perante uma legislação. E não há óbice de
solicitar o benefício do outro país.
Considerando o exercício da atividade remunerada no ex-
terior, a filiação como segurado facultativo de brasileiro residen-
te em qualquer país deveria ser vedada. Contudo, a antiga redação
afrontava o princípio da isonomia pois dava tratamento diferente
para brasileiro residente no exterior em situações iguais, pois in-
dependente do país de residência estavam filiados a regime de
previdência pelo exercício de atividade remunerada. E nesta dis-
tinção extrapolava a função constitucional do Decreto, dar condi-
ção a fiel execução da lei.
Nesse tempo, muitos segurados tiveram suas contribui-
ções como segurado facultativo não aproveitadas na análise do
tempo de contribuição para reconhecimento do direito.
O Decreto 10.410, de 30/06/2020 alterou o inciso X do
art. 11 do Decreto 3.048/99 para; “X- o brasileiro residente e
domiciliado no exterior”.
Pela alteração , podemos entender que deixou-se de con-
siderar o exercício da atividade remunerada no exterior como im-
pedimento a filiação volitiva ao RGPS. Possibilitando a partir de
161

30/06/2020 o recolhimento como segurado facultativo residente


ou domiciliado no exterior sem restrições.
Essa nova redação está congruente ao princípio da digni-
dade da pessoa humana pois possibilitará ao brasileiro a possibi-
lidade de ter um benefício mais vantajoso através da continuidade
da sua contribuição ao RGPS após sua saída do Brasil garantindo
a satisfação do seu direito fundamental. Também acompanhou a
nova política migratória brasileira dada pela Lei 13.445/2017 que
no rol dos princípios e diretrizes encontra-se a proteção do brasi-
leiro no exterior. (Lei 13.445/2017, art. 3º, XIX). Como exemplo
das possibilidades:

• Brasileiro exercendo atividade remunerada e filiado a


regime de previdência em país acordante;
• Brasileiro que exerce atividade remunerada e filiado a
regime de previdência em país sem acordo com o Brasil;
• Brasileiro que reside no exterior ,
• Estudantes brasileiros no exterior,
• Pesquisadores, independente de receber remuneração
financeira.

Fazemos a observação de que o Decreto não impôs condi-


ção de o Brasileiro já ter sido filiado ao RGPS antes de residir no
exterior para iniciar a contribuição.
Isso para outras legislações nacionais é requisito. Por
exemplo, a Convenção Multilateral Iberoamericana de Segurida-
de Social autoriza a contribuição ao seguro voluntário em país
concomitante com o seguro obrigatório de outro Estado-Parte,
para os casos de aposentadoria, pensão por morte e aposentadoria
por invalidez, desde que a legislação interna daquele Estado-Par-
te permita e que ele estivesse sujeito àquela legislação antes da
saída do país.
Citamos o art. 12 da Convenção Multilateral Iberoameri-
162

cana de Seguridade Social.

Em matéria de pensões , o interessado pode


beneficiar do seguro voluntário de um Estado
- Parte, ainda que esteja obrigatoriamente
sujeito à legislação de outro Estado- Parte,
sempre que anteriormente já tenha estado
sujeito à legislação do primeiro Estado - Parte
pelo facto ou em consequência do exercício de
uma atividade como trabalhador dependente
ou independente e na condição de a referida
acumulação ser admitida na legislação do
primeiro Estado – Parte. (BRASIL, 2014).

Essa alteração foi benéfica ao brasileiro pois, ao mesmo


tempo que corrigiu um tratamento desigual aos brasileiros resi-
dentes no exterior possibilita a contribuição ao RGPS para im-
plementar as condições de elegibilidade a um benefício de apo-
sentadoria, somente com o tempo brasileiro, garantindo desta
maneira um valor de benefício mais vantajoso por não ser não
necessário aplicar a norma do acordo internacional para comple-
tar o tempo necessário.

ALTERAÇÃO NO CÁLCULO DO SALÁRIO DE BENEFÍCIO

O salário de benefício é o valor básico para o cálculo da


renda mensal inicial dos principais benefícios previdenciários de
pagamento continuado. (LAZZARI; CASTRO, 2020, p. 457)..
O cálculo do salário de benefício até a reforma da previ-
dência promulgada pela EC 103/2019 é normatizado pelo art. 29
da Lei 8.213/91, que corresponde a média aritmética simples de
80% dos maiores salários de contribuição do período contributivo
referente a 07/1994 até a data de início do benefício.
O Decreto 3.048/99, extrapolando sua competência cons-
titucional de apenas regulamentar a execução da lei, criou mais
duas possibilidades de cálculo do salário de benefício além da
existente, no caso de a prestação previdenciária estar no âmbito
das normas dos acordos internacionais, ampliando o rol estabele-
163

cido pela Lei 8.213/91, art. 29.


Para os benefícios por totalização o Decreto 3.048/99, art.
32, §18, trazia até 30/06/2020, três regras específicas para o
cálculo do salário de benefício para fins de determinar a Renda
Mensal Prestação Teórica. Essa renda é o resultado da aplicação
da alíquota de cálculo para renda mensal (Dec. 3.048/99, art. 39,
III) sobre o salário de beneficio considerando todo o tempo de
contribuição necessário para a concessão como se tivesse sido
feito exclusivamente sob a legislação brasileira. E após, calcular-
-se-á a renda mensal proporcional ao tempo de contribuição no
Brasil. Essa forma dual da renda mensal do benefício por totali-
zação é decorrente da própria norma dos acordos internacionais.
Transcrevemos o § 3º, § 18 e § 19 do art. 32 do Decreto
3.048/99.

Art. 32 [...]
§ 3º O valor do salário-de-benefício não
será inferior ao de um salário mínimo, nem
superior ao limite máximo do salário-de-
contribuição na data de início do benefício
§ 18. O salário-de-benefício, para fins de
cálculo da prestação teórica dos benefícios
por totalização, no âmbito dos acordos
internacionais, do segurado com contribuição
para a previdência social brasileira, será
apurado:
I - quando houver contribuído, no Brasil,
em número igual ou superior a sessenta por
cento do número de meses decorridos desde
a competência julho de 1994, mediante a
aplicação do disposto no art. 188-A e seus §§
1º e 2º
II - quando houver contribuído, no Brasil,
em número inferior ao indicado no inciso
I, com base no valor da média aritmética
simples de todos os salários-de-contribuição
correspondentes a todo o período contributivo
contado desde julho de 1994, multiplicado
pelo fator previdenciário, observados o § 2º
do art. 188-A, o § 19 e, quando for o caso, o
164

§ 14, ambos deste artigo; e


III - sem contribuição, no Brasil, a partir
da competência julho de 1994, com base
na média aritmética simples de todo o
período contributivo, multiplicado pelo fator
previdenciário, observados o disposto no § 2º
do art. 188-A e, quando for o caso, no § 14
deste artigo.
§ 19. Para a hipótese de que trata o § 18, o
tempo de contribuição a ser considerado na
aplicação da fórmula do fator previdenciário
é o somatório do tempo de contribuição para
a previdência social brasileira e o tempo de
contribuição para a previdência social do país
acordante.

A depender da quantidade de contribuições que a pessoa


interessada tivesse feito no Brasil, o cálculo do salário de benefí-
cio era mais ou menos vantajoso. Sendo que o valor não pode re-
sultar em valor inferior ao salário-mínimo (Dec. 3.048/99, art. 32,
§ 3). Pela norma regulamentar se a pessoa tivesse mais de 60 % de
contribuição dentro do Período Básico de Cálculo teria o salário
de benefício calculado pela média de 80% dos maiores salários de
contribuição com o divisor mínimo de 60% (art. 32, § 18, I). Se
a pessoa tivesse menos de 60% de contribuição dentro do período
básico de cálculo ( PBC), o salário de benefício seria calcula-
do pela média simples destes valores (art. 32, §18, II) e no caso
de a pessoa somente ter tempo de contribuição anterior a 07/94,
estes valores seriam contados para fazer o cálculo do salário de
benefício através da média simples. À vista disso se o requerente
tivesse 12 meses de contribuição no Brasil, seria feita a média
simples e sobre este valor, calculada a Renda Mensal Teórica do
benefício, considerando o tempo total para reconhecimento do
direito e aplicando a alíquota conforme o Decreto 3.048/99, art
39,III. Sobre o resultado desta operação é calculado o valor renda
mensal proporcional, multiplicando – o pela razão entre o tempo
de contribuição do Brasil e o tempo de contribuição total.
A Reforma da Previdência constitucionalizou a regra
165

do cálculo de salário de benefício como sendo a média simples


de todos os salários de contribuição a partir de 07/1994.(EC
103/2019, art. 26). Com a atualização do Regulamento da pre-
vidência pelo Decreto 10.410 de 30/06/2020 foram revogadas
as condições especiais de forma de cálculo do salário de benefí-
cio que eram exclusivas dos benefícios por totalização e criadas
pelo Decreto , igualando o cálculo para todos os benefícios. Até
porque a forma de cálculo diferenciada se mantida, seria incons-
titucional.
Transcrevemos parte dos artigos 31 e 32 do Decreto
3.048/99.

Art. 31. Salário de benefício é o valor básico


utilizado para o cálculo da renda mensal dos
benefícios de prestação continuada, inclusive
aqueles regidos por normas especiais. [...]
Art. 32. O salário de benefício a ser utilizado
para o cálculo dos benefícios de que trata este
Regulamento, inclusive aqueles previstos em
acordo internacional, consiste no resultado
da média aritmética simples dos salários de
contribuição e das remunerações adotadas
como base para contribuições a regime
próprio de previdência social ou como base
para contribuições decorrentes das atividades
militares de que tratam os art. 42 e art. 142 da
Constituição, considerados para a concessão
do benefício, atualizados monetariamente,
correspondentes a cem por cento do período
contributivo desde a competência julho de
1994 ou desde o início da contribuição, se
posterior a essa competência. (Redação dada
pelo Decreto nº 10.410, de 2020).
§ 9º Quando inexistirem salários de
contribuição a partir de julho de 1994, as
aposentadorias concedidas nos termos do
disposto nos § 5º e § 6º do art. 13 terão o
valor correspondente ao do salário-mínimo,
observado, no caso de acordos internacionais,
o disposto no § 1º do art. 35. (Redação dada
pelo Decreto nº 10.410, de 2020).
166

§ 18: Para fins de cálculo da renda mensal


inicial teórica dos benefícios por totalização
, no âmbito dos acordo internacionais, serão
considerados os tempos de contribuição para
a previdência social brasileira e para a do país
acordante, observado o disposto no art. 9º.

Diante das alterações constitucionais e regulamentares só


haverão duas formas de calcular o salário de benefício para os
benefícios por totalização, quais sejam; se houver contribuição
no Brasil dentro do Período Básico de Cálculo será calculado pela
média simples de todo o período, e se a pessoa somente tiver con-
tribuição no Brasil para período anterior a 07/1994 será aplicada a
regra do art. 32, § 9º, será considerado o valor do salário mínimo
como salário de benefício.

ANÁLISE QUANTO AO BENEFÍCIO MAIS VANTAJOSO

O Decreto 10.410/2020 , alterou a redação do artigo 176


que regulamentava a impossibilidade da recusa ou o indeferimen-
to do requerimento pela não apresentação completa para análise
do direito.
À nova redação foi dada ênfase na análise inicial da
formalização do requerimento ressaltando a necessidade da
solicitação da exigência, se não tiver sido apresentado os elemen-
tos necessários para a análise do reconhecimento do direito. Caso
não seja cumprida a exigência, o INSS deverá fazer a análise com
as informações existentes no requerimento e nos sistemas gover-
namentais e proferir a decisão. No caso de não ter sido cumprida a
exigência e não haver elementos suficientes para analisar o direito
será arquivado o processo sem resolução de mérito. (BRASIL,
2020, art. 176, § 1º e 2º).
O artigo 176-E reflete diretamente nos requerimentos de
benefícios com aplicação dos acordos internacionais. Antes de
comentá-lo, é preciso saber que cada norma acordante contém
suas cláusulas de operatividade sendo uma delas o campo de apli-
167

cação material. Os países expressamente acordam em quais le-


gislações e em quais espécies de benefícios poderão ser aplicadas
as normas dos acordos.
A redação do artigo 176-E do Decreto 10.410/2020 aduz que:

Art. 176-E: Caberá aos INSS conceder o


benefício mais vantajoso ao requerente ou
benefício diverso, desde que os elementos
constantes do processo administrativo
assegurem o reconhecimento deste direito.
Parágrafo único: Na hipótese do direito à
concessão de benefício diverso do requerido,
caberá ao INSS notificar o segurado.
(BRASIL, 2020).

Voltando aos requerimentos com aplicação dos acordos


internacionais, caso seja solicitado um requerimento de salário-
-maternidade indicando tempo trabalhado na Bélgica, ao invés
de o INSS concluir o requerimento indeferindo-o motivado pela
inexistência da previsão material no acordo bilateral entre Brasil
e Bélgica, será analisado o requerimento como benefício conven-
cional e se tiver as condições para o reconhecimento do direito
será concluído e, da mesma forma, caso não tenha carência no
Brasil será indeferido.
O mesmo tratamento será dado para os casos de requeri-
mentos de aposentadoria por tempo de contribuição pois esta
espécie está contemplada apenas nos acordos com Portugal e Ale-
manha. (BRASIL, 1995; 2013a; 2013b). Caso tenha sido indica-
do o tempo de seguro com outro pais acordante, o requerimento
deverá ser analisado como benefício de aposentadoria convencio-
nal, mantendo a mesma data de entrada do requerimento.
Nestes casos de aposentadoria por tempo de contribuição,
o requerente poderá solicitar o serviço do acordo internacional/
benefício exclusivo de país acordante, inclusive concomitante ao
pedido de aposentadoria. Para verificar o direito ao recebimento
de benefício no outro país acordante a que esteve vinculado.
Esse procedimento valerá para todos os requerimentos,
168

desta forma mantém-se a data de entrada de requerimento, evi-


tando a perda de valores caso haja o direito ao reconhecimento
somente com o tempo de contribuição somente do Brasil atenden-
do ao princípio da economia processual e da melhor satisfação da
prestação previdenciária ao segurado.

CONCLUSÕES FINAIS

Em face do objetivo principal deste artigo de analisar os


três dispositivos trazidos pelo Decreto 10.410/2020 que refletiam
nos benefícios por totalização, concluímos que em relação a pos-
sibilidade de contribuição como facultativo estendida a todos os
brasileiros no exterior corrigiu uma desigualdade de longo tempo.
Em relação ao cálculo do salário de benefício alterações
trazidas pelo Decreto 10.410/2020 aos benefícios por totalização
e ao trabalhador acompanhou o art. 26 da EC 103/2019 e corri-
giu a ilegalidade quanto a criação de novas formas de cálculo de
salário de benefício criadas por norma infralegal.
E, por último vimos a possibilidade trazida pelo artigo
176-E de continuar a análise do requerimento no caso de o in-
teressado ter postulado um pedido de espécie de benefício não
contemplada no campo material do acordo internacional de pre-
vidência solicitado. Muito importante esta garantia da análise do
benefício mais vantajoso, mantendo a mesa data de requerimento,
nesta nova forma de atendimento do INSS, do processo eletrônico.

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Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República,
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169

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providências. Brasília, DF: Presidência da República, [1991].
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BRASIL. Decreto nº 7.999, de 08 de maio de 2013. Promulga


o Acordo Adicional que altera o Acordo de Seguridade Social
ou Segurança Social entre o Governo da República Federativa
do Brasil e o Governo da república Portuguesa. Brasília, DF:
Presidência da República, [2013a]. Disponível em: https://
www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2013/decreto-7999-8-
maio-2013-775952-publicacaooriginal-139762-pe.html. Acesso
em: 01 ago. 2020.
170

BRASIL. Decreto nº 8.000, de 08 de maio de 2013. Promulga


o Acordo de Previdência Social e seu Protocolo Adicional entre
a República Federativa do Brasil e a República Federal da
Alemanha, firmados em Berlim, em 3 de dezembro de 2009.
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BRASIL. Decreto nº 8.358, de 13 de novembro de 2014.


Promulga o texto da Convenção Multilateral Ibero-Americana
de Seguridade Social, firmada pela república Federativa do
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BRASIL. Decreto nº 8.405, de 11 de fevereiro de 2015


Promulga o Acordo sobre a Previdência Social entre
a República Federativa do Brasil e o Reino da Bélgica,
firmado em Bruxelas, em 4 de outubro de 2009. Brasília,
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171

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Benefícios da Previdência Social: Lei 8.213, de 24 de julho de
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172
173

A PROVA DA INSALUBRIDADE NA
APOSENTADORIA ESPECIAL E O
DECRETO 3048/99

Omar Chamon1

INTRODUÇÃO

O objeto do presente estudo são os meios de prova do


efetivo contato com agentes insalubres ou perigosos, necessários
à concessão da aposentadoria especial. Embora direcionado es-
pecialmente ao RGPS2, as proposições são igualmente aplicá-
veis aos processos judiciais que envolvem os Regimes Próprios
de Previdência social. Analisaremos, de igual forma, algumas das
muitas controvérsias que cercam essa matéria, sob a ótica dos
princípios constitucionais do processo civil e da efetiva necessi-
dade de produção da prova.

A APOSENTADORIA ESPECIAL

O sistema de seguridade social, em nosso país, consiste


um uma ampla rede de proteção social que se concretiza em pres-
tações de cada um de seus 3 subsistemas: a previdência social, a
assistência social e a saúde. (BRASIL, 1988, Artigo 194, caput).
A Previdência social dos trabalhadores do setor privado,
e de parcela significativa de servidores públicos sem regime

1
Juiz Federal da 5ª Turma Recursal, em São Paulo, ex-Procurador do
INSS, mestre em direito previdenciário pela PUC/SP.
2
Regime Geral de Previdência Social.
174

próprio, é regida por meio de um serviço social3 denominado


Regime Geral de Previdência Social, cuja moldura institucional
se encontra insculpida no artigo 201 da Carta da República.
A previdência social, nos termos do disposto no artigo 6º
da Carta da República4, consiste em um dos direitos sociais, isto
é, suas prestações - benefícios e serviços - se encontram no rol
dos denominados diretos humanos de segunda dimensão5.
Dentre as contingências sociais a serem cobertas está a
potencialidade de risco à saúde em face de trabalho insalubre,
fundamento para a concessão de benefício denominado aposen-
tadoria especial. (BRASIL, 1988, ART. 201, PAR. 1º INC. II). Ob-
jetivando preservar a saúde e integridade física do trabalhador a
legislação possibilitava a aposentadoria com tempo reduzido de
contribuição6.
Trata-se de benefício instituído pela LOPS7, em 1960,
e que nasceu com amplo grau de proteção ao trabalhador, pois
previa cobertura em face de três riscos trabalhistas, ou seja, a in-
salubridade, a periculosidade e a penosidade.
Com o passar dos anos, mormente a partir da edição da
Lei 9.032/95, toda a Previdência Social foi padecendo de um pro-
gressivo processo de estrangulamento, isto é, os benefícios foram
sofrendo restrições no que diz respeito aos beneficiários, à renda

3
Não observo contradição em conceituar o RGPS como seguro social
e serviço social, ao mesmo tempo.
4
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,
a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988, Art. 6º).
5
Por essa razão, pode ser considerado como direito fundamental.
6
Sempre foi possível se aposentar após 15, 20 ou 25 anos de con-
tribuição em contato com agentes nocivos. Atualmente, nas regras
gerais, se exige também idade mínima de respectivamente, 55, 58 e 60
anos (homem e mulher).
7
Lei Orgânica da Previdência Social - Lei 3807/60.
175

mensal ou aos riscos cobertos. Na verdade, o país estava e está


com problemas fiscais e é mais palatável, sob a ótica política,
retirar recursos da Previdência Social do que de setores da socie-
dade mais organizados. Esse fenômeno atingiu, de forma muito
cruel, a aposentadoria especial, principalmente com o advento da
EC 103/198 que passou a exigir idade mínima para a sua conces-
são.
No campo processual, o grande desafio diz respeito à prova
do contato com agentes insalubres, que é o objeto desse artigo.

MEIOS DE PROVA DA NOCIVIDADE

Entendo que precisamos de parâmetros mais claros e ra-


cionais para o deferimento ou indeferimento das provas pleitea-
das pelos segurados, nos processos judiciais, que buscam o re-
conhecimento de tempo especial. Por essa razão, lançarei para
reflexão alguns temas controvertidos sobre a instrução probatória,
tendo por pano de fundo os novos dispositivos introduzidos no
Decreto 3048/99.
O grande desafio, no cotidiano dos processos administra-
tivos ou judiciais, é demonstrar que há 30 ou 40 anos, o segurado
exercia sua atividade em contato, ao menos habitual, com agentes
insalubres ou perigosos. A dificuldade nasce do número expres-
sivo de empresas que encerram suas atividades, após alguns anos
de atividade, ou ainda da informalidade nas relações de trabalho,
principalmente no que diz respeito à normas de segurança do tra-
balho.
Há dois caminhos que, geralmente, são adotados em face
desses problemas de natureza probatória: a absoluta restrição
em face de ausência ou insuficiência de provas, escolhido pelos
setores administrativos da Previdência, que inviabilizam, em
regra, a concessão do benefício ou a presunção, não fundamenta-

8
Reforma da Previdência Social.
176

da, de trabalho em contato com agentes insalubres ou perigosos,


adotada por setores da jurisprudência mas que também gera injus-
tiças, com a concessão do benefício para quem não sofreu risco
nenhum à sua saúde ou à sua integridade física.
Como provar a nocividade da atividade com respeito aos
princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório?9
Afinal, o processo previdenciário não pode ser tratado como um
processo de menor dignidade e as duas vertentes citadas termi-
nam por relegá-lo a um papel secundário10.
Vale frisar que é extremamente importante buscar, por
todos os meios lícitos, a verdade real, no processo judicial. Nesse
sentido, vale citar a lição de Leonardo Greco:

O que é preciso assentar é a necessidade


garantística da apuração dos fatos, a
necessidade de buscar a verdade dos fatos
como pressuposto da tutela jurisdicional
efetiva dos direitos conferidos pelo
ordenamento jurídico. De nada adianta a
lei atribuir ao cidadão inúmeros direitos, se
não lhe confere a possibilidade concreta de
demonstrar ser titular desses direitos, ou seja,
se lhe impõe uma investigação fática capenga,
incompleta, impedindo-o de obter a tutela dos
direitos pela impossibilidade de demonstrar
a ocorrência dos fatos dos quais eles se
originam. (GRECO, 2015, p. 110).

9
Para Mancuso (op.cit. p. 82) A possibilidade das partes de influen-
ciarem a decisão judicial não só por meio de argumentos, mas também
com a apresentação tempestiva e eficaz dos meios instrutórios deriva
do devido processo legal.
10
Nesse sentido, vale citar a lição do jurista e magistrado federal José
Antônio Savaris: “Também no direito previdenciário o postulado do
devido processo legal assegura aos litigantes, como pressuposto de
defesa e exercício do contraditório, o direito constitucional à produção
da prova lícita. É um direito fundamental que somente pode ser res-
tringido por lei e na medida em que essa restrição seja proporcional”
(op.cit. p. 77).
177

De início, importa salientar que os fatos juridicamente re-


levantes, tais como a nocividade no âmbito da aposentadoria es-
pecial, podem ser provados por quaisquer meios ou instrumentos
admitidos pelo direito como idôneos. Nesse sentido, vale lembrar
que o artigo 369 do CPC estipula que “as partes têm o direito de
empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legí-
timos, ainda que não especificados neste Código, para provar a
verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir
eficazmente na convicção do juiz”.
Analisemos, de início, os denominados meios de prova
típicos, ou seja, expressamente regulados em nosso diploma pro-
cessual:
► a) ata notarial: desconheço seu uso, no processo pre-
videnciário, talvez em face do custo elevado e também por se tra-
tar de instituto relativamente novo para nós. Todavia, poderia ser
admitido em ações que objetivam a concessão de aposentadoria
rural, mas não vejo como seria útil para provar tempo especial.

► b) depoimento pessoal: Nada impede que o Juízo quei-


ra ouvir a parte autora, mas geralmente não há designação de au-
diência, nas ações que objetivam a concessão de aposentadoria
especial. Caso seja designada audiência, para a oitiva de testemu-
nhas, é essencial que o segurado também seja ouvido.

► c) confissão: não se aplica na seara previdenciária, tendo


em vista que o INSS é equiparado à Fazenda Pública e, por essa
razão, a ele não se aplicam os efeitos da revelia ou da confissão.

► d) exibição de documento ou coisa: em algumas situa-


ções a empresa se recusa a apresentar o laudo pericial que susten-
tou as informações consignadas no PPP. Nessas hipóteses, desde
que o segurado demonstre cabalmente que procurou obter o docu-
178

mento, cabe ao Juízo oficiar a empresa para que junte aos autos o
laudo ou esclareça a impossibilidade de cumprir a ordem judicial,
sob pena de multa diária. Vale esclarecer que entendemos não se
aplicar ao processo previdenciário, que possui peculiaridades, o
disposto no artigo 401 do CPC, que exige a instauração de um
processo incidental para obtenção de documentos em poder de
terceiros. Ao contrário, se aplica a regra do artigo 380 do CPC:
“Incumbe ao terceiro, em relação a qualquer causa: (...) II - exibir
coisa ou documento que esteja em seu poder. Parágrafo único.
Poderá o juiz, em caso de descumprimento, determinar, além da
imposição de multa, outras medidas indutivas, coercitivas, man-
damentais ou sub-rogatórias.”

► e) prova documental: trata-se da prova mais importan-


te nessa espécie de ação previdenciária. Para o período anterior a
edição da Lei 9032/95, basta a juntada de formulários previstos
na legislação que atestem o exercício de determinada atividade,
de forma habitual, ou o contato com agente químico ou biológi-
co11. Especificamente, para os agentes ruído e calor já era neces-
sária a elaboração e de laudo pericial.

Questão controvertida diz respeito ao reconhecimento,


por atividade, somente com a apresentação de cópia da Carteira
de Trabalho. Nos parece que se se tratar, especificamente, de ati-
vidade prevista nos Decretos12 não há porque negar o reconheci-
mento, tendo em vista que as anotações sem rasuras na Carteira

11
Tais com o SB-40 ou o DIRBEN 80-30.
12
Nesse período, as atividades e agentes considerados insalubres se
encontram no Anexo do Decreto 53831/64 e do Anexo II do Decreto
83080/79.
179

de Trabalho possuem presunção de veracidade. Por outro lado,


em caso de atividade que seja admitida por similaridade, entendo
que o formulário é essencial pois a descrição da atividade é muito
relevante13.

► f) prova testemunhal. Embora incomum, nada impede


a realização de audiência de instrução e julgamento, nos proces-
sos que objetivam a concessão de aposentadoria especial. A título
de exemplo, é possível provar por meio de prova oral falsidades
fáticas no PPP, tais como a ausência de uso de EPI14 ou ainda se
o segurado portava ou não arma de fogo, em sua atividade de
vigilante.

Importa recordar que a prova testemunhal somente não


pode ser admitida, nos termos do artigo 443 do CPC, para provar
fatos já provados por documento ou confissão da parte ou ainda
nas hipóteses em que só por documento ou por exame pericial
puderem ser provados.

13
É o caso, na minha opinião, do vigilante. Porém, deixo consignado
que a questão é bastante polêmica.
14
O prof. Carlos Domingos afirma que atestar o EPI como eficaz é
temerário por várias razões: “[...] Primeiro porque é de trivial sabença,
principalmente em vínculos empregatícios mais antigos, que a imensa
maioria dos empregadores não fornecia tais equipamentos e, quando
o fazia, era de forma precária e inadequada. Segundo porque é de
comum conhecimento que os trabalhadores reclamam constantemen-
te dos incômodos gerados pelos equipamentos de proteção, levando
à utilização indevida, errônea, parcial, ou até mesmo a não usá-los,
apesar de colocados à disposição. [...] Terceiro motivo, talvez o mais
preocupante e corriqueiro, é que a prática da advocacia previdenciária
por vários anos nos permite afirmar, com absoluta segurança, que con-
siderável parte das empresas, no tocante ao preenchimento do campo
sobre EPIs constantes dos PPPs, omite informações ou documentos,
ou simplesmente mente incisivamente (op.cit. 207/208)..
180

► g) prova pericial. Segundo o professor Misael Monte-


negro a perícia pode ser definida como:

Assim, podemos afirmar que a perícia


é modalidade de prova que objetiva fornecer
esclarecimentos ao magistrado a respeito
de questões técnicas, que extrapolam o seu
conhecimento científico, podendo ser de
qualquer natureza e relacionada a todo e
qualquer ramo do conhecimento humano,
destacando-se os esclarecimentos nas
áreas da engenharia, da contabilidade, da
medicina e da topografia. Ao analisar os
autos, o magistrado constata a necessidade
de esclarecer questão técnica  para o
julgamento do processo, ressentindo-se dos
mínimos conhecimentos para a compreensão
da matéria, por essa razão solicitando a
ajuda de um terceiro (perito), responsável
pela elaboração de laudo pericial.
(MONTENEGRO FILHO, 2019, p. 460).

A perícia direta ou ainda a perícia por similaridade tem


sido deferida pela jurisprudência, desde que atendidos alguns re-
quisitos. O tema será aprofundado mais adiante.

► h) inspeção judicial: embora admissível é pouco utili-


zada, mormente no processo previdenciário. Especificamente, no
que diz respeito à prova de nocividade nos parece pouco eficaz.
► i)  prova emprestada15: Não observo óbice à utiliza-
ção de provas emprestadas, tais como uma perícia elaborada na
Justiça do Trabalho, um laudo elaborado por sindicato ou ainda

15
CPC artigo 372 -  O juiz poderá admitir a utilização de prova produ-
zida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequa-
do, observado o contraditório.
181

pela fiscalização ou mesmo um laudo individual, mesmo que


extemporâneo. Embora a IN 77/15 do INSS, naturalmente, não
vincule o Poder Judiciário, não pode ser totalmente desprezada
como fonte do direito previdenciário e traz algumas luzes. Nesse
sentido, vale citar:

IN 77/15 do INSS - Artigo 261. Poderão ser


aceitos, em substituição ao LTCAT, e ainda de
forma complementar, desde que contenham os
elementos informativos básicos constitutivos
relacionados no art. 262, os seguintes
documentos: I - laudos técnico-periciais
realizados na mesma empresa, emitidos por
determinação da Justiça do Trabalho, em
ações trabalhistas, individuais ou coletivas,
acordos ou dissídios coletivos, ainda que
o segurado não seja o reclamante, desde
que relativas ao mesmo setor, atividades,
condições e local de trabalho.

Não é outro o posicionamento majoritário da jurisprudência:

[...] Tratando-se de prova pericial, produzida


por perito isento e sem interesse na causa,
tendo a avaliação sido realizada no mesmo
local de prestação do serviço e, a função
avaliada era a mesma desempenhada pelo
autor, é de se admitir a ‘prova emprestada’;
ademais, a autarquia teve vista do documento
e não arguiu qualquer vício a elidir suas
conclusões. (...). (TRF da 3ª Região -
Apelação Cível nº 1887565, Rel. Des. Federal
Toru Yamamoto, 7ª Turma, e-DJF3 Judicial 1
Data:13.09.2019).

Não observo infringência, ao menos na seara previdenciá-


ria, no fato do INSS não ter participado da construção da prova na
Justiça do Trabalho, sob pena de enfraquecer sobremaneira esse
182

importante instituto processual16. Naturalmente, o INSS poderá


impugnar o conteúdo do documento.
Entre os meios atípicos é possível citar os indícios e a pre-
sunção.

j) Indícios: O festejado processualista Marcelo Abelha en-


sina que indício é toda circunstância fática que gera a convicção
sobre o fato principal. Defende que os indícios podem ser mui-
to importantes quando não há como se comprovar diretamente o
fato principal. Conclui que a convicção obtida com a prova indi-
ciária não é igual àquela que se obtém quando da demonstração
da existência do fato principal. Existe um degrau entre a prova do
fato indiciário e a convicção acerca do fato principal. Esse degrau
será preenchido pelo juiz, pela convicção que se forma diante da
análise sobre o conjunto probatório. (ABELHA, 2016, p. 563).

A título de ilustração de indícios que podem ser utilizados


temos o recebimento de adicional de insalubridade ou periculosi-
dade. Por si só, o recebimento dos adicionais de natureza traba-
lhista, não demonstram o contato habitual e permanente com o
agente nocivo, tendo em vista que podem, eventualmente, ter por
beneficiários trabalhadores que estão afastados do contato direito
com os agentes nocivos. A concessão do benefício trabalhista se
efetiva em razão de uma categoria profissional e não necessaria-
mente para quem tem efetivo risco à sua saúde. Todavia, pode ser
admitido como indício que, juntamente com outras provas, pode

16
Nesse sentido: I Jornada de Direito Processual Civil CJF/CEJ,
2017: Enunciado n. 30 – “É admissível a prova emprestada, ainda que
não haja identidade de partes, nos termos do art. 372 do CPC”.
183

gerar no julgador a certeza do contato com o agente insalubre17.

k) Presunções18: A jurisprudência, e inclusive normas ad-


ministrativas do INSS, admitem o uso de presunções, tal como
a inexistência de EPI eficaz para agentes químicos cancerígenos
listados no grupo I da LINACH19.

QUESTÕES CONTROVERTIDAS NA DOUTRINA E NA


JURISPRUDÊNCIA

EPI EFICAZ: REAL EFICÁCIA, USO E ÔNUS DA PROVA

Analisemos as novas normas do Decreto que tratam desse tema.

Decreto 3048/99 - Artigo 64.  A aposentadoria


especial, uma vez cumprido o período de
carência exigido, será devida ao segurado
empregado, trabalhador avulso e contribuinte
individual, este último somente quando
cooperado filiado a cooperativa de trabalho
ou de produção, que comprove o exercício de
atividades com efetiva exposição a agentes
químicos, físicos e biológicos prejudiciais
à saúde, ou a associação desses agentes,
de forma permanente, não ocasional nem
intermitente, vedada a caracterização por
categoria profissional ou ocupação, durante,

17
Esse é o entendimento do prof. Sérgio Pinto Martins: “não neces-
sariamente, a aposentadoria especial irá coincidir com as pessoas que
recebem adicionais de remuneração. Exemplo seria o adicional de pe-
riculosidade. O pagamento do adicional pode ser um indício ao direito
à aposentadoria especial.” (MARTINS, 2000, p. 367).
18
Decreto 3048/99 - Artigo 68. [...]
19
Trata-se da Lista Nacional de Agentes Cancerígenos para Humanos.
O grupo I traz a lista dos agentes que, cientificamente, são canceríge-
nos.
184

no mínimo, quinze, vinte ou vinte e cinco anos,


e que cumprir os seguintes requisitos:  [...]

Esse primeiro dispositivo esclarece que cabe ao segurado


comprovar que trabalha em atividades com efetivo contato com
agentes nocivos. Portanto, a primeira consequência da análise da
legislação é o ônus da prova. Em regra, o ônus da prova cabe ao
autor quanto aos fatos narrados na exordial. Porém, há exceções
que devem ser analisadas durante a fase de saneamento do pro-
cesso:

CPC - artigo Art. 357. Não ocorrendo


nenhuma das hipóteses deste Capítulo,
deverá o juiz, em decisão de saneamento e de
organização do processo: [...]
III - definir a distribuição do ônus da prova,
observado o art. 373;

É o caso da prova relativa à eficácia do EPI ou ainda se ele


restou ou não franqueado ao trabalhador. A Turma Nacional de
Uniformização dos Juizados Especiais Federais enfrentou, recen-
temente, a matéria:

Tema 213 da TNU - A informação no


Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP)
sobre a existência de equipamento de
proteção individual (EPI) eficaz pode ser
fundamentadamente desafiada pelo segurado
perante a Justiça Federal, desde que exista
impugnação específica do formulário na causa
de pedir, onde tenham sido motivadamente
alegados:
(i.) a ausência de adequação ao risco da
atividade;
(ii.) a inexistência ou irregularidade do
certificado de conformidade;
(iii.) o descumprimento das normas de
manutenção, substituição e higienização;
(iv.) a ausência ou insuficiência de orientação
e treinamento sobre o uso o uso adequado,
guarda e conservação; ou
185

(v.) qualquer outro motivo capaz de conduzir


à conclusão da ineficácia do EPI.
II - Considerando que o Equipamento de
Proteção Individual (EPI) apenas obsta a
concessão do reconhecimento do trabalho
em condições especiais quando for realmente
capaz de neutralizar o agente nocivo, havendo
divergência real ou dúvida razoável sobre a
sua real eficácia, provocadas por impugnação
fundamentada e consistente do segurado, o
período trabalhado deverá ser reconhecido
como especial.

Portanto, decidiu que o ônus da prova cabe à parte autora.


Todavia, em caso de dúvida razoável o período será reconheci-
do como especial. Penso que, independentemente da posição da
TNU, deve o juiz deixar claro que o ônus da prova é do autor,
na fase de saneamento - no rito comum - ou no despacho inicial
saneador, no rito sumaríssimo dos Juizados Especiais Federais,
valorizando a segurança jurídica e possibilitando a produção da
prova por aquele que sofrerá o ônus processual.

PROVA DO CONTATO HABITUAL E PERMANENTE

Decreto 3048/99 - Artigo 65. Considera-se tempo de tra-


balho permanente aquele que é exercido de forma não ocasional
nem intermitente, no qual a exposição do empregado, do traba-
lhador avulso ou do cooperado ao agente nocivo seja indissociá-
vel da produção do bem ou da prestação do serviço. [...]

Decreto 3048/99 - Artigo 68. [...] § 2º A


avaliação qualitativa de riscos e agentes
prejudiciais à saúde será comprovada pela
descrição:
I  -  das circunstâncias de exposição
ocupacional a determinado agente ou
associação de agentes prejudiciais à saúde
presentes no ambiente de trabalho durante
toda a jornada de trabalho;
186

II - de todas as fontes e possibilidades de


liberação dos agentes mencionados no inciso
I; e
III  -  dos meios de contato ou exposição
dos trabalhadores, as vias de absorção, a
intensidade da exposição, a frequência e a
duração do contato. (BRASIL, 2020). 

Em regra, a prova do contato habitual e permanente de-


penderá de informações consignadas no laudo pericial e, por con-
sequência, no PPP (Perfil Profissiográfico Previdenciário). Por
outro lado, não há como desvincular o contato não ocasional com
o agente insalubre, da descrição das atividades laborais do segu-
rado. Nesse sentido, caminha a jurisprudência:

TNU Tema 210 - Para aplicação do artigo


57, §3.º, da Lei n.º 8.213/91 à tensão elétrica
superior a 250 V, exige-se a probabilidade
da exposição ocupacional, avaliando-se, de
acordo com a profissiografia, o seu caráter
indissociável da produção do bem ou da
prestação do serviço, independente de tempo
mínimo de exposição durante a jornada.
TNU Tema 211 - Para aplicação do artigo 57,
§3.º, da Lei n.º 8.213/91 a agentes biológicos,
exige-se a probabilidade da exposição
ocupacional, avaliando-se, de acordo com a
profissiografia, o seu caráter indissociável da
produção do bem ou da prestação do serviço,
independente de tempo mínimo de exposição
durante a jornada.

Embora as teses pacificadas na Turma Nacional de Uni-


formização tratem de agentes específicos, nos parece que esse
é o melhor caminho para definir o conceito de permanência em
relação ao contato com quaisquer agentes insalubres ou perigo-
sos. Vale destacar que, atualmente, o próprio regulamento segue
essa trilha. (BRASIL, 1999, caput do artigo 65).
187

IMPUGNAÇÃO AO CONTEÚDO DO PPP

Decreto 3048/99 - Artigo 68.


[...] § 8º A empresa deverá elaborar e manter
atualizado o perfil profissiográfico previdenciário,
ou o documento eletrônico que venha a
substituí-lo, no qual deverão ser contempladas
as atividades desenvolvidas durante o período
laboral, garantido ao trabalhador o acesso às
informações nele contidas, sob pena de sujeição
às sanções previstas na alínea “h” do inciso I
do caput do art. 283.
§ 9º Para fins do disposto no § 8º, considera-
se perfil profissiográfico previdenciário o
documento que contenha o histórico laboral
do trabalhador, elaborado de acordo com o
modelo instituído pelo INSS. (BRASIL, 2020).

A veracidade das informações consignadas no PPP


depende de sua congruência com as informações constantes dos
laudos técnicos que o embasam. Essa congruência é presumida e,
por essa razão, em regra é desnecessária a apresentação conjunta
do PPP e dos laudos técnicos que fundamentaram o preenchimen-
to do formulário, salvo se houver indícios de fraude ou erro no
preenchimento ou ainda dúvidas em relação a alguma informação
importante. (CASTRO; LAZZARI, 2020, p. 604).
Entendo extremamente difícil contestar o resultado da
perícia elaborada pela empresa, por meio de perícia direta, nas hi-
póteses em que a empresa se encontra ativa e não houve alteração
de seu layout. Entendo que a parte deve demonstrar a inconsistên-
cia dos dados que constam no PPP. Sem fortes indícios de fraude
ou erro no preenchimento, não há como deferir a perícia direta20.

20
Nesse sentido: (TRF4, Processo 5016716-16.2016.4.04.7208,
TURMA REGIONAL SUPLEMENTAR DE SC, j. 20/02/2020 [...]
PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA ESPECIAL. APOSENTA-
DORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO. REQUISITOS NÃO
PREENCHIDOS. TEMPO DE SERVIÇO ESPECIAL. CONVER-
188

Afinal, porque o Juízo deveria aceitar as conclusões da perícia


realizada anos depois e desprezar o laudo pericial elaborado pela
empresa, na época da prestação de serviços? No mais, porque
deveria determinar que se elaborasse perícia apenas em relação a
períodos que a sentença não reconheceu como especiais? Seria o
caso, eventualmente, de produzir provas para todos os períodos o
que, eventualmente, geraria prejuízo para o segurado.
Por fim, a prova de que o trabalho gerava contato habitual
e permanente com agente insalubre exige descrição das ativida-
des e o perito não tem como atestar como se dava o cotidiano das
atividades laborais do segurado.
Situação diversa diz respeito à retificação do PPP em face
de questionamento sobre o EPI eficaz que admite prova pericial
ou ainda prova testemunhal para impugnar a informação.
Por fim, prevalece o entendimento na jurisprudência que
eventual retificação do PPP deveria ser objeto de ação autônoma,
na Justiça do Trabalho e não na Justiça Federal tendo em vista,
inclusive, que pode gerar consequências nas relações de trabalho
entre o empregado e o empregador. Pessoalmente, entendo que é
admissível a retificação na Justiça do Trabalho, em face do em-
pregador ou ainda a perícia direta, na Justiça Federal, desde que
haja fortes indícios de fraude ou erro no preenchimento do PPP.

SÃO. POSSIBILIDADE. 1. Não há falar em cerceamento de defesa


no indeferimento do pedido de realização de perícia judicial se acosta-
do aos autos formulários PPP e laudos referentes às condições ambien-
tais da prestação laboral, sendo aquele o documento exigido pela le-
gislação previdenciária como meio de prova do exercício de atividades
nocivas, nos termos do § 3º do art. 68 do Decreto 3.048/99. A simples
discordância com o teor das provas existentes no processo, sem haver
específica razão para tanto, não é o bastante para justificar a realização
de perícia judicial. [...]
189

PERÍCIA POR SIMILARIDADE

A prova da insalubridade, nos casos em que a empresa en-


cerrou a atividade, é bastante difícil de ser realizada. Por essa
razão, é possível caso não haja outras provas, produzir uma perícia
em uma empresa semelhante, ou seja, produzir a prova por simi-
laridade. Todavia, várias condições deverão ser atendidas, como
esclarece a jurisprudência da Turma Nacional de Uniformização
dos Juizados Especiais Federais:

TNU - processo nº 0001323-30.2010.4.03.6318


[...] é possível a realização de perícia indireta
(por similaridade) se as empresas nas quais
a parte autora trabalhou estiverem inativas,
sem representante legal e não existirem
laudos técnicos ou formulários, ou quando
a empresa tiver alterado substancialmente as
condições do ambiente de trabalho da época
do vínculo laboral e não for mais possível
a elaboração de laudo técnico, observados
os seguintes aspectos: (i) serem similares,
na mesma época, as características da
empresa paradigma e aquela onde o trabalho
foi exercido, (ii) as condições insalubres
existentes, (iii) os agentes químicos aos quais
a parte foi submetida, e (iv) a habitualidade e
permanência dessas condições.

A análise da possibilidade ou não da perícia por simila-


ridade - sob a ótica da semelhança das condições - deverá ser
feita necessariamente pelas instâncias ordinárias, ou seja, não me
parece adequado que a Turma Nacional de Uniformização ou o
Superior Tribunal de Justiça determine que haja a perícia indi-
reta, sob pena de violação à súmula 7 do STJ que proíbe que
os tribunais de uniformização de jurisprudência julguem o caso
concreto, criando nova instância de julgamento, não prevista no
texto constitucional.
A questão da prova por similaridade exige maior aprofun-
damento, a meu ver. Na verdade, se trata de retorno à presunção
190

de insalubridade ou de periculosidade que existia, antes da Lei


9032/95. De fato, a perícia por similaridade deve, em sede de
ação que objetiva o reconhecimento de tempo especial, ser aco-
lhida com reservas. Deve o autor demonstrar, em primeiro lugar,
que a empresa em que trabalhou encerrou suas atividades. No
mais, deve demonstrar, ao menos de forma indiciária, que o local
em que se realizará a perícia, na empresa paradigma, é similar ao
local em que trabalhou. Em face do agente ruído não há como
se utilizar perícia por similaridade, em nenhuma hipótese, tendo
em vista que as condições, maquinário e ambiente influenciam,
de forma significativa, na medição do ruído21. Por fim, deve de-
monstrar o contato habitual e permanente com o agente insalu-
bre, tendo em vista que não há representante do empregador para
atestar esse fato.

LAUDO PERICIAL ELABORADO POR TÉCNICO EM


SEGURANÇA DO TRABALHO

Decreto 3048/99 - Artigo 68 § 3º  A


comprovação da efetiva exposição do
segurado a agentes prejudiciais à saúde será
feita por meio de documento, em meio físico
ou eletrônico, emitido pela empresa ou por
seu preposto com base em laudo técnico de
condições ambientais do trabalho expedido
por médico do trabalho ou engenheiro de
segurança do trabalho.
§ 5º O laudo técnico a que se refere o § 3º
conterá informações sobre a existência de
tecnologia de proteção coletiva ou individual
e sobre a sua eficácia e será elaborado
com observância às normas editadas pela
Secretaria Especial de Previdência e Trabalho
do Ministério Economia e aos procedimentos
adotados pelo INSS. (BRASIL, 2020).

21
Trata-se de minha opinião, mas ela é minoritária na jurisprudência.
191

Embora a jurisprudência não seja majoritária quanto a essa


tese, entendo que é necessário flexibilizar essa regra para aceitar
os laudos técnicos elaborados por técnicos em segurança do tra-
balho. O trabalhador não pode ser responsabilizado pela incúria
dos empregadores e o técnico em segurança do trabalho tem com-
petência para atestar o nível de ruídos ou o contato habitual e
permanente com agentes biológicos ou químicos. Analisemos a
legislação de regência. A Lei 7410/85 regulamenta a profissão
dos profissionais responsáveis pela segurança do trabalho, entre
os quais a do técnico de segurança do trabalho. A lei não traz as
atribuições desse profissional, mas a Portaria 3214/78 (Ministério
do Trabalho), mais conhecida como NR-4 estabelece a obrigato-
riedade de as empresas organizarem e manterem o Serviços Es-
pecializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Tra-
balho – SESMT, que contarão, em regra, com engenheiro, médico
e técnico em segurança do trabalho e que ficarão responsáveis
pela elaboração de planos de prevenção de acidentes e doenças
ocupacionais. Especificamente a Portaria 3214/78 do Ministério
do Trabalho (NR9), estipula:

Portaria 3214/78 - 9.1.1 Esta Norma


Regulamentadora - NR estabelece
a obrigatoriedade da elaboração e
implementação, por parte de todos os
empregadores e instituições que admitam
trabalhadores como empregados, do
Programa de Prevenção de Riscos Ambientais
- PPRA, visando à preservação da saúde e
da integridade dos trabalhadores, através
da antecipação, reconhecimento, avaliação
e consequente controle da ocorrência de
riscos ambientais existentes ou que venham
a existir no ambiente de trabalho, tendo em
consideração a proteção do meio ambiente e
dos recursos naturais. [...].
9.3.1.1 A elaboração, implementação,
acompanhamento e avaliação do PPRA
poderão ser feitas pelo Serviço Especializado
em Engenharia de Segurança e em Medicina
192

do Trabalho - SESMT ou por pessoa ou equipe


de pessoas que, a critério do empregador,
sejam capazes de desenvolver o disposto
nesta NR.

Conclui-se que o técnico em segurança do trabalho pode


elaborar o PPRA22 que, embora não se confunda com um laudo
técnico pericial, exige o levantamento de todos os riscos ambien-
tes, monitoramento do nível de agentes químicos e de ruído, além
de uso de EPI ou EPC23. Vale frisar que a Instrução Normativa
77/15 admite, em seu artigo 261, a comprovação da insalubridade
por meio de PPRA, na ausência de LTCAT:

IN 77 Artigo 261 - Poderão ser aceitos, em


substituição ao LTCAT, e ainda de forma
complementar, desde que contenham os
elementos informativos básicos constitutivos
relacionados no art. 262, os seguintes
documentos: [...] V – as demonstrações
ambientais:
a) Programa de Prevenção de Riscos
Ambientais – PPRA;
b) Programa de Gerenciamento de Riscos –
PGR;
c) Programa de Condições e Meio Ambiente
de Trabalho na Indústria da Construção –

22
Programa de Prevenção de Riscos Ambientais.
23
NR9 - 9.3.6 Do nível de ação. 9.3.6.1 Para os fins desta NR, consi-
dera-se nível de ação o valor acima do qual devem ser iniciadas ações
preventivas de forma a minimizar a probabilidade de que as expo-
sições a 5 agentes ambientais ultrapassem os limites de exposição.
As ações devem incluir o monitoramento periódico da exposição, a
informação aos trabalhadores e o controle médico. 9.3.6.2 Deverão ser
objeto de controle sistemático as situações que apresentem exposição
ocupacional acima dos níveis de ação, conforme indicado nas alíneas
que seguem: a) para agentes químicos, a metade dos limites de exposi-
ção ocupacional considerados de acordo com a alínea “c” do subitem
9.3.5.1; b) para o ruído, a dose de 0,5 (dose superior a 50%), conforme
critério estabelecido na NR-15, Anexo I, item 6.
193

PCMAT; e
d) Programa de Controle Médico de Saúde
Ocupacional – PCMSO.

Ademais, é interessante notar que a jurisprudência admite,


de forma pacífica, laudos extemporâneos24 e, inclusive, perícias
por similaridade em empresa diversa daquela em que o trabalha-
dor laborou, ou seja, admite prova por absoluta presunção, com
fundamento no argumento de que o segurado não pode ser preju-
dicado por fatos sobre os quais não teve nenhuma influência, tais
como a inexistência de laudos periciais antigos ou ainda em face
do encerramento das atividades da empresa. Me parece muito
mais crível um levantamento técnico realizado por um técnico
de segurança do trabalho que um laudo realizado 30 ou 40 anos
depois, em um local onde o segurado não exerceu suas atividades
e em face de maquinário ou ambiente de trabalho absolutamente
diverso do original.
A título de contraponto, em sentido contrário ao ora defen-
dido, vale citar o entendimento de Adriane Bramante:

Somente pode ser assinado por engenheiro de


segurança ou médico do trabalho, conforme
exige o art. 58, § 1º, da Lei 8.213/1991. Se
estiver assinado, por exemplo, por técnico de
segurança do trabalho não tem validade. Ele
não é um profissional habilitado a assinar esse
tipo de documento. Conforme determina a IN
77/2015, em seu art. 262, parágrafo único, o
LTCAT deverá ser assinado por engenheiro
de segurança do trabalho, com o respectivo
número da Anotação de Responsabilidade
Técnica – ART, junto ao Conselho Regional
de Engenharia e Agronomia – CREA, ou por
médico do trabalho, indicando os registros
profissionais para ambos. Quando o laudo é
elaborado por engenheiro de segurança ou por

24
TNU Súmula 68 - O laudo pericial não contemporâneo ao período
trabalhado é apto à comprovação da atividade especial do segurado.
194

médico do trabalho que não seja empregado


da empresa, é necessário que ela forneça
uma declaração para o INSS informando que
o profissional foi contratado pela empresa,
devendo ainda anexar cópia da habilitação
profissional. (LADENTHIN, 2020, p. 266).

Aplicação das máximas de experiência comum na prova


da nocividade.
Por derradeiro, me parece interessante analisar a aplicação
das “máximas da experiência comum”, na problemática em foco.
O CPC, em seu artigo 375 estipula:

CPC - Artigo 375. O juiz aplicará as regras


de experiência comum subministradas pela
observação do que ordinariamente acontece
e, ainda, as regras de experiência técnica,
ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.

Humberto Theodoro Júnior traz o conceito desse instituto:

A propósito do disposto no art. 375, há de se ter


em conta que as máximas de experiência não
se confundem com o conhecimento pessoal
do juiz sobre algum fato concreto. [...]
Representam, na verdade, percepções em
abstrato do que ordinariamente acontece.
Integram a “cultura média da sociedade”,
isto é, a “cultura do homem médio”,
formando um verdadeiro “patrimônio
comum de uma coletividade”. Por isso que,
sendo noções conhecidas e indiscutíveis,
podem ser utilizadas sem depender de
prova e sem violação da imparcialidade
do juiz e do contraditório. As máximas de
experiência podem formar-se a partir da
experiência  comum (empírica) como da
experiência  técnica (científica). Entretanto,
em qualquer caso, deverão cair no domínio
público, isto é, no conhecimento geral do
homem médio da coletividade. (THEODORO
JÚNIOR, 2019, p. 908).
195

Indago se referido instituto não poderia ser utilizado no


que se refere à impossibilidade de existência de EPI eficaz, no
caso de agentes perigosos. Qualquer pessoa, independentemente
de conhecimento técnico específico ou ainda de nível de escola-
ridade formal, sabe da absoluta impossibilidade de se evitar, com
um mínimo de garantias, os riscos decorrentes das altas tensões,
ou de um tiro de arma de fogo ou ainda de uma explosão. Não
observo necessidade de um médico ou engenheiro ter de afirmar
que um colete à prova de balas, embora de uso essencial, não
protege o vigilante de ser alvejado com um tiro na cabeça, por
exemplo.
Ainda dentro desse tópico vale refletir sobre a necessidade
de laudo técnico pericial para o reconhecimento - até a promul-
gação da EC 103/19 - de tempo especial decorrente de periculo-
sidade.
Nesse sentido, ainda, temos que analisar a questão rela-
tiva aos agentes biológicos. Na verdade, se trata de uma mescla
de insalubridade e de periculosidade. Há agentes biológicos cujo
contato tem, apenas, a potencialidade de gerar risco à saúde do
trabalhador. Por outro lado, há agentes biológicos que trazem ime-
diato risco de contágio, tal como a COVID-19, o HIV ou outros
vírus e bactérias. Por essa razão, é possível afirmar que não há
EPI eficaz para determinadas atividades, em hospitais e centros
de saúde, tais como no cotidiano de um auxiliar de enfermagem,
mas em outras atividades o EPI pode ser considerado eficaz, tal
como no caso de um atendente ou de uma psicóloga.

CONCLUSÃO

A única conclusão possível é que ainda estamos engati-


nhando no tema da produção de provas, nas ações previdenciárias
de forma geral e, com mais razão, nas que objetivam a conces-
são de aposentadoria especial. Esse artigo visa apenas iniciar um
debate que entendo necessário e urgente, para evitar que erros
196

sejam cometidos em face dos segurados, quer com concessões


indevidas, quer principalmente com indeferimentos injustos.

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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito


Processual Civil. 60. ed., Rio de janeiro, Forense, 2019. v. 1.
198
199

BREVES APONTAMENTOS SOBRE O


PLANEJAMENTO PREVIDENCIÁRIO À LUZ
DO DECRETO Nº 10.410/2020

Roberto de Carvalho Santos1

INTRODUÇÃO

O Direito Previdenciário tem como função primordial as-


segurar a manutenção dos trabalhadores e de seus dependentes
na eventual verificação do preenchimento dos requisitos exigidos
para a concessão de um dos seus benefícios.
Embora alguns dos benefícios sejam caracterizados pela
imponderabilidade do momento de início, por dependerem da
ocorrência de eventos imprevisíveis (como o óbito, por exemplo),
é razoável afirmar que é possível que o segurado execute, de
maneira prévia, determinadas ações cujo objetivo se resume a
permitir que o benefício previdenciário seja o mais vantajoso
possível, de acordo com a realidade individual e com as suas li-
mitações contributivas.
Nesse sentido, a elaboração de um planejamento previden-
ciário ganha destaque.
Cumpre, a princípio e com brevidade, definir em que con-
siste o objeto de estudo do presente artigo.
O planejamento previdenciário consiste na realização de
um estudo para verificar se o beneficiário possui direito a qual-

1
Advogado especialista em Direito Previdenciário. Professor de
cursos de pós-graduação em Direito Previdenciário. Presidente do
Instituto de Estudos Previdenciários – IEPREV. Presidente da
Comissão de Direito Previdenciário – Regime de Previdência Comple-
mentar da OAB/MG e membro da Comissão de Direito Previdenciário
da OAB/SP.
200

quer benefício previdenciário ou assistencial, bem como apresen-


tar opções para que ele receba o melhor benefício possível de
acordo com a legislação em vigor ou de acordo com a legislação
já revogada, caso seja verificado o direito adquirido à aplicação
de regra anterior mais vantajosa.
Considerando, contudo, a frequente alteração da legisla-
ção previdenciária, é necessário que o profissional previdencia-
rista busque constantemente manter-se a par de todas das novas
regras de acesso aos benefícios previdenciários, bem como os cri-
térios de cálculo utilizados.
Do mesmo modo, é necessário verificar se as conclusões
acerca da concessão de benefícios previdenciários apontadas em
pareceres anteriores são compatíveis com o novo ordenamento.
Nesse contexto de constantes alterações normativas sobre-
veio o Decreto nº 10.410, de 30 de junho de 2020, que alterou
profundamente o Decreto nº 3.048/1999, que aprovou o Regula-
mento da Previdência Social.
O Decreto nº 10.410/2020 teve como função precípua a
adequação do Regulamento da Previdência Social às alterações
promovidas com a promulgação da Emenda Constitucional nº
103/2019, embora não tenha se limitado a este escopo.
Serão estudadas, dessa maneira, os principais aspectos das
inovações trazidas pelo referido Decreto no que concerne à rea-
lização do planejamento previdenciário, tanto para os benefícios
programados quanto aos benefícios de risco.
Importante salientar, por fim, que o presente artigo não
tem a pretensão de exaurir a matéria, tendo por objetivo somente
suscitar a discussão em torno das mudanças que possuem maior
potencial de impactar as conclusões do planejamento previden-
ciário e, com isso, contribuir para que estes estudos sejam mais
efetivos para a prática dos profissionais que atuam a consultoria
previdenciária.
201

INAPLICABILIDADE DO DIVISOR MÍNIMO EM BE-


NEFÍCIOS CONCEDIDOS APÓS A PROMULGAÇÃO DA
EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 103/2019

O divisor mínimo é instituto que foi criado com a publi-


cação da Lei nº 9.876/1999, cuja aplicação poderia ocorrer nos
benefícios de aposentadoria por idade, por tempo de contribuição
e especial.
Cumpre destacar, nesse sentido, os ensinamentos de Castro
e Lazzari (2018, p. 576):

Para os segurados já filiados ao RGPS antes


de 29.11.1999, nos casos de aposentadorias
por idade, tempo de contribuição e especial,
o divisor considerado no cálculo da média
não poderá ser inferior a 60% dos meses do
período decorrido da competência julho de
1994 até a data de início do benefício, limitado
a 100% de todo o período contributivo (art.
188-A, § 1º, do Decreto n. 3.048/1999). Já
nos casos de auxílio-doença e aposentadoria
por invalidez, o salário de benefício consiste
na média aritmética simples dos maiores
salários de contribuição correspondentes
a 80% do período contributivo decorrido
desde a competência julho de 1994 até a
data do início do benefício (art. 188-A, §
4º, do Decreto n. 3.048/1999), mesmo que o
número de contribuições seja inferior a 60%
desse período.

Em breves palavras, o divisor mínimo a ser utilizado no


cálculo da média salarial dos segurados filiados ao Regime Geral
de Previdência Social antes da publicação da Lei nº 9.876/1999
deveria ser equivalente a 60% do total de meses compreendidos
entre julho de 1994 e o mês em que o benefício foi requerido.
Caso o segurado contasse com contribuições em um
número de meses entre 60% e 80% da quantidade de competên-
cias decorridas entre julho de 1994 e o mês em que o benefício foi
202

requerido, o divisor utilizado no cálculo da média salarial seria


equivalente à quantidade de salários de contribuição existentes no
período básico de cálculo, mas não haveria o descarte dos 20%
menores salários de contribuição.
Por fim, caso o segurado contasse com contribuições em
um número de meses superior a 80% dos meses decorridos entre
07/1994 e o mês em que o benefício tivesse sido requerido, o
divisor utilizado seria equivalente à quantidade de parcelas con-
sideradas no cálculo da média salarial, mas desta vez com o des-
carte dos 20% menores salários de contribuição.
Como exemplo, imagine-se um caso em que o segura-
do tenha solicitado o benefício de aposentadoria por tempo de
contribuição em outubro de 2019. Importante mencionar que de
julho de 1994 a outubro de 2019 transcorram 304 meses, que 60%
desse número equivale a 182 meses e 80% equivale a 243 meses.
Caso o segurado contasse com contribuições em menos
de 182 meses a partir de julho de 1994, o divisor seria 182, o que
poderia resultar em severo prejuízo no valor do salário-de-bene-
fício e, consequentemente, no valor da renda mensal inicial do
benefício previdenciário.
Por sua vez, caso o segurado contasse com um número de
contribuições compreendido entre 183 e 242, o cálculo da média
salarial se daria por média aritmética simples sem que, contudo,
houvesse o descarte dos 20% menores salários de contribuição.
Dessa maneira, o prejuízo ao segurado seria menor do que na
hipótese anterior.
O mais desejável cenário, por outro lado, seria aquele em
que o segurado contasse com pelo menos 243 salários de con-
tribuição dentro do período básico de cálculo. Nessa hipótese, a
média salarial seria calculada a partir de média aritmética simples,
mas com a realização do descarte dos menores salários de contri-
buição equivalentes a 20% do total de contribuições dentro do
período básico de cálculo. Essa hipótese é mais vantajosa para o
segurado quando comparada com os dois cenários descritos an-
teriormente.
203

Pois bem.
A sistemática de cálculos acima descrita tornou-se incom-
patível com a nova ordem constitucional. Transcreve-se, a esse
respeito, o disposto no caput do artigo 26 da Emenda Constitu-
cional nº 103/2019:

Art. 26. Até que lei discipline o cálculo


dos benefícios do regime próprio de
previdência social da União e do Regime
Geral de Previdência Social, será utilizada
a média aritmética simples dos salários de
contribuição e das remunerações adotados
como base para contribuições a regime
próprio de previdência social e ao Regime
Geral de Previdência Social, ou como
base para contribuições decorrentes das
atividades militares de que tratam os arts.
42 e 142 da Constituição Federal, atualizados
monetariamente, correspondentes a 100%
(cem por cento) do período contributivo
desde a competência julho de 1994 ou desde
o início da contribuição, se posterior àquela
competência.

O dispositivo acima transcrito é claro ao determinar a


utilização da média aritmética simples para o cálculo da renda
mensal inicial dos benefícios.
O conceito de “média aritmética simples” pertence ao
campo da matemática e pode ser definido como o resultado da
soma de um conjunto de parcelas dividido pelo número total de
parcelas consideradas nessa soma. Dessa maneira, a aplicação do
divisor mínimo tornou-se indevida para benefícios calculados de
acordo com as regras previstas na Reforma da Previdência, tendo
em vista que a incidência do divisor mínimo consiste na utiliza-
ção de um divisor menor do que a quantidade de parcelas consi-
deradas para o cálculo da média.
Dessa maneira, o Decreto nº 10.410/2020 acertou ao
prever a aplicação do divisor mínimo somente para casos em que
o segurado tenha direito adquirido até o dia 13 de novembro de
204

2019, data da publicação da Emenda Constitucional nº 103/2019.


Destaca-se, nesse sentido, o teor do art. 188-E do Decreto nº
3.048/1999, com redação atribuída pelo Decreto nº10.410/2020:

Art. 188-E.  O salário de benefício a ser


utilizado para apuração do valor da renda
mensal dos benefícios concedidos com base
em direito adquirido até 13 de novembro de
2019 consistirá:
I - para as aposentadorias por idade e por
tempo de contribuição, na média aritmética
simples dos maiores salários de contribuição
correspondentes a oitenta por cento de todo o
período contributivo, multiplicada pelo fator
previdenciário; e   
II - para as aposentadorias por invalidez e
especial, auxílio-doença e auxílio-acidente,
na média aritmética simples dos maiores
salários de contribuição correspondentes
a oitenta por cento de todo o período
contributivo.
§ 1º  No caso das aposentadorias por idade,
por tempo de contribuição e especial, o divisor
considerado no cálculo da média a que se
referem os incisos I e II do caput não poderá
ser inferior a sessenta por cento do período
decorrido da competência julho de 1994 até
a data de início do benefício, limitado a cem
por cento de todo o período contributivo.

Considerando que não há previsão similar à contida no §


1º para os benefícios concedidos após a promulgação da Reforma
da Previdência não há que se falar, a contrario sensu, de aplica-
ção do divisor mínimo no cálculo destes benefícios.
Esse fato deve ser observado com atenção no momento de
elaboração do planejamento previdenciário, pois consiste em um
dos maiores possíveis ganhos para o segurado quando comparado
com as hipóteses de incidência da legislação em vigor antes da
Emenda Constitucional nº 103/2019.
O doutrinador Frederico Amado tratou de um possível
205

impacto do afastamento da aplicação do divisor mínimo:

No caso de inexistência de divisor mínimo


para o salário de benefício, bastará que o
segurado que possua os requisitos à luz
da Emenda 103/2019 que possuir largo
período contributivo antes de 7/1994 ter uma
contribuição após o Plano Real no teto para
que o valor base da aposentadoria estar no
teto para, em seguida, aplicar o coeficiente
de 60 a 100%. Antes, com o divisor de 60%,
haveria redução para o salário mínimo.
(AMADO, 2020, p. 337).

Dessa maneira, a ausência da aplicação de um divisor


mínimo cria a possibilidade de que um segurado, por exemplo,
que tenha 14 anos e 11 meses de tempo de contribuição antes
de 07/1994, faça apenas uma contribuição previdenciária sobre o
teto de contribuições (atualmente R$ 6.101,06) para que o valor
do seu benefício de aposentadoria por idade seja equivalente a
60% do teto, ou R$ 3.660,64.
Conforme dito anteriormente, na vigência do ordenamen-
to jurídico-previdenciário anterior o valor do benefício na mesma
situação descrita seria equivalente ao salário mínimo vigente, de
modo que existe grande margem para a concessão de um bene-
fício previdenciário mais vantajoso de acordo com a legislação
anterior.

FIM DA APLICAÇÃO DE JUROS E MULTA PARA INDE-


NIZAÇÕES REFERENTES A PERÍODOS ANTERIORES
À VIGÊNCIA DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.523/1996

Frequentemente, durante a elaboração de um planejamen-


to previdenciário, o profissional previdenciarista se confronta
com a situação de segurados que desempenhavam atividade de
vinculação obrigatória ao Regime Geral de Previdência Social na
qualidade contribuintes individuais e que, por inúmeros motivos,
206

deixaram de realizar o pagamento da correspondente contribui-


ção previdenciária devida tempestivamente.
Grande parte das vezes revela-se vantajosa, do ponto de
vista de critérios de preenchimento dos requisitos para a conces-
são do benefício ou do seu valor, a regularização do período, seja
por meio da realização de contribuições previdenciárias em atraso
(referentes ao período não atingido pela decadência para o lança-
mento da contribuição previdenciária), seja por meio da indeni-
zação dos meses não contribuídos (na hipótese de os meses em
que não foram pagas as contribuições previdenciárias estarem em
períodos em que já tenha ocorrido a decadência para o lançamen-
to do tributo por parte da Administração Pública).
Exige-se, geralmente, para a referida regularização, o pa-
gamento de juros e multa, tendo em vista a realização do paga-
mento de maneira intempestiva.
Convém salientar, por outro lado, que a aplicação de
normas de caráter tributário deve observar o princípio tempus
regit actum, em consonância com o uníssono entendimento juris-
prudencial exemplificado na ementa a seguir colacionada2:

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA.


TRANSFERÊNCIA DE BENS E DIREI-
TOS POR SUCESSÃO HEREDITÁRIA.
LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA. APLICA-
ÇÃO RETROATIVA. IMPOSSIBILIDADE.
1. O fato gerador do imposto de renda é
a aquisição da disponibilidade jurídica de
acréscimo patrimonial de qualquer natureza,
de sorte que o eventual ganho de capital
relacionado à herança sujeita-se às normas
em vigor quando da transmissão dos bens, em
razão da irretroatividade da norma tributária
e do princípio do tempus regit actum.
[...]

2 (REsp 829.932/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA


TURMA, julgado em 10/04/2012, DJe 23/04/2012).
207

Nesse sentido, relevante frisar que a cobrança de juros em


multa sobre o valor devido a título de contribuições previden-
ciárias somente surgiu com a vigência da Medida Provisória nº
1.523/1996, publicada em 14 de outubro de 1996, que inseriu o §
4º ao art. 45 da Lei nº 8.212/1991, inexistindo dispositivo de igual
teor antes da referida data.
Nos ensinam Castro e Lazzari (2016, p. 220):

O reconhecimento do tempo de filiação


é o direito que o segurado tem de ver
observado, em qualquer época, o tempo de
serviço exercido anteriormente em atividade
abrangida pela Previdência Social.
Havendo reconhecimento de filiação em
período em que o exercício de atividade
não exigia filiação obrigatória à Previdência
Social, esse período somente será averbado
se o INSS for indenizado pelas contribuições
não pagas.
[...]
A sistemática de cálculo para a indenização
de períodos pretéritos que estava disciplinada
pelo art. 45 da Lei nº 8.212/1991 foi objeto de
nova regulamentação pela Lei Complementar
nº 128, de 2008, que revogou o referido
dispositivo legal e incluiu o art. 45-A ao texto
da Lei nº 8.212/1991.
Cabe referir ainda que, conforme a
jurisprudência dominante do STJ, é indevida
a exigência de juros moratórios e multa
sobre o valor de indenização substitutiva de
contribuições previdenciárias, relativamente
a período de tempo de serviço anterior à
Medida Provisória nº 1.523, de 1996. (AgRg
no Ag nº 1241785/SP, 6ª Turma, rel. Min. Og
Fernandes, DJe 02.08.2010).

Assim, o entendimento jurisprudencial fixou-se no sentido


que a aplicação de juros e multa somente seria devida para fatos
geradores ocorridos após a vigência da MP 1.523/1996, conforme
208

demonstra a seguinte ementa3:

PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO.


RECOLHIMENTO EXTEMPORÂNEO DE
CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS
JÁ ALCANÇADAS PELA DECADÊNCIA.
PERÍODO ANTERIOR À EDIÇÃO DA MP
Nº. 1.523/1996. JUROS E MULTA. NÃO
INCIDÊNCIA.
1. Caso em que a parte autora pretende
recolher contribuições relativas ao período de
1980 a 1983, já alcançadas pela decadência,
e o INSS, ao apurar o montante devido, fez
incidir juros e multa, por entender aplicável,
à espécie, a atual redação do art. 45-A da Lei
nº. 8.212/1991.
2. A jurisprudência é pacífica quanto à
incidência de juros moratórios e multa nas
contribuições previdenciárias pagas em
atraso apenas ser exigível a partir da edição
da MP nº. 1.523/1996, que acrescentou o
parágrafo 4º ao art. 45 da Lei nº. 8.212/1991,
ante a irretroatividade de norma prejudicial
ao contribuinte. [...]

Considerando a pacificidade do entendimento judicial, fa-


vorável à repetição do indébito, o Decreto nº 10.410/2020 deter-
minou, por meio do disposto no § 8º-A do art. 239 do Decreto nº
3.048/1999, que a cobrança de juros e multa somente incidirá para
fatos geradores ocorridos a partir da vigência da MP 1.523/1996:

Art. 239.  As contribuições sociais e outras


importâncias arrecadadas pela Secretaria
Especial da Receita Federal do Brasil do
Ministério da Economia, incluídas ou não em
notificação fiscal de lançamento, pagas com
atraso, objeto ou não de parcelamento, ficam
sujeitas a: 

3
APELREEX - Apelação / Reexame Necessário - 0800283-07.2013.4.05.8100,
Desembargador Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, TRF5 - Quarta Turma.
209

[...]
§ 8º-A  A incidência de juros moratórios e
multa de que trata o § 8º será estabelecida
para fatos geradores ocorridos a partir de 14
de outubro de 1996.

Trata-se, sem dúvida, de inovação favorável ao segurado


que, grande parte das vezes, teria que pagar o valor indevido a
título de juros e multa, de modo a permitir que o período objeto da
regularização seja computado para fins previdenciários e, poste-
riormente, demandar a atuação do Poder Judiciário com o intento
de devolução dos valores cobrados a maior.

RECOLHIMENTO EM ATRASO E CONSIDERAÇÃO


PARA FINS DE CARÊNCIA EM CASO DE PERDA DA
QUALIDADE DE SEGURADO

Há casos em que o segurado contribuinte individual ne-


cessita, para o benefício seja concedido, de preencher a carência
exigida. E, normalmente, caso existisse uma única contribuição
previdenciária com pagamento tempestivo, realizada enquanto
contribuinte individual, todo o período posterior a esta referida
contribuição seria considerado para fins de carência, mesmo que
o pagamento dessas contribuições fosse realizado em atraso.
Desse modo, por exemplo, caso um segurado contribuinte
individual tivesse recolhido a tempo e modo corretos a contribui-
ção referente ao mês de janeiro de 2000 e quisesse recolher em
atraso (ou indenizar) qualquer competência posterior a este marco
temporal, teria a plena produção de efeitos da regularização do
recolhimento para fins de carência.
Esse é o entendimento que prevalecia na esfera adminis-
trativa.
Judicialmente, por outro lado, era possível encontrar di-
versas decisões em sentido contrário, em que se exigia, para que
o recolhimento em atraso fosse também considerado para fins de
carência (e não apenas para fins de tempo e salários de contribui-
210

ção), que a qualidade de segurado não tenha sido perdida.


Cita-se, a título de exemplo, a seguinte decisão4:

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA
POR IDADE URBANA. CONTRIBUINTE
INDIVIDUAL. RECOLHIMENTO EM
ATRASO. IMPOSSIBILIDADE DE
CÔMPUTO PARA FINS DE CARÊNCIA.
1. A perda da qualidade de segurado
urbano não importa perecimento do direito
à aposentadoria por idade se vertidas as
contribuições necessárias e implementada a
idade mínima.
2. Efetuado o recolhimento das contribuições
previdenciárias em atraso na condição de
contribuinte individual, a teor do art. 27,
II, da Lei 8.213/91 não serão levadas em
consideração para o cômputo do período de
carência.
3. Não comprovadas as condições exigidas
para a concessão da aposentadoria por idade,
improcedente o pedido do autor.

Trata-se de entendimento judicial mais gravoso do que


aquele que na maioria das vezes era adotado na seara administra-
tiva e que, com as alterações promovidas no art. 28 do Decreto
nº 3.048/1999 pelo Decreto nº 10.410/2020, também deverá ser
adotado pelo INSS administrativamente:

Art. 28. O período de carência é contado:


[...]
II - para o segurado contribuinte individual,
observado o disposto no § 4º do art. 26, e o
segurado facultativo, inclusive o segurado
especial que contribua na forma prevista no
§ 2º do art. 200, a partir da data do efetivo
recolhimento da primeira contribuição

4
(AC - APELAÇÃO CIVEL 0032014-93.2007.4.04.7000, RICARDO TEIXEIRA
DO VALLE PEREIRA, TRF4 - QUINTA TURMA, D.E. 19/04/2010).
211

sem atraso, e não serão consideradas, para


esse fim, as contribuições recolhidas com
atraso referentes a competências anteriores,
observado, quanto ao segurado facultativo, o
disposto nos § 3º e § 4º do art. 11.
(...)
§ 4º  Para os segurados a que se refere o inciso
II do caput, na hipótese de perda da qualidade
de segurado, somente serão consideradas,
para fins de carência, as contribuições
efetivadas após novo recolhimento sem
atraso, observado o disposto no art. 19-E. 

Esse fato deve ser devidamente ponderado durante a ela-


boração de um planejamento previdenciário, considerando que
poderá constituir obstáculo de difícil superação para a concessão
do benefício previdenciário pretendido, especialmente nas situa-
ções em que o preenchimento do requisito carência seja o princi-
pal impeditivo para a concessão da aposentadoria.

RETIFICAÇÃO DOS DADOS CONSTANTES DO CNIS

O Cadastro Nacional de Informações Sociais – CNIS – é


o principal documento utilizado para a elaboração de um parecer
previdenciário, tendo em vista que nele estão resumidas as infor-
mações a que o INSS terá acesso para a futura concessão do be-
nefício pretendido. Logo, quanto mais fidedignas forem as infor-
mações nele constantes, mais fácil tende a ser o reconhecimento
do direito.
No entanto, frequentemente o profissional previdencia-
rista se depara com diversos indicadores no CNIS, que revelam
a necessidade da realização de procedimento de acerto para que
um determinado vínculo, ainda que parcialmente, seja computado
para fins de concessão ou de cálculo de futuro benefício previden-
ciário.
Diante disso, poderá o parecerista indicar a retificação dos
dados do CNIS em momento prévio ao requerimento do benefício
212

previdenciário ou aguardar até a data de entrada do requerimen-


to para regularizar as informações previdenciárias do consulente,
devendo avaliar o que será mais conveniente no caso concreto.
Importante destacar que não existia, até recentemente, a
possibilidade agendamento ou requerimento específico para a re-
tificação de dados do CNIS, prevalecendo o entendimento que tal
procedimento deveria ser realizado quando do requerimento do
benefício previdenciário.
Embora houvesse disposição expressa na Instrução Nor-
mativa INSS/PRES nº 77/2015 no sentido de que o segurado
poderia solicitar, a qualquer momento, a alteração dos dados
constantes no CNIS (art. 61), na prática a ausência de canais espe-
cíficos prejudicava o exercício desse direito. No mesmo sentido
há o disposto no Memorando-Circular Conjunto nº 56 /DIRBEN/
DIRAT/INSS, de 03 de novembro de 2016.
Considerando a suspensão do atendimento presencial
decorrente do reconhecimento do estado de calamidade pública
(Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020), o INSS
expediu a Portaria nº 123/DIRAT/INSS, de 13 de maio de 2020,
criando serviços junto ao SAG Gestão. Assim, a solicitação de
atualização de vínculos e remunerações passou a ser possível via
Central 135.
A referida Portaria determina que o atendente da Central
135 comunique ao segurado sobre a possibilidade da juntada de
documentos pelo portal Meu INSS para a análise do pedido de
acerto de dados do CNIS.
Trata-se, portanto, de providência preparatória que poderá,
a depender do caso concreto, facilitar o reconhecimento do direito
ao benefício e, dessa forma, deve ser avaliada quando da realiza-
ção do planejamento previdenciário.
213

COMPETÊNCIAS CUJO SALÁRIO DE CONTRIBUIÇÃO


SEJA INFERIOR AO SALÁRIO MÍNIMO

A Emenda Constitucional nº 103/2019 trouxe a obrigação


de que o salário de contribuição seja igual ou superior ao salário
mínimo vigente para que a competência seja considerada para
fins previdenciários.
Cumpre salientar, a este respeito, o disposto no art. 29 da
referida Emenda:

Art. 29. Até que entre em vigor lei que


disponha sobre o § 14 do art. 195 da
Constituição Federal, o segurado que, no
somatório de remunerações auferidas no
período de 1 (um) mês, receber remuneração
inferior ao limite mínimo mensal do salário
de contribuição poderá:
I - complementar a sua contribuição, de forma
a alcançar o limite mínimo exigido;
II - utilizar o valor da contribuição que
exceder o limite mínimo de contribuição de
uma competência em outra; ou
III - agrupar contribuições inferiores ao limite
mínimo de diferentes competências, para
aproveitamento em contribuições mínimas
mensais.
Parágrafo único. Os ajustes de
complementação ou agrupamento de
contribuições previstos nos incisos I, II e III
do caput somente poderão ser feitos ao longo
do mesmo ano civil.

A obrigação de que o salário de contribuição seja equiva-


lente a pelo menos o salário mínimo já existia para os segurados
contribuintes individuais e facultativos. Com a promulgação da
EC 103/2019, essa exigência se estendeu aos demais segurados.
Restam, dessa maneira, três alternativas ao trabalhador
que se adeque ao caso ora estudado:
214

Realizar o recolhimento da contribuição


previdenciária complementar, o que poderá
ser efetivado por meio do pagamento de
Documento de Arrecadação de Receitas
Federais – DARF, com a utilização do código
1872. O valor do recolhimento previdenciário
adicional corresponderá ao valor resultante
da diferença entre o salário mínimo vigente
na competência que se busca regularizar e a
remuneração consolidada que não atingiu o
limite mínimo, com a incidência da alíquota
referente à categoria de segurado;
“Transpor” valores que tenham excedido
o salário mínimo em outras competências
dentro do mesmo ano civil, de modo a
permitir que o valor do salário mínimo seja
atingido; e
Agrupar os salários de contribuição
percebidos em diferentes competências
dentro do mesmo ano civil, de maneira a
permitir que pelo menos em um destes meses
o valor do salário mínimo seja respeitado
como salário de contribuição. Cumpre
ressaltar que as competências das quais se
“retirou” o salário de contribuição não serão
consideradas para efeitos previdenciários.

Imagine-se, a título de exemplo, que um segurado em-


pregado tenha recebido, a título de remuneração, o valor de R$
800,00 no mês de maio de 2020. Considerando que o salário
mínimo vigente na referida competência é de R$ 1.045,00, ele
deverá recolher contribuição previdenciária sobre a diferença
apurada entre o salário mínimo e o salário auferido (R$ 245,00) e,
sobre essa grandeza, deverá incidir a alíquota na qual se enquadra
(no caso 7,5%). Assim, o trabalhador hipotético deverá recolher
contribuição previdenciária no valor de R$ 17,38 para que o mês
seja considerado para fins previdenciários.
Reitera-se, por relevante, que a alteração ora tratada
deve ser observada atentamente pelo advogado previdenciarista
quando da elaboração do parecer previdenciário, principalmente
215

em razão de eventual adiamento do direito à concessão do be-


nefício devido à desconsideração de competências efetivamente
laboradas.
Importante destacar, do mesmo modo, que caso o segura-
do opte por complementar a contribuição previdenciária, deverá
realizar o pagamento adicional até o dia 15 do mês subsequente
ao da prestação do serviço para que não sofra a incidência dos
ônus da mora, em conformidade com o disposto no art. 19-E, §
3º do Decreto nº 3.048/1999, com redação dada pelo Decreto nº
10.410/2020:

Art. 19-E. A partir de 13 de novembro de


2019, para fins de aquisição e manutenção
da qualidade de segurado, de carência, de
tempo de contribuição e de cálculo do salário
de benefício exigidos para o reconhecimento
do direito aos benefícios do RGPS e para
fins de contagem recíproca, somente serão
consideradas as competências cujo salário de
contribuição seja igual ou superior ao limite
mínimo mensal  do salário de contribuição.
[...]
§ 3º  A complementação de que trata o
inciso I do § 1º poderá ser recolhida até o dia
quinze do mês subsequente ao da prestação
do serviço e, a partir dessa data, com os
acréscimos previstos no art. 35 da Lei nº
8.212, de 1991.

AFASTAMENTO POR INCAPACIDADE TEMPORÁRIA


E TEMPO ESPECIAL

Havia, até a publicação do Decreto nº 10.410/2020, a con-


sideração como especiais dos períodos em que segurado esteja
afastado do trabalho por incapacidade laborativa temporária,
desde que o período imediatamente anterior ao referido afasta-
mento seja considerado tempo especial e que a incapacidade seja
resultante de acidente do trabalho ou circunstância equivalente na
forma da legislação previdenciária.
216

Tal entendimento era aplicado na esfera administrativa e,


na esfera judicial, o entendimento era ainda mais benéfico ao se-
gurado: mesmo que o afastamento fosse resultante de enfermida-
de não relacionada ao trabalho o tempo de afastamento temporá-
rio deveria ser enquadrado como especial, desde que o período
imediatamente anterior ao afastamento fosse especial.
A matéria foi objeto de julgamento pelo Superior Tribunal
de Justiça na sistemática de recursos repetitivos, de observância
obrigatória pelas demais instâncias inferiores do Poder Judiciário.
Ao julgar o Tema 998 foi fixada a tese de que

O Segurado que exerce atividades em


condições especiais, quando em gozo
de auxílio-doença, seja acidentário ou
previdenciário, faz jus ao cômputo desse
mesmo período como tempo de serviço
especial.

Tal conclusão resultou da aplicação do raciocínio de que


não caberia ao Poder Executivo impor limitação não prevista na
legislação previdenciária, assim como por uma questão de isono-
mia, tendo em vista que não se mostrava razoável que somente o
gozo de benefícios de caráter acidentário resultariam no reconhe-
cimento do tempo como especial, sendo devida a mesma provi-
dência para benefícios não acidentários.
Contudo, as alterações promovidas pelo Decreto nº
10.410/2020 no parágrafo único do art. 65 do Decreto nº
3.048/1999 retiraram a possibilidade de reconhecimento da espe-
cialidade do período de afastamento do trabalho. Convém desta-
car a redação anterior do referido dispositivo:

Art. 65. Considera-se tempo de trabalho


permanente aquele que é exercido de forma
não ocasional nem intermitente, no qual a
exposição do empregado, do trabalhador
avulso ou do cooperado ao agente nocivo
seja indissociável da produção do bem ou da
prestação do serviço.
217

Parágrafo único. Aplica-se o disposto
no  caput  aos períodos de descanso
determinados pela legislação trabalhista,
inclusive férias, aos de afastamento
decorrentes de gozo de benefícios de auxílio-
doença ou aposentadoria por invalidez
acidentários, bem como aos de percepção
de salário-maternidade, desde que, à data do
afastamento, o segurado estivesse exposto
aos fatores de risco de que trata o art. 68.   

Cumpre, agora, transcrever a nova redação do parágrafo


único:

Parágrafo único. Aplica-se o disposto


no caput aos períodos de descanso determinados
pela legislação trabalhista, inclusive ao período
de férias, e aos de percepção de salário-
maternidade, desde que, à data do afastamento,
o segurado estivesse exposto aos fatores de
risco de que trata o art. 68. 

Como bem se observa, a nova legislação retirou a possi-


bilidade de reconhecimento do período em gozo de benefício por
incapacidade como tempo especial, ainda que a causa do afasta-
mento tenha sido acidentária.
Dessa maneira, cabe analisar se o Poder Judiciário irá
manter o entendimento atual, demonstrado na tese fixada quando
do julgamento do Tema 998 do STJ, ou se irá corroborar o enten-
dimento trazido pelo Decreto nº 10.410/2020.

CONTAGEM DE TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO EM


CASO DE MESES PARCIALMENTE LABORADOS

A contagem do tempo de contribuição era realizada de


data a data, isto é, caso o segurado empregado, inclusive o do-
méstico, tivesse laborado por período inferior a todos os dias de
um determinado mês, a competência seria apenas parcialmente
218

considerada como tempo de contribuição.


Nesse ponto, o Decreto nº 10.410/2020 trouxe inovação
positiva ao segurado: caso o salário de contribuição seja equiva-
lente a, pelo menos, o salário mínimo vigente, todos os dias do
mês serão considerados como tempo de contribuição, ainda que
o labor tenha sido desenvolvido em apenas alguns dias do mês,
relativamente a períodos posteriores a 13/11/2019.
Convém, por cabível, transcrever o disposto no § 2º, art.
19-C do Decreto nº 3.048/1999, com redação dada pelo Decreto
nº 10.410/2020:

Art. 19-C.  Considera-se tempo de contribuição


o tempo correspondente aos períodos para os
quais tenha havido contribuição obrigatória
ou facultativa ao RGPS, dentre outros, o
período:
[...]
§ 2º As competências em que o salário de
contribuição mensal tenha sido igual ou
superior ao limite mínimo serão computadas
integralmente como tempo de contribuição,
independentemente da quantidade de dias
trabalhados.

Considerando que o parecer previdenciário é instrumento


que se propõe capaz de precisar a exata data a partir da qual o
segurado fará jus à concessão de um determinado benefício pre-
videnciário e que a referida alteração impacta a maneira como a
contagem de tempo é realizada, revela-se de fundamental impor-
tância a consideração do teor do dispositivo acima transcrito, de
maneira a permitir a máxima acuidade possível às conclusões do
planejamento previdenciário.
219

CONTRIBUIÇÃO FACULTATIVA DURANTE O PERÍO-


DO DE GOZO DE BENEFÍCIO POR INCAPACIDADE

A extensão da produção de efeitos previdenciários do


período em que o segurado recebe benefício por incapacidade
tem sido objeto de várias ações judiciais ao longo dos últimos
anos, e um dos principais pontos é a consideração desses períodos
para fins de carência em eventual concessão de novo benefício.
Relevante salientar, a este respeito, que a jurisprudência
pátria se solidificou no sentido de que cabe a consideração do
período em que o segurado recebeu benefício por incapacidade,
seja temporária ou permanente, para fins de carência, desde que
tal período esteja intercalado entre contribuições.
A ementa a seguir exemplifica tal entendimento5:

PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁ-


RIO. PERCEPÇÃO DE AUXÍLIO-DOEN-
ÇA. CARÊNCIA. CÔMPUTO.
[...]
2. O entendimento do Tribunal de origem
coaduna-se com o disposto no § 5º do art.
29 da Lei n. 8.213/1991, bem como com a
orientação desta Corte, segundo os quais
deve ser considerado, para efeito de carência,
o tempo em que o segurado esteve em gozo
de auxílio-doença ou de aposentadoria
por invalidez, desde que intercalado com
períodos contributivos.
3. Hipótese em que a Corte local reconheceu
a demonstração do recolhimento de 142
contribuições previdenciárias, das 126
exigidas pelo art. 142 da Lei de Benefícios,
necessárias à concessão da aposentadoria.

Foi emitida, em consonância com o entendimento acima

5
AIRESP - AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL -
1574860 2015.03.18740-5, GURGEL DE FARIA, STJ - PRIMEIRA
TURMA, DJE DATA: 09/05/2018.
220

demonstrado, a Portaria Conjunta INSS/PFE/DIRBEN nº 12, de


19 de maio de 2020, que comunica para cumprimento a decisão
proferida na Ação Civil Pública nº 0216249- 7.2017.4.02.5101/
RJ - cômputo de benefício por incapacidade para carência.
No entanto, de maneira contraditória, foi promovida alte-
ração no § 5º do art. 11 do Decreto nº 3.048/1999 pelo Decreto nº
10.410/2020:

Art. 11. É segurado facultativo o maior


de dezesseis anos de idade que se filiar
ao Regime Geral de Previdência Social,
mediante contribuição, na forma do art. 199,
desde que não esteja exercendo atividade
remunerada que o enquadre como segurado
obrigatório da previdência social.
[...]
§ 5º O segurado poderá contribuir
facultativamente durante os períodos de
afastamento ou de inatividade, desde que não
receba remuneração nesses períodos e não
exerça outra atividade que o vincule ao RGPS
ou a regime próprio de previdência social.

Qual sentido faz a realização de contribuições previden-


ciárias enquanto se recebe benefício por incapacidade, se não a
possibilidade do cômputo do referido período para fins de carên-
cia? Principalmente se considerarmos que basta que tais períodos
estejam intercalados entre contribuições para que sejam judicial-
mente (e, enquanto a Portaria Conjunta INSS/PFE/DIRBEN nº
12, de 19 de maio de 2020 produzir efeitos, também administrati-
vamente) considerados para fins de carência?
A conclusão lógica alcançada é a de que a autarquia pre-
videnciária criou a possibilidade recolhimento facultativo para o
segurado em gozo de benefício por incapacidade com o objetivo
de vender-lhe alguma facilidade, que dificilmente será diferente
do cômputo do período para fins de carência sem maiores com-
plicações.
Diante disso, deverá o advogado considerar essa possibi-
221

lidade quando da elaboração do planejamento previdenciário, de


modo a permitir a concessão do benefício previdenciário preten-
dido da maneira que melhor convier ao consulente.

CONCLUSÕES

Os breves apontamentos sobre os possíveis impactos


das alterações legislativas, notadamente com a promulgação
da Emenda Constitucional nº 103/2019 e com a publicação do
Decreto nº 10.410/2020, no que se refere à elaboração de pare-
ceres previdenciários, não se propõem exaustivas. O objetivo do
presente trabalho é apenas o de suscitar alguns questionamen-
tos e o de partilhar de algumas impressões obtidas a partir do
árduo estudo das constantes alterações legislativas tão próprias
do Direito Previdenciário e que tornam este ramo do Direito tão
apaixonante quanto desafiador.
Certo é que as recentes mudanças, embora inseridas em
um contexto de redução generalizada do valor dos benefícios e
agravamento dos requisitos de acesso de elegibilidade, também
podem ser utilizadas para a verificação de vantagens para os se-
gurados e os seus dependentes, conforme demonstrado ao longo
do presente artigo.
Desta feita, é essencial a elaboração do planejamento pre-
videnciário por profissional adequadamente qualificado para tanto
e é condição necessária a constante busca pelo conhecimento, de
maneira a permitir que as conclusões consubstanciadas no parecer
previdenciário guardem máxima consonância com a realidade do
consulente e que apontem, de fato, a partir da consideração de
todas as variáveis possíveis, qual será o benefício previdenciário
mais vantajoso ao segurado e aos seus dependentes.
222

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADO, Frederico. Reforma da Previdência Comentada.


Salvador: JusPodivm, 2020.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro


de 2019. Altera o sistema de previdência social e estabelece
regras de transição e disposições transitórias. Brasília, DF:
Presidência da República, [2019]. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.
htm. Acesso em: jul. 2020.

BRASIL. Decreto Legislativo nº 6, de 2020. Reconhece, para


os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de
2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos
da solicitação do Presidente da República encaminhada por
meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Brasília, DF,
[2000]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
portaria/DLG6-2020.htm. Acesso em: jul. 2020.

BRASIL. Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999. Aprova o


Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências.
Brasília, DF: Presidência da República, [1999]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm. Acesso
em: jul. 2020.

BRASIL. Decreto nº 10.410, de 30 de junho de 2020. Altera


o Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto
no 3.048, de 6 de maio de 1999 Brasília, DF: Presidência da
República, [1999]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10410.htm. Acesso em:
jul. 2020.

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João


Batista. Manual de Direito Previdenciário. 19. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2016.

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de, LAZZARI, João Batista.


Manual de Direito Previdenciário. 21. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2018.
223

AS INCONSTITUCIONALIDADES E
ILEGALIDADES DAS REGRAS DE
CÁLCULO APLICÁVEIS AOS BENEFÍCIOS
PREVIDENCIÁRIOS CONCEDIDOS APÓS
EC 103/2019: UMA ANÁLISE A PARTIR DO
DECRETO 10.410/2020

Ana Paula Fernandes1


Sergio Geromes2

INTRODUÇÃO

O regime previdenciário existente no Brasil consiste no


meio mais importante de proteção do indivíduo nos momentos de
risco social. E é somente nestes momentos de necessidade e caos
que a sociedade valoriza políticas públicas e regimes de proteção
social.

1
Doutoranda pela Universidad Del Museo Social Argentino - UMSA.
Mestre em Direito Econômico e Socioambiental - (PUC/PR). Especia-
lista em Direito Tributário, Previdenciários e Processual. Vice-Presi-
dente do Instituto de Estudos Previdenciários – IEPREV. Advogada.
Professora em cursos de Pós-Graduação. Autora da Obra os Direitos
Previdenciários no STF/LTR, 2015. Ex-Conselheira dos Contribuintes
na 2ª Turma da Câmara Superior – CARF.
2
Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de São
Paulo. Especialista em Direito Previdenciário. Especialista em Direito
de Família e Sucessões. Professor de Cursos de Pós-Graduação em
Direito Previdenciário. Palestrante. Diretor de Cálculos do Instituto de
Estudos Previdenciários (IEPREV). Secretário da Comissão Espe-
cial de Direito Previdenciário da OAB/SP. Autor das Obras: Cálculo
do Benefício Previdenciário na Prática (Ed. LTr) e Passo a Passo do
Cálculo do Benefício Previdenciário – Antes e depois da Reforma da
Previdência (Ed. LuJur).
224

Temos enfrentado no Brasil diversas situações de restrição


destes direitos, talvez a palavra mais correta a ser utilizada seja
“escassez” de seus sistemas protetivos, desvalorização de polí-
ticas de contenção do risco social e diminuição de esforços do
Estado para formalização das relações de trabalho e valorização
da educação previdenciária para a população.
Essa é uma clara tendência neoliberal que, embora inte-
ressante para o desenvolvimento da economia, deve ser utiliza-
da com parcimônia em países subdesenvolvidos onde o braço do
estado ainda é o garantidor de distribuição de renda e diminuição
das desigualdades sociais.
O momento que vivemos hoje é singular: enfrentamos uma
pandemia de saúde pública de alcance global nunca antes experi-
mentada com tanto impacto pelo mundo todo. Os sistemas sociais
foram colocados à prova e, no Brasil, o sistema previdenciário,
juntamente com políticas públicas emergenciais de assistência,
foram de suma importância para proteção de inúmeros trabalha-
dores, bem como para a estabilidade do sistema capitalista, por
meio da manutenção do aquecimento do mercado interno.
Para além disso, vivemos o momento da pós-reforma da
Previdência Social no Brasil. Momento este já oportuno para se
observar os primeiros reflexos das mudanças abruptas operaciona-
lizadas pelo Poder legislativo nas regras previdenciárias, através
da EC n. 103/2019, o que afeta toda população que contribui
direta ou indiretamente para o sistema, seja através do Regime
Geral da Previdência Social - RGPS ou do Regime Próprio da
Previdência Social - RPPS.
O presente estudo tem por objetivo tratar de modo mais
específico das alterações na forma de cálculo do salário de benefí-
cio no Regime Geral, voltando sua análise para possíveis inconsti-
tucionalidades e ilegalidades advindas das disposições constantes
no Decreto Regulamentador da Previdência Social n. 3.048/99,
com as alterações promovidas pelo Decreto n. 10.410/2020, no
que se refere, portanto, aos segurados do Instituto Nacional do
Seguro Social – INSS.
225

Em uma avaliação mais apurada e detalhista, pretende-se


avaliar especificamente sobre quais dispositivos do Decreto n.
10.410/2020 pairam dúvidas acerca de sua adequação normativa
e classificá-los em critérios de constitucionalidade e legalidade.
Fato é que as alterações produzidas pela Reforma afetam
de forma contundente o valor do benefício previdenciário dos se-
gurados da Previdência Social, levando, no futuro, a um sensível
empobrecimento dos aposentados e dos pensionistas, diminuindo
seu poder real de compra e manutenção de seu padrão de vida,
valores estes consubstanciados nos princípios constitucionais.
Aceitar a gravosidade da reforma trazida por meio das
regras da EC n. 103/2019, aprovada pelo Congresso Nacional, já
foi um fardo difícil para os segurados da Previdência brasileira,
mas aceitar que seu texto seja ainda mais endurecido por meio
de atos infraconstitucionais do Poder Executivo, que extrapolam
sua competência legal, não é algo que se pode permitir de forma
silenciosa.
Cabe aos estudiosos do direito previdenciário: advogados,
magistrados, procuradores e em especial professores, todos em
sua função social, analisar as normas, discutir sua amplitude a
fim de proteger os indivíduos segurados do sistema, uma vez que
para a maior parte deles o benefício previdenciário é sua única
proteção contra os riscos sociais aos quais estão sujeitos.

A HIERARQUIA DAS NORMAS PREVIDENCIÁRIAS


E OS LIMITES IMPOSTOS AOS ATOS INFRALEGAIS
POR MEIO DAS REGRAS HERMENÊUTICAS

A Reforma da Previdência produziu alterações no sistema


previdenciário brasileiro que demandam atualização e regula-
mentação de todo sistema infraconstitucional previdenciário, a
fim de que as normas se adequem ao sistema atualmente posto,
sem gerar antinomias que possam prejudicar a aplicação e inter-
pretação da norma legal e por consequência os direitos tutelados
pelo legislador ordinário na Carta Magna.
226

Tais alterações atingiram de forma substancial os direitos


dos segurados da Previdência sem produzir grandes mudanças nos
deveres contributivos, que restaram (praticamente) inalterados.
Ou seja, muitos direitos foram suprimidos ou tiveram suas regras
de acesso dificultadas sem que houvesse qualquer diminuição nas
obrigações contributivas de contraprestação dos segurados.
Assim podemos considerar que as disposições da mencio-
nada Emenda Constitucional n. 103/2019 passaram a integrar o
núcleo duro do regramento previdenciário brasileiro, dispondo,
portanto, da regra que será adotada tanto para os novos segurados
como também para àqueles que não adquiriram direito algum a
benefícios antes da data da sua publicação.
Contudo, o que se observa é um total descaso por parte
dos Poderes Executivo e Legislativo na devida regulamentação
da Reforma aprovada por meio da EC n. 103/2019. Isso por que
a regulamentação que se esperava por parte da Administração
Pública não veio por meio da atualização das leis, de Custeio e
Benefício, mas sim por meio de atos do Poder Executivo: decreto,
ofícios e portarias.
Fazendo uma análise cronológica, observamos que os pri-
meiros atos da administração pública, que se referiram as novas
regras aprovadas pela Reforma da Previdência, surgiram por
meio do Ofício Circular n. 64/2019, da Portaria n. 450/2020 e na
sequência do Decreto n. 10.410/2020.
Recentemente, o jurista Marco Aurélio Serau Júnior
trouxe à luz este tema, denominando, inclusive, como “portariza-
ção” o fenômeno da normatização e regulamentação de regras do
direito previdenciário por meio de normas infralegais: ordens de
serviços, portarias, instruções normativas, decretos, entre outras.
Vejamos:

Porém, deve-se relembrar sempre o papel


inferior das normas infralegais em relação à
lei: conforme o art. 37, caput, da Constituição
Federal, a Administração Pública deve
obedecer ao princípio da legalidade;
227

complementando e corroborando esta


disposição normativa temos o conteúdo do
art. 84, IV, também do Texto Constitucional,
que estabelece que compete ao Poder
Executivo “expedir decretos e regulamentos
para sua [da lei] fiel execução”.
Conforme entendimento doutrinário bastante
consagrado, somente a lei, em sentido
estrito, inova o ordenamento jurídico, cria
normas jurídicas novas, cabendo aos decretos
e regulamentos (e demais instrumentos
infralegais, como portarias e instruções
normativas) tão somente o detalhamento
e a pormenorização das condições de
cumprimento da lei (a “fiel execução” da
lei mencionada no texto constitucional).
(SERAU JUNIOR, 2020).

O mencionado jurista, Serau Júnior, cita ainda que muitos


autores, como por exemplo, Carlos Ari Sundfeld, criticam a con-
cepção antiga da vinculação ao princípio da legalidade, admitin-
do, em medida mais abrangente, a produção normativa a cargo do
Poder Executivo, justamente para fazer frente às novas exigências
sociais e jurídicas. (SUNDFELD apud SERAU JUNIOR, 2020).
Todavia, o entendimento prevalecente no Brasil ainda per-
siste na ideia da primazia da lei, disposta nas lições Celso Antônio
Bandeira de Mello:

[...] não lhe é possível [ao Poder Executivo]


expedir regulamento, instrução, resolução,
portaria ou seja lá que ato for para coartar a
liberdade dos administrados, salvo se em lei
já existir delineada a contenção ou imposição
que o ato administrativo venha a minudenciar.
(BANDEIRA DE MELLO, 2005).

Desse modo, ao invés de regulamentar a norma disposta na


Emenda Constitucional, por meio da expedição de ofícios, porta-
rias e Decreto do Poder Executivo, o correto seria que o legisla-
dor tivesse se pronunciado por meio da atualização das normas
228

ordinárias, votando as disposições constantes das Leis n. 8.212 e


n. 8.213/1991, respectivamente normas de custeio e de benefício,
que deveriam ser adequadas ao novo conteúdo na norma consti-
tucional, por meio do Poder legislativo, com a correta e devida
participação da sociedade no Congresso Nacional.
Todavia, para além desta questão, temos ainda que o
Decreto n. 10.410/2020, expedido pelo Poder Executivo, parece,
em diversas oportunidades, ter extrapolado o regramento aprova-
do na EC n. 103/2019, produzindo agora não apenas inovações na
regulamentação da Reforma da Previdência, ainda não previstas
na legislação ordinária, mas também inconstitucionalidades e ile-
galidades.
Em se tratando de Direito Previdenciário, temos que a
norma é de caráter social, que representa valores caros a nossa
Carta Magna, altamente protegidos pelo regramento jurídi-
co posto, sendo comparáveis a direitos humanos fundamentais,
como explica Fernandes:

Da análise destes modelos de Direitos


Fundamentais descritos em cada dimensão,
pode-se concluir que o modelo acolhido
pela nossa Constituição Federal (1988), a
chamada Constituição Cidadã, corresponde
à estrutura desenhada pela segunda dimensão
de direitos fundamentais.
Após a análise da Seguridade Social:
Assistência, Saúde e Previdência como Direito
Fundamental, deve-se também analisá-la em
sua completude como integrante dos Direitos
Humanos, também tutelado e assegurado pela
Declaração Universal de Direito das Nações
Unidas de 1948. (FERNANDES, 2015, p. 38).

Como bem elucidam Lazzari e Castro, no caso de termos


num mesmo sistema normativo e momento histórico mais de uma
norma vigente e eficaz, todas supostamente disciplinadoras do
mesmo caso concreto, teremos que adotar critérios para sua inter-
pretação e aplicação. A questão em comento pode ocorrer entre
229

normas da mesma espécie, ou de espécies distintas (LAZZARI;


CASTRO, 2020, p. 54), como é o caso aqui, quando citamos que
o Decreto extrapola o regramento constante da EC n. 103/2019.
A princípio a questão se resolve de forma simples: a
norma constitucional se sobrepõe à norma legal, ou ao ato ad-
ministrativo (LAZZARI; CASTRO, 2020, p. 54), a menos que
o ato de hierarquia menor traga alguma proteção maior ao se-
gurado, sendo tida como uma benesse concedida pelo Estado
ao seu cidadão em razão da natureza do direito previdenciário
que compõe o bojo das garantias fundamentais constitucionais e
dos direitos humanos constantes nos tratados internacionais, dos
quais o Brasil é signatário.
E, em se tratando de antinomias entre normas infracons-
titucionais, recorremos aos princípios hermenêuticos, segundo
os quais, tendo ambas cumprido o princípio da legalidade: (a)
quando da mesma espécie (hierarquia), deverá ser observado o
critério da especialidade normativa (regra especial derroga regra
geral), e (b) quando de diversa hierarquia, norma hierarquicamen-
te superior derroga a inferior.
O que denota, no presente estudo do Decreto n.
10.410/2020, que este não tem autorização para produzir antino-
mias legais, seja com o que fora disposto na Emenda Constitucio-
nal, seja com regras já constantes na legislação, que não tenham
sido revogadas.
No caso em apreço, a solução da questão é que, em todos os
dispositivos nos quais o Decreto extrapole sua competência (que
deve ser exclusivamente de reproduzir o disposto na norma cons-
titucional), seja declarado inconstitucional e, do mesmo modo,
quando este afrontar o disposto nas leis n. 8.212 e n. 8.213/91,
(ou ainda qualquer outra lei com regramento previdenciário), na
parte que não tenham sido tacitamente revogadas ou alteradas
pela EC n. 103/2019, deverá ser considerado ilegal e afastados os
seus efeitos que desrespeitem os direitos humanos fundamentais,
previstos como direitos previdenciários dos segurados da Previ-
dência Social.
230

A EC 103/2019 E A REGULAMENTAÇÃO PROMOVIDA


PELO DECRETO 10.410/2020

Após intensas discussões no Congresso Nacional sobre a


Proposta de Emenda Constitucional n. 6/2019, foi publicado no
Diário Oficial da União do dia 13/11/2019, o texto da Emenda
Constitucional n. 103/2019, implementando alterações que afe-
taram de forma significativa a maior parte dos benefícios do
Regime Geral de Previdência Social, alterando os requisitos de
acesso e o valor das prestações.
Entre as principais alterações está a extinção do Benefí-
cio de Aposentadoria por Tempo de Contribuição, mantendo-o
no sistema, apenas através das regras de transição, aplicáveis aos
segurados filiados à Previdência Social até a data de entrada em
vigor da EC n. 103/2019.
Foram mantidas, com alterações (regras transitórias), a
Aposentadoria Programada (Idade), Aposentadoria Especial,
Aposentadoria por Incapacidade Permanente (antiga Aposenta-
doria por Invalidez) e as Aposentadorias por Idade e Tempo de
Contribuição da Pessoa com Deficiência. Os benefícios de Pensão
por Morte, Auxílio-Reclusão e Salário-Família, também sofreram
alterações, principalmente nos critérios de cálculo.
Além das disposições transitórias, o texto constitucional
prevê regras de transição às aposentadorias – previsões interme-
diárias com requisitos menos rígidos que aqueles previstos nas
regras novas – que estão à disposição dos segurados filiados à
Previdência Social até a entrada em vigor da EC n. 103/2019.
Com relação ao do valor das prestações, a Emenda Cons-
titucional n. 103/2019 (art. 26), prevê que, até que Lei discipline
o cálculo dos benefícios dos Regimes Geral e Próprio, salvo nas
hipóteses expressamente previstas na Emenda Constitucional, p.
ex. art. 22, será utilizada a média dos salários de contribuição
existentes (100%) desde a competência julho de 1994 ou desde
o início da contribuição, se posterior àquela competência, atuali-
zados monetariamente, não podendo a referida média ultrapassar
231

o valor máximo do salário de contribuição do Regime Geral de


Previdência Social (art. 26, § 1º, da EC 103/2019).
Resta claro que a nova fórmula do salário de benefício será
aplicada, inclusive, para os benefícios de auxílio por incapacida-
de temporários (auxílio-doença) e auxílio acidente, pois a redação
do comando constitucional (art. 26) determina que até que lei dis-
cipline o cálculo dos benefícios dos Regimes Geral e Próprio,
será utilizada a média aritmética simples de todos (100%) os salá-
rios de contribuição, ou seja, regra única para todos os benefícios.
Não desconhecemos posição em sentido contrário defen-
dendo que “o artigo 26, caput, da Emenda 103/2019 somente se
aplica aos benefícios com regulação constitucional de requisitos
enquanto não há lei de regulamentação (“até que lei discipline o
cálculo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social”),
o que não ocorre com o auxílio-doença, não regulado pela reforma
constitucional.” (Amado, 2020, p 206), mas discordamos.
A EC n. 103/2019 prevê a aplicação da média de 100%
(cem por cento) dos salários de contribuição para o cálculo dos
benefícios (art. 26), todos eles. Quando pretendeu disciplinar
sobre benefícios específicos o fez expressamente, conforme dis-
posto, p. ex, no § 2º, do artigo 26, ao disciplinar sobre a alíquota
do benefício de aposentadoria:

O valor do benefício de aposentadoria


corresponderá a 60% (sessenta por cento)
da média aritmética definida na forma
prevista no caput e no § 1º, com acréscimo
de 2 (dois) pontos percentuais para cada ano
de contribuição que exceder o tempo de 20
(vinte) anos de contribuição nos casos: [...]

Pelo mesmo motivo, até que lei discipline em sentido con-


trário, não há mais que se falar na incidência do divisor mínimo
no cálculo do salário de benefício (art. 3º, § 2º, da Lei 9.876/99).
Portanto, independentemente do número de salários de contri-
buição no Período Básico de Cálculo, não haverá incidência do
mínimo divisor, devendo ser realizada a média aritmética simples
232

dos salários de contribuição existentes.


Ademais, após a entrada em vigor da EC n. 103/2019, não
mais se cogita a incidência do Fator Previdenciário – FP, salvo
nas hipóteses expressamente previstas na emenda, como na regra
de transição da aposentadoria por tempo de contribuição com
pedágio de 50% (artigo 17, § único da EC 103/2019) e na aposen-
tadoria da Pessoa com Deficiência – PcD3. (GEROMES, 2020,
p. 139)
Isso porque, a Emenda Constitucional n. 103/2019
manteve no sistema, sem alterações, as aposentadorias da Pessoa
com Deficiência (Idade e Tempo de Contribuição), que serão con-
cedidas na forma da Lei Complementar n. 142/2013, inclusive
quanto aos critérios de cálculo dos benefícios (art. 22). Portan-
to, o salário de benefício dessas prestações deverá ser apurado na
forma do artigo 29 da Lei n. 8.213/91 (médias dos 80% maiores
salários de contribuição), conforme disposto no art. 8º da LC n.
142/2013, sem incidência das regras previstas na EC n. 103/2019.
A Emenda Constitucional ainda dispõe, do mesmo modo
daquele previsto no artigo 3º da Lei n. 9.876/999, que para o
cálculo do salário de benefício não será possível a utilização dos
salários de contribuição anteriores a 7/1994.
Para o segurado filiado à Previdência até 6/1994, no
cálculo do salário de benefício será considerada a média arit-
mética simples de todos os salários de contribuição existentes a
partir da competência julho de 1994, desconsiderando todas as
contribuições anteriores a esta data, ao passo que para o segurado
filiado à previdência a partir de 7/1994, no cálculo do salário de
benefício, será considerada a média aritmética de todos os salá-
rios de contribuição, sem limitação temporal em julho de 1994.
(GEROMES, 2020, p. 137-138).
Diferentemente da regra prevista na Lei n. 9.876/99,

3
O Fator Previdenciário será aplicado na Aposentadoria do PcD,
somente quando resultar em renda mensal de valor mais elevado (art.
9º, I, da LC 142/2013).
233

quando no cálculo do salário de benefício era possível aplicar


a exclusão dos 20% menores salários de contribuição, a EC n.
103/2019 prevê nova fórmula, sem a possibilidade, regra geral,
de exclusão dos menores salários de contribuição.
Destacamos que haverá situações em que será possível,
quando mais benéfico, excluir da média os salários de contribui-
ção que resultem em redução do valor do benefício, desde que
mantido o tempo mínimo de contribuição exigido, vedada a utili-
zação do tempo excluído para qualquer finalidade, inclusive para
o acréscimo de 2% na alíquota do benefício (§ 6º, art. 26, da EC
n. 103/2019).
Claro está que todas as prestações previdenciárias, calcu-
ladas com base no salário de benefício, poderão se beneficiar da
regra do descarte, haja vista que o comando constitucional (§ 6º,
art. 26, da EC n. 103/2019) não o restringe a determinados bene-
fícios. Ainda que se trate de benefício por incapacidade, em que
não se exige tempo de contribuição mínimo, será possível aplicar
o descarte, limitado ao número mínimo de contribuições mensais
(carência), quando exigido.
Vale lembrar que a norma contida no artigo 26 da EC n.
103/2019 revela característica de disposição transitória, e irá
vigorar até que Lei discipline a matéria. Ademais, prevê que “até
que lei discipline o cálculo dos benefícios do Regime Próprio de
Previdência Social da União e do Regime Geral de Previdência
Social, será utilizada a média aritmética simples” de todos os sa-
lários de contribuição existentes no PBC. (GEROMES, 2020, p.
138)
Além de alterar a fórmula de cálculo do salário de benefí-
cio a EC n. 103/2019 impôs modificações na alíquota das aposen-
tadorias. O valor do benefício de aposentadoria, concedido com
direito adquirido na vigência da Emenda, corresponderá a 60%
(sessenta por cento) da média aritmética simples dos salários de
contribuição, com acréscimo de 2 (dois) pontos percentuais para
cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 (vinte) de
contribuição, para o homem, e 15 (quinze) anos de contribuição,
234

para a mulher, e para a aposentadoria especial aos 15 (quinze)


anos (art. 26, §§ 2º e 5º), que poderá, a depender do tempo de
contribuição do segurado, ser superior a 100% (cem por cento).
Tratamento distinto receberam a aposentadoria por incapa-
cidade permanente decorrente de acidente de trabalho, de doença
profissional e de doença do trabalho e a aposentadoria por tempo
de contribuição concedida com base nas regras de transição n. 3
(pedágio de 50% - art. 17) e n. 4 (pedágio de 100% - art. 20), que
terão alíquota fixa de 100% (cem por cento) - (art. 26, § 3º).
Merece destaque ainda, as alterações promovidas no be-
nefício de pensão por morte, que sofreu redução de alíquota de
100% (cem por cento) para 50% (cinquenta por cento) do valor
da aposentadoria recebida pelo segurado ou daquela a que teria
direito se fosse aposentado por incapacidade permanente na data
do óbito, acrescida de cotas de 10% (dez por cento) por dependen-
te, até o máximo de 100% (cem por cento), exceto na hipótese de
existir dependente inválido ou com deficiência intelectual, mental
ou grave, quando a alíquota da pensão por morte será equivalente
a 100% (cem por cento) – (art. 23, § 2º, I, da EC 103/2019).
Cabe frisar que apesar de alterar as alíquotas das aposen-
tadorias e da pensão por morte, a EC n. 103/2019 manteve inal-
terado os benefícios de auxílio-doença e auxílio acidente, sem
alteração de alíquota, persistindo o percentual de 91% (noventa
e um por cento) e 50% (cinquenta por cento), respectivamente.
A despeito das alterações promovidas, está garantida a
concessão de benefícios, a qualquer tempo, com aplicação das
regras anteriormente vigentes, desde que tenham sido cumpridos
os requisitos para obtenção desses benefícios até a data de entrada
em vigor a Emenda Constitucional n. 103/2019 (direito adquiri-
do). (GEROMES, 2020, p. 136)
Contrariando a determinação imposta na EC 103/2019
(art. 26), que impôs a regulamentação das regras de cálculo
através de Lei, em 30 de junho de 2020, foi publicado o Decreto
n. 10.410/2020, que, além de alterar diversos dispositivos do
Regulamento da Previdência Social, tratou de regulamentar as
235

regras de cálculo contida no artigo 26 da Emenda Constitucional.


Dispôs o artigo no artigo 32 do Decreto n. 3.048/99 (Re-
gulamento da Previdência Social – RPS), com redação dada
pelo Decreto n. 10.410/2020, que o salário de benefício, base de
cálculo para apuração da renda mensal inicial, consiste na média
aritmética simples dos salários de contribuição, atualizados mone-
tariamente, correspondentes a 100% (cem por cento) do período
contributivo desde a competência julho de 1994 ou desde o início
da contribuição, se posterior a essa competência.
Esta é, também, a previsão contida no artigo 26 da EC
n. 103/2019, mas, o Regulamento da Previdência Social, quando
tratou do descarte dos menores salários de contribuição, limitou-o
às aposentadorias programada, especial e por idade do trabalha-
dor rural e as aposentadorias transitórias por idade e por tempo de
contribuição, para as quais se exige tempo mínimo de contribui-
ção (§§ 24 e 25, do art. 32 do RPS).
Limitou o descarte, para aquelas prestações, à quantidade
de contribuições equivalentes ao período de carência e observa-
do o tempo mínimo de contribuição necessário à elegibilidade da
aposentadoria requerida, impedindo a utilização do tempo excluí-
do para qualquer finalidade (§§ 26 e 27, do art. 32 do RPS).
Há clara divergência entre o que dispõe a alteração promo-
vida pelo Decreto n. 10.410/2020 e a disposição contida no artigo
26 da EC n. 103/2019, no que se refere a restrição do descarte
somente às aposentadorias programadas, haja vista que a emenda
não faz exceção a qualquer espécie de benefício.
Poder-se-ia se dizer que o descarte não pode ser aplicado
aos benefícios não programáveis diante do seu caráter provisório
e por não exigirem tempo mínimo de contribuição, uma vez ex-
cluído algum tempo de contribuição para sua concessão, cessado
este benefício, o tempo excluído não poderá ser utilizado para
concessão de benefício posterior, p. ex., aposentadoria por idade.
Esta hipótese é descabida, pois o descarte dos menores
salários de contribuição se dá apenas para efeitos de cálculo do
salário de benefício, como disciplinado no § 6º, do artigo 26 da
236

Emenda Constitucional, mantendo-se hígido no patrimônio jurí-


dico do segurado. Cessado eventual benefício por incapacidade
concedido com descarte de salários de contribuição, estes poderão
ser utilizados para efeito de concessão de benefício posterior.
Assim era aplicada a regra contida no artigo 29 da Lei n.
8.213/91 quando da utilização da média aritmética simples dos
80% maiores salários de contribuição. Os 20% menores salários
desconsiderados do cálculo de um benefício de auxílio-doença,
p. ex., sempre foram utilizados para concessão de outra prestação
posterior, da mesma espécie ou espécie distinta.
Cabe relembrar que, por ordem expressa do artigo 22 da
EC n. 103/2019, estas disposições não se aplicam à aposentadoria
da Pessoa com Deficiência, que será concedida na forma da Lei
Complementar nº 142, de 8 de maio de 2013, inclusive quanto aos
critérios de cálculo dos benefícios.
A renda mensal da aposentadoria devida ao segurado com
deficiência será calculada aplicando-se sobre o salário de bene-
fício4, apurado em conformidade com o disposto no artigo
29 da Lei n. 8.213/1991, o percentual de 100% (cem por cento),
no caso da aposentadoria por tempo de contribuição; ou 70%
(setenta por cento) mais 1% (um por cento) do salário de benefí-
cio por grupo de 12 (doze) contribuições mensais até o máximo
de 30% (trinta por cento), no caso de aposentadoria por idade (art.
8º, da LC 142/2013). 
Destacamos, portanto, que o benefício devido à PcD
deverá ser apurado na forma do artigo 29 da Lei n. 8.213/1991
(médias dos 80% maiores salários de contribuição), sem incidên-
cia das regras previstas na EC n. 103/2019. (GEROMES, 2020,
p. 163).
Apesar disso, o artigo 70-J do RPS, incluído pelo Decreto
10.410/2020, prevê que a renda mensal da aposentadoria devida

4
O Fator Previdenciário será aplicado na Aposentadoria do PcD,
somente quando resultar em renda mensal de valor mais elevado (art.
9º, I, da LC 142/2013).
237

ao segurado com deficiência será calculada com base no salário de


benefício definido na forma prevista no artigo 32 do regulamento,
que por sua vez impõem a utilização da média aritmética simples
dos salários de contribuição, atualizados monetariamente, corres-
pondentes a 100% (cem por cento) do período contributivo desde
a competência julho de 1994 ou desde o início da contribuição, se
posterior a essa competência.
A divergência entre as regras previstas na EC n. 103/2019
e no Decreto n. 10.410/2020 também são vistas no benefício de
auxílio-doença, chamado pelo Decreto, de auxílio por incapaci-
dade temporária (§ 23, do art. 32).
Disciplinado nos artigos 59 a 63 da Lei n. 8.213/1991,
possui renda mensal inicial correspondente a 91% (noventa e
um por cento) do salário de benefício (art. 61), que por sua vez,
consiste na média aritmética simples dos 80% maiores salários
de contribuição (art. 29, II), e, por expressa disposição legal (§
10, do artigo 29, da Lei 8.213/1991), a renda mensal inicial não
poderá exceder a média aritmética simples dos últimos 12 (doze)
salários de contribuição. (GEROMES, 2020, p. 164) 
Conforme anteriormente anotado, com a publicação da
Emenda Constitucional n. 103/2019, no cálculo do salário de
benefício serão considerados todos os salários de contribuição
existentes (100%) desde a competência julho de 1994 ou desde
o início da contribuição, se posterior àquela competência (artigo
26), inclusive para o caso de auxílio por incapacidade temporá-
ria, afastando o que dispõe o artigo 29, caput e § 10º, da Lei n.
8.213/91.
Entretanto, o § 23, do artigo 32, do RPS, prevê que o
auxílio por incapacidade temporária não poderá exceder a média
aritmética simples dos últimos doze salários de contribuição, in-
clusive no caso de remuneração variável, ou, se não houver doze
salários de contribuição, a média aritmética simples dos salários
de contribuição existentes.
O Decreto n. 10.410/2020, que possui apenas função de
regulamentar, impõe regra híbrida de cálculo, ao pretender com-
238

binar o artigo 26 da EC n. 103/2019 com o § 10, do artigo 29, da


Lei n. 8.213/2019. Dispõe que a renda mensal inicial do benefício
de auxílio por incapacidade temporária (auxílio-doença) corres-
ponderá a 91% (noventa e um por cento) do salário de benefício,
apurado pela média aritmética simples de 100% dos salários de
contribuição (art. 26 da EC 103/2019), e não poderá exceder a
média aritmética simples dos últimos 12 (doze) salários de con-
tribuição (§ 10, do artigo 29, da Lei 8.213/1991). (GEROMES,
2020, p. 165)  
Apesar dos desacertos, as alterações promovidas pelo
Decreto n. 10.410/2020 obedeceram a disposição contida no
artigo 26 da EC n. 103/2019 quanto à aplicação do divisor mínimo
somente às aposentadorias por idade, por tempo de contribuição
e especial, concedidas com base no direito adquirido até 13 de
novembro de 2019 (art. 188-E do RPS).
O afastamento do mínimo divisor do cálculo das aposen-
tadorias concedidas com base no direito adquirido a partir de 14
de novembro de 2019 tem gerado situações extremamente bené-
ficas aos segurados, principalmente na aposentadoria por idade,
quando, geralmente, o número de salários de contribuição no
período básico e cálculo – PBC é reduzido.
Está prática (afastamento do divisor mínimo) se dá em
completa obediência ao que dispõe o artigo 26 da Emenda Cons-
titucional. O dispositivo prevê que até que Lei discipline o cálculo
dos benefícios dos Regimes Geral e Próprio, será utilizada a média
dos salários de contribuição existentes (100%) no PBC, impondo
afastamento de qualquer regra prevendo sistemática distinta, in-
clusive aquela prevista no § 2º, do artigo 3º, da Lei n. 9.876/99.
Portanto, independentemente do número de salários de
contribuição no Período Básico de Cálculo, não haverá incidên-
cia do mínimo divisor, devendo ser realizada a média aritmética
simples dos salários de contribuição existentes.
Claro está que, se o Decreto n. 10.410/2020 observou a
disposição Constitucional (art. 26) para afastamento do divisor
mínimo do cálculo das aposentadorias por idade, por tempo de
239

contribuição e especial (art. 188-E do RPS), deveria ter afastado


os critérios previstos no artigo 29 da Lei de Benefícios para o
auxílio por incapacidade temporária, pois não há opção entre esta
regra ou aquela, muito menos a junção delas, deve-se aplicar o
artigo 26 da EC n. 103/2019.
Outra importante alteração, efetivada pela Lei 13.846/2019
quando alterou o artigo 32 da Lei de Benefícios, mantida pelo
Decreto 10.410/2020 (art. 34), determina que o salário de benefí-
cio do segurado que contribuir em razão de atividades concomi-
tantes será calculado com base na soma dos salários de contribui-
ção das atividades exercidas na data do requerimento ou do óbito.
Afastando a regra de proporcionalidade, prevista na redação
original do artigo 32 da Lei n. 8.213/91, a nova sistemática be-
neficiará os segurados da Previdência Social que contribuem em
razão de atividades concomitantes.
Necessário analisar, portanto, através de estudo específico,
que faremos a seguir, se a regulamentação aplicada pelo Decreto
n. 10.410/2020, esta maculada por ilegalidade e/ou inconstitucio-
nalidade, além de apresentar, caso existam, as soluções concretas.

O NOVO MODELO DE CÁLCULO PREVISTO NO


DECRETO 10.410/2020: UMA ANÁLISE SOBRE AS
APARENTES INCONSTITUCIONALIDADES E
ILEGALIDADES EXISTENTES

Quando tratamos de inconstitucionalidades, procuramos


de forma simples observar se o texto da norma infraconstitucio-
nal que está sendo analisada ofende a norma positivada na nossa
Carta Magna, o que pode ocorrer de forma direta, indireta, ou até
mesmo por extrapolar o seu sentido ou a sua abrangência.
Já no caso das ilegalidades, elas ocorrem quando em
contraposição duas normas de hierarquia distinta: a de menor
hierarquia possui texto normativo que ofende previsão legal de
hierarquia superior, normalmente alterando, restringindo ou ex-
trapolando o texto da norma de hierarquia superior.
240

Portanto, quando falamos de inconstitucionalidades ou


ilegalidades não discutimos apenas os critérios interpretativos da
norma, mas a sua impossibilidade de permanência no ordenamen-
to jurídico, uma vez que sua justaposição com as normas hie-
rarquicamente superiores foi prejudicada pelo conteúdo de seus
dispositivos, manifestamente inconstitucional ou ilegal.
Neste sentido, possível descrever inconstitucionalidades e
ilegalidades existentes nos dispositivos do Decreto n. 10.410/2020
que disciplinam as regras de cálculo dos benefícios do Regime
Geral de Previdência Social, normas que “supostamente” atendem
ao disposto na Emenda Constitucional n. 103/2019.
Merece destaque, as alterações promovidas pelo Decreto
n. 10.410/2020 no Regulamento da Previdência Social – RPS, no
que se refere à fórmula de cálculo do salário de benefício, “base
de cálculo da renda mensal inicial do benefício previdenciário,
etapa indispensável na busca do primeiro pagamento da presta-
ção”, a renda mensal inicial. (GEROMES, 2020, p. 137).
A Emenda Constitucional n. 103/2019 (art. 26), prevê que
até que lei discipline o cálculo dos benefícios do Regime Próprio
de Previdência Social da União e do Regime Geral de Previdên-
cia Social, será utilizada a média de 100% dos salários de contri-
buição existentes a partir da competência julho de 1994 ou desde
o início da contribuição, se posterior àquela competência.
Autorizando a concessão de benefício mais vantajoso, a
EC 103/2020 dispõe que “poderão ser excluídas da média as con-
tribuições que resultem em redução do valor do benefício, desde
que mantido o tempo mínimo de contribuição exigido, vedada a
utilização do tempo excluído para qualquer finalidade, inclusive
para o acréscimo a que se referem os §§ 2º e 5º, para a averbação
em outro regime previdenciário ou para a obtenção dos proventos
de inatividade das atividades de que tratam os arts. 42 e 142 da
Constituição Federal” (art. 26, § 6º).
Contrariando a disposição constitucional, foi editado pelo
Poder Executivo, o Decreto n. 10.410/2020, de 30 de junho de
2020, que em seu artigo 32, pretende regulamentar a regra contida
241

no artigo 26 da EC 103/2019. Apesar de prever a mesma fórmula


de cálculo contida na emenda, a alteração promovida pelo Decreto
revela-se inconstitucional, pois, a teor do texto constitucional, as
alterações devem estar previstas em Lei.
O Decreto dispõe ainda (§§ 24 e 25, do art. 32 do RPS),
que o descarte dos menores salários de contribuição para cálculo
do salário de benefício está limitado às aposentadorias programa-
da, especial e por idade do trabalhador rural e as aposentadorias
transitórias por idade e por tempo de contribuição (benefícios pro-
gramáveis), para as quais se exige tempo mínimo de contribuição.
Há clara inconstitucionalidade neste dispositivo, pois, a
norma do § 6º, do artigo 26 da EC n. 103/2019, não fez exceção a
nenhum de benefício. Ademais a afirmação de que, por não exigi-
rem tempo mínimo de contribuição, os benefícios não programá-
veis, diante do seu caráter provisório, não podem se beneficiar da
regra do descarte, apresenta nítida inconstitucionalidade.
Sequer cabe alegar que os salários de contribuição descar-
tados do cálculo do benefício não programável não poderão ser
utilizados para efeito de concessão de benefício posterior. Além
de inconstitucional, esta justificativa possui caráter confiscatório,
vedado pela Constituição Federal (art. 150, IV).
O descarte de menores salários de contribuição se dá
apenas para efeitos de cálculo do salário de benefício, como dis-
ciplinado no § 6º, do artigo 26 da Emenda Constitucional, man-
tendo-se hígido no patrimônio jurídico do segurado. Cessado
eventual benefício não programável concedido com descarte de
salários, estes poderão ser utilizados para efeito de concessão de
benefício posterior, assim como previsto anteriormente no artigo
29, I e II, da Lei n. 8.213/91.
Importa destacar que, por expressa previsão da EC n.
103/2019 (art. 22), as regras contidas no artigo 26 “caput” e
seus parágrafos, não se aplicam à aposentadoria da Pessoa com
Deficiência, que será concedida na forma da Lei Complementar
nº 142, de 8 de maio de 2013, inclusive quanto aos critérios de
cálculo dos benefícios.
242

De acordo com o artigo 8º da LC 142/2013 o salário de


benefício das aposentadorias devidas ao segurado com deficiên-
cia será apurado em conformidade com o disposto no artigo
29 da Lei n. 8.213/19915, e renda mensal inicial calculada com
alíquotas de 100% (cem por cento), no caso da aposentadoria por
tempo de contribuição; e 70% (setenta por cento) mais 1% (um
por cento) por grupo de 12 (doze) contribuições mensais até o
máximo de 30% (trinta por cento), sem incidência das regras pre-
vistas na EC n. 103/2019.
A despeito disso, o artigo 70-J do RPS, incluído pelo
Decreto 10.410/2020, apesar de manter as alíquotas previstas na
Lei Complementar, prevê que a renda mensal da aposentadoria
devida ao segurado com deficiência será calculada com base no
salário de benefício definido na forma prevista no artigo 32 do
RPS, que por sua vez impõem a utilização da média aritmética
simples de 100% (cem por cento) dos salários de contribuição
existentes no período básico de cálculo.
Além da infração constitucional, ao não aplicar integral-
mente o artigo 22 da EC 103/2019, a regra prevista no artigo 70-J
do RPS revela ilegalidade, por não determinar o cálculo do salário
de benefício na forma prevista no artigo 29 da Lei n. 8.213/1991,
desobedecendo o previsto no artigo 8º da LC 142/2013.
Ilegal também é a previsão disposto no § 23, do artigo 32,
do RPS ao prever que o auxílio por incapacidade temporária não
poderá exceder a média aritmética simples dos últimos doze salá-
rios de contribuição (§ 10º, art. 29 da Lei de Benefícios), impondo
regra híbrida de cálculo, ao pretender combinar o artigo 26 da EC
n. 103/2019 com o § 10, do artigo 29, da Lei n. 8.213/2019.
Os dispositivos aqui analisados afetam demasiadamente
o valor final dos benefícios previdenciários concedidos aos segu-
rados da Previdência Social, sendo de fundamental importância

5
O Fator Previdenciário será aplicado na Aposentadoria do PcD,
somente quando resultar em renda mensal de valor mais elevado (art.
9º, I, da LC 142/2013).
243

que seus reflexos sejam restringidos aos textos da Reforma da


Previdência aprovada no Congresso Nacional.

CONCLUSÃO

O Decreto em comento se mostra inoportuno. Embora a


necessidade de se regulamentar a Reforma da Previdência seja
premente, a fim de exemplificar os procedimentos a serem ado-
tados no serviço público, isso não autoriza que as normas sejam
editadas em descompasso com a hierarquia das normas no orde-
namento jurídico.
Todavia, o mais grave não é apenas a ordem de atualiza-
ção das normas, mas principalmente, seu conteúdo, que no caso
em tela demonstra uma tentativa do Governo Federal em garantir
a aplicação das normas previdenciárias restringindo direitos de
forma ainda mais grave do que o que fora colocado em prática por
meio da Reforma da Previdência.
O Governo Federal sustentou, durante todo trâmite da
Reforma da Previdência, o discurso de déficit do caixa previden-
ciário, com argumentos estatísticos parciais e propostas de alte-
ração na forma de cálculo dos benefícios, que ofendiam diversos
princípios constitucionais.
Com grande pesar, a Reforma foi aprovada com base
nessas premissas equivocadas, o que torna ainda mais inaceitável
que o poder executivo ainda publique a atualização do Decreto
Regulamentador em descompasso com o texto da EC n. 103/2019,
extrapolando sua competência normativa e tornando algumas dis-
posições ainda mais gravosas.
Tal fato acena para uma manobra do Poder Executivo no
intuito de garantir a manutenção dos seus interesses econômicos
sem depender do Congresso Nacional, o que seria necessário caso
fossem atualizar as leis ordinárias, que regulamentam a matéria.
Não se trata, portanto, da adoção por parte da administra-
ção de políticas públicas de interesse da sociedade como um todo,
244

mas sim do interesse de fazer prevalecer a vontade do Governo


Federal sobre a vontade da sociedade, que estaria representada no
Congresso Nacional, o que é inaceitável num estado Democrático
de Direito.
Diversas inconstitucionalidades e ilegalidades foram apon-
tadas, e caberá ao Poder Judiciário afastá-las em controle difuso
ou concentrado de constitucionalidade, a fim de que a ordem e
harmonia sejam mantidas, para que os direitos previdenciários
dos indivíduos sejam resguardados.

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negado pelo INSS. O que Fazer? A “portarização” do
Direito Previdenciário. GenJurídico, 2020. Disponível em:
http://genjuridico.com.br/2020/05/15/portarizacao-do-direito-
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