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RAMOS

E OUTRAS
ESTRANHEZAS

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Rosalie Gallo y Sanches

RAMOS
E OUTRAS
ESTRANHEZAS

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Copyright © da autora
Ramos e outras estranhezas

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser


reproduzida ou transmitida ou arquivada, desde que levados em
conta os direitos dos autores.

Capa: Alexandre Mesquita, a partir da foto de uma escultura


exposta no National Tramway Museum na pequena cidade Crich,
na Inglaterra. Fotografia de Elliott Brow.
Diagramação: Déborah Letícia Ferreira de Sousa
Ilustrações: Bruno Romi @brunoromi
Revisão: Fábio Marques de Souza e Ana Luzia de Souza

www.mentesabertas.com.br
https://mentesabertas.minhalojanouol.com.br/

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Aos leitores

Muitos destes escritos têm mais de quarenta anos.

Relendo o que já escrevi e guardei mais pelo espí-

rito crítico de exigência, decidi selecionar alguns que,

desta vez, virão à tona.

Com a idade, perdemos um pouco o medo das

críticas e nos encorajamos a falar, a expor, a escrever, a

publicar.

Espero que compreendam este ímpeto e, depois

da leitura, possam compreender tantas estranhezas.

Esperei uma vida inteira para que eu me descobrisse,

literalmente, e ainda tenho dúvidas a respeito de tê-lo

conseguido.

Alguns outros, entretanto, são recentes e os devo a

uma pessoa especial que invadiu minha vida e me fez

um dia ter vontade de voltar a viver melhor.

A autora

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rgallo1945@gmail.com

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RAMOS E OUTRAS ESTRANHEZAS

Ramos, 09

Era uma vez três, 31

João e Maria, 37

A fonte, 45

Madalena, 51

Uma outra margem, 57

São Caetano, 65

Negrinho de merda!, 75

Rufino, 87

Presente, 93

Valdomiro Paçoca, 101

Ao som do mar, 107

Os olhos, 115

É incrível, 121

Uma águia, uma gaivota, 127

Jonas, 133

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Abismo, 143

Festa de aniversário, 159

Posfácio, 169

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RAMOS

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• Padrinhos, 2019, técnica mista, 15x18cm.

Bruno Romi - Nasceu em Santa Barbara d’Oeste-SP, Brasil, 1987.
Vive e trabalha em São Paulo. Cursou Artes Plásticas, na Escola
Panamericana de Artes, EPA, São Paulo, SP. Suas obras têm como
base a representação da figura humana, utilizada como veículo
para materialização de ideias abstratas. Existe um interesse par-
ticular pela infinidade de estímulos a que somos expostos, de ma-
neira não apenas abundante, mas excessiva, e sobre como isso nos
afeta. Essa característica da contemporaneidade serve como ele-
mento central para a sua pesquisa, que se desdobra em temas como
a relação do homem com a tecnologia, a ansiedade epidêmica, as
fake news, a polarização política e questões de gênero/sexualidade.

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AO SOM DO MAR

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- Acorde, Regina!
E finalmente assim, acordada pelo marido, Re-
gina consegue se libertar da perseguição. Aliviada,
recompensa o marido com um leve toque no braço
e sente sua própria mão trêmula de medo.
- Ah, Fernando, até quando vou continuar com
esses sonhos horrorosos? Quem me persegue e me
quer tão mal, me atormenta com tamanha perse-
guição?
Fernando não responde. À luz do abajur, ob-

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serva o gesto cansado de Regina, passando os dedos
longos e finos na testa gotejada de suor. Os olhos
azuis marejados olham sem ver o teto do aparta-
mento para o qual se mudaram há pouco tempo.
- Não se preocupe, querida. Tudo está bem. Es-
tou com você, estou a seu lado e não vai lhe acon-
tecer nada.
- Sabe, Fernando, é sempre a mesma pessoa. E
não consigo ver se é homem ou mulher. Não me
diga novamente que não importa. Importa, sim! Eu
quero ver quem me persegue. Quero saber o por-
quê. O que tem a ver um número que vejo, 19?
Quase uma hora depois, tomando café, Fer-
nando se indaga. Valia a apena se preocupar com
Regina, maníaca por sonhos e coisas exóticas? Re-
gina o olha mais grata que apaixonada. Os anos de
casada lhe haviam dado quase o pai que não tivera
na infância dolorida e na lembrança, apenas abafa-
da, agora por tanto medo.

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- E Clotilde que não chega?
- Não posso esperar mais, querida. Não abra a
porta sem ver e...
A campainha toca.
- Deve ser ela. Fernando se levanta, apanha o
paletó e vai até a porta. Olha pelo olho mágico e
abre:
- Pois não?
-Bom dia. O senhor deve ser o doutor Fernan-
do. A Tide me mandou no lugar dela, hoje. Passou
mal de madrugada por causa de um negócio que
comeu ontem à noite e acabou no Pronto Socorro.
Aliás, me chamo Socorro. Maria do Socorro.
- Regina, a Clotilde ficou doente e enviou uma
amiga para nos socorrer. Entre, por favor. E ciao,
querida! Já estou em cima da hora! Não volto para
almoçar, disse Fernando, beijando a esposa.
Lentamente, Regina se levanta com dissabor
pela presença intrusa da substituta de Clotilde, que

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a servia há quase dez anos. Socorro, percebendo a
situação, tenta ser agradável:
- Faço um café novinho num instante! Ou a se-
nhora prefere um chá?
- Um chá, por favor. Dormi mal.
Pouco tempo depois Regina se joga no sofá de
seu quarto, ainda sonolenta da noite mal dormida
e sente um estranho torpor. Pela primeira vez repa-
ra que, estando acordada, se sente ameaçada como
nos sonhos. Não consegue se mexer. Não adianta
gritar, percebe. E se deixa prostrada em desespero,
ao som de um mar longínquo. O mesmo mar dos
sonhos. Ouve as ondas baterem nas rochas e o ba-
rulho é cada vez mais intenso, mais próximo. De
costas para a porta não vê Socorro depositar sobre
a penteadeira uma enorme concha de mar tirada da
sacola que trouxera, meio sorriso no lábio.
No escritório, sorriso contido e a imagem de
Clotilde nos olhos ávidos, Fernando desliga o te-

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lefone, impassivo. Da delegacia de Polícia chegara
a informação que Regina havia sido encontrada
morta, sentada na poltrona de seu quarto, com sus-
peita de dopagem. No seu colo, uma concha de mar
e, dentro dela uma anotação: R19.

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POSFÁCIO

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Este livro, por ter Ramos na abertura, não com-
porta um prefácio, uma apresentação ou mesmo
uma nota de autor. Decidi assim, a título de encer-
ramento, escrever outro texto para você, leitor(a),
que chegou até aqui, no percurso de minhas muitas
estranhezas.
Muito da vida não se explica. O homem não
consegue entender nem explicar o que lhe acontece
por ter dela uma visão seccionada da eternidade a
que estamos fadados. Religião à parte, o homem re-

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conhece, no seu profundo eu, que nem mesmo ele
se pertence. Sente a dependência de algo superior e
se subordina a uma força maior, muito além de sua
percepção.
Acontecem conosco situações que no momen-
to – e me refiro a apenas esta existência atual - não
nos é dado saber seu porquê. Então, escrevo agora,
como despedida deste livro que se torna público em
suas mãos e, portanto, passa a ser seu, uma última
das minhas estranhezas, envolvendo o amor. E me
despeço, por ora.

Oswaldo

Ela era um mulherão, mesmo sendo muito


nova. Difícil desviar os olhos daquele sorriso de
dentes separados, olhos brilhantes, a menina esbel-
ta que acompanhava a mãe e o pai nas idas ao cine-
ma. Mas ela não olhava para ninguém. Hoje perce-

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bo que há uma Garota de Ipanema em cada lugar
do mundo, sob os olhares masculinos.
Não esperava que ela se tornasse minha namo-
rada. Nunca esperei que me beijasse. Era sonhar
demais. Então, no clube da pequena cidade onde
passava as férias, por anos a fio, me limitei a olhar
para ela sem me aproximar. Até que um dia... ah...
um dia, ao som de Ray Conniff e La mer, a vi dis-
ponível no grupo de amigas. Reuni tudo o que eu
tinha de coragem e andei em sua direção.
- Quer dançar?
- Claro. Adoro esta música.
A realidade substituiu o sonho. La mer pas-
sou a ser a música de minha vida. Ray Conniff, o
maestro particular! Ela nos meus braços e na mi-
nha alma com aquela música registrada foi o início
de um período de férias com muitas danças, com
muita proximidade. Física e emocional. Desejei en-
tão dançar com aquela menina-moça-mulher para

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toda a vida que eu esperava ter. Sua frase “você dan-
ça tão bem!” me acompanhou para sempre. Infeliz-
mente, só a frase.
Uma das vezes em que dançávamos, ela comen-
tou que no dia seguinte o cinema exibiria um filme
interessante. Logo perguntei sem pensar:
- Vamos juntos?
Ela sorriu e sibilou entre os dentes separados:
- Xi... Meu pai é muito bravo...
O medo de seu pai foi menor que meu desejo
de estar com ela, no escuro, imaginando que mais
ninguém estivesse ao redor. Como no clube, foi
muito excitante. Não resisti e atrevidamente peguei
sua mão. Ela também não resistiu. E a acariciei com
delicadeza e respeito, de um jeito diferente de como
a segurava para dançar. Ela sabia. O sentimento que
despertava em mim, o adolescente tímido, alto e
magro, era maior que eu mesmo e me obrigava a
temer e a tremer. No escuro li sua mão com meus

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dedos.
As férias acabaram. Tive de esperar meses para
voltar à cidade de minha avó. Esperei também du-
rante muitos dias por ela, que não apareceu. Não
perguntei a ninguém sobre ela. Cadê a coragem,
longe dela? Encolhi-me. Fui embora sem saber o
que teria acontecido para que ela não estivesse na
cidade.
Cinquenta anos depois, viúvo, essas lembran-
ças voltam. Desço de carro a rua mais longa da pe-
quena cidade. Lá embaixo, o rio que corta os dois
lados da cidade, hoje um riozinho que está para
morrer, diferente daquele que transbordava e fazia
nossa festa infantil despreocupada dos estragos que
causava. Paro em frente à casa onde morava minha
avó. Reformada, não a vejo como é, mas como era.
Peço licença, entro e revejo com saudade tudo no
mesmo lugar em que minha memória congelou.
Agradeço, saio e procuro meu primo.

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- Sabe da filha caçula do dono do cinema?
- Sei, de vez em quando a vejo aqui, quando
vem visitar a irmã, que mora com um filho que é
meu amigo. Moram do lado de lá.
Sem esperar muito mais, desço do carro, bato
palmas.
- Dona Clara está? pergunto a uma moça que
me atende.
- Sim, por favor, entre.
Assim, na pequena sala de visitas, ouço notícias
de minha namoradinha de uma única noite. E entre
tantas informações, uma me faz sobressaltar o co-
ração: ela também está viúva.
Sentado agora no carro, olho o papel. Tenho
agora nas mãos, o número de telefone dela, meu
passado e meu futuro. Quando volto para sair da
cidade e atravesso o rio, descubro que ele divide
mais do que imaginava: divide também minha vida
que retoma um tempo suspenso e o projeta noutro

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tempo, possível. Ligo. Ela atende. Meu coração se
alegra e consigo parecer natural.
Mais 40 minutos de viagem falando ao telefo-
ne preso ao painel do carro que dirijo, o coração
saltando de emoção, transbordando de surpresa
antevendo uma vida feliz. Só desligo o celular de-
pois de lhe dizer que cheguei à sua cidade e estou
diante do hotel para me hospedar. É de noite e não
durmo quase nada, ansioso para vê-la. Beijá-la, tal-
vez, como não o fiz na noite de nosso namoro no
cinema. E a encontro, na manhã seguinte. A mu-
lher madura, sofrida como eu pela viuvez, solitária
como eu. Ainda ela, o encanto de minha adolescên-
cia.
Na primeira despedida, beijo-a na palma da
mão, beijo que espero ela guarde. Desejei que ela
tivesse ousado e retribuído. Outros mais atrevidos
virão, nestes novos tempos, porque desta vez sei
onde encontrá-la e não pretendo deixá-la nunca

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mais escapar de meus braços. Os planos ressurgem.
Decido entregar a empresa aos filhos e viver com
ela, em qualquer lugar do mundo, talvez Valência,
minha cidade preferida na Espanha; talvez Orlan-
do, perto dos sonhos da Disney e das coisas de ci-
nema; um pouco onde moro, um pouco onde ela
mora.
Ela precisa conhecer meus filhos e eu a dela.
Seremos um casal retomado da inocente juventude.
Durante meses, rimos e conversamos por ho-
ras ao telefone. Fico sabendo, por fim, que nas fé-
rias em que nos desencontramos, ela estava fazen-
do exames de vestibular. Sei mais: ela pediu meu
endereço a um meu tio que lhe disse que eu tinha
me mudado de cidade fazia pouco tempo e não sa-
bia de cor o novo endereço que nunca lhe deu e
ela não insistiu por vergonha. Eu lhe conto também
que a procurei nas apresentações brasileiras de Ray
Conniff, rezando para que ela não tivesse se esque-

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cido de nosso combinado de dançarmos de novo,
de preferência, ao som ao vivo da orquestra de nos-
sos encontros no clube.
Uma noite, volto de uma viagem ao Rio com
muita dor de cabeça. Decido ir ao hospital para ser
atendido na emergência porque daqui a dois dias
tenho que viajar de novo. Estou em fase jurídica da
passagem da empresa aos filhos para ter mais tem-
po para nós. No hospital, a tomografia revela dois
tumores cerebrais e dali não saio senão operado,
com a sentença de que minha memória recente se
perderá aos poucos. Foi retirado somente um dos
dois tumores. Sei o que me espera. Não desejo que
ela me veja assim. Não quero que ela passe de novo,
e comigo, o que já vivenciou com o marido morto
há mais de vinte anos. E eu sei o que me espera, de-
pois de ter acompanhado minha esposa sofrer com
seu câncer de pâncreas.
- Você precisa viver sua vida.

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Eu sei que ela não concordará, mas já está de-
cidido. Para dizer isso a ela senti que ali começava
a morrer. Para isso, precisei juntar minhas poucas
forças diante da estranheza de ter que tomar essa
decisão e sofrer de novo a sua falta; fazê-la sofrer de
novo nessa ausência imprevista, nessa desistência
racional, dura e cruel de não realizar nossos sonhos
maduros.
Almoçamos juntos poucas vezes. Nunca jan-
tamos juntos. Não tivemos tempo de viajar juntos.
Não entrei em seu apartamento de hotel, na sua
primeira visita, limitando-me a beijá-la com todo
o ardor que guardara. Beijei-a como um adolescen-
te que comprazia em roubar beijos que de fato lhe
pertenciam durante uma festa de aniversário fami-
liar. Fui capaz de chamá-la para se deitar ao meu
lado uma só vez, para assistirmos abraçados a um
sei lá que programa de televisão e de enroscar nas
dela as minhas pernas já debilitadas.

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E antes que definitivamente eu me esqueça de
todos e de você, escrevo para dizer que a amo, mi-
nha esbelta garota de dentes separados, sonho de
minha juventude que ainda me faz chorar ao ouvir
La mer e mesmo esquecido de muitas pessoas ou
muitos fatos, mesmo me esquecendo de todo o res-
to que me circunda e que desaparecerá de minha
memória. Espero que me perdoe primeiro a timi-
dez da juventude e agora a razão do homem apai-
xonado que pôde beijá-la, por fim.

para Z.

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