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CEBs: testemunhos orais da caminhada

William César de Andrade

Introdução

A história do cristianismo na América Latina, e de modo especial, no


Brasil, considerando-se os últimos 40 anos, é sem dúvida a expressão de um
processo amplo de modificação nas funções sociais atribuídas ao cristianismo
nas sociedades latino- americanas. Período histórico em que se percebe uma
profunda reformulação das práticas religiosas, devocionais, sociais, e
simultaneamente um vertiginoso processo de urbanização e marginalização da
maioria do povo. Para Löwy (2000, p. 12)) é um fato incontestável que: “ Um
setor significativo da Igreja – tanto fiéis, como clero – na América Latina,
mudou de posição na área de lutas sociais, passando, com seus recursos
materiais e espirituais, para o lado dos pobres e de sua luta por uma sociedade
nova.”
Para alguns historiadores (Scott Mainwaring e Ralph Della Cava, José
Oscar Beozzo e Michael Löwy) que se dedicaram a estudar a relação entre a
Igreja e a sociedade a partir de 1960, o surgimento das CEBs – Comunidades
Eclesiais de Base - foi a grande novidade, tanto do ponto de vista eclesial
quanto na atuação social dos cristãos. No entender de Mainwaring (1989, p.
30):“ Em anos mais recentes, facções da Igreja desenvolveram uma visão de
fé que visa alterar a ordem social. As comunidades de base, em particular, têm
encorajado uma percepção de fé, que enfatiza a opção preferencial pelos
pobres por parte da instituição, estimulando a conscientização política.”
A pesquisa sobre as CEBs tem se utilizado de várias fontes: documentos
escritos: boletins, relatórios de assembléias, estudos produzidos por
assessores e alguns ensaios monográficos sobre o tema; pesquisa
participante, coleta de testemunhos orais etc. Na maioria dos casos se faz uma
leitura pontual sobre as CEBs, partindo não propriamente da experiência
eclesial em si, mas de outro contexto, tais como o movimento social, as
iniciativas de educação popular, a retomada dos sindicatos e partidos – dentro
da ditadura militar -, as formas de diálogo estabelecidas entre as diversas
denominações cristãs e o diálogo com outras religiões.
Teólogos como José Libânio, José Comblin, Leonardo e Clodovis Boff
se dedicaram a explicar as CEBs a partir de sua fundamentação teórica: a
teologia da libertação, os encontros e/ou desencontros com o pensamento
marxista, as relações entre práxis religiosa e movimentos sociais etc. O
vínculo entre as CEBs e a TdL – teologia da libertação, é estrutural, pois o
discurso teológico traduz as expectativas e prática eclesial desenvolvida pelas
comunidades. Segundo Libanio (2000, p. 138): “A TdL quer responder a
seguinte pergunta: como crer dentro de uma situação de opressão e
libertação? Participa do processo de libertação da realidade social na sua
função própria de prática teórica teológica. Pretende ajudar também as
pessoas simples. Por isso, produz uma forma teológica popular, quer oral, quer
escrita. As próprias comunidades elaboram, em folhas mimeografadas ou
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Este texto foi apresentado no GT: Memória e Metodologias, durante o III Seminário de Pesquisas: As
múltiplas faces da memória”, realizado na UNICAMP entre os dias 12 a 14/março/2003.
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Membro do Instituto Migrações e Direitos Humanos e membro do CEHILA/Br.
pequenas brochuras, reflexões de fé sobre o cotidiano e sobre as pequenas
lutas, novenas, vias-sacras e celebrações litúrgicas.”
O Centro de documentação Memória e Caminhada das CEBs ao propor
este projeto de levantamento e coleta documental – Testemunhos Orais da
Caminhada -, considera a premente necessidade de se oferecer aos
pesquisadores de temas relacionados à religião no Brasil, evidências orais
colhidas das testemunhas diretas da história das Comunidades Eclesiais de
Base. Neste sentido, os entrevistados são pessoas que participaram
efetivamente do processo de construção destas comunidades, envolvendo-se
no dia-a-dia das periferias urbanas e/ou nas zonas rurais mais empobrecidas
do Brasil. O projeto busca interlocutores que possam em seus depoimentos
oferecer um amplo horizonte sobre a realidade da Igreja Católica e do
catolicismo popular no Brasíl. Assim, serão entrevistados lideranças locais,
assessores (locais, regionais e/ou nacionais) e bispos diretamente envolvidos
com as CEBs.
Seguimos os pensamento de Voldman, quanto ao que sejam
testemunhos, para esta autora eles são vistos como depoimentos: “...solicitado
por profissionais da história, historiadores ou arquivistas, visando a prestar
contas, a uma posteridade mediada pela técnica histórica, da ação da
testemunha, tomando-se a palavra ‘ação’ num sentido muito amplo que
engloba o fato, o acontecimento, o sentimento e a opinião, o comentário e a
lembrança do passado”( Voldman, 1998, p. 256). É no âmbito da vivência
comunitária das CEBs que vamos encontrar uma grande variedade de relatos
testemunhais, e isto, sem dúvida enriquecerá o acervo que esperamos
construir.
Uma história apegada aos registros escritos, oficiais ou não, poderá até
colecionar uma quantidade razoável de documentação primária, mas
certamente não perceberá aquilo que de fato melhor retrata o cotidiano das
CEBs: sua oralidade. É pelos caminhos da memória oral que nós iremos
encontrar os relatos vividos de inúmeras reuniões, o dia-a-dia dos grupos de
base, seja nas pastorais, seja na preparação de ações sociais significativas,
seja na construção de organismos de representação popular, tais como clubes
de mães, grupos contra a carestia, centro de defesa dos direitos humanos etc.
As CEBs apesar de sua ampla aceitação pelo episcopado brasileiro nas
décadas de 70 e 80, não chegaram a se tornar juridicamente estrutura
eclesial1. Para o direito canônico, a paróquia a capela e a quase-paróquia são
as instâncias de base da comunidade eclesial.. Assim, as CEBs somente
estarão ‘visíveis’ em documentos escritos, nas paróquias e dioceses que
aderiram a este modo de ser igreja.
Um exemplo gritante da dificuldade experimentada pelas CEBs na
conservação de seus registros documentais, pode ser observado na diocese de
Vitória/ES. Nesta diocese ocorreram os dois primeiros encontros Intereclesiais
das CEBs (1975 e 1976). Quando colaboradores do Programa Memória e
Caminhada buscaram em Vitória os documentos relativos a estes eventos,
foram informados de que os arquivos da cúria referentes à década de 70,
nunca foram organizados, e que o pouco material que havia fora queimado.
Algumas razões para este ‘desaparecimento’ foram apresentadas pelos

1
A CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, produziu vários documentos relativos às CEBs e
sua presença na sociedade brasileira, destaca-se o documento nº 25: Comunidade Eclesial de Base na
Igreja do Brasil. São Paulo. Paulinas. 1982.
responsáveis: a falta de espaço e a pouca importância documental do material
guardado pela diocese tais como: folhetos, textos manuscritos, livros de canto
e etc.
Os encontros Intereclesiais devem ser vistos pelos historiadores como
marcos na caminhada das CEBs, são eventos fundamentais para uma
interpretação da história e da presença no cenário nacional desta forma de
eclesialidade. Segundo Teixeira (1996, p.12): “Fundamental durante os
Encontros é o momento de partilha das experiências. Os relatos da caminhada
eclesial das comunidades, suas lutas, sofrimentos e conquistas são
apresentados à grande assembléia, que não apenas se apercebe da dimensão
comum dos problemas vividos, como também vislumbra as questões teóricas e
práticas envolvidas e os sinais promissores presentes”. Perder estes registros,
ou conservá-los de forma inadequada é de certo modo, silenciar segmentos
eclesiais e sociais quase sempre marginalizados na história, tanto na
sociedade brasileira como no âmbito da própria Igreja Católica.
Em muitas paróquias e dioceses houve uma reorientação – e até mesmo
recuo – pastoral, com o reforço de antigas estruturas, particularmente a
estrutura da paróquia, sendo relegadas a segundo plano as redes de
comunidades animadas por uma militância social. Continuam existindo ali, mas
de modo marginal ou informal, expressões de CEBs, como os círculos bíblicos,
a celebração da Palavra, a coordenação colegiada da comunidade, a ação
transformadora na realidade. Para dar conta de sua presença e do seu
significado eclesial, é necessário recorrer a outros meios de coleta de dados.
Lendo algumas atas de assembléias diocesanas e de encontro das
CEBs, quase sempre deparamo-nos com textos fragmentários, e que em
muitos casos oferecem pouca informação sobre a participação, os conflitos de
interesse e as negociações ocorridas em torno das deliberações assumidas ao
término do evento analisado. Entretanto, quando estes textos são colocados
em paralelo com depoimentos orais, o cenário modifica-se drasticamente.
Numa das primeiras entrevistas realizadas pelo projeto TESTEMUNHOS
ORAIS DA CAMINHADA, fomos surpreendidos por uma afirmação de Eduardo
Hoornaert2, quando perguntado sobre o lugar da política no nascimento das
CEBs. Ele disse que o apelo político nas comunidades surgiu no decorrer dos
anos 70, mas, de fato, não fazia parte do processo que originou as CEBs. Uma
das conclusões possíveis com relação à afirmação de Hoornaert, é de que a
politização das CEBs não foi algo natural ou necessário ao processo eclesial
experimentado por estas comunidades, sendo portanto, decorrente de diversos
fatores presentes na conjuntura dos anos 70.
É inerente à história das CEBs um permanente diálogo entre o cotidiano
das pessoas e a construção da comunidade. Telles (1986) atribui importância
social às CEBs a partir de seu inserção na realidade social dos excluídos, por
seu: “... ancoramento nas experiências da vida cotidiana, as comunidades de
base transformavam-se em lugares onde os sentimentos de injustiça e
privação eram elaborados como experiências coletivas. No incentivo à
reivindicação e luta por direitos, instituíam novos significados aos espaços
onde as pessoas vivem e enfrentam suas dificuldades diárias, como espaços
onde é recuperada uma certa noção de liberdade, enquanto possibilidade
interferir e alterar os destinos de suas existências através da ação coletiva.”(p.
48)
2
O depoimento de Eduardo Hoornaert ainda não está disponível aos pesquisadores.
É comum a existência de muitas reuniões – quase sempre em formato
circular -, com coordenação e ativa participação dos presentes na
apresentação na ‘leitura’ de sua realidade, a partir de testemunhos e
experiências marcantes. Boa parte deste processo não resulta em
documentação escrita, mas é parte de uma rica memória centrada na
oralidade.
A recente publicação pela Fundação Getúlio Vargas das memórias de
Dom Waldyr Calheiros, nos serve de indicativo, da riqueza de informações,
além de interessantes chaves de leitura sobre os acontecimentos relativos aos
últimos 40 anos3.
É possível escrever uma história que considere a realidade a partir dos
excluídos e dos grupos e pessoas que se colocaram a serviço do movimento
popular e da construção de uma Igreja dos pobres. Em termos de história,
podemos afirmar com Sharpe (1992, p. 58), que: “...a escrita da história vista
de baixo é um projeto que se comprovou extraordinariamente frutífero. Atraiu a
atenção de historiadores que estão trabalhando em várias sociedades
passadas, tanto geograficamente variadas quanto cronologicamente
estendendo-se dos séculos treze ao vinte. Esses historiadores são oriundos de
vários países e de várias tradições intelectuais e posições ideológicas. Ao
escrever a história vista de baixo, esses historiadores buscaram socorro de
formas tão variadas, quanto a quantificação, com a ajuda do computador e da
teoria antropológica, e seus achados apareceram em formatos tão diferentes
quanto o artigo erudito técnico e o livro best-seller.”
É certo que as narrativas em primeira pessoa, estão carregadas de
subjetividade, de parcialidade diante das tenções, conflitos e representações
das situações vividas enquanto pessoa, membro de uma comunidade religiosa
e participante de uma dada sociedade. Isto não retira valor das informações
obtidas, pelo contrário, nos possibilita uma visão que combina a percepção do
cotidiano e os passos adotados por instituições sociais: organismos eclesiais, o
estado etc.

Memórias dos Patriarcas e Matriarcas das CEBs

Parte significativa dos ‘pais e mães’ fundadores das CEBs, já estão com
mais de 60 anos, e este fato produz algumas repercussões. Dentre elas,
destacamos, as dificuldades inerentes ao envelhecimento, tais como o
esquecimento, a perda de algumas referências temporais, a manifestação de
doenças mais graves podem impedir que se contextualize a origem e os
principais passos dados pelas CEBs, no entender de quem nos relata;
Alguns ‘patriarcas’ já estão aposentados, no caso dos bispos, eméritos,
e seus sucessores/substitutos nem sempre se identificam com a caminhada
eclesial anteriormente realizada, ocorrendo não raro um esvaziamento dos
processos anteriores e a supressão do que se relaciona com o passado
recente – em alguns casos chegando-se até à ‘queima de arquivos e materiais’.
Exemplificando esta situação: é do conhecimento geral a ruptura pastoral que
ocorreu em Recife quando D. Helder Câmara se aposentou e, o arcebispo que
o substituiu, simplesmente encerrou diversas atividades realizadas e/ou reduziu

3
COSTA, Celia Maria Leite, PANDOLFI, Dulce Chaves e SERBIN, Kenneth. O bispo de Volta
Redonda: Dom Waldyr Calheiros. Rio de Janeiro . FGV. 2001.
significativamente o empenho da Igreja nas pastorais sociais e na defesa dos
direitos humanos.
Alguns ‘patriarcas’ e ‘matriarcas’ são estrangeiros e sua permanência
no país não está assegurada, inclusive por motivos de transferências - no caso
de religiosos -, e retorno a diocese ou organismos que durante anos os
sustentaram no trabalho pastoral realizado.
O falecimento de alguns ‘pais e mães’ fundadores acaba por sepultar
informações, processos, vivências que ao não serem relatadas, nos deixam de
informar sobre os caminhos percorridos e que podem ter influído de modo
decisivo nas ações e mística das comunidades.
O recurso à relatos orais, mais do que nos vincular à uma técnica de
construção documental da história, nos coloca em sintonia com o modo
tradicional de transmissão de conhecimentos, experiências, praticas e
espiritualidade dos pobres. Quase sempre marginalizados, os pobres e aqueles
que com eles se identificam em suas lutas e militância socio-eclesial, tornam
conhecidos seus sonhos, utopias e ações transformadoras, pela partilha desta
memória perigosa.
Na coleta e organização destes testemunhos orais, visamos
disponibilizar a partir do acervo de história oral um conjunto de informações
que possam ser utilizadas por pesquisadores das mais diversas áreas do
conhecimento. Entendemos que “a história oral é um ponto de contato e
intercâmbio entre a história e as demais ciências sociais e do comportamento,
especialmente com a antropologia, a sociologia e a psicologia”(Lozano, 1998,
p. 19). Efetivamente este trabalho em história oral soma-se ao conjunto
documental já coletado pelo Programa Memória e Caminhada, e como um de
seus desdobramentos no contexto da Universidade Católica de Brasília,
esperamos que os estudantes encontrem em nosso acervo um farto material
de pesquisa.
Queremos neste programa Memória e Caminhada das CEBs,
sistematizar o quanto for possível, esta memória que para nós, se situa no
plano do memórial, isto é, nos desafia a dar continuidade no presente, tudo
aquilo que alimentou a resistência dos pobres e sua esperança de construção
definitiva do Reino de Deus.

Memória e oralidade na caminhada das CEBs

Dois conceitos básicos definem a contribuição específica deste projeto:


Memória e Oralidade. Vejamos brevemente o que se compreende em cada um
deles.
A recuperação do passado não é um mero levantamento sincrônico de
fatos e pessoas relevantes no contexto das CEBs. O passado se faz presente
no cotidiano das comunidades, pois marca seu quadro de valores e práticas.
Assim, buscar o passado só faz sentido na medida em que se constróem
chaves-de-leitura do presente.
A memória da vida – cotidiano e resistência - dos pobres, quase nunca
aparece nos livros de História, em cujos textos o sujeito da história é a elite
social, o Estado e as grandes instituições. Cabe aos animadores das CEBs e
aos intelectuais que com elas se identificam, impedir que os ‘vencedores’
silenciem os ‘vencidos’. Assim, ao alimentarmos a memória histórica – que
situa os pobres e excluídos como sujeitos -, asseguramos mais que o resgate
ou recuperação de uma identidade suprimida. A memória do cotidiano e das
lutas dos pobres é semente no presente e possibilidade de organização de
novas formas de resistência e participação social dos excluídos.
Gutiérrez (1984) apresenta uma perspectiva a partir da qual se deva
retomar a história dos empobrecidos: “ A história da humanidade foi escrita
‘com mão branca’, a partir dos setores dominantes. Sendo outra a perspectiva
dos ‘vencidos’ da história, é preciso reler essa história a partir de suas lutas,
resistências e esperanças. Muitos esforços se fizeram para apagar a memória
dos oprimidos; isso significa arrebatar-lhes uma fonte de energia, de vontade
histórica, de rebeldia. Hoje, porém, os povos humilhados procuram
compreender o seu passado para construir o seu presente sobre bases firmes.”
(p. 295)
As fontes orais são vistas com desconfiança por uma concepção
positivista da ciência, porque as narrativas em primeira pessoa vêm carregadas
de subjetividade e portanto, de parcialidade diante das tensões, conflitos e
representações das situações vividas. Segundo Tompson (1998, p. 45), porém:
“...a história oral é tão antiga quanto a própria história. Ela foi a primeira
espécie de história. E apenas muito recentemente é que a habilidade em usar
a evidência oral deixou de ser uma das marcas do grande historiador”. Deste
modo, o domínio da escrita – produção de textos e a habilidade para fazer sua
interpretação, serviu como uma forma de apropriação de um conhecimento.
Historicamente isto serviu para uma parte das elites transforma-se este saber
em uma de dominação social.
Retomar a História Oral é redescobrir os sujeitos alijados do poder,
interromper seu isolamento social e resgatar a identidade dos grupos
excluídos. Por meio dela “...as testemunhas podem, agora, ser convocadas
também de entre as classes subalternas, os desprivilegiados e os derrotados.
Isso propicia uma reconstrução mais realista e mais imparcial do passado, uma
contestação ao relato tido como verdadeiro. Ao fazê-lo, a história oral tem um
compromisso radical em favor da mensagem social da história como um todo.”
(Thompson, 1998, p. 26)
O contraponto entre histórias oficiais, das elites e suas instituições, com
a história oral contendo a memória dos pobres, nos coloca em cheio na disputa
pela interpretação da História. Não se trata de um conflito perdido no passado
distante, mas de uma realidade atual, na qual grupos sociais e instituições
disputam entre si a busca de hegemonia, bem como força moral, ou no mínimo,
um espaço de reconhecida legitimidade social.
O uso da história oral, no que se refere às CEBs, é essencial para a
compreensão sobre como os pobres, a seu modo, interpretaram sua pertença
religiosa, seu lugar na sociedade, suas estratégias de resistência, sonhos e
utopias. Não sem motivo, reiteradas vezes aparece em escritos teológicos
alinhados com esta perspectiva a expressão ‘perigosa memória dos pobres’.

Zakhor: 40 anos de caminhada


Na origem da fé judaica está um evento – um monumento – da luta
popular: o êxodo. Grande parte da história de Israel foi edificada a partir de
perspectivas nascidas deste acontecimento. Nos momentos de crise surgiam
grupos proféticos com um apelo: Shemá Israel (Escute Israel) e, um convite:
Zakhor (lembre-se) a restabelecer um nexo seguro entre sua identidade e seu
passado como povo de uma Aliança.
Refletindo sobre as CEBs – e sobre minha experiência pessoal com os
grupos e pastorais que nelas existem -, percebo, numa leitura que se aproxima
da teologia, que nas comunidades há um grande esforço de retomar a história
dos marginalizados, de rever na cultura brasileira os processos de resistência,
tais como: os quilombos, as revoltas populares, Canudos etc.
O termo hebraico Zakhor, significa: lembrança “...e o verbo zakhar
aparece na Bíblia, em suas várias declinações nada menos do que 169 vezes,
geralmente tendo como tema Israel ou Deus, uma vez que a memória está a
serviço de ambos. O verbo é complementado pela sua contrapartida –
esquecer.” (Yeruschalmi, 1992, p. 225)
Esquecer-se do que torna as CEBs uma realidade eclesial inovadora no
catolicismo brasileiro, é sem dúvida um dos grandes problemas para os
cristãos que articulam sua militância religiosa com um projeto socialista para
toda a sociedade. Resgatar as evidências orais deste processo é contribuir
para que no presente as pastorais sociais, os grupos religiosos que estão
inseridos nos movimentos populares e, nas ações que assegurem uma
sociedade mais justa, possam afirmar sua identidade e articular melhor sua
participação na vida social.
O que se pretende no Centro de Documentação Memória e Caminhada
é sem dúvida ,constituir um acervo em que existam diversidade de fontes
documentais que possam servir aos historiadores e, também, para os agentes
de pastoral (teólogos (as) e leigos (as) engajados (as). O acervo em história
oral deverá ser disponibilizado aos interessados, tanto na sua forma sonora,
como por meio de transcrição.
É fundamental para a continuidade da caminhada das CEBs, estar em
estreita relação com suas fontes, com as práticas eclesiais e sociais
vivenciadas ao longo de sua história. Neste sentido, viver o preceito do
ZAKHOR é também conservar viva na memória de homens e mulheres que
estão nas CEBs, os caminhos percorridos, os mártires, a diversidade de
liturgias e expressões de resistência, bem como as utopias que motivam a
buscar transformações na realidade.

Referências Bibliográficas

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5. GUTIÉRREZ, Gustavo. A força histórica dos pobres. 2ª ed. Petrópolis.
Vozes. 1984.
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Marieta de Moraes e AMADO, Janaina. Usos e abusos da História Oral.
Rio de Janeiro. FGV. 1998.

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