O Estado e a Revolução Engels desenvolve a noção dessa "força" que se chama
Estado, força proveniente da sociedade, mas se coloca
Vladimir Ilitch Lenin
O Estado é um Produto do Antagonismo Inconciliável das
Classes
Comecemos pela mais vulgarizada das obras de Engels, A
Origem da Família, da Propriedade Privada, e do Estado
(....). Resumindo a sua análise histórica, diz Engels:
O Estado não é de modo algum um poder imposto à
sociedade de fora; não é, tampouco, "a realidade da
Ideia moral", "a imagem e a realidade da Razão como
pretende Hegel. Pelo contrário, é um produto da
sociedade numa certa fase do seu desenvolvimento. É a
confissão de que essa sociedade se envolveu numa
insolúvel contradição interna, se dividiu em
antagonismos inconciliáveis de que não pode
desvencilhar-se. Mas, para que essas classes
antagônicas, com interesses econômicos contrários, não
se entre devorassem e não devorassem a sociedade
numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de uma força
que se colocasse aparentemente acima da sociedade,
com o fim de atenuar o conflito nos limites da "ordem".
Essa força, que sai da sociedade, colocando-se acima
dela e se alienando cada vez mais dela, é o Estado.
Nesta passagem se expressa claramente a ideia
fundamental do marxismo quanto ao papel histórico e o
significado do Estado. O Estado é o produto e a
manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O
Estado aparece onde e na medida em que os
antagonismos de classes não podem objetivamente ser
conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado
prova que as contradições de classes são inconciliáveis
das classes. [...]
Destacamentos especiais de homens armados, prisões
etc.
Distinguindo-se da antiga organização gentílica, o
Estado caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo
agrupamento dos seus súditos de acordo com uma
divisão territorial.
Essa divisão nos parece ‘natural’, mas representa uma
longa luta com a antiga organização por gens ou tribos.
O segundo traço característico do Estado é a
instituição de uma força pública que já não coincide
diretamente com a população que a si própria se
organiza como força armada. Essa força pública
especial é necessária, porque a organização armada
espontânea da população se tornou impossível desde
que a sociedade se dividiu em classes ... Essa força
pública existe em todos os Estados. Compreende não
só homens armados, como também elementos
materiais, prisões e instituições coercivas de toda
espécie, que a sociedade gentílica (de clãs) não
conheceu.
acima dela e que dela se afasta cada vez mais. Em que
consiste, principalmente, essa força? Em destacamentos
de homens armados que têm à sua disposição as prisões,
e outras coisas.
Temos o direito de falar em destacamentos de homens
armados, porque o poder público inerente a qualquer
Estado "não coincide diretamente" à população armada,
com sua " organização armada espontânea". (...)
O Estado: instrumento de exploração da classe oprimida
Para a manutenção de um poder público especial acima
da sociedade, são necessários impostos e uma dívida
pública.
De posse do poder público e do direito de tributação,
- escreve Engels - os funcionários são colocados, como
os órgãos da sociedade, acima da sociedade. O
respeito voluntário e gratuito de que eram cercados os
órgãos da sociedade gentílica não é suficiente para
eles... Fazem-se leis sobre a "santidade" e
"imunidade" dos funcionários... O mais insignificante
policial tem mais “autoridade” do que todos os órgãos
da sociedade gentílica juntos; mas o mais poderoso
príncipe e o maior estadista ou general da civilização
poderia invejar um chefe de clã, pelo respeito
espontâneo e inquestionável que ele desfrutava na
sociedade.
A questão da posição privilegiada dos funcionários, como
órgãos do governo, é levantada aqui. O ponto principal
indicado é: que é que os coloca acima da sociedade?
Veremos como esta questão teórica foi resolvida
praticamente pela Comuna de Paris em 1871, e escondida
de um ponto de vista reacionário por Kautsky em 1912.
Como o Estado nasceu da necessidade de refrear os
antagonismos de classes, no próprio conflito dessas
classes, resulta, em princípio, que o Estado é
geralmente o Estado da classe mais poderosa, da
classe economicamente dominante que, também
graças a ele, se toma a classe politicamente dominante
e adquire, assim, novos meios de reprimir e explorar a
classe oprimida. Não só o Estado antigo e o Estado
feudal eram órgãos de exploração dos escravos e dos
servos, como também: O Estado representativo
moderno é um instrumento de exploração do trabalho
assalariado pelo capital. Há, no entanto, períodos
excepcionais em que as classes em luta atingem tal
equilíbrio de forças, que o poder público adquire
momentaneamente certa independência em relação
às mesmas como aparente mediador entre elas. Tais
foram a monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII, o
bonapartismo do primeiro e do segundo Império na
França, e Bismarck na Alemanha.
Tal é, acrescentaremos nós, o governo de Kerensky na
Rússia republicana, desde que começou a perseguir o
1
proletariado revolucionário, quando os Sovietes, graças à
liderança dos democratas pequeno-burgueses, já são
impotentes e a burguesia ainda não é bastante forte para
dispersá-los.
Na República democrática - continua Engels - a riqueza
exerce seu poder de modo indireto, embora mais
seguro. De um lado, sob a forma de corrupção direta
dos funcionários do Estado [América]... de outro lado,
sob a forma de aliança entre o governo e a Bolsa.
[França e América].
Atualmente, o imperialismo e o reinado dos Bancos têm
"desenvolvido", com uma arte requintada, em todas as
repúblicas democráticas, esses dois meios de manter e
exercer a onipotência da riqueza. (...)
A onipotência da "riqueza" também está mais segura
numa república democrática porque não depende de
determinados defeitos do mecanismo político. A
república democrática é a melhor camada externa
possível do capitalismo. Eis por que o capital, depois de
se ter apoderado desse invólucro ideal (...) firmou o seu
poder de maneira tão sólida, tão segura, que nenhuma
mudança de pessoas, instituições ou partidos, na
república democrática burguesa, é suscetível de abalar
esse poder. (...)
Em sua obra mais popular, Engels apresenta um resumo
de seus pontos de vista com as seguintes palavras:
O Estado, portanto, não existiu sempre. Houve
sociedades que passaram sem ele e que não tinham a
menor noção de Estado nem de poder estatal. Ao
chegar a um certo grau do desenvolvimento
econômico, resultando necessariamente na divisão da
sociedade em classes, o Estado tornou-se uma
necessidade, em consequência dessa divisão. Agora
estamos nos aproximando a passos largos para um
estágio no desenvolvimento da produção, que a
existência dessas classes não só deixou de ser uma
necessidade, mas se tornou um obstáculo direto à
produção. As classes vão desaparecer tão inevitável
como anteriormente nasceram. Ao mesmo tempo que
as classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado. A
sociedade reorganizando a produção sobre a base da
associação livre e igual de todos os produtores,
enviará a máquina governamental para o lugar que lhe
convém: o museu de antiguidades, ao lado da roda de
fiar e do machado de bronze.
As vésperas da revolução
[...]É instrutivo comparar essa afirmação geral do
pensamento sobre o desaparecimento do Estado após a
destruição das classes, a exposição dada no Manifesto
Comunista, escrito por Marx e Engels (...) em novembro
de 1847:
Descrevendo as fases mais comuns do
desenvolvimento do proletariado, traçamos uma
guerra civil mais ou menos oculta interior da
sociedade existente até o ponto em que ela se
transforma em uma revolução aberta, e em que o
proletariado estabelece a sua dominação pela
derrubada violenta da burguesia...
Já vimos, acima, que o primeiro passo da revolução
dos trabalhadores é a elevação (literalmente:
elevação) do proletariado à classe dominante, a
conquista da democracia.
O proletariado usará sua dominação política para
arrancar todo o capital da burguesia, para centralizar
todos os instrumentos de produção nas mãos do
Estado, isto é, do proletariado organizado como a
classe dominante - e para aumentar a quantidade de
forças produtivas o mais rápido possível.
Aqui vemos a formulação de uma das ideias mais notáveis
e mais importantes do marxismo sobre o Estado,
nomeadamente, as ideias da “ditadura do proletariado”
(como Marx e Engels começaram a dizer depois da
Comuna de Paris) e em seguida a definição altamente
interessante do Estado e que também pertencem as
“palavras esquecidas” do marxismo. "O Estado, isto é, o
proletariado organizado como classe dominante." [...]
O Estado é uma organização especial da força, é a
organização da violência para reprimir uma classe
qualquer. Qual classe o proletariado deve
reprimir? Naturalmente, apenas a classe exploradora,
isto é, a burguesia. Os trabalhadores precisam do Estado
apenas para suprimir a resistência dos exploradores, e
somente o proletariado, como única classe
completamente revolucionária, a única classe capaz de
unir todos os trabalhadores e explorados na luta contra a
burguesia, deslocando-a completamente, pode liderar
essa supressão.
As classes exploradoras precisam de supremacia política
no interesse de manter a exploração, isto é, nos
interesses egoístas de uma minoria insignificante, contra
a esmagadora maioria do povo. As classes exploradas
precisam de dominação política no interesse da completa
eliminação de toda a exploração, isto é, no interesse da
esmagadora maioria do povo, contra uma minoria
insignificante de proprietários de escravos modernos,
isto é, latifundiários e capitalistas. [...]
A derrubada do domínio da burguesia só é possível pelo
proletariado, pois é uma classe especial, cujas condições
econômicas a preparam para tal derrubada, lhe fornecem
o poder e a oportunidade de realizá-la. Enquanto a
burguesia quebra e dispersa o campesinato e todas as
camadas pequeno-burguesas, consolida, une e organiza o
proletariado. Só o proletariado - em virtude do papel
econômico que desempenha na produção em larga
escala - é capaz de ser o líder de toda a massa
trabalhadora e explorada, que a burguesia explora,
oprime e esmaga tanto quanto os proletários, e com
frequência mais do que eles, mas que não são capazes de
luta independente pela sua libertação. [...]
2
O proletariado precisa do poder do Estado, uma
organização centralizada da força, da organização da
violência, tanto para esmagar a resistência dos
exploradores quanto para dirigir a enorme massa da
população - os camponeses, a pequena burguesia e os
semiproletários - na obra de "construir" uma economia
socialista.
Ao educar o partido dos trabalhadores, o marxismo
educa a vanguarda do proletariado, capaz de tomar o
poder e conduzir todo o povo ao socialismo, dirigindo e
organizando o novo sistema, sendo professor, guia, líder
de todos os trabalhadores e explorados para organizar
sua vida social sem a burguesia e contra a burguesia. Em
contraste, o oportunismo que agora prevalece treina os
membros do partido dos trabalhadores para serem os
representantes dos trabalhadores mais bem pagos, que
se separam das massas, que "se dão bem" no capitalismo
e por um prato de lentilhas vendem seu direito de
primogenitura, recusando o papel dos líderes
revolucionários do povo contra a burguesia. [...]
O balanço da Revolução
[...] As formas dos Estados burgueses são extremamente
diversas, mas sua essência é a mesma: todos esses
Estados, seja qual for sua forma, em última análise são
inevitavelmente a ditadura da burguesia. A transição do
capitalismo para o comunismo, é claro, não pode deixar
de apresentar uma enorme abundância e diversidade de
formas políticas, mas a essência será inevitavelmente a
mesma: a ditadura do proletariado. [...]
Em que consiste o heroísmo da tentativa dos
communards?
A única “correção” que Marx considerou necessário para
o “Manifesto Comunista” ele fez com base na experiência
revolucionária da Comuna de Paris.
O último prefácio da nova edição alemã do Manifesto
Comunista, assinado por ambos os autores, está marcado
em 24 de junho de 1872. Neste prefácio, os autores, Karl
Marx e Friedrich Engels, dizem que o programa do
Manifesto Comunista "está agora desatualizado em
alguns pontos".
E isso porque a Comuna provou que a “classe
trabalhadora não pode simplesmente tomar posse da
máquina estatal que encontra montada e movê-la na
direção de seus próprios objetivos”.
As palavras dessa citação foram tiradas da obra de Marx:
A Guerra Civil em França. Assim, Marx e Engels atribuíam
tão grande importância a uma das lições fundamentais da
Comuna, que a introduziram, como modificação
essencial, no Manifesto Comunista.
É extremamente característico que essa emenda
substancial tenha sido distorcida pelos oportunistas, e
seu significado é provavelmente desconhecido de nove
décimos, senão de noventa e nove centésimos dos
leitores do Manifesto Comunista. Desta deformação
falaremos num dos capítulos seguintes, consagrado
especialmente às deformações. Aqui, bastará salientar a
"interpretação" corrente, vulgar, da famosa fórmula de
Marx por nós citada, segundo a qual a ideia acentuada
por Marx seria a do desenvolvimento lento em oposição
à conquista do poder, e coisas semelhantes.
Na verdade, é exatamente o oposto. A ideia de Marx é
que a classe trabalhadora deveria esmagar, quebrar a
"máquina estatal que encontra montada", não se
limitando apenas a apoderar-se dela.
Em 12 de abril de 1871, isto é, justamente na época da
Comuna, Marx escreveu a Kugelman:
Se você olhar para o último capítulo do meu Dezoito
Brumário, verá que eu declaro que a próxima tentativa
da Revolução Francesa não será mais, como tem
acontecido até agora, transferir a máquina
burocrática-militar de uma mão para outra, mas
quebrá-la [itálico de Marx - o original é zerbrechen], e
esta é precisamente a precondição de qualquer
revolução popular no continente. E esta é
precisamente a tentativa de nossos heroicos
camaradas parisienses (...).
Com estas palavras: “quebrar a máquina de estado
burocrático-militar” é brevemente expresso, a principal
lição do marxismo sobre o problema das tarefas do
proletariado na revolução em relação ao Estado. [...]
Pelo que deve ser substituída a máquina do Estado, depois
de destruída?
No Manifesto Comunista, em 1847, Marx ainda não dava
a essa pergunta senão uma resposta completamente
abstrata; ou melhor, limitava-se a enunciar o problema,
mas não as maneiras de resolvê-lo. Substituir a máquina
do Estado pelo "organização do proletariado como classe
dominante", pela "conquista da democracia", tal era a
resposta.
Marx não se entregou às utopias; ele esperava que a
experiência do movimento de massas fornecesse a
resposta à questão quanto às formas específicas que essa
organização do proletariado, como a classe dominante
assumiria, e quanto à maneira exata como essa
organização seria combinada com a mais completa, mais
consistente "conquista da democracia".
Marx, na "Guerra Civil em França" expõe a experiência da
Comuna, por mais limitada que tenha sido, a análise mais
cuidadosa. Citaremos os pontos principais dessa obra [...]
O que exatamente era essa forma "definida" da república
socialista proletária? Qual foi o estado que ela começou
a criar?
O primeiro decreto da Comuna foi a destruição do
exército permanente e sua substituição pelo povo
armado (...) A Comuna foi formada por conselheiros
3
 municipais, eleitos por sufrágio universal nos vários
bairros da cidade, responsáveis e revogáveis em
qualquer momento. A maioria dos seus membros
eram naturalmente operários ou representantes
reconhecidos da classe operária. (...) Em vez de
continuar a ser o instrumento do governo central, a
polícia foi logo despojada dos seus atributos políticos
e transformada no instrumento da Comuna,
responsável e revogável em qualquer momento. O
mesmo aconteceu com os funcionários de todos os
outros ramos da administração. Desde os membros da
Comuna para baixo, o serviço público tinha de ser feito
em troca de salários de operários. Os privilégios e os
subsídios de representação dos altos dignitários do
Estado desapareceram junto com os altos dignitários...
Tendo uma vez se livrado do exército permanente e da
polícia, elementos da força material do antigo
governo, a Comuna prosseguiu imediatamente para
quebrar o instrumento de repressão espiritual, o
“poder dos padres” ... Os funcionários da justiça
perderam sua falsa independência... eles deveriam de
ser eleitos, responsáveis e revogáveis"
Assim, a Comuna parece ter substituído a máquina
estatal quebrada "simplesmente" por uma democracia
mais completa: a destruição do exército permanente, a
eletividade e a revogabilidade de todos os funcionários
públicos sem exceção. Mas, na realidade, isso
"simplesmente" significa uma substituição gigantesca de
certas instituições por instituições fundamentalmente
diferentes. Este é precisamente um caso de
"transformação de quantidade em qualidade": a
democracia, realizado desta maneira, tão completa e
metodicamente quanto é possível conceber, transforma
a democracia burguesa em democracia proletária, de um
Estado (= poder especial projetado para subjugar uma
classe particular) é transformado em algo que não é mais,
estritamente falando, um Estado. [...] E como a maioria
das pessoas reprime seus opressores, uma "força
especial" para a repressão não é mais necessária. Nesse
sentido, o Estado começa a desaparecer. Em lugar de
instituições especiais de uma minoria privilegiada (a
burocracia privilegiada, os chefes do exército
permanente), a própria maioria pode desempenhar
diretamente estas funções, e quanto mais o próprio povo
assumir essas funções próprias do poder de Estado, tanto
menos se fará sentir a necessidade desse poder. [...]
Elegibilidade absoluta, possibilidade de substituir a
qualquer momento todos os funcionários, sem exceção,
redução de seus salários aos habituais "salários do
trabalhador" – essas medidas democráticas, simples e
“evidentes por si mesmas”, unificando os interesses dos
operários e da maioria dos camponeses, servem, ao
mesmo tempo, de ponte entre o capitalismo e o
socialismo. Essas medidas dizem respeito à reorganização
do Estado, à reorganização meramente política da
sociedade, mas é evidente que só adquirem seu pleno
sentido e importância ao se ligarem com a “expropriação
dos expropriadores”, em preparação ou realização, isto é,
com a transferência da propriedade privada capitalista
dos meios de produção em propriedade pública.
A supressão do parlamentarismo
A Comuna – escreveu Marx – não deveria ser uma
instituição parlamentar, mas sim uma corporação de
trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo...
Ao invés de decidir uma vez a cada três ou seis anos,
qual membro da classe dominante deveria
representar e reprimir o povo no parlamento, o
sufrágio universal devia servir ao povo, organizado em
comunas, para recrutar, ao seu serviço, trabalhadores,
supervisores, contadores, da mesma forma que o
sufrágio individual serve aos patrões, na sua procura
de operários ou supervisores para suas empresas. (...)
Decidir periodicamente, para um certo número de anos,
que membros da classe dominante vão reprimir e
esmagar o povo no parlamento, essa é a verdadeira
essência do parlamentarismo burguês, não somente nas
monarquias parlamentares constitucionais, como
também nas repúblicas mais democráticas. [...]
A Comuna substitui o parlamentar corrupto e podre da
sociedade burguesa por instituições em que a liberdade
de opinião e de discussão não degenera em enganação,
porque os próprios parlamentares têm que trabalhar,
eles mesmos devem executar as suas leis, verificar os
resultados obtidos e responder diretamente perante os
seus eleitores. As instituições representativas são
mantidas, mas já não existe mais o parlamentarismo
como sistema especial, como divisão do trabalho
legislativo e executivo, como situação privilegiada para os
deputados [...].
É extremamente instrutivo notar que, ao falar das
funções de burocracia, o que é necessário tanto na
Comuna como na democracia proletária, Marx compara
com funcionários de "qualquer outro patrão", isto é, uma
empresa capitalista comum, com "trabalhadores,
encarregados e contadores". [...]
O capitalismo simplifica as funções de gestão "estatal",
torna possível colocar de lado o "chefe" e reduzir toda a
questão à organização dos proletários (como a classe
dominante), que contratará em nome de toda a
sociedade "trabalhadores, supervisores, contadores".
Nós não somos utopistas. Não “sonhamos” com
dispensar desde o início toda administração, toda
submissão; esses sonhos anarquistas, baseados na falta
de compreensão das tarefas da ditadura do proletariado,
são fundamentalmente estranhos ao marxismo e, na
4
prática, servem apenas para retardar a revolução
socialista até que as pessoas sejam diferentes. Nós
queremos uma revolução socialista com as pessoas como
são hoje, com pessoas que não podem dispensar a
subordinação, o controle e os "supervisores e
contadores".
[...] Organizamos a produção em larga escala, tendo como
ponto de partida o que o capitalismo já criou, nós, os
próprios trabalhadores, confiando em nossa experiência
de trabalho, estabelecendo a mais forte disciplina de
ferro apoiada pelo poder estatal dos trabalhadores
armados, reduzindo funcionários do governo ao papel de
simples executores de nossas instruções, responsáveis,
revogáveis e modestamente pagos, como "supervisores e
contadores" (claro, com a ajuda de técnicos de todos os
tipos, gêneros e graus) - esta é a nossa tarefa proletária,
é aqui que podemos e devemos começar a revolução
proletária. Estas medidas iniciais, com base na produção
em grande escala, por si só leva ao gradual
"desaparecimento" de qualquer burocracia, à criação
gradual de tal ordem - uma ordem sem aspas, uma ordem
inteiramente diferente da escravidão do assalariado - tal
ordem onde as funções, cada vez mais simplificadas, de
fiscalização e contabilidade, serão desempenhadas por
todos, por turno, então se tornará um hábito e,
finalmente, desaparecerá como funções especiais de uma
determinada camada de pessoas.
A Transição do Capitalismo ao Comunismo
Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista
- continua Marx - situa-se o período de transformação
revolucionária da primeira para a segunda. A esse
período corresponde um outro, de transição política,
em que o Estado não pode ser outra coisa senão a
ditadura revolucionária do proletariado...
[...]Qual é a atitude dessa ditadura para a democracia?
[...] Na sociedade capitalista, desde que se desenvolva
nas suas condições mais favoráveis, temos uma
democracia mais ou menos completa em uma república
democrática. Mas essa democracia é sempre comprimida
pelos estreitos limites impostos da exploração capitalista
e, portanto, sempre permanece, em essência, uma
democracia para uma minoria, apenas para as classes
possuidoras, apenas para os ricos. A liberdade da
sociedade capitalista permanece sempre igual à
liberdade nas antigas repúblicas gregas: a liberdade para
os proprietários de escravos. Os escravos assalariados
modernos, em virtude das condições da exploração
capitalista, continuam tão sobrecarregados pela
necessidade e pobreza que "não podem se ocupar com a
democracia", "não podem se ocupar com a política"; no
curso normal e pacífico dos acontecimentos a maioria da
população é excluída da participação na vida pública e
política. [...]
Democracia para uma minoria insignificante, democracia
para os ricos, esta é a democracia da sociedade
capitalista. Se examinarmos mais de perto o mecanismo
da democracia capitalista, veremos em toda parte e em
toda parte os detalhes “pequenos”, supostamente
menores, do sufrágio (censo domiciliar, exclusão das
mulheres etc.) assim como no modo de funcionamento
das instituições representativas, e nos obstáculos reais ao
direito de reunião (os edifícios públicos não são para os
"maltrapilhos"!), e na organização puramente capitalista
da imprensa diária, e assim por diante, veremos
limitações e limitações da democracia. Essas restrições,
exclusões, exceções, obstáculos para os pobres parecem
ser pequenas, especialmente aos olhos de alguém que
nunca conheceu a necessidade e nunca esteve em
contato com as classes oprimidas em sua vida diária (isto
é, os nove décimos, senão os noventa e nove por cento
dos publicistas e dos políticos burgueses); mas em sua
soma total essas restrições excluem e expulsam os pobres
da política, da participação ativa na democracia.
Marx captou perfeitamente essa essência da democracia
capitalista, dizendo em sua análise da experiência da
Comuna: deixam os oprimidos, uma vez a cada poucos
anos, decidirem qual dos representantes da classe
opressora os representará e reprimirão no parlamento!
[...]Em outras palavras: sob o capitalismo, temos um
Estado no sentido próprio da palavra, uma máquina
especial de repressão de uma classe por outra, da maioria
pela minoria. Para ser bem-sucedida, a repressão
sistemática da maioria dos explorados por uma minoria
de exploradores precisa de extrema ferocidade,
brutalidade na repressão, exige mares de sangue pelos
quais a humanidade continua seu curso, do regime de
escravidão, para a servidão e o trabalho assalariado.
Além disso, na transição do capitalismo para o
comunismo, a repressão ainda é necessária, mas a
repressão de uma minoria de exploradores pela maioria
dos explorados. Um aparelho especial, uma máquina
especial "para a repressão, o "Estado" ainda é necessário,
mas este é agora um Estado de transição, já não é um
Estado no sentido próprio. Porque a repressão exercida
sobre uma minoria de exploradores, pela maioria dos
escravos assalariados de ontem é relativamente fácil,
simples e natural, uma tarefa que implicará muito menos
derramamento de sangue do que a repressão das
revoltas de escravos, servos, e trabalhadores
assalariados, e isso custará muito menos à humanidade.
E é compatível com a disseminação da democracia para
uma esmagadora maioria da população, começando a
5
desaparecer a necessidade de uma máquina especial de
repressão. Naturalmente, os exploradores são incapazes
de reprimir o povo sem uma máquina altamente
complexa para realizar essa tarefa, mas o povo pode
subjugar os exploradores mesmo com uma "máquina"
muito simples, quase sem "máquina", sem um aparelho
especial, pela simples organização das massas armadas
(como, diremos em antecipação, os Sovietes de
deputados operários e soldados).
Finalmente, somente o comunismo cria a completa
inutilidade do Estado, pois não há ninguém para reprimir,
“ninguém” no sentido da classe, no sentido de uma luta
sistemática com uma certa parte da população. Nós não
somos utópicos e não negamos que os excessos
individuais são possíveis e inevitáveis; e não negamos que
é necessário reprimir estes excessos. Mas,
primeiramente, não há necessidade de uma máquina
especial, de um aparato especial de repressão; o povo
armado empreenderá essa tarefa tão simples, com a
mesma simplicidade e facilidade com que qualquer
multidão de pessoas civilizados, mesmo na sociedade
atual, separa pessoas que brigam ou previne a violência
contra as mulheres. Em segundo lugar, sabemos que a
raiz da causa social dos excessos, que constitui uma
violação das regras da vida na sociedade, é a exploração
das massas, sua carência e pobreza. Com a eliminação
desta causa principal, os excessos inevitavelmente
começarão a "morrer". Não sabemos quão rápido e em
que progressão, mas sabemos que eles vão morrer. Com
o seu desaparecimento, o Estado também morrerá.
______________________________________________
A Revolução Traída
O que é e para onde vai a URSS?
Leon Trotsky
O regime de transição
[...] O marxismo parte do desenvolvimento da técnica
como a principal fonte de progresso, e constrói o
programa comunista sobre a dinâmica das forças
produtivas. Se assumirmos que alguma catástrofe
cósmica deve destruir nosso planeta num futuro próximo,
seremos forçados a rejeitar a perspectiva comunista,
como a muitas outras coisas. Exceto por esse perigo ainda
problemático, não há a menor base científica para
delimitar previamente qualquer limite ao avanço das
nossas possibilidades técnicas, industriais e culturais. O
marxismo está profundamente imbuído pelo otimismo
do progresso, e isso é suficiente, a propósito, para opô-lo
irredutivelmente à religião.
O pré-requisito material do comunismo deve consistir em
um desenvolvimento tão grande da potência econômica
humana que o trabalho produtivo, deixando de ser uma
carga e um incômodo, não irá requerer nenhum coação,
e a distribuição dos bens de consumo, existindo em
contínua abundância, não exigirá - como não existe numa
família rica ou pensão “decente” - nenhum controle
exceto aquele da educação, do hábito e da opinião
pública. Falando francamente, eu acho que seria
realmente estúpido considerar uma perspectiva tão
modesta como “utópica”.
O capitalismo preparou as condições e forças da
revolução social: técnica, ciência e o proletariado. A
sociedade comunista, no entanto, não pode suceder
imediatamente à sociedade burguesa. A patrimônio
material e cultural do passado é completamente
insuficiente para isso. Nos seus primeiros passos o Estado
Operário não pode ainda permitir que ninguém trabalhe
“de acordo com as suas capacidades” – isto é, tanto
quanto ele pode e deseja – nem pode recompensar a
todos “de acordo com as suas necessidades”,
independentemente do trabalho que tenha feito. Para
aumentar as forças produtivas, obriga a recorrer das
normas costumeiras de pagamento em salário – isto é, a
distribuição dos bens de consumo segundo à quantidade
e qualidade do trabalho individual.
Marx chamou esse primeiro estágio da nova sociedade de
“estágio inferior do comunismo”, em distinção do estágio
superior, quando, juntamente com os últimos fantasmas
da necessidade, a desigualdade material desaparece.
Nesse sentido socialismo e comunismo são
frequentemente contrastados como os estágios inferior e
superior da nova sociedade. “Nós não temos ainda,
obviamente, o comunismo completo”, diz a doutrina
soviética oficial hoje, “mas nós já atingimos o socialismo
– isto é, o estágio inferior do comunismo”.
Para provar isso, eles citam a predominância de
monopólios estatais na indústria, as fazendas coletivas na
agricultura, as empresas estatais e cooperativas no
comércio. À primeira vista isso dá uma correspondência
completa com o esquema a priori – e consequentemente
hipotético – de Marx. Mas é exatamente do ponto de
vista do marxismo, que essa questão não se esgota na
consideração de formas de propriedade,
independentemente da produtividade alcançada. Marx
entendia, por “estágio inferior do comunismo” o de uma
sociedade cujo desenvolvimento econômico seria, desde
o seu início, superior ao capitalismo mais avançado.
Teoricamente, tal afirmação é impecável, porque o
comunismo, considerado em escala mundial, constitui,
mesmo no seu estágio inicial, um nível superior de
desenvolvimento que o da sociedade burguesa. Além
disso, Marx esperava que o francês começasse a
revolução social, o alemão continuasse, o inglês a
6
terminasse; e quanto ao russo, Marx o deixou longe na
retaguarda. Mas essa ordem conceitual foi perturbada
pelos fatos. Tentar aplicar, mecanicamente, a concepção
histórica universal de Marx ao caso particular da URSS, no
atual estágio do seu desenvolvimento, é cair
imediatamente em um emaranhado de contradições
insolúveis.
A Rússia não era o elo mais forte, senão o mais fraco da
corrente capitalista. A atual URSS não está acima do nível
econômico mundial, mas está somente tentando alcançar
os países capitalistas. Se Marx chamou a sociedade a ser
formada, sobre a base da socialização das forças
produtivas dos países capitalistas mais avançados da
época, de “o estágio inferior do comunismo”, então essa
designação obviamente não se aplica à URSS, que ainda
hoje é consideravelmente mais pobre em tecnologia,
cultura e bens de consumo que os países capitalistas.
Seria mais exato, portanto, chamar o atual regime
soviético, com todas as suas contradições, não de regime
socialista, mas de um regime transitório entre o
capitalismo e o socialismo, ou preparatório para o
socialismo. [...]
Programa e realidade
[...]Essa mesma visão ousada do Estado numa ditadura do
proletariado [de Lenin em O Estado...] encontrou um ano
e meio depois da conquista do poder, a sua expressão
mais acabada no programa do Partido Bolchevique,
incluindo a seção sobre o exército. Um Estado forte, mas
sem mandarins; força armada, mas sem samurais! Não
foram as tarefas de defesa que criaram uma burocracia
militar e civil, mas a estrutura de classes da sociedade,
que é transferida para a organização de defesa. O
exército é somente um fragmento das relações sociais. A
luta contra os perigos externos necessita, naturalmente,
no Estado Operário, uma organização técnico-militar
especializada, mas em nenhum caso uma casta de oficiais
privilegiada. O programa do partido demandava a troca
do exército permanente pelo povo armado.
O regime da ditadura do proletariado desde o seu início,
então, deixa de ser um “Estado” no sentido antigo do
termo – uma máquina especial para submeter a maioria
do povo. O poder material, junto com as armas, vai direta
e imediatamente para as mãos das organizações dos
trabalhadores como os sovietes. O Estado, como um
aparato burocrático, passa a desaparecer a partir do
primeiro dia da ditadura do proletariado. Essa é a voz do
programa do partido que não foi revogado até hoje. Coisa
estranha: soa como uma voz além-túmulo vinda de um
mausoléu...
Seja qual for a interpretação da natureza do atual Estado
soviético, uma coisa é indiscutível: ao fim dos seus vinte
anos de existência, esse Estado não somente não morreu,
como não começou a “morrer”. Pior, tornou-se um
aparelho de coerção sem precedentes na História. A
burocracia não somente não desapareceu, cedendo seu
lugar às massas, mas se tornou numa força incontrolável
que domina as massas. O exército não só não foi
substituído por um povo armado, mas deu origem a uma
casta de oficiais privilegiados, coroado com os marechais,
enquanto o povo, "os portadores armados da ditadura",
hoje é proibido na União Soviética de carregar mesmo
armas brancas. [...]
O caráter dual do Estado Operário
A ditadura do proletariado é somente uma ponte entre a
sociedade burguesa e socialista. Na sua essência,
portanto, tem um caráter temporário. O Estado que
executa a ditadura tem a tarefa derivada, mas
absolutamente essencial, de preparar sua própria
abolição. O grau de realização dessa tarefa “lateral” é, de
certo modo, uma medida do sucesso no cumprimento
dessa missão fundamental: a construção de uma
sociedade sem classes e sem contradições materiais. A
burocracia e a harmonia social são inversamente
proporcionais. Em sua famosa polêmica contra Duhring,
Engels escreveu:
Quando, junto com a dominação de classe e a luta pela
existência individual criada pela atual anarquia na
produção, desaparecem os conflitos e os excessos que
resultam dessa luta, a partir daí não haverá nada para
reprimir, e não haverá necessidade de um
instrumento especial de repressão, o Estado.
O filisteu considera o policial uma instituição eterna. Na
realidade, o policial irá dominar a espécie humana
somente enquanto essa não dominar suficientemente a
natureza. Para que o Estado desapareça, a “dominação
de classe e a luta pela existência individual” devem
desaparecer. Engels junta essas duas concepções e
conclui que, na perspectiva da sucessão de regimes
sociais, umas poucas décadas não contam muito. Mas as
coisas aparecem de forma diferente para essas gerações
que suportam o peso de uma revolução. É fato que a
anarquia capitalista cria a luta de um contra todos, mas o
problema é que a socialização dos meios de produção não
remove automaticamente a “luta pela existência
individual”. Esse é o cerne da questão!
Um Estado socialista, mesmo na América, sobre a base do
mais avançado capitalismo, não poderia fornecer
imediatamente a todos o tanto que cada um necessita, e,
portanto, seria obrigado a estimular cada um a produzir
o máximo possível. O dever do estimulador nessas
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circunstâncias cabe naturalmente ao Estado, o qual, por
sua vez, não pode deixar de recorrer, com várias
mudanças e atenuações, ao método de pagamento do
trabalho desenvolvido pelo capitalismo. Foi nesse
sentindo que Marx escreveu em 1875:
O direito burguês... é inevitável na primeira fase da
sociedade comunista, à medida que surge, depois de
longas dores de parto da sociedade capitalista. O
direito nunca pode ser superior à estrutura econômica
e ao desenvolvimento cultural da sociedade
condicionada por essa estrutura.
Explicando essas linhas excepcionais, Lenin acrescenta:
O direito, em relação à distribuição dos produtos de
consumo pressupõe, naturalmente, um Estado
burguês, pois o direito não é nada sem um aparato
capaz de obrigar a observância de suas normas. Segue-
se (ainda estamos citando Lenin) que sob o
comunismo não só o direito burguês sobreviverá por
um certo tempo, mas também o Estado burguês sem
a burguesia!
Essa conclusão altamente significativa, completamente
ignorada pelos teóricos oficiais atuais, é crucial para
entender a natureza do Estado soviético – ou, mais
precisamente, para uma primeira aproximação de tal
compreensão. Desde que o Estado, que se impõe a tarefa
da transformação socialista da sociedade, é forçado, por
meio da coerção, a defender a desigualdade, ou seja, as
vantagens materiais da minoria, na medida em que ainda
permanece, em certa medida, um Estado “burguês”,
mesmo que sem uma burguesia. Essas palavras não
contêm nem elogio, nem censura; elas apenas chamam
as coisas pelos seus nomes.
As normas burguesas de distribuição, acelerando o
crescimento do poder material, devem servir aos fins
socialistas – mas somente em última análise. O Estado
assume diretamente e desde o começo um caráter dual:
socialista, porque protege a propriedade social dos meios
de produção; burguês, enquanto a distribuição dos bens
ocorre de acordo com os padrões capitalistas de valor,
com todas as consequências decorrentes desse fato. [...].
A fisionomia final do Estado Operário deve ser
determinada pelas relações dinâmicas entre as suas
tendências burguesa e socialista. A vitória deste último
deve significar a abolição irrevogável do policial, em
outras palavras, a dissolução do Estado numa sociedade
autogerida. Isso é suficiente, para ressaltar o
imensuravelmente significativo, tanto em si como quanto
sintoma, do problema do burocratismo soviético!
[...]. “Um Estado burguês sem uma burguesia” mostrou-
se inconsistente com a genuína democracia soviética. A
dupla função do estado não poderia deixar de afetar sua
estrutura. A experiência mostrou o que a teoria não
previu com clareza suficiente: se para a defesa da
propriedade socializada da contrarrevolução burguesa o
“Estado de trabalhadores armados” atinge plenamente
seu objetivo, a situação era bem diferente se a tarefa era
regular as desigualdades na esfera do consumo. Não
estão inclinados a criar vantagens e protegê-las aqueles
que estão privados delas. A maioria não vai preocupar-se
com os privilégios da minoria. Para a defesa do “direito
burguês”, o Estado operário é forçado a criar um órgão
do tipo “burguês” – isto é, o mesmo velho policial,
embora num novo uniforme.
Desse modo, demos o primeiro passo para compreender
a contradição básica entre o programa bolchevique e a
realidade soviética. Se o Estado não morre, mas cresce
mais e mais despoticamente, se os representantes da
classe trabalhadora viram burocratas, e a burocracia se
eleva acima da nova sociedade; não é por algumas razões
secundárias, como os sobrevivências psicológicas do
passado, etc., é em virtude da inflexível necessidade de
formar e manter uma minoria privilegiada, enquanto não
é possível garantir a verdadeira igualdade.
As tendências do burocratismo, que sufocam o
movimento dos trabalhadores nos países capitalistas,
deverão ser sentidas em toda parte mesmo depois de
uma revolução proletária. Porém é perfeitamente óbvio
que o quanto mais pobre é a sociedade que emergiu da
revolução, mais severa e mais claramente está “lei”
deverá se manifestar; formas especialmente brutais de
devem ser assumidas pela burocracia; e mais perigosas
serão para o desenvolvimento socialista. O Estado
soviético é impedido não apenas de morrer, mas até de
libertar-se do parasita burocrático, não pelas
"sobrevivências" das antigas classes dominantes, como
declara a doutrina puramente policial de Stálin, pois essas
sobrevivências são impotentes em si mesmas. Esse
Estado está impedido por fatores infinitamente mais
poderosos, como a pobreza material, falta de cultura
geral e a dominação do "direito burguês" – a qual mais
imediata e agudamente toca cada ser humano, o objetivo
de assegurar a sua existência pessoal.
A polícia e “necessidade socializada”
Dois anos antes do Manifesto Comunista, o jovem Marx
escrevia:
o desenvolvimento das forças produtivas é
praticamente a primeira condição absolutamente
necessária (do comunismo) ainda pela razão que, sem
ela, se socializaria a indigência faria recomeçar a luta
pelo necessário e, em consequência, faria ressuscitar
a velha desordem.
Marx nunca desenvolveu essa ideia diretamente, e não
por razões acidentais: ele nunca previu uma revolução
proletária num país atrasado. Lenin também não se
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alongou nisso, e isso também não foi por acaso. Ele nunca
previu um isolamento tão prolongado do Estado
soviético. No entanto, a citação, meramente uma
construção abstrata de Marx, de um argumento por
oposição, oferece-nos uma chave teórica indispensável
para o conjunto das dificuldades e enfermidades
concretas do regime soviético. Na base histórica da
miséria, agravada pela destruição das guerras
imperialista e civil, a “luta pela existência individual” não
somente não desapareceu no dia em que a burguesia foi
derrotada, e não somente não diminuiu nos anos
seguintes, mas, ao contrário, por vezes assumiu um
agravamento sem precedentes. Será necessário
relembrar que atos de canibalismo ocorreram duas vezes
em certas regiões do país?
A distância entre a Rússia czarista e o Ocidente pode ser
realmente apreciada só agora. Seriam necessários vários
planos quinquenais para a URSS, nas condições mais
favoráveis – isto é, na ausência de convulsões internas e
de catástrofes externas – pudesse assimilar
completamente essas conquistas econômicas e
educacionais sobre as quais as primeiras nações da
civilização capitalista gastaram séculos. A aplicação dos
métodos socialistas para a resolução de problemas pré-
socialistas – esta é agora a essência da tarefa
fundamental no terreno econômico e cultural na URSS.
[...] Baseando-se completamente sobre a teoria marxista
da ditadura do proletariado, Lenin não pôde, como
dissemos, nem na sua obra principal dedicada à questão
O Estado e a Revolução, nem no programa do partido,
fazer, no que diz respeito ao caráter do Estado, todas as
deduções necessárias dado atraso econômico e o
isolamento do país. Explicando o renascimento do
burocratismo pela inexperiência administrativa das
massas e pelas dificuldades especiais resultantes da
guerra, o programa prescrevia meramente medidas
políticas para superar as “deformações burocráticas”:
eleições e revogação a qualquer momento para todos os
mandatários, abolição dos privilégios materiais, controle
ativo pelas massas etc. Pensava-se que, por essa via, a
burocracia estatal deixaria de ser chefe, para se tornar
num simples agente técnico temporário, e o Estado iria
gradualmente e imperceptivelmente desaparecer de
cena.
Essa manifesta subestimação das dificuldades futuras é
explicada pelo fato de que o programa era baseado,
inteiramente e sem reservas, numa perspectiva
internacional.
A Revolução de Outubro realizou na Rússia a ditadura
do proletariado. Abriu-se a era da revolução
comunista proletária mundial.
Essas são as primeiras linhas do programa. Seus autores
não tinham por fim construir “o socialismo num só país”
– essa ideia não vinha então na cabeça de ninguém à
época, muito menos na de Stalin – e não se preocupavam
em saber qual caráter que o Estado soviético iria assumir,
se forçado, ao longo de duas décadas, resolver sozinho os
problemas culturais e econômicos que o capitalismo
avançado tinha resolvido há tanto tempo.
A crise revolucionária do pós-guerra não levou,
entretanto, à vitória do socialismo na Europa: a
socialdemocracia salvou a burguesia. Aquele período,
que pareceu Lenin e aos seus companheiros de armas
como uma curta “trégua”, se estendeu por toda uma
época histórica. A estrutura social contraditória da URSS,
e o caráter ultra burocrático do Estado soviético, são
consequências diretas dessa singular e “imprevista”
dificuldade história, que conduziu, ao mesmo tempo, os
países capitalistas o fascismo ou à reação pré-fascista.
Se a primeira tentativa de criar um Estado livre de
burocratismo revelou-se infrutífera, em primeiro lugar,
pela estranheza das massas com a autoadministração, a
falta de trabalhadores qualificados dedicados ao
socialismo etc., ela bem cedo, após essas primeiras
dificuldades, encontrou outras mais profundas. A
redução do Estado a funções de “recenseamento e
controle”, com uma contínua diminuição das funções de
coação, exigida pelo programa do partido, assumia pelo
menos uma condição de relativa bem-estar geral. Faltava
essa condição necessária. A ajuda do Ocidente não
chegava. O poder dos sovietes democráticos sentiu
dores, insuportáveis mesmo, quando a tarefa do dia era
alocar esses grupos privilegiados cuja existência era
necessária para a defesa, indústria, técnica e ciência. Uma
casta poderosa de especialistas na distribuição
cristalizou-se e desenvolveu-se nessa operação, nada
“socialista”, que consistia em tirar de dez pessoas para
dar a uma.
Bibliografia básica
Ernest Mandel
Teoria Marxista do Estado. Nahuel Moreno
Revoluções do Século XX
John Reed
Os sovietes em ação. Trotsky
A Revolução Traída
Lênin Em defesa do marxismo
O Estado e a Revolução
A revolução proletária e o renegado
Kautsky
Marx e Engels
Origem da Família, da Propriedade
Privada e do Estado
Formação Econômicas Pré-capitalistas
Manifesto do Partido Comunista
Lutas de Classe na França
O 18 Brumário de Luís Bonaparte
Guerra Civil na França