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SARCASMO EM GREGÓRIO DE MATTOS E GUERRA

Jerusa Helena Furtado Rodrigues*


Dionísio Pedro da Silveira**

RESUMO
Considerando a importância de Gregório de Mattos, este trabalho teve como objetivo
analisar o sarcasmo em seus poemas satíricos. Esta atividade descreveu a técnica, a
riqueza verbal, a imaginação e a independência que marcaram, com força, a sátira do
autor baiano. Encontra-se, no conjunto da obra de Gregório de Mattos, um retrato
claro e escuro, numa antítese tipicamente barroca. A obra desse autor esteve
totalmente esquecida ao longo do século XVIII. Há poucas décadas, tornou-se
plenamente conhecida com a organização de poemas feita por James Amado, em
1968. E esse tema torna-se atual na medida em que o panorama político-social do
país ganha novos personagens e novos contextos históricos. As obras de João Adolfo
Hansen e Haroldo de Campos tornaram este estudo mais elaborado, permitindo
maior compreensão e enriquecendo a qualidade desta pesquisa bibliográfica.

PALAVRAS-CHAVE: Barroco, sarcasmo, poemas,Gregório de Mattos.

ABSTRACT

Considering Gregório de Mattos´s importance, this work had the objective to analyse
the sarcasm in his satirics poems. This activity described the technic, the verbal
riches, the imagination and the independence that strongly determined , the native
from Bahia author´s satire. We can find in the whole Gregório de Mattos´s work, a
white and obscure portrait, of the typically baroque antithesis. This author´s activity
has been totally forgotten along the XVIII century. A few decades ago it, turned fully
well-known by the organization of the poems done by James Amado, in 1968. And
this issue becomes present in the dimension that the social political environment in
the country to acquire new characters and new historicals contexts. João Adolfo
Hansen´s and Haroldo de Campos´s activities turned this study more elaborated,
allowing higher compreension and enriching the quality of the search.

KEY-WORDS: Baroque, sarcasm, poems,Gregório de Mattos.

1 INTRODUÇÃO
Gregório de Mattos foi o nosso primeiro grande malandro e o maior poeta do
Barroco brasileiro. Além de criticar toda a sociedade da época, políticos e religiosos,
o poeta baiano manejou um vocabulário acessível e popular.
Convivem em seus poemas o mais desenfreado sensualismo e erotismo com a
paixão idealizada, a mais furiosa má vontade e um indisfarçável racismo.
Este trabalho teve como objetivo estudar a importância deste autor, dando
enfoque ao sarcasmo e à irreverência que ele usou para ridicularizar muitas pessoas
da época.
O conjunto da obra satírica atribuída a Gregório de Mattos delineia o
horizonte a partir do qual vão se desenvolver recursos e alternativas para um futuro
projeto literário brasileiro. A confluência entre a forma ambígua e descontraída de
sua sátira e determinados procedimentos estéticos, implicados na emergência de um
sistema intelectual brasileiro, justifica, sem dúvida, a atualidade desta tarefa.
E justamente pela amplitude do raio de influências que forjou e pelo caráter
contraditório de sua mística, que a figura de Gregório de Mattos e Guerra pode ser
tomada como o pioneiro perfil, tenso e dividido do intelectual brasileiro. Baiano,
filho da aristocracia latifundiária, formado em Direito por Coimbra, começa, no nível
da própria peripécia individual, a confirmar a histórica esquizofrenia do letrado
brasileiro: visceralmente filho da terra, culturalmente seduzido pela metrópole, mãe e
estrangeira. Sua obra como via de mão dupla reitera o ambivalente convívio entre a
formação cosmopolita e a circunstância brasileira.
Assim, a estruturação dramática e contraditória da forma humorística,
historicamente voltada para a problematização do contrastante e do dúbio na
convivência humana, vai ajustar-se, sobremaneira, à captação crítica de uma fala
cultural brasileira. E isto porque, cravada num torvelinho de múltiplas influências, a
sociedade local foi-se estruturando pela mescla, no convívio dissonante entre a
tradição do colonizador, os costumes do seu escravo e o perfil díspar e estranhado do
índio, o dono da terra.
A sátira, porque muito afinada ao caráter lúdico, à inclinação popular e ao
empenho problematizador característicos da crise do homem pós-renascentista, vai
assumir, na obra de Gregório, o comando de sua vertente barroca.
Em contrapartida, a literatura “séria”, supervalorizada pela tradição cultural, a
comédia, muitas vezes, fica relegada a segundo plano. Isto pode estar ligado ao fato
de a Poética de Aristóteles ter chegado incompleta aos nossos dias. A parte que
restou trata mais especificamente da tragédia. Acredita-se que a parte do que se
perdeu seria da comédia. As formas cômicas, porque mais permeáveis às influências
das festas e dos ritos populares, vão apresentar uma visão de mundo mais
relativizada e saudavelmente transgressora diante dos padrões de comportamento
consagrada pelo poder oficial.
Sendo assim, toda esta reflexão sobre sátira e humor teve como objetivo
mostrar a importância de Gregório de Mattos e Guerra, enfocando a irreverência e o
sarcasmo que foi usado por ele, para ridicularizar, criticar e denunciar as pessoas de
sua época. Para tanto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, prioritariamente da
biografia, com sustentação teórica básica da psicologia e fundamentos da história
brasileira. Foram feitas revisões e comparações, selecionando-se alguns dados.
Alguns autores contribuíram de forma gratificante para a realização deste trabalho,
dois dos quais com mais conteúdo, como: Haroldo de Campos e João Adolfo
Hansen. Esta pesquisa tornou-se relevante no meio acadêmico, uma vez que a
fortuna crítica acerca de Gregório é escassa e se limita aos grandes centros
universitários, limitando o acesso dos que desejam conhecer melhor este grande
expoente do barroco brasileiro.

SÁTIRA – COMÉDIA - HUMOR

A sátira age sobretudo pela deformação caricatural daquilo que se pretende


atacar ou desmoralizar, mas comporta matizes diversos e não é necessariamente
destrutiva. Contém, com freqüência, uma intenção reformadora, porque o conceito de
sátira está ligado ao sentimento de indignação e à vontade de moralizar os costumes.
Como elemento motivador da sátira, distingue-se o senso do ridículo, que é a
percepção do lado cômico de personagens, situações e idéias.
Sátira é a composição literária que visa a ridicularizar ou censurar com humor
atitudes consideradas viciosas. Na origem, foi um gênero literário fixo, determinado
pela estrutura em versos. Estabeleceu-se desse modo na literatura latina, com ampla
repercussão nos classicismos que vigoraram na Europa entre o Renascimento e o
século XVIII. A partir do Romantismo, a sátira desvinculou-se para sempre da
tradição romana que lhe atribuía forma específica. Desde então, obras diversas do
ponto de vista formal podem ser satíricas. Nesse sentido, a sátira passou a ser
sobretudo uma atitude de combate assumida por escritores.
Do nascimento ao apogeu, em Roma, como invectiva e ataque pessoal, a sátira
já está em essência nos epigramas de poetas gregos como Arquíloco, Simônides e
Hipônax. Mas só com as comédias de Aristófanes, em que a percepção do ridículo se
tornou mais profunda, os objetivos da sátira enquanto crítica de costumes se
tornaram mais evidentes. Não obstante o espírito satírico ter nascido na Grécia, o
gênero sátira é de invenção romana.
Os sátiros são criaturas cujo corpo era parte humana e parte animal,que
aparecem na mitologia de inúmeras culturas. Entre elas estão os sátiros e silenos da
mitologia grega, e os faunos, seus correspondentes entre os romanos.
Sátiros, na mitologia grega, eram divindades dos bosques, montanhas e regiões
agrestes, representados como homens-bodes ou homens-cavalos. Tinham uma longa
cauda e o pênis em permanente ereção. Perseguiam as ninfas e as mênades, movidos
por desejo sexual insaciável. No período clássico, estavam intimamente associados
ao culto a Dionísio. Sileno – filho do deus Pã na versão mais freqüente, além de pai
dos sátiros e educador de Dionísio – era representado como um velho grotesco e
sempre bêbado, porém sábio. Com o tempo, o termo sileno passou a designar os
sátiros velhos. Personificações da vitalidade animal, os satíricos se distinguiam pela
impulsividade, a luxúria e o amor à dança e ao vinho. Tais características
determinaram a denominação científica de satiríase para a compulsão sexual
masculina.
A arte grega imortalizou os sátiros como participantes dos cortejos de
Dionísio, nos quais dançavam e tocavam flautas ou se entregavam à perseguição de
ninfas. A partir do século IV a.C., o escultor Praxíteles criou um novo modelo de
sátiro, jovem e esbelto, que conservava apenas vagos traços animais. Nos festivais
atenienses dedicados a Dionísio, três tragédias eram seguidas de uma peça dita
“satírica”, em que os integrantes do coro se disfarçavam de sátiros. Os pintores
renascentistas e barrocos pintaram inúmeros sátiros e faunos.
O sentimento cômico do mundo, ao conceber a existência enquanto
permanente metamorfose, mudança em processo, abandona as excludentes certezas
da sociedade institucional e elege a dispersão de limites como determinativa
possível. Daí a mistura, a efusiva conciliação entre vida/morte, princípio/fim,
sagrado/profano, sublime/grotesco. Daí a recusa à visão absolutista e excludente do
mundo, como conjunto hierárquico de seres e valores resolvidos, inerente ao centro
oficial do poder. Por isso, a tradição subversiva do discurso humorístico por vias
oblíquas e, muitas vezes, pouco dissimuladas, de um lado convive com a fala
institucional, e de outro, engendra sua própria contestação, pelo burlesco arremedo
da impostura consagrada.
Procurando apontar, primeiramente, os traços característicos do cômico,
atenhamo-nos ao trabalho de BERGSON (1980), que o entende como uma
prerrogativa do homem, já que decorrente de uma operação intelectual, que exige
uma insensibilidade total do mesmo e uma cumplicidade entre receptor e emissor.
O pioneiro traço significa que o homem é o único animal que ri e que faz rir,
idéia já defendida por TCHRNICHEVSKI, (apud BERGSON,(1980)), que assim a
expressará: “Na natureza inorgânica e vegetal não há lugar para o cômico”. Isto
significa que, quando rimos de algum animal ou de algum objeto, é porque
estabelecemos alguma semelhança entre eles e nós mesmos, semelhança essa de
caráter físico, comportamental ou gestual. Não é à toa, pois, que as empresas
circenses procuram garantir maior público (e conseqüentemente maior sucesso
financeiro), explorando animais, transvestindo-os de humanos em aparências e atos,
e obtendo, com isso, o riso da platéia.
Estudos como o de BERGSON, que se ancoraram na teoria da comunicação,
deixam claro que a produção humorística satírica exige cumplicidade do receptor
com o emissor, num sinal tácito do acordo que nasce dentro de um sistema de inter-
relação sócio-cultural. Esse acordo costuma assumir um caráter intragrupal,
conforme nos ilustram situações em que um determinado grupo (social, profissional,
etário, etc.), costuma rir do que lhe foge à regra, como forma de rejeição.
Sintetizando, segundo BERGSON (1980), “O cômico surgirá quando homens
reunidos em um grupo dirigirem sua atenção a um deles, calando a sensibilidade e
exercendo tão só a inteligência”.
Tido como um dos primeiros a desenvolver estudos nessa área, FREUD (1905)
faz uma leitura psicológica do processo de “redução de chistes”. Segundo ele, certas
expressões cruas, ou quase cruas, de tendências agressivas ou obscenas são
peculiarmente aptas a restrições ou repressões. Descobrindo que pode brincar com as
palavras e valendo-se de certa dose de inteligência e senso de oportunidade, o ser
humano se vê licenciado para manifestar, de forma mais ou menos camuflada, os
maiores absurdos, vencendo assim as amarras sociais que o reprimem.
Pelo que se pode perceber, para esse autor, o sarcasmo compreende uma tarefa
de buscar, em um discurso a princípio dúbio, o reconhecimento do familiar, do
participado, ou seja, do que é passível de proporcionar uma sensação de conforto e
prazer.
Por isso mesmo, costuma-se afirmar que o efeito da sátira é provocar o riso
pelo riso, idéia essa aqui questionável, uma vez que raríssimas vezes isto se observa.
Seria até mesmo difícil conceber a sátira exclusivamente com esse fim, já que nos
acostumamos a vê-la empregada como arma de sarcasmo, de crítica, de denúncia
contra hábitos, costumes, personalidades e instituições.
Outro resultado apontado na literatura é de natureza psicológica. O ato satírico
é visto como provocador de catarse, ou seja, como um liberador de algum sentimento
interior reprimido. Analisando-o à luz de sua teoria psicanalítica, FREUD (1977)
mostra que o humor não é mera resignação, mas uma vitória do princípio do prazer.
A sua tese, nesse sentido, pode ser assim sintetizada: forçado a submeter suas
tendências de prazer às exigências da realidade, o ego volta as costas a esta e usufrui,
sem culpa e sem inibições, de uma experiência narcisista. Essa vitória dá ao ego
aparentemente invulnerável, uma sensação de força, que acaba suscitando o riso ou
simples sorriso.
Também para PEREIRA, apud SPINA (1968), a sátira é uma das formas de
“realização catártica de nossa existência limitada”, que serve para liberar uma série
de anseios, através da sensação de agrado. Essa liberação, no caso, é feita através de
algo não sério, que, no dizer de POSSENTI, apud CAMPOS (2000), “serve de
veículo de um discurso proibido, subterrâneo, não oficial”.
Contudo, é bom lembrar que há momentos em que esse tipo de liberação sofre
restrições, como ocorre, por exemplo, com o sarcasmo de cunho pornográfico. Uma
evidência disto é que as piadas voltadas para temas sexuais costumam se restringir a
determinados ambientes e ouvintes.
Outra função da sátira, apontada pelos mais diversos autores, é a arma de
denúncia, de crítica a valores e comportamentos prescritos pela sociedade, que se
busca derrubar, no intuito do estabelecimento de uma nova ordem. Melhor dizendo, a
sátira põe a nu o ser humano, revelando-lhe os defeitos, às custas do riso. Vê-se,
pois, que se trata de um estratagema que pode ir além de uma simples crítica, quando
visa à correção de nossos desvios, constituindo-se, portanto, num instrumento de
denúncia e de busca de transformação social.
Nesse quadro é a face positiva da sátira que costuma ser ressaltada pelos
estudiosos, que a consideram uma “desmontadora de falsos equilíbrios”, ou seja, uma
operação séria que desmascara, de um modo agradável, nossos defeitos individuais e
sociais.

Sátira em Gregório de Mattos

E é com o estilo satírico que desenvolveremos um estudo mais direcionado na


dicção de Gregório de Mattos. Uma particularidade do gênero satírico está em poder
aparecer tanto na poesia quanto na prosa. Supõe-se a sátira o enfraquecimento dos
laços sociais é o ocaso da moral; é uma maneira de instruir por demais violenta para
existir em tempos regulares. O conjunto da obra satírica atribuída a Gregório de
Mattos delineia o horizonte a partir do qual vão-se desenvolver recursos e
alternativas para um futuro projeto literário brasileiro. Esta maneira de pensar
influenciou Haroldo de Campos, pois – ao contrário de Antônio Cândido, que
acreditava não ter Gregório de Mattos nenhuma influência e nenhuma contribuição
para a formação do nosso sistema literário. Campos entende que Gregório de Mattos
foi o começo, o início do barroco brasileiro. Mesmo não existindo numa “perspectiva
histórica”, ele foi fonte dessa mesma história. É necessário um começo na literatura
de um povo. E a nossa não é um galho secundário da portuguesa.
Nessa aparente contradição entre presença poética e ausência histórica,
Campos faz de Gregório de Mattos uma espécie de demiurgo retrospectivo, abolido
do passado para melhor ativar o futuro. Assim também pensou PARENTE
CUNHA, apud SPINA (1968):

“Gregório de Mattos e Guerra oferece um dos mais intrigantes, senão os mais


apaixonantes da literatura brasileira, dos seus primórdios até nossos dias, fascínio
exercido pela individualidade artística, impetuosa e multifacetada, e pela figura
pessoal irreverente e desaforada. O primeiro escritor brasileiro verdadeiramente
autônomo selou o cenário artístico colonial graças à imprevisibilidade do talento e a
exorbitância do riso, ambos ilimitados”.

Gregório pretendia, através da sátira, manifestar explicitamente o


funcionamento do discurso do poder: uma cadeia de elos que circulam e que exercem
em rede sobre os indivíduos, mas passando também entre eles. A clássica
interpretação de que o poder é uma forma de opressão que exerce de fora é
desmentida por CAMPOS (2000).
Similarmente, OLIVEIRA (1963) diz:

“Ora, esse poeta foi um grande poeta, seja na poesia religiosa, seja na sátira de
costumes, seja mesmo nas composições mais declaradamente obscenas. Em qualquer
das categorias é um poeta desigual, com tantos outros grandes poetas; mas nos
momentos de inspiração compara-se com qualquer dos maiores”.

É justamente esta vocação ambígua que, ao inspirar o feitio da sátira de


Gregório, vai transformá-lo no modelo acabado de “libertino” diante do poder
colonial, no Brasil seiscentista.
Já no olhar de ROMERO, citado por SPINA (1968):

“Se alguém no Brasil pudesse conferir o título de fundador da nossa literatura, esse
deveria ser Gregório de Mattos e Guerra. Foi filho do país, teve mais talento
poético do que Anchieta, foi mais do povo, foi mais desabusado, mais mundano,
produziu mais e num sentido mais nacional”.

Esse poeta foi um poeta formador, adúltero, licencioso, é o delator puritano das
ligações perigosas. Contribuiu pioneiramente para que possamos pensar esse
paradigma, não dogmático, não verocêntrico.

ANÁLISE CRÍTICA DE ALGUNS POEMAS

Ao poeta barroco nada repugna mais que a inovação, sendo a sua invenção
antes uma arte combinatória de elementos coletivizados que, propriamente,
expressão individual “original”, representação naturalista do “contexto”, ruptura
estética com a tradição, etc.. Entre tais elementos, a obscenidade está prevista num
sistema de tópicos, articulando-se retórica e política nos poemas segundo temas e
recepção. Categorias como “malandragem”, “sodomia”, “plágio”, “imoralidade”,
“adultério”, “inveja”, “racismo”, “realismo”, “furto”, “repúdio”, “celibato”,
“libertinagem”, “promiscuidade”, todos esses temas foram abordados nos sonetos de
Gregório de Mattos e alguns sonetos abrangem mais de um tema. Por isso, tais
elementos serão apontados e analisados nos poemas que se seguem.
Análise Crítica – Soneto 1

Temas: Racismo, inveja, libertinagem, promiscuidade

A cada canto um grande conselheiro,


Que nos quer governar cabana e vinha,
Não sabem governar na sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um freqüentado olheiro,


Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para levar à Praça, e ao Terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,


Trazidos pelos pés os homens nobres,
Postas nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,


Todos os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia.
(DIAS, Ângela Maria. Gregório de Mattos, Sátira. 3 ed. Rio de Janeiro: Agir,
1988, p.10-16).

Torna a definir o poeta os maus modos de obrar na governança da Bahia,


principalmente naquela universal fome, que padecia a cidade.

Epílogos

Que falta nesta cidade? .................................Verdade


Que mais por sua desonra ............................ Honra
Falta mais que se lhe ponha ......................... Vergonha

O demo a viver se exponha,


Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.

Quem a pôs neste socrócio?......................... Negócio


Quem causa tal perdição? ........................... Ambição
E o maior desta loucura? ............................. Usura

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.

Quais são os teus doces objetos? ............... Pretos


Tem outros bens mais maciços? .................. Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos? .............. Mulatos

Dou ao demo os insensatos,


Dou ao demo a gente asnal,
Que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos

Quem faz os círios mesquinhos? .................. Meirinhos


Quem faz as farinhas tardas? ....................... Guardas
Quem as tem nos aposentos? ...................... Sargentos

Os círios lá vêm aos centos,


E a terra fica esfaimando,
Porque os vãos atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos.

E que justiça a resguarda? ............................ Bastarda


É grátis distribuída? ...................................... Vendida
Que tem, que a todos assusta? ..................... Injusta

Valha-nos Deus, o que custa,


O que El-Rei nos dá de graça,
Que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta

Que vai pela clerezia? ................................... Simonia


E pelos membros da Igreja? ......................... Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha? .................... Unha

Sazonada caramunha!
Enfim que na Santa Sé
O que se pratica é
Simonia, Inveja, Unha

E nos Frades há manqueiras? ...................... Freiras


Em que ocupam os serões? ......................... Sermões
Não se ocupam em disputas? ...................... Putas

Com palavras dissolutas


Me concluís na verdade,
Que as lidas todas de um Frade
São Freiras, Sermões e Putas.

O açúcar já se acabou? ................................ Baixou


E o dinheiro se extinguiu? ............................. Subiu
Logo já convalesceu? ................................... Morreu

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece
Cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu e Morreu.

A Câmara não acode? ................................. Não pode


Pois não tem todo o poder? .......................... Não quer
É que o governo a convence ......................... Não vence

Quem haverá que tal pense,


Que uma Câmara tão nobre
Por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence.
(DIAS, Ângela Maria. Gregório de Mattos, Sátira. 3 ed. Rio de Janeiro: Agir,
1988, p.10-16).

Neste poema, há uma crítica óbvia à promiscuidade, à incompetência e à


desonestidade. Por meio de falsas perguntas, para as quais o poeta oferece respostas,
Gregório vai decompondo o interior da organização social. Neste tema, o mundo
presente é insatisfatório, corroído pela inversão de valores. O honesto é pobre; o
ocioso triunfa; o incompetente manda. Essa atitude idealiza o passado, tido como
perfeito e harmônico, e recusa as contradições do presente. É uma perspectiva
conservadora. O racismo e a libertinagem são representados de maneira inversa; o
racismo pela ascenção do negro; e a libertinagem pelo declínio do clero. Na sátira de
Gregório, os termos “negros”, “mulata”, “puta” “mestiços” etc, aplicam-se também
como metáforas estereotipadas, como caracterização pejorativa e insulto.

Análise Crítica – Soneto 2

Temas: Furto, malandragem, realismo

Neste mundo é mais rico o que mais rapa:


Quem mais limpo se faz tem mais carepa:
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:


Quem tem mão de agarrar ligeiro trepa;
Quem menos falar pode mais increpa:
Quem dinheiro tiver pode ser Papa.

A flor baixa se inculca por Tulipa:


Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazo a tripa,


E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
(DIAS, Ângela Maria. Gregório de Mattos, Sátira. 3 ed. Rio de Janeiro: Agir,
1988, p.10-16).
Há neste soneto um caráter sentencioso e moralista. O poeta atenua o rigor da
condenação, por meio da construção de alguns versos que lembram sentenças
populares, por meio da variedade rítmica e por meio da construção de algumas
estrofes. O poeta brinca e, com essa atitude de despistamento, confere seriedade
àquilo que é ostensivamente disfarçado de lúdico.
Alegada a inversão, lugar-comum da Colônia – “para os bons sou inferno e
para os maus paraíso”, a fala da Bahia é recortada, ironicamente, como inversão de
inversão, fala retificada cuja articulação é, ainda, a hierarquia. Há agressividade nos
versos, condensa o intento moralizante.

Análise Crítica – Soneto 3

Tema: Racismo

Um calção de pindoba a meia zorra


Camisa de Urucu, mantéu de Arara,
Em lugar de cotó, arco e taquara,
Penacho de Guarás em vez de gorra.

Furado o beiço, e sem temor que morra,


O pai, que lho envazou cuma títara,
Senão a Mãe, que a pedra lhe aplicara,
A reprimir-lhe o sangue, que não corra.

Animal sem razão, bruto sem fé,


Sem mais Leis, que as do gosto, quando erra,
De Paiaiá virou-se em Abaeté.

Não sei onde acabou, ou em que guerra,


Só sei que, deste Adão de Massapé,
Procedem os fidalgos desta terra.
(DIAS, Ângela Maria. Gregório de Mattos, Sátira. 3 ed. Rio de Janeiro: Agir,
1988, p.10-16).
O indígena é satirizado: Gregório incorpora um vocabulário indígena numa
miscigenação idiomática. A sonoridade alcançada por meio desse recurso pode ser
vista como enriquecimento do barroco tipicamente europeu, uma espécie de
aclimatação da estética à realidade brasileira. Os índios eram vistos como infiéis,
idólatras e hereges. Ficavam numa baixa escala de padrões hierárquicos da época,
sendo retratados como irracionais e feios diante dos padrões ibéricos.
Há no soneto termos desconhecidos e arcaicos, típicos do linguajar do
português de Portugal. Já os termos indígenas apresentados têm origem tupi-guarani
e nas tribos de índios Abaetés. Os seus significados são: calção de pindoba (calção de
folhas ou tanga); mantéu de arara (capa de pateta); meia zorra (meio lenta, vagarosa);
cotó (pessoa ou animal com perna ou braço mutilado, animal com cauda cortada);
taquara (lasca de bambu); penacho de guarás (conjunto de penas de aves de
plumagem pardo-avermelhada, enfeite sobre a cabeça); Paiaiá (tribo de índios);
Abaeté (tribo de índios do Norte do Brasil); Massapé (terra argilosa, geralmente
preta, excelente para o cultivo da cana-de-açúcar)

Discussão e Crítica – Soneto 4

Tema: racismo, paródia

Sete anos a nobreza da Bahia


Serviu a uma Pastora Indiana, e bela,
Porém serviu a Índia, e não a ela,
Que à Índia só por prêmio pretendia.

Mil dias na esperança de um só dia


Passava contentando-se com vê-la:
Mas Fr. Tomás usando de cautela,
Deu-lhe o vilão, quitou-lhe a fidalguia.

Vendo o Brasil, que por tão sujos modos


Se lhe usurpara a sua Dona Elvira,
Quase a golpes de um maço, e de uma goiva:

Logo se arrependeram de amar todos,


E qualquer mais amara, se não fora
Para tão limpo amor tão suja Noiva.
(DIAS, Ângela Maria. Gregório de Mattos, Sátira. 3 ed. Rio de Janeiro: Agir,
1988, p.10-16).

Este soneto parodia um outro clássico de Camões: “Sete anos de pastor Jacó
servia...” Junto com o tom brincalhão, a paródia, ao mesmo tempo em que
dessacraliza o modelo, acaba revelando uma intenção subjacente de homenagem a
um texto já famoso. A tipificação da “pastora indiana” é intensificada, isto é, mais
divertida quando se observa a inadequação do gênero e do objeto nele tipificado
pejorativamente. Na sátira seiscentista, mulheres não-brancas são, por definição, uma
sub-humanidade. Por isso, o estilo para tratá-las como tema de poesia deve ser
cômico ou baixo. A referência à Pastora Indiana como “suja noiva”, evidencia uma
“limpeza e sangue”.

CONCLUSÃO

A sátira e o humor têm como objetivo principal provocar o riso. Também


servem para criticar os costumes e preconceitos de uma sociedade. Muitas vezes, a
crítica, feita a comportamentos explícitos ou encobertos, pode-se transformar em
uma denúncia a atos dissimulados que contrariam a ordem e as normas humanas ou
institucionalizadas.
Nesta pesquisa, concluiu-se que: mesmo havendo divergências entre a
existência e a importância de Gregório de Mattos, pode-se afirmar que a técnica, a
riqueza verbal, a imaginação marcaram com curiosidade e força o gênero satírico de
sua obra. Com isso, os rumos da literatura nacional mudaram. Do ponto de vista
formal, Gregório de Mattos utilizou em seus sonetos recursos clássicos como:
poemas de quatro estrofes (dois quartetos e dois tercetos); versos decassílabos e
rimas (abba, abba, cdc, dcd).
No que se refere à teoria de Haroldo de Campos, conclui-se que, assim como
tudo tem um início, o país também tem que ter um marco literário. O eu lírico de
Gregório de Mattos denunciou, criticou e descortinou a hipocrisia de uma sociedade
heterogênea.
Gregório de Mattos e Guerra caminhou por essa linha tênue, uma linha
invisível que, muitas vezes, provocou o riso, mas também fez descer lágrimas. Por
isso mesmo ele foi um homem amado e odiado. Numa antítese tipicamente barroca,
ele andou pelas trevas, mas também conheceu a luz. Assim, fica o mito eternizado de
“Gregório de Mattos e Guerra”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERGSON, HENRI. O riso. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, 397p.


CALMON, Pedro. A vida Espantosa de Gregório de Mattos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1983, p. 15-32.

CAMPOS, Haroldo. O seqüestro do barroco na formação da Literatura


Brasileira: O Caso de Gregório de Matos. Fundação Casa de Jorge Amado, 2
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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE LAVRAS – UNILAVRAS. Biblioteca. Manual


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* Graduada em Letras pelo Centro Universitário de Lavras - UNILAVRAS


** Docente do curso de Letras do Centro Universitário de Lavras - UNILAVRAS

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