WADE, Nicholas. Uma herança incômoda: genes, raça e história huma-
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H á livros que nascem polêmicos. Times. Hoje aposentado, Wade de-
Outros que, por conta do seu con- senvolve, sem sombra de dúvida, teúdo, criam polêmicas. Outros, uma carreira consistente na área de ainda, cuja razão de ser é apenas, e divulgação científica, sobretudo in- tão somente, gerar a polêmica. Ou teressado na veiculação de novas seja, na própria tessitura do tex- obras, teorias e seus intérpretes. to já se apresenta (ou encobre) sua Em questão não está, portanto, intenção maior: provocar o leitor e o percurso do autor do livro; mais assim fazer fumaça. A característica interessa entender o objeto maior desse tipo de obra segue, em geral, dessa obra em particular e dimensio- um mesmo padrão: por mais que se nar a repercussão que tem gerado. leia, é difícil entender a calibragem O autor dividiu a crítica. Muitos o e a seriedade da polêmica. chamaram de racista, a despeito dele Pois bem, me refiro ao novo li- abrir e fechar o livro dizendo que vro de Nicholas Wade, Uma heran- não é. Wade também foi aclamado ça incômoda. Wade é um jornalista pela direita, que viu na obra uma britânico dos mais conhecidos, espe- justificativa para políticas que vêm cializado na cobertura e divulgação hostilizando imigrantes e adulando científicas. Formado em Ciências pelo comportamentos xenófobos. Por es- King’s College, em Cambridge, Rei- sas e outras, acabou muito hostiliza- no Unido, por lá também terminou do pela academia; por sinal, e como VHX 0HVWUDGR 1D GpFDGD GH veremos, o alvo dileto de ataque do mudou-se para os Estados Unidos e jornalista. nesse país ele se voltou mais direta- E não é para menos: usando a mente para o jornalismo. Foi repór- famosa técnica do “bate e sopra”, ter e editor de revistas importantes, Wade usa de afirmações fortes, para como Nature e Science, e colabo- depois, e nos detalhes, diminuir os rou, de forma frequente, em jornais efeitos de suas próprias conclusões. de destaque, como o The New York A retórica também deve muito a esse
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gênero de livro (divulgação científi- uma ortodoxia política que, nas uni- ca), que inclui “teses gerais”, mas versidades de hoje, inclina-se muito evita, sempre, dar “nome aos bois”; à esquerda. isto é, deixar explícito a quem está se opondo. Termos como esses — “missão”, Mas vamos logo à tese central. “traição”, “ortodoxia”, “esquerda” Wade afirma que os intelectuais — — estão presentes não só nas pági- os cientistas humanos e em especial nas do jornal, como aparecem a todo os historiadores e antropólogos —, momento no livro. Sabemos que pa- por motivos meramente políticos, lavras não são ingênuas, até porque e temendo serem chamados de “ra- carregam consigo os usos da histó- cistas”, acabaram negando e camu- ria e certos significados políticos. O flando dados tão “científicos” como pressuposto do autor, porém, é que “objetivos.” o livro viria “redimir” e “iluminar” Já sabemos onde deu e tem dado o que nós, cientistas humanos, in- essa boutade, que supõe que existiria sistimos em “esconder.” Por isso o “racionalidade” apenas num tipo de estilo da obra é didático, com o jor- pensamento, e tão somente “subjeti- nalista se esforçando em “ajudar” o vidade e superficialidade” em outro. leitor a, finalmente, entender o que Muitas guerras e conflitos foram há por detrás desse grande conluio provocados e sustentados por esse universitário. tipo de falácia, que significa supor A ideia central está contida no que só há “certeza” no reino das ci- último trecho de Herança incômo- ências e das ciências que se escolhe. da, justamente chamado “Compre- Sabemos, porém, e a história está aí endendo a raça”. Vamos a ele: para provar, como os cientistas estão A ideia de que as populações hu- tão sujeitos aos ares nervosos de seu manas são geneticamente diferentes tempo como nós, cientistas sociais e uma das outras tem sido fortemente humanos. ignorada por acadêmicos e por cria- Em entrevista à Folha de São dores de políticas públicas por medo Paulo, por exemplo, mais exata- de que essa investigação possa pro- mente no dia 22 de setembro de mover o racismo. (p. 298) :DGHDILUPRX Senti que era meu dever contar ao Ou, ainda, nos últimos dois pa- público o que estava sendo desco- rágrafos: berto sobre a natureza das raças hu- A visão pressuposta de muitos acadê- manas — os fatos estavam todos lá, micos é que a evolução humana parou na literatura científica, mas coloca- no passado distante [...]. Normalmen- dos de uma forma oblíqua, por meio te se considera que o conhecimento é de uma série de eufemismos. Pare- uma base melhor para as políticas pú- cia que os cientistas estavam traindo blicas do que a ignorância.... (p. 301) o público e sendo subservientes a
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Como se vê, o autor comunga da debate sobre o tema. São muitos os noção de que apenas um complô da estudiosos que admitem, sim, a ideia academia permitiria gerar tal “obs- de que existiriam diferenças peque- curantismo”, o qual implica em não nas entre as raças, mas que elas não deixar perceber que raças são fenô- teriam grande poder explicativo. menos reais, bem como a evolução Existem outros, ainda, e me incluo humana. E ele está falando aqui de modestamente entre eles, que apos- genética. Trocando em miúdos, o tam na tese de que, mais importante jornalista acusa os cientistas huma- do que delimitar se raças existem ou nos de preferirem silenciar sobre não, trata-se de apontar como as so- a questão do que dizer a verdade e ciedades criam “raças sociais.” Ou assim informar corretamente à po- seja, a maneira como as sociedades pulação. reproduzem e trapaceiam com a na- Fico imaginando que, de um tureza, criando novos marcadores lado, Wade confere imenso poder sociais da diferença, como classe, à “academia” e aos cientistas hu- região, geração, gênero, sexo, e raça manos, uma vez que, por mais de também. Essas práticas, por sua vez, um século, eles teriam conseguido têm enorme papel na produção de lograr o tento de evitar que a “ver- racismos, discriminações e diferen- dade” viesse à tona. Se fico de al- ças que, de meramente acidentais, guma maneira “envaidecida” com tornam-se fundamentais. tal hipótese, que envolve dar a nós, Assim, menos do que apostar na historiadores, sociólogos e antropó- existência (ou não) de raças biológi- logos, um imenso poder, por outro, cas, o que preocupa — ainda mais nos me pergunto por que o jornalista não dias de hoje — é o uso político que se se preocupa em fazer um balanço e faz dela. Aliás, esse é outro perigo em mostrar, com detalhes, aonde reside que incorre essa obra em particular. esse verdadeiro ato de expropriação Ainda mais, como o objetivo do intelectual. A acusação é séria; por- livro é antes desqualificar, e não fa- tanto, o mínimo que se espera de um zer um balanço e lidar com as dife- “cientista” é sua comprovação. renças de opinião, ou até com os efei- O paradoxo é que não faltam tos (reais e racionais) que o debate obras sobre o assunto. Afinal, desde sobre raças criou em vários contextos finais do século XIX o tema foi am- históricos, Wade acha por bem citar plamente debatido nesses ambientes e atacar, basicamente, um antropólo- que Wade localiza como “a acade- go alemão, Franz Boas, radicado nos mia”, e está longe de representar um EUA entre finais do século XIX e iní- consenso. Se não temos espaço para cios do XX, e um etnólogo francês, refazer todos os caminhos dessa Claude Lévi-Strauss, e assim liqui- imensa produção, nem seria o caso dar o assunto. Os dois seriam quase nessa resenha, ninguém há de negar “exemplares” emblemáticos de um que existe imenso e consolidado comportamento mais disseminado.
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Ocorre que Boas, em primeiro Lévi-Strauss jamais afirmaria que a lugar, teve um papel monumental no cultura “é” algo. Ela só “está”, pois contexto em que defendeu suas teses se revela como um conceito sempre contra o evolucionismo e contra o “em relação” e, nesse sentido, “re- determinismo racial, teoria que fazia lativo.” Enfim, a tática de Wade pa- grande sucesso naquele momento. rece ser exatamente essa: de alguma Boas acompanhava, apreensivo, o maneira caricaturar autores e obras crescimento da intolerância de fun- clássicas, e assim seguir em frente do racial, tanto na Europa como nos com sua tese. Estados Unidos, e foi líder de uma Mais reveladora é a estrutura de escola antropológica — a escola cul- Herança incômoda. O livro é dividi- turalista — que defendeu uma pauta do em duas partes. A primeira versa revolucionária no seu tempo. Inver- sobre as diferenças genéticas mais tendo a equação evolucionista, que gerais entre as chamadas raças huma- supunha que “consequências gerais” nas, e não é muito controversa em seu eram resultado de “causas iguais” conteúdo. Penso que hoje em dia nin- — ou seja, povos que usavam más- guém se daria ao luxo de negar esse caras (a consequência) só poderiam tipo de tese, ou supor que diferenças corresponder ao mesmo estágio de genéticas são inócuas na nossa histó- evolução (selvageria, diriam os teó- ria familiar, por exemplo. A questão é ricos evolucionistas) —, ele deu um entender a proporção e a importância verdadeiro nó na teoria da época. delas, e aí é que mora o perigo. Mostrou que “efeitos iguais” pode- A segunda parte do livro é defi- riam decorrer de “causas” diferentes, nida, pelo próprio jornalista, como e que as culturas tinham a capacida- “uma conjectura” ou “um palpite de de criar e consolidar novas reali- bem informado.” O argumento cen- dades, e de maneira reflexiva. Quer tral é que existiria uma diferença dizer: produziam costumes, hábitos, sutil no comportamento social apre- imaginações, sociedades por sua ca- sentado nas várias regiões do mundo, pacidade metalinguística. O suposto em especial no que se refere ao ní- era que não apenas existiam culturas, vel de confiança entre os indivíduos. mas que o conceito era muito mais Ao longo da história, tal “diferença” do que decorrência imediata e fácil teria levado ao desenvolvimento de da biologia. Carregava sua própria civilizações com características em lógica e era essa lógica que ele queria tudo distintas. E dá-lhe comparação estudar e explorar. pretensamente isenta, quando men- Ataque também leviano recebeu o ciona as variações hoje perceptíveis etnólogo francês Claude Lévi-Strauss. entre, por exemplo, a “civilização Sem se referir a qualquer obra dele europeia” e a “civilização africana.” em específico, Wade o acusa de di- Tudo é explicado de forma su- fundir uma visão essencialista da postamente lógica — do tipo dois cultura. Ora, estruturalista que era, mais dois são quatro —, sem prestar
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atenção, por exemplo, e como mos- ta localiza como meros “ideólogos” tra Claude Lévi-Strauss em Raça e que só estão nessa vida para masca- história, qual seria o índice da com- rar as certezas da genética? Por que paração. Ora, comparamos tecnolo- valer-se de uma batalha que não se gias e não padrões de religiosidade. sustenta até o final, uma vez que ela Se os critérios fossem outros, os não passa, nos próprios termos do resultados seriam também distintos. jornalista, de mera “conjectura”? Mas o que Wade deixa mesmo Peço, assim, perdão aos leitores de lado é a própria história. Na ver- por conta do estilo mais informal dade, seria preciso entender o quan- dessa resenha. Ela segue, acreditem, to a assim chamada “civilização eu- o estilo de Wade. Também gostaria ropeia” foi culpada pelo que ocorreu de explicar a tímida inclusão de re- com a “civilização africana.” Vamos ferências bibliográficas. Elas pre- ao óbvio: na história moderna uma cisariam ser muitas, demasiadas, metrópole jamais foi colônia ou teve e, mais uma vez, me oriento pela um passado colonial, assim como condução do autor de Herança in- uma nação imperial nunca teve que cômoda —que acusa sem jamais sofrer o padrão de exploração vi- citar; permite-se omitir debates de gente nos seus domínios. Além do maneira aprofundada; e até mesmo mais, hoje sabemos que o que cria o se escusa de explicar o que teóricos desenvolvimento de poucas nações com os quais discorda efetivamente é exatamente o subdesenvolvimento escreveram ou defenderam. de muitas outras. Portanto, tomadas Debates em torno de conceitos, fora de contexto, as realidades po- interpretações variadas, modelos di- dem parecer mais autoevidentes do versos são sempre bem vindos. Sou que deveras o são. partidária do diálogo aberto e sempre Mais uma vez, o suposto é que julgo que diferença é mais, nunca na ciência tudo é límpido, nada menos. O que não vale é perpetuar borra os resultados; nem ao menos uma imagem de “certeza” onde en- a (danada da) realidade. Mas o que contramos o terreno da especulação. mais impressiona é como o próprio Pior ainda é, como diz o ditado, usar jornalista é o primeiro a reconhecer um canhão para matar um passari- como a “nossa base genética” é em nho. Se os genes pouco explicam, a tudo “plástica” e “flexível”, e como questão que resta é por que insistir os genes não determinam nosso em tamanha repercussão? comportamento; só “dão um ligeiro Como diria o historiador Sérgio empurrão numa direção ou outra”, Buarque de Holanda, nesse caso, me conclui ele (p. 123). E assim, se a parece “muito lastro para pouca vela.” questão é tão diminuta, por que abrir Lilia Moritz Schwarcz guerra contra aqueles que o jornalis- lili.schwarcz@gmail.com Universidade de São Paulo Princeton University