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2. A origem da Filosofia.

2.1. A ​paidéia ​dos gregos antigos e a tradição do ​mythos​:

Uma vez que a ​ideia ou o ​conceito geral de Filosofia nos é, agora, mais familiar, podemos
começar a considerar a Filosofia enquanto um episódio específico da ​história da cultura
ocidental. Podemos examinar em que circunstâncias ela surgiu entre os gregos – quais foram os
seus antecedentes intelectuais mais imediatos, os interesses que permitiram a sua eclosão.

A civilização grega travou por muitos anos contato com diversas civilizações avançadas do
mundo antigo, a exemplo dos egípcios, assírios, fenícios, mesopotâmios e babilônios, sofrendo
em diversas frentes – e.g., arte, religião, ciência etc. – influência das mesmas. No curso de sua
complexa história, no entanto, um elemento específico da vida coletiva assumiu grande
relevância para praticamente todos os diferentes povos e localidades da nação grega, tendo
marcado profundamente sua cultura por muitos séculos: trata-se da preocupação com a
educação​ (​paidéia​) dos cidadãos – i.e., dos habitantes da ​pólis​ ou cidade. 1​

Por muitos séculos, essa educação foi pautada exclusivamente na ​literatura mitológica​. Esta é,
por definição, a forma de literatura que nos permite contato com um tipo específico de estrutura
narrativa chamada ‘​mito​’. Por mito se entende uma narrativa culturalmente circunscrita,
diretamente vinculada à história, aos valores, às crenças religiosas e à identidade de um povo,
que nos instrui acerca do mundo em que habitamos em toda a sua complexidade. Os mitos
podem nos informar acerca de temas tão variados quanto: a natureza e suas forças; os tipos
humanos, seus valores, anseios e padrões de conduta; as sociedades e suas normas; as forças
sobrenaturais que definem o curso das coisas e da vida; os deuses e outras entidades não
terrenas; etc. 2​ A educação do cidadão grego, portanto, foi essencialmente baseada nessas
histórias e era por meio delas que ele aprendia acerca de todo tema que a ​pólis julgasse relevante
para a sua formação.

Dois são os exemplos mais célebres de autores gregos que contribuíram para a produção destas
peças literárias tão importantes para a educação grega: ​Homero (928 - 898 a.C.) e ​Hesíodo (750
- 650 a.C., estima-se).

2.2. Homero:

Homero é incontestavelmente um dos mais conhecidos escritores da


Grécia Antiga, recebendo a autoria de longos poemas épicos como a
Ilíada e a ​Odisseia​, que acabaram sendo parcialmente incorporados à
nossa cultura popular e com os quais temos, em geral, alguma
familiaridade, mesmo sem suspeitarmos disso. Curiosamente, a
própria existência histórica de Homero é colocada em questão por
muitos estudiosos da Antiguidade Clássica. É bastante defendida a
tese de que ele não teria sido um homem que efetivamente viveu
entre os gregos e que escreveu, entre outras, as obras acima citadas,
mas sim uma figura inventada por uma comunidade de poetas, que
decidiu criar um autor fictício ao qual atribuírem seus textos, no
intuito de deixá-los para a posteridade. Por forte que seja essa hipótese, ainda há discussões

1
Jaeger, 2013, p. 1 ff.
2
Weischedel, 2006, p. 11. Cf. também Rocha, 1991 e Almeida Jr., 2014, pp. 13-14 e 18-19.
entre os especialistas, e o problema geral da existência ou não de Homero é chamado por eles de
‘​questão homérica​’. Mais importante para nós, no entanto, é a obra a ele atribuída.​3

A ​Ilíada narra uma parte da batalha entre Micenas e Troia, duas cidades gregas relevantes que
entram em conflito quando Páris, filho de Príamo, rei de Troia, sequestra Helena, esposa de
Menelau, rei de Esparta, por ter se apaixonado por ela. Em retaliação, Agamemnon, irmão de
Menelau e rei de Micenas, entra em guerra contra Troia, valendo-se de um exército
particularmente forte por contar com a presença de Aquiles, um dos maiores guerreiros gregos
de então, filho da deusa Tétis e do mortal Peleu. 4​ Em meios leigos, a Guerra de Troia é
habitualmente lembrada por conta de episódios como o do ‘cavalo de Troia’, em que os
soldados de Micenas fingem uma trégua com os troianos e oferecem a eles de presente um
cavalo de madeira. Ao receberem o cavalo por seus portões, no entanto, os troianos descobrem
que se tratava de um subterfúgio e que a estrutura de madeira escondia diversos soldados
inimigos. Também conhecida é a expressão ‘calcanhar de Aquiles’, a qual faz alusão ao ponto
fraco do guerreiro, que era justamente o seu calcanhar. Por conhecidas que sejam, ambas as
referências não fazem parte da ​Ilíada​, consistindo apenas em outras narrativas sobre o episódio
geral da Guerra de Troia. Entre os tantos momentos desta guerra que a obra efetivamente narra,
no entanto, encontramos instruções sobre temas como ​ira​, ​virtude guerreira​, ​amizade​, ​soberba​,
intemperança​, ​egoísmo​, ​luxúria​, ​vingança​, ​respeito a tradições​, ​subordinação aos deuses​, ​entre
diversos outros.

A ​Odisseia,​ por sua vez, narra a longa viagem de Odisseu, um dos combatentes da Guerra de
Troia, em seu retorno à casa, na ilha de Ítaca, após o fim da guerra. Muitas das cenas e figuras
mitológicas da Odisseia recaíram também na cultura popular: o episódio em que Odisseu se
amarra à proa do navio em que viaja para não ceder ao canto das Sirenes, que levavam muitos
marinheiros à deriva; a figura do Ciclope, representada na obra por Polifemo; entre outras. Mais
do que a ​Ilíada,​ a ​Odisseia nos instrui sobre a ​geografia grega, sobre alguns de seus ​povoados e
costumes​, sobre ​criaturas monstruosas​ como as citadas etc.

Alguns exemplos podem tornar, no entanto, mais clara a relevância dessas narrativas para a
educação​. No Canto I da ​Ilíada,​ e.g., temos um acontecimento particularmente relevante.
Agamemnon, rei de Micenas, havia feito certas campanhas militares em tempos recentes, no
contexto da guerra, e havia saqueado um templo de Apolo conduzido pelo sacerdote Crises. No
que saqueou o templo, Agamemnon poupou a vida de Crises, mas tomou sua bela filha,
Criseida, como escrava. Pouco tempo depois, justo onde começa a narrativa do Canto I, Crises
visita Agamemnon para suplicar que este lhe devolva a filha, que era uma das poucas coisas que
lhe restava. A súplica, entre os gregos deste tempo, é um ​ritual​. Isto quer dizer: trata-se de um
gesto marcado por um sentido cultural muito bem circunscrito, em que um homem se põe de
joelhos perante outro e roga para que ele lhe conceda algum favor. Não se trata de algo banal.
Apenas homens são considerados cidadãos plenos para os gregos de então. O que se tem,
portanto, é o gesto em que um cidadão pleno se coloca perante o outro, admite a sua
superioridade circunstancial e pede por algo. Por força de tradição, o que o homem que recebe o
pedido ​tem de fazer é atender a ele. E Agamemnon não o faz. Movido ainda por seu interesse
pessoal, essencialmente erótico por Criseida, ele expulsa Crises de seu palácio e rompe com o
ritual da súplica. Desrespeita, portanto, frontalmente a tradição de seu povo.

As consequências disso são que Crises vai aos campos fora dos limites de Micenas e realiza
uma hecatombe – i.e., um ritual envolvendo sacrifícios – em honra a Apolo, pedindo por
vingança. Apolo desce do Olimpo munido de seu arco e flecha e ataca impiedosamente o povo
de Micenas. Ao entender o que estava ocorrendo, Agamemnon vê que não era possível fazer

3
Souza, 2000, pp. 7-8.
4
Jones, 2005, p. 7.
frente a um deus e decide devolver Criseida a Crises. Apenas assim os ataques de Apolo têm
fim.​5

É bastante fácil ver em que um episódio como esse pode instruir o cidadão grego: vemos um
líder administrativo de uma cidade desrespeitando uma importante tradição de sua cultura
apenas por interesse pessoal – por luxúria ou mera atração corpórea por alguém. Agamemnon
põe o seu desejo à frente dos ensinamentos de sua nação, à frente da sua própria função cívica e
política perante Micenas. Na sequência, vemos este mesmo líder restituindo a Crises sua filha
apenas quando ele vê que as consequências de seu desrespeito levaram mesmo à morte de
alguns cidadãos.

Outro episódio interessante da Ilíada está no Canto XXI, quando Aquiles experimenta aquilo
que os gregos chamavam ​aristea,​ i.e., um momento de profunda ira acompanhada por
excelência guerreira incomum. Este momento foi ocasionado pela perda de seu amigo Pátroclo,
que havia sido morto em combate por Heitor, filho de Príamo. Aquiles investe furiosamente
contra os troianos e começa a matar uma grande quantidade deles, jogando os cadáveres do
campo de batalha para o rio que o ladeava, o Rio Xanto. Para os gregos, no entanto, rios eram
semideuses. Quando o número de corpos é grande o suficiente para começar a atrapalhar o curso
de suas águas, o próprio Xanto interpela Aquiles e exige que ele pare de jogar corpos em sua
extensão. Aquiles não o ouve, no entanto, e segue em sua campanha contra os troianos. Após
jogar mais corpos sobre Xanto, este reage, lançando uma tromba d’água contra Aquiles,
puxando-o para si e começando a afogá-lo. Vendo-se impotente, incapaz de escapar e perto da
morte iminente, Aquiles blasfema contra os deuses por sua má sorte. Xanto o poupa, no entanto,
dando-lhe apenas uma lição. 6​

Mais uma vez, é claro o que o cidadão da ​pólis pode aprender aí: ele vê uma figura semidivina,
o próprio Aquiles, desrespeitando a exigência de outro semideus que diz respeito à sua própria
integridade. Vemos que Aquiles só acata a vontade de Xanto quando este o pune e não por
respeito espontâneo e verdadeiro. Vemos, por fim, que Aquiles tem um comportamento
radicalmente indevido perante os próprios deuses maiores ao se ver próximo à morte.

Diversos outros exemplos do valor pedagógico da obra homérica poderiam ser dados – muitos,
inclusive, mais positivos que estes acima privilegiados, que configuram, em verdade, exemplos
ao avesso – i.e., exemplos do que não se deve fazer. Mas, em vez de continuarmos a listar
exemplos no âmbito daquela obra, é mais importante passarmos adiante e considerarmos as
contribuições de Hesíodo.

2.3. Hesíodo:

Hesíodo é uma figura cuja existência histórica é assegurada. Não há


para ele discussões como as que há acerca de Homero. Hesíodo foi o
autor de poemas muito importantes, como a ​Teogonia e​ ​Os Trabalhos
e os Dias,​ dos quais apenas o primeiro têm certa acolhida em nossa
cultura popular e dispõem sobre assuntos com os quais podemos já ter
esbarrado em algum momento. A ​Teogonia é um poema sobre ​a
origem e as diferentes gerações dos deuses e figuras semidivinas da
cultura grega​. Nela vemos serem tematizadas as histórias acerca de
Urano devorando sua prole; da reação de Cronos contra o pai; da
criação dos Titãs; de Prometeu roubando o fogo divino; entre outras.
Os tantos deuses gregos que conhecemos – e.g., Urano, Cronos, Zeus,
Hera, Tétis, Palas Atenas etc. – estão todos presentes na narrativa, bem como o seu grau de
parentesco e relações particulares uns com os outros. ​Os Trabalhos e os Dias,​ por outro lado,

5
Homero, 2011a, p. 64 ff.
6
Homero, 2011a, p. 488 ff.
são essencialmente um poema sobre ​lealdade​, ​deslealdade​, ​disputa virtuosa​, ​competição imoral
e a ​discórdia​ entre homens.​7

São justamente vinculadas a essa última obra algumas das informações biográficas mais
relevantes que temos sobre Hesíodo: por ocasião da morte de seu pai e da partilha de bens com
o irmão, Hesíodo foi traído por este, que ficou com uma parcela maior do espólio do que seria
justo.​8 É por isso que Hesíodo escreve sobre dois modos fundamentais de ​Éris ou ​disputa​,
desacordo​, ​altercação entre homens: uma leal, em que as pessoas em contenda se medem
respeitosamente uma com a outra, sem subterfúgios ou estratagemas que prejudiquem o
próximo, mas apenas como medida da excelência entre ambos; outra desleal, em que a disputa é
vil e não inclui respeito ao próximo, mas sim tentativas tão eficientes quanto possível de retirar
dele o que se quer, mesmo que às escondidas, por meio de mentiras ou outros tipos de
artimanha.​9

É também bastante claro o quanto o cidadão da ​pólis pode aprender com uma obra que dispõe
sobre esses temas – ensina o que é trabalho, lealdade, respeito, disputa justa e o que são seus
opostos.

2.4. O ‘milagre grego’ e a superação do ​mythos​ pelo ​logos​:

Esse recurso à literatura mitológica é essencial para entendermos como a Filosofia surgiu, pois é
justamente ​em reação à compreensão do mundo por meio do mito que ela começou a ser
concebida e praticada. Isso ocorreu em um cenário particularmente complexo, rico e móvel do
ponto de vista cultural, político e científico. Em torno do séc. VI a.C., a Grécia passou por uma
grande quantidade de transformações nestes âmbitos, muitas das quais foram resultado do
contato dos povos gregos com outras civilizações, ao passo que outras tantas foram produto da
própria engenhosidade grega. Exemplos destas transformações foram: ​avanços técnicos nas
matemáticas​, ​sobretudo em aritmética e geometria; intenso desenvolvimento náutico e
expedições para outras nações, sobretudo com interesses comerciais; contatos interculturais
relevantes, que permitiram confrontar diferentes tipos de mito concebidos por diferentes povos
para explicar os mesmos fenômenos, bem como aprender sobre modelos sociais e costumes
distintos​; etc.​10

Fatores como estes fizeram com que os gregos começassem a desenvolver um novo modo de
compreender o mundo em sua inteireza. Temas referentes à natureza, à cultura e à sociedade dos
homens, ao cosmos e ao supranatural – i.e., temas tão vastos quanto aqueles antes
compreendidos pelo ​mythos – passam a ser objeto de outro olhar. Este olhar é essencialmente
racional​, ​crítico​, ​contemplativo​. O grego começa a se interessar por ​inquirir diretamente as
coisas que deseja conhecer, em especular acerca de sua natureza própria, de seu lugar e função
no mundo, em explicar as origens, interações concretas e finalidades das coisas – e não
meramente se fiar em narrativas de uma tradição sobre elas. Trata-se, neste olhar especial que o
grego assume, justamente do ​logos​. Por esta palavra se entende, via de regra, ‘​razão​’,
‘​conhecimento​’, ‘​ciência​’ Esta é a origem da Filosofia no seio da Grécia Antiga. De acordo com
ela...

7
Hesíodo, 2008, 2011. Souza, 2000, pp. 11-13.
8
Souza, 2000, p. 11. Lafer, 2008, pp. 13-14.
9
Hesíodo, 2008, p. 53 ff.
10
Oliva & Guerreiro, 2000, p. 42 ff. Marcondes, 2010, pp. 17-21.
Por isso se diz tradicionalmente que ​a origem da Filosofia ocorre por uma ruptura do ​mythos
pelo ​logos –​ i.e., por uma superação da tradição como critério explicativo para as coisas e pela
ênfase na razão como seu substituto. 11

Referências Bibliográficas:

Almeida Jr., J. B. ​Introdução à Mitologia.​ São Paulo: Ed. Paulus, 2014. Coleção Filosofia em
questão.

Hesíodo. ​Os Trabalhos e os Dias​. Tradução, introdução e comentários de Mary de Camargo


Neves Lafer. São Paulo: Iuminuras, 2008. Biblioteca Pólen.

Hesíodo. ​Teogonia.​ Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iuminuras, 2011. Biblioteca
Pólen.

Homero. ​Ilíada.​ Tradução dos versos Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2011a. Coleção Saraiva de Bolso.

Homero. ​Odisseia​. Tradução e prefácio Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2011b. Coleção Saraiva de Bolso.

Jaeger, W. ​Paidéia​. A formação do homem grego. Tradução de Arthur M. Parreira. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2013. Coleção Clássicos WMF.

Jones, P. Introdução. In: Homero. ​Ilíada​. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2005.

Lafer, M. C. N. Introdução. pp. 13-17. In: Hesíodo. ​Os Trabalhos e os Dias.​ Tradução,
introdução e comentários de Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iuminuras, 2008.
Biblioteca Pólen.

Marcondes, D. ​Iniciação à História da Filosofia. Dos Pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

Oliva, A. & Guerreiro, M. ​Pré-socráticos. ​A Invenção da Filosofia. Rio de Janeiro: Papirus,


2000.

Rocha, E. ​O que é Mito?​ São Paulo: Brasiliense, 1991.

​ ida e obra. S
Souza, J. C. ​Os Pré-socráticos. V ​ ão Paulo, Editora Nova Cultural, 2000. Coleção
Pensadores, vol. 1.

Weischedel, W. ​A Escada dos Fundos da Filosofia.​ Tradução de Edson D. Gil. São Paulo: Ed.
Angra, 2006.

11
Oliva & Guerreiro, 2000, p. 9. Souza, 2000, p. 6.

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