Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CORPOREIDADES FEMININAS
Introdução
1
Doutora em Geografia – UFRGS/UMINHO (Portugal), Mestra em Geografia e Especialista em Arte Educação –
UFBA, Bacharela em Geografia – UFRGS. Docente do Colégio Marista Pio XII (Novo Hamburgo/RS).
2
Doutora em Geografia – UFBA, Doutora em Ciências da Comunicação – Jacobs University Bremen (Alemanha),
Mestra em Geografia – UFBA, Bacharela em Comunicação Social – UCSAL.
3
Doutoranda em Geografia – UFRGS, Mestra em Geografia – UFRGS, Bacharela em Geografia – UECE. Bolsista
CAPES.
Representações do Corpo Feminino na Cultura Ocidental
4 A beleza estética é uma das últimas barreiras para autonomia da mulher contemporânea (WOLF, 1992);“O útero
é o que se revela como foco último da estrutura de poder no que tange à modelagem que o sistema do feminino
(como construção de poder dos homens) exerceu sobre as mulheres” (TIBURI, 2008, p. 53).
acrescentada a condição de ser obesa, lésbica e/ou praticante de religião afro-brasileira? É um
exemplo levado ao extremo para percebermos o quanto ainda vivemos sob uma sociedade em
que padrões etnocêntricos, masculinistas e elitistas incidem na produção material e simbólica
do espaço geográfico, bem como à seu acesso.
Desde o Nascimento da Vênus (1483), pintado por Sandro Botticelli, a representação do
corpo feminino passou por muitas transformações. Os corpos curvilíneos foram tornando-se
cada vez mais magros. Da opulência renascentista à ditatura da magreza contemporânea, a
imagem da mulher foi adaptada aos padrões estéticos, morais e ideológicos de cada período,
um disciplinamento dos corpos por meio de representações repressoras e hierarquizantes: “é
uma questão de maquiagem, de cosméticos, dizem as revistas femininas. De vestuário também,
daí a importância da moda, que num misto de prazer e tirania, transforma modelando as
aparências” (PERROT, 2012, p. 50).
Na contemporaneidade, grande diferencial, talvez esteja no modo como a produção de
imagens se inverteu: se até meados do século XIX as imagens buscavam representar o cotidiano
vivenciado, atualmente as ações cotidianas são habitualmente intermediadas por imagens que
acabam por se tornar suas referências. A normatização estética se traduz, entre outros aspectos,
em um mimetismo impulsionado pelos meios de comunicação. Nesse sentido, o corpo
contemporâneo, especialmente o corpo feminino, se apresenta como um simulacro de signos
com grande capacidade de incorporar novas significações e de deslocar novos sentidos, seus
agenciamentos podem se constituir de subjetividades, mesmo que essas sejam influenciadas por
práticas já normatizadas pelos “filtros invisíveis” que se sobrepõem ao longo da história da
civilização5.
6 “Uma imagem converte-se em representação à medida que ultrapassa seus elementos constitutivos e transforma-
se em uma expressão concreta de si, expressão que não permite a redução a nenhuma outra forma semelhante –
não pode ser avaliada por critérios de autenticidade, sua potência está na capacidade de mobilização e de
reconhecimento social” (NUNES, 2014, p. 14).
7 “Nas próprias representações artísticas na forma de pinturas se percebe o papel de submissão da mulher em
relação ao homem. Apesar de ser homenageada devido à questão de gerar vidas, era também dividida entre a
imagem de honra e vinculada à criação de filhos, ou como perversa, egoísta e movida por instintos sexuais”
(COSTA, 2014, sp).
8 Para Foucault (2001), a anatômo-política torna o corpo como máquina e a biopolítica se configura como o
controle da vida da população, como polos distintos do biopoder.
Geografias Midiáticas e a Representação Socioespacial em Produções Audiovisuais
A questão basilar das representações imagéticas dos corpos, deixa claro que cada
recorte da realidade é centrado em ideologias colonialistas, de gênero e de classe. E essa forma
de construir, entender, e ressignificar o mundo a partir de imagens permitiu geógrafos se
aprofundarem nos estudos das imagens em movimento (COSTA RADEK, 2018). Assim, as
produções audiovisuais estão muito presentes nas Ciências Sociais e Humanas, mas não
possuem seus objetos de pesquisa “[…] enraizados na longa tradição brasileira de pesquisa em
Geografia” (CORRÊA; ROSENDAHL, 2009, p. 7). Foi a partir da década de 1980 que os
pesquisadores em Geografia Cultural passaram a dar mais importância para estes elementos,
pois por muito tempo soavam “para alguns como temas sem interesse geográfico” (CORRÊA;
ROSENDAHL, 2009, p. 8). Em face disto, a Geografia Midiática emergiu de maneira não linear
e veio a ser identificada como uma subdisciplina com múltiplas direções dentro da Geografia
Humana. Cupples, Lukinbeal e Mains (2015) afirmam que os pesquisadores das Geografias
Midiáticas possuem maiores interesses em meios particulares, como literatura, rádio, cinema,
televisão, videogames, conteúdo disponível no ciberespaço. Estes estudiosos baseiam suas
pesquisas nas questões sobre Geopolítica, Estudos Culturais, Estudos Comunicacionais,
Midiáticos, Produção e Reprodução do Espaço Urbano e Rural, Tecnologias de
Georreferenciamento, entre outros, e dialogam com o campo da Geografia Social, Cultural,
Política, Econômica, etc.
Deste modo, “vale ressaltar também que, em sendo uma área abrangente, ser também
uma área interdisciplinar em sua essência, mobilizando saberes não só da Geografia, mas
também da Antropologia, da Sociologia, da História, da Comunicação, etc.” (MOREIRA, 2011,
p. 91, ênfase nossa. Todavia, “[...] apesar da natureza interdisciplinar dos estudos sobre cinema,
surpreendentemente têm sido poucos os trabalhos elaborados por geógrafos” (HOPKINS, 2009,
p. 62), uma vez que a maior parte dos estudos dessa temática ainda é predominante nas
disciplinas de Estudos Fílmicos, Estudos do Audiovisual, Antropologia, Ciências da
Comunicação, Estudos Culturais, etc. Portanto, esta é uma linha geográfica que ainda se
encontra em processo de amadurecimento e com uma imensa variedade de formatos e contextos
midiáticos a serem explorados, já que os estudiosos das Ciências Humanas e Sociais buscam
no campo da Geografia Humana conceitos geográficos como Espaço, Lugar, Paisagem,
Região, Território, e Escala para validarem suas pesquisas em suas análises fílmicas.
Por outro lado, a Geografia tem levado diversos literatos e cineastas a se interessarem
pelos estudos do Espaço, dos Lugares, dos Territórios, das Paisagens Interioranas e Urbanas,
pelos Mapas Mentais, etc., visto que o “espaço não é meramente o cenário das estórias, mas,
de fato, gera a narrativa em ambos, prosa e filmes, assumindo o status de um personagem e
tornando-se o tecido intrínseco da própria narrativa” (KONSTANTARAKOS, 2000, p. 1)9. Nos
filmes, o espaço – que se apresenta como um dos cinco elementos constituintes da estrutura da
narrativa, juntamente com o tempo, o personagem, o enredo e o narrador – pode, tanto
reconstruir e projetar a representação de um recorte geográfico, quanto auxiliar nas construções
identitárias de grupos culturais. Portanto, “o redimensionamento do cinema como campo de
análise resulta da evolução dos sistemas de pensamento transdisciplinar e da dinâmica
produzida pelo cultural turn em Geografia Humana” (AZEVEDO, 2006, p. 422).
Desse modo, o longa metragem Cidade de Deus produzido para as telas do cinema em
2002, por Fernando Meirelles e Kátia Lung, é exemplo desta afirmativa. Nesta obra, a favela
Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, torna-se a personagem principal do enredo, guiando os
demais personagens em suas tramas individuais e grupais em três momentos temporais, as
décadas de 1960, 1970 e 1980. Assim, o cinema torna-se a principal forma de arte com
capacidade de transmitir multisensorialmente aos espectadores as dinâmicas espaciais, tendo
emergido dentro do “contexto do primeiro grande impulso do modernismo cultural [...] dentre
todas as formas artísticas” (HARVEY, 1994, p. 277), é a que possui, também, a maior
competência de comprimir o tempo e o espaço de maneira singular e eficiente. Assim, o espaço
tem uma contribuição fundamental na dinâmica da narrativa, desempenhando um papel
significativo no desenvolvimento das subjetividades ideológicas e artísticas. Por isso, o espaço
fílmico deixou de ser apenas um pano de fundo da ação narrativa para se transformar em
elemento basilar desta estrutura. Sua manipulação pode, inclusive, revelar as questões
ideológicas de seu período.
O valor atribuído ao espaço em uma narrativa cinematográfica é similar a aquele
empregado aos outros elementos da narrativa, ainda mais quando o espaço se encontra
indissociável do elemento temporal (KONSTANTARAKOS, 2000). Uma obra cinematográfica
ainda apresenta maior flexibilidade e proporciona ao criador fazer uso serial de imagens em
movimento e trabalhar livremente com os recortes de espaço e tempo sem a necessidade de
seguir a convenção da temporalidade linear. O cinema tem o poder de libertar o cineasta das
restrições do plano real bidimensional atreladas à noção do espaço-tempo unificado pela Teoria
9 - Publicado em inglês e traduzido pela autora. Originalmente: “Space is not merely the setting of stories but
actually generates the narrative both in prose and films, assuming the status of a character and becoming the
fabric of the narrative itself” (KONSTANTARAKOS, 2000, p. 1).
de Newton e integra-o ao conceito da teoria da relatividade de Albert Einstein, em que o espaço
e o tempo são relativos a depender do ponto de vista de um determinado observador.
Assim, o Estudo do Cinema dentro da Geografia tem sido classificado por uma
infinidade de denominações, dentre algumas é possível citar Geografia do Audiovisual,
Geografia da Imagem, Geografia do Filme, Geografia de Cinema, etc. Esse campo passou a
interessar aos geógrafos, especialmente acerca de “[...] estudos de caso, o papel dos filmes como
objeto de estudo das ciências sociais, ou como recurso didático ao ensino de Geografia e outras
áreas de conhecimento” (MOREIRA, 2011, pp. 86-87). Este ramo disciplinar significa o
interlace entre a dimensão espacial e social dos personagens na trama. O espaço fílmico seria
compreendido como o “espaço composto de territórios, paisagens, e metáforas: dentro e fora,
amplo e restrito, subir e descer, movimentos diagonais, fronteiras diversas, percursos por
estradas, rios e oceanos interiores, ambientes simbólicos traduzidos em florestas, desertos,
montanhas, cidades…” (OLIVEIRA JUNIOR, 2005, p. 28).
Na década de 1980, os filmes do gênero documentário eram bastante difundidos entre
os geógrafos. Para eles, era um modo de retratar lugares e grupos culturais que eram
considerados, na perspectiva de seu tempo, “distantes” e “exóticos”. Assim, por descrever o
espaço de forma objetiva, o cinema era um tipo de “janela sobre a realidade” (AZEVEDO,
2012, p. 72, ênfase minha). Os “[...] modos convencionais de representação e da narrativa linear
fazem com que esse ‘olhar’ cinemático seja, frequentemente, tido como descrição fidedigna da
realidade, informando o observador relativamente sobre conteúdo geográfico do filme”
(AZEVEDO, 2009, p. 99). A força ideológica dos filmes ficcionais ou documentários estava
alicerçada em seus “enquadramentos sublimes e pitorescos proporcionados pela representação
em paisagem” (AZEVEDO, 2012, p. 86).
Todos os enredos fílmicos do gênero documentário ou ficção possuem uma estrutura
narrativa que contém a seleção, a inclusão/omissão ou a invenção de ambientes geográficos
construídos pelos cineastas. Por isso, a noção de “realidade” espacial e cultural, muitas vezes,
se confunde com representações estereotipadas ou realidades inventadas. Igualmente, filme de
ficção, documentário, docudrama e found footage10 devem ser tratados como um conjunto de
10 - O found footage (filmes perdidos/filmagem encontrada) é um gênero fílmico criado para classificar gravações
misteriosas, encontradas por terceiros, que simulavam documentários filmados com câmeras simples e ausência
de roteiro elaborado por uma pequena equipe de filmagem que, supostamente, estavam desaparecidas. Por esta
razão, a nomenclatura de found footage foi utilizada para remeter às fitas encontradas. Deste modo, Cannibal
Holocaust (Ruggero Deodato, 1980, [Holocausto Canibal], Itália) foi o primeiro filme desta linhagem que narrou
o encontro de documentaristas estadunidenses e italianos desaparecidos após uma viagem à Amazônia para filmar
tribos canibais entre aldeias indígenas na Colômbia e no Brasil. Entretanto, em 1999, o found footage tornou-se
um subgênero do horror de muito sucesso após o lançamento da produção independente The Blair Witch Project
(Eduardo Sánchez; Daniel Myrick, 1999, [A Bruxa de Blair], EUA). A produção do filme custou aos produtores
representações construídas a partir da perspectiva do seu criador, já que este seleciona aspectos
específicos de uma realidade, baseando-se no seu ponto de vista. O conteúdo fílmico é
composto pelo universo ideológico, filosófico e estético do autor. A grande maioria das
produções possui a competência técnica e a assinatura estética do diretor, bem como a criação
de sentido e significado que surge da relação entre o diretor e o conteúdo fílmico dirigido.
Assim, este conteúdo invade o interior do espectador através da subjetividade em suas
representações imagéticas e narrativas, sendo decodificado diferentemente de um indivíduo
para o outro, a partir de sua experiência com o mundo vivido que lhe é representado por imagens
em movimento. “A ideia das geografias de cinema é de que somos nós que ‘colocamos’ nas
imagens e sons os sentidos que terão nessa interpretação espacializada das obras
cinematográficas” (OLIVEIRA JUNIOR, 2005, p. 28).
A imagem cinematográfica possui um limite geométrico nomeado de quadro (frame) –
assim como em uma fotografia revelada sobre uma superfície, uma pintura em um quadro, um
grafite em uma parede – que funciona como uma fronteira entre o conteúdo da imagem e a área
de projeção. Uma obra fílmica, em particular, é representada dentro de uma área retangular,
diferente da imagem quadrada projetada por um aparelho televisor analógico de tubo. Por isso,
a imagem fílmica “[…] é limitada em sua extensão pelo quadro, parece que estamos captando
apenas uma porção desse espaço” (AUMONT, BERGALA, MARIE, VERNET, 2008, p. 21).
Deste modo, percebe-se aqui uma semelhança entre o geógrafo e o cineasta, ambos: utilizam
os limites geométricos para definir um recorte espacial, revelando e ocultando recortes da
realidade, que será levado em consideração na sua obra geográfica e fílmica. Essas escolhas são
feitas sob um olhar ideológico, político, cultural e histórico.
Harper e Rayner (2010) fazem uma analogia entre os mapas e os filmes; de acordo com
os autores, é possível afirmar que, assim como os mapas representam o espaço sob determinadas
características, os filmes também guiam o espectador para um espaço reconstituído, concreto
ou imaginado. Cartógrafos e cineastas posicionam a audiência tanto em nível estético quanto
60 mil dólares e recebeu 248.6 milhões de dólares com a bilheteria mundial. The Blair Witch Project, em particular,
popularizou a estética de filmes amadores de baixos orçamentos em contraposição às caríssimas produções
dominantes hollywoodianas. Visualmente, os filmes de found footage utilizam filmagens com câmera na mão,
câmera tremida, imagens de câmera de circuito fechado de televisão (Closed-circuit Television Camera CCTV)
que possam proporcionar um aspecto de filmagens amadoras, mesmo sendo produzidas por equipe profissional de
produção. Com a grande ascensão de conteúdos criados por internautas para a plataforma de vídeo online,
YouTube, a partir de 2005, este subgênero difundiu-se mundialmente. Na contemporaneidade, o found footage
passou a ser representado por produções independentes, como Paranormal Activity (Oren Peli, 2007, [Atividade
Paranormal], EUA) – que teve o custo de produção de 11 mil dólares e bilheteria de 193.4 milhões de dólares,
tornando-se uma lucrativa franquia – que inauguraram o formato de pseudodocumentário que simulava cenas reais
de experiências com atividades paranormais filmadas por um casal dentro de sua residência (HELLER-
NICHOLAS, 2014).
político, ideológico e geográfico, uma vez que o espectador entra em contato com um espaço
construído a partir de um imaginário que vai se espacializando. Finalmente, “como acontece
com os mapas, o cinema adquire um poder de controle, que pode estabelecer ideias
contraditórias acerca da construção do espaço social (KONSTANTARAKOS, 2000, p. 1)11. Por
isso, “a paisagem fílmica, sendo fruto de uma construção, pode nem mesmo nos parecer a
mesma que aquela vista ‘fora do filme’: uma bela colina com uma charmosa casa pode virar
um lugar tenebroso, dependendo de como a imagem for construída” (BLUWOL, 2008. pp. 4-
5). Novamente a questão da construção da imagem, da perspectiva da realidade e da formação
de representações que se cristalizam no imaginário popular perpassam por vários âmbitos sejam
eles espaciais, sociais e corpóreos.
11 - Publicado em inglês e traduzido pela autora. Originalmente: “as with maps, cinema acquires a power of
control by fixing in place conflicting ideas about the constitution of social space” (KONSTANTARAKOS, 2000,
p. 1).
concorre, no caso específico das mulheres pobres em situação de rua12, para uma espécie de
interdição do direito dessas mulheres ao próprio corpo (FERNANDES, 2019), pois quanto mais
pobres e mais expostas às condições da rua, menos direitos essas mulheres têm sobre seus
próprios corpos.
Medina (2005), em uma análise crítica da corporeidade da sociedade brasileira pela
perspectiva da classe social, considera que os corpos dos indivíduos são modelados pelas
dinâmicas socioeconômicas, que no Brasil são domesticadoras, sufocantes e opressoras
(MEDINA, 2005). Assim, o corpo do(a) brasileiro(a), no contexto de um país marcado pela
colonização, é “um corpo violado pelas condições histórico-culturais e concretas” (MEDINA,
2005, p. 83).
Para o referido autor, essas marcas sociais se fazem sentir em nossos corpos mesmo
antes de nosso nascimento. Assim, ao nascer e desenvolver nossas vidas daí por diante, aos
transpor os obstáculos existenciais que se apresentam, “vamos sendo objetos dos mais diversos
condicionamentos, dependendo do contexto em que se vive” (MEDINA, 2005, p. 82, grifo
nosso).
É importante atentar a essa questão dos condicionamentos a que os corpos estão
submetidos conforme o contexto em que se vive. Aqui, embora o objetivo da discussão seja
tensionar a relação existente entre o corpo feminino e o espaço da rua, é fundamental apontar
que esses corpos femininos específicos dos quais falamos carregam em si os condicionamentos
da pobreza e, mais ainda, da vida em situação de rua, que por sua vez é, ainda, uma questão de
raça, pautada pela colonialidade do poder, que se revela na “face brutal da Modernidade”, que
historicamente aniquilou corpos considerados descartáveis, como os negros e indígenas, como
afirma Lemões (2017)13.
Para a geógrafa Ana Fani A. Carlos (2007), “a rua se coloca como dimensão concreta
da espacialidade das relações sociais num determinado momento histórico, revelando nos
gestos, olhares e rostos, as pistas das diferenças sociais” (CARLOS, 2007, p. 51).
12 O termo “situação de rua” é aqui utilizado para designar o contexto de desabrigamento ou ausência de domicílio
fixo que leva indivíduos a se utilizarem de logradouros públicos como moradia, bem como aqueles que encontram-
se abrigados por serviços públicos, em albergues ou casas de passagem e afins. Esta é a definição do Decreto
Presidencial nº 7.053/2009, que serve para fins de políticas públicas, mas tem sido problematizada pelos
movimentos de luta pelos direitos dessa população, que afirmam que não deve ser tomada como uma definição
estanque, pois limita a percepção de suas existências. Aqui ela é utilizada somente para fins de nomenclatura, para
definir o grupo social a que estamos nos referindo.
13 Acerca dessa discussão, Lemões (2017) em sua tese de doutorado intitulada De vidas infames à máquina de
guerra: etnografia de uma luta por direitos, traz uma revisão de bibliografia decolonial e pós-colonial que
demonstra as raízes mais profundas da produção de corpos desviantes que faz parte da dinâmica da situação de
rua, e demonstra que esta problemática vai muito além da questão econômica, que costuma ser o viés mais
apontado como explicação para a situação de rua.
Compreendemos com a autora a rua como um dos níveis possíveis de entendimento do
cotidiano e da espacialidade das relações sociais na cidade. Assim, a fim de pensar a complexa
relação estabelecida entre espaço, corpo e gênero, aqui escolhemos o espaço da rua, mais
especificamente no contexto de vida de mulheres em situação de rua, aqui também denominadas
mulheres em movimento, a fim de apontar para o aspecto dinâmico de suas experiências
(FERNANDES, 2019).
Exemplo emblemático das diferenças sociais sendo marcadas a partir do comportamento
de indivíduos nas ruas da cidade é o Brasil na Belle Époque (1890 – 1920). O espaço é
experienciado de diferentes maneiras pelos indivíduos e grupos sociais conforme gênero, raça,
classe, idade, entre tantas outras categorias sociais e aspectos das subjetividades. É evidente,
então, que as experiências espaciais de mulheres sejam distintas das experiências masculinas,
bem como há variações de opressão sobre as mulheres pobres. Sobre a questão de como a
cidade se apresenta e é experienciada por mulheres pobres no Brasil, Soihet (2015) realiza um
resgate histórico de tais experiências no contexto mencionado, que foi um período de
modernização marcado pela higienização urbana, no qual o Brasil buscava adotar o modo de
vida urbana parisiense como modelo.
Nesse contexto, homens e mulheres pobres sofreram fortes intervenções em seu
comportamento, a fim de que se adequassem aos modos de vida burgueses e não representassem
incômodo ao novo molde de cidade e de vida urbana que se buscava construir. Fazia parte de
tais intervenções uma rígida disciplinarização do espaço (SOIHET, 2015), que não é sem uma
igualmente rígida disciplinarização dos corpos. Recaía, então, grande preocupação sobre como
as mulheres, principalmente as mulheres pobres, deveriam se comportar, pois delas dependeria
que as camadas pobres se adequassem a esse novo estilo de vida, uma vez que elas seriam as
responsáveis por conduzir e guiar a família.
Nesse período histórico, embora as camadas populares como um todo sofressem
repressão no intuito de uma disciplinarização para o alcance de um ideal burguês de estilo de
vida, às mulheres eram infligidas violências não apenas estruturais, mas também aquelas
decorrentes de sua condição de gênero. Elas eram impedidas pela polícia de circular livremente
pelas ruas e praças. A proposta burguesa de que o espaço feminino por excelência é o espaço
privado, do lar, enquanto ao homem cabia o domínio dos espaços públicos, era referendada por
médicos e juristas, que apontavam que a mulher honesta não devia se colocar sozinha nas ruas
e agiam em uníssono para legitimar a política higienista de urbanização que visava transformar
as cidades brasileiras em uma verdadeira Paris (SOIHET, 2015).
Para os agentes desta política, “a rua simbolizava o espaço do desvio, das tentações”
(SOIHET, 2015, p. 365), e das mulheres pobres era cobrado que vigiassem seu modo de viver,
bem como de suas filhas, para que não se deixassem corromper por este espaço. No entanto,
como afirma a autora, toda a sua maneira de sobreviver dependia de uma liberdade de circulação
pela cidade, seja pela necessidade do fluxo de informações e pessoas que formavam a rede de
trabalhos informais dos quais dependiam para viver, seja pelos próprios moldes de socialização
das camadas populares, que davam à rua ares de lar, com essas pessoas comendo, dormindo e
realizando suas atividades de lazer nas ruas e praças.
Não são poucas as semelhanças que se mantêm entre as violências e exigências impostas
às mulheres pobres no Brasil urbano da Belle Époque e aquelas que seguem sendo infligidas às
mulheres em situação de rua no Brasil atual. As condições de classe e de gênero seguem
representando um atenuante às condições concretas de existência dessas mulheres, que
precisam enfrentar uma realidade que toma o seu corpo como sendo público e estando à
disposição de todo aquele que deseja usufruir dele ou legislar sobre ele14.
A antropóloga Simone Frangella (2004), ao discutir as vivências da população em
situação de rua na cidade de São Paulo/SP, aborda o aspecto masculinizado do espaço da rua,
especialmente no que se refere ao contexto da situação de rua, onde se pode notar uma
predominância da presença masculina. A mulher que adentra esse universo tem de lidar com
desafios que advém do fato de a rua ser um espaço cuja vivência tem sido historicamente negada
ou no mínimo extremamente regulada para as mulheres, como discutido anteriormente.
Para as mulheres em situação de rua, a essa problemática é adicionado o fato de que elas
necessitam colocar os seus corpos em contato com essas ruas em uma dinâmica complexa,
muitas vezes em tempo integral, nas fissuras da cidade da classe dominante. Ou seja, elas vivem
a mesma cidade que nós, que é ao mesmo tempo outra, pois se apropriam de e constroem
espaços e vivências outras nessa mesma cidade. O Estado e as classes hegemônicas não tomam
essas mulheres como invisíveis, como se costuma afirmar: elas estão sendo vistas e sendo alvo
de ataques constantes. É raro, talvez até impossível, encontrar uma mulher em situação de rua
que não tenha sido vítima de estupro, agressões físicas, relacionamentos abusivos, violência
institucional e a própria violência estrutural, por exemplo, que para Santos (1999) é a mãe de
todas as violências.
14 Acerca dessa discussão, ver matéria do Jornal Sul21: “‘Elas são tratadas como se fossem públicas’: estudo
aborda vivências de mulheres em situação de rua”. Disponível em: <https://www.sul21.com.br/ultimas-
noticias/geral/2019/06/elas-sao-tratadas-como-se-fossem-publicas-estudo-aborda-vivencias-de-mulheres-em-
situacao-de-rua/>
Esses ataques partem de todos os lados: seja de policiais, homens em situação de rua,
homens que circulam por seus espaços de vivência, ou pela própria figura do Estado, que
intervém sobre seus corpos por meio de violências como laqueaduras tubárias não voluntárias,
determinando que essas mulheres não são capazes do exercício da maternidade (FERNANDES,
2019).
Nesse contexto, as mulheres em situação de rua seguem tendo impostas sobre seus
corpos as intervenções estatais, tais como as mulheres pobres no Brasil Urbano da Belle
Époque, onde a legislação tinha o poder de intervir sobre o seu comportamento e seu corpo – o
Estado nunca perdeu esse poder.
No cerne desse contexto, essas mulheres realizam estratégias para sua proteção, desde
a obtenção de companhia masculina, até o comportamento agressivo, para afastar potenciais
agressores. Carolina de Jesus15, entrevistada na pesquisa de mestrado da geógrafa Talita
Fernandes (2019), afirma:
Se mora na rua, tem que ter um homem pra proteger. (...) E aí a mulher que chega e
diz assim: “porque eu sei, eu me cuido e não sei que, e se chega um e faz isso comigo
eu pego e derrubo!”, não existe isso. Não existe isso. Por isso que eu acho que tem
que ter um homem, sim, pra defender (FERNANDES, 2019, p. 17).
Eu, qualquer coisinha, eu grito, guria! Eu grito, eu chamo qualquer pessoa. E me dou
o respeito! Essa é a maior proteção que a gente tem, né? Tem que se dar o respeito!
Porque eu, tem uma coisa, ó: eu durmo no meio de dois, três homens, ali na frente do
banco. E eu me respeito! (...) Durmo no meio de um monte de macho, aí, ó. Só eu de
mulher, às vezes. Mas eu me dou o respeito e ninguém se abusa de mim, entendesse?
Isso é uma coisa muito... que aí vai muito da mulher também (FERNANDES, 2019,
p. 17).
A expressão “se dar o respeito”, frequentemente utilizada por Teresa nessa entrevista,
denota a introjeção de uma cultura machista que põe sobre a mulher a responsabilidade pelas
agressões sofridas. Teresa afirma sua postura de imposição de respeito frente aos homens com
quem convive como uma proteção, e sugere que há mulheres que não possuem o mesmo
comportamento e, por isso, passam por situações de agressão que ela não vive (FERNANDES,
2019).
Assim, podemos observar que na dinâmica da vida nas ruas, os corpos femininos, que
historicamente têm negado o direito de viver esse espaço, enfrentam desafios constantes, que
passam pela regulação dos corpos e seus comportamentos e chegam mesmo a uma negação do
direito dessas mulheres de decidir sobre seu próprio corpo. O poder masculino – seja na figura
do companheiro, da polícia, dos homens em geral ou do Estado16 – está constantemente se
impondo sobre os corpos femininos e determinando ações sobre eles.
Contudo, há resistência a esses poderes e essas mulheres traçam estratégias para
sobreviverem e criarem suas maneiras de viver as ruas da cidade e resistir. A capacidade de
agência política é aspecto presente nas experiências corporalizadas dessas mulheres. Para além
do universo da falta, que é o principal aspecto observado na definição oficial de “pessoa em
situação de rua”, mencionada na nota de rodapé ao início deste tópico, há multiplicidade de
experiências, lutas e esperanças nas vidas dessas mulheres.
A análise da conjunção dos fatores corporeidade feminina e vivência em situação de rua
demonstra o quanto as diferentes experiências concretas de vida direcionam os corpos a
experiências de espaço distintas. Os modos de viver o espaço das ruas da cidade e a própria
corporeidade são, para as mulheres em situação de rua, bem distintos daqueles que caracterizam
16 Para uma discussão mais detalhada, com exemplos concretos de tais situações, ver a dissertação de Mestrado
Rua, substantivo feminino: mulheres em movimento e o direito ao corpo na cidade (FERNANDES, 2019).
as experiências de mulheres de classe média, por exemplo. Bem como as experiências que
conduziram as mulheres ao contexto da rua são distintas das experiências de vida destas últimas.
Em consonância à discussão inicial desse artigo, observamos que a representação
imagética do corpo feminino afeta a essas mulheres de tal maneira, que o contexto da situação
de rua modifica sua relação com o próprio corpo. São comuns relatos de queixas no que diz
respeito à própria aparência, seja pela dificuldade em manter uma rotina de higiene ou mesmo
na impossibilidade de se encaixar no padrão estético de feminilidade socialmente construído
(FERNANDES, 2019). Dessa maneira, apontamos a relevância de observar atentamente esses
aspectos da experiência espacial dos sujeitos, a fim de que nossas geografias reconheçam a
multiplicidade de que é composto o espaço que vivemos.
Considerações Finais
Referências
AZEVEDO, Ana Francisca. Geografia e Cinema. In.: CORRÊA, Roberto Lobato; Zeny
Rosendahl (Orgs.). Cinema, Música e Espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ. 2009, pp. 95-127.
BIROLI, Flávia. O Público e o Privado. In.: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia.
Feminismo e Política. (p. 31-46). São Paulo: Boitempo, 2014.
BLUWOL, Dennis Zagha. Uma Geografia do Cinema: Imagens do Urbano. 2008. 120f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geociências, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A rua: espacialidade, cotidiano e poder. In: ______.
O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007. p. 51-60. Disponível em:
<http://www.gesp.fflch.usp.br/sites/gesp.fflch.usp.br/files/O_lugar_no_do_mundo.pd>
Acesso em: 10 out. 2019.
CASTRO, Annie. ‘Elas são tratadas como se fossem públicas’: estudo aborda vivências de
mulheres em situação de rua. Sul21, Porto Alegre, 22 jun. 2019. Disponível em:
https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2019/06/elas-sao-tratadas-como-se-fossem-
publicas-estudo-aborda-vivencias-de-mulheres-em-situacao-de-rua/. Acesso em: 14 out. 2019.
CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny. (Eds). Cinema, Música e Espaço. Uma
Introdução. In.: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny. (Eds). Cinema, Música e
Espaço. Rio de janeiro: EDUERJ, 2009, pp. 7-14.
HARVEY, David. Condição Pós-moderna. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Estela
Gonçalves. [The Condition of Postmodernity. An Enquiry into the Origins of Cultural Change
(1989)]. São Paulo: Edições Loyola, 1994.
HELLER-NICHOLAS, Alexandra. Found Footage Horror Films: Fear and the Appearance
of Reality. Jefferson, NC: McFarland. 2014
HEROD, Andrew. Scale. Taylor & Francis e-Library. United Kingdom, 2010.
MEDINA, João Paulo S. O brasileiro e seu corpo. 10. ed. Campinas: Papirus, 2005.
MOREIRA, Tiago de Almeida. Geografias Audiovisuais: Para além das Geografias de Cinema.
GeoTextos, Revista do Programa de Pós-graduação em Geografia, Universidade Federal da
Bahia, Salvador. Vol. 7, No. 2, dez. 2011. pp. 85-97, 2011.
NUNES, Camila Xavier. Geografias do corpo: por uma geografia da diferença. 2014. 245
f. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2014. Disponível em:
<http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/94741>. Acesso em: 1 out. 2019
NUNES, Camila Xavier; COSTA RADEK, Juliana Cunha; REGO, Nelson. Desconstrução
imagética da mulher negra na Bahia. In: Rego, N. (Org.). Geografias e (in)visibilidades:
paisagens, corpos, memórias. Porto Alegre: ComPasso, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Universidade do Minho, 2017, v. 1, p. 311-348. 1º edição.
PERROT, Michele. Minha História das Mulheres. Trad. Angela S. M. Corrêa. São Paulo,
Contexto, 2012. 2º edição.
WOLF, Naomi. O Mito da Beleza. Como as Imagens de Beleza São Usadas Contra as
Mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.