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CORPOS INTERMEDIÁRIOS E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

Jivago Spinola Gonçalves Ferreira*

Palavras-chaves: Corpos intermediários. Participação. Igualdade. Centralização.

RESUMO

O objetivo do presente trabalho é apontar a relação existente entre o princípio filosófico da


“igualdade política” e o esvaziamento da presença dos “corpos intermediários” na própria
estrutura da sociedade do século XVIII.

Nesse sentido, nosso estudo se insere na perspectiva filosófica da Teoria Geral do Estado, ou
ainda da Sociologia Histórica Comparada, de maneira que utilizamos a tipologia de pesquisa
qualitativa, pura e exploratória, de base bibliográfica e documental.

Conforme aponta Urbinati,

No “Espírito das Leis”, Montesquieu caracterizou os corpos intermediários


como condições essenciais para o governo moderado porque eles são
poderes compensatórios contra a tendência endógena de qualquer poder
soberano ser monopolizado pelos seus portadores, sejam eles um, os poucos,
ou os muitos. O soberano necessita ser limitado tanto pela divisão das
funções estatais e pelo sistema de vetos, quanto pelas entidades ou práticas
autônomas que a sociedade mesma produz. O pluralismo, portanto, não é
meramente uma questão de engenharia institucional, mas também precisa
estar enraizado na sociedade (URBINATI, 2016).

Os corpos intermediários, grosso modo entendidos como instâncias plurais de participação


político-social, caracterizavam-se como poderes compensatórios na estrutura das sociedades
políticas de parte da Idade Média, ainda que sua delimitação seja difusa ao longo desse
período.

Independentemente dos condicionantes temporais, sua existência tinha por fundamento uma
estrutura política diretiva descentralizada, razão pela qual esses grupos tinham não somente
determinado grau de ingerência política, mas uma ingerência direta nos encaminhamentos dos
negócios da vida pública.

O fato é que, por razões históricas que fogem ao escopo de nosso texto, a partir do século
XVIII se cristalizou um arquétipo de participação política que foi responsável pela inflexão
entre participação direta e representativa e que, para o nosso caso, culminou no esvaziamento
paulatino da participação dos corpos intermediários na estrutura da sociedade.

E o princípio catalizador dessa inflexão foi o princípio filosófico da igualdade política - aqui
utilizada em sentido amplo, enquanto princípio, e não em seu desdobramento jurídico e civil -,
que alterou significativamente o modo de participação dos indivíduos nas sociedades
políticas.

*
Câmara dos Deputados. E-mail: jivago.ferreira@gmail.com

Anais da X Jornada de Pesquisa e Extensão – ISSN: 2317-7640


Isso porque, até à cristalização do princípio, mesmo que com variantes, a existência dos
corpos intermediários sinalizava a existência de instâncias plurais de participação e decisão,
indicando assim uma determinada forma de participação direta na própria sociedade política.

Com o advento do princípio, por seu turno, inicia-se um tipo de participação na vida pública
que se assenta na igualdade política dos indivíduos, o que significa falar de uma
homogeneidade (homogeneidade da condição daqueles que se comportam como iguais, por
assim dizer) política de existência, da instauração de um modus vivendi comum a todos, sem
nenhum tipo de privilégio que possa ser estendido a qualquer grupo social.

Para a nossa questão, importa observar essa igualdade sob o aspecto do exercício do poder, e
as consequências oriundas no âmbito da participação dos corpos intermediários, situação que
foi muito bem apontada por Tocqueville (ao analisar o centralismo despótico, mas tratando
dos antecedentes da Revolução de 1789) em relação ao posicionamento de Mirabeau a Luís
XVI, nos seguintes termos: “a ideia de formar uma só classe de cidadãos teria agradado a
Richelieu: esta superfície igual facilita o exercício do poder” (apud GALVÃO DE SOUSA,
2018, p. 60).

Sob a ótica do exercício do poder, a homogeneidade política dos administrados –


consequência do princípio da igualdade política –, facilita o próprio exercício do poder, o que
não significa falar em efetividade de exercício, mas tão somente na facilidade de engenharia
institucional desse exercício.

O problema, evidente, não foi o estabelecimento do princípio em si – que nunca foi um


conceito estranho ao longo da história das ideias -, mas sim a forma como ele foi construído a
partir do século XVIII, uma vez que contingencialmente esse princípio produziu um espaço
de participação política gradativamente atomizado.

E na medida em que a categoria dos governados começa a se apresentar de maneira


homogênea, nada mais natural que a ação governativa se apresente de forma cada vez mais
centralizada, outra consequência observada no ambiente de cristalização do princípio da
igualdade.

Se o novo regime – instaurado depois da Revolução – já estava, assim, em


germe no Ancien Régime, como Taine e Tocqueville o demonstraram
sobejamente, não admira fosse a centralização estatal crescendo em grandes
proporções nas democracias liberais. Napoleão – que, com a ponta da
baioneta dos seus soldados, deixou cravadas, no solo dos países
conquistados, as ideias da Revolução francesa – transmitiu à posteridade o
padrão de um Estado burocrático, uniformizador e centralista (GALVÃO DE
SOUSA, 2018, p. 36).

Assim, a título de conclusão, considerando o fato de que os corpos intermediários tinham a


sua razão de ser em esferas políticas descentralizadas, tem-se que o estabelecimento desse
novo locus de igualdade – que se retroalimenta de uma ação governativa centralizada - acabou
provocando o esvaziamento paulatino dos diversos corpos intermediários presentes na vida da
sociedade política – e que, conforme Bobbio (2017), regulavam a ação dessa sociedade.

Por fim, ainda que as questões aqui tratadas sejam de cunho histórico, mesmo assim elas não
deixam de contribuir para o debate contemporâneo sobre a relação entre os diversos grupos
sociais existentes e a representatividade política.

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Isso porque a participação via sufrágio é uma escolha aberta, uma possibilidade de vir-a-ser
da vontade popular, mas que hodiernamente nos coloca diante de algumas questões: qual é o
grau de espelhamento entre representantes e representados na democracia representativa
contemporânea? Sob quais condições esse espelhamento pode ser observado?

E também: conforme Urbinati (2016), como explicar - no mundo pós-Segunda Guerra


Mundial e independentemente da teoria de representatividade aplicada - o paradoxo existente
entre a hegemonia do ideal democrático e a insatisfação prática de suas instituições?

Longe de respondermos todas essas questões – e longe de defendermos uma restauração


anacrônica dos corpos intermediários -, a discussão não deixa de contribuir para o debate atual
sobre a relação entre participação popular e representatividade.

REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. São Paulo: Edipro, 2017.
GALVÃO DE SOUSA, José Pedro. O estado tecnocrático. São Luís: Resistência Cultural,
2018.
URBINATI, Nadia. Uma revolta contra os corpos intermediários. Tradução: Sue Iamamoto e
Gabriela Rosa. Leviathan: Cadernos de Pesquisa Política, São Paulo, n. 12, p. 176-200, 2016.
Título original: A revolt against intermediary bodies. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/leviathan/article/view/143426. Acesso em: 2 jul. 2019.

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