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Dos palcos e passarelas para as livrarias: Shine, o livro de estreia de

Jessica Jung

Glossário:

 Trainee: aquela pessoa que está treinando para estrear em um


grupo/solo;
 Debutar: lançar/estrear na carreira artística no kpop;
 Idol/idols: em tradução, é ídolo/ídolos, nesse caso, os artistas de
kpop;
 Dramas: novelas/séries sul-coreanas.

Nos últimos anos, a Coréia do Sul vem conquistando muito espaço


mundialmente, principalmente no que cerne quesito cultura.

O kpop – gênero musical e elemento cultural sul-coreano –, por exemplo,


cresceu de maneira estrondosa no Ocidente. Hoje já podemos presenciar
grupos de kpop ocupando espaço nas paradas musicais de relevância
mundial (tal qual BTS estreando em 1º lugar na Billboard com Life goes
on, sendo essa a primeira música cantada em língua não inglesa a conseguir
este feito) ou o BlackPink, contando com diversos feats com artistas
ocidentais em sua carreira, entre elas Lady Gaga, Dua Lipa, Selena Gomez
e Cardi B.

Quanto ao cinema, Parasite foi o grande título no Oscar de 2020: levou


quatro estatuetas e, entre elas, de melhor direção e melhor filme, sendo o
primeiro filme em língua não inglesa a conquistar tal prêmio!

Ao conversar sobre Literatura, comentemos sobre três títulos bem


populares que circundam a Coreia do Sul: O Sol também é uma estrela, da
Nicola Yoon, Frank e o Amor, do David Yoon (ele é esposo da Nicola!) e
Um lugar só nosso, da Maurene Goo; as três obras abordam muito sobre a
transição da adolescência para a vida adulta, o poder de escolha sobre a
própria vida e, também, a recepção de pessoas orientais fora da Ásia por
ocidentais, o que, consequentemente, faz com que as obras abordem o
racismo contra pessoas asiáticas.

Com isso, já podemos falar sobre a resenha do post de hoje: Shine: uma
chance de brilhar livro de estreia da renomada estrela do kpop e ícone
fashion, Jessica Jung.
Conheça a Ice Princess Jessica

Faz-se necessário apresentar a Jessica, a autora do livro, antes de


começarmos quaisquer debates da obra, afinal, tanto ela quanto Rachel (a
protagonista de Shine) são grandes nomes do kpop!

Jessica nasceu em 18 de abril 1989, em São Francisco, Califórnia;


ela é estadunidense, mas seus pais são sul-coreanos. Aos 11 anos, foi aceita
para ser trainee na SM Entrertainment e, após sete anos de treinamento,
debutou como vocalista principal do girlgroup Girls’ Generation.

Além de ser uma das principais vozes do grupo, Sica (como é


carinhosamente chamada pelo fandom) era popular na Coreia, participando
de eventos e programas de entretenimento, além de ser destaque e
referência ascendente na alta moda coreana e ocidental.
Infelizmente, em consequência às divergências de interesses entre a SM
Entrertainment e Jessica, foi anunciada a sua saída do grupo e da empresa
em 2015.

A partir desse momento, Jessica seguiu carreira solo; apesar de ter


lançado alguns trabalhos musicais, o seu foco foi na carreira de moda, com
a sua marca de artigos de luxo Blanc & Eclare. Contudo, em 2020, Jessica
anunciou que lançaria seu primeiro romance. Não obstante, tal livro conta a
história de Rachel Kim: trainee também nascida nos EUA que sonha seguir
uma carreira de sucesso no kpop.

E por mais que Jessica já tenha declarado diversas vezes que tudo
descrito no livro – e nos próximos dois livros – é ficção, é impossível não
correlacionar os fatos descritos ali como histórias potencialmente
biográficas.

Shine – uma chance de brilhar: conhecendo o antes do sucesso no


kpop

Shine chegou ao Brasil em outubro de 2020, com 366 páginas,


trazendo uma narrativa que buscou expor os sonhos de seguir a carreira
artística, mas também as inúmeras dificuldades que os traines inseridos no
mundo do kpop devem enfrentar. Além de anos de treinamento, aqueles
que buscam estrelar em uma carreira artística de sucesso, devem se
submeter às diversas situações de humilhação, agressões e diversos
sacrifícios enfrentados, principalmente àqueles nascidos fora da Coreia do
Sul, como é o caso da protagonista, Rachel Kim.

Rachel tem 17 anos e treina na DB Entrertainment há quase sete


anos; ela é um dos destaques da empresa por seu talento no canto e sua
potência vocal; e por ser estadunidense, o CEO e demais empresários de lá
nutrem grande admiração por ela, afinal “seu inglês é perfeito”; contudo,
apesar de vocalmente ela ser impecável, possui dificuldades diante das
câmeras e seu desempenho em simulação de entrevistas e apresentações de
shows deixa a desejar, e sobre cai sobre ela esse tipo de cobrança.

Já foi anunciado que a história de Rachel será dividida em uma


trilogia e neste primeiro livro, foi bem explorado o universo de treinamento
dos futuros idols, mas também abordou a relação familiar de Rachel com
seus pais e irmã mais nova.

Antes de retornarem para Seul, seus pais tinham uma carreira


consolidada nos EUA: a mãe sendo professora regente na Universidade e
seu pai, com uma academia de artes marciais bem sucedida. Eles decidiram
abrir mão de suas carreiras em solo americano e tiveram de se adaptar
quando chegaram à Coreia. Por mais que não seja a mesma coisa, eles
conseguiriam instituir uma boa qualidade de vida para as filhas. A relação
de Rachel com a mãe não é tão próxima, uma vez que sua mãe exige muito
de seu desempenho escolar – o que afeta diretamente nos seus treinamentos
na DB –; por outro lado, a relação dela com o pai é bem afetiva e com a
irmã caçula é com muita comunhão, amor e carinho.

Devido a constante cobrança da mãe de Rachel em relação a seus


estudos, a trainee teve de adaptar sua agenda de treinamento e ensaios:
enquanto seus colegas de empresa ensaiavam o dia inteiro, durante toda a
semana, restava à Rachel apenas os fins de semana para o seu próprio
treino. Devido a essa adaptação – somada ao fato de Rachel não ser sul-
coreana – muitos dos outros trainees não só excluíam Rachel, como
também a perseguiam, praticando intimidação com o discurso xenofóbico.

Esse núcleo da história busca a discutir a toxidade do ambiente de


treinamento que existe na indústria do kpop e que parte não dos superiores,
mas entre aqueles que estão no mesmo nível entre si, diversos jovens em
busca de realizarem um sonho.
Vale ressaltar que, apesar dos CEOs não aparecerem tanto nesse
livro, as atitudes manipulativas e agressivas que eles tomam é apresentada
por meio das humilhações sofridas entre os treinos (no livro é mostrado até
um caso de agressão), professores e treinadores perseguindo em virtude da
aparência física ou cobrando algum desempenho impossível para aqueles
que já estavam a um passo da exaustão física e não aguentariam explorar o
próprio corpo ou voz além de algum limite.

Personagens secundários com altas doses de estereótipos, mas


ainda assim, possíveis e reais.

Além da protagonista Rachel, existem personagens secundários que


ganham destaque no decorrer do livro por terem um brilho impossível de
não se encantar – ou se irritar.

Leah é a irmã caçula de Rachel e nela estão concentradas as


principais características de uma pré-adolescente de 12 anos: apaixonada
por seus artistas favoritos sabe de todas as informações possíveis dos
dramas e redentora das principais fofocas dos famosos da Coreia do Sul;
ela é dona de um otimismo necessário para o desenvolvimento de Rachel,
mesmo que ela seja alvo de bullying na sua escola, seja por ser um pouco
solitária, ser estadunidense e por causa da irmã ser uma trainee de kpop
(por acharem que fosse mentira de Leah da irmã ser uma futura idol, por
exemplo).

O outro personagem de extremo destaque, podendo até mesmo


dividir o protagonismo, é o astro e cantor Jason Lee. Bonito, charmoso e
extremamente talentoso, Jason é um dos maiores nomes da DB e, devido a
sua posição como astro de maior de sucesso de lá, ele tem muitos
privilégios; mas com ele temos cenas das mais deliciosas cenas clichês de
primeiros encontros a conversas profundas do prazer da intimidade e
vulnerabilidade, principalmente por tanto Rachel quanto Jason serem norte-
americanos.

É possível interpretar o privilégio citado como uma das facetas


machistas do kpop, por um lado, as meninas sofrem com uma imensa
pressão estética, perseguição pela maneira como se portam em shows e em
programas de entretenimento; Jason detém a liberdade de ir e vir, como
comer o que bem entende – em um dos capítulos, ele e Rachel estão em
uma gravação, enquanto ele se hidrata o quanto bem entende e consegue
comer quaisquer pratos que deseja, Rachel passa o dia sem ingerir nenhum
líquido e ela sequer pôde solicitar algo para a produção, uma vez que
exigiam que ela passasse por diversas trocas de figurino.

Enfim, ao final daquele dia, Rachel desmaiou por exaustão e


fraqueza. Foi necessário que Jason intervisse – de maneira que
entendessem que era ele passando mal para encerrarem as gravações – e
Rachel foi socorrida.

Não somente desses privilégios Jason consome, mas ele também está
absorto dentro de uma bolha que o impede de ver o quanto Rachel pode ser
sufocada pelo cenário de kpop. Ao desenvolverem sentimentos amorosos
um pelo outro, Rachel não cansa de se questionar o quanto ela terá que
abrir mão, mas também do que ela se prejudicada: enquanto Jason já é
dono de uma carreira consolidada, ela luta para que possa ter alguma
atenção de seus CEOs. E querer assumir algum relacionamento sendo um
astro do kpop é considerado suicídio social; para os homens, pode ser a
entrada para um hiatos na carreira e para as mulheres, aposentadoria na
certa.

“[...] A DB não teria o menor problema em me cortar de programa no


momento em que encontrasse qualquer falha capaz de macular sua
reputação perfeita. E um relacionamento com Jason seria uma mancha
irreversível.

- Acabou, Jason – digo ficando de pé. – Não posso mais fazer isso.
Trabalhei demais pelos meus sonhos para deixar qualquer coisa ameaça-
los. Até você.

Ele me encara, completamente em choque.

- Não acredito na tempestade em copo d’água que você está


fazendo.” (JUNG, p. 252, 2020)

Como demonstrado na citação acima, pode-se ver o quão imerso no


próprio mundo e imunidade, ele também se recusa a tentar enxergar o lado
da própria amiga – independente de olhar a partir da perspectiva dos
próprios privilégios, a recusa partia do abrir sua perspectiva a favor de
Rachel. Por mais que Jason possa ter se redimido em alguns pontos até o
final do livro, essa atitude dele inflamou sua relação com Rachel.
Com Jason, pode-se ver como o machismo afeta a carreira das
artistas femininas no kpop; com Mina, a excelente dançarina herdeira de
uma rede alimentícia, vislumbra-se o puro suco da rivalidade feminina em
uma personagem que foi reunido os maiores e melhores traços de uma vilã
adolescente: maléfica, esnobe e calculista. Mina, assim como Rachel e
Jason, tem consigo o sonho de ser uma grande artista do kpop, ela é
extremamente talentosa, mas a pressão familiar afeta diretamente seu
desempenho como futura artista.

Todo seu esforço em busca de seu sonho artístico reflete na


perseguição praticamente gratuita que faz com Rachel; no livro não se
explora se existe alguma razão ou motivação, apenas a xenofobia por
Rachel ser estadunidense. Essa “encrenca” com Rachel rendeu frutos com
boatos, drogas, filmagens comprometedoras e muito mais apenas para
tentar prejudica-la; mesmo que Rachel tenha tentando criar alguma relação
positiva com ela – afinal, devem trabalhar juntas. Por mais que Mina tenha
demonstrado vulnerabilidade em alguns momentos, principalmente àqueles
em que seu pai a humilha, ela aparenta se recuperar e retorna com mais
raiva para quem estiver ao seu redor, principalmente Rachel.

Kpop descrito por uma ex-idol de kpop X livro lido por uma fã de
kpop

Eu, Ket Lira, sou fã de kpop desde os meus 15 anos; na época, o


estilo estava ganhando espaço fora da Ásia, mas ainda era um mercado bem
mais fechado. Hoje, oito anos depois, é extremamente mágico eu ver
dramas, filmes sul-coreanos e vários grupos musicais conquistando o
mundo. E além de fã de kpop, eu sou uma “bookaholic”, então ver esse
universo apresentado em um livro, escrito por uma das minhas idols
favoritas, foi praticamente um sonho realizado.

Foram expostos no romance diversos assuntos polêmicos conhecidos


para quem já acompanha a indústria do kpop: a repercussão dos mais
absurdos boatos capazes de prejudicar carreiras – mesmo que saibamos que
possa ser mentira; o peso de assumir um relacionamento pode destruir a
carreira de um idol; e, mesmo que tenha sido retratado de maneira
superficial no livro, o cyberbullying e discurso de ódio massacrante em
cima dos artistas; Rachel fora julgada das maneiras mais sexistas e
machistas possíveis apenas e exclusivamente devido a uma roupa que ela
estaria usando em alguma apresentação ou show.

Por sabermos que a experiência de Jessica na música, arte e cultura


do kpop podem considerar os pontos biográficos da história com a estrutura
da indústria do kpop ali exposta: os treinamentos, a competitividade, o ódio
direcionado na internet, mas também o suporte e amor pelos fãs. Acima
disso, o sonho, a dedicação e paixão por cantar, dançar e performar a sua
arte que, pela perspectiva de Rachel, sabemos que era Jessica ali falando,
como se pode ver no trecho que vai encerrar essa resenha:

“Uma onda de calor toma o meu corpo quando lembro por que amo
tanto o K-pop. Como é especial poder compartilhar minha língua e minha
cultura com pessoas do mundo inteiro e fazê-las realmente enxergá-las.
Compreendê-las. Amá-las. Sinto um sorriso surgir, e meu coração está leve
e livre pela primeira vez desde que a turnê começou. Eu me lembro do
motivo de estar aqui. De amar tudo isso.” (JUNG, p. 286, 2020).

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