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ISSN 2175-6945

Comunicação, Oralidade e Criatividade: Uma análise da feira


livre de Nova Cruz/RN1

Renata de Andrade ALVES2


Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN

Resumo

Formada predominantemente pela população rural que escoa os excedentes de sua


produção, as feiras livres são fenômenos socioeconômicos e culturais que estabelecem
interrelações humanas de compra e venda desde a Idade Antiga, permanecendo ativa até
hoje em várias partes o mundo. O presente trabalho tem como objeto de estudo as feiras
livres, especialmente a feira de Nova Cruz, município do Agreste potiguar.
Especificamente, a pesquisa objetivou analisar quais as estratégias de comunicação oral
usadas pelos feirantes novacruzenses para atrair clientes, considerando a criatividade, os
aspectos relacionados à geração de valor e, principalmente, o discurso publicitário. Para
tanto, analisou-se as principais características existentes nas feiras livres através de pesquisa
etnográfica, bem como levantamento bibliográfico.
Palavras-chave: História da Mídia Sonora; Feiras livres; Oralidade; Criatividade;
Discurso.

1. Introdução
As feiras livres são fenômenos econômicos, sociais, culturais e essencialmente
comunicacionais, construídas para haver interrelações. Normalmente as feiras livres são
formadas pela população rural que vende o excedente da sua produção em valores mais
baixos que os encontrados nos mercados “convencionais”.
Com uma aparente estrutura desorganizada e abarrotada, a feira remonta a aspectos
da Idade Média, sendo uma inversão de organizações comerciais modernas, como
shoppings centers, super e hipermercados. Não apenas a sua organização, mas também a
sua comunicação é de um ambiente que foge do atual contexto mercadológico formal, pois
há uma predominância da oralidade e da informalidade como formas de cativar
consumidores, deixando de lado os aspectos visuais e tratamentos sonoros característicos de
propagandas, além da predominância do analógico, indo de encontro à era digital
contemporânea.

1
Trabalho apresentado no GT História da Mídia Sonora integrante do 12º Encontro Nacional de História da Mídia.
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Graduada no curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda, UFRN, email: renataandrad@outlook.com.

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Diante da importância da oralidade nas feiras livres, este trabalho objetiva analisar
quais as estratégias de comunicação oral usadas pelos feirantes da feira livre de Nova
Cruz/RN para atrair clientes. Entretanto, se faz necessário ressaltar que outros tipos de
comunicação e de estratégias também são levados em consideração nessa análise por
contribuírem com o protagonismo da oralidade, como é o caso da comunicação visual, da
criatividade e dos conceitos mercadológicos de geração de valor e fidelização, o que reforça
a relação com estratégias tradicionais presentes no campo do Marketing e da Publicidade.
Para a obtenção desses dados foi realizada uma pesquisa de campo na feira de Nova
Cruz/RN. A pouca oferta de publicações acadêmicas sobre esse objeto de estudo
transformaram as observações e as entrevistas em campo no principal fornecedor de dados
acerca dos usos da comunicação oral e da criatividade no contexto dessa feira livre. Busca-
se, portanto, aliar os conceitos bibliográficos, levantamentos históricos e os estudos feitos
em campo.

2. Feiras livres e sua multifuncionalidade


2.1 Aspectos Históricos
Firmada entre gregos e romanos na Idade Média, materiais históricos sugerem que o
alicerce desse tipo de atividade comercial existiu na Suméria, por volta de 3.000 a.C.
Resistindo ao crescimento de mercados contemporâneos, as feiras mantêm seu tipo de
comercialização em formato semelhante ao de seus primórdios: troca de produtos,
ocorrência periódica, diversos pontos de venda no mesmo espaço e grande fluxo de pessoas
(SALES; REZENDE; SETTE, 2011, p. 2).
No Brasil essa atividade foi trazida pelos lusitanos e existe desde o período
Colonial, tendo suas primeiras manifestações em solo nordestino. Desta forma, as feiras são
grandes responsáveis pela organização da cultura do país, sobretudo no Nordeste, sendo
uma das protagonistas da tradição popular local. Essas feiras livres nordestinas, devido à
sua amplidão e diversidade, se inserem em vários aspectos da expressão dessa cultura, não
só absorvendo características locais como ajudando a mantê-las vivas, a exemplo das
expressões populares, dos rituais, contos, festas, tradições alimentares, performances e da
literatura oral, diz Durval Muniz em seu livro A Feira dos Mitos (2013).

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As feiras, de acordo com Vedana (2004 apud SALES; et al., 2011, p. 2), foram
embriões de concentrações urbanas por todo o mundo e estão diretamente relacionadas à
fixação do homem à terra. No Nordeste brasileiro não foi diferente. Notadamente no agreste
e no sertão, muitas cidades surgiram como povoados em decorrência das “feiras de gado”
que, ao crescerem, acrescentavam novos produtos para troca e venda e criavam maior fluxo
de pessoas. Nova Cruz é um exemplo disso: devido ao rio Curimataú que margeia o
município, muitos vaqueiros usavam suas margens para montar acampamento enquanto a
região lhes servia de rota. Posteriormente esses boiadeiros fixaram moradia, criando um
ponto de encontro para outros peões. O folclorista potiguar Câmara Cascudo fala sobre as
feiras de gado:
Câmara Cascudo (1970), afirmara que os “velhos ‘currais de gado’ foram os
alicerces pivotantes das futuras cidades” (p.84) que mesmo se configurando como
tais continuaram a estabelecer ligação direta com o campo, exercendo importante
papel na vida dos seus habitantes. (CASCUDO,1970 apud LIMA, SAMPAIO 2009,
p. 7).

2.2 Relação Varejo-Cliente


Dois importantes tópicos da Administração de Marketing devem ser levados em
consideração ao se falar em feiras livres: geração de valor e relacionamento com o cliente.
A geração de valor está relacionada ao tripé produto-preço-serviço, sendo diretamente
proporcional às virtudes do atendimento e do produto e inversamente proporcional ao
preço. Já o relacionamento com o cliente se associa à fidelização, o qual além de estratégia
mercadológica é traço cultural e embasa a intimidade no trato feirante-cliente, sendo
importante para a personalização do atendimento, segundo Kotler e Keller (2012). Viana,
Filho e Moreira (2010, p. 108) dizem que esse contato é quase familiar e reforçam a falta de
intermediação de máquinas no contexto da feira, tornando tudo pessoal. Bernardino (2015)
disse em sua dissertação:
[...] Encontram-se as relações de fidelidade, pois, na feira, o ato de comprar quase
sempre está associado ao de tocar, conversar, experimentar, convencer e ser
convencido. Dessa maneira, a feira é muito mais que uma forma de comércio, nela
se firmam relações de confiança, solidariedade e satisfação pessoal, que,
consequentemente, convergem para o desenvolvimento de uma fidelidade.
(BERNARDINO, 2015, p. 98).

Essa capacidade de se relacionar e sincretizar é uma característica típica dos


brasileiros (PEREZ, 2014, p. 297). A informalidade e intimidade criam áreas e valores

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relacionados à alegria, transformando as feiras em um ambiente animado, que é feito pelo e
para o povo. Ainda de acordo com a autora, a afetividade do nosso trato é uma herança dos
africanos e transborda, inclusive, para a nossa fala.
Nesse cenário, a comunicação também tem estratégias mercadológicas típicas da
feira. Kotler e Keller (2012, p. 492) falam que enquanto os varejistas têm acesso a diversas
técnicas de comunicação para gerar lucro (utilizando a publicidade nas mais variadas
plataformas e suportes), nas feiras a ausência da comunicação visual e digital denota
características pré-modernas e revela um mercado que é o inverso de comércios
contemporâneos. A ausência de verba e o contexto social dos feirantes lhes dão uma única
solução: usar a comunicação popular a seu favor, de forma eficaz, para aumentar as vendas
e os lucros. Além disso, pode-se acrescentar:
A cultura popular se apresenta em meio a situações específicas de manifestações
marginais ao sistema de comunicação convencional [...]. Assim, a cultura popular
cria expressões próprias de comunicação, sistemas típicos para interrelações
específicas do contexto de determinadas classes sociais marginais[...] (VIANA;
FILHO E MOREIRA, 2010, p. 97)

2.3 Comunicação, Oralidade e Criatividade


Na conjuntura pré-moderna e marginal das feiras livres a comunicação oral
predomina e se manifesta de maneira contextual e plástica, revelando um ambiente não-
alfabetizado. Não obstante, a oralidade é o modo mais eficiente de se divulgar para os
clientes e atraí-los às sua(s) barraca(s).
Em Bakhtin (1993, p. 132-133), pode-se encontrar uma descrição do tipo de fala
presente nas feiras europeias da Idade Média. O autor diz que a linguagem usada era
grotesca, carnavalesca, sedutora e despertava o riso, configurando um tipo especial de
comunicação humana: a linguagem “familiar”, diferente da usada pelos nobres e pela
Igreja. O cenário atual das feiras não é tão diferente dessa narração: as falas são informais,
repletas de gírias, expressões e ditos populares, os vocativos são diversos (“princesa”,
“freguês” e “amigo” ilustram apenas alguns exemplos) e a imposição e o volume da voz
permitem destaque em meio ao ruído sonoro presente na feira.
Tendo o Nordeste como pano de fundo, podem-se acrescentar as músicas, a poesia e
a contação de história como um complemento à “boa fala” dos feirantes. Vedana (2004
apud SALES; et al., 2011, p. 4) diz que essa forma de se comunicar com os clientes gera

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um espaço lúdico que favorece a feira, lhe dando vantagem competitiva diante de
supermercados e outros estabelecimentos comerciais varejistas. Essa “boa fala”:
[...] tenta apresentar o produto, chamando os fregueses, mostrando intimidade com a
mercadoria e com os clientes. Elas vão determinar o sucesso da venda da
mercadoria (VIANA; FILHO E MOREIRA, 2010, p. 100).

Para Pierre Lévy (1995, p. 47), esse tipo de comunicação é resquício de uma
“oralidade primária”. O autor classifica a oralidade em primária e secundária, sendo a
primeira a comunicação antes da adoção da escrita e a segunda a comunicação relacionada
a uma regulamentação da palavra, tal qual conhecemos hoje. É importante ressaltar que a
oralidade primária persiste por nos comunicarmos, muitas vezes, independentemente da
escrita e dos meios de comunicação eletrônicos.
Em uma sociedade oral primária a palavra tem, sobretudo, a função de manter a
memória social, sendo esta uma das explicações para o surgimento de mitos. A memória de
um oralista primário, portanto, está repleta de músicas, gestos, danças, personalizações e
habilidades técnicas, tendo rimas e ritmos como marcos mnemônicos (Ibid., p. 51). Essas
características, inclusive, são largamente utilizadas nas propagandas, principalmente
aquelas com forte apelo varejista, inseridas no mesmo tipo de mercado que as feiras livres.
Por sua vez, o suíço Paul Zumthor (2000, apud. PEREIRA, 2003), em seus estudos
sobre a oralidade e a voz, fala que seu interesse não é na palavra oral em si, mas sim na voz
humana. Segundo o autor, a voz implica em um corpo, que implica em participação e,
consequentemente, em presença. Para ele, o termo “oralidade” poderia ser substituído por
“vocalidade”, palavra essa que mostra a historicidade e a determinação dentro de um plano
físico, psíquico e sociocultural. Pode-se acrescentar à “vocalidade” o comprometimento
com o corpo, a teatralidade e a percepção sensorial, o que o autor chama de performance.
Portanto, as relações de troca linguística interpostas não só pela oralidade e
sonoridade como também por um conjunto maior de comunicação (imagens, sons,
produtos, mercadorias, gestos) revelam uma identidade própria das feiras livres, repleta de
impessoalidade, contato físico, expressões culturais e principalmente, criatividade.
José Predebon (2010), em seu livro “Criatividade: abrindo o lado inovador da
mente”, afirma que o poder criativo é inato ao homem e algumas pessoas o têm acima da
média, porém o meio no qual ele está inserido pode ser mais relevante para o

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aprimoramento de sua criatividade. É o que ele chama de “engajamento total circunstancial
para o exercício da criatividade”, ou seja, a falta de conhecimento técnico administrativo
por parte dos feirantes não necessariamente limita o seu potencial criativo se eles estiverem
abertos para apreender o que o ambiente lhes oferece. Assim sendo, eles precisam de ideias
novas para não ser apenas mais um vendedor em meio a tantos outros que oferecem o
mesmo produto com preços semelhantes. Sobre isso, o autor fala:
Quando digo “além da média”, estou lembrando o princípio, já defendido aqui, de
que criatividade é uma característica da nossa espécie. Como tal, ela está presente
em nosso comportamento normal, em um nível às vezes até imperceptível para a
maioria [...]. Portanto, o que chamamos de comportamento criativo é uma forma de
exercer o potencial imaginativo em um nível que, por estar acima da média, se torna
evidente (PREDEBON, 2010, p. 18).

3. Nova Cruz, a Rainha do Agreste


Localizada na microrregião do Agreste Potiguar, às margens do rio Curimataú e a
93 km de Natal, Nova Cruz possui extensão territorial de 277,658 km² e tem, de acordo
com estimativas do IBGE3 (2017), 37.695 habitantes. Com PIB per capita de R$ 10.973,47
(IBGE, 2015), a cidade fica em primeiro lugar no ranking4 dos municípios da microrregião,
destacando-se as atividades agropecuária e industrial como principais geradoras de valores.
Devido a isso, o desenvolvimento do comércio novacruzense e os serviços oferecidos na
cidade (hospitais, clínicas e escolas particulares, por exemplo), fazem com que Nova Cruz
se caracterize como um centro de zona tipo B5, segundo o IBGE.

3
IBGE. Cidades. IBGE, 2017. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rn/nova-cruz/panorama> Acesso em: 02
de abril de 2018.
4
IBGE. Pesquisas. IBGE, 2017. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rn/nova-
cruz/pesquisa/38/47001?tipo=ranking&indicador=47007> Acesso em: 02 de abril de 2018.
5
De acordo com o livro Regiões de Influências das Cidades (IBGE, 2007, p. 13), um Centro de Zona B tem cerca de 23
mil habitantes e exerce influência local, tendo aproximadamente 16 relacionamentos.

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Figura 1: Localização de Nova Cruz no Rio Grande do Norte


Fonte: IBGE. Mapa trabalhado por Renata Andrade, 2018.

Pode-se dizer que a atividade comercial estudada iniciou-se com os boiadeiros que
fixaram moradia em Nova Cruz e precisavam tanto comercializar suas produções agrícolas
quanto se abastecer de outros produtos. Contudo, o que fez a feira crescer e se tornar
famosa foram as benfeitorias existentes no município, como as diversas usinas de
descaroçamento e beneficiamento de algodão e a implantação da linha ferroviária da
empresa inglesa Great Western of Brazil Railway, com vagões para passageiros e cargas
que faziam a rota Recife – João Pessoa – Natal (e vice-versa). Deste modo, Nova Cruz
recebe a alcunha de “Rainha do Agreste” tamanha a influência regional exercida na
microrregião e à importância do seu comércio para os moradores locais e de municípios
vizinhos.

Figura 2: Feira livre de Nova Cruz, na Rua Grande, anos 1940


Fonte: <http://www.novacruz.rn.cnm.org.br>. Acesso em 17 de abril de 2018

Devido à crise algodoeira que afetou todo o Nordeste na década de 1980, as usinas
de beneficiamento de algodão de Nova Cruz não resistiram e foram desativadas, gerando

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um intenso êxodo rural. Nesse contexto, o comércio encontrava grande oferta de mão-de-
obra e demanda por consumo, tornando o bairro Centro a maior área de comercialização e
transformando a feira livre em algo tão grande e pujante que ia de uma extremidade a outra
do bairro (LIMA, 2010, p.101). Por conseguinte, em 1991, aspirando sanar os problemas
gerados pela falta de espaço propício para uma feira daquela magnitude, o então prefeito
Targino Pereira decidiu transferi-la do Centro para o bairro São Sebastião, na parte alta da
cidade. Essa proposição do poder público municipal visava não somente a resolução de
falhas, mas também ações de viabilização para o aumento da feira livre (Ibid., p. 111).
Atualmente a feira acontece em torno do Mercado Público Municipal Antônio Alves
Flor, território fixo da feira livre de Nova Cruz, contendo boxes, galpões, restaurantes,
pequenas lojas e um enorme pátio aos fundos. Às segundas-feiras a parte móvel da feira é
montada e o comércio dura, em média, 12h (das 04h às 16h).

Figura 3: Feira livre de Nova Cruz atualmente


Fonte: Thércio Leite

4. Uma análise da feira livre de Nova Cruz


Dado o caráter participativo da pesquisa etnográfica, foi possível identificar nas
visitas à feira de Nova Cruz características socioculturais, aspectos da comunicação, da
oralidade, o vínculo criado e apreciado entre os feirantes e os fregueses e as particularidades
das relações que acontecem dentro da feira. Esses levantamentos etnográficos aconteceram
entre os meses de fevereiro e abril de 2018. Inicialmente, houve o reconhecimento do
campo, das interações entre feirante e freguês e, por fim, as entrevistas semiestruturadas
com amostra por conveniência – método de pesquisa que se mostrou mais adequado e
viável para atender aos objetivos inicialmente estabelecidos.

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Foram entrevistados sete feirantes de diferentes setores da feira, sendo eles:
Aparecida Lima da Silva (38 anos), Airton Lima da Silva (18 anos), Lucinaldo (41 anos),
Eliane (42 anos), Cláudio (28 anos), Jhow (32 anos) e Natanael (67 anos).
4.1 Feira livre, um espaço sinestésico
Para entender a predominância e a importância da comunicação oral e da sonoridade
dentro da feira livre, é preciso entender também que a sensorialidade e a sinestesia norteiam
esse espaço. Perez (2014, p. 296) afirma que a sinestesia é um traço pós-moderno
representativo na sociedade e que tem forte expressão na cultura nacional. A autora diz que
nós brasileiros gostamos de nos cumprimentar tocando o outro, que a diversidade da fauna e
flora impulsiona a apreensão de aromas e sabores, que os variados estilos musicais guiam o
nosso modo de vida e que a multiplicidade das paisagens e das artes visuais são espetáculos
para os olhos.
A informalidade desse mercado, portanto, é o que impulsiona a sinestesia e permite
que coexistam diferentes estímulos para os mesmos sentidos, fazendo com que a feira não
se resuma a uma mera troca de produtos e se transforme, de fato, em uma experiência.
Sendo a feira livre um ambiente predominantemente oralista primário, a
comunicação visual escrita era praticamente inexistente. À vista disso, foi percebido que o
visual se restringia à apresentação dos produtos, à organização das barracas e, em alguns
casos, ao desempenho do feirante. Eliane, vendedora de frutas e raízes, disse que costuma
organizar os produtos visando destaque perante os clientes e contou durante a entrevista
qual o seu estilo de organização:
Eu costumo é… sempre separar as mercadoria [sic]… colocar fruta e colocar o
restante de raízes ((apontando para os lados opostos da barraca)) [...]. Deixar tudo
coloridinho… eu acho bonitinho assim, tudo arrumadinho colorido, sabe… bem
organizado (entrevista concedida em 30 de abr. de 2018).

Além das cores, outro aspecto visual explorado estava relacionado à aparência dos
produtos. Por exemplo, Aparecida, com quase trinta anos de trabalho em feiras, revelou que
ao organizar sua banca, as verduras mais bonitas ficam por cima daquelas consideradas
feias. Nesse ponto, é interessante observar que a fala do feirante conduz a visão do freguês,
como foi dito por Airton, vendedor de verduras e raízes:
[...] sempre atendendo muito bem para ele ver que a gente trata muito bem ele
[sic]… “olha aqui nossa mercadoria toda passada e selecionada”… aqui ((apontando

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para a banca)) foi o menino que despejou e não ficou muito (bonito), tá certo?
(entrevista concedida em 30 de abr. de 2018).

Ainda usando Airton como exemplo, o jovem revelou que o contato físico, principal
estímulo ao tato, também se mesclava com sua vocalidade: “sempre apertar a mão, assim,
dos clientes... Dá [sic] uma batidinha assim no ombro... ‘tudo bem, bom dia’... [...] aí
pergunto ‘posso ajudar?’ e tal [...]” (entrevista concedida em 30 de abr. de 2018). Além da
aproximação física, a interação direta com o produto também é uma incitação tátil, além de
um possível diferencial de mercado.
Contudo, desde as primeiras visitas ao campo observou-se que a audição é,
provavelmente, o sentido mais estimulado no que tange às estratégias comunicacionais
adotadas pelos feirantes. A oralidade era a principal forma de comunicação usada por
vendedores como modo de fazer propaganda e/ou manter um vínculo pós-venda, seja
através de brados, assobios, músicas ou conversas amigáveis.

Figura 4: Conversa entre feirante e fregueses.


Fonte: Thércio Leite

Diante disso, vale ressaltar que dos sete entrevistados apenas um feirante alegou que
não usa a voz como meio de promoção, enquanto todos os outros afirmaram se valer de
gritos para destacar-se. Aparecida afirmou que no ambiente competitivo no qual está
inserida “quem grita mais alto é quem vende… tem que ser esperto” (entrevista concedida
em 30 de abr. de 2018), evidenciando a importância da imposição da voz como forma de se
sobressair.
Além da sobreposição de vozes, a oralidade era fortemente explorada pelos feirantes
nos momentos de conversas com os clientes. Sempre reiterado pelos entrevistados, a

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simpatia e a boa educação se mostravam essenciais na fase mais próxima entre vendedor e
freguês, sendo capaz de gerar bons laços de amizade. O senhor Natanael, de sessenta e sete
anos, é feirante há quase seis décadas e, com toda sua experiência, narrou como acredita
que deve ocorrer uma conversa entre vendedor e freguês:
[...] a gente tem que hoje, trabalhando na feira, tem que tratar bem e toda vida isso
aí existiu, viu… toda vida isso aí existiu… esse tipo de ignorância não dá pra
ninguém não[...]. É chegar qualquer um cliente e eu chamar ele a atenção... se
quiserem me comprar me compram, se não quiser [sic], a amizade é a mesma… não
tem esse negócio de ficar com ignorância não. Pode ser quem for… pode ser preto,
pode ser branco, pode ser quem for… pode ser velhinha, novo… tudinho, é tudo
uma coisa só (entrevista concedida em 30 de abr. de 2018).

4.2 “Promoção, preço baixo e qualidade”: o discurso publicitário na feira livre


Ao assumir que a oralidade é a principal forma de comunicação no local estudado e
que a sua principal função é a viabilização das vendas, se fez necessário uma análise mais
profunda do discurso e de suas aplicações como estratégia mercadológica.
Ainda que inserida em um contexto não alfabetizado, conforme mencionado
anteriormente, foi possível observar na feira novacruzense características do modelo
apolíneo de texto publicitário, aquele que visa convencer o receptor através da
racionalidade discursiva (CARRASCOZA, 2004), e, consequentemente, do discurso
aristotélico deliberativo, aquele que visa convencer o outro a realizar uma ação futura
(CARRASCOZA, 2003, p. 38). Considerando as etapas básicas do discurso deliberativo
(exórdio, narração, provas e peroração), durante as análises das entrevistas algumas falas se
sobressaíram por terem diversos pontos de concordância com essas características
discursivas.
Sendo a primeira etapa do discurso aristotélico o exórdio, aquela onde há a captação
da atenção do receptor, vários entrevistados afirmaram que iniciam a abordagem com um
cliente usando vocativos, como “amigo (a)”, “minha querida” e “minha linda”.
Já na segunda etapa, onde há a apresentação dos fatos, a narração se baseava
predominantemente na divulgação dos produtos, sendo elencados todos aqueles que eram
vendidos na barraca. As provas, terceira etapa, são demonstrativas e servem para despertar
a paixão no receptor e se apresentavam nas falas dos feirantes através da divulgação de
promoções e da exaltação das características dos itens à venda. Jhow exemplificou isso:

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[...] é gritar mesmo… “é um real verdura”, “seis pacotes por cinco (reais)”, “é
orgânico”, entendeu… eu amostro [sic] que a mercadoria não é ruim [...] digo que o
frango é abatido na hora, né, que tá quentinho, frango limpinho, tem coxa e
sobrecoxa (entrevista concedida em 30 de abr. de 2018).

A última etapa serve como uma chamada para ação. A peroração é o momento no
qual o receptor se encontra apto a fazer um julgamento, nesse caso tomar a decisão de
realizar ou não uma compra. Uma amostra disso é a fala de Airton, onde ele revelou usar a
seguinte frase durante a feira: “promoção, preço baixo e qualidade que você encontra na
minha banca… a economia que você procura”. Nesse caso, apesar de estar em uma
sequência invertida, a peroração está no trecho “você encontra na minha banca”, pois é feita
uma narração daquilo que o cliente procura e em seguida vem a confirmação de que está
tudo ali, na frente do cliente, cabendo a ele apenas o veredito.
Outro aspecto marcante no discurso deliberativo largamente utilizado na feira de
Nova Cruz corresponde às afirmações e repetições. Carrascoza (2004, p. 58-59) diz que a
propaganda não pode deixar dúvidas e que seu objetivo é aconselhar o destinatário para
conquistar a sua adesão, e por isso as frases precisam ser afirmativas e imperativas, a fim de
que fique clara a mensagem que está sendo passada. Nessa linha, as repetições além de
terem a função de reiterar a mensagem, devem incutir essas informações na mente do
destinatário.

4.3 Geração de Valor


Durante as entrevistas alguns feirantes ressaltaram a importância das boas amizades
cultivadas com os clientes. Nessas situações, observou-se que o discurso deliberativo e a
manipulação deram lugar a conversas em tons mais amenos, diálogos esses capazes de
permitir a personalização de serviço e de ofertas, coisa que, de acordo com Kotler e Keller
(2012), gera vínculo afetivo e pode resultar em fidelização. Com isso, pode-se entender que,
ao fazerem divulgação para atrair mais fregueses, os feirantes estão mirando também na
fidelização e não apenas no ato da compra.
Contudo, para fidelizar clientes é necessário que haja uma percepção de valor
positiva, relacionada ao tripé preço-produto-serviço, como já citado. Quanto ao
atendimento, de todos os entrevistados apenas Aparecida não falou sobre a simpatia e a boa

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educação, enquanto os outros trataram esses aspectos como fundamentais para a geração de
valor. Sobre a excelência no atendimento, Eliane disse:
Ah, simpatia… muita simpatia. Tem que tá com um sorriso de um canto a outro…
durante a feira toda… até… quatro da tarde é assim. [...] Mesmo que esteja
terminando… já cansada, exausta… mas tem que atender bem. [...] Aqui graças a
Deus eu atendo meus clientes bem… minha freguesia é muito simpática. (entrevista
concedida em 30 de abr. de 2018).

Sabendo, então, que o custo do produto é levado em consideração pelo cliente no


que tange a percepção de valor, se tornou fácil entender o motivo que leva os feirantes a
divulgarem predominantemente os preços de suas mercadorias e oferecer diversos
descontos como forma de sedução. Todos os entrevistados falaram sobre promoções e preço
baixo, afirmando que isso era essencial para agradar o cliente, sendo vantajoso tanto para
quem vende quanto para quem compra. Sobre isso, destaca-se a fala do senhor Natanael
acerca das condições especiais oferecidas:
Dou [...] que é pra (o cliente) vir, né… porque se for explorar ele não vem, não vem
não. Às vezes eu peso, às vezes bem pesado, passando no quilo e aquilo ali eu já
deixo pra lá, que é pra o freguês ficar chegando na pessoa… “não, mas você tirou os
outros (produtos)?”... “não, leva… leva, pode levar”. Aquilo ali não bota a gente pra
trás… chama mais a gente [sic] a atenção da pessoa, né… (entrevista concedida em
30 de abr. de 2018).

Diante disso, entendeu-se que na feira a interação gira em torno da geração de valor
e da fidelização, mesmo que isso não seja consciente por parte dos feirantes. A expressão da
criatividade está, justamente, nas formas de empreender e inovar no que tange a relação
com os clientes e, consequentemente, na otimização das vendas e dos lucros.

5. Considerações Finais
A realização do presente trabalho possibilitou uma análise das estratégias
comunicacionais adotadas pelos feirantes como forma de se promover, com foco na
comunicação oral e na análise do discurso, passando por conceitos do marketing como a
geração de valor e a fidelização.
Para tanto, em um primeiro momento, foi feita a identificação das particularidades
históricas, sociais, econômicas e comunicacionais das feiras livres, entendendo como são as
relações entre feirante e freguês e onde a criatividade se encaixa nesse contexto, além de
apresentar características da comunicação oral. Nesse ponto, foi possível inferir que o

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caráter intimista e descontraído da feira livre é, provavelmente, um dos pontos mais
marcantes das feiras ao redor do mundo.
De uma maneira geral, levando em consideração a oralidade primária de Lévy
(1992) e o contexto não alfabetizado da feira, apesar da falta de conhecimento teórico
acerca do Marketing, da Administração e da Publicidade, as estratégias mercadológicas
adotadas pelos feirantes em muito se aproximam da realidade do mercado tradicional.
Embora a comunicação visual seja precária e a comunicação digital seja inexistente, o uso
da oralidade, da vocalidade, do discurso deliberativo e da manipulação, a associação de
músicas e rimas, o bom atendimento e a oferta de promoções são características básicas do
varejo adotadas também pelos feirantes.
Percebeu-se, ainda, que embora inseridos em um ambiente competitivo, os feirantes
acreditavam ter seu “jeito próprio” no que tange a criatividade e inovação para conquistar
os clientes. Isso revela que apesar desse pano de fundo, eles não estão à procura de serem
melhores que os outros, estão procurando a sobrevivência lado a lado (literalmente) dos
seus concorrentes, onde, em alguns casos durante as visitas, notou-se uma grande amizade
entre feirantes vizinhos.
Em face disto, não se sabe ao certo qual o futuro da feira livre de Nova Cruz, mas
com esse trabalho foi possível perceber que os feirantes se empenham para conquistar
vendas e, sobretudo, clientes, investindo em produtos de qualidade com preços baixos além
de uma boa comunicação e um bom atendimento.

REFERÊNCIAS

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