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nova série

#07
Revista de Psicanálise

Tudo, imediatamente maximal, e que se reivindica como um direito à


satisfação. Nesse contexto, pode-se perguntar

François Ansermet se o tempo hiperativo não é também um tempo


fora do tempo, um tempo difratado em múltiplos
O que caracteriza o simbólico no Século XXI, e sistemas de gozo que implicam objetos, gadgets
inscrever-se numa nova relação ao tempo: um prometedores de um gozo imediato e desmulti-
tempo do tudo, tudo imediatamente, que está plicado: finalmente, um corpo aparelhado sobre
junto a uma hiperatividade generalizada e uma sistemas externos, às vezes virtuais, sistemas
atenção dispersa, difratada, fora do tempo. Em artificiais a serviço de um gozo que termina por
ressonância com esse tempo hiper-moderno, transbordar o sujeito.
não é surpreendente que a hiperatividade e o
déficit de atenção tornem-se distúrbios predo- Uma busca insaciável
minantes, paradigmáticos do mundo tal com ele O que faz o sujeito correr mais rápido do que o
se torna. Resta para a psicanálise pensar uma tempo? Atrás de que ele corre? De que procura
conduta do tratamento capaz de receber um su- se trata? O hiperativo é submetido à pressão do
jeito levado na precipitação do tempo. objeto perdido, perdido desde sempre1. Através
dessa insaciável exigência2 se manifestam as
A clínica e o mundo hiperativo múltiplas vias que o sujeito toma emprestado
Uma cultura da hiperatividade e da atenção so- para a recuperação desse mítico objeto per-
brestimulada predomina nos múltiplos registros. dido, no coração de uma suposta experiência
A hiperatividade é valorizada. A atenção se dis- de satisfação. Mas essa terá verdadeiramente
persa no zapping. Estamos no reino da ligação acontecido, ou seria uma retro-projeção sobre a
permanente sobre os dispositivos dessubjeti- base de uma insatisfação? Se há uma insatisfa-
vantes, entre telefones portáteis e sistemas de ção é porque poderia haver aí uma satisfação. E
comunicação virtual que chamam sem parar a eis o sujeito correndo atrás dela.
atenção sobre outra coisa, sem saber aonde Lacan nos convida a explorar as vias dessa
tudo isso irá levar. busca, em particular na leitura que dá nos Se-
Quais as consequências para a clínica? É pre- minários XVII e XVIII3, onde cada vez mais uma
ciso que realizemos que existem sintomas que variedade de objetos modernos se articula ao
não podemos destacar do mundo simbólico no “mais de gozar” – objetos que tomam corpo
qual se produzem sintomas que ultrapassam o daquilo que foi “cortado de mim”, para retomar
sujeito, que de alguma maneira não lhe perten- sua expressão no Seminário sobre a Angustia4.
cem. Sintomas que finalmente não são sinto- Trata-se, portanto, de “recuperar” algo perdido:
mas, mas sim sistemas de gozo, nos quais o eis aí aquilo pelo qual o hiperativo é movido, no
sujeito se aliena em eco à cultura dentro da qual qual a atenção, voltada para aquilo que não é,
se encontre imerso, submerso. 1 LACAN, Jacques (1970) O Seminário, livro 17: o avesso da psi-
canálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
O Tudo, imediatamente constitui o próprio do 2 Ver a esse propósito a excelente discussão de Elizabeth Leclerc-
-Razavet, L’enfant e les objets de la civilisation, Pychanalyse et politique, Le
mundo contemporâneo, que é aquele do direi- Blog de l’ Ecole de la Cause freudienne, 13 mai 2010.
3 Com aponta precisamente Elizabeth-Leclerc-Razavet, op.cit
to a um gozo sem limite, sem demora, sempre 4 LACAN Jacques. (1962-1963) O Seminário, livro 10: a angústia.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

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se perde nessa busca. É assim que se mergu- pode-se opor de um lado um gozo-excesso,
lha no tempo do tudo, imediatamente, o tempo caracterizado pelo transbordamento, pelo ultra-
hiperativo, conectado a múltiplos objetos “mais passamento total de toda regulação, e de outro
de gozar”. lado um gozo-satisfação, onde se constitui um
O que está no coração da hiperatividade e do novo estado de equilíbrio no desequilíbrio, cada
déficit de atenção, é, com efeito, a entrada em vez mais coercitivo e custoso. Pode-se aproxi-
jogo do “mais de gozar”, através do dispositivo5 mar a exigência desse gozo-sastisfacao ao que
do objeto, para arrolhar o buraco da angústia. rege o mundo hiperativo contemporâneo, no
fora-do-tempo do tudo, imediatamente.
Escapar do tempo
Trata-se de escapar à lei do tempo. Escapar
do tempo é escapar da perda: é isso o tudo, A psicanálise com reinvenção do
imediatamente. A hiperatividade anula o tem- tempo
po, no projeto de conservar tudo: não somente O fazer de uma psicanálise em face desse tudo,
que nada se perca, mas de tornar possível uma imediatamente, toca o manejo do tempo, como
recuperação do que tenha sido perdido; recu- pivô de um tratamento da hiperatividade. Para
peração de um gozo perdido através da colo- sair da hiperatividade trata-se de fato de reali-
cação em função do gadget como objeto mais zar uma espécie de reentrada no tempo. O tudo,
de gozar. A palavra “recuperação”, utilizada por imediatamente, hiperativo é sem atenção, sem
Lacan, é interessante porque equivoca; recupe- antecipação, sem passado: é um tudo, imedia-
ração em francês significa de um lado se recu- tamente, sempre no presente. Na hiperatividade
perar, se refazer, e de outro a recuperação de o tempo está mal posto. Talvez seja daí também
dejetos. Quer dizer que a ideia de recuperação que venha o distúrbio de atenção. Se estamos
põe em jogo de um lado o objeto como dejeto, e apenas no imediato, eis-nos sem passado e
do outro o objeto como precioso. Podemos as- sem futuro. O hiperativo está num imediato
sim passar da causa do desejo ao dejeto, sem permanente. Um tempo ilógico, um tempo sem
transição: lógica temporal. O hiperativo está sem tempo
é próprio ao gadget ter essa característica. Com lógico, ou melhor, em um tempo lógico reme-
o gadget, queremos escapar do tempo recrian- tido ao instante de ver. Está num “não tempo/
do sempre um tempo renovado através da novi- não lugar”7 no qual vêm se engolfar os objetos
dade do objeto. Mas é uma corrida infinita, onde da civilização. O mercado se precipita nesse
dois modos de recuperação impossíveis se con- instante eternizado, a serviço de um “mais-de-
jugam, se amarram em torno de um “mais-de- -gozar”8cada vez mais efêmero.
-gozar” que obriga, onde não há mais do que Esses objetos “mais-de-gozar” são objetos sem
a exigência do tudo, imediatamente, que não historia, permutáveis ao infinito. No entanto, no
cessa de impor suas repetições. Como o indi- um por um, eles são tomados em uma história
ca Jacques-Alain Miller a propósito do gozo,
6
a de cada sujeito que sonha com seus objetos,
5 Poderíamos desenvolver a relação de objeto mais de gozar que inventa cenários. É a fábrica do cotidiano,
“plus-de-jouir”. Naquilo que Giorgio Agamben define como o dispositivo,
que poderia ter um valor subjetivante, mas que sob a pressão do mais- 7 Hanna Arendt fala de um “pequeno não-espaco-tempo”, [...]
-de-gozar e da satisfação a qualquer preço, todos azimuts, acaba por ser que não pode ser transmitido ou herdado do passado”. Hanna Arendt, A
desubjetivantes; veja-se Giorgio Agamben, Les dispositifs, Payot, Rivages, crise na cultura, Folio, Essais, Paris, 2007, p.24.
Paris, 2009. 8 LACAN Jacques.(1973) “Televisão”. In: Outros escritos. Rio de
6 MILLER Jacques-Alain, curso de 14.01.2009. Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.

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sua invenção9, além daquilo que é imposto. O introduzir o momento de concluir como corte,
dispositivo pode ser alienante, dessubjetivan- a ser realizado no instante. O instante, quando
te10, mas pode também se integrar às estraté- não é da ordem do tudo, imediatamente , intro-
gias do sujeito, segundo seu desejo, no um por duz uma descontinuidade na temporalidade, um
um. A linha de divisão se passa entre o que é corte na circularidade da hiperatividade, como
imposto e o que é inventado, entre o que está um momento de acordar.
conectado a um sistema de gozo que constran- O instante de corte vai contra a continuidade
ge e o que disso se desconecta em função do do gozo. Eis o que é o principio do tratamento
sujeito. Cada um pode utilizar o dispositivo ou o do tempo hiperativo, da atenção dissipada pela
gadget fora do tempo a sua própria maneira, em hiperatividade. O instante reintroduz uma liber-
função de sua história, de seu desejo, para alo- dade: o corte do instante faz com que não se
já-lo em seu próprio tempo, diferente do fora do esteja mais determinado pelo que era estando
tempo que lhe é imposto. Cada um pode encon- face ao desconhecido do que será. O instante é
trar um uso particular do objeto, outra maneira o que vai contra o não-tempo do gozo: o instan-
que não seja aquela prescrita pelo mercado, um te é o que permite a cada sujeito reinventar-se
modo próprio ao sujeito, onde ele o faz ter um de modo novo, além daquilo a que sua busca de
papel, onde ele o coloca em cena, numa tempo- uma recuperação de gozo o obrigava.
ralidade que lhe é própria.
01.05.11
Essa é a aposta da análise: além do fator ime- Tradução: Elza Marques Lisboa de Freitas.

diato, que o hiperativo se impõe em ressonância


com a época e o mercado no fora do tempo,
reintroduzir a escansão do tempo do sujeito,
reintroduzir a escansão do tempo, a de um tem-
po lógico, mais do que a de um tempo que é
feito apenas de um instante que gira, acelerado
sobre si mesmo.
Seja como for, para sair disso, é preciso pas-
sar pelo corte. Repassar pelo instante de ver,
fazendo dele novo uso. Tudo se passa no ins-
tante. Penso que a clínica da hiperatividade, do
tempo hiperativo, nos obriga a distinguir entre o
instante de ver e o instante de “ver o momento
de concluir”, de apreender sua necessidade (se
posso acrescentar esse novo modo de conside-
rar o momento de concluir). Para que o instante
seja descontinuidade, é necessário que haja um
tempo. Com o tudo, imediatamente hiperativo,
estamos em um instante eternizado: o instante
de ver engole o tempo. Para sair disso é preciso
9 Michel de Certeau, L’invention du quotidien, 10/18, 2 vol, Paris,
1980.
10 Giogio Agamben, Les dispositifs, op. cit.

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