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Coerência
Quando se fala em redação, sempre se aponta a coerência das ideias
como uma qualidade indispensável para qualquer tipo de texto. Mas nem
todos explicitam de maneira clara em que consiste essa coerência, sobre a
qual tanto se insiste, e como se pode consegui-la.
Coerência deve ser entendida como unidade do texto. Um texto coerente é
um conjunto harmônico, em que todas as partes se encaixam de maneira
complementar de modo que não haja nada destoante, nada ilógico, nada
contraditório, nada desconexo. No texto coerente, não há nenhuma parte que
não se solidarize com as demais.
Todos os elementos do texto devem ser coerentes. Vamos mostrar apenas
três dos níveis em que a coerência deve ser observada:
1) coerência narrativa;
2) coerência figurativa;
3) coerência argumentativa.
Vamos partir de exemplos de incoerências, mais simples de perceber, para
mostrar o que é coerência.
1) Coerência narrativa
É incoerente narrar uma história em que alguém está descendo uma
ladeira num carro sem freios, que para imediatamente, depois de ser
brecado, quando uma criança lhe corta a frente.
Já estudamos na lição 6 que a estrutura narrativa tem quatro fases distintas
(manipulação, competência, performance e sanção).
Resumidamente, vamos relembrar que manipulação é a fase em que
alguém é induzido a querer ou dever realizar uma ação; competência, a fase
em que esse alguém adquire um poder ou um saber para realizar aquilo que
ele quer ou deve; performance, a fase em que de fato se realiza a ação;
sanção, a fase em que se recebe a recompensa ou o castigo por aquilo que
se realizou.
Essas quatro fases se pressupõem, isto é, a posterior depende da anterior.
Assim, por exemplo, um sujeito só pode fazer alguma coisa (performance) se
souber ou puder fazê-la (competência). Constitui, portanto, uma incoerência
narrativa relatar uma ação realizada por um sujeito que não tinha
competência para realizá-la.
A título de exemplo, vamos citar um desses equívocos cometidos em
redação, relatado pela Prof. Diana Luz Pessoa de Barros num livro sobre
redação no vestibular:
Lá dentro havia uma fumaça formada pela maconha e essa fumaça não deixava que nós
víssemos qualquer pessoa, pois ela era muito intensa.
Meu colega foi à cozinha me deixando sozinho, fiquei encostado na parede da sala e fiquei
observando as pessoas que lá estavam. Na festa havia pessoas de todos os tipos: ruivas,
brancas, pretas, amarelas, altas, baixas, etc.
Nesse caso, o sujeito não podia ver e viu. O texto tornar-se-ia coerente se
o narrador dissesse que ficara encostado à parede imaginando as pessoas
que estavam por detrás da cortina de fumaça.
Outros casos de incoerência narrativa podem ocorrer. Se, por exemplo, um
personagem adquire um objeto de outro, é claro que esse outro deixou de
possuí-lo. Assim, é incoerente relatar, numa certa altura da narrativa, que
roubaram de uma senhora um valiosíssimo colar de pérolas e, numa
passagem posterior, sem dizer que ela o tenha recuperado, referir-se ao
mesmo colar envolvendo o pescoço da mesma senhora numa recepção de
gala.
Um outro tipo de incoerência narrativa pode ocorrer em relação à
caracterização dos personagens e às ações atribuídas a eles.
No percurso da narrativa, os personagens são descritos como possuidores
de certas qualidades (alto, baixo, frágil, forte), atribuem-se a eles certos
estados de alma (colérico, corajoso, tímido, introvertido, apático, combativo).
Essas qualidades e estados de alma podem combinar-se ou repelir-se,
alguns comportamentos dos personagens são compatíveis ou incompatíveis
com determinados traços de sua personalidade.
A preocupação com a coerência e a unidade do texto pressupõe que se
conjuguem apropriadamente esses elementos.
Se na narrativa aparecem indicadores de que um personagem é tímido,
frágil e introvertido, seria incoerente atribuir a esse mesmo personagem o
papel de líder e agitador dos foliões por ocasião de uma festa pública.
Obviamente, a incoerência deixaria de existir se algum dado novo justificasse
a transformação do referido personagem. Uma bebedeira, por exemplo,
poderia desencadear essa mudança.
Muitos outros casos de incoerência desse tipo podem ser apontados.
Dizer, por exemplo, que um personagem foi a uma partida de futebol, sem
nenhum entusiasmo, pois já esperava ver um mau jogo, e, posteriormente,
afirmar que esse mesmo personagem saiu do estádio decepcionado com o
mau futebol apresentado é incoerente. Quem não espera nada não pode
decepcionar-se.
É incoerente ainda dizer que alguém é totalmente indiferente em relação a
uma pessoa e caiu em prantos quando soube que ela casou-se e viajou para
o exterior.
As incoerências podem ser utilizadas para mostrar a dupla face de um
mesmo personagem, mas esse expediente precisa ficar esclarecido de algum
modo no decorrer do texto.
(...)
3) Coerência argumentativa
Quando se defende o ponto de vista de que o homem deve buscar o amor
e a amizade, não se pode dizer em seguida que não se deve confiar em
ninguém e que por isso é melhor viver isolado.
Num esquema de argumentação, joga-se com certos pressupostos ou
certos dados e deles se fazem inferências ou se tiram conclusões que
estejam verdadeiramente implicados nos elementos lançados como base do
raciocínio que se quer montar. Se os pressupostos ou os dados de base não
permitem tirar as conclusões que foram tiradas, comete-se a incoerência de
nível argumentativo.
Se o texto parte da premissa de que todos são iguais perante a lei, cai na
incoerência se defender posteriormente o privilégio de algumas categorias
profissionais não estarem obrigadas a pagar imposto de renda.
O argumentador pode até defender essas regalias, mas não pode partir da
premissa de que todos são iguais perante a lei.
Assim também é incoerente defender ponto de vista contrário a qualquer
tipo de violência e ser favorável à pena de morte, a não ser que não se
considere a ação de matar como uma ação violenta.
Ao dizer que todo o desejo de que os amigos, viessem à sua festa desaparecera, uma vez que
seu pai se opusera à realização.
TEXTO COMENTADO
Um argumento cínico
(1) Certamente nunca terá faltado aos sonegadores de todos os tempos e lugares o
confortável pretexto de que o seu dinheiro não deve ir parar nas mãos de administradores
incompetentes e desonestos. (2) Como pretexto, a invocação é insuperável e tem mesmo a cor e
os traços do mais acendrado civismo. (3) Como argumento, no entanto, é cínica e improcedente.
(4) Cínica porque a sonegação, que nesse caso se pratica, não é compensada por qualquer
sacrifício ou contribuição que atenda à necessidade de recursos imanente a todos os erários,
sejam eles bem ou mal administrados. (5) Ora, sem recursos obtidos da comunidade não há
policiamento, não há transportes, não há escolas ou hospitais. (6) E sem serviços públicos
essenciais, não há Estado e não pode haver sociedade política. (7) Improcedente porque a
sonegação, longe de fazer melhores os maus governos, estimula-os à prepotência e ao arbítrio,
além de agravar a carga tributária dos que não querem e dos que, mesmo querendo, não têm
como dela fugir — os que vivem de salário, por exemplo. (8) Antes, é preciso pagar, até mesmo
para que não faltem legitimidade e força moral às denúncias de malversação. (9) É muito
cômodo, mas não deixa de ser, no fundo, uma hipocrisia, reclamar contra o mau uso dos
dinheiros públicos para cuja formação não tenhamos colaborado. (10) Ou não tenhamos
colaborado na proporção da nossa renda.