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São partes do livro Para entender o texto de Platão & Fiorin:

Coerência
Quando se fala em redação, sempre se aponta a coerência das ideias
como uma qualidade indispensável para qualquer tipo de texto. Mas nem
todos explicitam de maneira clara em que consiste essa coerência, sobre a
qual tanto se insiste, e como se pode consegui-la.
Coerência deve ser entendida como unidade do texto. Um texto coerente é
um conjunto harmônico, em que todas as partes se encaixam de maneira
complementar de modo que não haja nada destoante, nada ilógico, nada
contraditório, nada desconexo. No texto coerente, não há nenhuma parte que
não se solidarize com as demais.
Todos os elementos do texto devem ser coerentes. Vamos mostrar apenas
três dos níveis em que a coerência deve ser observada:
1) coerência narrativa;
2) coerência figurativa;
3) coerência argumentativa.
Vamos partir de exemplos de incoerências, mais simples de perceber, para
mostrar o que é coerência.

1) Coerência narrativa
É incoerente narrar uma história em que alguém está descendo uma
ladeira num carro sem freios, que para imediatamente, depois de ser
brecado, quando uma criança lhe corta a frente.
Já estudamos na lição 6 que a estrutura narrativa tem quatro fases distintas
(manipulação, competência, performance e sanção).
Resumidamente, vamos relembrar que manipulação é a fase em que
alguém é induzido a querer ou dever realizar uma ação; competência, a fase
em que esse alguém adquire um poder ou um saber para realizar aquilo que
ele quer ou deve; performance, a fase em que de fato se realiza a ação;
sanção, a fase em que se recebe a recompensa ou o castigo por aquilo que
se realizou.
Essas quatro fases se pressupõem, isto é, a posterior depende da anterior.
Assim, por exemplo, um sujeito só pode fazer alguma coisa (performance) se
souber ou puder fazê-la (competência). Constitui, portanto, uma incoerência
narrativa relatar uma ação realizada por um sujeito que não tinha
competência para realizá-la.
A título de exemplo, vamos citar um desses equívocos cometidos em
redação, relatado pela Prof. Diana Luz Pessoa de Barros num livro sobre
redação no vestibular:
Lá dentro havia uma fumaça formada pela maconha e essa fumaça não deixava que nós
víssemos qualquer pessoa, pois ela era muito intensa.

Meu colega foi à cozinha me deixando sozinho, fiquei encostado na parede da sala e fiquei
observando as pessoas que lá estavam. Na festa havia pessoas de todos os tipos: ruivas,
brancas, pretas, amarelas, altas, baixas, etc.

Nesse caso, o sujeito não podia ver e viu. O texto tornar-se-ia coerente se
o narrador dissesse que ficara encostado à parede imaginando as pessoas
que estavam por detrás da cortina de fumaça.
Outros casos de incoerência narrativa podem ocorrer. Se, por exemplo, um
personagem adquire um objeto de outro, é claro que esse outro deixou de
possuí-lo. Assim, é incoerente relatar, numa certa altura da narrativa, que
roubaram de uma senhora um valiosíssimo colar de pérolas e, numa
passagem posterior, sem dizer que ela o tenha recuperado, referir-se ao
mesmo colar envolvendo o pescoço da mesma senhora numa recepção de
gala.
Um outro tipo de incoerência narrativa pode ocorrer em relação à
caracterização dos personagens e às ações atribuídas a eles.
No percurso da narrativa, os personagens são descritos como possuidores
de certas qualidades (alto, baixo, frágil, forte), atribuem-se a eles certos
estados de alma (colérico, corajoso, tímido, introvertido, apático, combativo).
Essas qualidades e estados de alma podem combinar-se ou repelir-se,
alguns comportamentos dos personagens são compatíveis ou incompatíveis
com determinados traços de sua personalidade.
A preocupação com a coerência e a unidade do texto pressupõe que se
conjuguem apropriadamente esses elementos.
Se na narrativa aparecem indicadores de que um personagem é tímido,
frágil e introvertido, seria incoerente atribuir a esse mesmo personagem o
papel de líder e agitador dos foliões por ocasião de uma festa pública.
Obviamente, a incoerência deixaria de existir se algum dado novo justificasse
a transformação do referido personagem. Uma bebedeira, por exemplo,
poderia desencadear essa mudança.
Muitos outros casos de incoerência desse tipo podem ser apontados.
Dizer, por exemplo, que um personagem foi a uma partida de futebol, sem
nenhum entusiasmo, pois já esperava ver um mau jogo, e, posteriormente,
afirmar que esse mesmo personagem saiu do estádio decepcionado com o
mau futebol apresentado é incoerente. Quem não espera nada não pode
decepcionar-se.
É incoerente ainda dizer que alguém é totalmente indiferente em relação a
uma pessoa e caiu em prantos quando soube que ela casou-se e viajou para
o exterior.
As incoerências podem ser utilizadas para mostrar a dupla face de um
mesmo personagem, mas esse expediente precisa ficar esclarecido de algum
modo no decorrer do texto.
(...)

3) Coerência argumentativa
Quando se defende o ponto de vista de que o homem deve buscar o amor
e a amizade, não se pode dizer em seguida que não se deve confiar em
ninguém e que por isso é melhor viver isolado.
Num esquema de argumentação, joga-se com certos pressupostos ou
certos dados e deles se fazem inferências ou se tiram conclusões que
estejam verdadeiramente implicados nos elementos lançados como base do
raciocínio que se quer montar. Se os pressupostos ou os dados de base não
permitem tirar as conclusões que foram tiradas, comete-se a incoerência de
nível argumentativo.
Se o texto parte da premissa de que todos são iguais perante a lei, cai na
incoerência se defender posteriormente o privilégio de algumas categorias
profissionais não estarem obrigadas a pagar imposto de renda.
O argumentador pode até defender essas regalias, mas não pode partir da
premissa de que todos são iguais perante a lei.
Assim também é incoerente defender ponto de vista contrário a qualquer
tipo de violência e ser favorável à pena de morte, a não ser que não se
considere a ação de matar como uma ação violenta.

Coesão textual (I)


Quando lemos com atenção um texto bem construído, não nos perdemos
por entre os enunciados que o constituem, nem perdemos a noção de
conjunto. Com efeito, é possível perceber a conexão existente entre os vários
segmentos de um texto e compreender que todos estão interligados entre si.
A título de exemplificação do que foi dito, observe-se o texto que vem a
seguir:
É sabido que o sistema do Império Romano dependia da escravidão, sobretudo para a
produção agrícola. É sabido ainda que a população escrava era recrutada principalmente entre
prisioneiros de guerra.

Em vista disso, a pacificação das fronteiras fez diminuir consideravelmente a população


escrava.
Como o sistema não podia prescindir da mão de obra escrava, foi necessário encontrar outra
forma de manter inalterada essa população.

Como se pode observar, os enunciados desse texto não estão amontoados


caoticamente, mas estritamente interligados entre si: ao se ler, percebe-se
que há conexão entre cada uma das partes.
A essa conexão interna entre os vários enunciados presentes no texto dá-
se o nome de coesão. Diz-se, pois, que um texto tem coesão quando seus
vários enunciados estão organicamente articulados entre si, quando há
concatenação entre eles.
A coesão de um texto, isto é, a conexão entre os vários enunciados
obviamente não é fruto do acaso, mas das relações de sentido que existem
entre eles. Essas relações de sentido são manifestadas sobretudo por certa
categoria de palavras, as quais são chamadas conectivos ou elementos de
coesão. Sua função no texto é exatamente a de pôr em evidência as várias
relações de sentido que existem entre os enunciados.
No caso do texto citado acima, pode-se observar a função de alguns
desses elementos de coesão. A palavra ainda no primeiro parágrafo ("É
sabido ainda que"...)
serve para dar continuidade ao que foi dito anteriormente e acrescentar um
outro dado: que o recrutamento de escravos era feito junto dos prisioneiros de
guerra.
O segundo parágrafo inicia-se com a expressão em vista disso, que
estabelece uma relação de implicação causal entre o dado anterior e o que
vem a seguir: a pacificação das fronteiras diminui o fornecimento de escravos
porque estes eram recrutados principalmente entre os prisioneiros de guerra.
O terceiro parágrafo inicia-se pelo conectivo como, que manifesta uma
outra relação causal, isto é: foi necessário encontrar outra forma de
fornecimento de escravos porque o sistema não podia prescindir deles.
São várias as palavras que, num texto, assumem a função de conectivo ou
de elemento de coesão:
— as preposições: a, de, para, com, por, etc.;
— as conjunções: que, para que, quando, embora, mas, e, ou, etc.;
— os pronomes: ele, ela, seu, sua, este, esse, aquele, que, o qual, etc.;
— os advérbios: aqui, aí, lá, assim, etc.
O uso adequado desses elementos de coesão confere unidade ao texto e
contribui consideravelmente para a expressão clara das ideias. O uso
inadequado sempre tem efeitos perturbadores, tornando certas passagens
incompreensíveis.
Para dar ideia da importância desses elementos na construção das frases e
do texto, vamos comentar sua funcionalidade em algumas situações
concretas da língua e mostrar como o seu mau emprego pode perturbar a
compreensão.

A coesão no período composto


O período composto, como o nome indica, é constituído de várias orações,
que, se não estiverem estruturadas com coesão, de acordo com as regras do
sistema linguístico, produzem um sentido obscuro, quando não,
incompreensível.
O período que segue é plenamente compreensível porque os elementos de
coesão estão bem empregados:
Se estas indústrias são poluentes, devem abandonar a cidade, para que as boas condições de
vida sejam preservadas.

Esse período consta de três orações, e a oração principal é: devem


abandonar a cidade; antes da principal vem uma oração que estabelece a
condição que vai determinar a obrigação de as indústrias abandonarem a
cidade (o conectivo, no caso, é a conjunção se); depois da oração principal
segue uma terceira oração, que indica a finalidade que se quer atingir com a
expulsão das indústrias poluentes (o conectivo é a conjunção para que).
Muitas vezes, nas suas redações, os alunos constroem períodos
incompreensíveis, por descuidarem dos princípios de coesão. Não é raro, por
exemplo, ocorrerem períodos desprovidos da oração principal, como nos
exemplos que seguem:
O homem que tenta mostrar a todos que a corrida armamentista que se trava entre as grandes
potências é uma loucura.

Ao dizer que todo o desejo de que os amigos, viessem à sua festa desaparecera, uma vez que
seu pai se opusera à realização.

No primeiro período temos:


1) o homem;
2) que tenta mostrar a todos: oração subordinada adjetiva;
3) que a corrida armamentista é uma loucura: oração subordinada
substantiva objetiva direta;
4) que se trava entre as grandes potências: oração subordinada adjetiva.
A segunda oração está subordinada àquela que seria a primeira, referindo-
se ao termo homem; a terceira é subordinada à segunda; a quarta à terceira.
A primeira oração está incompleta. Falta-lhe o predicado. O aluno colocou o
termo a que se refere a segunda oração, começou uma sucessão de
inserções e "esqueceu-se" de desenvolver a ideia principal.
No segundo período, só ocorrem orações subordinadas. Ora, todos
sabemos que uma oração subordinada pressupõe a presença de uma
principal.
A escrita não exige que os períodos sejam longos e complexos, mas que
sejam completos e que as partes estejam absolutamente conectadas entre si.
Para evitar deslizes como o apontado, graves porque o período fica
incompreensível, não é preciso analisar sintaticamente cada período que se
constrói. Basta usar a intuição linguística que todos os falantes possuem e
reler o que se escreveu, preocupado com verificar se tem sentido aquilo que
acabou de ser redigido.
Ao escrever, devemos ter claro o que pretendemos dizer e, uma vez escrito
o enunciado, devemos avaliar se o que foi escrito corresponde àquilo que
queríamos dizer. A escolha do conectivo adequado é importante, já que é ele
que determina a direção que se pretende dar ao texto, é ele que manifesta as
diferentes relações entre os enunciados.

TEXTO COMENTADO

Um argumento cínico

(1) Certamente nunca terá faltado aos sonegadores de todos os tempos e lugares o
confortável pretexto de que o seu dinheiro não deve ir parar nas mãos de administradores
incompetentes e desonestos. (2) Como pretexto, a invocação é insuperável e tem mesmo a cor e
os traços do mais acendrado civismo. (3) Como argumento, no entanto, é cínica e improcedente.
(4) Cínica porque a sonegação, que nesse caso se pratica, não é compensada por qualquer
sacrifício ou contribuição que atenda à necessidade de recursos imanente a todos os erários,
sejam eles bem ou mal administrados. (5) Ora, sem recursos obtidos da comunidade não há
policiamento, não há transportes, não há escolas ou hospitais. (6) E sem serviços públicos
essenciais, não há Estado e não pode haver sociedade política. (7) Improcedente porque a
sonegação, longe de fazer melhores os maus governos, estimula-os à prepotência e ao arbítrio,
além de agravar a carga tributária dos que não querem e dos que, mesmo querendo, não têm
como dela fugir — os que vivem de salário, por exemplo. (8) Antes, é preciso pagar, até mesmo
para que não faltem legitimidade e força moral às denúncias de malversação. (9) É muito
cômodo, mas não deixa de ser, no fundo, uma hipocrisia, reclamar contra o mau uso dos
dinheiros públicos para cuja formação não tenhamos colaborado. (10) Ou não tenhamos
colaborado na proporção da nossa renda.

VILLELA, João Baptista. Veja, 25 set. 1985.

O produtor desse texto procura desmontar o argumento dos sonegadores


de impostos que não os pagam sob a alegação de que os administradores do
dinheiro público são incompetentes e desonestos.
Por uma razão prática, vamos fazer o comentário dos vários argumentos
tomando por base cada um dos períodos que compõem o texto:
1.° período:
Expõe o argumento que os sonegadores invocam para não pagar impostos:
eles alegam que não os pagam porque o seu dinheiro não deve ir parar nas
mãos de administradores desonestos e incompetentes. Observe-se que o
produtor do texto começa a desautorizar esse argumento ao considerá-lo um
"confortável pretexto", isto é, uma falsa justificativa usada em proveito próprio.
2.° período:
O enunciador admite que, como pretexto (falsa razão), essa justificativa é
insuperável e tem aparência de elevado espírito cívico.
3.° período:
O conectivo "no entanto" (de caráter adversativo) introduz uma
argumentação contrária ao que se admite no período anterior: a justificativa
para sonegar impostos, como argumento, é cínica e improcedente.
4.° período:
Através do conectivo "porque", o enunciador expõe a causa pela qual
considera cínico o argumento: é cínico porque a sonegação não é substituída
por outro tipo de contribuição que atenda à necessidade de recursos do
Estado.
5.° período:
O conectivo "ora" dá início a uma argumentação que se manifesta contrária
à ideia de que o Estado possa sobreviver sem arrecadar impostos e sem se
prover de recursos.
6.° período:
O conectivo " e " introduz um segmento que adiciona um argumento ao que
se afirmou no período anterior.
7.° período:
Depois de demonstrar que o argumento dos sonegadores é cínico, o
enunciador passa a demonstrar que é também improcedente, o que já foi
afirmado no terceiro período. O motivo da improcedência vem expresso por
uma oração causal iniciada pelo conectivo "porque": a justificativa para
sonegar é improcedente porque a sonegação, ao invés de contribuir para
melhorar os maus governos, estimula-os à prepotência e ao arbítrio. No
mesmo período, o conectivo "além de" introduz um argumento a mais a favor
da improcedência da sonegação: ela agrava a carga tributária dos que, como
os assalariados, não têm como fugir dela.
8.° período:
O conectivo "antes", que inicia o período, significa "ao contrário" e introduz
um argumento a favor da necessidade de pagar impostos. O conectivo "até
mesmo" dá início a um argumento que reforça essa necessidade.
9.° período:
O conectivo "mas" (adversativo), que liga a oração "É muito cômodo" à
oração "não deixa de ser uma hipocrisia", estabelece uma relação de
contradição entre as duas passagens: de um lado, é cômodo reclamar contra
o mau uso do dinheiro público, de outro, isso não passa de hipocrisia quando
não se colaborou com a arrecadação desse dinheiro.
10.° período:
O conectivo " ou " inicia uma passagem que contém uma alternativa que
caracteriza ainda a atitude hipócrita: é hipocrisia reclamar do mau uso de um
dinheiro para o qual nossa colaboração foi abaixo daquilo que devia ser.
Como se vê, os períodos compostos bem estruturados e os conectores
usados de maneira adequada dão coesão ao texto e consistência à
argumentação.

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