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COERÊNCIA TEXTUAL

Observe o texto que segue:

Havia um menino magro que vendia amendoins numa esquina de uma das avenidas de São Paulo. Ele
era fraquinho, que mal podia carregar a cesta em que estavam os pacotinhos de amendoins. Um dia, na esquina em
que ficava, um motorista, que vinha em alta velocidade, perdeu a direção. O carro capotou e ficou de rodas para o
ar. O menino não pensou duas vezes. Correu para o carro e tirou de lá o motorista, que era um homem corpulento.
Carregou-o até a calçada, parou um carro e levou o homem para o hospital. Assim salvou-lhe a vida.

Esse texto, uma redação escolar, apresenta uma incoerência: se o menino era tão fraco que não podia
carregar a cesta de amendoins, como conseguiu carregar um homem corpulento até o carro?
Quando se fala em redação, sempre se aponta a coerência das ideias como uma qualidade
indispensável para qualquer tipo de texto. Mas nem todos explicam de maneira clara em que consiste essa coerência,
sobre a qual tanto se insiste, e como se pode consegui-la.
Coerência deve ser entendida como unidade do texto. Um texto coerente é um conjunto harmônico,
em que todas as partes se encaixam de maneira complementar de modo que não haja nada destoante, nada ilógico,
nada contraditório, nada desconexo. No texto coerente, não há nenhuma parte que não sincronize com as demais.
Todos os elementos do texto devem ser coerentes. Vamos mostrar apenas três dos níveis em que a
coerência deve ser observada:

1. coerência narrativa;
2. coerência figurativa;
3. coerência argumentativa;

Vamos partir dos exemplos de incoerências, mais simples de perceber, para mostrar o que é coerência.

1. COERÊNCIA NARRATIVA

É incoerência narrar uma história em que alguém está descendo uma ladeira num carro sem freios, que
pára imediatamente, depois de ser brecado, quando uma criança lhe corta a frente.
A estrutura narrativa tem quatro fases distintas (manipulação, competência, performance e sanção).
Resumidamente, vamos relembrar que manipulação é a fase em que alguém é induzido a querer ou
dever realizar uma ação; competência, a fase em que esse alguém adquire um poder ou um saber para realizar aquilo
que ele quer ou deve; performance, a fase em que o fato se realiza a ação; sanção, a fase em que se recebe a
recompensa ou o castigo por aquilo que realizou.
Essas quatro fases se pressupõem, isto é, a posterior depende da anterior. Assim, por exemplo, um
sujeito só pode fazer alguma coisa (performance) se souber ou puder fazê-la (competência). Constitui, portanto, uma
incoerência narrativa relatar uma ação realizada por um sujeito que não tinha competência para realizá-la.
A título de exemplo, vamos citar um desses equívocos cometidos em redação, relatado pela professora
Diana Luz Pessoa de Barros num livro sobre redação no vestibular.

Lá dentro havia uma fumaça formada pela maconha e essa fumaça não deixava que nós
víssemos qualquer pessoa, pois ela era muito intensa.
Meu colega foi à cozinha me deixando sozinho, fiquei encostado na parede da sala e fiquei
observando as pessoas que lá estavam. Na festa havia pessoas de todos os tipos: ruivas, pretas, amarelas,
altas, baixas, etc.

Nesse caso, o sujeito não podia ver e viu. O texto tornar-se-ia coerente se o narrador dissesse que
ficara encostado à parede imaginando as pessoas que estavam por detrás da cortina de fumaça.
Outros casos de incoerência narrativa podem ocorrer. Se por exemplo, um personagem adquire um
objeto de outro, é claro que esse outro deixou de possuí-lo. Assim, é incoerente relatar, numa certa altura da
narrativa, que roubaram de uma senhora um valiosíssimo colar de pérolas e, numa passagem posterior, sem dizer
que ela o tenha recuperado, referir-se ao mesmo colar envolvendo o pescoço da mesma senhora numa recepção de
gala.
Um outro tipo de incoerência narrativa pode ocorrer em ralação à caracterização dos personagens e às
atribuídas a eles.

No percurso da narrativa, os personagens são descritos como possuidores de certas qualidades (alto,
baixo, frágil, forte), atribuem-se a eles certos estados de alma (colérico, corajoso, tímido, introvertido, apático,
combativo). Essas qualidades e estados de alma podem combinar-se ou repelir-se, alguns comportamentos dos
personagens são compatíveis ou incompatíveis com determinados traços de sua personalidade.
A preocupação com a coerência e a unidade do texto pressupõe que se conjuguem apropriadamente
esses elementos.
Se na narrativa aparecem indicadores de que um personagem é tímido, frágil e introvertido, seria
incoerente atribuir a esse mesmo personagem o papel de líder e agitador dos foliões por ocasião de uma festa
pública. Obviamente, a incoerência deixaria de existir se algum dado novo justificasse a transformação de referido
personagem. Uma bebedeira, por exemplo, poderia desencadear essa mudança.
Muitos outros casos de incoerência desse tipo podem ser apontados.
Dizer, por exemplo, que um personagem foi a uma partida de futebol, sem nenhum entusiasmo, pois já
esperava ver um mau jogo, e, posteriormente, afirmar que esse mesmo personagem saiu do estádio decepcionado
com o mau futebol apresentado é incoerente. Quem não espera nada não pode decepcionar-se.
É incoerente ainda dizer que alguém é totalmente indiferente em relação a uma pessoa e caiu em
prantos quanto soube que ela casou-se e viajou para o exterior.
As incoerências podem ser utilizadas para mostrar a dupla face se um mesmo personagem, mas esse
expediente precisa ficar esclarecido de algum modo no decorrer do texto.

2. COERÊNCIA FIGURATIVA

Suponhamos que se deseja figurativizar o tema “despreocupação”. Podem usar figuras como “pessoas
deitadas à beira de uma piscina”, “drinques gelados”, “passeios pelos shoppings”. Não caberia, no entanto, na
figurativização desse tema, a utilização de figuras como “pessoas indo apressadas para o trabalho”, “fábricas
funcionando a pleno vapor”.
Por coerência figurativa entende-se a articulação harmônica das figuras do texto, com base na relação
de significado que mantém entre si. As várias figuras que ocorrem num texto devem articular-se de maneira coerente
para construir um único bloco temático. A ruptura dessa coerência pode produzir efeitos desconcertantes. Todas as
figuras que pertencem ao mesmo tema devem pertencer ao mesmo universo de significado.
Suponhamos, a título de exemplo, que se pretenda figurativizar o tema de requinte e da sofisticação
para caracterizar um certo personagem. Para ser coerente, é necessário que todas as figuras encaminhem para o tema
do requinte. Pode-se citar, ao descrever sua casa: a lareira, o tapete persa, os cristais da Boêmia, a porcelana de
Sèvras, o doberman ressonando no tapete, um quadro de Portinari e outras figuras do mesmo campo de significado.
Constituiria incoerência figurativa gritante incluir nesse conjunto de elementos Agnaldo Timóteo cantando na
vitrola um bolero sentimentalóide. Essa ruptura justificaria se a intenção fosse o humor, a piada, a ridicularização ou
mostrar o paradoxo de que requinte é apenas exterior.
Sem essas intenções definidas de denunciar o paradoxo ou de ridicularizar, as figuras pertencentes a
um mesmo tema devem articular-se harmoniosamente.
Um último exemplo. Suponhamos que se queira mostrar a vida no Pólo Norte. Podem-se para isso
usar figuras como “neve”, “pessoas vestidas de pele”, “renas”, “trenós”. Não se podem, porém, utilizar figuras como
“palmeiras”, “cactos”, “camelos”, “estradas poeirentas”.

3. COERÊNCIA ARGUMENTATIVA

Quando se defende o ponto de vista de que o homem deve buscar o amor e a amizade, não se pode
dizer em seguida que não se deve confiar em ninguém e que por isso é melhor viver isolado.
Num esquema de argumentação, joga-se com certos pressupostos ou certos dados e deles se fazem
inferências ou se tiram conclusões que estejam verdadeiramente implicados nos elementos lançados como base do
raciocínio que se quer montar. Se os pressupostos ou os dados de base não permitem tirar as conclusões que foram
tiradas, comete-se a incoerência de nível argumentativo.
Se o texto parte da premissa de que todos são iguais perante a lei, cai na incoerência de defender
posteriormente o privilégio de algumas categorias profissionais não estarem obrigados a pagar imposto de renda.
O argumentador pode até defender essas regalias, mas não pode partir de premissa de que todos são
iguais perante a lei.
Assim também é incoerente defender ponto de vista contrário a qualquer tipo de violência a ser
favorável à pena de morte, a não ser que não se considere a ação de matar como uma ação violenta.

PLATÃO, Francisco Savioli & FIORIN, José Luiz.


Para entender o texto: leitura e redação. São
Paulo: editora Ática, 1990. p. 261 – 264 e 267 – 269.

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