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BKRTRANR EDITOftA

KARL MARX
FRANCIS WHEEN

KARL MARX
Tradução de
José Luís Luna

BERTRAND EDITORA
CHIADO 2003
Título original: Karl Marx
© Francis Wheen, 1999
Todos os direitos para a publicação desta obra
em Mngua portuguesa, excepto Brasil, reservados por:
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Revisão: André Cardoso

Impressão e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu


Depósito legal n.° 189121/02
Acabou de imprimir-se em Janeiro de 2003
ISBN: 972-25-1282-X
Para Julia
INTRODUÇÃO

Havia apenas 11 pessoas presentes no funeral de Karl Marx a 17 de Março


de 1883. «O seu nome e trabalho resistirão ao longo dos séculos», predisse
Friedrich Engels no seu discurso fúnebre no cemitério de Highgate. Pare-
cia uma tirada pouco provável, mas tinha razão.
A história do século XX é o legado de Marx. Estaline, Mao, Che, Castro
— os ícones e monstros da idade moderna, todos eles se apresentaram como
seus herdeiros. Agora que ele os tivesse reconhecido como tal é outra ques-
tão. Ainda em vida, as manias dos seus pretensos discípulos desesperavam-
-no. Ao ouvir que um novo partido francês reivindicava ser marxista, retor-
quiu que, nesse caso: «Eu, pelo menos, não o sou.» N o entanto, ao longo dos
cem anos que se seguiram à sua morte, metade da população mundial foi go-
vernada por regimes que professaram o Marxismo como sendo a fé que os
guiava. As suas ideias transformaram o estodo da economia, da história, da
geografia, da sociologia e da Mteratura. Desde Jesus Cristo que nenhum pobre
diabo obscuro tinha inspirado uma tal devoção universal — ou sido tão ca-
lamitosamente mal interpretado.
Chegou a altora de desmontar a mitologia e tentar redescobrir Karl Marx,
o homem. Foram publicados milhares de livros sobre o Marxismo, mas quase
todos foram escritos por universitários e fanáticos para quem é quase uma
blasfémia tratá-lo c o m o uma figura de carne e osso — u m emigrante
prussiano que se tornou um cavalheiro inglês da classe média, um agitador
colérico que passou a maior parte da idade adulta no erudito suêncio da sala
de leitura do Museu Britânico; um anfitrião bem-disposto e sociável que se
zangou com quase todos os seus amigos; um chefe de família dedicado que
10 « ^ KARL MARX

engravidou a criada; e um filósofo profundamente honesto que adorava


copos, charutos e piadas.
N o decorrer da guerra fria, ele foi para o Ocidente o demoníaco causa-
dor de todos os males, o fundador de um culto assustadoramente sinistro,
o h o m e m cuja maléfica influência tinha de ser suprimida. N a União Sovié-
tica da década de 50, ele adquiriu o estatuto de um deus secular, com Lenine
como São João Baptista e, claro está, o camarada Estaline em pessoa como
o redentor Messias. Só isto tem sido o bastante para condenar Marx como
cúmplice de massacres e purgações: caso ele tivesse vivido mais uns anos,
não faltaria agora um jornalista cheio de iniciativa para provavelmente o
acusar também de ser o principal suspeito dos assassínios de Jack, o Estripador.
Mas porquê? O próprio Marx nunca pediu certamente para ser incluído na
Santíssima Trindade e teria ficado consternado pelos crimes cometidos em
seu nome. Os princípios corruptos esposados por Estaline, Mao ou Kim II
Sung trataram a sua obra como os cristãos modernos utiHzam o Antigo Tes-
tamento: grande parte foi ignorada, ou descartada, enquanto uns slogans res-
sonantes («ópio do povo», «ditadura do proletariado»), são tirados de con-
texto, virados ao avesso e, depois, citados como justificações aparentemente
divinas para a mais brutal desumanidade. Como tantas vezes, Kipling expri-
me isso bem:

Aquele que tem um Evangelho


Para dar à Humanidade
E m b o r a o sirva totalmente
D e corpo, alma e espírito
E suba ao Calvário
Todos os dias por ele
É o seu discípulo
que tornará tal tarefa vã.

Só um louco pode responsabilizar Marx pelos gulags; mas, infelizmente,


há uma imediata provisão de loucos. «De uma maneira ou outra, os mais
importantes factos da nossa época conduzem-nos a um só h o m e m — Karl
Marx», escreveu Leopold Schwarzschild, em 1947, no prefácio da sua mal
humorada biografia, The Red Prussian (O Prussiano Vermelha). «Dificilmente
poderá ser contestado que a sua presença é manifesta na própria existência
da Rússia Soviética e, em particular, nos métodos dos sovietes.» A semelhan-
INTRODUÇÃO «%» 11

ça entre os métodos de Marx e os do tio José Estaline era, aparentemente,


tão indiscutível que Schwartzschild nem se deu ao incómodo de provar a sua
absurda afirmação, contentando-se em observar que «se conhece a árvore
pelos seus frutos» — o que, a exemplo de tantos provérbios, é menos axio-
mático do que parece. Deveriam os filósofos ser censurados por todas e
quaisquer subsequentes mutilações das suas ideias? Se fí^rr Schwartzschild
tivesse encontrado ñ:utos comidos pelas vespas no seu pomar — ou tives-
se talvez comido uma torta de maçã demasiado cozida ao almoço — , teria
ele pegado num machado e administrado castigo sumário à árvore culpada?
Assim como os seu seguidores imbecis, ou sedentos de poder, deifica-
ram Marx, também os seus críticos frequentemente sucumbiram ao mesmo
e oposto erro de o imaginar um agente do Diabo. «Houve momentos em que
Marx parecia estar possuído por demónios», escreve um biógrafo moderno,
Robert Payne. «Tinha uma visão diabólica do m u n d o e a perversidade de
Satã. Parecia por vezes saber que estava a reaKzar tarefas demoníacas.» Esta
escola de pensamento — mais de reformatorio, para dizer a verdade —
atinge a sua conclusão absurda em Was Karl Marx a Satanist? (Era Karl Marx
um Adepto de Satã?), livro bizarro publicado em 1976 por um célebre e zelo-
so evangelista norte-americano, o reverendo Richard Wurmbrand, autor de
obras-primas imortais como Tortured for Christ (Torturado em Nome de Cristo)
— mais de dois milhões de Livros vendidos — e The Answer to Aloscow's Bible
(A Rßsposta à Biblia de Moscovo).
Segundo Wurmbrand, o jovem Karl Marx foi iniciado numa «igreja sa-
tânica sumamente secreta», que ele depois serviu fiel e malignamente durante
toda a vida. Claro que nenhuma prova foi encontrada, mas isto meramente
fortalece a intuição do nosso detective clerical: «Como a seita satânica era
extremamente secreta, possuímos apenas pistas quanto à possibilidade das
suas ligações com ela.» Que «pistas» são essas? Bem, quando era estudante,
Marx escreveu uma peça em verso cujo título, Oulanem, é mais ou menos u m
anagrama de Emanuel, o nome bíblico de Jesus — e, assim, «faz-nos pen-
sar nas inversões das missas negras dos satanistas». Terrivelmente incri-
minador; mas há mais. «Alguma vez se interrogaram», pergunta Wurmbrand,
«quanto às barbas de Marx? N a sua época, os homens usavam barba, mas
não como a dele... O estilo de Marx era característico dos discípulos de
Joanna Southcott, uma sacerdotisa satânica que dizia estar em contacto com
o demónio Shiloh.» D e facto, a Inglaterra do tempo de Marx tinha uma data
12 % ^ KARI.MARX

de homens com barbas hirsutas, desde o jogador de críquete, W. G. Grace,


ao político Lorde Salisbury. Também falavam eles com o demónio Shiloh?
Após o final da guerra fria e o aparente triunfo de Deus sobre Satanás,
inúmeros poços de ciência declararam que tínhamos chegado ao que Francis
Fukuyama pretensiosamente chamou o Vim da História. O Comunismo es-
tava tão morto como o próprio Marx e a aterrorizadora ameaça com a qual
concluía o Manifesto Comunista, o mais influente panfleto político de todos os
tempos, parecia agora não ser mais do que uma pitoresca reh'quia histórica:
«Deixem as classes dirigentes tremer perante uma revolução comunista.
O s proletários nada têm a perder senão as suas correntes. T ê m um m u n d o
a ganhar. Trabalhadores de todo o mundo, uni-voslO% únicos grilhões que, hoje em
dia, prendem a classe operária são relógios Ro/é'xde imitação, mas há muito
mais coisas que estes proletários modernos odiariam perder — microndas,
férias a tempo partilhado e televisão por satéHte. Compraram apartamentos
sociais e acções em serviços públicos privatizados e ganharam u m b o m
pequeno lucro quando as sociedades que lhes prestavam serviços financei-
ras se transformaram em bancos. E m resumo, agora somos todos burgue-
ses. Até o Partido Trabalhista inglês se thatcherizou.
Quando comecei a fazer pesquisas para esta biografia, muitos .amigos
olhavam para mim com pena e incredulidade. Porquê, perguntavam-se, de-
sejaria alguém escrever — e ainda menos 1er — sobre uma figura tão desa-
creditada, irrelevante e fora de moda? Mas, mesmo assim, prossegui; e quanto
mais estudava Marx, mais espantosamente actual me parecia ser. Os pânditas
e políticos de hoje, que se julgam pensadores modernos, gostam de usar a
palavra de ordem «globalização» sempre que podem — sem se dar conta de
que Marx já falava disso em 1848. O domínio mundial de McDonald's e MTV
não o teria minimamente surpreendido. A deslocação em termos de poder fi-
nanceiro do Atlântico para o Pacífico — graças aos sistemas económicos do
Tigre Asiático e à expansão das cidades de suício na costa ocidental dos EUA.
—- foi profetizado por Marx mais de um século antes de Bui Gates nascer.
Há, contudo, um evolução que nem Marx nem eu tínhamos previsto: que,
em final da década de 1990, muito depois de até mesmo os liberais em voga
e os esquerdistas pós-modernos lhe terem posto uma cruz em cima, ele se-
ria subitamente aclamado pelos próprios velhos e velhacos capitalistas bur-
gueses como um génio. O primeiro sinal desta curiosa reavaliação surgiu em
Outubro de 1997, quando um número especial do New lor/è^ranunciou Karl
Marx como «o próximo grande pensador», um homem com muito para nos
INTRODUÇÃO ^ ^ 13

ensinar sobre corrupção política, monopolização, alienação, desigualdades


e mercados globais. «Quanto mais tempo passo em Wall Street, mais me
convenço de que Karl Marx tinha razão», declarou um rico banqueiro à re-
vista. «Estou plenamente convencido de que a abordagem de Marx é a me-
lhor maneira de encararmos o capitalismo.» E, desde então, economistas e
jornalistas de direita fazem bicha para prestar a mesma homenagem. Igno-
rem todos esses disparates comunistas, dizem eles: Marx era realmente «um
estudioso do capitalismo.»
Até mesmo este cumprimento deliberado serve apenas para o diminuir.
Karl Marx era um filósofo, um historiador, um economista, um linguista, um
crítico literário e um revolucionário. Embora talvez não tenha tido um «em-
prego» na verdadeira acepção da palavra, era um trabalhador prodigioso: os
seus escritos completos, poucos dos quais foram publicadas durante a sua
vida, estão compilados em 50 volumes. O que nem os seus inimigos nem
discípulos querem reconhecer é a mais óbvia e, todavia, impressionante de
todas as suas qualidades: esse ogro mítico e sagrado era um ser humano. A
bruxas mccarthista dos anos 50, as guerras no Vietname e na Coreia,
a crise cubana dos mísseis, a invasão da Checoslováquia e da Hungria, o
massacre dos estudantes na Praça Tiananmen — todos esses incidentes
sanguinários da história do século XX foram justificados em n o m e do Mar-
xismo ou do antimarxismo. Proeza de modo algum mesquinha para um ho-
mem que, atormentado por fiirúnculos e dores de fígado, passou grande
parte da vida adulta na pobreza e foi uma vez perseguido pela polícia atra-
vés das ruas de Londres, depois de uma passagem excessivamente animada
por diversas tabernas.
1

o MARGINAL

U m comboio avança lentamente e aos solavancos pelo vale de MoseUe —


pinheiros altos, vinhas plantadas nas encostas, aldeias pitorescas e fumo a ele-
var-se tranquilamente no céu de Inverno. Tentando respirar num vagão de gado
carregado de gente, um jovem espanhol da Resistência Francesa preso em
combate conta os dias e as noites à medida que ele e os seus companheiros são
inexoravelmente transportados de Compiègne para o campo de concentração
nazi em Buchenwald. Quando o comboio pára numa estação, lança um olhar
ao nome da localidade: TRIER. D e repente, um rapaz alemão atira uma pedra
contra as grade atrás das quais os passageiros condenados se amontoam.
Assim começa o grande romance de Jorge Scmprun, A Longa Viagem, e
nada nessa jornada r u m o ao aniquilamento — nem mesmo a antecipação
dos horrores que o aguardam em Buchenwald — trespassa mais dolorosa-
mente o coração do narrador do que aquele gesto.
— É o raio de um golpe muito baixo que, entre tantos sítios, isto tenha
acontecido em Trier, lamenta-se.
— Porquê? — pergunta, espantado, um francês. — Costumavas vir cá?
— Não, nunca aqui estive.
— Então, conheces alguém daqui?
— É isso mesmo.
Um amigo de infância, explica. Mas, na realidade, está a pensar num na-
tural de Trier, um rapaz judeu, nascido na madrugada de 5 de Maio de 1818.

«Abençoado aquele que não tem família», desabafava enfadonhamente


Karl Marx numa carta de Junho de 1854 a Friedrich Engels.^
16 ^ » KARL MARX

Tinha trinta e seis anos na altura, e há muito que cortara os seus laços um-
bilicais. O pai estava morto, assim como os txês irmãos e uma das cinco ir-
mãs; outra irmã tinha morrido dois anos mais tarde, e as sobreviventes pouco
tinham a ver com ele. As relações com a mãe eram frias e distantes, sobre-
tudo porque ela mostrava suficiente falta de consideração mantendo-se viva
e impedindo, assim, o filho rebelde de herdar.
Marx era um judeu burguês de uma cidade predominantemente católi-
ca, num país cuja religião oficial era o protestantismo evangélico. Morreu ateu
e sem pátria, tendo dedicado a vida adulta a profetizar a queda da burguesia
e o enfraquecimento do Estado-Nação. Afastando-se da religião, classe so-
cial e cidadania, personificou a alienação que definiu como sendo a maldi-
ção infligida pelo capitalismo à humanidade.
Este respeitável alemão da classe média pode parecer um estranho repre-
sentante das massas oprimidas, mas o seu estatuto emblemático não teria sur-
preendido o próprio Marx, o qual acreditava que os indivíduos reflectem o
mundo em que habitam. A educação que recebeu ensinou-lhe tudo o que
precisava saber sobre a sedutora tirania da religião, armando-o com a elo-
quência didáctica e a autoconfiança necessárias para exortar a humanidade
a livrar-se das suas cadeias.
«Era um contador de histórias único e sem igual», recordou a filha, Eleanor,
ao falar de um dos poucos episódios da infância do pai que ':hegaram até nós.
«Ouvi as minhas tias dizer que, em rapazinho, tratava de forma tirânica as irmãs,
"conduzindo-as" como cavalos a todo o galope por Markusberg abaixo, em
Trier, e, pior ainda, obrigando-as a comer os "bolos" de massa suja que fazia
com mãos ainda mais porcas. Mas elas aguentavam ser "conduzidas" à ré-
dea solta e comiam os "bolos" sem um queixume, só pelo prazer de ouvir
as histórias que Karl lhes contaria para as recompensar da sua paciência.»^
Anos mais tarde — quando as meninas brincalhonas já se tinham tornado
respeitáveis mulheres casadas — mostraram-se menos indulgentes para com
o irmão rebelde. Louise Marx, que emigrou para a Africa do Sul, jantou uma
vez em casa dele no decorrer de uma visita a Londres.
«Ela não podia admitir que o irmão fosse líder dos socialistas», relatou
u m outro convidado. «E insistiu, na minha presença, que ambos pertenciam
à respeitada família de um advogado que contava com a simpatia de toda a
gente de Trier.»^
Os esforços determinados de Marx para se afastar da influência da famí-
lia, da religião, da classe social e da sua nacionalidade nunca foram totalmente
bem sucedidos. Velho e venerável continuava a ser o filho pródigo, bombar-
o MARGINAL ^ J 17

deando tios ricos com cartas suplicantes ou insinuando-se nas boas graças
de primos distantes que estivessem a ponto de redigir os seus testamentos.
Quando morreu, encontraram uma fotografia daguerreótipo do pai no bolso
do seu casaco. Foi colocada no caixão e enterrada no cemitério de Highgate.
Estava tolhido — embora contrariado — pela força da sua lógica. N u m
precoce ensaio escolar aos 17 anos, «Reflexões de um Jovem sobre a Esco-
lha de uma Profissão», Karl Marx observava que «nem sempre podemos
alcançar a posição para a qual julgamos ter vocação; as nossas relações em
sociedades começam, em certa medida, a ser estabelecidas antes de nos en-
contrarmos em posição de as determinar»."* O seu primeiro biógrafo, Franz
Mehring, pode ter exagerado ao detectar o germe do marxismo nesta frase,
mas a observação é pertinente. Mesmo em plena maturidade, Marx insistia
que os seres humanos não podem ser isolados nem abstraídos das suas circuns-
tâncias sociais e económicas — ou da arrepiante sombra dos antepassados.
«A tradição de todas as gerações mortas», escreveu em O Dezoito Brumário de
IMÍS Bonaparte, «pesa como uma montanha no espírito dos vivos.»
Um dos antepassados paternos de Marx, Joshue Heschel Lwow, foi n o -
meado rabino de Trier em 1723 e o cargo tornou-se uma espécie de sinecu-
ra familiar desde então. O tio Samuel de Karl sucedeu como rabino da cidade
ao avô, Meier ílalevi Marx. E mais gerações mortas foram acrescentadas à
carga pela mãe de Karl, Henriette, uma judia holandesa em cuja famíHa «os
filhos eram rabinos há séculos» — incluindo o pai dela. Como filho mais
velho de tal família, Karl talvez não tivesse escapado ao seu destino rabínico
senão fossem aquelas «circunstâncias sociais e económicas».^
Ao peso das gerações mortas somou-se a asfixiante tradição espiritual de
Trier, a cidade mais antiga da Rehânia.
Conforme Goethe observou lugubremente após uma visita em 1793:
«No interior das suas muralhas é sobrecarregada e até mesmo oprimida por
igrejas, capelas, claustros, estabelecimentos de ensino e edifícios dedicados
a ordens religiosas e de cavalaria, para nada dizer das abadias, conventos
cartuxos e instituições que a cercam, não! Obstruem-na.»*" Todavia, quando
foi anexada pela França durante as Guerras Napoleónicas, os habitantes fo-
ram expostos a ideias tão pouco germânicas como à liberdade constitucio-
nal e da imprensa e — ainda mais significativamente para a família Marx —
à tolerância religiosa. Embora a Renânia fosse reincorporada na Prússia im-
perial pelo Congresso de Viena, três anos antes do nascimento de Marx, o
inebriante odor do Século das Euzes francês ainda pairava no ar.
18 ^ ^ KARLiMARX

O pai de Karl, Hirschel, era dono de várias vinhas de Moselle e membro


moderadamente próspero da classe média educada. Mas também era judeu.
Apesar de nunca totalmente emancipados sob o regime francês, os judeus
da Renânia tinham saboreado suficientemente liberdade para ansiar por mais.
Quando a Prússia recuperou a Renânia de Napoleão, Hirschel solicitou ao
novo governo o fim da discririíinação contra si e os seus «companheiros de
crença». Mas sem resultado: os judeus de Trier estavam agora sujeitos a u m
édito de 1812 que os impedia de exercer cargos públicos ou praticar qual-
quer profissão. Pouco disposto a aceitar as penalidades sociais e financeiras
de uma cidadania de segunda classe, HirscheU renasceu como Heinrich Marx,
patriota alemão e cristão luterano. O seu judaísmo há muito que não passa-
va de um acidente ancestral e não uma fé constante e profunda.
(«Nada recebi da minha família», dizia, «a não ser, devo confessá-lo, o
amor da minha mãe.»)
A data do seu baptismo é desconhecida, mas converteu-se certamente
por altura do nascimento de Karl: registos oficiais provam que Hirschel co-
meçou a exercer advocacia em 1815 e, em 1819, celebrou a nova respeita-
bilidade adquirida pela família mudando do apartamento alugado com cin-
co divisões para uma casa com dez quartos perto da antiga entrada romana
para a cidade. Porta Nigra.
O Catolicismo parece ter sido a escolha mais óbvia para o que, essencial-
mente, não passou de um casamento espiritual de conveniência, a Igreja à
qual ele agora pertencia mal tinha 300 fiéis numa cidade cuja população era
de 11 400. Mas esses adeptos contavam com a presença de alguns dos mais
influentes indivíduos de Trier. Como um historiador notou: «Para o Estado
prussiano, os membros da sua religião oficial representavam o núcleo dig-
no de confiança, leal e sólido, numa Renânia predominantemente católica ro-
mana e perigosamente francófila.»^
N ã o que Hirschel fosse imune ao encanto gaulês: durante o domínio
napoleónico, fora penetrado por ideias francesas quanto a política, religião,
vida e arte, tornando-se «um autêntico "francês" do século XVIII que conhe-
cia Voltaire e Rousseau de cor». Também era sócio activo do Clube do Casino
de Trier, onde os cidadãos mais esclarecidos se reuniam para discutir poK-
tica e literatura. E m Janeiro de 1834, quando Karl tinha 15 anos, Heinrich
organizou um banquete no clube para prestar homenagem aos deputados
«liberais» recentemente eleitos para a Assembleia da Renânia, sendo o seu
brinde ao rei da Prússia ruidosamente aplaudido — «a cuja magnanimidade
o MARGINAL ^ J 19

pela criação das primeiras instituições de representação popular estamos


gratos. N a plenitude da sua omnipresença, decidiu por vontade própria que
os membros da Dieta se reunissem, a fim de a verdade poder chegar aos de-
graus do trono.»
Esta extravagante bajulação a um rei fraco e anti-semita pode parecer
sarcástica, e foi provavelmente assim interpretada pelos folgazões mais ba-
rulhentos. («A plenitude da sua magnanimidade», que lata!) Mas Heinrich foi
perfeitamente sincero; não era nenhum revolucionário. N o entanto, a pró-
pria menção de «representação popular», por muito cautelosamente velada
pela adulação e a moderação, era suficiente para alarmar as autoridades de
-Berlim: a ironia é, com frequência, a única arma do dissidente numa terra de
censores e espias da polícia, e os agentes do Estado prussiano — sempre
alerta — tinham tendência a detectar troça onde não havia nenhuma. E a im-
prensa local foi proibida de pubHcar o discurso. Após uma reunião do Clu-
be do Casino oito dias mais tarde, em que os sócios cantaram a Marselhesa
e outros cantos revolucionários, o Governo colocou o edifício sob vigilân-
cia policial, repreendeu o governador provincial por permitir tais traiçoei-
ras reuniões e designou Heinrich Marx como provocador perigoso.
Qual foi a reacção da mulher perante tudo isto? É bastante provável que
ele lhe tenha ocultado o caso. Henriette Marx não partilhava os apetites in-
telectuais do marido: era uma mulher pouco educada -— meio analfabeta,
para dizer a verdade — , cujos interesses começavam e acabavam na família
quanto à qual se inquietava incessantemente. Ela mesma admitia padecer de
«amor maternal excessivo», e uma das poucas cartas sobreviventes que en-
viou ao filho — escrita quando ele estava na universidade — comprova am-
plamente esse diagnóstico: «Permite-me observar, meu querido Karl, que
nunca deves tomar a limpeza e a ordem como algo de secundário, pois a
saúde e a boa disposição dependem delas. Insiste rigorosamente para que o
teu alojamento seja limpo com frequência, e estabelece u m prazo determi-
nado para que o façam — e tu, meu querido Karl, esfrega-te u m vez por
semana com esponja e sabão. Como é que te arranjas para tomar café, és m
quem o faz ou como é que é? Informa-me, por favor, de tudo sobre a tua casa.»^
A imagem da Sra. Marx como uma pessoa congenitamente inquieta foi con-
firmada por Heinrich: «Conheces a tua mãe e sabes como ela é ansiosa...»
U m a vez fugido do ninho, Karl pouco mais teve a ver com a mãe —
excepto quando tentava, sem muito sucesso, extorquir-lhe dinheiro. Muitos
anos mais tarde, depois da morte da amante de Engels, Mary Burns, Marx
20 ^ 0 KARL MARX

enviou ao amigo uma brutal carta de pêsames: «Estou a ser importunado por
causa das propinas e da renda... E m ve2 da Mary, não devia ter sido antes
a minha mãe que, de qualquer modo, é um poço de doenças e já gozou a sua
parte de vida?»^

Karl Marx nasceu no quarto do andar de cima de uma casa localizada em


Brückergasse, 664, uma rua movimentada que vai dar à ponte sobre o rio
Moselle. O pai tinha alugado o prédio há apenas u m mês e mudou de casa
quando Karl tinha 15 meses. N o entanto, o local do seu nascimento, do qual
não se lembrava, foi comprado pelo Partido Social Democrata alemão, em
Abril de 1928, e tem sido um museu dedicado à sua vida e época desde então
— à parte um terrível interludio, entre 1933 e 1945, quando foi ocupado pelos
nazis e usado como sede de um dos seus jornais. Depois da guerra, foram
enviadas cartas a solicitar dinheiro para consertar os estragos causados pelos
grosseiros ocupantes. Uma das respostas, datada de 19 de Março de 1947,
vinha assinada pelo secretário internacional do Partido Trabalhista Britâni-
co: «Caro camarada, lamento, mas o Partido Trabalhista Britânico não está
preparado, como organização, para apoiar o vosso comité internacional na re-
construção da casa de Karl Marx em Treves (o nome de Trier em inglês), pois
os seus recursos são destinados à conservação de monumentos semelhan-
tes de Karl Marx em Inglaterra. Fraternalmente vosso, Denis Healey.»
Trata-se de um história incrível: os londrinos procurarão de balde os mo-
numentos aos quais Healey «destinou», supostamente, os recursos do seu
partido. Mas, pelo menos, a casa está de pé. A uns cem metros de distância
encontra-se o sítio da antiga sinagoga de Trier, presidida por tantos antepas-
sados de Marx. A única marca da sua presença é uma placa num lampião da
esquina, que não necessita ser traduzido: Hier stand diefrühere Trierer Synagoge,
die in der Progromnacht im November 1938 durch die Nationalsozialisten i^erstört wurd
Além da mania de obrigar as irmãs a comer bolos de lama, pouco se sabe
da infancia de Marx. Parece ter sido educado particularmente até 1830, ano
em que foi admitido no Liceu de Trier — cujo director, H u g o Wyttenbach,
era amigo de Heinrich Marx e um dos fundadores do Clube do Casino.
E m b o r a Karl rejeitasse mais tarde os colegas de liceu chamando-lhes
«campónios», os professores eram, na sua maior parte, humanistas liberais
que faziam o que podiam para civilizar os saloios. E m 1832, depois de uma
manifestação em Hambach a favor da liberdade de expressão, a polícia in-
vadiu o liceu e encontrou literatura sediciosa — incluindo discursos do
o MARGINAL ^ ^ 21

protesto em Hambach — a circular por entre os alunos. U m rapaz foi pre-


so e Wyttenbach foi colocado sob estreita vigilância. Dois anos mais tarde,
a seguir ao nefasto jantar no Casino de Janeiro de 1834, os professores de
Matemática e Hebreu foram acusados dos ignóbeis crimes de «ateísmo» e
«materialismo». Para diminuir a influência de Wyttenbach, as autoridades no-
mearam um sinistro reaccionário chamado Loers como co-director.
«Acho a posição do b o m Sr. Wyttenbach extremamente dolorosa», dis-
se Heinrich ao filho depois de assistir à investidura de Loers. «Podia ter cho-
rado pela ofensa infligida a este homem, cuja única falta é ser demasiado bon-
doso. Manifestei-lhe o melhor que podia a alta estima que sinto por ele e
disse-lhe, entre outras coisas, que tu lhe és muito dedicado.. .»^°
Mas quando Marx provou a sua devoção recusando-se a falar com o in-
truso conservador, apanhou um raspanete do pai.
«O Sr. Loers levou muito a peito o não te teres despedido dele», escre-
veu Heinrich depois de Karl se ter matriculado em 1835. «Tu e o Clemens
(outro rapaz) foram os únicos... Fui obrigado a recorrer a uma pequena
mentira e dizer-lhe que tínhamos lá ido quando ele se encontrava ausente.»"
Era esta a verdadeira índole de Heinrich, colérico mas tímido, infeliz mas
obediente, sempre a deixar a prudência sobrepor-se ao atrevimento.
O filho, ao contrário, preferia adoptar a atitude do tigre.
«As reformas sociais nunca são concretizadas pela fraqueza dos fortes»,
escreveu Karl Marx ao avisar a classe operária para não esperar quaisquer
gestos filantrópicos por parte dos capitalistas. «Mas sempre pela forças dos
fracos.»^^
Podia argumentar-se que ele personificava este princípio. E m b o r a o seu
poder intelectual raramente vacilasse, o corpo que continha esta tremenda
fecundidade criativa era realmente um recipiente bastante fraco. Era quase
como se ele quisesse testar nele mesmo, desafiando as suas limitações físi-
cas e procurando a força da sua própria fraqueza, o que advogava para o
proletariado.
Até mesmo em pleno vigor da juventude — antes da pobreza, das insó-
nias, da má comida, bebida excessiva e do tabaco o ter debilitado — , ele era
um espécime frágil.
«Nove cursos parece-me muito e eu não gostaria que fizesses mais do que
o teu corpo e espírito podem suportar», aconselhou Heinrich Marx pouco
depois de o filho entrar, aos 17 anos, na Universidade de Bona, em 1835. «Ao
alimentares saudável e vigorosamente o teu espírito, não te esqueças de que
22 *i!*e I<CARLMARX

neste mundo miserável ele é sempre acompanhado pelo corpo, o qual de-
termina o bem-estar de toda a máquina. U m estudante doente é o ser mais
infeliz da Terra. Por conseguinte, não estudes mais do que a tua saúde pode
suportar.»^^
Karl não ligou, nem nessa altura nem nunca: e, anos mais tarde, traba-
lhou muitas vezes noites inteiras à custa de cerveja barata e charutos infectos.
Com a sua habitual franqueza impetuosa, o rapaz retorquiu que se sentia de
facto doente — o que provocou outro severo sermão do seu polónio pai.
«Os pecados de juventude, em qualquer recreação imoderada, ou até
mesmo nociva, são horrivelmente punidos. Aqui, o Sr. Giinster é um triste
exemplo disso. É verdade que no caso dele não se trata de vício, mas o ta-
baco e a bebida deram-lhe cabo dos pulmões e ele dificilmente resistirá até
ao Verão.»^'*
A mãe, inquieta como sempre, incluiu a sua própria lista de recomenda-
ções: «Tens de evitar tudo o que possa piorar a tua saúde; não deves excitar-
-te muito, beber demasiado vinho ou café, comer comida picante, muita pi-
menta ou outros condimentos. Não deves fumar nem deitar-me muito tarde.
E levanta-te cedo. Tem também cuidado para não apanhares frio, querido
Karl, e não dances até te sentires novamente bem.»^^
Pode-se sem risco afirmar que a mãe não era lá muito divertida.
Pouco depois dos 18 anos, Marx foi dispensado do serviço militar por
causa de problemas respiratórios, embora ele possa muito bem ter exagera-
do o seu estado físico. (A suspeita de cunhas é fortalecida por uma carta do
pai aconselhando-o a como escapar à tropa: «Querido Karl, se puderes, tenta
arranjar aí certificados de médicos competentes e conhecidos. Podes fazê-
-lo com boa consciência... Mas sê consistente com a tua consciência e não
fumes demasiado.») A suposta incapacidade não prejudicou certamente que
ele se divertisse à grande. U m «Certificado de Dispensa» oficial, emitido de-
pois de Marx ter passado um ano na Universidade de Bona, apesar de lou-
var os seus sucessos académicos («zelo e atenção excelentes»), notava que ele
«tinha sido castigado com um dia de detenção por perturbar a paz à noite em
estado de embriaguez... Foi subsequentemente acusado de transportar armas
proibidas em Colónia. A investigação ainda está pendente. Não se suspeita que
tenha participado em qualquer associação proibida de estudantes».^''
As autoridades universitárias não sabiam da missa a metade. É verdade
que o Clube dos Poetas — ao qual se juntou no primeiro trimestre — não
era uma «associação proibida», mas também não era tão inocente como o
o MARGINAL ( Ä J 23

nome sugeria: os debates sobre poesia e retórica constituíam uma cobertu-


ra para conversas mais sediciosas. «Como podes bem acreditar, o teu peque-
no círculo agrada-me, muito mais do que as reuniões nas cervejarias», escre-
veu Heinrich Mark, imaginando, muito satisfeito, que o seu rapaz aproveitava
a ocasião para discutir literatura.
Dava-se o caso de Marx também não ser nenhum estranho nas cerveja-
rias. Era co-presidente do Clube Taberna de Trier, sociedade com cerca de
30 estudantes universitários da sua cidade natal, cuja principal ambição era
embebedarem~se o mais frequente e ruidosamente quanto possível: foi de-
pois de uma dessas pândegas que o jovem Karl se viu detido durante 24
horas, embora a prisão não tivesse impedido os companheiros de lhe trazer
ainda mais bebidas alcoólicas e baralhos de cartas para amenizar a senten-
ça. E m 1836, houve uma série de zaragatas entre a malta de Trier e um des-
tacamento de jovens do Borussia Korps, que obrigavam os estudantes ca-
lões a ajoelhar e a jurar fidelidade à aristocracia prussiana. Marx comprou
uma pistola para se defender contra estas humilhações e, quando visitou
Colónia, em Abril, a «arma proibida» foi descoberta n o decorrer de uma
rusga policial. Só uma suplicante carta de Heinrich Marx a um juiz de Colónia
é que persuadiu as autoridades a não apresentar queixa. Dois meses mais tar-
de, depois de mais um confronto com o Borussia Korps, Marx aceitou um
desafio para um duelo. O resultado deste combate entre um aplicado estudante
míope e um soldado treinado era demasiado previsível, e Marx teve sorte em
safar-se com apenas um pequeno ferimento acima do olho esquerdo.
«Os duelos estão assim tão interligados com a filosofia?», perguntou-lhe
o pai em estado de desespero. «Não deixes que essa inclinação, e, no caso de
não ser inclinação, essa loucura, se enraíze em ti. Poderás vir a privar-te e aos
teus pais das grandes esperanças que a vida oferece.»"
Após um ano de «feroz rebalderia em Bona», Heinrich Marx ficou todo
contente por autorizar o filho a passar para a Universidade de Berlim, onde
haveria menos tentações extracurriculares.
<A-qui não há bebidas, nem duelos, nem agradáveis passeios em grupo»,
tinha observado o filósofo Ludwig Feuerbach dez anos antes quando ali es-
tudava. «Em nenhuma outra universidade se encontra um tal paixão pelo tra-
balho ... Comparadas com este templo de estudos, as outras universidades
parecem tabernas.»
N ã o admira que Heinrich estivesse tão ansioso para assinar os documen-
tos necessários a fim de consentir à mudança.
24 * ^ KARI.MARX

«Não só concedo a devida autorização ao meu filho, Karl Marx, como


também é de minha vontade que ele seja admitido na Universidade de Berlim
n o próximo trimestre para ali prosseguir os seus estudos de Direito...»
Quaisquer esperanças de que o caprichoso jovem poderia agora concen-
trar-se nos esmdos sem distracções caíram rapidamente por terra: Karl Marx
tinha-se apaixonado.

O único amigo dos tempos da escola de Trier com quem Marx manteve
ligações em adulto era Edgar von Westphalen, um pateta amigável e diletante
com ideias revolucionárias. Esta amizade duradoura nada tinha a ver com as
qualidades de Edgar e tudo a ver com a irmã dele, a encantadora Johanna
Bertha Julie Jenny von Westphalen, mais conhecida por Jenny, a qual veio a
ser a primeira e única Sra. Karl Marx.
Era um excelente partido. Ao revisitar a sua cidade natal muitos anos mais
tarde, Karl escreveu afectuosamente a Jenny: «Todos os dias e em todos os la-
dos, perguntam-me pela quondam mais "bonita rapariga de Trier" e a "rainha dos
bailes". É um enorme prazer para um homem ter uma mulher que vive assim,
como uma "princesa encantada", na imaginação de uma cidade inteira.»^**
Pode parecer surpreendente que uma princesa de 22 anos, da classe di-
rigente prussiana — filha do barão Ludwig von Westphalen — , se tivesse
apaixonado por u m espertalhão burguês judeu, quatro anos mais novo do
que ela e não por um impetuoso nobre de farda bordada e fortuna pessoal;
mas Jenny era uma rapariga inteligente e livre pensadora que achou a fan-
farronice intelectual de Marx irresistível. Depois de se livrar do seu preten-
dente oficial, um respeitável jovem alferes, ficou noiva de Karl durante as
férias de Verão de 1836. Ele sentiu-se tão orgulhoso que não conseguiu dei-
xar de se gabar diante dos pais, mas a notícia foi mantida secreta da família
de Jenny durante quase um ano.
O s motivos desta dissimulação são suficientemente óbvios à primeira
vista. O barão Ludwig von Westphalen, funcionário superior do governo
provincial da Prússia real, era um homem de linhagem duplamente aristo-
crática: o pai tinha sido chefe do Estado-Maior durante a guerra dos Sete
Anos, e a mãe escocesa, Anne Wishart, descendia dos condes de Argyll. U m
puro-sangue de tal m o d o magnífico dificilmente desejaria que a filha se
encabrestasse com o descendente plebeu de uma longa linhagem de rabinos.
U m exame mais minucioso, contudo, revela que tanto segredo é inexpli-
cável, pois Von Westphalen não era snobe nem reaccionário. Após um ca-
o MARGINAL ^ß 25

samento aristocrata convencional, que tinha produzido quatro convencio-


nais filhos aristocratas — um dos quais, Ferdinand, se tornou mais tarde num
diabólicamente tirânico ministro do Interior do Governo prussiano — , o
barão estava agora casado com Caroline Heubel, uma decente e modesta
mulher da classe média, que era mãe de Jenny e E d g a r (A sua primeira
mulher, Lisette Velthéim, morrera em 1807). Como já não era obrigado a dar-
-se ares nem graças ou a preocupar-se com o seu estatuto social, as qualida-
des naturais do barão Ludwig eram mais evidentes — afável, culto e liberal
e benigno. Como protestante num cidade católica, pode ter-se sentido um
marginal; simpatizava, certamente, com os párias da vida. N o s relatórios
oficiais que enviava para Berlim, chamava a atenção sobre a «grande e cres-
cente pobreza» das classes mais baixas de Trier, mas sem apresentar moti-
vos nem propor soluções. Era um espécime quase perfeito do conservador
Hberal bem intencionado, pesaroso pelas privações dos pobres, mas desfru-
tando as regaKas da sua própria vida.
Assim como Heinrich Marx, para dizer a verdade. Os dois homens co-
nheceram-se pouco depois de Von Westphalen ser colocado em Trier, em
1816, e descobriram que tinham muito em comum, incluindo o gosto pela
literatura e a filosofia do século das Luzes. Apesar de indubitavelmente
monárquicos e patriotas, ambos eram favoráveis — soffo voce e com extrema
delicadeza — a algumas reformas moderadas que pudessem temperar os
excessos do absolutismo prussiano. C o m o Henrich Marx, Ludwig von
Westphalen tornou-se membro do Clube do Casino e foi, a partir de então,
tratado com circunspecta suspeita pelos seus superiores em BerHm.
As duas mulheres nada tinham em comum. Caroline von Westphalen era
uma anfitriã generosa e viva, sempre a organizar leituras de poesia ou noi-
tes musicais, enquanto Henriette Marx era obtusa, inarticulada e socialmente
desajeitada. Para os filhos Marx, a casa dos Von Westphalen, em Neustrasse,
era um refúgio de luz e vida. Sophie Marx e Jenny von Westphalen foram
amigas íntimas durante a maior parte da infância: quando Jenny, que conta-
va então cinco anos, viu pela primeira vez o seu futuro marido, ele era ain-
da um bebé de colo. Como o irmão dela, um ano mais velho que Karl, Jenny
foi enfeitiçada pelos olhos escuros desta criança dominadora («ele era u m ti-
rano terrível») e nunca mais escapou.
O barão começou igualmente a reparar no precoce amigo dos filhos. A o
contrário do seu próprio filho, Edgar, o rapazinho Marx tinha fome de co-
nhecimento e a sua rápida inteligência permitia-lhe digeri-lo com toda a fa-
cilidade. N o s longos passeios que davam juntos. Von Westphalen recitava
26 * ^ KARL MARX

longas passagens de Homero e Shakespeare ao seu jovem companheiro.


Marx veio a saber de cor grande parte da obra de Shakespeare — e utiliza-
va-a com bom efeito, condimentando os seus escritos de adulto com ana-
logias e citações apropriadas das peças.
«O seu respeito por Shakespeare era ilimitado; fez um minucioso estu-
do das suas obras e conhecia até mesmo os seus personagens menos impor-
tantes», lembrava-se Paul Lafargue, genro de Marx. «Toda a família dele ti-
nha um verdadeiro culto pelo grande dramaturgo inglês; as três filhas sabiam
muitos dos seus textos de cor e salteado. Quando, depois de 1848, ele quis
aperfeiçoar os seus conhecimentos de inglês, língua que já conseguia 1er,
procurou e assentou todas as expressões originais de Shakespeare.»^^
No fim da vida, Marx recordava esses momentos felizes passados com
Von Westphalen declamando cenas de Shakespeare — bem como Dante e
Goethe — enquanto conduzia a família até Hampstead Heath para o pique-
nique de domingo.
«As crianças lêem constantemente Shakespeare», disse ele a Engels, com
enorme orgulho paternal, em 1856.^°
Aos 12 anos, a filha de Marx, Jenny, comparou o seu antigo secretário,
Wilhelm Pieper, a Benedick, de Much Ado About Nothing— ao que a irmã de
11, Laura, retorquiu que Benedick era urn homem de espírito e Pieper ape-
nas um palhaço, «e ainda por cima sem graça nenhuma».
No decorrer dos longos anos de exílio, as únicas incursões de Marx na
cultura inglesa foram para, de vez em quando, ir ver os grande actores
shakespearianos Salvini e Irving. Não é coincidência o facto de uma das filhas
de Marx, Eleanor, ter-se dedicado ao teatro e uma outra, a pequena Jenny, an-
siar fazer o mesmo. Como o professor S. S. Prawer comentou, toda a gente em
casa de Marx era obrigada a viver «em perpétua agitação de alusões à literatu-
ra inglesa.»^^ Havia citações para todas as ocasiões — para arrasar um inimi-
go político, para animar um árido texto sobre economia, para realçar uma piada
de família ou dar veracidade a uma emoção intensa. Numa carta de amor es-
crita à mulher 13 anos depois de se terem casado, Marx revelou mais uma vez
a duradoura influência que o barão Von Westphalen tinha exercido sobre ele:

«Estás diante de mim em carne e osso. Levanto-te nos meus braços e


beijo-te toda da cabeça aos pés, caindo de joelhos e gritando, ' Amo-te", E
amo-te deveras com um amor que o Mouro de Veneza jamais sentiu...
Quem entre os meus numerosos caluniadores e viperinos inimigos jamais
me censurou de ser chamado para representar o papel do herói romântico
o MARGINAL efM 27

numa peça de segunda ordem? E, conmdo, é verdade. Se os patifes fossem


espertos teriam representado "as relações produtivas e sociais" de um lado
e, do outro, eu a teus pés. E, por baixo, teriam escrito: "Olhem para esta
9? 99

imagem e para isto. »

A última frase, como Jenny não precisaria que lhe dissessem, era tirada
de Hamkt.
Porquê, então, se mostraram Karl e Jenny tão relutantes em falar do noi-
vado aos pais dela? Talvez Karl pensasse que a diferença de idades contaria
contra ele: casamentos com mulheres mais velhas ainda eram suficientemen-
te raros para parecerem um crime contra as leis da natureza. O u talvez te-
messe que, apesar de toda a sua generosidade de espírito, o barão tentaria
dissuadir a sua adorada filha a unir o seu destino ao de um brilhante, mas
pusilânime, não conformista. A vida com Karl nunca seria monótona, mas
a promessa de estabilidade ou prosperidade era reduzida.

A parte Jenny von Westphalen, a maior paixão da juventude de Max foi


por um filósofo morto, G. W. E Hegel. Tal paixão seguiu o mesmo curso de
muitos casos amorosos: prudência tímida, a intoxicante excitação do primei-
ro beijo, rejeição do ser amado à medida que o amor se desvanece. Mas, nos
escaninhos da vida adulta, ele manteve-se grato por essa iniciação. Muito
depois de repudiar o hegelianismo e declarar a sua independência intelectual,
Marx falava com afecto do homem que o tinha emancipado. Tinha ganho
o direito de repreender Hegel com a robusta honestidade de u m amigo ín-
timo; mas os estranhos não eram autorizados a tamanha Uberdade.
«Critiquei o aspecto mistificador da dialéctica de Hegel há quase 30 anos,
numa altura em que estava ainda na moda», escreveu em 1873. «Mas, quan-
do trabalhava no primeiro volume de O Capital, o grande prazer dos arro-
gantes, medíocres e rabugentos epígonos que, agora, falam com bazofia na
Alemanha culta, era de tratar Hegel como o bravo Moses Mendelssohn na
época de Lessing tratava Espinosa, quer dizer, como um "cão morto". Ad-
miti abertamente, por conseguinte, ser discípulo desse considerável pensa-
dor e até aqui e aU, no capítulo sobre a teoria do valor, namorisquei com as
formas de expressão que lhe eram particulares. A mistificação que a dialéctica
sofre nas mãos de Hegel, de modo algum o impede de ser o primeiro a apre-
sentar a sua forma geral de trabalho de maneira consciente e compreensiva.»^^
Era, de facto, muito raro que Marx dirigisse um cumprimento a alguém
com quem tinha discordado: normalmente, aqueles que provocavam o seu
28 1 ^ KARL MARX

descontentamento podiam esperar ser chamados asnos e imbecis dali em


diante. Heinrich Heine era uma excepção, pois Marx acreditava que os de-
feitos dos grandes poetas deviam ser perdoados; e parece que ele aplicava
a mesma regra às imperfeições dos grandes filósofos. Para os medíocres, con-
tudo — poetastros, tolos presumidos, imbecis presunçosos — , nenhum epí-
teto era demasiado duro. E ao ver Hegel ser atacado por mentes inferiores,
Marx soube logo que lado tomar.
Sobretudo porque ainda se sentia em dívida para com ele, como confessou
muitos anos mais tarde. Hegel empregou uma metodologia radical para che-
gar a conclusões conservadoras. O que Marx fez foi manter a estrutura dia-
léctica, descartando a algaraviada mística — como um homem que compra
uma capela desconsagrada e transforma numa moradia secular e habitável.
O que é a dialéctica? Como qualquer criança de escola com um par de
imãs — ou, para o caso, qualquer agência de casamentos — pode confirmar,
os opostos atraem-se. Se assim não fosse, a raça humana já estaria extinta.
A fêmea acasala-se com o macho e, do seu abraço suado, emerge uma nova
criatura que, eventualmente, repetirá o processo. N e m sempre, claro está,
mas de forma suficientemente frequente para assegurar a sobrevivência e o
progresso das espécies.
A dialéctica desempenha a mesma função para o espírito humano. U m
ideia, posta a nu, tem uma atracção apaixonada pela sua antítese, da qual surge
uma síntese, a qual, por sua vez, se torna uma nova tese que será devidamente
seduzida por um novo amante demoníaco. Duas coisas erradas podem dar
uma certa — mas, pouco depois do seu nascimento, essa coisa certa torna-se
noutra errada, que tem de ser sujeita ao mesmo íntimo escrutínio que os seus
antepassados e, desta maneira, seguimos em frente. O próprio entrosamento
de Marx com Hegel era em si mesmo uma espécie de processo dialéctico, do
qual emergiu a criança sem nome que viria a ser materialismo histórico.
É evidente que estou a simplificar; mas somos obrigados a simplificar
Hegel pois, de outro m o d o , grande parte do seu trabalho permaneceria
impenetravelmente obscuro. Aos 18 anos e recentemente chegado à Univer-
sidade de Berlim, o próprio Marx troçou dessa opacidade e ambiguidade
numa série de epigramas intitulados «Sobre Hegel».

«Ensino palavras todas misturadas numa confusão diabólica.


Assim, todos podem pensar o que decidem pensar;
Nunca, pelo menos, se é estorvado por limitações rigorosas.
o MARGINAL iy'%:- 29

Saindo às bolhas do dilúvio, mergulhando do alto da falésia,


Assim são as palavras e os pensamentos da Amada que o Poeta concebe;
Compreende o que pensa, inventa livremente o que sente.
E, assim, todos podem sugar o nutritivo néctar de tal sabedoria;
Agora sabem tudo, pois disse-vos uma data de nada!»^'*

Marx incluiu o poema num caderno de versos «dedicado ao meu querido


pai na ocasião do seu aniversário, como insignificante marca de amor eter-
no». O velhote deve ter-se deleitado por saber que o filho não tinha sucum-
bido à epidemia de adoração de Hegel que infectava quase todas as institui-
ções do país. N u m a das suas cartas para Berlim, Heinrich preveniu Karl
contra a contagiosa influência hegeliana — «Os novos imoralistas que tor-
cem as suas palavras até eles próprios não as ouvirem; que nomeiam produto
de génio uma enxurrada de palavras porque é desprovida de ideias.»^^
Era pouco provável que alguém tão infinitamente curioso e argumenta-
dor como Karl Marx resistisse por muito tempo. Hegel ocupou a cadeira de
filosofia em Berlim desde 1818 até à sua morte, em 1831, e por volta da ins-
crição de Marx na universidade, cinco anos mais tarde, os seus herdeiros
intelectuais ainda se batiam pela herança. N a sua juventude, Hegel tinha sido
um simpatizante idealista da Revolução Francesa, mas, a exemplo de tantos
outros radicais — então como agora — , acomodou-se quando chegou à
meia-idade, acreditando que um homem verdadeiramente maturo deveria re-
conhecer «a. necessidade objectiva e a natureza razoável do m u n d o que en-
contra». O mundo em questão — o Estado prussiano — era uma manifes-
tação completa e final do que ele chamava o Espírito Divino ou Ideia (Geist).
Sendo isto assim, não restava mais nada para os filósofos debaterem. Quais-
quer outras discussões quanto ao status quo era pura vaidade.
Este tipo de argumento tornou-o naturalmente muito popular entre as
autoridades prussianas que o brandiram como prova que o seu sistema de
governo era não apenas inevitável como também não podia ser melhorado.
«Tudo o que é real é verdadeiro», tinha escrito Hegel; e como não havia dú-
vidas de que os estado era real, no sentido que existia, devia por conseguin-
te ser racional e irrepreensível. Aqueles que defendiam o aspecto subversi-
vo dos seus primeiros trabalhos — os chamados jovens hegeiianos —
preferiam citar a segunda metade dessa famosa: «Tudo o que é racional é
real.» Uma monarquia absoluta, sustida por censores e polícia secreta, era ma-
nifestamente irracional e, por conseguinte, irreal, uma miragem, ou espec-
tro, que desapareceria no momento em que alguém ousasse tocar nela.
30 ^ ^ I<CARLMARX

Estudante na Faculdade de Direito de Berlim, Marx tinha um lugar na


primeira fila da arena. O seu professor-assistente de jurisprudencia era
Friedrich Karl von Savigny, um reaccionario severo e magro que, apesar de
não ser hegeliano, era contudo da opinião que o governo e as leis de um país
constituíam um processo orgânico que reflectia o carácter e a tradição do seu
povo. Pôr em questão o absolutismo prussiano era desafiar a natureza: mais
vaüa, então, exigir uma reforma na estrutura dos carvalhos ou a aboHção da
chuva. A perspectiva alternativa era representada pelo gorducho e jovial pro-
fessor de criminologia, Eduard Gans, um hegeliano radical que acreditava
que as instituições deveriam antes ser sujeitas a criticismo racional do que a
veneração mística.
Durante o seu primeiro ano em Berlim, Marx resistiu à tentação da filosofia:
estava ali, afinal de contas, para estodar direito e, além do mais, não tinha ele
já rejeitado o diabólico Hegel e toda a sua obra? Distraía-se escrevendo poe-
mas líricos, mas produzia apenas «difusas e rudimentares expressões de sen-
timento, nada de natural, tudo criado a partir de banalidades, total oposição
entre o que é e o que deveria ser, reflexões retóricas em vez de pensamen-
tos poéticos.. .>?'•'' (Quando querelamos com os outros, dizia W. B. Yeats, fa-
zemos retórica; quando querelamos com nós mesmos, fazemos poesia.) E m -
preendeu então a redacção de uma filosofia do direito — «um trabalho com
cerca de 300 páginas» — apenas para deparar com o mesmo velho abismo
entre o que é e o que deveria ser: «O que me agradou denominar a metafísica
do direito quer dizer, princípios básicos, reflexões, definições de conceitos
(estava) separado de todas as leis concretas e de todas as formas concretas
da lei.» Pior ainda, não conseguindo estabelecer um ponto de união entre a
teoria e a prática, foi incapaz de reconciliar -afirma da lei com o seu conteú-
do. O seu erro — pelo qual responsabilizou Savigny — «encontra-se no facto
de eu acreditar que matéria e forma podem e devem desenvolver-se separa-
das uma da outra e, assim, obtive uma forma que não era real, mas algo como
uma secretária com gavetas nas quais derramei areia».
O seu trabalho não foi totalmente desperdiçado, «o decorrer desta tarefa»,
revelou. «Adoptei o hábito de fazer resumos de todos os livros que li» — há-
bito que nunca perdeu. A lista de leituras desse período mostra a amplitude
de tais explorações intelectoais: que outra pessoa acharia que valia a pena fa-
zer um minucioso estudo sobre a História ãaA-ri:e, de Johann Joachim Win-
ckelmann, enquanto redigia uma filosofia do direito? Traduziu Germânia, de
Tácito, e Tristia, de Ovídio, e «comecei a aprender inglês e italiano sozinho,
quer dizer, através de gramáticas». N o semestre seguinte, enquanto devorava
o MARGINAL ^ ^ 31

dúzias de livros de estudo sobre processos civis e direito canónico, traduziu


a Retórica, de Aristóteles, leu Francis Bacon e «passei um bom bocado de
tempo embrenhado em Reimarus, cujo Hvro sobre o instinto artístico dos
animais ocupou deliciosamente o meu espírito».
Tudo, sem dúvida, um bom exercício para o cérebro; mas nem mesmo
os animais artísticos podiam salvar a sua magnum opus. Abandonando, deses-
perado, o manuscrito de 300 páginas, o jovem Karl virou-se novamente para
«as danças das Musas e a música dos Sátiros». Escreveu um curto «roman-
ce humorístico». Escorpião e Félix, uma torrente absurda de extravagâncias e
zombarias que foi obviamente escrita sob a influência de Tristam Shandy, de
Lawrence Sterne. Há, todavia, uma passagem que merece ser transcrita:

«Todo o gigante... pressupõe um anão, todo o génio um filisteu


obtuso e toda a tempestade no mar — lama, e assim que os primeiros de-
saparecem, os últimos começam, sentam-se à mesa estendendo arrogan-
temente as pernas compridas.
Os primeiros são demasiado grandes para este mundo e, assim, são
atirados fora; os últimos enraízam-se e ficam, como se pode ver pelos
factos, pois o champanhe deixa um travo repulsivo, César, o herói, dei-
xa atrás dele o comediante Octávio, o imperador Napoleão, o rei burguês
Luís Filipe...»

Ninguém que escreveu sobre Marx parece ter notado a semelhança entre
este conceito chistoso e o famoso parágrafo de abertura do De^oitó Brumário
de Euis Bonaparte escrito 15 anos mais tarde:

«Hegel nota algures que todos os factos e personagens de grande im-


portância da história do mundo ocorrem, como se diz, duas vezes. Es-
queceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia; a segunda como
uma farsa miserável. Caussidière para Danton, Louis Blanc para
Robespierre, o Montagne de 1848-1851 para o Montagne de 1793-1795,
e o polícia de Londres (Luis Bonaparte) corn a primeira dúzia de tenen-
tes gratos que se juntaram ao pequeno sargento (Napoleão) com o seu
bando de marechais! O De^oitó Brumário do idiota para o Dezoito Brumário
do génio!»^^

À parte o sugestivo eco, pouco há em Escorpião e Fé/ix que nos detenha;


e ainda menos em Oulanem, um excessivo drama em verso que range sob o
32 -í I<CARLMARX

peso da influência de Goethe. Depois destas experiências, Marx aceitou final-


mente a morte das suas ambições literárias. «De repente, como se por um
toque mágico — oh, tal toque foi primeiro um golpe devastador — avistei
o distante reino da verdadeira poesia como um longínquo palácio encanta-
do e todas as minhas criações reduziram-se a nada.» A descoberta tinha-lhe
custado muitas noites de insónia e muita angústia. «Um cortina caíra, o meu
sancta sanctorum ficou em pedaços e novos deuses tiveram de ser instalados.»
Sofrendo de uma espécie de quebra física, o médico mandou-o ir descansar
para o campo. Alugou uma casa na pequena aldeia de Stralau, nas margens
do rio Spree, perto de Berlim.
Parece ter ficado ligeiramente desequilibrado nessa altura. Esforçando-
-se ainda para ignorar a voz de sirena de Hegel («a grotesca melodia desafi-
nada de que não gostei»), escreveu um diálogo de 24 páginas sobre religião,
natureza e história — apenas para descobrir que «a minha última proposta
era o princípio do sistema hegeliano». Tinha sido entregue ao inimigo.
«Durante uns dias, o meu dissabor impediu-me de pensar; percorri, furioso,
o jardim à beira das águas sujas do Spree que "lava almas e dilui o chá". (Uma
citação de Heinrich Heine.) Até fui a uma caçada com o meu senhorio, parti
precipitadamente para Berlim e tive vontade de beijar todos os madraços
encostados às esquinas.» Curiosamente, o próprio Hegel tinha atravessado
uma crise semelhante no período em que andava a renunciar aos seus ideais
e a abraçar a «maturidade». O facto de tanto Hegel como Marx terem escri-
to a fundo sobre o problema da alienação — o afastamento em relação a nós
mesmos e à sociedade — não é nenhuma coincidência. N o século XIX, a
«alienação» tinha um significado secundário e era sinónimo de perturbação
ou insanidade: daí os patologistas mentais (ou «médicos de loucos») serem
conhecidos por alienistas.
Enquanto se encontrava em convalescença — restaurando as forças com
longos passeios, refeições regulares e deitando-se cedo — , Marx leu Hegel
de fio a pavio. Por intermédio de um amigo da universidade foi introduzi-
do no Clube dos Doutores, um grupo de jovens hegeUanos que se encon-
travam regularmente no café Hippel, em Berlim, onde passavam noites
ruidosas a discutir e a beber. Entre os seus membros havia o professor-as-
sistente de teologia Bruno Bauer e o filósofo radical Arnold Ruge, ambos
viriam a ser colaboradores intelectuais de Marx — e, uns anos mais tarde,
os seus piores inimigos.
N a noite de 10 de Novembro de 1837, Marx escreveu uma extensa car-
ta ao pai descrevendo a sua conversão e as peregrinações intelectuais que o
o MARGINAL « * ^ 33

tinham conduzido a isso. «Há momentos na vida de uma pessoa que são
como postos fronteiriços marcando o fim de um dado período, mas que, ao
mesmo tempo, indicam claramente uma nova direcção. E m tais momentos
de transição sentimo-nos compelidos a encarar o passado e o presente com
os olhos de águia do pensamento a fim de nos tornarmos conscientes da
nossa posição. Com efeito, a própria história gosta de olhar para trás dessa
maneira para avaliar os acontecimentos...»
Nenhuma falsa modéstia nestes propósitos: aos 19 anos, ele já estava a
experimentar a roupa de um H o m e m de Destino e a descobrir que lhe iam
lindamente. Agora, que iniciara a fase seguinte da vida, queria erguer um mo-
numento ao que tinha vivido... «e onde encontrar lugar mais sagrado do que
o coração de um pai, o juiz mais misericordioso, o simpatizante mais íntimo,
o sol de amor cujo fogo caloroso é sentido no âmago dos nossos esforços!»
A lisonja florida não o levou a lado nenhum. Heinrich não se mostrou
complacente nem misericordioso ao 1er, com crescente horror, toda a his-
tória das aventuras intelectuais do filho. Ter um hegeliano na família era su-
ficientemente vergonhoso; mas o pior era dar-se conta de que o rapaz tinha
andado a desperdiçar tempo e talento com a filosofia, quando deveria uni-
camente ter-se concentrado para obter um b o m diploma de direito e arran-
jar um emprego lucrativo. N ã o tinha ele nenhuma consideração pelos seus
pobres pais? Nenhuma gratidão para com Deus que o tinha abençoado com
tantos e magníficos dons naturais? E a sua responsabilidade para com a
futura mulher — «uma rapariga que, dados os seus notáveis méritos e a sua
posição social, fez um enorme sacrifício ao abandonar as suas esperanças e
brilhante situação por um futuro incerto e sem fulgor acorrentando-se ao
destino de um h o m e m mais novo»? Mesmo que Karl não se preocupasse
com os nervos da mãe e o pai doentes, devia certamente sentir-se obrigado a
assegurar um futuro feliz e próspero à Hnda Jenny; e isso dificilmente poderia
ser conseguido a 1er livros sobre animais artísticos num quarto cheio de fumo.

«Que calamidade!!! Desordem, incursões em todos os departamen-


tos d o conhecimento, ruminações sorumbáticas à luz bruxuleante de
uma lamparina, andar por aí descomposto e despenteado numa toga de
letrado em vez de procurar distracção num copo de cerveja; compor-
tamento insociável sem nenhum respeito pelo mínimo d e c o r o . . . E é
aqui, nesta oficina de erudição insensata e inadequada, que os frutos
que te hão-de refrescar, a ti e aos teus entes queridos, vão amadurecer
34 1 ^ KARL MARX

e a colheita que servirá para cumprires as tuas sagradas obrigações será


armazenada!?»^'

Esta mordaz repreensão — a qual também é uma descrição precisa dos


métodos de trabalho usados por Marx durante toda a vida — foi dada em
Dezembro de 1837, quando Heinrich já se encontrava gravemente doente
com tuberculose. Soa como o ultimo grito desesperado de um moribundo
que pôs todas as esperanças na geração seguinte — apenas para ver essas es-
peranças serem amarfanhadas como uma folha de papel inútil. Fortalecen-
do-se com um punhado de comprimidos receitados pelo médico, ele lançava
uma chuva de queixas ao filho desalmado. Karl raramente respondia às cartas
dos pais; nunca se informava da sua saúde e, num ano, gastara quase 700
táleres do dinheiro deles, «enquanto os ricos gastavam menos de 500»; tinha
enfraquecido o corpo e o espírito com abstracções e «criado monstros»;
nunca regressava a casa durante as férias e ignorava os irmãos e irmãs. Até
mesmo Jenny von Westphalen, que anteriormente fora louvada até aos pín-
caros, revelava-se agora como outro objecto de irritação: «Mal se tinham
acabado as tuas loucas andanças em Bona, mal te tinhas lavado dos teus
antigos pecados — os quais eram realmente inúmeros — quando, para nosso
espanto, surgiu a tua paixão... Ainda tão novo, desHgaste-te da tua famíHa...»
O que era verdade; mas este rosário de queixumes dificilmente serviria para
os reunir. Os pais de Karl suplicaram-Ihe que viesse passar uns dias em Trier
durante as férias da Páscoa de 1838, mas ele recusou.
A verdade era que Marx tinha abandonado a família. A distância entre eles
pode ser avaliada por uma carta de Heinrich, de Março de 1837, em que su-
geria que Karl escrevesse uma ode heróica para ganhar nome: «Deveria con-
tribuir para honrar a Prússia e proporcionar a oportunidade de atribuir um
papel ao génio da monarquia... Se for executada com espírito patriótico
alemão e profundidade de sentimentos, uma tal ode seria em si suficiente para
estabelecer os alicerces de uma reputação.» Julgava realmente o velho homem
que o filho queria glorificar a Alemanha e a sua monarquia? Talvez não.
«Posso apenas aconselhar-te», concedeu lamentosamente. «Superaste-me;
nesta questão, és, em geral, superior a mim e, por isso, deixo que decidas
como quiseres.»
Heinrich Marx morreu aos 57, a 10 de Março de 1838. Karl não assistiu
ao funeral. A viagem de Berlim seria demasiado longa, explicou, e tinha
coisas mais importantes para fazer.
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM

Ao longo dos três anos passados na Universidade de Berlim, Marx rara-


mente foi às aulas e estava com frequência endividado. A morte do pai sig-
nificava o fim de uma mensalidade regiilar, mas também aliviava a pressão
paterna de estudar direito.
«Seria estúpido dedicares-te a uma carreira prática», aconselhou-o Bruno
Bauer. <A. teoria é, agora, a prática mais forte e somos absolutamente inca-
pazes de predizer até que ponto se tornará prática.»
A missão dos jovens hegelianos era infiltrarem-se na academia e estabe-
lecer as suas teorias como a nova forma de conhecimento. Marx começou
a trabalhar numa tese de doutoramento, que o qualificaria para o posto de
professor-assistente, sobre o tema «A Diferença entre as Filosofias Demócri-
to e Epicurista».
Não podia ter escolhido um momento menos propício, pois coincidia
com uma nova e meticulosa purga da ala esquerda hegeliana. Eduard Gans,
o último hegeliano da Faculdade de Direito, morreu inesperadamente em
1839 e foi substituído pelo severo reaccionário Julius Stahl. O próprio Bauer
foi expulso do departamento de teologia pouco depois e obrigado a procu-
rar refúgio na Universidade de Bona. Em 1836 Bauer tinha afirmado, com
certa veemência, que a religião deveria manter-se acima e para além do
criticismo filosófico e, agora, proclamava o seu ateísmo aos quatro ventos.
Recomendou vivamente a Marx que continuasse a dissertação e que se jun-
tasse a ele em Bona o mais depressa possível. Outro jovem radical profeti-
zou que «se Marx, Bruno Bauer e Feuerbach se juntassem para fundar uma
revista teofilosófica, Deus teria todo o interesse em pedir a protecção de to-
dos os anjos, porque estes três iriam certamente expulsá-lo do céu.»^
36 ^ « 8 KARL MARX

Felizmente, Deus tinha amigos prussianos que ocupavam cargos impor-


tantes e, depois da subida ao trono de Frederico Guilherme IV, em 1840, a
perseguição aos dissidentes duplicou, sendo imposta rigorosa censura a to-
das as publicações e a liberdade académica suprimida.
Perdido na inóspita cidade de Berlim, Marx já não se dava ao trabalho de
ir às aulas. D e dia, ficava a 1er, a escrever e a fumar nos seus aposentos e, à
noite, discutia e divertia-se com as almas gémeas que frequentavam o Clube
dos Doutores. E m b o r a o seu estudo de Demócrito e Epicuro pudesse pa-
recer suficientemente inofensivo, ele sabia que não valia a pena submeter a
sua tese aos professores de Berlim — sobretudo porque seria minuciosamen-
te examinada por F W Von Schelling, velho filósofo anti-hegeHano que, por
ordem pessoal do novo rei, entrara para a universidade em 1841, a fim de
extirpar influências daninhas. Apesar da aparente aridez do tópico de Marx,
o estudo comparativo de D e m ó c r i t o e Epicuro era uma obra original e
ousada, na qual ele se propunha provar que a teologia devia ceder o lugar à
superior sabedoria da filosofia e que o cepticismo haveria de triunfar do
dogma. Expôs o seu argumento na primeira página como u m desafio:

«Enquanto uma gota de sangue pulsar no seu coração totalmente Hvre


e conquistador do mundo, a filosofia há-de constantemente bradar aos
seus oponentes o grito de Epicuro: "A impiedade não consiste em des-
truir os deuses da multidão, mas sim em atribuir aos deuses as ideias da
multidão." A filosofia não esconde tal coisa. A proclamação de Prome-
teu — " N u m a palavra, odeio todos os deuses." — é a sua própria pro-
fissão de fé, o seu próprio lema contra todos os deuses do céu e da Terra
que não reconhecem a consciência humana como sendo a divindade
máxima. Além desta, não haverá nenhuma outra.»^

N o espírito de travessura beligerante que viria a ser uma particularidade


das suas polémicas posteriores, Marx acrescentava um pequeno apêndice
para troçar da perda de fé liberal d o seu tutor. Citando u m ensaio que
Schelling tinha escrito há mais de 40 anos — «Chegou o momento de pro-
clamar a liberdade do espírito à melhor parte da humanidade e deixar de to-
lerar que eles deplorem a perda das suas correntes» — , perguntava: «A al-
tura já tinha chegado em 1795, e, então, no ano de 1841?»
Schelling não teve a possibilidade de responder. Marx decidiu submeter
a tese à Universidade de Jena, a qual tinha a reputação de conceder diplomas
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM o ( ^ 37

sem debate nem atrasos. Foi obrigado a incluir o certificação de dispensa de


Bona (que mencionava as estroinices com armas de fogo e copos) e uma
referência dos plenipotenciários do governo real da Universidade de Berlim
que não encontraram «nada de particularmente desfavorável quanto a dis-
ciplina», a não ser que «em várias ocasiões, ele foi processado por dívidas».
O director do departamento do Filosofia de Jena, o Dr. Carl Friedrich Bach-
mann, decidiu que essas infracções insignificantes podiam ser descartadas
pois o ensaio sobre Demócrito e Epicuro «dá provas de tanta inteligência e
perspicácia quanto erudição e, por isso, considero o candidato por excelên-
cia digno de mérito». A 15 de Abril de 1841, apenas nove dias depois de ter
enviado a sua dissertação para Jena, Karl Marx doutorou-se em Filosofia.
HerrDoktorMatx estava agora preparado para se lançar no mundo. Mas,
no ano seguinte, andou numa viravolta entre Bona, Trier e Colónia, aparen-
temente sem saber o que fazer. A tese fora dedicada «ao seu querido pater-
nal amigo, Ludwig von Westphalen... como marca de amor filial» e, no de-
correr de várias visitas a Tier, ignorou significativamente a mãe, dedicando-se
ao barão doente (o qual viria a falecer em Março de 1842) e à paciente Jenny,
cuja adoração pelo seu «pequeno javali selvagem» era tão intensa c o m o
dantes, apesar das suas Jongas ausências.
«O meu pequenino coração está tão repleto, tão tl"ansbordante de amor,
desejo e ardentes saudades de ti, meu infinitamente amado», escreveu. «É
certo, não é, que posso câsar-me contigo?»^ Claro, claro concordava ele, mas
ainda não. O casamento teria de ser adiado até arranjar um emprego remu-
nerado, pois a desgraçada da mãe tinha-lhe cortado a mesada e retinha a sua
parte da herança de Heinrich Marx.
E m Julho de 1842, Marx foi morar com Bruno Bauer em Bona, onde os
dois depravados passaram um tumultuoso Verão a chocar a burguesia local
— embriagando-se, rindo na igreja, cavalgando montados em burros atra-
vés das ruas da cidade e (ainda mais subversivamente) redigindo um panfleto
anónimo, «A última Trompeta do Juízo Final contra o Ateu e Anticristo
Hegel». A primeira vista, tratava-se de um piedoso ataque contra Hegel, es-
crito por um cristão devoto e conservador, para provar que ele era ateu re-
volucionário, mas a sua verdadeira intenção, assim como a identidade dos au-
tores, em breve se tornava evidente. U m jornal hegeliano comentou com ar
entendido que todos os bauer (camponês, em alemão) perceberiam o verda-
deiro significado. Bruno Bauer foi expulso da universidade e, com ele, de-
sapareceu a última possibilidade de Marx obter um cargo académico.
38 ^ B KARL MARX

«Tenho de ir para Colonia dentro de uns dias, pois acho intolerável a pro-
ximidade dos professores de Bona», disse Marx ao filósofo hegeliano radi-
cal, Arnold Ruge, em Março de 1842. «Quem desejaria estar sempre a falar
com texugos intelectuais, gente que estuda apenas n o intuito de encontrar
impasses ao virar de todas as esquinas do mundo!»'*
U m mês mais tarde, mudava de ideias: «Abandonei o plano de me ins-
talar em Colónia. A vida é muito barulhenta para o meu gosto e o grande
número de amigos que lá tenho não é bom para quem estuda filosofia.. . A s -
sim, continuo por enquanto a residir em Bona; seria uma pena, afinal de
contas, se ninguém ficasse aqui e os homens sagrados não tivessem com
quem se 2angar.»^
Mas a atracção de Colónia era difícil de resistir. O «barulho» de que ele
se queixava era como um eco das reuniões do Clube dos Doutores no café
Hippel — a principal diferença era a qualidade das bebidas.
«Como estou contente que te sintas feliz», escreveu Jenny a Karl em
Agosto de 1841. «E que bebas champanhe em Colónia, que haja aí clubes
hegelianos e que tenhas andado a sonhar.. .»^
O champanhe parecia ser um lubrificante mais apropriado do que a cer-
veja bebida em BerHm: Colónia era a maior e mais rica cidade da Renânia,
a qual era, por sua vez, a província mais política e industrialmente avançada
de toda a Prússia, e os banqueiros e homens de negócios locais tinham re-
centemente começado a reivindicar uma forma de governo mais adequada
a uma economia moderna do que o antiquado e asmático sistema da monar-
quia absoluta e a opressão burocrática sob a qual trabalhavam. C o m o o
próprio Marx assinalou muitas vezes anos mais tarde, a natureza da socie-
dade é ditada pelas suas formas de produção; e agora que o capitalismo
industrial se estabelecera, a conversa nos bares de Colónia era a de que a de-
mocracia, uma imprensa livre e uma Alemanha unificada tinham de ser es-
tabelecidas. Não constituía portanto nenhuma surpresa que a cidade atraísse,
c o m o u m imã, os pensadores heréticos e os boémios descontentes que
ofereciam a riqueza do seu conhecimento em troca do conhecimento da ri-
queza dos magnatas. O filho desta união era Rheinische Zeitung, jornal Uberal
fundado no Outono de 1841 por u m grupo de abastados fabricantes e finan-
ceiros (incluindo o presidente da Câmara de Comércio de Colónia) para de-
safiar o conservador e lúgubre Kölnische Zeitung.
Retrospectivamente, era inevitável que Marx escrevesse para esse jornal
e viesse rapidamente a ser o seu génio. Mas, embora o Marxismo tenha sido
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM „v^-:- 39

frequentemente caricaturado como uma doutrina de «inevitabilidade histó-


rica», ele sabia muito bem que os destinos individuais não são antecipada-
mente ordenados — embora tivesse tendência para subestimar a importância
dos acasos e das coincidências na formação de uma vida. O que é que teria
acontecido se Bruno Bauer não tivesse sido expulso da universidade? E se
o Dr. Marx tivesse encontrado uma sinecura universitária em vez de ser
obrigado —faute de mieux-— a exprimir a sua irrequieta inteligência através
do jornalismo?
A sorte pode tê-lo ajudado a decidir o seu destino; mas era uma sorte que
ele procurara. Isto era mais um desses postos fronteiriços que marcam os
territórios inexplorados. Hegel tinha servido os seus objectivos e, desde que
deixara Berlim, os pensamentos de Marx tinham passado do idealismo para
o materialismo, do abstracto para o real.
«Como toda a verdadeira filosofia é a quintessência intelectual da sua épo-
ca», escreveu em 1842. «Deve chegar uma altura em que a filosofia, não ape-
nas internamente pelo seu conteúdo mas também externamente através da sua
forma, entra em contacto e em interacção com o mundo real do seu dia.»^
Tinha acabado por desprezar os argumentos confusos e nebulosos dos
liberais alemães «que pensam que h o n r a m a liberdade colocando-a n o
firmamento estrelado da imaginação e não no solo firme da realidade».^
Graças a esses sonhadores etéreos, a liberdade na Alemanha não era mais do
que uma fantasia sentimental. A nova direcção tomada por Marx requeria,
evidentemente, outro exaustivo e fatigante curso para se educar a si mesmo,
mas isso não desencorajava um autodidacta tão insaciável como ele.
C o m p ô s o seu primeiro ensaio jornalístico em Fevereiro de 1842, n o
decorrer de uma visita ao moribundo barão Von Westphalen em Trier, e
enviou-o para Arnold Ruge, em Dresden, a fim de ser incluído no novo jor-
nal dos Jovens Hegelianos, oDeutsche Jahrbücher. O artigo era uma brilhante
polémica contra as últimas instruções de censura emitidas pelo rei Frederico
Guilherme IV — e, com gloriosa se não intencionada ironia, o censor proi-
biu-o imediatamente. E o próprio DeutcheJahrbücher íoi encerrado meses mais
tarde por ordem do Parlamento federal.
Resmungando contra o «repentino restabelecimento da censura saxó-
nica», Marx esperava ter melhor sorte em Colónia, onde vários dos seus ami-
gos já estavam instalados no Rheinische Zeitung. O director, Adolf Rutenberg,
era um camarada que gostava da pinga do Clube dos Doutores (e cunhado
de B r u n o Bauer), mas, c o m o estava quase sempre embriago, o fardo de
40 ^ 0 KARL MARX

publicar o jornal recaía a maior parte das vezes sobre Moses Hess, socialis-
ta jovem e rico. Mais tarde, Hess tornou-se um feroz inimigo, mas, nessa
época, a sua atitude para com Marx era de reverência. Escreveu o seguinte
ao seu amigo Berthold Auerbach:

«Ele é um fenómeno e, apesar das nossas actividades serem bastante se-


melhantes, impressionou-me enormemente. Em resumo, podes preparar-
te para conhecer o maior filósofo — e talvez o único genuíno — da nos-
sa geração. Quando se dá a conhecer publicamente, quer por escrito ou nas
salas de conferência, atrai a atenção de toda a Alemanha... O Dr. Marx
(tal é o nome do meu ídolo) ainda é muito jovem — cerca de 24 anos no
máximo. Vai dar o coup de grâce a religião medieval e à filosofia; combina a
mais profunda seriedade filosófica com a ironia mais mordaz. Imagina
Rousseau, Voltaire, Holbach, Lessing, Heine e Hegel fundidos numa só
pessoa... Digo "fundidos", não justapostos —, e tens o Dr. Marx.»'

Nessa altura, Marx teve o mesmo efeito sobre quase toda a gente que en-
controu. Apesar dos homens do Clube dos Doutores de BerHm e do Círculo
de Colónia serem oito ou dez anos mais velhos do que ele, a maior parte
tratava-o com imenso respeito. Quando Friedrich Engels chegou a Berlim
para fazer o serviço militar poucos meses depois de Marx ter partido, des-
cobriu que o jovem renano já era uma lenda. Um poema escrito por Engels
em 1842 conta com uma viva descrição do seu futuro colaborador — que
ele ainda não conhecia —, baseada inteiramente nas recordações admirativas
dos seus companheiros intelectuais:

Quem enfrenta tudo com feroz impetuosidade?


«Um tipo trigueiro de Trier, uma reconhecida monstruosidade.
Não desliza nem dá pulinhos, mas move-se aos saltos.
Divagando aos brados. Como se fosse agarrar e puxar
a imensa tenda do Céu cá para baixo.
Abre os braços e estende-os para o céu.
Abana o punho violento, delira freneticamente
como se dez mil diabos o agarrassem pelos cabeios'.»^*^

Era, de facto, moreno (daí ser alcunhado Mouro) e a sua pele escura era
realçada pelo espesso cabelo preto que parecia crescer de quase todos os
poros das faces, braços, orelhas e nariz.
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM Í * ^ 41

É fácil deixar escapar o óbvio e talvez seja por isso que tão poucos au-
tores que escreveram sobre Marx repararam no que estava à vista": ele era,
tal como Esaú, um homem peludo. No entanto, na recordação de todos qtie
o conheceram, o efeito impressionante dessa juba magnífica é repetidas vezes
mencionado. Eis a opinião de Gustav Mevissen, um homem de negócios de
Colónia, em 1842: «Karl Marx, de Trier, era um homem corpulento de 24
anos, cujo espesso cabelo preto jorrava das faces, dos braços, do nariz e das
orelhas. Era apaixonado, dominador, impetuoso, e a confiança que tinha em
si mesmo era ilimitada...» E o poeta George Herwegh, que veio a conhecer
Marx em Paris, disse: «Cabelo preto luxuriante ocultava-Ihe a testa. Poderia
desempenhar soberbamente o papel do último dos escolásticos.» Pavel
Annenkov, que encontrou Marx em 1846: «A sua aparência era notável.
Tinha uma cabeleira muito preta e mãos peludas... parecia um homem com
o direito e o poder de impor respeito.» Friedrich Lessner: «Tinha uma fronte
alta muito bem desenhada, o cabelo espesso e preto de azeviche... Marx era
um líder nato.» Cari Schurz: «Homem um pouco corpulento de testa ampla,
cabelo muito preto e olhos escuros cintilantes que atraía imediatamente a
atenção. Tinha a reputação de ser muito letrado...» Wilhelm Liebknecht, ao
escrever em 1896, ainda tremia ao lembrar-se do momento em que, 50 anos
antes, tinha «enfrentado o olhar daquela cabeça leonina de juba negra».
Esta exuberância de aparência negligente era deliberadamente estudada.
Tanto Marx como Engels compreenderam o poder do aspecto hirsuto, con-
forme provaram num aparte sarcástico a meio de um panfleto sobre o poeta
e crítico Gottfried Kinkel, escrito em 1852:

«Londres proporcionou uma nova e complexa arena onde recebeu


ainda mais aclamações ao homem venerado. Ele não hesitou: teria de ser
o leão da temporada. Com isto em mente, absteve-se, durante certo tem-
po, de toda actividade política e retirou-se a fim de deixar crescer a bar-
ba sem a qual nenhum profeta é bem sucedido.»^^

Talvez pela mesma razão, Marx deixou crescer o cabelo e a barba na uni-
versidade e cultivou-os com orgulho ao longo da idade adulta até ficar tão
lazudo como um rebanho de ovelhas. (Um espião prussiano em Londres, ao
enviar um relatório em 1852 para os seus patrões em Berum, achou impor-
tante incluir que «ele nunca faz a barba».)
Friedrich Engels também parece ter formulado uma teoria política quan-
to ao pêlo facial muito cedo. «Domingo passado tivemos uma noite bigo-
42 ^ O KARLMARX

deira», escreveu Engels, aos 19 anos, à irmã em Outubro de 1840. «Enviei


uma circular a todos os jovens em idade de ter bigode dizendo-lhe que
chegara finalmente a altura de horrorizar osfiHsteuse que nada seria melhor
do que usar bigode. Por conseguinte, todos aqueles que tinham coragem para
os desafiar e usar bigode deveriam assinar a petição. Recolhi uma dúzia de
bigodes e, depois, fixámos o dia 25 de Outubro, quando os nossos bigodes
já teriam um mês, para festejar o bigode comum.»^"*
Esta festa pogonológica, ocorrida na adega da Câmara de Bremen, con-
cluiu com um provocante brinde:

«Os filisteus esquivam-se aos pêlos


Escanhoando esmeradamente o rosto
Não somos filisteus e, por conseguinte,
Deixamos o bigode florir em liberdade.»

Embora o bigode se espalhasse mais tarde pelo rosto, a barba rala de


Engels não se comparava à magnífica plumagem marxista. A imagem de Karl
Marx, que se tornou familiar através de numerosos cartazes, estandartes
revolucionários, bustos heróicos — e a famosa lápida do cemitério de Highgate
—, perderia muito da sua ressonância icónica sem aquela auréola frisada.
Marx não era um grande orador — era ligeiramente cioso e o ríspido
sotaque renano era muitas vezes incompreensível —, mas a mera presença
deste javali de pelos eriçados era suficiente para inspirar respeito e intimidar.
O historiador Karl Friedrich Koppen, um hahutué do Clube dos Doutores,
ficava paralisado sempre que se encontrava na companhia de Marx. «Mais uma
vez tenho pensamentos próprios», escreveu pouco depois do seu temível
amigo ter partido de Berlim em 1841. «Ideias que (como se diz) produzi por
mim próprio, enquanto as anteriores vinham de longe, nomeadamente de
Schützenstrasse (onde Marx vivia). Agora, posso realmente trabalhar de novo
e agrada-me caminhar por entre imbecis sem rne sentir um deles...» Após ter
Hdo um artigo de Bruno Bauer sobre a política do Cristianismo, Koppen dis-
se a Marx que «sujeitei a ideia a um interrogatório poHcial e pedi para ver o seu
passaporte, e verifiquei, então, que também emanava de Schützenstrasse. Por
isso, como vês, és um autêntico armazém de ideias, uma fábrica inteira ou
(utilizando o calão de Berlim) tens o cérebro de um estudante marrão.»
Quando Marx começou a trabalhar para o Rheinische Zeitung, os seus co-
legas notaram que a sua irrequieta impetuosidade intelectual também se
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM ^ß 43

manifestava através de uma distracção que o tornava simpático aos olhos dos
outros. O jornalista Karl Heinzen adorava observar Marx sentado numa ta-
berna a olhar miopiamente para um jornal enquanto tomava o café da
manhã. «De repente levantava-se e, depois, sentava-se a outra mesa esten-
dendo a mão para um jornal inexistente; ou, quando ia protestar ao censor
o corte de um artigo e, em vez de mostrar o artigo em questão, tirava outro
recorte ou um lenço e voltava a sair.»^^
Igualmente divertido para aqueles que tinham estômago forte, era o gosto
de Marx por rebalderias e zaragatas. Heinzen descreve uma noite em que teve
de conduzir Marx depois de terem bebido várias garrafas de vinho:

«Assim que entrei, ele fechou a porta, escondeu a chave e começou


a gritar cómicamente que eu era seu prisioneiro. Convidou-me a subir
até ao seu gabinete e eu sentei-me num sofá para ver o que é que este ex-
cêntrico iria fazer. Esqueceu-se imediatamente de que eu estava ali.
Encavalitou-se numa cadeira e pôs-se a cantarolar, num tom meio triste,
meio trocista, em voz alta: «Pobre tenente, pobre tenente! Pobre te-
nente, pobre tenente!» Este lamento dizia respeito a um tenente prus-
siano que ele «corrompera», ensinando-lhe os princípios da filosofia
hegeliana...
Depois de lamentar o tenente durante um bocado, levantou-se e, de
repente, deu-se conta de que eu estava na sala. Aproximou-se de mim,
fez-me compreender que eu me encontrava em seu poder e, com atitu-
des que mais lembravam um miúdo travesso do que o diabo que ele
tentava imitar, começou a atacar-me com ameaças e os punhos. Pedi-lhe
para me poupar esse género de coisas, porque não tinha feitio para lhe
pagar na mesma moeda. Mas ele insistiu e, então, eu preveni-o seriamente
que lhe daria uma Hção que ele não esqueceria tão cedo. Como isso tam-
bém não desse resultado, atingi-o de forma a ele estatelar-se a um canto
da sala. Quando ele se levantou, disse-lhe que o achava um chato e pedi-
-Ihe para me abrir a porta. Foi a vez de ele se mostrar triunfante: «Então
vai para casa, fortalhaço», troçou fazendo caretas cómicas. Era como se
estivesse a recitar as palavras de Fausto, «Há alguém preso no interior...»
O sentimento era, pelo menos, semelhante, mas a sua ridícula imitação
de Mefistófeles tornava a situação muito cómica. Avisei-o, por fim, que
se ele não me abrisse a porta, eu abri-la-ia sozinho e ele teria de pagar os
estragos. Continuou a fazer troça e eu, então, desci e arrombei a porta..
44 % ^ * I<CARLMARX : . : / . • ; -

Gritei-lhe depois da rua para ele voltar a fechar a porta por causa dos la-
drões. Espantado por eu ter escapado ao seu fascínio, ele veio debruçar-
-se à janela olhando para mim com os seus pequenos olhos arregalados
como um fantasma assustado.»

A continuação é previsível: anos mais tarde, Marx denunciou Heinzen


acusando-o de ser um grosseiro filisteu («chato, bombástico, gabarolas»), e
foi por sua vez apodado de «egoísta indigno de confiança» pelo seu tempo-
rário prisioneiro. Engels entrou, então, na liça, chamando Heinzen «a pes-
soa mais estúpida do século»^'' e ameaçando-o dar-lhe uma carga de pancada.
Heinzen retorquiu que não se deixava intimidar por «um frívolo diletante».
E assim por diante interminavelmente. Em 1860, depois de ter emigrado
para os Estados Unidos, Heinzen ainda guardava rancor e descreveu Marx
num artigo como sendo um cruzamento entre um gato e um macaco, um
sofista, um mero diletante, um aldrabão e um intriguista, conhecido pela sua
compleição amarelada, cabeio preto desgrenhado, olhos pequeninos possuí-
do por «um espírito maligno», nariz arrebitado, beiço inferior invulgarmente
grosso, uma cabeça que sugeria tudo menos idealismo ou nobreza e um.
corpo sempre vestido com roupa suja.
Marx foi com frequência acusado de ser um intimidador intelectual, em
particular por aqueles que sentiram toda a força das suas invectivas. (Uma
das suas tiradas contra Karl Heinzen, publicada em 1847, tem quase 30
páginas.) A sua violência verbal agradava-lhe certamente de sobremaneira.
O seu estilo, como um amigo observava admirativamente, é o que o stilus—
estilete de ponta afiado usado para escrever e espetar — era originalmente
nas mãos dos Romanos. «O estilo é o punhal utilizada para ser lançado cer-
teiramente ao coração.»"
Heinzen achava que não era tanto um punhal como uma bateria de ar-
tilharia — lógica, dialéctica, erudita — para aniquuar quem quer que discor-
dasse dele. Marx, dizia, queria «quebrar vidros de janelas a canhão». No en-
tanto, a acusação de intimidador não pode ser sustida. Marx não era covarde
e não atormentava apenas aqueles que não podiam retaliar: a sua escolha de
vítimas revela uma temeridade corajosa, que explica o porquê de ele passar
a maior parte da vida adulta no exílio e politicamente isolado.
Para provar isto basta ver o primeiro artigo que escreveu para o Jiheinische
Zeitung, em Maio de 1842, no qual comentou acerbamente os debates da
Assembleia Provincial do Reno sobre liberdade de imprensa. É evidente que
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM tn^ 45

criticou a intolerância opressiva do absolutismo prussiano e os seus baju-


ladores, o que, apesar de não ser surpreendente, demonstrava bastante co-
ragem. Mas, com um grito exasperado de «Deus e livre dos amigos!» mostrou-
-se ainda mais cáustico em relação à pobreza de espírito da oposição liberal.
Enquanto os inimigos da liberdade de imprensa eram motivados por uma
emoção patológica que dava convicção e sentimento aos seus argumentos
absurdos, «os defensores da imprensa nesta Assembleia não têm, globalmente,
nenhuma relação real com o que estão a defender. Nunca encararam a liberdade
de imprensa como uma necessidade vital Para eles, trata-se de uma questão ce-
rebral em que o coração não desempenha nenhum papel». Citando Goethe —
que disse que um pintor pode apenas ser bem sucedido com um tipo de beleza
feminina que tenha amado pelo menos em alguém —, Marx sugeriu que a
liberdade de imprensa também tinha a sua beleza, a qual uma pessoa tem de
amar para a defender. Mas os supostos liberais da Assembleia pareciam levar
vidas repletas e satisfeitas, enquanto a imprensa estava acorrentada.
Depois de ter criado inimigos tanto no Governo como na oposição, tam-
bém em breve se virou contra os seus próprios confrades. Georg Jung, um
conhecido advogado de Colónia ligado ao Kheinische Zeitung, considerou-o
«o diabo de um revolucionário», e os jovens radicais da redacção ficaram mui-
to esperançados quando Marx foi nomeado director, em Outubro de 1842.
Mas iriam ficar desapontados. Marx expôs a sua poKtica editorial numa res-
posta 2JòA.ugshurgerAllgemeine Zeitung,x]}ie acusara o rival de namorar com o
comunismo:

«O Kheinische Zeitung, que nem sequer admite que as ideias comunis-


tas, na sua presente forma, possuam realidade teórica e, por conseguinte,
deseja ainda menos a sua concreti^çãoprática ou até mesmo a considera
possível, sujeitará essas ideias a crítica minuciosa... Trabalhos como
os de Leroux, Considérant e, acima de tudo, a obra contundente de
Proudhon, não podem ser criticados superficialmente, mas apenas de-
pois de longo e profundo estudo. 18

Não há dúvida de que ele tinha um olho no censor — e nos accionistas


do jornal, todos capitalistas burgueses. Mas era exactamente isso que que-
ría dizer. Marx não gostava da atitude de alguns colegas, como o bêbedo
Rutenberg (que, embora o seu trabalho consistisse principalmente èm inserir
sinais de pontaação, ainda lá trabalhava) e Moses Hess. E ainda se mostrava
46 ^ ^ KARL MARX

mais irritado pelas macaquices dos brincalhões dos Jovens Hegelianos em


Berlim que agora se apelidavam «Os Livres» e faziam jus ao nome critican-
do Hvremente tudo — o Estado, a Igreja e a família —-, e advogavam osten-
sivamente a libertinagem como dever político. Considerava-os gente en-
tediante e frívola que se autoproclamava. «Numa época em que se exige
hombridade, seriedade e sobriedade para alcançar objectivos elevados, a
canalhice e a indisciplina devem ser pública e resolutamente repudiadas»,
disse aos seus leitores.
Mas havia uma certa hipocrisia nessa palavras: como os seus companhei-
ros de Colónia poderiam testemunhar, ele nem sempre se portava de modo
ordeiro, ou sóbrio; e a solene desaprovação de acções espaventosas vinda de
um homem que, há bem pouco tempo, tinha atravessado ruidosamente as
ruas de Bona montado num burro soava um pouco estranho. Mas a sua
actual responsabilidade como director de um jornal tinha-o feito mudar de
ideias: as tropelias juvenis já não erafn aceitáveis.
A contrariedade mais persistente era Eduard Meyen, chefe da licencio-
sa clique de Berlim, que continuava a enviar «montes de escritos repletos de
palavras de ordem para revolucionar o mundo e vazios de ideias». No decor-
rer da débil e indiscriminada intendência de Rutenberg, Meyen e o seu ban-
do vieram a tomar o Kheinische Zeitung como seu território privado. Mas o
novo director fê-los compreender que não permitiria que eles empapassem
o jornal numa torrente de verborreia. «Considero inapropriado e até mes-
mo imoral passar clandestinamente doutrinas comunistas e socialistas, e, por
conseguinte, uma nova perspectiva mundial, à sombra de críticas teatrais,
etc.», escreveu. «Caso o comunismo venha a ser discutido, exijo que o seja
de modo diferente e de forma mais pormenorizada.»^^
A capacidade de Marx para falar de comunismo era entravada pelo fac-
to de ele nada saber do assunto. Os seus anos de estudo académico tinham-
-Ihe ensinado toda a filosofia, teologia e leis que ele viria provavelmente a ne-
cessitar, mas em termos de economia e poKtica, ele ainda era um novato.
«Como director do Kheinische Zeitun§>, admitiu muitos anos mais tarde.
«Experimentei pela primeira vez o embaraço de ter de participar em discus-
sões sobre interesses materiais.»^*^
A sua primeira aventura a este território inexplorado foi uma longa crí-
tica à nova lei contra o roubo de madeira nas florestas particulares. Segun-
do um costume antigo, os camponeses podiam apanhar ramos caídos para
lenha, mas, agora, quem apanhasse o mais pequeno galho poderia ser preso.
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM ö ^ 47

Ainda mais escandaloso era o facto de o ofensor ter de pagar o valor da ma-
deira ao dono da floresta, cujo valor seria calculado pelo próprio proprietá-
rio. Tamanha desonestidade legaUzada obrigou Marx a reflectir, pela primeira
vez, sobre a questão de classes, propriedade privada e o Estado. E também
lhe permitiu exercitar o seu talento para demolir um argumento descabido
com a sua própria lógica. Ao assinalar os comentários de um dos fidalgos im-
becis na assembleia provincial — «É justamente por a pilhagem de madeira
não ser considerado furto que acontece tantas vezes» — ele explodiu cole-
ricamente com um reductio ad absurdum característico. «Por analogia, o legis-
lador deveria chegar à seguinte conclusão: é por um murro na cara não ser
considerado crime que acontece com tanta frequência. Deve, por conseguin-
te, ser decretado que um murro na cara é um crime.»^'
Isto pode não ser comunismo, mas era suficientemente grave para preo-
cupar a Administração prussiana — especialmente porque a circulação e a
reputação do jornal estavam a aumentar rapidamente.
«Não imagines que nós, no Reno, vivemos num eldorado poKtico», es-
creveu Marx a Arnold Ruge, cujo Deutsche Jahrbücher uïûiz levado uma seve-
ra repreensão das autoridades de Dresden. «Para dirigir um jornal como o
Rheinische Zeitung é necessário a mais inabalável persistência.»^^
Durante grande parte do ano de 1842, o censor instalado no jornal era
Laurenz DoUeschaU, um poMcia estúpido que chegara a proibir um anúncio da
Divina Comédia, de Dante, porque «o divino não podia ser tema de comédia».
Todas as noites, ao receber todas as provas, ele marcava a lápis azul quaisquer
artigos que não compreendia (a maior parte) e, consequentemente, o director
tinha de passar horas a convencê-lo de que eram inofensivos — enquanto os
tipógrafos esperavam até altas horas. Marx gostava de citar o angustiado la-
mento de DoUeschaU sempre que os seus superiores lhe ralhavam por ter
deixado passar algum comentário maléfico: «A minha vida, agora, está em
jogo!» Este pobre funcionário é quase digno de simpatia, pois qualquer cen-
sor suficientemente azarento para ter de discutir com Karl Marx todos os
dias deveria sentir-se muito infeliz. Uma história contada pelo jornaUsta de
esquerda, Wilhelm Bios, demonstra o que DoUeschaU tinha de aguentar:

«Certa noite, o censor foi convidado, juntamente com a mulher e a


filha casadoura, para um grande baile dado pelo presidente da província.
Antes de sair do emprego, contudo, rinha de terminar o trabalho de cen-
sura e, justamente nesse dia, as provas não chegaram à hora do costume.
48 ^ ^ KARL MARX

O censor fartou~se de esperar. Não podia desleixar os seus deveres, mas,


ao mesmo tempo, também não podia deixar de comparecer no baile —
além das possibilidades que isso traria à filha núbil. Eram quase dez horas
e o censor estava a começar a ficar extremamente agitado. Por fim, en-
viou a mulher e a filha à frente e mandou um subalterno buscar as pro-
vas. Mas este voltou passado pouco tempo dizendo que a tipografia es-
tava fechada. Espantado, o censor dirigiu-se de carruagem a casa de Marx,
a qual ficava bastante longe. Já eram onze horas.
Depois do funcionário bater à porta durante largo tempo, Marx apa-
receu finalmente à janela de um terceiro andar.
— As provas! — berrou o censor.
— Não há nenhumas! — gritou-lhe Marx
— Mas...
— O jornal não sai amanhã!
E Marx fechou-lhe a janela na cara. A furia do censor enganado quase o
fez engasgar, mas, a partir daquele momento, mostrou-se mais delicado.»^^

Os seus patrões, contudo, não mudaram de modos e, em Novembro, o


governador provincial que deu o baile, OherpräsidentNovL Schaper, queixou-
-se de que o jornal estava «a ficar cada vez mais impudente», e exigiu que
Rutenberg (o qual ele erroneamente assumiu ser o culpado) fosse demitido
da redacção. Como, de qualquer modo, Rutenberg era um peso morto, isso
não foi um grande sacrifício, e Marx redigiu uma servil carta assegurando Sua
Excelência, que o Rheinische Zeitung àe.?,é]'àY'à unicamente fazer eco «dos vo
tos que, no momento actual, toda a Alemanha envia a Sua Majestade, o Rei,
pela sua carreira ascendente». Como Franz comentou anos mais tarde, a carta
revelava «uma prudência diplomática que nunca mais foi repetida na vida do
seu autor».
Mas não apaziguou Herr Oberpräsident t, em meados de Dezembro, ele re-
comendou aos ministros da censura em Berlim que processassem o jornal
— bem como o anónimo autor do artigo sobre a apanha de madeira — «por
impudência e desrespeito às presentes instituições governamentais». A 21 de
Janeiro de 1843, um mensageiro a cavalo chegou de Berlim com um decre-
to ministerial revogando a licença de publicação do Kheinische Zeitung com
efeito a partir do fim de Março. Os fiéis leitores de toda a Renânia — de
Colónia, Düsseldorf, Aachen e Trier, a cidade natal de Marx — enviaram
petições ao rei suplicando a sua anulação, mas sem resultado. Um segundo
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM a í ^ 49

censor foi instalado para impedir quaisquer actividades nefastas no decor-


rer das semanas finais. «O nosso jornal tem de ser apresentado à poiïcia para
ser farejado», resmungou Marx a um amigo. «E se o nariz da poKcia cheirar
algo pouco cristão, ou antiprussiano, a sua publicação é proibida.»^'*
Como nenhuma justificação foi dada por aquela atitude governamental,
Marx só podia fazer especulações. Tinham as autoridades entrado em pânico
ao se darem conta da popularidade crescente do jornal? Fora ele demasia-
do franco quando tomara a defesa de outras vítimas da censura, como no caso
do Deutsche Jahrbücher, de Ruge? O motivo mais provável, raciocinou, era um
longo artigo publicado uma semana antes do decreto em que ele tinha acusa-
do as autoridades de ignorar a miserável situação económica dos produtores
de vinho de Moselle, os quais não podiam competir com os vinhos baratos
e isentos de impostos que a Prússia importava de outros estados alemães.
Marx estava longe de realizar — embora talvez ficasse satisfeito por o saber
— que havia interesses bem mais fortes a ser tramados nos bastidores. Quem
pedira ao rei da Prússia para suprimir o jornal fora nada menos do que o czar
da Rússia, Nicolau I, o seu mais próximo e necessário aliado, que tinha ficado
ofendido por uma diatribe anti-russa publicada no Kheinishe Zeitung, a 4 de
Janeiro. N u m bane ocorrido no Palácio de Inverno quatro dias mais tarde, o
embaixador da Prússia na corte de Sampetersburgo tinha sido repreendido
pelo czar por causa da «infâmia» da imprensa liberal alemã. O embaixador
enviou uma mensagem urgente a Berlim, informando que os Russos não
podiam compreender «como um censor empregado pelo Governo de Sua
Majestade podia ter deixado passar u m artigo de tal natureza». E foi tudo.
«Hoje, os ventos mudaram», escreveu um censor do Rheinische Zeitungnva
dia depois de Marx ter desocupado a cadeira de director. «Estou bem con-
tente.» O próprio Marx também ficou bastante satisfeito. «Estava a come-
çar a sentir-me asfixiado naquela atmosfera», confiou a Ruge. «É mau ter de
executar tarefas servis mesmo quando são por amor à liberdade; combater
com alfinetes em vez de varapaus. Estou cansado da hipocrisia, da estupi-
dez, da arbitrariedade grosseira e dos nossos salamaleques, artimanhas e
truques por causa de palavras. O Governo devolveu-me a liberdade.»^^
N ã o tinha futuro na Alemanha, mas como a maior parte das pessoas e
das instituições que ele gostava estava agora morta — o pai, o barão Von
Westphalen, o Deutsche Jahrbücher, o Rheinische Zeitung— não havia nada que
o prendesse. O que importava era que, aos 24 anos, ele já soubesse manejar
uma caneta que podia aterrorizar as cabeças coroadas da Europa. Quando
50 ^ ^ KJ^RLMARX . •••,.• •

Arnold Ruge decidiu abandonar o país e fundar um jornal no exilio, o Deutsche-


-Fran^öskhe Jahrbücher, Marx aceitou alegremente o convite de se juntar a ele.
Havia apenas um senão: «Estou comprometido e não posso, não devo nem
deixarei a Alemanha sem a minha noiva.»

Sete anos depois de prometer casar-se com Jenny, até mesmo o pouco
sensível Karl Marx estava a começar a sentir punhaladas de culpa. «Por mi-
nha causa», admitiu em Março de 1843, «a minha noiva tem combatido as
mais violentas batalhas que quase minaram a sua saúde. E m parte contra os
seus piosos parentes aristocratas para quem "o Senhor nos Céus" ou "o
senhor em Berlim" são igualmente objecto de um culto religioso, e, por outra
parte, contra a minha própria família, no seio da qual alguns padres e outros
inimigos meus se instalaram. Durante anos, portanto, a minha noiva e eu te-
mos estado implicados em conflitos mais desnecessários e cansativos do que
muita gente que é três vezes mais velha do que nós.»'^''
Mas nem todas as aflições e tormentos deste longo noivado podiam ser
culpa dos outros. Enquanto Karl se divertia em Berlim ou provocava sari-
lhos em Colónia, Jenny permanecia em casa, em Trier, perguntando-se se ele
ainda a amaria no dia seguinte. As vezes, essas ansiedades eram visíveis nas
suas cartas — as quais eram seguidamente interpretadas por Marx como
prova da inconstância dela. «Fiquei abalada pelas tuas dúvidas do meu amor
e fidelidade», queixava-se Jenny em 1839 — «Oh, Karl, como tu me conhe-
ces pouco, como pouco aprecias a minha posição e como desconheces o meu
pesar... Se pudesses, pelo menos, ser rapariga por um bocadinho e, sobre-
tudo, uma rapariga tão estranha como eu.»
Com as raparigas, conforme ela tentava explicar, era diferente. Conde-
nadas à passividade pelo pecado original de Eva, podiam apenas esperar, so-
frer e resistir. «Uma rapariga, claro está, só pode dar ao homem amor, ela pró-
pria e a sua pessoa, como ela é, toda inteira e para sempre. E m circunstâncias
normais, uma rapariga tem igualmente de encontrar completa satisfação no
amor do homem e esquecer tudo em amor.» Mas como pode ela esquecer-
-se de tudo quando premonições de desgraça zumbem dentro da sua cabe-
ça como abelhas furiosas? <AJi, querido, querido, meu doce amor, agora tam-
bém andas a envolver-te em política», escreveu em Agosto de 1841 enquanto
Marx fazia trinta por uma Hnha em Bona com Bruno Bauer. «É a coisa mais
arriscada de todas. Querido pequenino Karl, nunca te esqueças que tens aqui
uma namorada que te aguarda, sofre e depende totalmente de ti.»^^
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM ^ » 51

Para dÍ2er a verdade, a actividade poKtica dele era a menor das preocu-
pações de Jenny: era certamente perigoso, mas também arrepiantemente he-
róico. N ã o esperava nada menos do seu «selvagem javali preto», o seu «tra-
tante manhoso». O que retinha Jenny de se render à felicidade era o receio
do «teu amor ardente cessar». Havia bons motivos para essas inquietações.
Enquanto estudava em Berlim, Karl caiu sob o encanto da famosa poetisa
romântica Bettina von Arnim — que tinha idade para ser mãe dele — e,
numa ocasião, com obtusa insensibilidade, chegou mesmo a levá-la a Trier
para conhecer a sua futura noiva. A amiga de Jenny, Betty Lucas, testemu-
nhou esse despropositado encontro:

«Uma noite, entrei na sala de Jenny sem bater e vi um pequeno vulto


na semiobscuridade agachado no sofá com os pés no ar e os braços à
volta dos joelhos, que mais parecia uma trouxa do que uma figura huma-
na. Ainda hoje, dez anos mais tarde, compreendo o meu desapontamento
quando essa criatura se levantou e m e foi apresentada c o m o sendo
Bettina von Arnim... As únicas palavras que a sua celebrada boca pro-
feriu foram queixas contra o calor. A seguir, Marx entrou na sala e ela
pediu-lhe em tom autoritário que a acompanhasse ao Rheingrafenstein,
o que ele fez, embora já fossem nove horas e levasse uma hora para lá
chegar. Lançou um olhar triste à noiva e seguiu a famosa mulher.»^^

Como podia uma rapariga pouco culta competir com tais serias? O vi-
gor intelectual de Marx intimidava Jenny. E r a espirituosa, animada e
supremamente segura quando conversava com aristocratas medíocres nos
bailes, mas, na presença do seu adorado, bastava um olhar daqueles olhos
negros e profundos para ela ficar sem saber o que dizer: «De nervoso, não
consigo dizer palavra. O sangue gela-me nas veias e a minha alma treme.»
Quase não vale a pena acrescentar que Jenny era uma criança da Idade Ro-
mântica e, como muitos espíritos irrequietos dessa geração, tinha lido e reli-
do o Prometeu Ubertado, de SheMey, cujo herói estava preso com correntes a uma
rocha por desafiar os deuses e tentar esclarecer a humanidade. («Prometeu é
o santo e mártir mais eminente do calendário filosófico», declarou Marx na sua
tese de doutoramento. Uma caricatura publicada depois da supressão do
Rheinische Zeitung representava Marx disfarçado de Prometeu agrilhoado a uma
prensa de impressão, enquanto uma águia prussiana lhe bicava o fígado.) In-
capaz de acompanhar as impetuosas passadas de Karl, Jenny começou a
sonhar que também ele teria de ser manietado:
52 ^ > e KARL MARX

«Assim, meu querido, desde a tua última carta que me torturo com o
receio de que, por minha causa, tu te envolvas numa disputa e, depois,
num duelo. Vejo-te, dia e noite, ferido, a sangrar e doente. Para te dizer
toda a verdade, Karl, tal ideia não me tornava totalmente infeliz pois
?:•• imaginava vivamente que tinhas perdido a mão direita e isso punha-me
•> num estado de êxtase, de felicidade suprema. Pensei então, meu queri-
•f do, que, nesse caso, eu me tornaria realmente indispensável para ti, que
. ! me guardarias sempre ao teu lado e me amarias. Também pensei que seria
eu então que assentaria todas as tuas preciosas e sublimes ideias e que te
seria realmente útil.»""''

Apesar de ela concordar que isto talvez parecesse «bizarro», trata-se de


uma fantasia romântica bastante comum — o herói que tem de ficar aleija-
do, ou ser emasculado, para ganhar o coração de uma mulher. Anos mais
tarde, Charlotte Bronte utilizou a mesma ideia em Jane Eyre.
O desejo de Jenny foi, mais ou menos, concedido. N o decorrer dos seus
40 anos de casamento, Marx esteve frequentemente «a sangrar e doente^>; e,
como os seus gatafunhos eram indecifráveis, dependia dela para transcrever
as suas preciosas e sublimes ideias. O êxtase revelou-se, contudo, mais ina-
cessível na vida real do que nos sonhos estonteantes de Jenny.
Meio Prometeu, meio Sr. Rochester: se era assim que a sua adorada noi-
va o via, pode-se imaginar a atitude dela em relações mais convencionais.
Casar com um judeu já era por si bastante chocante, mas casar com um judeu
sem dinheiro nem emprego era intolerável. O seu reaccionário meio-irmão,
Ferdinand, o chefe da família desde a morte do pai, fez tudo para impedir
a união, prevenindo-a de que Marx era um vadio que traria desgraça a toda
a tribo dos Von Westphalen. Para escapar aos constantes mexericos e inti-
midações, Jenny e a mãe — a qual, embora de forma ansiosa, lealmente a
apoiou — fugiram de Trier e instalaram-se em Kreuznach, elegante cidade
termal a 80 quilómetros de distância. Foi aí, às 10 da manhã do dia 19 de Ju-
nho de 1843, que Herr Marx, de 25 anos e doutorado em filosofia, se casou
com Frau/em Johanna Bertha Juüa Jenny Von Westphalen, de 29 anos e «sem
nenhuma ocupação particular». O s únicos convidados foram o chanfrado
irmão de Jenny, Edgar, a mãe dela e alguns amigos locais. N e n h u m a das
relações de Karl assistiu ao casamento. A noiva ostentava um vestido verde
de seda e uma grinalda de rosas carmim. O presente de casamento da mãe
de Jenny foi uma colecção de jóias e uma bandeja de prata com o brasão da
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM *^ ; 53

família Argyll, herança dos antepassados escoceses dos Von Westphalen. A


baronesa ofereceu-lhe igualmente uma grande caixa com dinheiro para os
ajudar durante os primeiros meses de vida marital, mas, infelizmente, os
recém-casados levaram este tesouro com eles numa viagem de núpcias pelo
Reno fora e encorajaram todos os amigos indigentes que iam encontrando
pelo caminho a servir-se. O dinheiro volatilizou-se numa semana.
Uns dias antes do casamento e a insistência de Jenny, Karl assinou um
contrato invulgar que estipulava «legal propriedade comum de bens», mas
que «cada cônjuge pagaria a sua parte das dívidas que ele, ou ela, contraísse,
herdasse ou tivesse incorrido antes do casamento». Deve-se assumir que isto
era uma tentativa para apaziguar a mãe de Jenny que estava a par da situa-
ção financeira de Marx. Mas o contrato nunca foi aplicado, muito embora,
dali em diante, Karl andasse quase sempre endividado. No anos seguintes,
a bandeja de prata dos Argyll passou mais tempo nas casas de prego do que
no armário da cozitiha.
Nesse Verão pós-nupcial de 1843, o Sr. e a Sra. Karl Marx puderam vi-
ver quase sem vintém como convidados na casa da baronesa, em Kreuznach,
enquanto aguardavam notícias de Ruge sobre quando — e onde — o seu
novo jornal seria fundado. Era um pequeno interludio idílico. Ao fim da
tarde, Jenny e Karl davam um passeio até ao rio para ouvir os rouxinóis
cantar nos bosques da outra margem. De dia, o eleito director do Deutsche-
-Franiiösische Jahrbücher teút?cv2i-^çi para o seu gabinete onde lia e escrevia co
intensidade furiosa.
Marx sempre gostou de pôr as suas ideias em ordem numa folha de pa-
pel, anotando pensamentos à medida que lhe vinham à cabeça. Uma pági-
na do seu caderno de apontamentos em Kreuznach que sobreviveu exem-
plifica o seu método:

«Nota. Sob Luís XVIII, a constituição graças ao rei (Carta imposta


pelo rei); sob Luís Filipe, o rei graças à constituição (realeza imposta).
Podemos notar, em geral, que a conversão do sujeito em predicado, e do
predicado em sujeito, a troca do que determina pelo que é determinado,
é sempre a revolução mais imediata. E não apenas no lado revolucioná-
rio. O rei faz a lei (monarquia antiga), a lei faz o rei (nova monarquia).»

Quando Marx começava com este género de coisas, brincando com as


suas adoradas contradições, não havia meio de o parar. Esta simples inver-
são gramatical, que transformava velhos monarcas em novos, não poderia
54 ^ 8 KARL MARX

também expHcar por que a filosofia alemã tinha falhado? Hegel, por exem-
plo, assumira que «a Ideia do Estado» era o sujeito e a sociedade o predicado,
enquanto a história mostrava que era o inverso. Nada havia de errado em
Hegel que não tivesse solução virando-o de cabeça para baixo: a religião não
faz o homem, o homem é que faz a religião; a constituição não cria o povo,
mas o povo cria a constituição. Tudo fazia sentido, às avessas.
A honra desta descoberta pertence ao filósofo alemão Ludwig Feuerbach,
cuja Tese Introdutória à Keforma da Filosofiatinhasido publicada em Março d
1848. «Ser é sujeito; o pensamento, predicado», afirmou. «O pensamento
provém do ser e não o ser do pensamento.» Marx foi muito mais longe, es-
tendendo esta lógica da filosofia abstracta ao mundo real — acima de tudo,
o mundo da política, o Estado e a sociedade. Feuerbach, antigo discípulo de
Hegel, já tinha percorrido uma grande distância a partir do ideaKsmo do seu
mentor na direcção do materialismo (o seu mais memorável aforismo, o qual
ainda se encontra em dicionários de citações, era: «O homem é o que come»);
mas tratava-se de um materialismo deliberadamente cerebral sem relação
com as condições económicas e sociais da sua época ou lugar. A incursão de
Marx no jornalismo tinha-o convencido de que os filósofos radicais não de-
viam passar a vida no alto de uma coluna como os antigos anacoretas gre-
gos; tinham de descer e participar no momento presente.
Feuerbach foi um dos primeiros escritores a quem Marx soKcitou a co-
laboração para o Deutsche-Frantiösische Jahrbücher ?L'&sim que soube que a
publicação estava assegurada. A 3 de Outubro de 1843, mesmo antes de
partir para se juntar a Ruge em Paris, escreveu-lhe para sugerir um artigo
demolidor contra o filósofo da corte prussiana, F. W von Schelüng, o seu
velho antagonista da Universidade de Berlim.
«Toda a poKcia alemã se encontra à disposição dele, como eu mesmo tive
a experiência quando era director do Kheinische Zeitung. Quer dizer, uma or-
dem da censura pode impedir que o que quer que seja escrito contra o sa-
grado ScheUing passe... Mas imagine ScheUing exposto em Paris, perante o
mundo Hterário francês!... Aguardo confiantemente a sua contribuição na
forma que achar mais conveniente.»^'' E, como isca suplementar, acrescen-
tou um descarado P. S.: «Embora não o conheça, a minha mulher envia-lhe
cumprimentos. Nem calcula a quantidade de admiradoras que tem.»
Feuerbach não se deixou seduzir e respondeu que, na sua opinião, seria
imprudente passar da teoria à prática sem a teoria ter sido aperfeiçoada.
Marx, em contrapartida, achava que as duas eram — ou deviam ser —
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM s*^ J 55

inseparáveis, hpraxis torna perfeito e «crítica impiedosa de tudo o que existe»


era a prática mais necessária dos filósofos dessa época. Feuerbach inspirara
a crítica de Hegel e, agora, o próprio Feuerbach, depois de alcançar o seu
objectivo, deveria esperar ser, por sua vez, criticado — sobretodo emyís Teses
de Feuerbach, escrito na Primavera de 1845 e que terminava com o mais su-
cinto resumo quanto à diferença entre anacoretas e activistas: «Os filósofos
apenas interpretaram o mundo de várias maneiras; mas a finalidade é mudá-lo.»
Ao contrário da maior parte dos pensadores que Marx mastigou e cus-
piu, Feuerbach obteve a sua eterna gratidão. «Agrada-me ter a oportunida-
de de lhe manifestar o meu mais profundo respeito — caso possa empregar
esta palavra — e estima», escreveu a Feuerbach em 1844. «Proporcionou-me
— não sei se intencionalmente — uma base filosófico para o socialismo...
A unidade entre os homens, a qual se baseia nas suas diferenças reais, e a ideia
da espécie humana trazida do céu da abstracção para a terra entre eles, nada
mais são do que o conceito de sociedadeb?^
Nas última semanas passadas em Kreuznach, Marx compôs dois impor-
tantes ensaios que viriam a ser publicados no Deutsche-Yran^sischeJahrbücher.
O primeiro. Sobre Questão Judaica, é normalmente apenas mencionado en
passant, ou escamoteado, nas hagiografias marxistas, mas tem dado muitas
munições aos seus inimigos.
Era Marx um judeu que detestava a sua raça? Embora nunca tivesse ne-
gado as suas origens judaicas, também nunca chamou a atenção para esse
facto — ao contrário da filha, Eleanor, que orgulhosamente disse a um grupo
de operários do East E n d de Londres que era «judia». N o s últimos anos de
correspondência com Engels, ele pulverizou prazenteiramente os inimigos
com insultos anti-semitas: o socialista alemão Ferdinand LasaUe, vítima fre-
quente, foi várias vezes descrito como semítico, safardana e preto judeu.
«Parece-me agora bastante claro — como o feitio da cabeça dele e a ma-
neira do cabelo crescer o provam — que ele descende dos negros que fugi-
ram com Moisés do Egipto ou, então, a mãe ou a avó do lado paterno tiveram
relações com pretos», escreveu Marx em 1862, ao debater o sempiterno tema
dos antepassados de LasaUe, «Por um lado essa mistura de sangue alemão e
judeu e, por outro, a origem negroide devem inevitavelmente produzir uma
coisa bizarra. A importunidade deste tipo também é muito à preto.»^^
Certas passagens de Sobre a Questão Judaica têm igualmente u m sabor a
ranço, como se tivesse sido tiradas fora de contexto — o que, habitualmen-
te, assim acontece.
56 ^ 8 KARL MARX

«Qual é a base secular do Judaísmo? Necessidade prática, interesses


pessoais.
Qual é o culto secular do Judeu? Regatear.
Qual é o seu Deus secular? O dinheiro...
Por conseguinte, reconhecemos no Judaísmo a presença de um elemento
anti-social contemporâneo e imiversal, cuja evolução histórica — avidamente
alimentada pelos Judeus nos seus aspectos nocivos — alcançou actualmente
o ponto mais alto, o qual há-de inevitavelmente desintegrar-se.
A emancipação dos Judeus é, em última análise, a emancipação da huma-
nidade do Judaísmo.»^^ ,

, O s críticos que vêem nisto u m prenúncio de Men Kempfàeï^âm. escapar


um ponto essencial: apesar da desajeitada fraseologia e da grosseira estereo-
tipagem, o ensaio fm na verdade escrito para defender os Judeus. Era uma
réplica a Bruno Bauer, que tinha argumentado que não deveriam ser conce-
didos direitos civis nem liberdade aos Judeus a não ser que eles se conver-
tessem ao Cristianismo. Embora (ou, talvez, porque) Baur fosse um osten-
sivo ateu, achava o Cristianismo uma forma mais avançada de civilização do
que o Judaísmo e, por conseguinte, mais próximo da libertação que se segui-
ria à inevitável destruição de todas as religiões — assim c o m o u m covei-
ro pode considerar uma viúva senil potencialmente mais promissora como
cliente do que uma miss Primavera local.
Este perversa justificação do fanatismo oficial, que aUou Bauer aos pa-
palvos mais reaccionários da Prússia, foi demolida com brutalidade carac-
terística. É verdade que Marx parecia aceitar que os Judeus fossem carica-
turados como usurários inveterados — mas, quanto a isso, quase toda a gente
estava de acordo. (A palavra A&cvãijudentum era, regra geral, usada nessa época
como sinónimo de «comércio»). E, ainda mais significativamente, ele não os
acusava nem censurava: na medida em que estavam proibidos de pertencer
a instituições poKticas, era de admirar que exercessem a única actividade que
lhes era permitida, a de ganhar dinheiro? Tanto o dinheiro como a religião
alienavam a humanidade e, assim, «a emancipação dos Judeus é, em última
análise, a emancipação da humanidade do Judaísmo».
D o Judaísmo, note-se, não dos Judeus. E m última análise, a humanida-
de tem de se libertar da tirania de todas as religiões, o Cristianismo incluído.
'• o PEQUENO JAVALI SELVAGEM a < ^ 57

mas, entretanto, era absurdo e cruel recusar aos Judeus o mesmo estatuto que
a qualquer outro cidadão. O compromisso de Marx em relação a direitos
iguais é confirmado por uma carta que enviou de Colónia, em Março de
1843, a Arnold Ruge: <A.cabei de receber a visita do chefe da comunidade
judaica nesta cidade, que me pediu para assinar uma petição a favor dos
Judeus a ser enviada à Assembleia Provincial e aceitei. Por muito que a fé
judaica não me agrade, a perspectiva de Bauer parece-me demasiado abs-
tracta. O que há a fazer é abrir tantas brechas quantas forem possíveis no
estado cristão e introduzir lá dentro o máximo de racionalidade possível.»
Tais palavras também são corroboradas por outra obra importante que
ele começou a redigir após a lua-de-mel, no Verão de 1843: «Para uma Crí-
tica da Filosofia do Direito, de Hegel: uma Introdução», e terminou em Paris
uns meses mais tarde. Este ensaio foi publicado na Primavera de 1844 e, em-
bora o título possa ser familiar apenas aos iniciados, é tão célebre quanto o
artigo sobre Judaísmo é obscuro. Muitas pessoas que nunca leram nada de
Marx citam, contudo, o epigrama declarando que a religião é o ópio do povo.
Trata-se de uma das suas metáforas mais poderosas — inspirada, segundo
tudo leva a crer, pela Guerra do Ópio combatida entre a Grã-Bretanha e os
Chineses, de 1839 a 1842. Mas compreendem realmente estas palavras àque-
les que as repetem? Graças aos seus autoproclamados intérpretes na União
Soviética, que se apoderam da frase para justificar a perseguição de que eram
alvo os antigos crentes, é normalmente tomada como significando que a re-
ligião é uma droga administrada pela iníqua classe dirigente, a fim de man-
ter as massas em estado de passividade embrutecida.
O ponto de vista de Marx era mais subtil e compassivo. Apesar de insis-
tir que «a crítica da religião é o requisito indispensável para todas as críticas»,
ele compreendeu o impulso espiritual. O s pobres e os desgraçados que não
esperam alegrias neste mundo podem necessitar consolar-se com a promessa
de uma vida melhor no próximo; e, se o estado não ouve os seus clamores
nem os seus gritos, porquê não apelar para uma entidade mais poderosa que
promete atender todas as súplicas? A religião era uma justificação para a
opressão — mas também um refúgio.
«O sofrimento religioso é simultaneamente a expressão do verdadeiro so-
frimento e um protesto contra o sofrimento verdadeiro. A religião é o sus-
piro dos oprimidos, o coração deste mundo impiedoso e a alma das condi-
ções desumanas. É o ópio do povo.»^"^
58 « i ^ KARL MARX ;

Muito eloquente. Mas, noutras passagens do ensaio, a sua facilidade ver-


bal degenera, de quando em quando, em meros jogos de palavras — ou, para
ser franco, em puro exibicionismo. Eis o que diz sobre Lutero e a Reforma
alemã:

«Destruiu a fé na autoridade restaurando a autoridade da fé. Transfor-


mou os padres em leigos, transformando os leigos em padres. Libertou
a humanidade da religiosidade externa tornando a religiosidade o homem
interior. Libertou o corpo das correntes, mas aprisionou o coração.»

Ou sobre a diferença entre a França e a Alemanha:

«Na França, basta ser algo para querer ser tudo. Na Alemanha, nin-
guém pode ser nada a não se renuncie a tudo. Na França, a emancipação
parcial é a base da emancipação universal. Na Alemanha, a emancipação
universal é a condição sine qua non da emancipação parcial.»

Após uns parágrafos deste flamejar pirotécnica, suspeita-se que a própria


exposição se tornou um fim em vez de um meio.
No entanto, não aceitar os excessos estiKsticos de Marx é ignorar o seu
objectivo. Os seus vícios são também as suas virtudes, manifestações de uma
mente viciada em paradoxos e transposições, antíteses e quiasmos. Por ve-
zes, este zelo dialéctico produzia uma retórica vazia, mas levava, com maior
frequência, a originais e surpreendentes critérios. Não tomava nada por certo
e virava tudo do avesso — incluindo a própria sociedade. Como é que os
poderosos poderiam ser derrotados e os humildes exaltados? Na crítica a
Hegel, expôs a sua solução pela primeira vez: o que se requeria era «uma
classe com cadeias radicais, uma classe de sociedade civil que não é uma
classe de sociedade civil; uma classe que é a dissolução de todas as classes...
Esta dissolução da sociedade como uma classe particular é o proletariado».
Esta última palavra ressoa como o ribombar de um trovão sobre uma paisa-
gem desolada. Pouco importava que nem a Alemanha nem a França ain-
da não tivessem um proletariado digno desse nome: a tempestade vinha a
caminho.
A teoria da luta de classes de Marx viria a ser aperfeiçoada e embelezada
nos próximos anos — de forma mais memorável no Manifesto Comunista —,
mas a sua configuração já era suficientemente clara: «Todas as classes, logo
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM ..*aí' 59

que se batem contra a classe acima, envolvem-se em luta com a classe abai-
xo. Assim, os príncipes lutam contra reis, os burocratas contra os aristocra-
tas e a burguesia contra todos eles, enquanto o proletariado já está a começar
o seu combate contra a burguesia.» Por conseguinte, o papel do emancipador
passa de uma classe à seguinte até a libertação universal ser finalmente
alcançada. Na França, a burguesia já derrubara a nobreza e o clero, e outra
revolução parecia iminente. Até mesmo na imperturbável Prússia, o Gover-
no medieval não podia prolongar indefinidamente o seu reino. Com uma es-
tocada de despedida à eficiência teutónica — «Não pode haver uma revo-
lução na Alemanha, a qual é conhecida pela sua meticulosidade, a não ser que
seja meticulosa» — partiu para Paris. Era, sentia, o único lugar para estar
nesta época. «Quando todas as condições internas forem satisfeitas, a res-
surreição da Alemanha será anunciada pelo canto do galo gaulês.»
o REI CORRUPTO

«E, assim — rumo a Paris, para a velha universidade e a nova capital do


mundo novo!», escreveu Marx a Ruge em Setembro de 1843. «Quer o em-
preendimento se concretize ou não, estarei de todos os modos em Paris no
fim deste mês, pois o ambiente, aqui, transforma-nos em servos e não vejo
nenhuma possibilidade na Alemanha de exercer uma actividade livre.» As re-
voluções de 1789 e de 1830 tinham tornado a capital francesa um local de
encontro natural. Era uma cidade de conspiradores e panfletários, de seitas
e sociedades secretas — «o centro nervoso da historia europeia que, envian-
do choques eléctricos a intervalos regulares, galvanizava o mundo inteiro».
Todos os mais conhecidos pensadores políticos da época eram franceses:
o místico socialista cristão Pierre Leroux, os comunistas utópicos Victor
Considérant e Etienne Cabet, o orador e poeta liberal Alphonse de Lamartine
(ou, chamando-o pelo seu glorioso nome completo, Alphonse Marie Louis de
Prat de Lamartine). Acima de todos estes, havia Pierre Joseph Proudhon,
anarquista Kbertário, que tinha ganho imediata celebridade em 1840 com o seu
Hvro O que E a Propriedade? — pergunta a que respondeu na primeira página
com a simples fórmula, «a propriedade é roubo». Todos estes picadores po-
Kticos acabariam por ser desventrados e atirado para um canto por Karl Marx
— sobretudo Proudhon, cujo magnum opus sobre «a filosofia da pobreza»
provocou a duacerante resposta de Marx,^ Pobreza da Filosofia. De momento,
contudo, o recém-chegado contentava-se em escutar e aprender.
Tocava-se música nos cafés à noite e a revolução pairava no ar. Com a
«monarquia burguesa» de Luís Filipe a titubear, outro acontecimento de alta
voltagem parecia inevitável e iminente. <A. perda de prestígio do rei burguês
62 * ^ KARLMARX

era amplamente demonstrada pelas inúmeras tentativas de assassinar aquele


príncipe autocrático e dinástico», informou Ruge. «Um dia em que ele pas-
sou por mim nos Champs-Elysées, bem escondido na sua carruagem, rodea-
do de hussardos, observei com espanto que eles não ostentavam as armas no
estilo burlesco do costume, mas que as tinham engatilhadas e prontas a dis-
parar. O rei passeava-se com má consciência!»^
Ruge, Marx e o poeta George Herwegh — o triunvirato da direcção do
Deutsche-Fran^sischeJahrbücher— chegaram a Paris no Outono de 1843. Ruge
veio de Dresden num «grande veículo» acompanhado pela mulher, um en-
xame de crianças e uma enorme perna de vitela. Inspirando-se no utópico
Charles Fourier, propôs que os três casais deveriam formar uma comuna na
qual as mulheres fariam turnos para ir às compras, cozinhar e coser. «Frau
Herwegh deu-se imediatamente conta da situação», recordou o filho, Marcel,
muitos anos depois. «Como podia Frau Ruge, pequenina mulher saxónica,
entender-se com a extremamente inteligente e ainda mais ambiciosa Frau
Marx, cuja cultura era muito superior à dela? Como podia Frau Herwegh, que
tinha casado há muito p o u c o t e m p o e era a mais nova, sentir qualquer
atracção por esta vida comunitária?»^
George e Emma Herwegh apreciavam o luxo — e, como o pai dela era um
rico banqueiro, possuíam os meios para o desfrutar. Declinaram, por con-
seguinte, o convite de Ruge, mas Karl e Jenny (que estava grávida de quatro
meses) decidiram experimentar. Mudaram para o apartamento dos Ruge na
Rue Vanneau, 23, ao lado dos escritórios diO Jahrbücher.
A experiência em comunismo patriarcal durou cerca de 15 dias e os Marx
foram instalar-se um pouco mais abaixo na mesma rua. Ruge era um homem
caseiro, empertigado e puritano que não podia tolerar a desorganização e
hábitos impulsivos do seu co-director; Marx, queixava-se, «não termina nada,
interrompe tudo, e mergulha de novo num infinito mar de livros... Adoe-
ceu de tanto trabalhar e não se deitou durante quatro, cinco noites a fio.. .»~^
Chocado por esses «loucos métodos de trabalho», os lazeres e diversões de
Marx também o escandalizaram. «A mulher ofereceu-lhe no dia de aniver-
sário um pingalim n o valor de cem francos», escreveu uns meses mais tar-
de. «Mas o pobre diabo não sabe montar nem tem cavalo. Quer possuir tudo
o que vê — uma carruagem, roupas elegantes, um jardim com flores, m o -
bília nova, até mesmo a Lua.»'* Trata-se de uma lista de compras pouco plau-
sível: Marx não se interessava por artigos luxuosos nem trapos. Se desejava
tais coisas era sem dúvida por causa de Jenny. Os primeiros meses em Paris
o REI CORRUPTO a < ^ 63

foram a única vez que, no decorrer da sua vida de casada, ela se pôde dar ao
luxo de satisfazer o seu apetite, pois uma doação de mil táleres, enviada de
Colónia por antigos accionistas do Kheinische 7.eitung,Y¿\.o aumentar o sala-
rio de Marx. Além disso, ele queria que ela desfrutasse aquela última opor-
tunidade antes de ficar limitada pelas exigências da maternidade. A 1 de Maio
de 1844, ela deu à luz uma menina, Jenny — mais conhecida pelo diminu-
tivo/¿•««yf^é'« — , cujos olhos escuros e cabeleira preta lhe dava a aparência
de um Karl em miniatura.
Os pais noviços, embora babados, eram totalmente incompetentes e, em
princípios de Junho, concordaram que o melhor seria que Jenny fosse com
a filha passar vários meses com a baronesa Von Westphalen, em Trier, para
aprender os rudimentos da maternidade. «A pobre bonequinha ficou bas-
tante indisposta e doente depois da viagem», escreveu Jenny a Karl a 21 de
Junho. «E veio a verificar-se que ela não só sofria de diarreia como também
de sobrealimentação. Tivemos de chamar o porco gordo (Robert Schleicher,
o médico da família), e a sua decisão foi que ela precisava de uma ama para
a amamentar porque, com comida artificial, ela não consegue recuperar tão
depressa. N ã o foi fácil salvá-la, mas, agora, já está quase fora de perigo.»^
A ama concordou vir para Paris com elas, mas, apesar da felicidade de
Jenny («todo o meu ser exprime satisfação e ahunáânciaf>), não conseguia li-
vrar-se completamente dos seus antigos pressentimentos. «Meu mais que
tudo, estou muito preocupada quanto ao nosso futuro... Acalma, se pude-
res, os meus anseios. Fala-se muito por todos os lados de um rendimento re-
gular.» O rendimento regular foi uma das necessidades da vida que sempre
escapou a Karl Marx.
O seu trabalho em Paris, que parecia prometer segurança financeira,
verificou-se ainda mais temporário do que o seu emprego anterior. Apenas
um número do Deutsche-Fran^sischeJahrbücher íd\ pubHcado antes dos desen-
tendimentos com Ruge se tornarem irreparáveis — e mal chegou a mostrar-
-se à altura da promessa do seu nome. Embora França tivesse bastantes es-
critores, nenhum quis contribuir e, para preencher essa lacuna, Marx incluiu
os seus ensaios sobre a questão judaica e sobre Hegel, juntamente com uma
versão adaptada da sua correspondência com Ruge ao longo do ano ante-
rior. A única voz não alemã era a de um comunista anarquista russo, Michail
Bakunine. «Marx estava, então, mais avançado do que eu», declarou. «Em-
bora mais novo, já era ateu, materialista culto e consciente socialista... Tentei
impacientemente convertê-lo, o que era sempre instrutivo e divertido quando
64 ^ « KARL MARX

não se inspirava em ódios mesquinhos, mas, infelizmente, isso acontecia


muitas vezes. Nunca houve uma intimidade sincera entre nós — os nossos
temperamentos não o permitiam. Ele chamava-me idealista sentimental, e
tinha razão: eu dizia que ele era vaidoso, pérfido e tímido, e também tinha
razão.»''
Apesar de todas as óbvias deficiências, o primeiro e último número do
Jahrbücher teve. um colaborador de prestígio internacional — o poeta român-
tico Heinrich Heine, por quem Marx sentia veneração desde a infancia e de
quem se tornou amigo pouco tempo depois de chegar a Paris. Heine era uma
pessoa dolorosamente susceptível que desatava a chorar à mais pequena
crítica, e Marx era um crítico impiedoso de formidável insensibilidade. Por
uma vez, porém, conteve as suas tendências iconoclastas em deferência por
u m genuíno herói da literatura. Heine tornou-se uma visita habitual n o
apartamento dos Marx da Rue Vanneau e lia em voz alta as suas obras em
curso pedindo a opinião do jovem director. N u m a ocasião, encontrou Karl
e Jenny aflitos por causa da ^tc^crúrvà Jennychen que padecia de uma crise de
cólicas e estava — ou pelo menos eles assim julgavam — às portas da morte.
Heine ocupou-se imediatamente e ordenou que «a criança devia tomar um
banho». E, assim, segundo a lenda da família Marx, a vida da criança foi salva.
Heine não era comunista, pelo menos no sentido marxista da palavra.
Costumava citar a história do rei da Babilónia que julgava ser Deus, mas veio
a despenhar-se miseravelmente do alto das suas pretensões para acabar ras-
tejando como u m animal no chão e a comer erva: «Esta parábola encontra-
-se no esplêndido e notável l^ivro de Daniel. Recomendo-o para a edificação
do meu b o m amigo. Ruge, e também ao meu muito mais teimoso amigo
Marx, assim como aos Srs. Feuerbach, Daumer, Bruno Bauer, Hengstenberg
e os restantes pretensos deuses sem deus.» Heine contemplava a vitória do
proletariado com apreensão, receando que a arte e a beleza não teriam lugar
nesse mundo novo.
«Os líderes mais ou menos clandestinos dos comunistas alemães são
grandes lógicos e o melhor deles todos vem da escola hegeliana», escreveu
em 1854 referindo-se a Marx. «Estes mestres da revolução e os seus impla-
cavelmente determinados discípulos são os únicos alemãs com alguma vida
e temo que o futuro lhes pertença.»
Pouco depois da sua morte, em 1856, redigiu u m último testamento
pedindo perdão a Deus caso tivesse escrito algo «imoral», mas Marx estava
preparado para não ligar a essa recaída devota — facto que, noutra pessoa.
o REI CORRUPTO o ^ 65

teria provocado o seu mais feroz desprezo. Como Eleanor Marx escreveu:
«Ele amava o poeta e a sua obra, e encarava a sua fraqueza política tão ge-
nerosamente quanto lhe era possível. Os poetas, explicava, eram gente es-
tranha e deviam ser autorizados a seguir o seu próprio caminho. Nunca
deveriam ser avaliados pela mesma bitola que os homens vulgares ou até
mesmo extraordinários.»^
O Jahrbücher pode ter sido um desastre financeiro, mas gozou de grande
succès d'estime, e não só por causa das odes satíricas de Heinrich Heine sobre
o rei Ludwig da Baviera. Centenas de números enviados para a Alemanha
foram confiscados pela polícia, que fora avisada pelo Governo prussiano que
o seu conteúdo era uma incitação á alta traição. Foi emitida uma ordem para
prender imediatamente Marx, Ruge e Heine caso alguma vez tentassem regres-
sar à pátria. Na Áustria, Metternich prometeu «severas sentenças» contra qual-
quer livreiro que fosse apanhado a vender esse «repugnante» jornal.
Arnold Ruge assustou-se e deixou Marx em apuros ao suspender a pu-
blicação e não lhe pagando o ordenado prometido. Alguns historiadores
pretendem que a discórdia não teria sido definitiva se «não tivessem havido
outras diferenças de ordem pessoal, em particular sobre questões fundamen-
tais de princípio que duravam há já bastante tempo»**. Mas a verdade é que
a mais importante «questão fundamental de princípio» era uma ridícula
querela sobre a vida sexual do seu colega, Georg Herwegh, que tinha atrai-
çoada a mulher e tinha um caso com a condessa Marie d'Agoult, antiga
amante de Lizt e mãe da menina que se tornou Cosima Wagner. «Estou in-
dignado pelo estilo de vida e preguiça de Herwegh», escreveu Ruge à mãe.
«Chamei-lhe cordialmente velhaco vários vezes e declarei que, quando um
homem se casa tem de saber o que está a fazer. Marx não proferiu palavra
e tomou a sua demissão de forma perfeitamente amigável. Escreveu-me no
dia seguinte a dizer que Herwegh era um génio com grande futuro e que o
facto de eu lhe ter chamado de velhaco enchia-o de indignação, acrescentan-
do ainda que as minhas ideias sobre o casamento eram estreitas e desuma-
nas. Não nos voltámos a ver desde então.»'
Apesar de Marx se manifestar muitas vezes contra a promiscuidade e a
libertinagem com a ferocidade puritana de um Savonarola — quanto mais
não fosse para repudiar a acusação que o comunismo era sinónimo de sexo
colectivo —, encarava divertidamente as escapadas amorosas dos amigos e,
talvez, com um pouco de inveja, atitude que inquietava certamente Jenny.
«Embora o espírito tenha força de vontade, a carne é fraca», escreveu ela de
66 ^ ^ KARLMARX

Trier, em Agosto de 1844, dois meses depois de deixar o marido sozinho em


Paris. «A verdadeira ameaça de infidelidade, a sedução e atracções de uma
capital — tudo são forças cujo efeito sobre mim é mais poderoso do que
qualquer outra coisa qualquer.»^^
Entre as atracções e seduções de Paris, o restolhar de uma saia de con-
dessa não podia competir com o clamor da política. No Verão de 1844, Marx
aceitou a oferta de escrever para o Vonmrts!, jornal bissemanal comunista
patrocinado pelo compositor Meyerbeer e actualmente dirigido por Karl
Ludwig Bernays, que tinha colaborado no T>eutsche-¥ran^ösische Jahrbücher.
Como o único jornal radical em língua alemã não censurado que era
publicado na Europa, o l/óní'¿'r/j-.''proporcionava um refúgio a todo o velho
bando de poetas e polemistas, incluindo Heine, Herwegh, Bakunine e Arnold
Ruge. Reuniam-se uma vez por semana no escritório do primeiro andar, à
esquina da Rue des Moulins e da Rue Neuve des Petits, para uma conferência
editorial presidida pelos Bernays e o editor, Heinrich Börnstein, que recordou:

«Alguns sentavam-se na cama ou em arcas e outros ficavam de pé a


andar de um lado para o outro. Todos fumavam imenso e discutiam
apaixonada e excitadamente. Era impossível abrir as janelas, porque uma
multidão ter-se-ia logo agrupado na rua para conhecer o motivo, do vio-
lento tumulto que fazíamos. A sala ficava rapidamente envolta em tais
nuvens espessas de fumo que era impossível, para quem quer que che-
gasse, reconhecer as pessoas presentes. No fim, quase não conseguíamos
reconhecer-nos uns aos outros.»"

O que, caso Marx e Ruge também lá se encontrassem, fosse provavel-


mente melhor: de outro modo, o «violento tumulto» talvez degenerasse em
pancadaria.
Mas, em vez disso, os dois inimigos continuaram o seu feudo na imprensa
pública. Em Julho de 1844, e assinando apenas com o nome de «Um
prussiano». Ruge escreveu um longo artigo para o 'Vonvärts! ^oht^ a brutal
repressão por parte do rei prussiano dos tecelões da Silesia que tinham
destruído as máquinas que ameaçavam a sua subsistência. Ruge considera-
va a revolta dos tecelões como inconsequente, pois a Alemanha não possuía
a «consciência política» necessária para transformar um acto de desobediên-
cia isolado numa revolução a sério.
A resposta de Marx, publicada dez dias depois, argumentava c|ue o fer-
tilizante da revolução não era a «consciência poKtica», mas a consciência de
o REI CORRUPTO 67

classe que os tecelões possuíam para dar e vender. Ruge (ou «o alegado
prussiano», como Marx lhe chamava) pensava que uma revolução social sem
alma política era impossível; Marx descartou essa «mistura absurda», man-
tendo que todas as revoluções são tanto sociais como políticas, na medida
em que dissolvem a velha sociedade e derrubam o velho poder. Mesmo que
a revolução ocorresse numa única região fabril, como no caso dos tecelões
silesianos, continuava a ameaçar todo o estado pois «representa o protesto
do homem contra a vida desumanizada»^^. Isso era um pouco optimista de
mais. A única influência duradoira da revolta foi a de ter inspirado um dos
mais famosos poemas de Heine, O Canto dos Tecelões Silesianos, publicado no
mesmo número de Vorwärts!
«O proletariado alemão é o teórico do proletariado europeu, assim como
o proletariado inglês é o seu economista e o francês o seu político», escre-
veu Marx na réplica a Ruge, prefigurando uma opinião mais tardia de Engels
que afirmava que o marxismo em si era um híbrido dessas três linhagens. Aos
26 anos, Marx já era bastante versado em filosofia alemã e socialismo fran-
cês; decidiu, agora, educar-se em economia política e, no Verão de 1844, leu
sistematicamente as obras principais de economia poMtica inglesa — Adam
Smith, David Ricardo, James MiU — , garatujando comentários à medida que
ia avançando. Estas notas, cerca de 50 000 palavras, só foram descobertas na
década de 1930, altura em que o investigador soviético David Ryazanov as
publicou sob o útalo Manuscritos Económicos e Políticos. São actualmente conhe-
cidos pelos manuscritos de Paris.

O trabalho de Marx tem sido muitas vezes descartado como «dogmas


grosseiros», normalmente por gente que não dá provas de o ter lido. Seria
um exercício útil obrigar esses críticos improvisados — que incluem o actual
primeiro-ministro britânico, Tony Blair — a estudar os manuscritos de Pa-
ris, os quais revelam o funcionamento de uma m e n t e incansavelmente
inquisitiva, subtil e nada dogmática.
O primeiro manuscrito começa com uma simples declaração: «Os salá-
rios são determinados pela feroz batalha entre o capitalista e o trabalhador.
O capitalista ganha inevitavelmente. O capitalista pode viver mais tempos
sem o trabalhador do que o trabalhador sem o primeiro.» Desta premissa,
tudo mais se segue. O trabalhador tinha-se tornado em apenas mais u m
produto à procura de comprador; e não é mercado de vendas. O que quer
que aconteça, o trabalhador perde. Se a riqueza da sociedade diminui, o
68 ^ B KARLMARX

trabalhador é quem sofre mais. Mas o que é que acontece se a sociedade está
a prosperar? «Tal condição é a única favorável ao trabalhador. Nesse caso,
a competição ocorre entre os capitalistas e a procura de trabalhadores excede
a oferta. Mas...»
Naturalmente. O capital nada mais é do que os frutos acumulados do tra-
balho e, assim, os capitais e rendimentos de um país aumentam apenas
«quando cada vez mais os produtos do trabalhador forem tirados dele,
quando o seu próprio trabalho o confrontar cada vez mais como proprie-
dade alheia e os meios da sua existência e da sua actividade forem cada vez
mais concentrados nas mãos do capitalista» — assim como uma galinha
inteligente (caso tal improvável criatura exista) que se tornasse mais cons-
ciente da sua impotência no seu estado mais fértil, pondo dúzias de ovos para
vê-los serem roubados ainda quentes.
Além do mais, numa sociedade próspera haverá uma crescente concen-
tração de capital e competição mais intensa. «Os grandes capitalistas arrui-
nam os pequenos, e uma parte dos antigos capitalistas afunda-se na classe
dos trabalhadores, a qual, devido ao aumento em número, sofre mais uma
depressão salarial e torna-se ainda mais dependente de um punhado de
grandes capitalistas. Porque o número de capitalistas diminui, a competição
para procurar trabalhadores deixa de existir; e porque o número de trabalha-
dores aumenta, a competição entre eles torna-se maior, anormal e violenta.
Assim, conclui Marx, até mesmo nas condições mais propícias, a única
consequência para os trabalhadores é "excesso de trabalho e morte prema-
tura, ser reduzido a uma máquina, sujeição ao capital". A divisão do traba-
lho torna-o ainda mais dependente e introduz a competição das máquinas
assim como a dos homens. "Na medida em que o trabalhador foi reduzido
a máquina, a máquina confronta-o como um competidor." Finalmente, a
acumulação de capital dá a possibilidade à indústria de fabricar ainda uma
maior quantidade de produtos colocando um grande número de trabalha-
dores sem emprego ou reduzindo os seus salários a uma ninharia. "Uma tal
situação," concluiu Marx com sinistra ironia. "São as consequências de um
estado da sociedade que é a mais favorável ao trabalhador, quer dizer, um
estado de riqueza crescente. Mas, com o tempo, há-de chegar uma altura em
que esse estado alcança o ponto mais alto. E qual será, então, a situação do
trabalhador?"» Bastante miserável, o que não é nenhuma surpresa.
As vantagens favorecem o capital. Um grande industrial pode guardaros
produtos da sua fábrica até eles atingirem um preço decente, enquanto o
o REI CORRUPTO a ^ 69

único produto do trabalhador — o suor do seu rosto — perde completa-


mente valor se não for vendido a cada instante. Um dia perdido de trabalho
vale tanto no mercado como o jornal matutino de ontem e nunca mais pode
ser recuperado. «O trabalho é vida e, se a vida não for trocada todos os dias
por alimentação, sofre com isso e em breve perece.» O patrão tem mais sorte,
pois o capital é «labor armazenado» com indefinida duração.
A única defesa contra o capitalismo é a competição, a qual sobe os salá-
rios e baixa os preços. E, por essa mesma razão, os grandes capitalistas ten-
tam sempre contrariá-la ou sabotá-la. Assim como os proprietários feudais
antigos possuíam o monopólio da terra — para a qual a procura era quase
infinita e a oferta limitada —, também a nova geração de industriais queria
obter o monopólio da produção. Era por conseguinte insensato concluir, a
exemplo de Adam Smith, que o interesse do proprietário, ou do capitalista,
é idêntico ao da sociedade. «Sob o regime da propriedade privada, o interesse
que qualquer indivíduo tem na sociedade é inversamente proporcional ao
interesse que a sociedade tem nele, exactamente como o interesse do usuá-
rio no esbanjador não é de modo algum idêntico ao do esbanjador.»
Apesar de os criticar, Marx tinha um grande respeito por Smith e Ricardo.
Como com Hegel, usava as próprias palavras e lógica deles para expor os
defeitos das suas teorias. E o defeito mais óbvio era o seguinte: «A econo-
mia poKtica provém da existência de propriedade privada. Não a explica.»
Assim como a teologia explicava a existência do diabo referindo-se ao pri-
meiro pecado do homem, o fruto da árvore proibida que trouxe a morte ao
mundo, os economistas clássicos trataram a propriedade privada como uma
condição humana primordial.
Mas não havia nada estabelecido nem imutável quanto a isso. Já graças
à Revolução Industrial, o poder tinha sido transferido dos proprietários
feudais para os membros importantes das corporações: a aristocracia do
dinheiro suplantara a aristocracia da terra. «Recusamos juntar-nos às lágri-
mas sentimentais que o românticos derramam por causa disto», comentou
severamente Marx. Os proprietários feudais tinham sido uns idiotas inefi-
cazes que não souberam tirar o máximo lucro das suas propriedades e se
banhavam na «glória romântica» da sua nobre indiferença. Era, de sobrema-
neira, desejável que este mito benigno explodisse e que «a raiz da proprie-
dade terrena — sórdido interesse pessoal — se manifestasse sob a sua for-
ma mais cínica». Reduzindo os grande domínios a meros produtos, sem
70 * ^ KARL MARX

nenhuma mística arcádia, as intenções do capitalismo eram, pelo menos,


transparentes. O lema medieval, nulle terre sans seigneur (nenhuma terra sem
senhor) cedeu o passo a uma admissão mais vulgar, mas honesta: l'argentn'a
pas de maître (o dinheiro não tem dono).
Sob esta tirania, quase todos e tudo eram «objectifícados». O trabalha-
dor dedica a vida a produzir objectos de que não é dono nem controla. O
seu labor torna-se, assim, u m ser externo e separado, que «existe fora dele,
alheio e independente, e que começa a confrontá-lo como um poder autó-
nomo; a vida que ele conferiu ao objecto enfrenta-o alienada e hostilmente».
N e n h u m investigador ou crítico marxista chamou a atenção sobre o óbvio
paralelo com Frankenstein, de Mary Shelley: a história de um monstro que se
vira contra o seu criador. (Dado o fascínio de Marx pela lenda de Prometeu,
repare-se no subtítulo desse romance, Um Prometeu Moderno).
E m D e z e m b r o de 1865, e padecendo de furúnculos, Marx descreveu
como «um segundo Frankenstein nas minhas costas» uma dessas horríveis
erupções". «Achei que era um bom tema para um conto», escreveu a Engels.
«De frente, o indivíduo que regala o seu homem interior com vinho do Porto,
clarete, cerveja e uma grande porção de carne. D e frente, o glutão. Mas, por
detrás, nas suas costas, o homem exterior, o raio de um furúnculo. Se o diabo
fizer um pacto com alguém para o manter sempre bem alimentado em cir-
cunstâncias c o m o estas, quero então que o diabo vá para o diabo que o
carregue.»^"^ Marx mencionou este incubo pestilento à filha, Eleanor, que
tinha oito anos nessa altura. «Mas é a tua própria carne!», exclamou ela.
O conceito de auto-alienação foi instilado nos filhos de Marx desde a
infância, sobretudo através de contos de fadas que ele inventava para os
divertir. «Dos inúmeros maravilhosos contos de fadas que ele me contou, o
mais maravilhoso, o mais delicioso, foi o de Hans Köckle», escreveu Eleanor
nas suas memórias:

«Durou meses e meses; era uma série de histórias... Hans Röckle era
um mágico à Hoffmann, que tinha uma loja de brinquedos e que estava
sempre "teso". A loja dele estava cheia das coisas mais maravilhosas —
bonecos e bonecas de madeira, gigantes e anões, reis e rainhas, trabalha-
dores e patrões, aves e animais tão numerosos como os que N o é meteu
dentro da arca, mesas e cadeiras, carruagens, caixas de todos os tamanhos
e feitios. Embora fosse um mágico, Hans nunca podia cumprir as suas
obrigações para com o diabo nem para com o h o m e m do talho e, por
o REI CORRUPTO ^ß 71

conseguinte, era constantemente obrigado a vender — bastante contra-


riado — os seus brinquedos ao diabo. Estes viviam maravilhosas aven-
turas, mas, no fim, voltavam sempre para a loja de Hans Röckle.»^^

Era bastante fácil num conto de fadas, mas como podia u m trabalhador
recuperar os frutos do seu trabalho sem recorrer à magia? Para Hegel, a
alienação era simplesmente uma realidade da vida, a sombra que cai entre o
conceito e a criação, entre o desejo e o espasmo. Uma vez que a ideia se torna
um objecto — quer seja uma máquina ou u m livro — era "exteriorizada" e
separada do seu produtor. A separação era a conclusão inevitável de todo o
trabalho.
Para Marx, o labor alienado não era u m problema eterno e inelutável da
consciência humana, mas o resultado de uma particular forma de organiza-
ção económica e social. U m a mãe, por exemplo, não é automaticamente
separada do seu bebé logo que este sai do útero, muito embora o parto seja,
sem dúvida, um exemplo da «exteriorização» de Hegel. Mas ela sentir-se-ia
deveras muito alienada se, sempre que desse à luz, a criança aos guinchos lhe
fosse imediatamente tirada por u m m o d e r n o Heredes. Tal era, mais ou
menos, a sorte diária dos trabalhadores que constantemente produziam o
que não podiam guardar. N ã o admira que se sentissem menos do que hu-
manos. «O resultado é que», observou Marx num paradoxo característico, «o
h o m e m (o trabalhador) sente que está apenas a agir livremente nas suas
funções mais animais — comendo, bebendo e procriando ou, no máximo,
no que respeita a sua habitação e ornamentação — , enquanto nas suas fun-
ções humanas não passa de um animal.»
Qual era a alternativa? Q u a n d o escreveu os manuscritos de Paris, em
1844, Marx já possuía um formidável talento para detectar as falhas estru-
turais da sociedade — a humidade, a madeira a apodrecer, os barrotes que
não podiam suster o peso colocado por cima deles — e explicar porquê a sua
demolição era urgentemente requerida. Mas as suas capacidades de capataz
e demolidor ainda não incluíam uma grande visão arquitectónica própria. «A
suplantação da propriedade privada é... a total emancipação de todos os atri-
butos e sentidos humanos», escreveu. «Apenas através da exposição objectiva
da riqueza da natureza humana pode a riqueza da sensibilidade subjectiva
humana—um ouvido musical, um olho para apreciar a beleza das formas, em
resumo, sentidos capazes de gratificação humana — ser cultivada ou criada.»
Só o comunismo poderia resolver o conflito entre o homem e a natureza, e
72 ;>o KARL MARX

entre o h o m e m e o homem. «E a solução para o enigma da historia», anun-


ciou com u m floreado grandiloquente. «E sabe que é a solução.»
Talvez; mas o que era exactamente? Incapaz de fazer elaborações sobre
o seu vago humanismo, Marx preferiu dizer o que não. N e n h u m a solução
para o enigma da história poderia ser encontrada nas banalidades pequeno-
-burguesas de Proudhon («as suas homflias quanto ao lar, amor conjugal e
outras tolices do género») ou em sonhos de igualitários, c o m o Fourier e
Babeuf, que — motivados peia «inveja e desejo de nivelar pelo baixo» — não
aboliriam a propriedade privada, mas meramente a redistribuiriam. O seu
imaginário Vale Feliz era «uma comunidade de labor e salários iguais a serem
pagos pelo capital comunitário, a comunidade como capitalismo universal. A
posse material continuaria a ser a finalidade da existência e a única diferença
seria que todos os homens — incluindo os antigos capitalistas — seriam re-
duzidos à categoria de «trabalhadores». E, então, as mulheres? Como o casa-
mento era em si mesmo uma forma de propriedade privada exclusiva, os gros-
seiros comunistas tencionavam provavelmente que «as mulheres passassem do
casamento à prostituição geral» — tornando-se, desse modo, na propriedade
de todos. Marx recuou, horrorizado, perante essa perspectiva tão «bestial».
Pode perceber-se porquê a tentativa de viver em comunidade com Herr
Frau Ruge teve tão pouco sucesso. Apesar de toda a sua troça a respeito da
moral e maneiras burguesas, Marx era, no fundo, um patriarca supremamente
burguês. Q u a n d o bebia ou se correspondia com amigos, adorava piadas
porcas ou palpitantes escândalos sexuais. Mas, acompanhado por pessoas de
ambos os sexos, ostentava um cavalheirismo paternal que qualquer chefe de
família vitoriano admiraria. «Como pai e marido, Marx, apesar do seu tem-
peramento irrequieto e selvagem, é o mais doce e gentil dos homens», ob-
servou, surpreendido, um espião da polícia na década de 1850. O socialista
alemão, Wilhelm Liebknecht — seu companheiro em muitas pândegas em
tabernas — achava o pudor afectado de Marx tocante e u m pouco cómico.
«Embora em discussões políticas e económicas, ele não tivesse costume de
medir as palavras e utilizava frequentemente bastantes palavrões, diante de
crianças e mulheres a sua linguagem tornava-se tão amável e requintada que
até mesmo uma governanta inglesa não teria motivo para se queixar. E se,
durante a conversa, fosse mencionado algum assunto delicado, Marx cora-
va e retorcia-se na cadeira como uma virgem de 16 anos.»^''
E m Agosto de 1844, enquanto Jenny se encontrava ainda na sua dispensa
devido ao parto em Trier e Karl estudava economia sozinho no apartamento
o REI CORRUPTO o ^ 73

da Rue Vanneau, Friedrich Engels, então com 23 anos, passava por Paris
vindo de Inglaterra a caminho da Alemanha. E m b o r a os dois homens já se
tivessem visto uma vez — quando Engels visitara a redacção do Kheinische
Zeitung2i 16 de Novembro de 1842 — , tinha sido u m encontro frio e pouco
memorável: Engels desconfiou do jovem director que «se exalta como se dez
mil diabos o agarrassem pelos cabelos», conforme Edgar Bauer o tinha
prevenido. Marx mostrou-se igualmente desconfiado, pressupondo acertada-
mente que, como Engels vivia em Berlim, devia com certeza ser cúmplice das
loucuras dos irmãos Bruno e Edgar Bauer, hegeUanos livres. Engels redimiu-
-se dentro de pouco tempo abandonando Berlim para ir morar em Manchester
e foi-Ihe permitido escrever vários artigos para o Rheinische Zeitung, o que des-
pertou realmente o interesse de Marx foi uma braçada de ensaios submetida
ao Deutsche-Fran^sischeJahrbücher— uma crítica de Passado e Presente, de Thomas
Carlyle, e uma volumosa Crítica de Economia Política, a qual Marx considerou uma
obra de génio. Percebe-se porquê: apesar de ele já ter decidido que o idealis-
mo abstracto não passava de conversa e que o motor da história era accionado
por forças económicas e sociais, os seus conhecimentos práticos quanto ao ca-
pitalismo eram nulos. Tinha andado de tal m o d o embrenhado em contendas
dialécticas com filósofos alemães que a situação da Inglaterra — o primei-
ro país industrializado e berço do proletariado — tinha escapado à sua aten-
ção. Engels, da sua posição vantajosa no meio dos teares de algodão em
Lancashire, estava bem colocado para o esclarecer.
Quando voltaram a encontrar-se em Agosto de 1844, a atitude de Marx
tinha mudado e, em vez de desconfiança, manifestou uma curiosidade res-
peitosa. Depois de tomarem uns aperitivos no Café de la Régence — anti-
go covil de Voltaire e Diderot — Marx convidou Engels a vir ao seu apar-
tamento para continuarem a conversa. Esta, acompanhada por copiosas
quantidades de vinho tinto, durou dez dias intensos que se prolongaram pela
noite fora e, no fim, eles juraram amizade eterna.
Curiosamente, nenhum deles escreveu sobre esse épico diálogo. N u m
prefácio escrito cerca de 40 anos mais tarde, o relato de Engels resume-se
a uma frase: «Quando visitei Marx no Verão de 1844, a nossa total concor-
dância em todos os campos teóricos tornou-se evidente e o nosso trabalho
comum data dessa época.»'"' C'est tout: ninguém adivinharia que essa brusca
passagem de Engels por Paris poderia justamente vir a ser descrita como os
dez dias que abalaram o mundo.
74 ^ ^ KARL MARX ^ •

Os antepassados de Friedrich Engels tinham vivido em Wuppertal du-


rante mais de dois séculos ganhando a vida como agricultores e, depois —
com maior lucro — , na indústria têxtil. O pai, também chamado Friedrich,
tinha ampliado e diversificado a empresa associando-se com dois irmãos,
Ermen, e construindo teares em Manchester (1837), Barmen e Engelskir-
chen (1841).
Friedrich júnior nasceu a 28 de Novembro de 1820. A vida caseira era
devota e industriosa, sendo a rigorosa ortodoxia apenas ligeiramente aliviada
pela alegre disposição da mãe, EKse, cujo sentido de humor era «tão acen-
tuado que, mesmo na sua velhice, ria-se por vezes tanto que as lágrimas lhe
corriam pelas faces abaixo».^** O pai, personagem muito mais austera, espiava
ansiosamente o comportamento do filho mais velho para que ele não se
desviasse do caminho da virtude. «Friedrich obteve resultados médios n o
Hceu», escreveu a EHse a 17 de Agosto de 1835. «Como sabes, os seus modos
melhoraram, mas, apesar dos severos castigos que recebeu no passado, não
parece ter aprendido a ser obediente. Descobri, hoje, mais um Mvro repreen-
sível na sua secretária: um romance do século XIII. Que Deus o proteja pois
inquieto-me muitas vezes por causa deste nosso filho que, por outro lado,
demonstra ser tão prometedor.» Aparentemente, Deus não se ralava com o
jovem Engels, o qual, muito em breve, passou a 1er «livros repreensíveis»
muito mais perigosos.
Conformou-se às expectativas dos pais entrando — embora sem gran-
de entusiasmo — na empresa familiar. N a sua caderneta escolar, classe de
1837 em Michaelmas, o director observou c o m o nota final que o jovem
Friedrich «se julgava inclinado» a entrar nos negócios para fazer «uma car-
reira secundária». N o íntimo, já tinha outros planos. Mas precisava de ren-
dimentos e u m emprego na firma E r m e n & Engels seria uma sinecura útil
que garantia segurança financeira e bastante tempo uvre.
Começou a sua aprendizagem em Bremen, onde o pai lhe arranjou uma
posição não paga num negócio de exportações dirigido por Heinrich Leupold.
«É um ripo terrivelmente simpático, oh, tão b o m que nem imaginam», dis-
se Engels do patrão''. N u m a carta para os seus antigos colegas de escola,
Friedrich e Wilhelm Graeber, datada de 1 de Setembro de 1838, ele pede
desculpa por não escrever mais a fundo «porque o director está aqui senta-
do». Mas, como o parágrafo seguinte indica, Leupold não era mau patrão:
o REI CORRUPTO 0 ^ 75

«Desculpem eu escrever tão mal; emborquei três garrafas de cerve-


ja, hurra!, e não posso demorar porque isto tem de ir imediatamente para
o correio. Já estão a bater as três horas e as cartas têm de ser enviadas
para o correio às quatro. Com mil milhões de macacos, notam de certeza
que estou com umas cervejas no b u x o . . . Que estado lamentável! O ve-
lhote, quer dizer, o director, vai sair e eu estou em palpos-de-aranha. N ã o
faço ideia do que estou a escrever. Tenho a cabeça cheia de toda a espé-
cie de ruídos.»

Quando não estava a cumprir a suas mínimas obrigações no escritório,


ou a escrever cartas bêbedo, ou deitado numa rede a olhar para o tecto através
do fumo de um charuto, ou a vaguear a cavalo pelos subúrbios de Bremen,
Engels já ouvia aqueles ruídos no crânio. Compunha música coral — gran-
de parte copiada de cânticos antigos — e andava a praticar poesia. Um dos
seus poemas, «O Beduíno», foi aceite para pubKcação pelo Bremisches Conver-
sationsblatt, em Setembro de 1845. Digno de nota por ser o primeiro traba-
lho publicado de Engels, também assinalou o seu primeiro encontro com a
censura dos editores burgueses.
O poema começava por lamentar a sorte dos beduínos — «filhos do
deserto, orgulhosos e livres» — que tinham sido roubados desse orgulho e
dessa liberdade, sendo, agora, meras diversões para turistas. Terminava com
um apaixonado grito de batalha:

«Voltem de novo para casa, exóticos convivas!


As vossas túnicas do deserto nada têm a ver
Com os nossos mantos e vestes prussianos.
N e m os vossos cantos com a nossa literatura!»^°

A ideia, explicou mais tarde, era de «contrastar o beduíno, na sua condi-


ção presente, com a audiência, a qual lhe era totalmente alheia». Mas, aquando
da publicação do texto, isto foi substituído por uma nova estrofe final acres-
centada pelo próprio editor e sem permissão do autor:

«Saltam a mando e obediência do dinheiro,


E não por vontade primordial da Natureza.
Os olhos são inexpressivos, estão em silêncio.
Todos menos u m que entoa um canto fúnebre.»
76 '«I. KAM. MARX

Uma colérica exortação transformou-se, assim, em nada mais do que um


triste encolher de ombros melancólico. Engels mostrou-se compreensivel-
mente contrariado: de forma primitiva, já tinha reparado que a sociedade era
moldada por imperativos económicos, mas o editor não permitiu que ele
nomeasse ou condenasse os culpados. «É evidente», concluiu após este in-
feliz começo, «que o meus versos não têm grande significado.»^^
O seu gosto literário estava a tornar-se mais político e prosaico. Comprou
um píLiiñeto, Jacob Grimm über seiner Entlassung, que descrevia a demissão de
sete professores da Universidade de Göttingen, que tinham ousado protes-
tar contra o repressivo regime de Ernst August, o novo rei de Hanover. «E
excelente e está escrito com uma força pouco comum.»^^ Leu sete outros
panfletos sobre o «caso de Colónia» — a recusa, em 1837, do arcebispo de
Colónia de obedecer ao rei da Prússia. «Li coisas e encontrei expressões —
estou a adquirir uma boa prática, sobretudo em literatura — que nunca
seriam autorizadas a ser impressas aqui, ideias bastante liberais, etc... real-
mente maravilhosas.» Encorajado pela cerveja, referiu-se a Ernst August
numa das suas cartas a Graebers chamando-o «velho bode de Hanôver».
As vozes mais obviamente «progressivas» da época vinham do grupo de
escritores Jovem Alemanha; eram discípulos de Heine queadvogava a Uber-
dade de expressão, a emancipação das mulheres, o fim da tirania religiosa e
a abolição da aristocracia hereditária. «Quem pode manifestar-se contra tais
coisas?», perguntava, meio trocista, Engels. Mostrava-se impaciente com o
liberalismo fácu e vago do grupo, mas, na ausência de algo mais anaKtico ou
rigoroso, não tinha outro lado para se voltar. «O que é que eu, pobre coita-
do, posso fazer agora? Continuar a estudar sozinho? Não me apetece. Tor-
nar-me leal? Nem pensar!»^-' E, z'&úni, faute de mieux, juntou-se ao grupo
Jovem Alemanha. «Não consigo dormir de noite por causa das ideias deste
século. Quando estou nos correios e olho para o brasão da Prússia, o espí-
rito de liberdade apodera-se de mim. Procuro, sempre que leio um jornal,
marcas de liberdade. Intrometem-se nos meus poemas e fazem pouco dos
obscurantistas envoltos em hábitos de monge e arminho.»
Na sua casa, em Barmen, os pais nada sabiam da febre democrática do
filho pois, então e ao longo de muitos anos, ele fez o possível para os man-
ter na ignorância. Mesmo depois de ter chegado à meia-idade, quando ele e
Marx aguardavam alegremente a iminente crise do capitalismo, Engels com-
portava-se da melhor maneira sempre que Friedrich sénior o vinha visitar a
Manchester e desempenhava o papel do filho obediente a quem a fortuna
o REI CORRUPTO g ^ 77
XA

da familia podia ser confiada — assim como, ao caçar a cavalo com os


membros do clube Cheshire Hunt, se fazia passar por um negociante local
conservador. O seu comunismo, ateísmo e promiscuidade sexual faziam
parte de uma vida à parte.
Para aqueles que estavam a par dessa existência dupla, as opiniões de
Engels quanto aos pais e o meio em que viviam já era conhecida desde Março
de 1839, altura em que escreveu u m brilhante ataque contra os autocom-
placentes e presumidos habitantes de Bramen e Elberfeld para o Telegraphfür
Deutscheland, u m jornal da Jovem Alemanha. O autor, de 18 anos, assinou
com o pseudónimo de Friedrich Oswald — precaução necessária, pois os
artigos constituíam u m verdadeiro parricidio jornalístico. Nas «ruas lúgu-
bres» de Elberfeld, todas as cervejarias ficavam a transbordar nas noites de
sábado e domingo:

«... e quando fecham, por volta das onze, os bêbedos saem aos tram-
bolhões e, regra geral, cozem a bebedeira na valeta... As razões de tal
coisa são perfeitamente claras. Primeiro e principalmente, o grande res-
ponsável é o trabalho na fábrica. Salas acanhadas onde os trabalhadores
respiram mais fumo de carvão e poeira do que oxigénio — e a maior parte
dos casos de intoxicação começam aos seis anos de idade — , privam-nos
de toda a energia e alegria de viver. O s tecelões, que têm teares em casa,
trabalham debruçados sobre eles de manhã à noite e dissecam a espinal
medula diante de u m fogão. Aqueles que escapam ao misticismo são
destruídos pela bebida.»

Como esta referência ao misticismo implica, Engels já tinha identifica-


do a religião como sendo serva da exploração e da hipocrisia: «Pois é uma
realidade que as pessoas piedosas entre os proprietários das fábricas são as
que tratam pior os trabalhadores; empregam todos os meios para reduzir os
seus salários a pretexto de os impedir de beber, mas, quando há eleições, os
padres são os primeiros a corromper a sua gente.» Engels chegou a nomear
alguns desses lacrimosos fariseus, embora se tenha abstido de mencionar o pai.
As «Cartas de Elberfeld» provocaram alvoroço. «Ha, ha, ha!», escreveu
a Friedrich Graeber, um dos poucos a ser posto ao corrente. «Sabes quem
escreveu o artigo que apareceu no Telegraph? O autor é quem te escreve estas
linhas, mas aconselho-te a não dizer palavra quanto a isto. Podia meter-me
num grande sarilho.»^''
78 ^ ^ I<ARI. MARX

N a Primavera de 1841, Engels partiu de Bremen para ir cumprir o servi-


ço militar em BerKm, aKstando-se na artilharia da Guarda Real. A escolha de
Berlim, capital do Jovem Hegelianismo, não foi por acaso: embora a farda o
camuflasse dando-lhe um ar de respeitabilidade e assegurasse os pais, passou
todos os momentos de folga imerso em teologia radical e jornalismo. Fez um
truque semelhante em Outono de 1842, ao ser colocado na filial de E r m e n &
Engels, em Manchester: enquanto aparentemente adquiria prática no negócio
da família, como um herdeiro consciencioso era suposto fazê-lo, aproveitou
a oportunidade para investigar as consequências humanas do capitalismo.
Manchester era o locai onde a lei antitrigo tinha nascido, o centro da greve
geral dei 842, e uma cidade a fervilhar de cartistas, owenistas e agitadores in-
dustriais de todo o tipo. Viria a descobrir, aqui, a natureza desprezível do ser
humano. D e dia, era u m jovem e diligente gerente na Bolsa de Algodão;
mudava de campo depois do trabalho e explorava a terra incógnita do proleta-
riado de Lancashire, a fim de reunir dados e impressões para a sua obra-pri-
ma dos primeiros a n o S j ^ j Condições da Classe Operária em Inglaterra (1845). Fre-
quentemente acompanhado pela nova amante, uma operária ruiva chamada
Mary Burns, aventurava-se nos bairros da lata que poucos outros homens
da sua classe social conheciam. Foi aqui, por exemplo, que retratou a «Pe-
quena Irlanda», a área de Manchester a sudoeste de Oxford Road:

«Uma massa informe de Hxo, detritos e porcaria repugnante em to-


das as direcções; a atmosfera é envenenada por eflúvios, carregada e
toldada por fumo de uma dúzia de chaminés de fábricas. Uma multidão
de mulheres e crianças em farrapos anda por aqui, tão nojentos como os
porcos que se espojam no lixo e nas poças. E m resumo, todo este chi-
queiro proporciona um espectáculo tão odioso e repulsivo, que dificil-
mente poderá ser igualado. A raça que vive nestes casebres em ruínas,
remendados com oleados, por detrás das janelas partidas e portas arrom-
badas ou em caves escuras, húmidas e fedorentas como se tivesse uma
finalidade, deve ter chegado ao nível mais baixo da humanidade. Tal é a
impressão e a ideia com que se fica ao ver este bairro. Mas o que é que
se deve pensar ao saber que uma média de 20 seres humanos vive em cada
destes cubículos?»^^

O que conferiu intensidade e profundidade e este livro foi a hábil teia (era,
afinal de contas, um industrial de têxteis) de observações em primeira mão.
o REI CORRUPTO ^ß 79

provenientes de comissões parlamentares, funcionários do departamento de


saúde e o relatório de Hansard. O Estado britânico pode ter feito pouca coi-
sa, ou mesmo nada, para melhorar as condições dos trabalhadores, mas ti-
nha reunido imensos dados sobre o horror das suas vidas que estavam dis-
poníveis a quem quer que se desse ao trabalho de os retirar de uma poeirenta
prateleira de biblioteca. Artigos de jornais, sobretudo de processos criminais,
proporcionavam ainda mais pormenores. «No dia 15 de Janeiro de 1844, uma
segunda-feira», anotou Engels:

«dois rapazes esfomeados foram trazidos à presença do magistrado


da polícia. Tinham roubado e devorado logo a seguir uma perna de vi-
tela meio cozida de uma loja. O magistrado decidiu investigar o caso e
o agente da poKcia deu-lhe os seguintes pormenores: a mãe dos dois ra-
pazes era viúva de um antigo soldado e vivia com muita dificuldade desde
a morte do marido... Quando o poHcia foi ter com ela, encontrou-a com
seis outros filhos pequenos literalmente amontoados numa sala do fun-
do, cuja única mobília eram duas cadeiras sem assento, uma pequena
mesa com duas pernas partidas, uma chávena quebrada e um pequeno
prato. Na lareira mal havia vestígios de lume e, a um canto, estava empi-
lhado um pequeno monte de trapos velhos que servia de cama para toda
a família.»

Engels ficou espantado por descobrir que a administração da burguesia


britânica proporcionava tantas provas incriminadoras contra ela mesma.
Depois de citar vários revoltas, casos de doença e fome, publicados no jor-
nal da classe média, Manchester Guardian, exultou: «Tenho imenso prazer em
ouvir o testemunho dos meus oponentes.» Basta examinar as citações do re-
latório oficial do Governo e de The Economist mc\\xià2i,s em O Capitalp2xa ver
quanto Karl Marx aprendeu através desta técnica.
Marx e Engels complementaram-se perfeitamente. Embora Engels não
pudesse competir com a erudição de Marx, pois não finalizara a universidade,
tinha valiosos conhecimentos em primeira mão sobre o funcionamento do
capitalismo. Mas o «acordo absoluto em todos os campos teóricos» não se
estendia aos seus respectivos estilos e hábitos. Quase se pode dizer que os
dois personagens eram a Tese e a Antítese encarnadas. Marx escrevia em
garatujas com inúmeras emendas, borrada demonstração do esforço que lhe
custava; a escrita de Engels era nítida, elegante, metódica. Marx era atarra-
80 ^ © KARL MARX

cado e moreno, u m judeu atormentado pela aversão à sua própria pessoa;


Engels era alto e louro, com mais do que uma simples sugestão à arrogân-
cia ariana. Marx vivia no caos e na penúria; Engels era u m trabalhador efi-
caz que ocupava um emprego a tempo inteiro na firma da família enquan-
to, ao mesmo tempo, mantinha uma produção formidável de livros, cartas
e peças jornaKsticas... escrevendo igualmente, com frequência, artigos em
nome de Marx. N o entanto, arranjava sempre tempo para desfrutar o con-
forto da vida da alta burguesia: tinha cavalos nos seus estábulos, vinho na sua
adega e amantes no seu quarto. Durante os longos anos que Marx passou
quase na miséria, fugindo aos credores e debatendo-se para sustentar a fa-
mília, Engels, sem filhos, prosseguiu a vida de prazer e despreocupação dos
solteiros ricos.
Apesar das suas óbvias vantagens, Engels sabia que nunca viria a ser a
figura dominante e, desde o princípio, sujeitou-se a Marx, aceitando que o
seu dever histórico era apoiar e subsidiar o indigente sábio sem queixumes
nem inveja — ou, já agora, sem muitas demonstrações de gratidão. «Não
posso de todo compreender», escreveu em 1881, quase 40 anos depois de
se terem encontrado. «Como é que se pode ter inveja do génio; trata-se de
algo tão especial que aqueles que não o possuem sabem, desde o princípio,
que é inatingível; para se ser invejoso de um tal dom é preciso ter uma grande
estreiteza de espírito.»^'' A amizade de Marx e a culminação triunfante da sua
obra seriam recompensa suficiente.
N ã o tinham segredos entre eles, nenhuns tabus: se deparava com um
e n o r m e furúnculo n o pénis, Marx não se coibia de fazer uma descrição
pormenorizada ao amigo. A sua volumosa correspondência constitui um
apurado guisado de história e mexericos, economia política e obscenidade
de estudantes, ideais elevados e intimidades degradantes. C o m o exemplo
mais ou menos ao acaso, Marx, numa carta a Engels de 23 de Março de 1835,
discute o rápido aumento de peritos britânicos em territórios turcos, a p o -
sição de DisraeK n o Partido Conservador, a passagem do projecto de lei so-
bre as reservas do clero canadiano na Câmara dos Comuns, o tratamento dos
refugiados por parte da polícia britânica, as actividades dos comunistas ale-
mães em Nova Iorque, a tentativa do editor de Marx para o vigarizar, a si-
tuação na Hungria... e a alegada flatulência da imperatriz Eugenia: «Parece
que aquele anjo sofre de um mal indelicadíssimo. É apaixonadamente viciada
em peídos e é incapaz, mesmo em companhia, de os suprimir. N u m a certa
ocasião, recorreu a montar a cavalo como remédio. Mas, na medida em que
o REI CORRUPTO i^1^ 81

isso lhe foi agora proibido por Bonaparte, ela "descarrega-se". E apenas um
silvo, um pequeno murmúrio, quase nada, mas sabes muito bem que os
franceses são muito sensíveis ao menor sopro de vento.»
Como cosmopolitas sem terra, chegaram a criar uma linguagem própria;
uma estranha algaraviada em inglês, francês, latim e alemão. Todas as cita-
ções neste livro foram traduzidas para poupar ao leitor a angústia de tentar
decifrar o código marxista, mas uma breve frase dará uma ideia da sua ex-
pressiva, embora incompreensível, sintaxe: Diese excessive technicality of an-
cient law i^eigtjurispruden^asfeather of the same bird, als d. religiösen Formalitäten
^. i3. Auguris etc. od. d. Hokus Fokus des mediane man der savages. Engels apren-
deu a compreender esta confusão facilmente e, assim como Jenny, conseguia
1er os gatafunhos de Marx. À parte estes dois próximos colaboradores, pou-
cos foram aqueles que, sem arrancar os cabelos, tiveram sucesso. Após a
morte de Marx, Engels teve de dar longas lições de paleografia aos demo-
cratas sociais alemãs que desejavam compilar os documentos inéditos do
grande homem.
Engels serviu Marx como espécie de mãe substituta — enviando-lhe
dinheiro, preocupando-se com a sua saúde e lembrando-lhe constantemente
para não negligenciar os estudos. Na primeira carta que existe e que foi escrita
em Outubro de 1844, já insistia para que Marx terminasse os manuscritos
sobre poKtíca e economia: «Mexe-te para que o material que compilaste seja
pubHcado em breve. Já não é sem tempo!» E, novamente, a 20 de Janeiro do
ano seguinte: «Tenta terminar o teu livro de economia política. Mesmo que
haja muita coisa com que não estejas satisfeito, não interessa. As pessoas
estão prontas e devemos bater no ferro enquanto ele ainda está quente... Por
isso, tenta terminá-lo antes de Abril. Faz como eu, marca uma data para o teres
27
definitivamente acabado e certifica-te de que vai rapidamente para a tipografia.»
Mas não havia nada a fazer. Marx era desencaminhado pelo próprio
Engels. Este cometeu o erro de propor que colaborassem juntos num pan-
fleto contra Bruno Bauer e a sua trupe de palhaços sob o título de Crítica do
Criticismo C^'Z/Vo, assinalando que não deveria ter mais de 40 páginas, pois
«acho estas balelas teóricas cada vez mais entediantes e irrita-me o número
de palavras que tem de ser consagrado ao tópico do " h o m e m " e todas as
Mnhas que têm de ser lidas, ou escritas, contra a teologia e a abstracção...»28
Engels redigiu rapidamente a sua parte de 20 páginas enquanto ainda se
encontrava no apartamento da Rue Vanneau e, depois, regressou para casa
na Renânia. Vários meses depois, ficou «bastante surpreendido» ao saber que.
82 ^ ^ KARL MARX

agora, o panfleto era uma monstruosidade com mais de 300 páginas e fora
reintitulado A. Sagrada Família.
«Vai parecer estranho se mantiveres o meu nome na capa», comentou. «A
minha contribuição foi praticamente nula.» Mas este não era o único moti-
vo para desejar que o seu nome fosse retirado. «O Criticismo Crítico ainda não
chegou!», disse a Marx em Fevereiro de 1845. «O seu novo titvXo^ASagrada
Família, vai certamente causar-me sarilhos com o meu piedoso e já muito
exasperado parente, embora tu, claro está, não pudesses estar ao corrente de
uma coisa dessas.»^^ O parente irritado era, claro está, o seu beato e despó-
tico pai que começava a recear pela salvação da alma cristã do filho.
«Quando recebo uma carta, é farejada por todos os lados antes que ma
entreguem», resmungava Engels. «Não posso comer, beber, dormir n e m
mandar um peido sem ter de enfrentar a mesma maldita expressão de cor-
deiro de Deus.»^°
U m dia, quando Engels chegou a cambalear duas da manhã, o
desconfiado patriarca perguntou-lhe se ele fora preso. D e m o d o algum,
ripostou Engels de maneira tranquilizadora: tinha simplesmente estado a
discutir ideias comunistas com Moses Hess. «Com o Hess!», gaguejou o pai.
«Deus nos valha! Andas com péssimas companhias!»
E o pai não sabia da missa a metade. «Agora, tudo o que o meu velho tem
de fazer é descobrir a existência do Criticismo Critico pata me pôr, certamen-
te, no olho da rua. E, ainda por cima, há a constante irritação de ver que não
há nada a fazer com esta gente; adoram flagelar-se, torturar-se com as suas
fantasia infernais e ninguém consegue sequer ensinar-lhes os mais banais
princípios de justiça.».
yí Sagrada Família, ou a Crítica do Criticismo Crítico: Contra Bruno Bauer e
Consortes, foi pubUcada em Frankfürt na Primavera de 1845. Ao voltar a 1er
o livro cerca de 20 anos mais tarde, Marx ficou «agradavelmente surpreso por
se dar conta de que não há razão para nos sentirmos envergonhados do texto,
embora o culto a Feuerbach provoque, agora, uma impressão cómica».^^
Poucos outros leitores partilharam da sua satisfação. Por volta da altura em
que Marx começou a escrever esta epopeia desdenhosa, os irmãos Bruno,
Edgar e Egbert Bauer — a sagrada família do título — já tinham derrapa-
do do ateísmo e comunismo militantes para uma mera palhaçada, assim
como os Dadaístas ou Futuristas dos anos de 1930. Tudo o que eles mere-
ciam, ou precisavam, era uma bofetada e não um bombardeamento em lar-
ga escala. Q u e m mata moscas com um bacamarte?
o REI CORRUPTO o * ^ 83

Os chumbos de Marx acertaram em outros alvos que não mereciam a sua


atenção. Havia vários capítulos de invectivas contra Eugène Sue, autor de
populares romances sentimentais, cuja única ofensa era ter sido elogiado no
Allgemeine Literatur-Zeitung, de Bruno Bauer. Embora Sue possa ter sido tão
horrível como Marx sugeria, o castigo era absurdamente desproporciona-
do em relação ao crime: tentem imaginar, através de um equivalente moder-
no, uma magnum opus do professor George Steiner que atacasse As Pontes de
Madison Country. Até mesmo Engels foi obrigado a admitir que Marx estava
a desperdiçar o seu humor azedo no ar do deserto. «A coisa é demasiado
longa», escreveu. «O supremo desprezo que nós dois manifestamos pelo
Literatur-Zeitung contrasta flagrantemente com as 22 folhas de papel (352
páginas) que lhe dedicámos. Além do mais, a maior parte do criticismo
quanto à especulação e ao ser abstracto em geral será incompreensível para
a maioria do público e não terá interesse. De outro modo, o livro está lin-
damente escrito...»
Ou, como o vigário cheio de tacto disse quando o bispo lhe serviu um
OYO podre: «Não, eminência, há uns bocados que são excelentes!»
o RATO N O SOTAO

Caso Marx se tivesse limitado a irritar hegelianos obscuros e romancis-


tas de segunda ordem, talvez o tivessem deixado em paz. Mas ele não podia
resistir à possibilidade de arreliar criaturas maiores e mais perigosas. N o
Verão de 1844, depois de ter escapado a uma tentativa de assassínio, o rei
Frederico Guuherme IV, da Prússia, enviou uma breve mensagem de agra-
decimento aos seus leais súbditos antes de partir para férias: «Não posso
abandonar o solo pátrio sem exprimir publicamente a gratidão profunda-
mente sentida em Meu n o m e e no da Rainha, pela qual o N o s s o coração
ficou comovido.»
Marx achou isto hilariante — e disse-o, con brio, numa artigo publicado
no Vorwärts!. A sintaxe do rei, escreveu, parecia implicar que os peitos reais
estavam comovidos pelo nome real:

«Se o espanto perante este estranha construção de frase força uma


pessoa pensar novamente, nota-se que a conjunção relativa "pela qual o
nosso coração ficou comovido" se refere não ao " n o m e " , mas à "grati-
dão" colocada mais longe... A dificuldade é devida à combinação de três
ideias: 1 que o rei abandona a pátria; 2 que a deixa apenas por um curto
período de tempo; 3 que ele sente a necessidade de agradecer ao povo.
A enunciação demasiado concentrada dessas ideias faz parecer que o rei
está a exprimir a Ç.UÍLgratidão apenas porque deixa a pátria.. .»^

Se Marx julgou que poderia escapar com estes comentários de lesa-ma-


jestade, tinha-se esquecido de que os soberanos têm a sua própria solidariedade
86 ^ o I<j\RLMARX

maçónica. A 7 de Janeiro de 1845, o enviado prussiano, Alexander von


Humboldt entregou, no decorrer de uma audiência com o rei Luís Füipe, dois
itens: um valioso vaso de porcelana e uma carta de Frederico Guilherme IV
protestando contra os ultrajantes insultos e difamações publicados n o
l^orwãrtslhuís Filipe concordou que haviam, de facto, demasiados filósofos
alemães em Paris: o jornal foi fechado duas semanas mais tarde e o minis-
tro do Interior francês ordenou a expulsão de Marx.
Para onde ir agora? O único rei n o continente europeu que, apesar de
exigir uma promessa escrita de b o m comportamento, ainda aceitava refu-
giados era Leopoldo I, da Bélgica. («A fim de obter autorização para residir
na Bélgica concordo prometer, sob a minha palavra de honra, nada pubK-
car neste país sobre política actual (assinado) Dr. Karl Marx.») Enquanto
Jenny permaneceu durante uns dias em Paris para vender a mobília, Marx
partiu de Paris acompanhado por Heinrich Bürgers, um jovem jornalista do
Vorwärst!, que saía do país revoltado pelo «castigo infligido no h o m e m que
foi meu amigo e fiel guia dos meus estudos». Enquanto a carruagem avan-
çava aos solavancos através da Picardia, Bürgers tentou em vão animar o seu
mentor entoando canções das tabernas alemãs.
Uma boa noite de sono restaurou melhor as forças de Marx que, na ma-
nhã seguinte, já estava impaciente para entrar em acção. Apressou Bürgers
a terminar o pequeno-almoço, dizendo-lhe que «temos de partir já para ver
o Freüigrath ainda hoje». Ferdinand Freüigrath, antigo poeta da corte de Fre-
derico Guilherme IV, tinha fugido para a Bélgica há umas semanas a fim de
não ser preso por causa da publicação de uma obra traiçoeira. Confissão de Fé.
Outrora alvo habitual do velho Rheinische Zeitung, tinha sido agora instanta-
neamente absolvido por se ter juntado à causa antiprussiana. Outros recém-
-chegados da diáspora radical incluíam Moses Hess, Karl Heinzen, o radi-
cal suíço Sebastian Seüer, um antigo oficial de artilharia, Joseph Weydemeyer
(o qual viria a tornar-se um amigo de sempre), um grupo de socialistas po-
lacos — e, mais importante, Friedrich Engels que não precisou de ser exces-
sivamente persuadido para escapar à asfixiante casa paterna e seguir Marx
no exílio. O irmão de Jenny, Edgar von Westphalen, o encantador, embora
incontinente, cachorrinho da família, também os acompanhava.
Quando a mulher e a filha se juntaram a Marx, já ele tinha voltado à velha
rotina — 1er, escrever, intrigas e copos. «Éramos loucamente alegres», recor-
dava Weydemeyer. Longas manhãs passadas em cafés e noites ainda mais
longas a jogar às cartas e a conversar meio bebidos. Por uma vez, até mes-
o RATO NO SÓTÃO « ^ 87

mo as finanças da família eram prósperas: dois dias antes de partir de Paris,


um editor de Darmstadt tinham dado um avanço de 1500 francos a Marx
pelo seu embrionário livro sobre economia poKtica e uma colecta feita por
Engels, sobretudo entre adeptos na Alemanha, acrescentava mais mil fran-
cos ao mealheiro. Engels também entregou o dinheiro que tinha recebido
pelo seu livro. As Condições da Classe Operária em Inglaterra, para que «pel
menos, esses filhos da mãe não tenham a satisfação de verem a sua infâmia
causar-te embaraços financeiros». Mas, acrescentou com presciência, «receio
que, no fim, também terás problemas na Bélgica e que a única alternativa será
a Inglaterra».^
Jenny, mais uma vez grávida, tentava esconder o seu desapontamento de
ter abandonado as lojas e salões de Paris pela enfadonha Bruxelas. No en-
tanto, a mãe ficou preocupada com este último transtorno doméstico e
emprestou-lhe permanentemente a criada de Trier, Helene Demuth, a qual
passou o resto da vida a manter a casa de Marx em ordem através de inúme-
ras crises e vicissitudes. Era uma mulher graciosa de origem camponesa com
25 anos — rosto redondo, olhos azuis e sempre bem arranjada e limpa mes-
mo quando rodeada pela miséria. A sua eficiência doméstica era formidável
e infatigável. Em 1922, uma mulher que visitara os Marx em rapariga ainda
se lembrava da excelente cozinha de Helene. «As tortas de fruta que fazia
ainda hoje são uma constante e doce recordação.»^ Mas Helena não era
nenhuma humude criada para todo o serviço: tomava conta dos patrões com
uma ferocidade de tigre e os convidados que abusavam da hospitalidade deles
eram maltratados.
Durante os primeiros meses, Marx e a família moraram em hotéis e
quartos de amigos. Mas, assim que encontraram um alojamento permanente
— uma pequena casa com terraço na Rue d'Alliance, número 5, na extremi-
dade oriental da cidade —Jenny e a filha foram passar as férias de Verão na
residência da baronesa Von Westphalen, na Alemanha, deixando a Karl a ta-
refa de tornar o lugar habitável. <A. pequenina casa deve servir», escreveu
Jenny de Trier. Um quarto no andar de cima teria de ser reservado para o
parto, mas «logo que tiver a criança, mudo novamente para o andar de bai-
xo. Tu poderias dormir no que é agora o teu escritório e montar a tua tenda
no imenso salão. Assim, o barulho das crianças não te perturbaria e eu,
quando as coisas estivessem tranquilas, iria ter contigo... Que rica colónia
de mendigos vai ser Bruxelas!»"* A 26 de Setembro, apenas 15 dias depois de
ter voltado de Trier, Jenny deu à luz outra filha, Laura.
88 ^ ^ KARLMARX

Marx tinha-se comprometido com as autoridades belgas de nada publi-


car sobre a política actual, mas julgou que tinha o direito de participar em
política e de prosseguir o seu estudo de historia económica. Daí os apelos
a Engels, actualmente um indispensável lugar-tenente. No Verão de 1845,
os dois homens fizeram uma visita de seis semanas a Inglaterra, em parte para
aproveitar as bem fornecidas bibliotecas de Londres e Manchester, mas
também para se encontrarem com os Kderes dos Cartistas, o primeiro mo-
vimento operário do mundo. Ao regressarem, Engels alugou uma casa ao
lado da dos Marx e pôs-se a organizar os socialistas espalhados em Bruxe-
las numa fi^rça política comparável.
Primeiro, porém, havia o assunto do livro de Marx a tratar. A viagem de
estudo à Grã-Bretanha e as longas horas que ele tinha passado na biblioteca
municipal de Bruxelas devem ter aumentado as esperanças do editor, Karl
Leske, que esperava a conclusão da Crítica Económica e Política por volta do fim
do Verão. Mas Marx já pusera o manuscrito de lado de pois de ter escrito pouco
mais do que o índice. «Pareceu-me muito importante», explicou a Leske, «pre-
ceder o meu desenvolvimento positivo com um texto polémico contra a filo-
sofia alemã e o socialismo alemão até à actualidade. Isto é necessário a fim de
preparar o público para o meu ponto de vista em economia, o qual é diame-
tralmente oposto ao dos investigadores alemães passados e presentes... Se for
necessário, posso apresentar numerosas cartas que recebi da Alemanha e da
França como prova de que esta obra é ansiosamente aguardada.»^
Mas tal não aconteceu: o seu «texto polémico» só encontrou editor em
1932. A única expectativa pública vinha do próprio Marx que, agora, estava a
ser caricaturado pelos Jovens Hegelianos como improvável discípulo de Feuer-
bach. Isso enñarecia-o: a desmistificação de Hegel por Feuerbach tinha sido, na
verdade, um glorioso momento de revelação, como o primeiro vislumbre do
Homero, de Chapman, por parte de Keats, mas Marx há muito tinha concluí-
do que a crítica apenas substituía um mito por outro. Tinha chegado agora a
vez de Feuerbach, o homem que virara Hegel de pernas para o ar, de receber
o mesmo tratamento — tratava-se de um «ajuste de contas», como dizia Marx.
O seu exercício em contabilidade filosófica começou na Primavera de
1845, ano em que assentou as breves notas actualmente conhecidas por Teses
sobre Feuerbach. «A principal falha de todo o materialismo anterior (o de
Feuerbach incluído) é que as coisas, a realidade, a sensualidade, são apenas
concebidas sob a forma de objecto, ou de contemplação, e não como activida
eprática humana sensual.»'^
o RATO NO SÓTÃO < ^ 89

Feuerbach tinha exposto as bases seculares da religião, mas, a seguir,


permitiu que o p r ó p r i o d o m í n i o secular se dispersasse em nuvens de
abstracção. «A questão de saber se a verdade objectiva pode ser atribuída ao
pensamento humano», argumentou Marx, «não é uma questão teórica, mas
prática... Toda a vida social é essencialmente^ritóVí?.. .Os filósofos interpre-
taram meramente o mundo de várias maneiras; a questão é mudá-lo.» A teoria
sem prática era uma forma de masturbação escolástica — bastante prazen-
teira, mas, em última análise, infértil e sem consequências. N o entanto, Marx
e Engels passaram o Inverno de 1845-46 a teorizar à farta enquanto com-
punham A Ideologia Alemã.
O livro começa com uma daquelas generalizações de Marx para chamar
a atenção: «Até hoje os homens conceberam sempre ideias erradas quanto
a eles mesmos, sobre o que são e o que devem ser.» Isto é seguido por ou-
tro dos seus truques favoritos, a parábola provocadora:

«Era uma vez um tipo valente que julgava que os homens se afoga-
vam apenas porque estavam possuídos pela ideia da gravidade. Se conse-
guissem tirar tal ideia da cabeça, confessando, por exemplo, que se tra-
tava de uma superstição, de um conceito religioso, ficariam sublimemente
livres dos perigos da água. Ele tinha lutado toda a sua vida contra a ilu-
são da gravidade e todas as estati'sticas davam-lhe novas e múltiplas pro-
vas das suas nocivas consequências. Este tipo valente era o protótipo dos
novos filósofos revolucionários alemães.»^

Esses filósofos eram carneiros atormentados pela ilusão de que eram


lobos cujo insípido balido «apenas imitava, em forma filosófica, as concep-
ções da classe média alemã».
U m dos carneiros era o próprio Ludwig Feuerbach, cuja concepção do
mundo era «limitada, por um lado, à sua mera contemplação, e, por outro,
a meras sensações». Assim ele nem sequer reparava que os objectos naturais
mais simples são, na realidade, produtos das circunstâncias históricas. «Por
exemplo, a cerejeira, como quase todas as árvores de fruta, foi, como é de
sobremaneira conhecido, transplantada há apenas alguns séculos através do
comércio para as nossas regiões e, por conseguinte, só por esta acção de uma
dada sociedade numa dada época é que tornou numa "certeza sensual".» Para
Feuerbach, a cerejeira encontrava-se simplesmente alie. constituía um dos
dons altruístas da Natureza.
90 ^ O KARL MARX - -

Curiosamente, e embora a intenção do livro fosse um ajuste de contas com


Feuerbach, Marx reservou-lhe apenas alguns capítulos curtos. Bruno Bauer
— «São Bruno» — foi despachado com rapidez semelhante. Mas 300 páginas
ilegíveis foram dedicadas às loucuras de Max Stirner, autor anarquista dos
Jovem Hegelianos, que propunha o egoísmo e o sibaritismo para Hbertar os
indivíduos da opressão imaginária. Embora o credo existencialista de Stirner
estivesse a pedi-las, um directo rápido teria dado conta do recado com maior
eficácia do que o sarcasmo verboso de Marx — o qual, ironicamente, se pa-
rece como um bom exemplo do egoísmo sibarita que Stirner advogava.
Apesar de todos os seus longueurs, A Ideologia Alemã é u m relato muito
revelador do que Marx, que contava então 27 anos, tinha aprendido através
das suas aventuras filosóficas e políticas. Tendo rejeitado Deus, Hegel e
Feuerbach em rápida sucessão, ele e Engels estavam agora prontos para re-
velar o seu próprio plano de teoria prática ou prática teórica — aliás, conhe-
cida por materialismo histórico. «As premissas a partir das quais começamos»,
anunciaram, «não são arbitrárias n e m dogmas, mas premissas verdadei-
ras das quais a abstracção só pode ser feita imaginariamente. São indivíduos
reais, a sua actividade e as condições materiais da sua vida... Estas premissas
podem, portanto, ser verificadas de forma puramente empírica.»
Enquanto Feuerbach tinha argumentado que somos o que comemos, Marx
e Engels insistiam que somos o que produzimos — e como produzir. «A di-
visão do trabalho no interior de um país conduz, ao princípio, à separação do
trabalho industrial e comercial do agrícola, e, daí, à separação da cidade e
do campo e ao conflito dos seus interesses. O seu desenvolvimento ulterior
conduz à separação do trabalho comercial do industrial » E assim por
diante. Estes variados requintes na divisão do trabalho reflectiam o desenvol-
vimento da propriedade — da propriedade tribal primitiva à propriedade co-
munitária antiga e do Estado, depois à propriedade feudal e, a seguir, à proprie-
dade burguesa. «K estrutura social e o Estado estão constantemente a evoluir
a partir do processo vital de indivíduos definidos... Não é a consciência que
determina a vida, mas a vida que determina a consciência.» A escravatura não
podia ser abolida sem a máquina a vapor ou a mula, assim como a servidão
não podia ser abolida sem melhoramentos na agricultura, e, em geral, «as
pessoas não podem ser libertadas enquanto não conseguirem obter comida e
bebida, alojamento e roupa de qualidade e quantidade adequadas.»
Como é que seria essa libertação? Apesar do novo materialismo de Marx
e Engels ser apresentado como a negação do idealismo, a sua própria visão
o RATO NO SÓTÃO ^ 91

do paraíso era um idílio pastoral — o que, visto o desprezo de Marx pela vida
no campo, a qual costumava descrever como uma «idiotice rural», não dei-
xava de ser estranhamente irónico. Sob a presente divisão do trabalho, ob-
servaram, todos os homens estavam encurralados numa esfera exclusiva de
actividade:

«Ele é um caçador, um pescador, um pastor, ou um crítico, e assim


deve permanecer, a fim de não perder os seus meios de subsistências;
enquanto numa sociedade comunista, onde ninguém tem uma esfera
exclusiva de actividade, mas todos podem tornar-se eficientes em qual-
quer sector, a sociedade regula a produção geral e torna possível que eu
faça uma coisa hoje e outra amanhã, caçar de manhã, pescar à tarde, tratar
do gado ao anoitecer, criticar o que me apetecer sem nunca ter de me
tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.»

U m estado de nirvana um tanto ou quanto cansativo, podem algumas


pessoas pensar. Engels gostava certamente de caçar e criticar, mas agrada-
va-lhe realmente a ideia de tratar do gado após a refeição?
O paraíso marxista era invocado de m o d o mais sedutora na interminá-
vel diatribe contra Stirner, o qual tinha sugerido que a divisão do trabalho
se aplicava apenas àquelas tarefas que qualquer pessoa razoavelmente trei-
nada poderia desempenhar — cozer ao forno ou amanhar a terra, por exem-
plo. Ninguém, insistia, podia ter executado a obra de Rafael em nome des-
te. O exemplo era infeliz: Rafael tinha uma data de assistentes e discípulos
para completar os seus frescos, como Marx e Engels rapidamente assinala-
ram. Além disso, os comunistas não acreditavam que qualquer pessoa deves-
se, ou pudesse, produzir a obra de um Rafael, mas apenas que deveria ser
permitido que um Rafael potencial se desenvolvesse sem entraves.

«Sancho [quer dizer, Stirner] imagina que Rafael produziu quadros in-
dependentemente da divisão de trabalho que existia em Roma nessa
época. Se ele comparasse Rafael com Leonardo da Vinci e Ticiano, ve-
ria como as obras de arte de Rafael dependiam enormemente da pros-
peridade de Roma, a qual ocorreu sob influência florentina, enquanto a
obra de Leonardo dependia do estado das coisas em Florença e a de
Ticiano, num período mais tardio, dependia do desenvolvimento total-
mente diferente de Veneza. Rafael, c o m o qualquer outro artista, foi
92 * ^ KARL MARX

determinado pelos progressos técnicos, pela organização da sociedade


e a divisão do trabalho... N u m a sociedade comunista não existem pin-
tores, apenas pessoas que, entre outras actividades, também pintam.»

Actividades como a caça, a pesca e, presumivelmente, a tosquia de car-


neiros. A pergunta de quem é que limpava as casas de banho ou ia buscar o
carvão às minas nunca foi posta nem respondida. Quando um espertalhão
alemão tentou apanhá-lo interrogando-o em voz alta quem é que engraxa-
ria os sapatos sob o regime comunista, Marx replicou colericamente, «Você!»
U m a vez, uma amiga sugeriu que não conseguia imaginá-lo a viver numa
sociedade igualitária. «Nem eu», concordou ele. «Esses tempos hão-de che-
gar, mas, por essa altura, já não devemos cá estar.»
Desde a sua tardia publicação neste século que têm sido feitas extrava-
gantes declarações acerca de A Ideologia Akmã, afirmando que se trata de uma
«exposição clara» da concepção marxista da história. O próprio Marx era
mais realista quanto às suas limitações. «Abandonámos o manuscrito à roe-
dora crítica dos ratos», escreveu, «tanto mais que tínhamos alcançado o nosso
objectivo principal — autoclarificação.» As páginas rasgadas do manuscrito
parecem, de facto, ter sido roídas nas margens por pequenos roedores, pro-
vavelmente de tendência irreconcüiavelmente hegeliana.
Depois de terem resolvido a questão da teoria a seu agrado, Marx e
Engels passaram rapidamente à prática — «para conquistar o proletariado
europeus e, em primeiro lugar, o alemão». E onde é que estava o proletariado
alemão? E m Paris, Londres e Bruxelas, claro está.
A primeira organização de comunistas alemães exilados, a Liga dos
Marginais, tinha sido fundado em Paris, em 1834. Os seus membros eram
quase todos intelecmais da classe média — «os elementos mais sonolentos»,
como lhes chamava Engels — que em breve acabaram por adormecer de
vez. A clandestina Liga dos Justos, que se tinha separado em 1836, era mais
animada e dirigida p o r artesãos autodidactas que passaram alegremente
muitas noites a conspirar. A sua política, contudo, era pouco mais do que
uma vago igualitarismo derivado do utopista do século XVIII, Gracchus
Babeuf Depois de participarem na sublevação parisiense falhada de Maio
de 1839, vários dos Hderes da Liga fugiram para Londres, onde fundaram
uma Associação Educativa de Trabalhadores Alemães, como fachada da sua
sociedade secreta, que soava respeitável. As figuras mais importantes eram
Karl Schapper, um corpulento compositor-tipógrafo e, por vezes, guarda
o RATO NO SÓTÃO s * ^ 93

florestal que tinha ganho os seus galões de revolucionário num ataque a uma
esquadra em 1833; Heinrich Bauer, pequeno sapateiro espirituoso da
Francónia; e Joseph Moll, relojoeiro de Colónia de altura média, mas enor-
me coragem física. «Quantas vezes», escreveu Engeles, «ele e Schapper de-
fenderam vitoriosamente a entrada da Associação contra centenas de opo-
nentes!» (Heróico até ao último momento, Moll foi abatido a tiro num campo
de batalha alemão durante a revolta de Baden, em 1849).
Engels veio a conhecer este triunvirato no decorrer de uma visita a Lon-
dres, em 1843. Eram os primeiros revolucionários da classe operária que ja-
mais tinha conhecido e, para um impressionável jovem burguês, o seu esta-
tuto de «homens a valer» fadlmente superou a estreiteza e ingenuidade da sua
ideologia. Além do mais, eram sem dúvida eficazes, pois reestruturaram a Liga
dos Justos em Londres e organizaram uma rede de apoiantes na Suíça, Alema-
nha e França. Onde as associações de trabalhadores eram proibidas por lei, eles
faziam-nas passar por sociedades corais ou clubes de ginástica.

Embora esses conspiradores ainda considerassem Paris a cidade-mãe das


revoluções, já não tratavam a filosofia francesa com o mesmo assombro ou
deferência pois, agora, a Liga tinha o seu próprio teórico, o aprendiz de
alfaiate Wilhelm Weitling, cujo livro A. Humanidade como é e como Deveria Se
fora publicada pela Liga em 1838.
Weitung, filho ilegítimo de uma lavadeira alemã, tinha a atitude angustiada
e piedosa de um profeta mártir. Estaria perfeitamente à vontade entre os pre-
gadores viajantes da Idade Média, ou as seitas milenaristas comunistas que
floresceram durante a Guerra Civil inglesa, mas tinha pouco em comum com
os pensadores e agitadores do século XIX. O seu credo era uma mistura
caseira do I^ivro das Kevelações e o Sermão da Montanha, na qual a enjoativa
homilia do catecismo era temperada com uma pitada de fogo e enxofre.
Quando não profetizava um apocalipse iminente, perorava alegremente
sobre um retorno ao Paraíso, uma Arcádia onde a inveja e o ódio não exis-
tiriam. Era como se um dos cavaleiros do Apocalipse tivesse de repente
desmontado para bater num gato.
Não se podia contudo negar que o seu evangeMsmo não tivesse poder.
«Os nossos círculos respeitavam-no imenso», escreveu Friedrich Lessner,
outro alfaiate comunista da Alemanha. «Era um ídolo para os seus adeptos.»
E, por causa das viagens que ele efectuava pela Europa, estes discípulos
formavam uma brigada multinacional impressionante. Ao fugir para a Suíça
94 t ^ ICARLIVIARX

depois da abortada rebelião fi-ancesa de 1839, fiandou filiais da Liga dos Jus-
tos em Genebra e Zurique, o que acabou por chamar a atenção das autori-
dades suíças. N o decorrer de uma rusga aos seus alojamentos, a polícia
encontrou provas incriminadoras — um manuscrito autobiográfico, O Evan-
gelho de um Pobre Pecador, no qual ele se comparava a Jesus Cristo, o coitado
de um marginal que fora crucificado por ousar denunciar a injustiça. Tal
impudência valeu-lhe seis meses de prisão por blasfémia, seguida da sua
deportação para a Alemanha — onde em breve foi novamente preso, dessa
vez por tentar escapar ao serviço militar. Q u a n d o , finalmente, chegou a
Londres, em 1844, o alfaiate de 36 anos era uma figura lendária que, com a
sua retórica revivalista, atraía grandes multidões de socialistas alemães
expatriados e Cartistas ingleses. N u m dos seus favoritos lances teatrais, le-
vantava a perna das elegantes calças (sendo alfaiate, Weitung andava sempre
vestido com fatos bem cortados) para mostrar as lívidas cicatrizes deixadas
pelos gruhões dos seus carcereiros.
É difícil imaginar alguém com menos probabilidade de seduzir Marx do
que este vaidoso e utópico sonhador, cujo programa político se encontrava
resumido no prefácio do seu Uvro Garantias de Harmonia e l^iherdade: «Que-
remos ser livres como as aves no céu; passar pela vida como elas, voando
alegre e despreocupadamente em doce harmonia.» E a melhor maneira para
conseguir levantar voo, sugeria Weitling, era recrutar um exército de 40 000
ladrões condenados — os quais, motivados pelo seu rancor contra a proprie-
dade privada, derrubariam os poderosos e iniciariam uma nova era de paz
e alegria. «Os criminosos são produto da ordem actual da sociedade.» Escre-
veu. «Sob o regime comunista, deixariam de ser criminosos.»
N o paraíso terrestre de Weitling, todos se vestiriam com roupa idêntica
(feita, sem dúvida, por ele mesmo), e aqueles que quisessem usar algo dife-
rente teriam de o ganhar trabalhando horas extraordinárias. As refeições
teriam lugar em cantinas comuns, mas as normas quanto aos talheres ainda
estavam por decidir. («Estes alfaiates são tipos espantosos», comentou
Engels depois de se ter encontrado com alguns adeptos de Weitling. «Há bem
pouco tempo, andavam a discutir muito seriamente a questão dos garfos e
das facas.») Ao chegar aos 50 anos, as pessoas deixariam de trabalhar e se-
riam enviadas para colónias de reforma — uma espécie de Eastbourne co-
munistas, mas sem os clubes de howling.
Quase se pode ouvir Marx rosnar de desdém ao ouvir um tal chorrilho
de asneiras. Mas ele hesitou em condená-lo publicamente. Apesar de, 1834,
o RATO NO SÓTÃO a * ^ 95

ter proclamado com patriotismo hiperbólico que «o proletariado alemão é o


teórico do proletariado europeu», a verdade era que, até meados de 1840, ele
tinha conhecido muito poucos trabalhadores alemães. («Não sabemos o que
o proletariado faz e o facto é que dificilmente o poderíamos saber», lembrou-
-Ihe Engels em Março de 1845.) Ao princípio, portanto, a sua reacção perante
o aparecimento de um verdadeiro pensador da classe operária originário do seu
país foi como a do Dr. Johnson ao ver um cão andar sobre as patas traseiras
— não anda como deve ser, mas uma pessoa fica espantada por vê-lo andar
de todo — e, consequentemente, elogia-se extravagantemente o cachorro.
«Onde, entre a burguesia — incluindo os seus filósofos e escritores eru-
ditos — se pode encontrar um livro sobre a emancipação da burguesia —
emancipação ^O////Í;<2 — semelhante ao de Weitung, Garantias de Harmonia e
Uberdade?», perguntava-se Marx. «Basta comparar a mesquinha e insípida
mediocridade da literatura polttica alemã com a estreia literária brilhante e
veemente dos trabalhadores alemães, basta comparar estes gigantescos sapatos
de criança do proletariado com os sapatos políticos apertados e gastos da
burguesia alemã, para se profetizar que a Gata Borralheira alemã terá, um dia,
físico de atleta...»
A itinerante Gata Borralheira nunca foi ao baile, quer com sapatos de
vidro ou de corrida. Embora os Srs. Schapper, Bauer e MoU tivessem feito
uma enmsiástica recepção à chegada de Weitling a Londres, em 1845, depres-
sa concluíram que as ideias dele eram demasiado extravagantes. Weitling
ficou bastante desconsolado por eles não quererem investir nos seus inúme-
ros e engenhosos planos — a criação de uma nova linguagem universal, a
invenção de uma máquina para fazer chapéus de palha de senhora — e até
mesmo arreliado quando recusaram elegê-lo presidente da sua associação.
E, em princípios de 1846, partiu para tentar a sorte em Berlim.
«Se eu te contasse que género de vida levamos aqui, ficarias certamente
surpreendida com os comunistas», escreveu Joseph Weydemeyer à noiva em
Fevereiro. «Para cúmulo, Marx, Weitling, o cunhado de Marx e eu passámos
a noite inteira a jogar. Weitling foi o primeiro a ficar cansado. Marx e eu
dormimos umas horas no sofá e, no dia seguinte, fizemos companhia à
mulher e ao cunhado dele. Metemo-nos numa taberna de manhã cedo e,
depois, fomos de comboio a Villeworde, onde almoçámos. Regressámos
muito bem-dispostos no último comboio»^. Note-se que Weitung, tendo-se
retirado mais cedo, não participou na diversão do dia seguinte: a sua auréola
de santidade tornava-o uma companhia pouco apropriada, especialmente
96 ^ B KARLMARX

para intelectuais burgueses. Como Engels escreveu: «Ele era, agora, o grande
homem, o profeta, perseguido de país para país, que levava uma receita
pronta a usar no bolso para a realização do céu na Terra, e imaginava que
andavam a tentar roubar-lha. 10
Quando Heinrich Heine conheceu Weitling, ficou escandalizado pela
«falta de respeito que manifestou quando conversava comigo. Não tirou o
chapéu e, enquanto eu me mantive de pé diante dele, permaneceu sentado
com o joelho direito levantado até ao queixo esfregando o tornozelo da dita
perna com a mão esquerda»". Réplica do velho truque para mostrar as ci-
catrizes da prisão, mas mesmo deixou Heine impassível. «Confesso que me
mostrei impressionado quando o alfaiate Weitling me falou das correntes.
Eu, que uma vez em Münster beijei fervorosamente as reKquias do alfaiate
John, de Leyden —- os grilhões que tinha usado e os instrumentos com que
o tinham torturado que se encontram na Câmara daquela cidade — eu, que
venerava esse alfaiate morto, sentia agora uma aversão insuperável por este
alfaiate vivo, Wühelm Welding, embora ambos os homens fossem apósto-
los e mártires da mesma causa.»
Marx e Engels sentiam a mesma repulsa, especialmente quando Weitung
se pôs a tratá-los por «meus caros jovens», mas, por respeito pelo seu estatu-
to de proletário e os longos anos passados na prisão, fizeram o possível para
a ocultar. Em princípios de 1846, convidaram-no para ser membro fundador
do novo Comité Comunista de Correspondência, em Bruxelas, cujo objectivo
era manter «um permanente intercâmbio de cartas» com a Liga dos Justos e
outras associações fraternas na Europa ocidental. Como este comité foi o Adão
original a partir do qual todos os outros partidos comunistas subsequentes
descendiam, vale a pena enumerar os 18 signatários fundadores: Karl Marx,
Friedrich Engels, Jenny Marx, Edgar von Westphalen, Ferdinand Freiligrath,
Joseph Weydemeyer, Moses Hess, Hermann Kriege, Wilhelm Weitung, Ernst
Dronke, Louis Heilberg, Georg Weerth, Sebastian Seiler, Philippe Gigot,
Wilhelm Wolff, Ferdinand Wolff, Karl Wallau, Stephan Born. Como a maior
parte das suas sucessoras no século XX, esta célula comunista reivindicou a sua
autoridade purgando quem fosse suspeito de divergência com a política ofi-
cial; Weitung foi, inevitavelmente, designado como a primeira vítima.
A altura escolhida para esta humilhação ritual foi uma reunião na noite
de 30 de Março de 1846, a que assistiram meia dúzia de membros mais um
observador exterior, Pavel Annenkov, jovem «turista estético» russo que
aparecera recentemente em Bruxelas com uma carta de apresentação de um
o RATO NO SÓTÃO *aCl# 97

dos antigos compinchas de Marx em Paris. E m b o r a não fosse socialista,


Annenkov estava fascinado pela personalidade do seu anfitrião:

«Marx era o tipo de homem feito de energia, vontade e inabaláveis con-


vicções. Seu aspecto era notável. Tinha uma farta cabeleira muito preta,
mãos peludas e o casaco mal abotoado; mas, independentemente da sua
aparência ou do que quer que fizesse, parecia alguém com o direito e poder
de impor respeito... Usava sempre palavras imperativas que não admi-
tiam nenhuma contradição e soavam ainda mais acutilantes pelo tom quase
doloroso que retinia em tudo o que dizia. Tal tom exprimia a firme con-
vicção da sua missão de dominar a mente dos homens e impor-lhe as suas
leis. Tinha perante mim a personificação de um ditador democrático.»'^

O janota WeitKng, em contraste, parecia mais um caixeiro-viajante do que


um herói da classe operária.
Depois de serem feitas as apresentações, todos se sentaram à volta da
pequena mesa verde da sala de Marx para discutir a táctica da revolução.
Engels, alto e digno, falou da necessidade de se porem de acordo quanto a
uma única doutrina comum para benefício dos trabalhadores que não tinham
tempo nem oportunidade para estudar teoria. Antes de terminar, contudo,
Marx já estava à procura de briga.
«Diz-nos uma coisa, Weitung», interrompeu, lançando um oñiar de desafio.
«Tu que fizeste tanto barulho na Alemanha com os teus sermões: a que título
é que justificas a tua actividade e em que é que tencionas baseá-la no futuro?»
Weiding, que não esperava mais do que uma noite de lugares-comuns
liberais, ficou desconcertado com este desafio abrupto. Lançou-se n u m
longo e desconexo monólogo, fazendo frequentes pausas para repetir, ou se
corrigir, que a sua finalidade não era criar novas teorias económicas, mas
adoptar as que eram «as mais adequadas».
Marx preparou-se para dar o golpe de misericórdia. Sublevar os trabalha-
dores sem lhes dar quaisquer ideias científicas, ou uma doutrina construti-
va, era «equivalente a um modo desonesto e vaidoso de fazer sermões, pois
isso pressupõe que de um lado está um profeta inspirado, e do outro apenas
burros boquiabertos».
Wetling corou e, em voz trémula, protestou que um h o m e m que tinha
reunido centenas de pessoas sob a mesma bandeira em nome da justiça e da
solidariedade não podia ser tratado daquela maneira. Consolou-se lembrando
98 *§^ KARLMARX '

as inúmeras cartas de agradecimento que recebera e de que o seu «modesto


trabalho era provavelmente mais importante para a causa comum do que as
críticas e as análises de doutrinas feitas confortavelmente sentado numa
poltrona e distante do mundo dos que sofriam».
Esta tentativa de jogar o trunfo do proletariado foi mais do que Marx podia
tolerar. Saltando da cadeira e batendo o punho sobre a mesa com tanta força
que o candeeiro quase caiu, berrou: «A ignorância nunca ajudouninguém!»
A reunião foi adiada em pleno alvoroço. «Enquanto Marx, extraordina-
riamente irritado e zangado, percorria a sala de um lado para o outro», in-
formou Annenkov. «Eu despedi-me apressadamente dele e dos seus inter-
locutores e fui para casa, espantado com tudo o que tinha visto e ouvido.»
Ninguém que conhecia bem Marx teria ficado tão espantado: durante toda
a vida, ele achou que era necessário e útil denunciar os deuses falsos e os
presumidos Messias do movimento comunista.
Weitling continuou surpreendentemente a frequentar a casa de Marx
durante algumas semanas mais e encontrava-se presente em Maio, durante
outro julgamento espectacular. O réu, desta vez condenado à revelia, era o
jovem estudante de VestefáHa, Hermann Kriege, que tinha emigrado recen-
temente para publicar um jornal em língua alemã em Nova Iorque. A 11 de
Maio, e apenas com a oposição de Weitling, a seguinte moção foi passada:

1. A unha de conduta tomada pelo editor de Volks-Tribun, Herman


Kriege, não é comunista.
2. A pretensão infantil de Kriege em apoio dessa linha está a com-
prometer o Partido Comunista, tanto na Europa como na América, visto
que ele é o representante do comunismo alemão em Nova Iorque.
3. O fantástico sentimentalismo que Kriege anda a pregar em Nova
Iorque, sob o nome de «comunismo», deve ter um efeito extremamente
pernicioso sobre o moral dos trabalhadores se for adoptado.

E m apoio da acusação, Marx e Engels apresentaram um «Circular Con-


tra Kriege», troçando do sentimentalismo piegas do seu jornal, o Volks-Tribun,
que descrevia as mulheres como «os ardentes olhos da humanidade», «ver-
dadeiras sacerdotisas do amor» e «irmãs bem-amadas», cujo dever sagrado
era conduzir os homens ao «reino da felicidade suprema». O que é uma mu-
lher, perguntava Kriege num editorial, «sem um homem a quem possa amar,
a que se possa render a sua trémula alma?» Marx e Engels afirmaram que uma
o RATO NO SOTÃO 99

tal pieguice amorosa «apresenta o comunismo como o oposto impregnado


de amor do egoísmo e reduz u m movimento revolucionario de impor-
tancia histórica mundial às meras palavras: a m o r — ódio, comunismo —
egoísmo... Cabe a Kriege reflectir a sós sobre o debilitante efeito que esse
langor amoroso não pode deixar de ter em ambos os sexos, e na anemia e
histeria colectiva que deve produzir nas "virgens"».^^^
Os 18 membros originais diminuíram assim para 16 — e, em breve,
para 15, quando Moses Hess se demitiu antes de ser expulso. Com a repu-
tação de Marx como «ditador democrático» a crescer, era difícil encontrar
novos recrutas para o seu círculo epistolar. E m Maio, depois de se despedir
de Weitling e Kriege, convidou Pierre Joseph P r o u d h o n para se juntar ao
clube. «No que respeita a França, todos nós achamos que não há melhor cor-
respondente do que você. Como sabe, os Ingleses e os Alemães têm maior
consideração p o r si do que os seus próprios compatriotas... Dê-nos uma
resposta rápida e creia, desde já, na minha mais sincera amizade. Respei-
tosamente, Karl Marx.»^"*
As marcas de amizade e respeito, e a garantia de que o comité estava em-
penhado n u m «intercâmbio de ideias» civilizado eram minados pelo pós-
-escrito de Marx: «PS — Para seu conhecimento, tenho de denunciar o
Sr. Grün, de Paris. Esse homem não passa de um vigarista literário, uma es-
pécie de charlatão que trafica em ideias modernas. Tenta ocultar a sua igno-
rância através de frases arrogantes e pomposas, mas tudo o que consegue
fazer através dessa algaraviada é tornar-se ridículo... N o livro dele sobre os
"socialistas franceses", tem o descaramento de se intitular tutor de Proudhon...
Tenha cuidado com esse parasita.»
Mas Proudhon simpatizava com Karl Grün, publicista conhecida de O
Verdadeiro Socialismo, e considerou que o aviso era pouco judicioso e de mau
gosto. «Grün encontra-se em exíUo, sem dinheiro, com a mulher e dois fi-
lhos para sustentar e vivendo do que escreve. Além das ideias modernas, o
que é que queria que ele explorasse para ganhar a vida?... Nada vejo de
errado a não ser desgraça e penúria, e não tenho motivos para o condenar.»
O carácter vindicativo de Marx preocupava muito mais Proudhon do que a
inofensiva vaidade de Grün. «Vamos, se assim o desejar, colaborar para tentar
descobrir as leis da sociedade», propôs.^^

«Mas, por amor de Deus, depois de termos demolido todo o dogma-


tismo a priori, não vamos tentar, por nossa vez, instilar outro género de
1 0 0 ^ ^ . KARI.MARX

dogmas nas pessoas... Aplaudo francamente a sua ideia de expor todas


as opiniões. Que a polémica seja decente e sincera. Vamos dar um exem-
plo de tolerância erudita e clarividente ao mundo. Mas apenas porque nos
encontramos à frente do movimento, não nos tornemos os líderes de
uma nova intolerância... Não vamos considerar nenhuma tópico exausto
e, mesmo depois de termos utilizado os nossos últimos argumentos, será
melhor, caso for necessário, recomeçar outra vez com eloquência e iro-
nia. Nessas condições, aceito com prazer entrar na sua associação. De
outro modo — não!»

Marx não podia permitir que um tal tratamento desdenhoso ficasse


impune — como, aliás, Prodhoun antecipara no final da carta: «É esta, meu
caro filósofo, a minha posição actual; a não ser, claro está, que eu me enga-
ne e surja uma ocasião em que você me possa repreender, repreensão essa
a que me sujeitarei de boa vontade...»
Tal ocasião veio a surgir uns meses mais tarde quando Proudhon publi-
cou uma obra em dois volumes, A Filosofia da Pobreza. Marx retaliou com um
ataque de cem páginas sob o título de A Pobreza da Filosofia, publicado simul-
taneamente em Paris e Bruxelas, em Junho de 1848, no qual ridicularizava
o guru gaulês pela sua infinita ignorância. No prefácio, escreveu:

«O Monsieur Proudhon tem o infortúnio de ser particularmente mal


compreendido na Europa. Na França, tem o direito de ser mau econo-
mista porque é considerado um bom filósofo alemão, e na Alemanha tem
o direito de ser mau filósofo porque é considerado um dos melhores eco-
nomistas franceses. Sendo alemães e economistas ao mesmo tempo, de-
sejamos protestar contra esse duplo erro. O leitor compreenderá que,
nesta ingrata tarefa, tivemos muitas vezes de abandonar as nossas críti-
cas ao Sr. Proudhon para criticar a filosofia alemã; e, simultaneamente,
fazer algumas observações sobre economia política.»^''

Apesar dos inesperados ataques ad hominem (contra o homem) a Proud-


hon serem bastante divertidos, são essas «observações» sobre economia e fi-
losofia que dão valor ao livro. Com A Ideóloga Alemã despachada para um
sótão infestado de ratos, A Pobreí^a da Filosofia é a primeira obra pubHcada em
que Marx expôs a sua ideia materialista da história. As categorias económi-
cas, como «a divisão do trabalho», eram, argumentou, apenas a expressão teó-
o RATO NO SÓTÃO 101

rica e transitoria das condições reais de produção. Mas Proudhon — «man-


tendo as coisas às avessas como um autêntico filósofo» — julgava que essas
condições reais eram apenas a encarnação de leis económicas eternas, e con-
cluiu que a divisão do trabalho era uma realidade imutável e inevitável da vida.
Marx arrasou essa lógica confusa num parágrafo merecidamente famoso:

«O economista, MonskurVtouâhon, percebe muito bem que os homens


fabricam tecido, de linho ou de seda, em relações bem determinadas de pro-
dução. Mas o que ele não compreendeu é que essas relações sociais deter-
minadas são tão produzidas pelos homens como pelo linho, etc. As relações
sociais estão estreitamente ligadas com as forças produtivas. Ao adquirir
novas forças produtivas, os homens mudam o seu m o d o de produção;
e, ao mudar o seu modo de produção, ao mudar o modo de ganhar a vida,
mudam todas as suas relações sociais. A produção manual dá a sociedade
com o senhor feudal; a vapor, a sociedade com o capitalista industrial.»

Aos olhos implacáveis de Marx, o manifesto socialista de P r o u d h o n


parecia suspeitosamente c o m o uma relutante aceitação do status quo. O s
trabalhadores não deveriam organizar-se para exigir melhores salários, avi-
sava Proudhon, porque, senão, teriam de pagar preços mais caros. N e m havia
nada a ganhar através da violência revolucionária. Para lá de uma vaga espe-
rança, ou «providência» era, de facto, difícil perceber o que ele advogava.
Quando é que o consentimento dócil tinha alguma vez conseguido o que
quer que fosse? perguntava Marx. N a última página de J\ Pobreza da Filoso-
fia, a sua indignação transbordou:

«O antagonismo entre o proletariado e a burguesia é uma luta de classe


contra classe, uma luta que, levada a extremos, é uma revolução total. É sur-
preendente que uma sociedade fundada na oposição de classes culmine em
contradição brutal, no choque de corpo contra corpo, como desenlace final?»
Não digam que o movimento social exclui o movimento político. N ã o
existe movimento político que não seja simultaneamente social.
Somente numa ordem das coisas em que não haja mais classes nem anta-
gonismo de classes é que as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas
Até então, na véspera de todas modificações gerais da sociedade, a última
palavra da ciência social será sempre: «Combate ou morte, luta sanguinária
ou extinção. A questão é, assim, inexoravelmente posta.» (George Sand)
102 :>ö KARL MARX

Proudhon não respondeu publicamente zA Pobrera da Filosofia, mas o seu


exemplar tem furiosos gatafunhos nas margens de quase todas as páginas —
«absurdo», «mentira», «conversa fiada», «plágio», «difamação descarada» e «a
verdade é que Marx tem inveja». Uma passagem encontrada entre as suas
notas descreve Marx como sendo «a lombriga do socialismo».
O Comité Comunista de Correspondência tinha de encontrar outra pes-
soa para o representar em França. Engels mudou-se para Paris em Agosto de
1846 para apalpar terreno. «O nosso assunto prosperará imenso aqui», infor-
mou depois de falar com August Hermann Ewerbeck, líder local da Liga dos
Justos. «O que resta aqui de weitUnguianos, um pequeno grupo de alfaiates, está
agora em vias de desaparecer... Mas os ebanistas e os curtidores, por outro
lado, são considerados gente fixe.»" Ewerbeck tinha identificado quatro ou
cinco indivíduos entre eles que pareciam suficientemente dignos de confian-
ça para serem convidados a juntarem-se à rede de correspondência. (Con-
tinuava a persistir a suposição de que todos os revolucionários deveriam ser
artesãos: nesse mesmo mês, em Paris, o Journal des Economistes caricaturava
Marx como «um sapateiro» com tendência para «fórmulas abstractas».
Semanas mais tarde, após ter assistido a várias reuniões da Liga, Engels
mostrava-se menos satisfeito. Ewerbeck, embora amigável e bem intencio-
nado, era um chato especializado em meticulosas dissertações sobre «valo-
res autênticos» e palestras sobre etimologia alemã. Pior ainda, ele e os outros
membros tratavam as efusões de Proudhon e G r ü n como textos sagrados.
«É uma desgraça ter ainda de me opor a este absurdo bárbaro. Mas temos
de ser pacientes e não largar os tipos até eu me ver Hvre de G r ü n e varrido
as teias de aranha do cérebro deles.»^^
Preparou o «golpe» para meados de Outubro, iniciando um debate na Liga
sobre os prós e os contras do comunismo e forçando, dessa maneira, os arte-
são parisienses a decidirem se eram comunistas confessos ou se eram «simples-
mente a favor do bem da humanidade», como G r ü n e os seus seguidores
diziam. Engels preveniu que, se o voto lhe fosse contrário, «estar-se-ia nas tintas
para eles» e não assistiria a outra reunião. «A força de paciência e um pouco
de terrorismo», disse a Marx. «Saí vitorioso com a maioria atrás de mim.»"
O principal discípulo de Grün, um velho carpinteiro chamado Eisermann, sen-
tiu-se tão intimidado pelo aríete verbal de Engels que nunca mais apareceu.
Estas ruidosas discussões depressa chegaram aos ouvidos do chefe da
poHcia francesa, Gabriel Delessert, e, quando Engels soube que uma ordem
o RATO NO SÓTÃO « ^ 103

de expulsão poderia ser emitida contra ele e Ewerbeck, decidiu afastar-se da


Liga até a situação acalmar. «Graças ao Sr. Delessert, tenho tido deliciosos
encontros COWÍ grisettes (jovens operárias) e divertido imenso», confessou
maliciosamente, «pois quero aproveitar os dias e as noites que possivelmente
me restam em Paris.» Depois de satisfazer os seus apetites carnais, Engels
passou uma semana em casa de Karl Ludwig Bernays, antigo director do
Vorwärts!, em Sarcelles, mas achou o ambiente intoleravelmente fétido: «O
fedor é de cinco mil camas de penas por arejar multiplicado por numerosos
peidos — o resultado da cozinha austríaca.»^'^ Escreveu igualmente um pan-
fleto satírico «a fervilhar de piadas grosseiras» sobre Lola Montez, a baila-
rina espanhola cuja influência sobre o rei Ludwig da Baviera era motivo de
diversão tanto para Marx como para Engels. Todos os editores recusaram
publicá-lo, e há muito que se desconhece o paradeiro do manuscrito.
Como se pode inferir de todos estes divertissements, faltavam estimulações
intelectuais a Engels. «Se te for possível, vem passar uns tempos comigo em
Abrib), suplicou a Marx em princípios de Março:^'

«Vou-me embora por volta de 7 de Abril — ainda não sei para onde
— e, por essa altura, também terei um pouco de dinheiro. Por isso, po-
deríamos divertir-nos ã grande em todas as tabernas... Se tivesse um
rendimento de cinco mil francos, não faria mais nada senão trabalhar e
divertir-me com mulheres até cair aos bocados. Se as francesas não exis-
tissem, não valeria a pena viver. Mas, enquanto \\QMSiexgrisettes, tudo bem
Isso não impede uma pessoa de, por vezes, sentir vontade de falar sobre
um tópico decente ou desfrutar a vida com certo requinte, o que é im-
possível com toda a gente que aqui conheço. Tens de cá vir.»

É possível que toda aquela rebalderia tenha toldado o cérebro de Engels.


Três meses depois de ter escrito essa carta, Jenny Marx deu à luz o seu pri-
meiro filho, Edgar, um irmão pãtajennycòen, com dois anos, e Laura, com um.
Como único provedor de uma mulher sempre exausta, três crianças e uma
criada, Marx não se podia dar ao luxo de ir divertir-se em Paris. Desempre-
gado e virtualmente incapaz de ser contratado, nem sequer conseguia arran-
jar dinheiro para uma viagem mais importante a Londres, onde a Liga dos
Justos tinha convocado uma conferência para Junho, a fim de debater a sua
fusão com o círculo de correspondência de Bruxelas.
104 1 ^ ^ KARL MARX

N ã o foi tanto uma fusão quanto uma tomada de passo. Marx tinha re-
cusado aliar-se aos londrinos — Schapper, Bauer, Moll — até eles se reestru-
turarem numa Liga Comunista, cortando os laços com quem se tinham as-
sociados. Estavam agora dispostos a aceitar as suas exigências. Proudhon,
G r ü n e Weitling deveriam ser ritualmente denunciados por «hostilidade para
com os comunistas», e o lema da antiga Liga que Marx tanto desprezava —
«Todos os Homens São Irmãos» — seria substituído pelo imperativo «Tra-
balhadores de Todos os Países, Uni-vos!»
Dois meses depois da reunião inaugural da Liga Comunista em Londres,
o comité de correspondência de Bruxelas converteu-se numa filial (ou «co-
munidade») da Liga sob a presidência de Marx. Segundo os novos regula-
mentos, todas as comunidades deviam ter pelo menos três e, no máximo, 12
membros, cada um dos quais tinha de «dar a palavra de honra que trabalha-
ria com lealdade e manteria segredo».^^
Tratava-se, no final de contas, de uma organização ilegal. N o entanto, e
seguindo o exemplo dos londrinos, Marx também fundou uma Associação
de Trabalhadores mais aberta e menos política, que organizou debates quase
parlamentares assim como sessões de «canto, recitação, teatro e eventos do
mesmo género». Nas primeiras semanas, mais de cem trabalhadores torna-
ram-me membros. «Por pouco que pareça», escreveu Marx a George Her-
wegh, «a actividade pública é infinitamente refrescante».^^
Os interesses de Marx foram representado durante o congresso de Ju-
nho, em Londres, por outro comunista alemão de Bruxelas, Wilhelm Wolff,
bem como pelo delegado da filial da Liga em Paris, um certo F. Engels, que
chegou com uma declaração preliminar de princípios para a nova Liga
Comunista. Apesar de não ter sido formalmente adoptada, essa declaração
foi enviada a todas as comunidades da Europa «para séria e matura consi-
deração». Como uma circular do quartel-general explicava: «Tentámos, por
um lado, abstermo-nos de todo o comunismo de caserna que criasse siste-
mas, e, por outro, evitar a sentimentalidade fátua e insípida dos comunistas
emocionais e lacrimosos [quer dizer, utopistas como Weitling]... Esperamos
que proponham muitos acréscimos e emendas à autoridade central. Voltare-
mos a convocá-los para discutir o projecto com particular entusiasmo.»^^
Ninguém recebeu o convite com maior entusiasmo do que Marx, o qual,
no espaço de um ano, transformou o embrionário credo de Engels num dos
livros mais influentes que jamais foi publicado.
o PAPÃO ATERRADOR

O Manifesto do Partido Comunista talvez seja o panfleto político mais Hdo


da historia humana, mas também é aquele que tem o título mais enganador:
nenhum partido com esse nome existiu. Nem, já agora, foi concebido como
manifesto. O que os membros da Liga Comunista queriam em 1847 era uma
«profissão de fé», e u m primeiro rascunho escrito por Engels, em 1847,
demonstra que eles ainda estavam unidos aos rituais de iniciação apoiados
pelas seitas clandestinas francesas:

l.'' PERGUNTA: És comunista?


RESPOSTA: Sou.
2,^ PERGUNTA: Qual é o objectivo do comunismo?
RESPOSTA: Organizar a sociedade de modo a que todos os seus membros
possam desenvolver-se e usar todas as suas capacidades e poderes em total
liberdade, mas sem infringir as condições básicas dessa sociedade.
3.'PERGUNTA: Porque meios queres alcançar esse objectivo?
RESPOSTA: Através da eliminação da propriedade privada e da sua substi-
tuição pela propriedade em comum. ^

E assim por diante ao longo de mais sete páginas e culminando na 22."


pergunta («Rejeita o comunismo as religiões existentes?») à qual a resposta
correcta é que o comunismo «tornas todas as religiões existentes supérfluas
e suplanta-as». D e uma posição vantajosa moderna, este laborioso questio-
nário lembra irresistivelmente a comédia de Monty Python em que Marx apa-
rece num concurso da televisão apresentado por Eric Idle:
106 --3>te KARL MARX

IDLE: O desenvolvimento do proletariado industrial é condicionado por


que outro desenvolvimento?
MARX: Pelo desenvolvimento da burguesia industrial.
IDLE: Sim, senhor. Muito bem, Karl, estás quase a ganhar um conjunto
de mobílias para sala de estar. Vamos, agora, passar à pergunta número 2.
O que é a luta de classes?
MARX: Uma luta política.
IDLE: Formidável! Mais uma pergunta e essa Hnda mobília não materia-
lista será tua. Estás pronto, Karl? És muito corajoso. Aqui vai a pergunta final:
quem ganhou a taça da Associação Inglesa de Futebol em 1949?
MARX: E h . . . eh... o controlo dos meios de produção pelo operário? A . . .
a luta do proletariado urbano?
IDLE: Não, Karl. Foi o Wolverhampton Wanderers que derrotou o Lei-
cester por 3 a 1.
MARX: O h , porra!

O catecismo de Engels talvez fosse adequado a uma sociedade secreta


como a velha Liga dos Marginais ou a Liga dos Justos — rnas isso era a
tradição conspiratória e furtiva da qual Marx queria salvar a nova Liga Co-
munista. Porquê, perguntava ele, deviam revolucionários esconder as suas
opiniões e intenções?
Engels entendeu o que ele queria dizer e admitiu que «como uma deter-
minada porção de história tem de ser narrada, a forma adoptada é bastante
inadequada». Ao regressar a Paris em Outubro, depois de um prolongada
estada em Bruxelas, descobriu que Moses Hess tinha redigido outro rascu-
nho. Confissão, que tresandava a utopia e mal mencionava o proletariado.
Engels ridicularizou linha por linha o documento durante uma reunião da
Liga Comunista local — «e ainda a meio quando a rapaziada se declarou
satisfeita», como informou triunfalmente Marx em Bruxelas. «Sem encon-
trar nenhuma resistência, consegui que me confiassem a tarefa de fazer novo
rascunho para ser discutido na próxima sexta-feira e enviado para Londres
nas costas dos comunistas. Claro que ninguém pode saber isso, senão todos nós
perderemos o lugar e haverá o raio de uma zaragata.»^
Engels terminou a nova versão em poucos dias. Era menos do que um
credo e mais como um exame, com uma longa narrativa histórica das origens
e desenvolvimento do proletariado, bem como «toda a espécie de assuntos
o PAPÃO ATERRADOR s K ^ 107

secundários». No entanto, era ainda escrito em estilo pergunta e resposta do


anterior. («O que é o comunismo? Resposta: O comunismo é a doutrina das
condições para a emancipação do proletariado. O que é o proletariado?
Resposta: O proletariado é a classe da sociedade que procura os seus meios
de existência, inteira e unicamente, através da venda do seu trabalho.. .»)^
O local da reunião do congresso foi no quartel-general da Associação
Educativa dos Trabalhadores Alemães, por cima da taberna Red Lion na Rua
Great Windmill, no Soho. A intensidade do debate pode ser avaliada pelo
facto de ter durado dez dias — sem dúvida com ocasionais incursões ao
andar de baixo para refrescos urgentemente necessitados. Poucos registos
contemporâneos sobreviveram, mas a dominante presença de Marx foi
descrita anos mais tarde por Friedrich Lessner, alfaiate de Hamburgo que
vivia em Londres desde Abril de 1847:

«Marx era um líder nato do povo. O seu discurso foi breve, convin-
cente e irresistível na sua lógica. Nunca disse palavras supérfluas, cada fra-
se era um pensamento e todo o pensamento era um elo essencial na
cadeia da sua demonstração. Marx nada tinha de sonhador. Quanto mais
me dava conta da diferença entre o comunismo da época de Weitling e
do Manifesto Comunista, mais claramente percebia que Marx representa-
va a maturidade do pensamento socialista.»'^

No fim da maratona de dez dias, Marx e Engels levaram tudo à frente


deles. O congresso de Junho, ao qual Marx não tinha assistido, declarara
simplesmente que a Liga «tem por objectivo a emancipação da humanidade
através da divulgação da teoria da comunidade de propriedade e a sua intro-
dução prática o mais rapidamente possível»^. Os regulamentos aprovados no
segundo congresso eram muito mais combativos e sólidos: «O objectivo da
Liga é derrubar a burguesia, a lei do proletariado, a abolição da antiga socie-
dade burguesa que assenta no antagonismo de classes e a fundação de uma
nova sociedade sem classes e sem propriedade privada»''. Os delegados con-
cordaram por unanimidade quanto a estes prihcipios~i3î[sicoB"e'eîiUiaïr^aifflrp
Marx e Engels de redigir um manifesto que resumisse a nova doutrina.
Marx não se mostrou muito apressado em aceder a esse pedido. Após
regressar a Bruxelas, em meados de Dezembro, realizou uma série de pales-
tras na Associação dos Trabalhadores Alemães sobre economia política,
argumentando que o capital não era um objecto inanimado, mas uma «re-
108%^-« I<CARLMARX

lação social». Escreveu vários artigos para o Deutsche-BrüsselerZeitungà-tícn-


dendo os comunistas e antecipando com deleite a chegada da revolução em
França. Fez um longo discurso sobre o comércio livre e, numa festa do fim
do ano dada pela Associação dos Trabalhadores, propôs um brinde à Bél-
gica — «exprimindo, com vigor, apreço pelos benefícios de uma constitui-
ção liberal de um país onde há liberdade de expressão e de associação, e onde
a semente do humanitarismo pode florescer para bem de toda a Europa». (Mal
ele sabia que, dentro de uns meses, iria denunciar a «brutalidade sem prece-
dentes» e a «fúria reaccionária» deste outrora paraíso liberal quando o G o -
verno belga lhe deu o prazo de 24 horas para sair do país.) D e 17 a 23 de Ja-
neiro, Marx visitou Gent para criar uma filial da Associação Democrática.
A maior parte dos escritores reconhecerão os sintomas: adiamentos in-
cessantes, procura de distracções, vontade de fazer tudo excepto o trabalho
entre mãos. E, do mesmo modo, a maior parte dos editores irá simpatizar
com a crescente impaciência dos líderes da Liga Comunista em Londres que
enviaram um ultimato a Bruxelas no dia 24 de Janeiro de 1848:

«O Comité Central encarrega o seu comité regional em Bruxelas de


comunicar com o cidadão Marx e lhe participar que, se o Manifesto do Par-
tido Comunista, a redacção do qual ele se comprometeu a executar n o
recente congresso, não chegar a Londres a 1 de Fevereiro do ano corren-
te, outras medidas serão tomadas contra ele. Caso o cidadão Marx não ter
cumprido essa tarefa, o Comité Central solicita o retorno imediato dos
documentos colocados à disposição do cidadão Marx.»^

Habitualmente, Marx desembaraçava-se às mil maravilhas quando tinha um


prazo fixo a cumprir e este aviso final parece ter dado resultado. Embora todas
as edições modernas do Manifesto tenham os nomes de Marx e Engels — e as
ideias de Engels certamente tiveram influência — , o texto que chegou final-
mente a Londres em princípios de Fevereiro foi escrito somente por Karl Marx,
o qual, no seu gabinete da Rue d'Orléans, 42, passou sozinho noites a fio a ga-
ratujar furiosamente no meio de uma espessa nuvem de fumo de charuto.
Kierkegaard diz algures que a vida deve ser vivida em frente, mas pode
apenas ser compreendida em sentido contrário. Isto também se aplica a eras
e épocas: a realidade de um período particular pode não se tornar aparente
até chegar ao fim. Ou, como Hegel escreveu na sua Filosofia do Direito, «o mocho
de Minerva estende as asas só ao entardecer». Q u a n d o Marx escreveu o
o PAPÃO ATERRADOR *;,¿* 109

Manifesto Comunista, em Janeiro de 1848, imaginou que podia ver o mocho


a preparar-se para levantar voo: a breve mas brilhante era do capitalismo
burguês tinha servido a sua finalidade transitoria e, dentro de pouco tempo,
ficaria enterrado sob as suas próprias contradições. Conduzindo operários
isolados para fábricas, a indústria moderna tinha criado condições para que
o proletariado se associasse e constituísse uma força dominante. «O que, por
conseguinte, a burguesia produz é, sobretudo, os seus próprios coveiros»,
observou com satisfação n o final da primeira secção do manifesto. «A sua
queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.»
Talvez porque pensava que estava a ensaiar uma oração fúnebre, podia
dar-se ao luxo de ser generoso para com o inimigo vencido. Aqueles que
nunca leram Marx, mas o conhecem apenas como uma espécie de papão
sedento de sangue cujo nome é invocado para assustar a classe média, ficam
frequentemente surpreendidos por descobrir os elogios que ele dispensou
à burguesia. Marx não era h o m e m para subestimar os sucessos do inimigo:

«Historicamente, a burguesia desempenhou u m papel muito revolu-


cionário. Sempre que teve vantagens, a burguesia pôs termo a todas re-
lações feudais, patriarcais e idílicas. Quebrou impiedosamente as corren-
tes feudais que ligavam o homem aos seus "superiores namrais" e não
deixou outro elo entre os homens que o interesse pessoal, o empedernido
"pagamento a dinheiro". Afogou os êxtases mais celestiais de fervor
religioso, de entusiasmo cavalheiresco e de sentimentalismo fariseu nas
águas geladas do cálculo egoísta. Reduziu o valor pessoal a moeda de troca
e, no lugar das inumeráveis e imutáveis liberdades colocou essa liberdade
única e sem escrúpulos •— o Comércio Livre. N u m a palavra, substituiu
a exploração brutal, directa, desavergonhada e nua pela exploração ve-
lada por ilusões políticas e religiosas...
A burguesia revelou como o brutal desenvolvimento da Idade Média,
que os reaccionários tanto admiram, encontrou o seu complemento apro-
priado na maior indolência. Foi a primeira a mostrar o que a actividade
humana pode causar. Conseguiu maravilhas superiores às pirâmides
egípcias, aquedutos romanos e catedrais góticas; organizou expedições
que obscurecem todos os antigos êxodos de nações e cruzadas.»

U m crítico moderno descreveu o manifesto como sendo «uma celebração


Krica das obras burguesas»^. E, de certo modo, assim é: Marx celebrava o capi-
110 4 ^ KARL MARX

taltsmo como um fenómeno temporario, como o precursor de uma verdadeira


revolução. Mas o que ele julgava ser o estertor da morte eram, na verdade, as
dores de parto. Os sinais que ele interpretou mal — os uivos, o esbracejar, os
lençóis manchados de sangue — são ainda mais conspícuos hoje do que na sua
época, embora raramente lhe seja dado crédito por ter reparado neles.
«Através da exploração do mercado mundial, a burguesia tem dado um
cunho cosmopolita à produção e consumo em todos os países», assinalou.
«Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pela produção do país, encon-
tramos novas necessidades que, para sua satisfação, precisam dos produtos
de países e climas distantes.» Quem observar as frutas e legumes que se encon-
tram nos balcões de um supermercado — pilhas de mangas, abacates, ervi-
Ihas-doces e morangos fora da temporada — , verá o que ele queria dizer.
Enquanto vai importando produtos exóticos, a burguesia impõe os seus
próprios produtos, gostos e hábitos em todos os demais: «Numa palavra, cria
um mundo ã sua própria imagem.» Para reconhecer a verdade disto basta
visitar Pequim — a capital de um Estado comunista — onde o centro da
cidade se parece arrepiantemente com Main Street, EUA: McDonald's, Ken-
tucky Fried Chicken, Haagen-Dazs e Pizza Hut, além de várias filiais de
Chase Manhattan e Citybank para depositar os lucros.
«O que acontece na produção material, também acontece na intelectual»,
continua o Manifesto. <A.s criações intelectuais de países individuais tornam-
-se propriedade c o m u m . . . A burguesia, através do rápido progresso de to-
dos os instrumentos de produção e dos meios de comunicação, atrai todas
as nações, até mesmo as mais bárbaras, para a civilização.» É discutível que
Arnold Schwarzenegger, John Grisham e programas de televisão a toda a
hora sejam «civilização», mas a verdade essencial desta percepção não pode
ser negada. Marx também compreendeu que o ritmo da transformação tec-
nológica iria tornar-se ainda mais frenético, criando uma espécie de revolu-
ção permanente onde qualquer programa de computador comprado há mais
de dois anos é obsoleto. <A. burguesia não pode existir sem revolucionar os
instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção bem
como todas as relações sociais... A revolução constante de produção, a per-
turbação ininterrupta de todas as condições sociais, e a agitação e incerteza
permanentes diferenciam a época burguesa das anteriores. Relações fixas e
congeladas, com o seu séquito de opiniões e preconceitos antigos e venerá-
veis, são varridas e as novinhas em folha tornam-se antiquadas antes de ter
tempo para se ossificarem. Tudo o que é sólido derrete-se no ar...»
o PAPÃO ATERRADOR «-"^IH

E m 1998, quando da comemoração do 150." aniversário de Manifesto, inú-


meros académicos e políticos acorreram para esfregar as mãos de contentes
perante a imbecilidade do velhote. Um intelectual britânico, lorde Skidelsky,
resmungou que Marx «tinha-se enganado» ao profetizar uma revolução
iminente — e que a sua obra não valia, por conseguinte, uma segunda leitura.
Mas deu-se caso de que, poucos dias depois da publicação do Manifesto, a re-
volução rebentou realmente. Primeiro em Paris e, a seguir, com a velocidade
de um incêndio no mato, em grande parte do continente europeu. Foi extin-
guida com a mesma rapidez e o triunfalismo burguês começou o seu longo
reino. Nesse sentido, o optimismo de Marx foi deslocado, embora a sua visão
do mercado global tivesse sido estranhamente presciente.
Como é que ele podia estar tão errado e, contudo, tão certo? E m estado
de espírito profético, Marx pensava como um jogador de xadrez e concebia
um ataque fatal ao rei do adversário em seis jogadas — sem reparar que,
entretanto, o oponente podia fazer-lhe xeque mate muito mais cedo. Se o
outro jogador cometia um erro, os cálculos de Marx eram vindicados. E,
mesmo que Marx perdesse, podia sempre dizer que, se o jogo durasse mais
uns minutos, teria provado que tinha razão.
Conhecemos b e m esses jogadores de xadrez — estratégia brilhante,
tácticas frágeis — e Marx era, efectivamente, um deles. Apesar de imbatível
a jogar às damas, faltava-lhe a paciência manhosa requerida para as comple-
xidades infinitas do tabuleiro de xadrez. O seu estilo era ruidoso, controverso,
irascível. N o s princípios da década de 1850, pouco depois da sua chegada
a Londres, terminava muitas noites furioso quando mais um exilado alemão
lhe encurralava o rei.
«Uma noite», contou Wühelm Liebknecht, «Marx anunciou triunfalmente
que tinha inventado uma nova abertura e que nos ganharia a todos. O de-
safio foi aceite e, de facto, ele derrotou-nos a todos, uns atrás dos outros. Aos
poucos, contudo, fomos aprendendo à custa das derrotas e eu consegui dar-
-Ihe xeque mate. Já era muito tarde e Marx pediu irritadamente desforra para
a manhã seguinte em casa dele.»
As 11 da manhã do dia seguinte, Liebknecht apresentou-se devidamen-
te no alojamento de Marx na Rue Dean e veio a saber que o grande h o m e m
tinha passado a noite inteira a aperfeiçoar a sua «nova jogada». A o princípio,
parecia novamente dar resultado e Marx festejava cada vitória pedindo be-
bidas e sanduíches. Mas, depois, o combate recomeçou a sério: os dois ho-
mens passaram toda a tarde e parte da noite frente a frente diante do campo
n i * ^ I<J\RLMARX

de batalha branco e preto até Liebknecht, à meia-noite, conseguir dar xeque


mate ao seu oponente duas vezes seguidas. Marx estava disposto a continuar
até de madrugada, mas a sua enérgica governanta, Helene Demuth, estava
farta: agora, ordenou aos adversários fatigados, «já chega!»
N o dia seguinte, de manhã cedo, Liebknecht foi acordado por alguém a
bater à porta. Era Helena que lhe trazia um recado: «A Sra. Marx suplica-lhe
que não jogue mais xadrez, à noite, com o Mouro... Quando ele perde, tor-
na-se extremamente desagradável.» (Ver pós-escrito 3: o único registo de um
jogo de xadrez jogado por Marx.)
Liebknecht nunca mais voltou a jogar xadrez com Marx, mas a sua descri-
ção da técnica marxista — «tentava compensar o que lhe faltava de conheci-
mentos com zelo, impetuosidade e ataques de surpresa». — pode ser aplica-
da ao Manifesto Comunista. Mais cedo ou mais tarde, reis, rainhas, bispos e cavalos
eram obrigados a submeter-se, derrotados pela pura determinação dos que os
desafiavam. Como a «nova abertora» de que se sentia tão orgulhoso, o mani-
festo era uma arma de vingança, forjada e aperfeiçoada ao longo de noites
de raiva sem dormir, contra os seus superiores adversários. Os seus detrac-
tores actuais também estão, por conseguinte, a não entender a questão.
Os textos da década de 1840 incluem passagens que, agora, parecem ligei-
ramente bizarras ou desactualizadas; o mesmo se poderia dizer de muitos
manifestos eleitorais e editoriais publicados apenas há um ano ou dois. A in-
tenção de Marx nunca foi de escrever textos sagrados e eternos, embora ge-
rações de discípulos os encarem, por vezes, como tal. O primeiro parágrafo
— com a referência a Metternich, Guizot e o czar — realça o facto de se tra-
tar de uma artigo perecível, redigido num momento específico e com uma
finalidade particular, sem pensar na posteridade.
A coisa verdadeiramente notável quanto ao manifesto é que tenha qual-
quer ressonância contemporânea. Recentemente, contei nada menos do que
nove edições inglesas à venda numa livraria de Londres. Até mesmo Karl
Marx, que nunca foi dado à falsa modéstia, mal podia ter esperado que o seu
pequeno panfleto ainda teria sucesso no fim do milénio.

A inesquecível primeira frase do Manifesto Comunista possui a força de um


relâmpago. «Um assustador papão percorre a Europa...» Isso, pelo menos, foi
o que apareceu na primeira edição inglesa publicada pelo jornal Ked Repu-
blican, em 1850, e traduzido por Helen Macfarlane, feminista Cartista que
conhecia Marx e Engels e era muito admirada por ambos. D e certo modo.
o PAPÃO ATERRADOR ciü^ 113

porém, a ideia do papão assustador nunca pegou. A versão que toda a gen-
te agora conhece é a tradução, por Samuel Moore, publicada pela primeira
vez em 1883 e reeditada numerosas vezes depois: «Um espectro assombra
a E u r o p a . . . o espectro do comunismo. Todos os poderes da velha Europa
fizeram uma aliança sagrada para exorcizar esses espectro. O Papa e o czar,
Metternich e Guizot, os radicais franceses e os espiões da poHcia alemã.»
Esta salva de abertura ficou desactualizada quase logo após Marx a ter
disparado. A edição alemã do manifesto foi publicada a 24 de Fevereiro de
1848, ou próximo dessa data, composta, utilizando novos tipos góticos, na
Associação Educativa dos Trabalhadores, em Londres, e, a seguir, entregue
a toda a pressa numa tipografia perto da rua Liverpool pelo jovem e prestável
Friedrich Lessner. «Estávamos intoxicados de entusiasmo», relatou Lessner.
Quando ele foi buscar os exemplares — apropriadamente encadernados em
amarelo-vivo — já havia de notícias vindas de França que a revolução tinha
começado e que se levantavam barricadas nas ruas de Paris.
François Guizot, o h o m e m que tinha assinado a ordem de expulsão de
Marx em 1845, foi demitido do cargo de primeiro-ministro e o rei Luís Fi-
lipe abdicou no dia seguinte com o trono literalmente a arder. Uma outra bete
noire de Marx, o chanceler austríaco, Metternich, foi derrubado dentro de três
semanas e, a 18 de Março, a agitação alastrou-se para Berlim.
O galo gaulês tinha cantado e, de repente, toda a Europa tinha desper-
tado. «A nossa era, a era de democracia, está a desmoronar-se», escreveu
Engels num entusiástico despacho ao Deutsche-Brüsseler Zeitung. «As chamas
das Tulherias e do Palais-Royal são a aurora do proletariado. O regime bur-
guês cairá por toda a parte ou será destruido. A Alemanha, esperamos, será
a próxima e, agora ou nunca, erguer-se-á da sua degradação...» "^
Mas a Alemanha — ou, aüás, o rei da Prússia — tinha outras ideias. Os
seus espiões na Bélgica andavam a vigiar o Deutsche-Brüsseler Zeitung com
horror crescente.

«Este nocivo jornal (informou um agente da poKcia) deve sem som-


bra de dúvida exercer a mais nefasta das influências sobre o público
pouco educado a que se dirige. Apresenta a sedutora teoria da divisão da
riqueza aos operários e trabalhadores como sendo um direito nato e in-
culca neles um ódio profundo à classe dirigente e ao resto da comunidade.
Se tais actividades conseguirem minar a religião e o respeito às leis, con-
taminando assim as classes mais baixas da população, a pátria e a civili-
zação correm grande perigo.»
114 < ^ e KARL MARX

Já em Abril de 1847, o embaixador pf ussiano tinha exigido, sem qualquer


efeito, a supressão desse incendiário pasquim que «atacava o governo de Sua
Majestade com selvajaria e virulência revoltantes». Mas, com a proclamação
de uma república em França, a polícia belga entrou em pânico e, na tarde de
3 de Março de 1848, Marx recebeu uma ordem de expulsão assinada pelo rei
Leopoldo I, da Bélgica, ordenando-lhe que abandonasse o país dentro de 24
horas e que nunca mais voltasse.
Por feliz coincidência, ele já estava a planear partir. Paris era a cidade onde
a acção se estava a passar e ele acabara de receber um fraternal convite de
Ferdinand Flocon, director de La Reforme e, agora, m e m b r o do governo
provisório francês. «Como é burro esse Flocon!», tinha escrito Engels há
apenas quatro meses, chamando-lhe um imbecil «que vê tudo através dos
olhos de um empregado francês de terceira categoria num banco de quarta
categoria.»^"
Mas, se Flocon estava a par do desprezo que Marx e Engels lhe votavam,
a sua missiva não o dava a entender:

«Bom e leal Marx,


O solo da República Francesa é asilo e refúgio para todos os amigos
da liberdade. A tirania exilou-te, mas, agora, a França livre abre-te as
portas, a ti e a todos os que lutam pela nossa causa sagrada, a fraternal
causa de todos os povos.»"

Marx não precisou de mais encorajamentos para fazer as malas — e,


durante o resto do dia, foi exactamente o que fez. A uma da manhã, contu-
do, dez agentes da polícia entraram-lhe em casa e arrastaram-no para a pri-
são da câmara municipal, onde foi encarcerado juntamente com um «louco
furioso» que passou a maior parte da noite a tentar dar-lhe um murro no na-
riz. O motivo oficial dado para a detenção foi que o seu «passaporte não
estava em ordem», muito embora ele tenha apresentado nada menos do que
três passaportes devidamente carimbados e datados além da ordem de ex-
pulsão assinada pelo rei. Mas as suspeitas da polícia podem não ter sido ca-
prichosas como parecem. E m meados de Fevereiro, a mãe tinha-lhe envia-
do a avultada soma de seis mu francos em ouro, parte da herança de Heinrich
Marx, e a maior p a r t e desse dinheiro fora i m e d i a t a m e n t e u s a d o em
actividades subversivas. Segundo um dos seus biógrafos mais recentes, David
o PAPÃO ATERRADOR a < ^ 115

McLellan, «a polícia suspeitava (embora não houvesse provas) que Marx


estava a usá-lo para financiar o movimento revolucionário». Existem real-
mente amplas provas — uma boa parte delas dada pela própria Jenny von
Westphalen. «Os trabalhadores alemães (em Bruxelas) tomaram a decisão de
se armar», admitiu ela. «Punhais, revólveres, etc. foram comprados e Karl de
boa vontade lhes deu o dinheiro, pois tinha acabado de receber uma herança.
O G o v e r n o viu nisto tudo uma conspiração e planos criminosos: Marx
recebe dinheiro e compra armas, logo, temos de nos ver livres dele.»^^
O tom de inocência ofendida dificilmente pode ser justificado pela con-
fissão dela: se as autoridades pudessem associar o marido com o arsenal de
«punhais, revólveres, etc., ele ficaria metido, até às espessas sobrancelhas,
numa grande encrenca. Profundamente alarmada, Jenny saiu imediatamente
de casa para dar a notícia da prisão do marido a um advogado da esquerda
deixando os três filhos pequenos ao cuidado de Helene. Ao voltar, de madru-
gada, a porta estava guardada por um polícia que delicadamente lhe disse que,
se ela desejasse falar com MonskurMarx, ele teria muito prazer em acompanhá-
-la. Mas, assim que chegaram à esquadra, Jenny foi presa por "vadiagem" —
aparentemente porque não trazia d o c u m e n t o s de identidade com ela —
e enfiada numa cela escura com "prostitutas do mais baixo nível".
"Quando, no dia seguinte, Jenny compareceu, um magistrado mostrou-
-se sarcasticamente surpreendido por a polícia não ter, já agora, prendido
igualmente as crianças."»" Ela e Karl foram soltos às três da tarde — o que
lhes deu apenas duas horas para tratar dos seus assuntos, pegar nos filhos e
apanhar o comboio para Paris. Jenny vendeu à pressa algumas posses, mas
teve de deixar as pratas da família e a melhor roupa branca com um amigo li-
vreiro. Os Marx foram obrigados a viajar sob escolta da polícia até à fronteira,
sem dúvida para poderem apreciar, pela última vez, a hospitalidade belga.
Fatigados pela noite passada na prisão, Karl e Jenny fizeram uma viagem
horrível. N ã o havia lugares sentados e pouco espaço de pé, pois o comboio
ia cheio de tropas belgas a caminho da fronteira para guardar o país contra
o contágio revolucionário. N a etapa francesa, os passageiros tiveram de
descer em Valencienne — onde os cocheiros «luditas» tinham aproveitado
a confusão para arrancar os carris e destruir as locomotivas que lhes rouba-
vam a subsistência — e continuar a viagem de autocarro.
Ao chegar a Paris, a 5 de Março, Marx encontrou as ruas cobertas de vidro
partido e pedras da calçada. C o m o para compensar o que tinha perdido,
mergulhou de cabeça na luta e, sem demora, meteu mãos à obra. Logo no
116-.- ICARLMARX

dia seguinte avisou a Liga Comunista de Londres que o quartel-general fora


transferido para Paris e, a 9 de Março, a liga aprovou por unanimidade a sua
proposta de que todos os membros usassem «uma fita vermelha-viva» nos
casacos. Como a liga ainda era uma organização meio clandestina, Marx
também fundou um Clube de Trabalhadores Alemães, cujo comité foi anun-
ciado no jornal l^ Reforme:«W. Bauer, sapateiro; Hermann, ebanista;}. Moll,
relojoeiro; Wallau, tipógrafo; Charles Marx; Charles Shapper.» Este último
era, na verdade, compositor-tipógrafo, mas é difícil de imaginar qual o ofí-
cio declarado por Marx; provavelmente o de «provocador».
Era assim, sem dúvida, que era considerado por alguns camaradas exi-
lados — em particular pelo seu velho colega, George Herwegh, e pelo anti-
go oficial prussiano, Adalbert von Bornstedt, que tinham concebido o plano
louco e romântico de formar uma <degião alemã» para marchar triunfalmente
pela Alemanha dentro e Libertá-la. E, depois, invadiriam a Rússia. «Oh, ousem
isso pelo menos por um dia!», era o slogan de recrutamento de Herwegh.
O governo provisório francês, em pulgas para ver esses quixotescos estran-
geiros pelas costas, ofereceu bilhetes de graça e o salário diário de 50 cênti-
mos ao dia por cada voluntário.
Marx acusou Herwegh e Bornstedt de «estarem a portar-se como cana-
lhas», e rejeitou o plano considerando-o uma aventura arrogante que esta-
va destinado a terminar ignominiosamente. E tinha razão: o miserável exér-
cito de Herwegh, o qual, provavelmente, não contava com mais de mil
homens, partiu para a Alemanha a 1 de Abril, no dia das mentiras, e foi
desbaratado assim que atravessou a fronteira.
O que era preciso para fazer uma revolução na Alemanha, argumentava
Marx, não era um regimento de poetas e professores a brandir baionetas em
segunda mão, mas constante agitação e propaganda. Logo que Engels se
juntou a ele em Paris, a 21 de Março, ambos escreveram um panfleto inti-
tulado «Exigências do Partido Comunista na Alemanha», o qual foi rapida-
mente publicado pelos jornais democráticos de Berlim, Trier e Düsseldorf
Um crítico moderno declarou que esse programa, com 17 pontos, foi «cal-
culado para intimidar a burguesia». Longe disso: como a Alemanha não pos-
suía proletariado digno desse nome, Marx percebeu que a primeira fase da
sua campanha tinha de ser uma revolução burguesa. Pelos seus padrões, as
«exigências» eram, por conseguinte, surpreendentemente modestas. Incluíam
apenas quatro dos dez pontos do Manifesto Comunista — impostos progres-
sivos sobre os rendimentos, educação gratuita, propriedade estatal de todos
o PAPÃO ATERRADOR >i>& 117

os meios de transporte e a criação de um banco nacional. Para dar ênfase às


suas intenções, Marx acrescentava que o banco do Estado substituiria as
notas por moedas, tornando assim os meios universais de troca mais bara-
tos e libertando o ouro e a prata para serem usados no comércio exterior.
«Esta medida», escreveu, «é necessária para unir os interesses da burguesia
conservadora à causa da revolução.»
Houve outras concessões notáveis. O Manifesto Comunista tinha advoga-
do «a aboUção de todo o direito a heranças» (embora isso não tivesse impe-
dido Marx de aceitar uma herança paterna de seis mil francos); as «Exigên-
cias sugeriam meramente que as heranças seriam "reduzidas". Enquanto o
Manifesto tinha p r o p o s t o a nacionalização de todas as terras, o texto das
"Exigências" limitava-se a assinalar as "propriedades feudais e principes-
cas"». Marx tentou mesmo seduzir os camponeses e os pequenos agricul-
tores — os quais em privado desprezava — , concedendo-lhes empréstimos
estatais, consulta legal gratuita e o fim de todas as obrigações feudais. Para
provar como as «Exigências do Partido Comunista» eram moderadas, bas-
ta indicar que muitas delas — incluindo sufrágio universal, pagamento de
salários a representantes parlamentares e transformação da Alemanha numa
«única república indivisível» — foram desde então aceites por governos cujas
credenciais capitalistas são evidentes.
Sujeitar-se aos caprichos dos camponeses e da pequena burguesia não
fazia mal, mas, agora, a tarefa mais urgente de Marx era sublevar a consciên-
cia das massas teutónicas. E m fins de Março e princípios de Abril, os mem-
bros da Liga Comunista em Paris partiram para a Alemanha; a maior parte
com destino às suas cidades natais para iniciar o processo de educação e
organização. Karl Schapper foi para Nassau e Wilhelm Wolff para Breslau.
<A Liga dissolveu-se; está em toda e nenhuma parte», escreveu Stephan Born,
um compositor-tipógrafo revolucionário que se instalou em Berlim (Born,
cujo nome verdadeiro era o delicioso Simon Buttermilch, abandonou mais
tarde o comunismo e tornou-se mestre-escola na Suíça.)
Como tantas vezes, a arma preferida dé Marx foi o jornalismo. «Um novo
jornal diário será publicado em Colónia», anunciou. «Será chamado Neue
Rljeinische Zeitung, e será dirigido por HerrKaú Marx.» Havia boas razões para
a escolha do local. Colónia, a capital da Renânia, era uma cidade que conhecia
bem, pois trabalhara lá como director do anterior Jiheinische T^eitung. Ainda
mantinha relações amigáveis com alguns dos antigos accionistas e esperava
que eles apoiassem o seu novo projecto. E, talvez ainda mais importante, o
118 ^ B KARL MARX

Código de Napoleão — herança dos tempos da ocupação francesa — ain-


da aí se encontrava em vigor e permitia alguma liberdade de imprensa.
O s Marx partiram de Paris na primeira semana de Abril de 1848, acom-
panhados por Engels e Ernst Dronke, um radical alemão de 26 anos, que já
tinha a seu crédito um romance, uma condenação e uma fuga da prisão. Após
uma breve paragem em Mainz, separaram-se: Engels rumo a Wuppertal, na
esperança de persuadir o pai e os amigos a investir no novo jornal; Dronke
para casa de um tio em Koblenz; e Jenny e os filhos para Trier, onde tencio-
navam ficar com a mãe durante umas semanas até Karl obter uma autoriza-
ção de residência.
Assim que chegou a Colónia, Marx solicitou devidamente às autoridades
que lhe restaurassem a nacionalidade prussiaha, a qual perdera m 1845.
Declarou que queria lá instalar-se com a família/para escrever «um livro so-
bre economia», omitindo discretamente o seuplano de fundar um jornal diá-
rio. As autoridades, de qualquer modo recusaram, deixando assim em aberto
a possibilidade de poderem expulsá-lo se ele causasse sarilhos.
As tentativas de Engels estavam igualmente a ser contrariadas. «Há pou-
cas perspectivas de vender aqui quaisquer acções», escreveu de Barmen a 25
de Abril. «A verdade é que, aufond, até os burgueses radicais daqui nos vêem
como os seus principais inimigos futuros e não tencionam meter-nos nas
mãos armas que, dentro de pouco tempo, nós viraríamos contra eles»." Mais
valia, pois as intenções de Marx eram exactamente essas. «Não há nada a
obter do meu velho», prosseguiu Engels. «Mais depressa no daria um tiro de
caçadeira do que mil táleres.»
N o fim, Marx teve de deitar à mão ao que restava da sua herança para
assegurar que o jornal começasse a ser publicado a 1 de Junho de 1848. A data
da saída do primeiro número deveria ter sido 1 de Julho, mas «a renovada
insolência dos reaccionários» convenceram-no de que não havia tempo a per-
der. («Os nossos leitores terão, por conseguinte, de nos desculpar», escre-
veu no primeiro número, «se nos primeiros dias não conseguirmos oferecer
a grande variedade de notícias e artigos que as nossas conexões por todo
o mundo nos deveriam permitir fazê-lo. Dentro de alguns dias poderemos
satisfazê-los inteiramente».)
O conselho editorial era controlado por antigos membros da Liga Co-
munista, incluindo o poeta revolucionário Georg Weerth, Ernst Dronke e
os jornalistas Ferdinand Wolff e Wühelm Wolff (Para evitar confusões, estes
dois Wolff não tinham nenhum grau de parentesco e eram respectivamente
o PAPÃO ATERRADOR - r ^' 119

alcunhados Red Wolff & I^upus). Mas, como Engels admitiu, o jornal era es-
sencialmente «uma ditadura governada por Marx». Segundo Stephan Born,
que visitou a redacção uns meses mais tarde, até mesmo os súbditos mais
leais do tirano achavam por vezes difícil enfrentar esta caótica autocracia. «As
queixas mais amargas sobre Marx provinham de Engels. "Ele não é nenhum
jornalista", dizia. " E nunca o será. Leva um dia inteiro para escrever um ar-
tigo que outra pessoa faria num par de horas, como se se tratasse de u m pro-
blema profundamente filosófico. Faz alterações, aperfeiçoa e muda as mudan-
ças, e por causa da sua infatigável meticulosidade nunca termina a tempo." Era
um autêntico alívio para Engels poder, uma vez por outra, desabafar.»^^
Embora Marx não fosse certamente cumpridor de prazos. Born talvez
esteja a exagerar. O Neue Rheinische Zeitiung era pubHcado diariamente, com
frequência acompanhado de um volumoso suplemento para acomodar to-
das as notícias e artigos que não cabiam na secção principal, e, em ocasiões
especiais, também saía uma edição à tarde. Se o director fosse tão lento como
Born alegava, o jornal nunca chegaria à tipografia.
O que distinguia o Neue Rheinische Zeitung do resto da imprensa «demo-
crática» na Alemanha era a sua preferência por informações sobre teorias de
longo fôlego. Reunindo cuidadosamente os factos que convinham aos seus
objectivos, Marx achava que conseguia muito mais do que as eruditas refle-
xões liberais sobre o significado do republicanismo. Também prestava par-
ticular atenção às actividades dos cartistas na Grã-Bretanha e aos jacobinos
em França, na esperança de que estes alertariam os leitores quanto ao neces-
sário antagonismo entre a burguesia e o proletariado — antagonismo esse
que ele não ousava articular mais explicitamente. (A primeira coisa que fez
ao chegar a Colónia foi fazer-se assinante de três jornais ingleses, The Times,
o Telegraph e o Economist)
Os 12 meses que Marx viveu na Alemanha, entre 1848 e 1849, são mui-
tas vezes denominado «o ano louco», e ele parece realmente ter passado esse
período a espumar de raiva — sobretudo contra ele mesmo enquanto andava
a tentar harmonizar dois impulsos irreconciliáveis. O dilema era óbvio para
quem tivesse üdo mais atentamente o Alanifesto Comunista: Mãtx argumentava
que os comunistas deveriam encorajar o proletariado a apoiar a burguesia
«sempre que esta agisse de forma revolucionária» e, ao mesmo tempo, instilar
nos trabalhadores «o hostil antagonismo existente entre a burguesia e o
proletariado». As classes médias — não se pode viver com elas nem sem elas.
120 V:--* I<CARI.MARX

Os Hberais burgueses, incluindo vários dos seus accionistas, tinham fé em


duas instituições democráticas estabelecidas depois dos motins de Março: a
Assembleia Nacional Alemã, em Frankfurt, e a Assembleia Prussiana, em Ber-
lim. U m director que queria assegurar os ansiosos leitores da classe média das
suas intenções deveria ser aconselhado a dar o benefício da dúvida, pelo menos
durante um mês ou dois, a esses dois recentemente criados parlamentos. Mas
a impaciência levou a melhor e, logo no primeiro número, havia um relato im-
piedoso e mordaz, escrito por Engels, das sessões da assembleia de Frankfurt.
«Há duas semanas que a Alemanha possui uma Assembleia Nacional
constituinte eleitar^ïèio povo alemão. A primeira acção da Assembleia Na-
cional deveria ter sido proclamar bem alto e publicamente esta soberania
popular e, a segunda, redigir uma constituição alemã baseada na soberania
do povo.»^*" E m vez disso, os «filisteus eleitos» — a maior parte dos quais era
advogados e professores — perderam tempo a fazer «novas emendas e
digressões... longos discursos e muita confusão». Sempre que uma decisão
estava prestes a ser tomada, os representantes adiavam o assunto e retiravam-
-se para ir jantar.
Vários homens de negócios que tinham investido n o jornal retiraram
imediatamente o seu apoio. «Custou-nos metade dos nossos accionistas»,
confessou Engels. E, após ter antagonizado os moderados, Marx provocou
uma zaragata com o socialista mais popular da cidade, Andreas Gottschalk,
que não só era presidente da recentemente formada Associação dos Traba-
lhadores de Colónia como também Hder da filial local da Liga Comunista.
A violenta animosidade entre os dois homens é difícil de explicar ou
justificar — embora os ciúmes possam ter algo a ver com o que aconteceu.
Como já tinha mostrado por várias vezes, Marx detestava organizações, ou
instituições, que não conseguisse dominar; e Gottschalk, médico muito
apreciado entre os pobres, tinha mais adeptos do que o irascível director. O
Neue Rheinische Zeifungvendia cinco mü exemplares, uma enorme circulação
para aquela época, mas a Associação dos Trabalhadores de Colónia, lidera-
da por Gottschalk, contava com oito mil sócios — número alcançado pou-
cas semanas depois da sua criação.
Marx acusava Gottschalk de ser um sectário da esquerda e de ter com-
prometido a «frente unida» constimída pela burguesia e pelo proletariado, ao
fundar um grupo de pressão formado exclusivamente por membros da classe
operária — além de boicotar as eleições para os parlamentos de Berlim e de
Frankfurt. Dada a presteza com que Marx caricaturou a Assembleia Nacional
o PAPÃO ATERRADOR a ^ 121

como um ninho de gente que perdia tempo com ninharias, pode-se pensar
que esta crítica cheirava a hipocrisia. E, ainda com maior perversidade,
queixava-se de que Gottschalk estava pronto a aceitar uma monarquia cons-
titucionalmente limitada em vez de um regime republicano imediato. N o
entanto, o próprio Marx declarou num editorial de 7 de Junho: «Não quere-
mos utópicamente pedir que, logo de início, seja proclamada uma república
alemã unida e indivisível.»
O pobre Gottschalk viu-se, assim, simultaneamente condenado por ti-
midez e excesso de zelo; não admira que se tenha demitido da Liga Comu-
nista semanas depois da estapafúrdica chegada de Marx a Colónia. Mesmo
quando Gottschalk e o seu amigo, Friedrich Anneke, foram presos e acusa-
dos de incitação à violência em princípios de Julho, o Neue Rheinische Zeitung
pareceu curiosamente desinteressado. «Reservamos a nossa opinião, pois
ainda não obtivemos informação suficiente sobre a sua prisão e a maneira
como foi executada», comentou Marx num breve editorial a 4 de Julho. «Os
trabalhadores devem mostrar-se razoáveis e não se deixarem levar a provo-
car distúrbios.» O jornal do dia seguinte continha um artigo mais comple-
to, concentrando-se sobre o tratamento que Anneke recebera por parte dos
agentes que o tinham detido e acusando o promotor público, Herr Hecker,
de ter chegado meia hora depois da polícia a fim de lhes dar tempo para
espancar o suspeito e aterrorizar a mulher grávida. «Herr Hecker declarou
não ter dado ordens para cometer brutalidades», acrescentou sarcasticamente
Marx. «Como se Herr Hecker pudesse ordenar uma coisa dessas!» Todavia,
o coitado de Gottschalk mal era mencionado.
Gottschalk ficou cinco meses na cadeia à espera de ser julgado. U m cí-
nico poderá suspeitar que Marx não se sentiu totalmente descontente com
o desaparecimento do seu rival, pois isso dava-lhe a oportunidade de impor
a sua própria autoridade e unir as facções em litígio. Mas Marx nunca foi u m
conciliador nato. Cari Schurz, um estudante de Bona, viu-o actuar no decor-
rer de uma reunião dos democratas de Colónia, em 1848:

«Na altura, ele não devia ter muito mais do que 32 anos, mas já era o
reconhecido chefe da escola socialista superior... E u cá nunca tinha visto
um h o m e m cuja atitude fosse tão provocadora e intolerável. N ã o con-
cedia nem sequer a honra de considerar de maneira condescendente as
opiniões que diferiam da sua. Todos aqueles que o contradiziam eram tra-
tados com desprezo abjecto e respondia a todos os argumentos de que
122^8 KARL MARX

não gostava com mordaz desdém pela infinita ignorância que os tinham
incitado ou com calúnias infames sobre os motivos de quem os articu-
lara. Lembro-me muito distintamente do tom desdenhoso com que pro-
nunciava a palavra "burguês"; e como um "burguês" — quer dizer, um
detestável exemplo da mais profunda degenerescência mental e moral —
denunciava todos que ousavam opor-se à opinião dele... É evidente que
não só não ganhou nenhuns adeptos como também repeliu muitos que,
de outro modo, poderiam ter-se tornado seus seguidores.»"

É de assinalar que isto foi escrito cerca de 50 anos mais tarde, muito de-
pois de Schurz ter emigrado para a América e de se tornar um respeitável ho-
mem de Estado como senador e secretário do Ministério do Interior dos EUA.
N o entanto, soa terrivelmente verdadeiro. Como Marx era raramente capaz
de manter boas relações com os seus próprios camarada mais íntimos, se-
ria absurdo imaginar que ele pudesse harmonizar uma coligação já dividida
de liberais, esquerdistas, camponeses e proletários. Nos seus discursos e edi-
toriais, insistia que a Alemanha devia ter um governo democrático consti-
tuído pelos «elementos mais heterogéneos» e não uma ditadura de comunis-
tas inteligentes como ele mesmo, mas a veemência com a qual declarava isso
— lançando escárnios e insultos a quem ousasse discordar com ele — , su-
geria que ele era um homem que não reconheceria o pluralismo nem que lhe
fosse apresentado numa bandeja de prata enfeitada.
As autoridades prussianas nunca se deixaram enganar pelas suas atitudes
de reformador benigno. Já em Abril, o inspector Hünermund, de Colónia,
tinha avisado os seus superiores acerca do «politicamente incerto Dr. Marx»
e, quando o Neue Kheinische Zeitung publicou o cáustico relato da prisão de
Anneke, aproveitou a oportunidade. A 7 de Julho, Marx foi levado diante do
juiz para interrogatório por «difamações e insultos contra o promotor da jus-
tiça», enquanto a poKcia vasculhava a redacção à procura de qualquer documen-
to que identificasse o autor anónimo do pérfido artigo. Duas semanas mais
tarde, Marx foi mais uma vez interrogado e, em Agosto, os seus colegas,
Dronke e Engels, foram chamados como testemunhas. A 6 de Setembro, o
Zeitung publicou uma notícia preocupante: «Ontem, um dos nossos redac-
tores, Friedrich Engels, foi mais uma vez convocado para comparecer diante
do juiz no que se refere à investigação em curso contra Marx e associados,
mas, desta vez, não como testemunha, mas sim como co-acusado.»
o PAPÃO ATERRADOR ~T^-123

A perseguição movida a «Marx e associados» não os intimidou nem si-


lenciou; pelo contrário, tornou-os mais imprudentes. «Uma característica da
Renânia, disse Engels no decorrer de uma reunião de democratas de Colónia
em meados de Agosto, "é o ódio às autoridades prussianas e ao prussianismo
puro; esperemos que tal atitude se mantenha".»^* Como ele devia saber, as
zntoúda.desprussianas não se importavam que lhes puxassem a cauda; o exér-
cito, em particular, parecia estar inteiramente fora de controlo e sabotava
alegremente o chamado «Governo de Acção», que fora formado apenas há
uns meses. E m Agosto, a assembleia prussiana em Berlim pediu a demissão
de todos os militares que se recusassem aceitar o novo sistema constitucio-
nal. O ministro da Guerra não tomou quaisquer medidas e, a 8 de Setembro,
o Governo foi derrubado por uma moção de censura da assembleia proposta
pelo representante da Esquerda e do Centro.
De regresso de Viena onde se deslocara para angariar fundos, Marx en-
contrava-se, por acaso, em Berlim. «Quando se soube da derrota do Gover-
no, uma alegria indescritível apoderou-se da multidão», enviou ele a notícia
a Engels que, na sua ausência, dirigia o jornal. «Milhares de pessoas junta-
ram-se e desfilaram pela Praça da Ópera ao som de constantes vivas. N u n -
ca dantes se tinha visto aqui uma tal manifestação de regozijo.»^^
Foi uma vitória com consequências desastrosas. A p a n h a d o naquele
ambiente de euforia, Marx assumiu ingenuamente que, agora, seria consti-
tuído um governo do centro-esquerda. U m momento de reflexão talvez lhe
tivesse aberto os olhos: o rei da Prússia nunca toleraria uma tal afronta. E,
claro está, quando Marx voltou a Colónia, a contra-revolução tinha come-
çado. Desafiando o desejo dos representantes do povo em Berlim, o rei
formou um novo gabinete composto de burocratas reaccionário e de ofi-
ciais do exército. «A Coroa e a Assembleia confrontam-se», escreveu Marx
a 14 de Setembro. «É muito possível que sejam as armas a decidir a questão.
O lado com mais coragem e consistência vencerá.»
Heróica ilusão, claro está: a valentia valeria muito pouco contra o poder
de intimidação do Estado. N a madrugada de 25 de Setembro, a polícia de
Colónia prendeu vários Kderes do recentemente formado Comité de Segu-
rança Pública, incluindo Karl Schapper e Hermann Becker; vieram também
à procura de Engels, mas este eclipsara-se. À hora do almoço, Marx dirigiu-se
a uma grande manifestação no antigo mercado, avisando os trabalhadores
para não reagir às «provocações da polícia» levantando barricadas. O m o -
mento, porém, ainda não estava maduro para combates de rua.
124 < ^ ^ KARL MARX

Mas o tempo, como os abacates e os marmelos, por vezes apodrece antes


de amadurecer. A 25 de Setembro, foi declarada a Lei Marcial em Colonia
e o c o m a n d o militar suspendeu imediatamente a publicação do Neue
Rheinische Zeitung. Marx enviou uma circular aos assinantes explicando que
«a caneta tem de se submeter ao sabre», mas prometia que, dentro em pou-
co, o jornal voltaria a aparecer em formato maior.
Com vários jornalistas na cadeia e os accionistas recusando subsidiar um
jornal caído n o esquecimento, isso era bastante optimista — sobretudo
porque o mais valioso colega de Marx, Engels, tinha fugido assim que tinha
ouvido que a poHcia andava atrás dele. Depois de fazer uma breve pausa em
Barmen para dar a notícia aos pais horrorizados, Engels refugiou-se no
santuário da Bélgica. O Kölnische Zeitung, patriótico e respeitador da lei como
sempre, publicou o mandado de captura:

Nome: Friedrich Engels; profissão: comerciante; local de nascimento


e residência: Barmen; religião: evangélica; idade: 27 anos; altura: 1,70 m.;
cabelo e sobrancelhas: louro-escuro; testa: normal; olhos: cinzentos; nariz
e boca: bem proporcionados; dentes: bons; barba: castanha; queixo e
rosto: ovais; compleição: saudável; figura: esguia.^"

Boa publicidade para um estilo revolucionário de vida. O d o n o desta


compleição saudável e nariz bem proporcionado chegou a Bruxelas a 5 de
Outubro acompanhado por Ernst Dronke, mas os dois fugitivos mal se ti-
nham sentado para jantar no hotel quando um poUcia, aproveitando-se da
lei contra a «vadiagem» aplicada tão eficazmente com Jenny Marx, os arras-
tou para a prisão Petits-Carmes. Duas horas mais tarde, Engels e Dronken
foram levados num coche fechado até à gare e obrigados a tomar o próxi-
m o comboio para Paris sob escolta.
Assim que o Neue Rheinische Zeitungvolton a ser publicado após o levan-
tamento da Lei Marcial, a 12 de Outubro, Marx escreveu um furioso edito-
rial sobre o «tratamento brutal» infligido aos seus amigos. «Isto prova que
o Governo belga está a aprender a reconhecer a sua posição», comentou^^:

«Os belgas estão gradualmente a tornar-se nos polícias dos países vi-
zinhos e ficam todos contentes quando são felicitados pelo seu compor-
tamento paciente e submisso. N o entanto, há algo ridículo, sobre o bom
poKcia belga. Até o honesto T/A^ÍJ reconhece ironicamente o desejo de
agradar dos belgas e, ainda há pouco tempo, aconselhou a Bélgica a trans-
o PAPÃO ATERRADOR o * ^ 125

formar-se num grande clube com Ne risque^ rien (Não arrisquem nada)
como lema depois de se livrar de todas as associações de trabalhadores.
É evidente que a imprensa oficial belga, no seu cretinismo, reproduziu
esse lisonjeiro artigo e saudou-o com júbilo.»

A luta para salvar a recém-nascida democracia alemã atingiu o seu cKmax


com uma sublevação revolucionária em Viena e combates de rua em Berlim.
Pouco depois de Marx ter sido eleito presidente da Associação dos Traba-
lhadores de Colónia, a 22 de Outubro, o director do jornal da associação foi
condenado a um mês de prisão por difamar Herr Hecker. Encorajado por
esta pequena vitória, o vingativo promotor de justiça processou Marx cla-
mando que os discursos dele equivaliam a «alta traição» e, absurdamente,
também intentou vários processos por difamação sobre um texto publica-
do no Neue Kheinische Zeitung sob o nome de «Hecker», muito embora o ar-
tigo fosse simplesmente uma mensagem de adeus, dirigida ao povo alemão,
do republicano Friedrich Hecker, o qual partia para a América a fim de re-
começar uma nova vida. N o entanto, o ridículo Torquemada de Colónia
alegava que os leitores interpretariam aquilo de outro modo. Marx pergun-
tava com incredulidade se o queixoso julgava realmente que «este jornal, com
inventiva maKcia, tinha publicado um artigo assinado "Hecker" a fim de fazer
crer ao povo alemão que Hecker, o promotor de justiça, vai emigrar para
Nova Iorque, que Hecker, o promotor de justiça, proclama a república ale-
mã, que Hecker, o promotor de justiça, aprova oficialmente ideias revolu-
cionárias?»^^ Provavelmente não: mas era outra oportunidade para intimidar
os inimigos do Estado Prussiano.
E m vez de regressar apressadamente à pátria para assistir ao desenlace
destes vários dramas -— meio tragédia, meio farsa — , Engels não pensou
mais neles. Depois de ter passado uns dias a descansar em Paris, partiu
sozinho num lento passeio pelo interior da França, com vários e agradáveis
desvios pelo caminho, em direcção à Suíça. Conforme ele próprio admitiu,
«não se deixa facilmente a França». O s camaradas em Colónia podiam es-
tar a bater-se peia liberdade e as suas vidas, mas ele não tinha pressa de se
juntar a eles. Será que ele tinha perdido a coragem?
O diário inédito de Engels sobre esta odisseia de u m mês e que mal
menciona a crise na Alemanha, é escrito com a admiração de u m turista
novato. «Que país na Europa se pode comparar com a França em riqueza, na
variedade dos seus encantos naturais e produtos, e na sua universalidade?»
126 _, « KARL MARX

elogia. «E que vinho! Que diversidade, de Bordéus a Burgundy, de Burgundy


ao encorpado St. Georges, Lünel e Frontignan do Sul, e destes ao cintilante
champanhe!»^^ Parece ter andado meio embriagado todo o t e m p o . . . sobre-
tudo em Auxerre, cidade a que chegou a tempo para festejar a colheita do
novo Burgundy. «A colheita de 1848 foi tão pródiga que não havia barris
suficientes para conter todo o vinho. E de uma tal qualidade... melhor do
que a de 46 e talvez ainda melhor do que a de 34!»
N ã o era apenas o vinho que intoxicava. «A cada etapa encontrei compa-
nhia alegre, as uvas mais doces e as raparigas mais bonitas.» Após uma pro-
cura exaustiva, chegou à conclusão de que as mulheres «esbeltas bem lavadas
e penteadas» de Burgundy eram preferíveis às «carnudas» e «desgrenhadas»
entre os rios Seine e Loire. «É, portanto, fácil de acreditar que passei mais
tempo deitado na erva com os negociantes de vinhos e as suas raparigas a
comer uvas, a beber vinho, a conversar e a rir do que a subir colinas.»
Percebe-se agora porquê a viagem demorou tanto tempo — e porquê
chegou à Suíça sem um tostão. Apelando ao pai e a Marx para lhe enviarem
dinheiro e não obtendo resposta de ambos, voltou a escrever para Colónia
perguntando-se nervosamente se o amigo estava zangado por ele se ter
ausentado sem dar notícias. «Caro Engels», respondeu Marx. «Estou verda-
deiramente espantado por ainda não teres recebido dinheiro. Enviei-te (eu
pessoalmente e não por vale do correio) seis táleres há séculos... Supores
que eu pudesse abandonar-te numa situação destas é pura fantasia. Serás
sempre o meu amigo e confidente como eu espero que permanecerei o teu,
K. Marx» ^"^ Acrescentava um encorajador e combativo P.S.: «O teu pai é um
porco e havemos de lhe escrever uma carta a chamar-Ihe nomes.» Mas,
depois, deve-se ter lembrado que isso talvez não fosse uma boa técnica para
arranjar dinheiro. «Maquinei um plano infalível para extrair dinheiro ao teu
velho pois, agora, estamos lisos», escreveu a 29 de Novembro. «Escreve-me
uma carta suplicante (tão crua quanto possível) a enumerar as tuas vicissi-
tudes passadas, mas de maneira a que eu possa passá-la à tua mãe. O teu velho
está a começar a ficar assustado.»^^ O Chico-Esperto apelou de forma seme-
lhante à compaixão materna para extrair vales postais, mas não se saiu melhor
do que Marx e Engels.
Por altura do Natal, Engels estava farto de levar uma «vida de pecado»
e «de não fazer nenhum no estrangeiro». N u m a carta de Berna dava uma
ridícula nova desculpa pela sua ausência: «Se houver razões suficientes para
achares que não serei detido para interrogações, regressarei imediatamente.
o PAPÃO ATERRADOR 0^127

Depois, podem, quanto a mim, pôr-me diante de dez mil juízes. Mas, quan-
do uma pessoa é detida para interrogações, não a deixam fumar e eu cá não
me vou deixar prender para isso.»
Após ter sido assegurado que não precisava sacrificar os seus charutos
pela causa. Engels voltou para a Alemanha em Janeiro — apenas para des-
cobrir que a revolução estava praticamente terminada. Fora formado um
novo governo chefiado pelo conde Brandeburgo, reaccionário e filho bas-
tardo de Frederico Guilherme II, e o rei tinha dissolvido a assembleia prus-
siana: «A burguesia não levantou u m dedo; deixou simplesmente o povo
combater por ela», resmungou Marx no Neue Rheinische Zeitung, admitindo
que a sua teoria de uma aliança entre os trabalhadores e a classe média não
passara de um sonho. A derrocada prussiana provava que uma revolução
burguesa era impossível na Alemanha; agora, seria necessário uma insurrei-
ção republicana. Mas a classe operária alemã estava incapaz de entrar em
acção sem encorajamento do exterior — em particular da França. Após ter
reflectido sobre as lições do ano anterior, Marx publicou um menu revolu-
cionário revisto a 1 de Janeiro de 1849:

«O derrubamento da burguesia em França, o triunfo da classe operá-


ria francesa, a emancipação da classe operária em geral é, por conseguinte,
o grito de incitamento para uma acção em conjunto da libertação europeia.
Mas a Inglaterra, o país que transforma nações inteiras no seu prole-
tariado, que engloba todo o mundo no seu amplexo imenso... a Inglater-
ra parece ser o rochedo contra o qual as vagas revolucionárias quebram,
o país onde a nova sociedade ainda se encontra em fase embrionária.»^''

Todas as perturbações sociais na França estavam destinadas a ser opos-


tas pelo poder comercial e industrial da classe média inglesa, «e apenas uma
guerra mundial pode vencer a velha Inglaterra, bem c o m o só isto p o d e
proporcionar aos Cartistas, o partido dos trabalhadores ingleses organiza-
dos, as condições para uma sublevação bem sucedida contra os seus gigan-
tescos opressores». Este jogo de consequências segundo as épocas — o qual,
cerca de um século mais tarde, viria ser conhecido pela teoria dos dominós,
conduziu a uma conclusão inevitável e apocalíptica. «O programa para 1849
é: Sublevarão revolucionária da classe operária francesa, guerra mundial.»
E depois? E m 1848, a classe operária tinha sido batida sempre e onde
erguia a cabeça por cima das barricadas — França, Prússia, Austria e a pró-
128*^ KARL MARX

pria Inglaterra, onde uma demonstração popular em Kennington, a sul de


Londres, assinalou o fim da ameaça cartista. Mas, com o seu talento para
paradoxos e perversidades, Max podia discernir u m triunfo potencial em
todas as catástrofes, o b o m tempo por detrás de cada nuvem, uma nova
aurora a despontar na noite mais tenebrosa. Assim, o que é que fazia se as
contra-revoluções fossem bem sucedidas? Isso espicaçaria os trabalhadores
a preparar um ataque mais eficaz da próxima vez. Marx tinha fé na velha
táctica^ reculerpour mieux sauter (recuar para melhor saltar).
N a ocorrência, 1849 foi apenas um sinistro pós-escrito de 1848. U m mês
depois de ter publicado a mensagem do N o v o Ano, Marx e Engels foram
julgados por insultos à magistratura. N u m discurso de uma hora proferido do
banco dos réus, Marx mostrou que espírito bruhante a profissão legal tinha
perdido quando ele recusara seguir a carreira do pai e desconstruir os artigos
222 e 367 do código penal de Napoleão até nada restar senão um punhado de
poeira. Deu uma lição ao júri sobre a importante, embora pedante, distinção
entre observações insultuosas e calúnia; argumentou que o promotor públi-
co tinha de provar não só o insulto mas a intenção de insultar, pois o artigo 367
autorizava-um jornalista a pubHcar «factos» mesmo que estes fossem ofensi-
vos. N a sua exegese do artigo 222 (que proibia insultos contra funcionários
públicos), fez notar que o código penal, ao contrário da lei prussiana, não
incluía o crime de lesa-majestade; e, como o rei da Prússia não era funciona- '
rio, também não podia valer-se do artigo 222. «Como é possível que seja au-
torizado a insultar o rei e não possa insultar o promotor de justiça?»
Marx apresentou grande parte da sua defesa de forma calma e eloquente,
sem os habituais truques de retórica, ou enfeites, e no seu discurso final
apelou para a consciência poKtica do júri:

«Prefiro seguir os grandes acontecimentos do m u n d o e analisar o


curso da história do que me ocupar com chefes locais, a polícia e promo-
tores públicos. N o entanto, por mais importantes que esses cavalheiros
se julguem, não representam nada nas gigantescas batalhas da época
presente. Considero que estamos a fazer u m verdadeiro sacrifício ao
decidir cruzar as nossas armas com tais oponentes. Mas, em primeiro
lugar, o dever da imprensa é defender os oprimidos... O primeiro dever
da imprensa agora é sabotar todos os alicerces da actual situação política.»
o PAPÃO ATERRADOR ff^-. 129

Marx sentou-se fortemente aplaudido pela sala apinhada do tribunal e ele


e Engels foram absolvidos. Mas não havia muito tempo para celebrações. N o
dia seguinte, 8 de Fevereiro, Marx voltou ao banco dos réus juntamente com
dois colegas do Comité Democrático Distrital da Renânia; desta vez, era
acusado de «incitação à revolta».
A acusação provinha dos motins de Novembro de 1848, quando mem-
bros da Assembleia Nacional Prussiana — obrigados a sair de arma apon-
tada pelas tropas governamentais — tinham decidido que, em protesto, não
cobraria impostos. N u m a proclamação datada de 18 de Novembro de 1848,
o comité de Marx declarou que «se devia resistir por toda a parte e de todas
as maneiras» ao pagamento forçado de impostos e que deveriam ser forma-
das milícias populares «para rechaçar o inimigo». Como isto era inegavelmen-
te uma incitação à revolta, como o próprio Marx admitiu em tribunal, a única
questão era saber «se os acusados tinham sido autorizados pela decisão da
Assembleia Nacional a resistir ao poder estatal e a organizar um força armada
contra o Estado». Após breve discussão, o júri decidiu por unanimidade que
eles tinham agido em perfeita conformidade com Deutsche'LondonerZeitung,
semanário liberal dirigido aos refugiados alemães em Londres: «Hoje em dia,
e em julgamentos políticos, o Governo não tem sorte n e n h u m a com os
júris.»^'' Mas o Governo tinha outros trunfos na manga. O comandante-ad-
junto da guarnição de Colónia, u m coronel desgraçadamente chamado
Friedrich Engels, informou o Oberpräsident da Renânia que Marx estava «a
tornar-se cada vez mais audacioso, agora que fora absolvido pelo júri, e acho
que chegou a altura de deportar esse homem, pois não temos de tolerar um
estrangeiro que, com a sua língua viperina, conspurca tudo, especialmente
porque a nossa própria canalha local está a ocupar-se disso bastante bem.»^^
Enquanto o coronel Engels aguardava uma resposta, dois dos seus ofi-
ciais subalternos da 8.* Companhia de Infantaria tomaram a iniciativa de ir
a casa de Marx na tarde do dia 2 de Março para o obrigar a dizer quem ti-
nha escrito um artigo recentemente publicado no Neue Renische Zeitung so-
bre corrupção militar. Tal artigo tinha, ao que parecia, ofendido gravemen-
te «toda a companhia.» Marx observou que o artigo em questão era, na
verdade, um anúncio, pelo qual não era responsável. O s visitantes, fazendo
literalmente tilintar o sabres, avisaram que, se ele se recusasse a dizer o nome
do autor, «aqmlo iria acabar mal». Como resposta, Marx chamou-lhes a aten-
ção para a coronha de u m revólver que sobressaía do seu bolso. O s dois
homens despediram-se a toda a pressa.
130^8 KARL MARX

«A disciplina deve andar muito relaxada», escreveu Marx ao coronel Engels,


«e toda a noção de lei e ordem deve ser inexistente caso uma companhia do
exército possa enviar delegados, como um bando de ladrões, a casa de um
cidadão para lhe extorquir informações sob ameaças... Tenho de lhe solici-
tar, meu caro Senhor, que faça um inquérito quanto a este incidente, a fim de
me dar uma explicação sobre essa singular arrogância. Lamentaria imenso ser
obrigado a ter de recorrer à divulgação deste caso para obter uma resposta.»^^
A missiva de Marx foi uma ameaça mais eficaz do que os sabres dos ofi-
ciais. O pobre comandante assegurou-lhe que os homens tinham sido repreen-
didos e agradecia ao Neue Rheinische Zeitung^th. sua discrição. Magnânimo na
vitória, Marx informou o coronel que o sñencio do jornal demonstrava «como
era grande o seu respeito pelo corrente estado de espirito de agitação».
Historia incrível. Embora Marx estivesse a ser censurado por esquerdis-
tas, como o Dr. Gottschalk (o qual, entretanto, fora solto da cadeia), por falta
de müitancia, o que ele publicava era suficientemente provocador — incluin-
do troça ao «despotismo burocrático feudal-miMtar» presidido pelo rei e o
seu aristocrático novo ministro do Interior, o barão Von Manteuffel. «Os
governos estão a preparar-se às claras para golpes de Estado destinados a
completar a contra-revolução», predisse a 12 de Março. «Consequentemente,
o povo seria plenamente justificado se se preparasse para uma insurreição.»
Acrescentou igualmente que o povo não devia deixar-se cair nessa «desajei-
tada armadilha» — mas apenas porque achava que, em breve, haveria uma
oportunidade muito melhor. A 8 de Maio, depois de uma série de motins e
escaramuças em Dresden e no Palatinado, o Neue VJjeinische Zeitungttouy^c as
boas noti'cias que «a revolução estava cada vez mais perto».
«Foi manifestado espanto», escreveu Engels anos mais tarde, «por conti-
nuarmos as nossas actividades de forma tão despreocupada a curta distância
de um quartel prussiano de primeira categoria, diante de uma guarnição de oito
mil soldados e confrontando o quartel da guarda, mas, em virmde das oito es-
pingardas e das 250 balas na sala de redacção, e os bonés vermelhos jacobinos
dos compositores-tipógrafos, a nossa casa foi considerada pelos oficiais como
sendo uma fortaleza que não seria tomada através de um mero coup de main.)?^
A verdade é que a fortaleza foi tomada sem ser disparado um único tiro
e, a 16 de Maio, as autoridades prussianas processaram metade do pessoal
da redacção recomendando que a outra metade -— os que eram prussianos,
incluindo Marx — fosse deportada. Nada mais poderia ser feito. N o último
número, e impresso desafiadoramente a vermelho, o Neue Rheinische Zeitung
o PAPÃO ATERRADOR , \ • 131

anunciava que «a sua última palavra por toda a parte será sempre: emancipa-
ção da classe operária!» A seguir, Marx e os outros jornalistas saíram do prédio,
com a bandeira vermelha hasteada orgulhosamente no telhado e uma ban-
da a tocar, de armas e bagagem na mão.
Depois de vender tudo — incluindo a tipografia do jornal que lhe per-
tencia e a mobília de sua casa — Marx conseguiu liquidar as dívidas mais
importantes, mas ficou sem mais nenhum dinheiro. A prata da família de
Jenny foi posta no prego, desta vez em Frankfurt, enquanto ela e os filhos
partiram para casa da mãe em Trier. Marx e Engels dirigiram-se para Frank-
furt na esperança de convencer os deputados da esquerda a apoiar as tropas
insurgentes do Sudoeste da Alemanha que ainda combatiam pelo «governo
provisório» em Baden e no Palatinado. Mas ninguém lhes deu ouvidos e,
assim, partiram no dia seguinte para Baden, a fim de exortar as forças revo-
lucionárias a marchar sobre Frankfurt sem serem convidados. Mais uma vez
os seus apelos foram ignorados, embora tivessem um encontro amigável com
o antigo colega deles, WiUich, que chefiava agora os guerrilheiros.
Engels, um estudioso de estratégia militar, não resistiu à oportunidade de
vestir uma farda e juntar-se à guerra. Alistando-se como voluntário, em breve
nomeado ajudante de campo de WiUich e dirigindo conjuntamente a cam-
panha e as operações. N o decorrer das semanas seguintes combateu em al-
gumas escaramuças — todas elas foram perdidas. A sua descoberta mais im-
portante, disse ele a Jenny Marx, foi a de que «a muito vangloriada bravura
sob fogo é a qualidade mais comum que uma pessoa possui. O silvar das
balas é realmente uma coisa bastante trivial»^^ Assistiu a poucos actos
cobardes, mas muita «valentia estúpida».
Marx, que não tinha inclinação nem físico para ser soldado, deu-se con-
ta de que não havia mais nada que podia fazer na Alemanha e, em princípios
de Junho, partiu para Paris com um passaporte falso, apresentando-se às
autoridades francesas como o enviado especial do governo revolucionário
do Palatinado. Ao chegar, contodo. Paris estava a braços com uma reacção rea-
lista e uma epidemia de cólera. «Por todo isso», escreveu jovialmente a Engels
a 7 de Junho, «nunca uma colossal erupção do vulcão revolucionário esteve
mais iminente do que actoalmente em Paris... Dou-me com todo o partido
revolucionário e, dentro de alguns dias, terei todos os jornais revolucioná-
rios à minha disposição».^^
Mas, dentro de dias, não havia mais jornais revolucionários. Q u a n d o
a facção dos montagnards da Assembleia Nacional francesa convocou uma
132 î ^ KARLxMARX

manifestação para 13 de Junho, as tropas governamentais afugentaram sim-


plesmente os manifestantes da rua e prenderam os chefes. Assim terminou
a revolução começada em 1848; depois do galo gaulês ter cantado e se pavo-
neado, torceram-lhe o pescoço.
Jenny, grávida do quarto filho, juntou-se ao marido em Paris em princí-
pios de Julho. «Se a minha mulher não estivesse num étatpar trop intéressant
(estado excessivamente interessante), sairia com todo o gosto de Paris assim
que fosse financeiramente possível», escreveu a Engels^^. Mas a decisão já
não dependia dele. Os reaccionários triunfantes andavam muito ocupados
a procurar revolucionários estrangeiros e a expulsá-los da capital agora cal-
ma. Na soalheira manhã de 19 de Março, um agente da polícia veio à bater
à porta dos Marx, na Rue de LiUe, 45, para entregar uma ordem oficial que
os bania para o département àt Morbihan, na Bretanha. A única surpresa foi
Marx não ter sido expulso mais cedo: todo leva a crer que a poKcia não o en-
controu durante várias semanas porque ele tinha tomado a precaução de alu-
gar o apartamento sob o nome de «Monsieur Ramboz».
Marx conseguiu retardar o inevitável apelando para o Ministério do In-
terior, mas, a 16 de Agosto, o comissário da polícia de Paris informou-o que
a ordem fora confirmada, mas Jenny era autorizada a permanecer mais um
mês. Marx descreveu Morbihan como sendo «o lodaçal da Bretanha», um
pântano infestado de malária que acabaria sem dúvida por matá-lo e a toda
a família, a qual já se encontrava bastante doente. «Escusado será dizer»,
escreveu a Engels, «que não consinto que atentem desta forma velada con-
tra a minha vida e, assim, vou abandonar a França.»-^"*
Nem a Alemanha nem a Bélgica o deixavam entrar, e a Suíça recusou o
seu pedido de residência — não que ele desejasse particularmente viver
naquela «armadilha para ratos». E, assim, virou-se para o último refúgio do
revolucionário sem raízes e, quando o SS City of Boulogne chegou a Dover a
27 de Agosto de 1849, o seu comandante, de acordo com a lei, notificou o
Ministério do Interior inglês de «todos os estrangeiros que se encontram a
bordo do meu navio»^^: os quais incluíam um actor grego, um cavalheiro
francês, um professor polaco e um tal Karl Marx que se intitula «doutor».
«Tens de partir para Londres imediatamente», escreveu Marx a Engels
que estava a recuperar das suas fatigas militares frequentando bares e rnu-
Iheres em Lausana. «Conto absolutamente com isso. Não podes permanecer
na Suíça. Recomeçaremos tudo em Londres.»^*"
o MEGALOSSAURO

O refúgio final de Karl Marx foi na maior e mais rica metrópole do


mundo. Londres foi a primeira cidade a atingir uma população de um milhão
de habitantes, um enorme tumor que continuava a inchar sem, todavia, re-
bentar. Quando o jornalista Henry Mayhew a sobrevoou num balão de ar
quente para ter uma noção do seu tamanho, não soube explicar «onde é que
a cidade monstruosa começava, ou acabava, pois os prédios estendem-se, de
um lado e do outro, não só até ao horizonte, mas para lá a perder de vista...
onde a cidade parecia confundir-se com o céu.» As estatísticas calculam que
300 000 pessoas se instalaram na capital entre 1841 e 1851 — incluindo
centenas de refugiados que, como Marx, foram atraídos pela sua reputação
de santuário para os marginais políticos.
Mas esta «supercidade de luxo» também era o monstro sinistro e som-
brio que surge ameaçadoramente da primeira página de Bleak Home, escri-
to três anos depois da chegada de Marx:

«Tempo implacável de Novembro. Há tanta lama nas ruas que é como


se a água tivesse sido quase toda retirada da face da Terra e não seria bom de-
parar com um Megalossauro de 30 metros de comprido a subir lentamente
Holborn Hül como um lagarto paquidérmico. O fumo que sai dos tubos
das chaminés provoca uma chuva miúda e negra com flocos de fuligem tão
grandes como neve — enlutadas, podemos imaginar, pela morte do Sol.»^

Para lá dos luxuosos salões de Mayfair e Piccadilly estende-se um bairro


da lata inexplorado de barracas e oficinas, bordéis e fábricas sujas. «É como
134^^ KARL MARX

o coração do universo, e a torrente de esforços humanos jorra para dentro


e para fora com uma violência que consterna os sentidos», escreveu Thomas
Carlyle ao irmão. «Daí que o nosso pai tenha visto Holborno envolto em
nevoeiro!, com o espesso vapor à sua volta absolutamente como tinta flui-
da; e carruagens, coches, carneiros, bois e gente alvoraçada no meio de
berros, gritos e barulho ensurdecedor, como se a terra enlouquecesse.»
As doenças eram comuns — o que não era de surpreender, visto que os
esgotos escoavam directamente no Tamisa, o qual abastecia a cidade de água.
Apenas um mês antes de Marx chegar a Londres, infestada por mais uma das
suas epidemias periódicas de cólera, The Times publicou o seguinte grito de
socorro na sua página de cartas ao editor:

«Sor, suplicamos a sua ajuda e proteção. Vivemos, Sor, em Wilderniss,


caso Londres queira saber de nós ou a gente importante e rica se inte-
resse. Vivemos no meio do lixo. Não temos retrete, nem água, nem es-
gotos. A companhia dos esgotos, na rua Greek, no Soho, todos homens
poderosos e ricos não Hgam às nossas queixas. O fedor é nojento. Todos
nós sofremos e mviitos estão doentes. Deus tenha piedade de nós se a
cók^ra vier aí.»^

Em alguns bairros, uma criança em três morria antes de cumprir um ano


de idade.
As maravilhas e monstruosidades da Londres vitoriana, que espantavam
tantos visitantes estrangeiros, eram invisíveis a Marx. Apesar de todo o seu
talento como jornalista e analista social, ele parecia curiosamente ignorar
muitas vezes o que o rodeava; ao contrário de Dickens, que mergulhava no
horror para trazer vividas observações em primeira mão, preferia 1er os
jornais ou dirigir-se às comissões reais para obter informação. Nem mani-
festava o menor interesse pelo gostos e hábitos dos habitantes — a manei-
ra como se vestiam, se divertiam e as suas canções populares. É verdade que,
em Julho de 1850, fico «todo vermelho e excitado» ao reparar na miniatura
de uma locomotiva eléctrica na montra de uma loja da rua Regency, mas
foram as implicações económicas e não a emoção da novidade que o entu-
siasmaram. «O problema é resolvido — as consequências são difíceis de
prever», disse aos seus companheiros boquiabertos, explicando-lhes, que as-
sim como o vapor tinha transformado o mundo no século passado, também
agora a centelha eléctrica poria em marcha uma nova revolução.
o MEGALOSSAURO o í ^ 135

«Na esteira da revolução económica há-de necessariamente seguir-se a


revolução poKtica, pois esta última é apenas a expressão da primeira.» Pare-
ce pouco provável que mais alguém entre a multidão tenha parado diante da
loja da rua Regent para considerar as consequências políticas desse cavalo
de ferro troiano; para Marx, contudo, era tudo que interessava. Se tivesse
deparado com o megalossauro de Dickens a espojar-se na lama de Holborn
Hill, mal teria olhado para ele uma segunda vez.
O trabalho era a única coisa que o distraía da desgraça da sua situação. Sem
fazer uma pausa para se ambientar, pôs-se a organizar um novo quartel-general
para a Liga Comunista nos escritórios da Associação Educativa dos Trabalha-
dores Alemães, em Londres, uma das muitas associações políticas da diáspora
revolucionária, e, em meados de Setembro, foi eleito para um Comité de Aju-
da aos Refugiados Alemães. «Encontro-me agora numa situação realmente
difícil», escreveu a Ferdinand Freiligrath a 5 de Setembro de 1849, cerca de
uma semana depois de ter chegado a Inglaterra. «A minha mulher está em
estado avançado de gravidez. Tem de sair de Paris no dia 15 e eu não sei como
hei-de arranjar dinheiro para a viagem e para a instalar aqui. Mas, por outro
lado, há excelentes perspectivas de eu vir a publicar uma revista mensal.. .»^
Poucos refugiados precisavam de ajuda mais urgente que os Marx. Jenny
chegou a Londres em 17 de Setembro, doente e exausta com «os meus
pobres três filhos perseguidos». Jennychen tinha nascido em França, Laura
e Edgar na Bélgica, e essa paripatética parturição foi continuado pelo nas-
cimento do segundo filho a 5 de Novembro de 1849 ao som de fogo-de-
-artifício: os londrinos festejavam o facto de Guido (Guy) Fawkes não ter
conseguido mandar pelos ares o Parlamento em 1605. Em homenagem ao
grande conspirador, a criança foi baptizada Heinrich Guido e instantanea-
mente alcunhada «Fawkesy» (alcunha essa mais tarde germanizado para
«Foxchen»).
Marx tinha uma particular afeição por alcunhas e pseudónimos. É evi-
dente que, por vezes, essa necessidade era de ordem poKtica: daí o cómico
aliás«MonskurKainhoz», adoptado quando se escondia em Paris. Até mes-
mo na liberal Londres, onde havia pouca necessidade de subterfúgios, ele
assinava por vezes as suas cartas A. Williams para escapar aos denunciantes
da poHcia nos correios. Mas a maior parte dos diminutivos que dava tão li-
beralmente a amigos e à família eram por puro capricho. Dirigia-se a Engels,
o soldado de luxo, pela sua patente imaginária, «General». A governanta,
Helene Demuth, era «Lenchen» ou, outras vezes, «Nym». Jennychen desfru-
1 3 6 1 5 ^ KARL MARX

tava do título, se não dos salamaleques, de «Qui-Qui, imperador da China».


Marx, conhecido pelos íntimos por Mouro, encorajava os filhos a chamá-lo
Ve/ho Nick e «Charlep>. Confusamente, o sinal mais seguro do seu despre-
zo por alguém era chamá-lo pelo nome de baptismo: o poeta Kinkel, o anti-
-herói do panfleto de Marx, Grandes Homens do Exílio, era sempre tratado por
Gottfried.
«Sabes que a minha mulher enriqueceu o mundo com mais um cidadão»,
escreveu Marx a Joseph Weydemeyer, que estava em Frankfurt, pouco de-
pois do nascimento de Fawkesy. O tom bem humorado ocultava uma ter-
rível apreensão: como é que ele iria sustentar quatro crianças pequenas e uma
mulher doente? Como o Sr. Micawber, convenceu-se de que algo tinha de
aparecer. Tinha-se mudado, em Outubro, para uma casa na rua Anderson,
em Chelsea (então, como agora, um dos bairros mais na moda e caros) e
pagava seis libras por mês, muito mais do que podia.
Pode parecer que um exilado numa terra estranha, desenraizado e sem
um tostão no bolso, necessita de todos os amigos que possa arranjar; mas
não Marx. O único aliado que precisava era de Engels — o qual, fiel como
sempre, se instalou em Londres a 12 de Novembro todo aperaltado para dar
batalha a recidivistas e traidores. Seis dias mais tarde, no decorrer de uma
reunião na Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães, Marx mudou
o nome do comité de ajuda aos refugiados para o distinguir de um grupo rival
fundado por «liberais» como Gustav von Struve, Karl Heinzen e Louis
Bauer, o médico de família recentemente contactado pelos Marx. Com se-
vera formalidade, Karl Marx informou o Dr. Bauer de que «em vista das re-
lações pouco amistosas entre os dois grupos aos quais pertencemos... em
vista dos seus ataques directos ao meu comité de refugiados, em todo o caso
aos meus amigos e colegas... temos de pôr termo às nossas relações so-
ciais... Ontem à noite, não achei conveniente exprimir a riiinha opinião
quanto a este conflito em presença da minha mulher. Exprimo-lhe aqui os
meus maiores agradecimentos pela sua assistência médica e peço-lhe que me
envie os seus honorários.»"^
Mas, quando o médico lhe apresentou a conta, Marx acusou-o de que-
rer depená-lo e recusou-se a pagar,
i Por volta do Natal, Engels informou outro camarada alemão que «visto
bem as coisas, está tudo a correr bastante bem por aqui. Struve e Heinzen
continuam a fazer intrigas contra nós e a Associação dos Trabalhadores, mas
sem sucesso. Juntamente com uns moderados que nós expulsámos, forma-
o MEGALOSSAURO tfQjH37

ram um clube exclusivo, onde Heinzen se queixa das doutrinas nocivas dos
comunistas»^ Quando The Times descreveu Heinzen como um «farol do
Partido Social Democrata alemão», Engels enviou uma dura refutação ao
Northern Star, jornal cartista: «Herr Heinzen, ao contrário de ser um farol,
tem-se incansavelmente oposto desde 1842, embora sem sucesso, a tudo o
que é socialismo e comunismo.»'' Era exactamente como nos velhos tempos
em Paris, ou Bruxelas — um turbilhão de intrigas, ajustes de contas e luta
pelo poder. Na sala da Associação, na rua Great Windmill, no Soho, Marx
em breve se encarregou de examinar minuciosamente os recém-chegados e
de impor regulamentos.
Wilhelm Liebknecht, que fugiu para Londres em 1850, deixou um vivo
relato dos métodos intimidadores usados por Marx para estabelecer o seu
domínio. Durante um piquenique da Associação, pouco depois da sua che-
gada, o «père Marx» chamou-o à parte e pôs-se a inspeccionar a forma do seu
crânio. Não tendo encontrado nenhuma anormalidade, Marx convidou-o
então no dia seguinte a ir à «sala privada» da rua Great Windmill para o
escrutinar mais pormenorizadamente:

«Não sabia o que era uma "sala privada", mas tive o pressentimento
que o exame "final" estava prestes a acontecer. Segui-o confiantemen-
te. Marx inspirava confiança e tinha-me causado boa impressão no dia
anterior. Conduziu-me pelo braço à sala privada, quer dizer, o gabinete
do anfitrião — ou seria anfitriã? — onde Engels me recebeu alegremente
com piadas e uma caneca de cerveja na mão... A maciça mesa de mog-
no, as canecas de estanho, a cerveja espumante, a perspectiva de um bom
bife inglês com acessórios e compridos cachimbos de espuma — era
realmente confortável e lembrava as ilustrações inglesas de Boz. Mas,
apesar de tudo isso, examinaram-me a sério.»^

Os examinadores tinham feito os trabalhos de casa. Citando um artigo


que Liebknecht escrevera para um jornal alemão em 1848, Marx acusou-o
de fiüsteu e de ter a «nebulosidade sentimental dos alemães do Sul». Após
muitas súplicas, o candidato foi perdoado. Mas o seu suplício não tinha
terminado: o frenologista comunista residente, Karl Pfänder, foi chamado
para fazer um exame mais aprofundado dos contornos cranianos de Liebk-
necht. «O meu crânio foi oficialmente inspeccionado por Karl Pfánder, o qual
nada encontrou que impedisse a minha admissão no santuário da Liga
138^^ KARL MARX

Comunista. Os exames, porém, continuaram...» Marx, que era apenas cin-


co ou seis anos mais velho que os «camaradas jovens», como Wilhelm
Liebknecht, interrogava-os como um professor a pôr à prova uma tristonha
aula de estudantes, empregando os seus colossais conhecimentos e prodi-
giosa memória como se fossem instrumentos de tortura. «Como ele se diver-
tia quando, depois de tentar um "pequenino aluno" a arriscar-se, demons-
trava à custa do infeliz a incompetência das nossas universidades e da cultura
académica.»
Marx era sem dúvida um tremendo exibicionista e um intelectual bruto
e sádico. Mas também era um professor inspirado e ensinava espanhol, grego,
latim, filosofia e economia política aos jovens refugiados. «Ele que, habitual-
mente, se mostrava tão impaciente, tinha uma tal paciência quando ensina-
va!» A partir de Novembro de 1849, iniciou uma série de palestras, cuja tema
era «O que é a propriedade burguesa?», que atraiu imensa gente à sala do
segundo andar da rua Great Windmill. «Enunciava uma afirmação — quanto
mais breve, melhor — e, depois, demonstrava através de uma longa expli-
cação, tentando com o maior cuidado evitar expressões que não fossem en-
tendidas pelos trabalhadores», relatou Liebknecht. «A seguir, pedia à au-
diência que lhe fizesse perguntas e, se ninguém se propusesse, punha-se a
examinar os trabalhadores com tais qualidades pedagógicas que nenhuma
falha nem incompreensão lhe escapava... Também utilizava um quadro para
escrever fórmulas... entre as quais algumas proveniente de O Capital, que
eram familiares a todos.»
Os habitantes da rua Great WindmiU tinham um horário muito ocupa-
do. Aos domingos, havia palestras de história, geografia e astronomia segui-
das por «perguntas acerca da corrente situação dos trabalhadores e a sua
atitude para com a burguesia». As discussões sobre comunismo ocupavam
a maior parte das segundas e terças-feiras, mas, mais tarde durante a sema-
na, o currículo incluía aulas de canto, locução, desenho e até mesmo de dança.
As noites de sábados eram dedicadas à «música, recitação de poemas e lei-
tura de artigos de jornal interessantes». Nos tempos de folga, Marx passeava
até Rathbone Place, perto da rua Oxford, onde um grupo de emigrantes
franceses tinha aberto um salão de esgrima no qual se podia praticar espa-
da, florete e sabre. Segundo Liebknecht, as estocadas de Marx eram rudimen-
tares, mas eficazes. «O que lhe faltava em perícia, tentava compensar com
agressividade. E, a não ser que uma pessoa se mantivesse calma, assustava-
-a deveras.» . ,
o MEGALOSSAURO ^ ¡ » 1 3 9

O mesmo acontecia com a escrita; quando não brandia a espada, desem-


bainhava mais outro jornal para dizimar os filisteus. No começo de 1850, o
seguinte anúncio foi publicado no jornal alemão: «A Neue Rheinische Zeitung
Politisch-ökonomische Revue, dirigida por Karl Marx, surgirá em Janeiro de
1850... Esta revista será publicada mensalmente, em pelos menos cinco
folhas, ao preço por assinatura de 24groschen de prata cada trimestre.»^ O di-
rector comercial era para ser Conrad Schramm, outro revolucionário alemão
independente chegado a Londres há uns meses.
As ambições de Marx para esta publicação eram heroicamente grandio-
sas. «Não duvido de que, após terem saído três números, ou talvez dois, da
revista, haverá um conflito mundial», predisse'. Entretanto, contudo, era
preciso tratar do desagradável problema financeiro. Convencido de que «só se
conseguiria o dinheiro na América», Marx pensou enviar Conrad Schramnn
numa digressão transatlântica para obter fundos, mas deu-se conta a tempo
de que uma viagem dessas acartaria ainda mais despesas.
Desde o princípio que a nova revista estava condenada, acabando por
expirar ao cabo de cinco meses. O primeiro número teve de ser adiado pelo
facto de Marx ficar doente por duas semanas e a impossibilidade do com-
positor-tipógrafo não conseguir decifrar os gatafunhos dele provocou mais
um atraso; Marx passou o tempo a discutir com o editor e o distribuidor, pois
desconfiava que eles estivessem combinados com os censores. A revista ter
sido publicada foi realmente um milagre.
Tinha boas coisas — sobretudo uma longa série de artigos, nos quais
Marx empregou todo seu engenho dialéctico para se opor à ideia que a re-
volução francesa de 1848, tinha falhado. «O que sucumbiu nessa derrota não
foi a revolução, mas sim os apêndices tradicionais pré-revolucionários, re-
sultado das relações sociais ainda não terem chegado ao ponto do antago-
nismo de classes.. .»^*'. O sucesso teria sido um desastre disfarçado: só atra-
vés de malogros é que o partido revolucionário poderia libertar-se de noções
ilusórias e líderes oportunistas. «Numa palavra: a revolução fez progressos
e avançou, não através das suas imediatas proezas tragicómicas, mas, pelo
contrário, através da criação de uma forte contra-revolução unida.»
Tendo provado esta tese contrária para sua própria satisfação «A revolu-
ção morreu! — Viva a revolução!»), passou para outro acontecimento: a es-
pectacular vitória de Luís Napoleão nas eleições presidenciais de Dezembro
de 1848. Porquê tinham votado os franceses de forma tão esmagadora por
esse vadio grotesco — «desajeitadamente manhoso, velhacamente ingénuo.
I40'<*¿f.^ KARLMARX •;• •

imbecilmente subüme, uma superstição premeditada, uma paródia patética,


um anacronismo inteligentemente estúpido, uma palhaçada histórica-mun-
dial, um hieróglifo indecifrável?» Era muito simples: a própria inexpres-
sividade deste Bonaparte de tra2er por casa permitia que todas as classes o
reinventassem à imagem delas. Para os camponeses, ele era o inimigo dos
ricos; para os proletários, representava o aniquilamento do republicanismo
burguês; para a alta burguesia, a esperança da restauração monárquica; para
o exército, a promessa de guerra. Assim, o francês mais simples de espírito
adquiria o mais complexo significado: «Por nada ser, podia significar tudo.»
Apesar de todo o seu brilho e coragem, a Repue não se desviou dos seus
objectivos para seduzir assinantes. Como E. H. Carr assinalou, «o conjunto
dos artigos era tacitamente temperado com acerbos ataques aos outros re-
fugiados alemães em Londres, os quais eram quase os únicos leitores poten-
ciais da revista»". A circulação era reduzida e as receitas insignificantes. E m
Maio de 1850, Jenny Marx escreveu implorantemente a Weydemeyer em
Frankfurt: «Suplico-te que nos envie o mais depressa possível as receitas da
Revue. Estamos muito necessitados.»^^ Marx mostrava-se estóico quanto à
falência de u m projecto no qual investira tanta esperança e energia. Como
Jenny observou com admiração, mesmo nos «momentos mais terríveis» —
e tais momentos foram bastante numerosos em 1850 — , nunca perdeu o
b o m humor nem a sólida confiança no futuro. «Por favor não fiques ofen-
dido pelas cartas agitadas da minha mulher», escreveu ele a Weydemeyer. «Ela
anda a amamentar o filho e a nossa situação aqui é tão extraordinariamente
catastrófica que as explosões de impaciência são desculpáveis.»"
Este breve comentário mal dava a perceber o verdadeiro h o r r o r que
estavam a passar os Marx para sobreviverem. N u m a longa e lancinante carta
redigida em Maio de 1850, Jenny Marx descrevia uma cena que podia sair de
u m romance de Charles Dickens:

«Deixa-me descrever-te apenas um dia das nossas vidas e hás-de per-


ceber que muito provavelmente poucos refugiados passaram por uma ex-
periência semelhante. Como as amas-de-leite são exorbitantemente ca-
ras, decidi, apesar das terríveis dores no peito e nas costas, ser eu a dar
de mamar ao meu filho. Mas o pobre anjinho absorveu juntamente com
o meu leite tantas ansiedades e aflições que está doente noite e dia. Desde
que nasceu que nunca dormiu uma noite inteira — no máximo, duas ou
três horas. N o s últimos dias, também tem sofrido convulsões violentas
o MEGALOSSAURO ^^141

e está constantemente entre a vida e a morte. Mama com tanta força que
tenho uma ferida no peito que muitas vezes chega a sangrar na sua b o -
quinha. U m dia, estava sentada a dar-lhe de mamar quando chegou a se-
nhoria, a quem já pagámos mais de 250 tâleres durante o Inverno e com
quem concordámos, por contrato, pagar o resto mais tarde. Mas ela, ago-
ra, nega a existência de tal contrato e exige as cinco libra que lhe deve-
mos. .. Como não temos dinheiro, vieram dois oficiais de diligências cá
a casa e confiscaram o pouco que ainda possuo — camas, roupa, tudo,
até mesmo o berço do meu pobre filho e os brinquedos das meninas que
desataram a chorar. Ameaçaram levar tudo dentro de duas horas —
deixando-me a dormir no chão com as crianças cheia de firio e o meu pei-
to ferido. O nosso amigo Schramm foi imediatamente à cidade à procura
de ajuda, mas, ao entrar no coche, os cavalos assustaram-se e abalaram
a toda a brida. Ele saltou e trouxeram-no a sangrar para casa onde eu me
lamentava na companhia dos meus pobres filhos a tremer de frio.
Fomos obrigados a deixar a casa no dia seguinte. Estava tanto frio e
húmido que o meu marido foi em busca de alojamento, mas ninguém nos
quer receber por causa das quatro crianças. Por fim, um amigo veio em
nossa ajuda. Pagámos o que devíamos e vendi tudo à pressa para pagar
igualmente aos boticários, padeiros, talhantes e leiteiro que, receosos pelo
escândalo provocado pelos oficiais de diligências, nos assaltaram subita-
mente com as suas contas. As cama que vendi foram levadas para a rua
e carregadas num carrinho de mão. E, depois, o que é que aconteceu? O
Sol já se tinha posto há muito e a lei inglesa proíbe isso. Então o senho-
rio vem ter connosco e os polícias e declara que podemos ter metido coi-
sas dele no meio das nossas posses e que vamos fugir para o estrangeiro.
E m menos de cinco minutos, junta-se uma multidão de 200 ou 300 pes-
soas à porta, toda a canalha de Chelsea. As camas voltam a entrar pois só
podem ser entregues ao comprador no dia seguinte depois de o Sol nas-
cer, enquanto eu e os meus pobres filhos nos alojamos n o G e r m a n
Hotel, 1, Leicester Street, em Leicester Square, onde nos receberam de-
centemente por 5,10 libras por semana.»"

Dias mais tarde, os Marx encontraram abrigo temporário em casa de um


negociante de rendas judeu na rua Dean, 64, no Soho, onde passaram u m
Verão horrível à beira da miséria. Jenny estava de novo grávida e constan-
temente doente. E m Agosto, a situação era tão má que ela teve de partir para
U 2 ^ s KARLMARX ••/:•- _ -' '

a Holanda e entregar-se à mercê do tio materno do marido, Lion Philips, rico


h o m e m de negócios holandês (cuja epónima companhia ainda hoje flores-
ce a vender toda a espécie de produtos eléctricos, de aparelhos de televisão
a torradeiras). N ã o precisava de ter-se dado a esse incómodo: Philips, que
estava «muito contrariado pelo efeito nefasto da revolução sobre os seus
negócios», ofereceu apenas um amplexo avuncular e um presente insignifi-
cante ao pequenino «Fawkesy». E, quando ela o preveniu que teriam de emi-
grar para a América se ele não os socorresse, Philips limitou-se a responder-
-Ihe que achava isso uma óptima ideia. «Receio bem, querido Karl, que tenha
de voltar para casa de mãos vazias, desapontada e cheia de medo de morrer»,
escreveu Jenny. «Oh, se soubesses quantas saudades t e n h o de ti e dos
pequeninos. N ã o posso escrever nada sobre os nossos filhos sem sentir os
olhos rasos de lágrimas...»
Muitos dos revolucionários exilados em Londres eram artesãos — tipó-
grafos, sapateiros, relojoeiros. Outros ganhavam a vida ensinando inglês ou
alemão. Mas Marx era congenitalmente incapaz de qualquer emprego regular.
Considerou efectivamente a possibilidade de emigrar, mas descobriu que a
viagem seria <ánfernalmente cara»; mas, se soubesse que era prestada assis-
tência aos emigrante necessitados, teria possivelmente tomado o próximo
barco. Como de costume, Engels veio em seu socorro, sacrificando as suas
próprias ambições jornaKsticas em Londres para trabalhar nos escritórios da
firma têxtil do pai em Manchester, E r m e n & Engels, onde ficou durante
quase 20 anos.
«O meu marido e todos nós sentimos muito a tua falta e temos imensas
saudades tuas», escreveu-lhe Jenny depois da sua partida, em Dezembro de
1850. «No entanto, estou contente por te estares a tornar num grande ne-
gociante de algodão. is
Mas o desejo de Engels não era aquele e considerava o «vil comércio» como
uma penitência. E m b o r a em breve assumisse a aparência exterior de um
homem de negócios de Lencashire — fazendo parte dos clubes mais exclu-
sivos, enchendo a cave de champanhe e participando em caçadas à raposa com
galgos — nunca se esquece que o objectivo era sustentar o seu brilhante, mas
necessitado amigo. O seu papel foi o de uma espécie de agente secreto atrás
das linhas inimigas e enviava a Marx pormenores confidenciais sobre o comér-
cio de algodão, observações quanto ao estado dos mercados internacionais
e — principalmente — uma mesada regular em notas surripiadas do dinheiro
destinado às pequenas despesas da firma ou astuciosamente tiradas da sua
o MEGALOSSAURO «*GJ 143

conta bancária. (Como precaução contra os roubos nos correios, dividia as


somas em duas metades e enviava-as em envelopes separados.) Isto dá uma
ideia do m o d o negligente como o negócio era dirigido, pois nem o pai nem
o sócio em Manchester, Peter Ermen, nunca se deram conta de nada.
N o entanto, Engels teve o maior cuidado para não despertar suspeitas,
m e s m o se, p o r vezes, isso significava deixar a família Marx sem tostão.
«Escrevo só para te dizer que, infelizmente, ainda não posso mandar as duas
libras que prometi», escreveu em Novembro. «O Ermen ausentou-se por uns
dias e, na medida em que não foi autorizada nenhuma procuração com o
banco, nada podemos enviar e temos de nos contentar com os poucos pa-
gamentos que entram. A soma total da caixa é de apenas quatro Libras e tens
portanto de perceber que tenho de esperar um certo tempo.»^"" Quando o pai
visitou os escritórios de Manchester uns meses depois, Engels conseguiu que
ele lhe desse um «subsídio para despesas e representações» de 200 libras por
ano. «Com isso, tudo vai correr bem e, se não houver complicações antes de
ser feito o próximo balanço e o negócio aqui prosperar, ele terá de me pa-
gar bastante mais dinheiro... Tenciono, este ano, gastar muito mais do que
200 libras. E, como os negócios vão de vento em popa e ele está agora du-
plamente mais rico do que em 1837, nem vale a pena acrescentar que eu não
serei desnecessariamente escrupuloso.»"
Mas, dentro de pouco tempo, Engels sénior reflectiu sobre o assunto e,
decidindo que Friedrich estava a gastar demasiado dinheiro, reduziu a quantia
para 150 libras. E m b o r a o filho pródigo tenha barafustado quanta essa «ri-
dícula imposição», isso em nada diminuiu a sua generosidade para com o
amigo e, por volta de 1853, pôde gabar-se que «o ano passado, graças a Deus,
saquei metade dos lucros do meu pai aqui».**^
Engels podia dar-se ao luxo de manter duas residências: na elegante casa
na cidade recebia a fina flor local e, na outra, instalou a amante, Mary Burns,
e a irmã. Liza, com quem viveu em ménage à trois.

A 15 de J u n h o de 1850, pouco antes de Engels se exilar no N o r t e , o


Spectator^ de Londres, pubMcou uma carta assinada por «Charles Marx e Frede.
Engels», moradores na rua Dean, 64, no Soho: «Nunca teríamos realmente
pensado, Sr. Director, que, neste país, existissem tantos espiões da polícia
como aqueles que tivemos a sorte de encontrar n o curto espaço de uma
semana. N ã o só a porta das casas onde vivemos são estreitamente vigiadas
por individuos de aparência mais do que duvidosa que tomam notas sem-
144^0 KARL MARX

pre que alguém entra ou sai, como é impossível dar um único passo sem ser-
mos seguidos para onde quer que vamos. N e m podemos apanhar u m auto-
carro ou entrar num café sem termos o prazer da companhia de, pelo me-
nos, um desses amigos desconhecidos, 19
E com toda a razão, devem ter pensado os leitores do Spectator, sobretu-
do porque os autores orgulhosamente se identificavam como sendo revo-
lucionários fugidos do seu país. Mas Marx e Engels anteciparam essa
objecção fazendo astuciosamente apelo à vaidade inglesa e à sua fobia con-
tra os hunos, revelando que nos seus santuários anteriores — França, Bél-
gica, Suíça — não tinham conseguido escapar ao maléfico poder do rei
prussiano. «Se, através de sua influência, formos forçados a deixar este úl-
timo refúgio na Europa, por que é que a Prússia não há-de julgar que governa
o m u n d o . . . Achamos, Sr. Director, que, nestas circunstâncias, nada pode-
mos fazer de melhor do que dar a conhecer o caso ao público, pois acredi-
tamos que os ingleses estão interessados em tudo que possa afectar a bem
estabelecida reputação de Inglaterra como o local de asilo mais seguro para
os refugiados de todos os partidos e países.»
Apesar do tom divertido, Marx precisava desesperadamente da garantia
de que a Inglaterra não o abandonaria. Desde a recente tentativa de assas-
sinar o rei Frederico Guilherme IV, que o ministro do Interior prussiano
tinha intensificado a sua campanha contra os «conspiradores políticos», en-
viando espiões da polícia e agentsprovocateurs p2Lt'ã. várias capitais europeias
— sobretudo Londres e, em particular, a rua Dean, no Soho. E não era de
admirar, pois o ministro do Inteiro era o reaccionário meio irmão de Jenny,
Ferdinand von Westphalen. N ã o tendo conseguido impedir que Marx entras-
se na família sete anos mais cedo, estava, agora, bem decidido a vingar-se.
N a carta ao Spectator, Marx alegava que, uns 15 dias antes do atentado
contra o rei Frederico Guilherme, «pessoas que tenho todas as razões para
acreditar que sejam agentes do Governo prussiano, ou ultra-reaüstas, apre-
sentaram-se a nós e tentaram quase directamente envolver-nos em regicídios
em Berlim e noutras cidades. Escusado será dizer que tais indivíduos não nos
convenceram.» O objectivo deles, segundo explicou, era persuadir as auto-
ridades britânicas «a expulsar deste país os pretensos chefes da pretensa
conspiração». U m desses agentes não identificados eraWüheltn Stieber, mais
tarde chefe do serviços secretos de Bismark, que, fazendo-se passar por um
jornalista de nome Schmidt, chegara a Londres em 1850. Stieber tinha rece-
bido ordens para vigiar Karl Marx e, depois de se infiltrar no quartel-gene-
o MEGALOSSAURO o í ^ 145

ral comunista no número 26 da rua Great Windmill, enviou um telegrama


urgente confirmando as suspeitas que Von Westphalen tinha quanto ao cu-
nhado. «O assassínio de príncipes é formalmente ensinado e planeado», in-
formou esse agente:

«Numa reunião presidida por Wolff e Marx, que teve lugar anteon-
tem e à qual assisti, ouvi um dos oradores afirmar "A Vitela da Lua (a
rainha Victoria) também não escapará ao seu destino. O aço inglês é o
melhor, as lâminas de machado sobretudo são particularmente afiadas e
a guilhotina aguarda todas as cabeças coroadas." Assim, o assassínio da
rainha de Inglaterra é proclamado por alemães apenas a umas centenas
de metros do palácio de Buckingham... Antes da reunião terminar, Marx
declarou à audiência que podia estar tranquila pois havia cúmpHces co-
locados por toda a parte. Medidas infalíveis foram tomadas para que
nenhum dos assassinos das cabeças coroadas europeias possa escapar.»™

U m dos primeiros biógrafos de Karl Marx escreveu que «este relatório


é curiosamente convincente»^^ É, de facto, manifestamente absurdo —
como o próprio Governo britânico da época reconheceu. Embora o ministro
do Interior prussiano enviasse esse despacho para Londres, Lorde Palmer-
ston consignou-o nos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros
onde se encontra até hoje. Tanto quanto se possa dizer, ele nem se quer se
deu ao trabalho de alertar a Scodand Yard. Quando o embaixador austría-
co em Londres se queixou ao ministro do Interior, Sir George Grey, que
Marx e os seus camaradas da Liga Comunista andavam a falar de regicídio,
a resposta que obteve foi um breve e sobranceiro sermão sobre a natureza da
democracia liberal: «De acordo com as nossas leis, a mera discussão de regi-
cídios, e desde que não diga respeito à rainha de Inglaterra e não haja u m pla-
no definido, não constitui motivo suficiente para prender os conspiradores.»
U m esquema para assassinar a rainha Victoria era justamente o tipo de
proeza fútil que Marx detestava. Desprezava os revolucionários que prefe-
riam actos que dessem nas vistas ao monótono, mas necessário, processo de
se preparar para a crise económica que conduziria à vitória do proletariado.
Na verdade, foi a sua própria obstinação quanto a este ponto que destruiu
a Liga Comunista em Londres, pois os membros mais impacientes do co-
mité irritavam-se perante a insistência de Marx que deviam aguardar o m o -
mento oportuno.
146«^ KARL MARX

O Kder dos descontentes era August WilUch, o antigo comandante mi-


litar de Engels do tempo da campanha de 1849 em Baden, o qual, desde que
se juntara à diáspora alemã em Inglaterra, só criava problemas. «Vinha visi-
tar-me», escreveu Jenny Marx anos mais tarde, «porque queria extirpar o
bicho do caruncho que se instala em todos os casamentos.» Quase tudo em
Wilüch punha Marx fora de si — as suas atitudes e modos, as roupas colo-
ridas, a sua forma ruidosa de chamar a atenção. N o Verão de 1850, ele de-
nunciou abertamente Karl Marx de ser «reaccionário» Este, que nunca per-
dia uma ocasião para vituperar quem quer que fosse, retaliou chamando-o
«mal-educado e um asno quatro vezes corno». N o decorrer de uma tumul-
tuosa reunião do comité da Liga Comunista, a 1 de Setembro, WiUich desa-
fiou Marx para um duelo.
Como WilUch era b o m atirador e acertava no ás de copas a vinte passos,
Marx teve o bom-senso de recusar; mas o seu lugar-tenente, Conrad Schramm,
o qual nunca disparara um pistola na vida, aceitou o desafio imediatamente
e partiu com WiUich para Antuérpia, pois os duelos eram proibidos em
Berlim. Karl e Jenny ficaram à espera do pior, sobretudo quando ouviram
que WiUich levava Emmanuel Barthélémy como testemunha. Barthélémy,
u m rufia musculoso de ar feroz, fora preso aos 17 anos por ter morto u m
polícia e ainda ostentava no ombro a indelével marca dos condenados às
galés. Tendo fugido para Londres há apenas umas semanas depois de ter
escapado de uma prisão francesa, já o tinham ouvido dizer que traidores
como Marx e os seus amigos mereciam ser abatidos. E, em virtude das suas
proe2as com pistolas e sabres, conforme tinha amplamente demonstrado no
salão de esgrima de Rathbone Place, não se tratava de uma ameaça para ser
tomada a brincar.
Que possibUidades tinha o corajoso, mas fraco Schramm contra a formi-
dável perícia de WiUich e Barthélémy? N o dia marcado, Marx e Jenny aguar-
daram em casa muito preocupados, na companhia de Wilhelm Liebknecht,
contando os minutos. N a noite seguinte, Barthélémy veio pessoalmente
anunciar-lhes em voz sepulcral que Schramm a une halle dans la tête (Schramm
tem uma bala na cabeça), e, depois de baixar hirtamente a cabeça, saiu sem
dizer outra palavra.
«Claro que julgámos ter perdido Schramm», escreveu Liebknecht. «No
dia seguinte, estávamos nós ainda a falar tristemente dele, a porta abriu-se
de repente e lá entra o Schramm de cabeça Ugada, mas a rir-se. Contou-nos
que tinha recebido um tiro de raspão que o atordoara e que, ao recuperar os
o MEGALOSSAURO s * ^ 147

sentidos, se viu acompanhado da sua testemunha e do médico perto do mar.»


Assumindo que o tiro tinha sido fatal, WiUich e Barthélémy tinham toma-
do o vapor de regresso em Ostende.
E assim terminou o sonho de Marx de dirigir a Liga Comunista a partir de
Inglaterra. Na sua reunião final a 15 de Setembro de 1850, propôs que o
Comité Central fosse transferido para Colónia, pois os agitadores em Londres
eram incapazes de proporcionar uma liderança decente. Uma boa solução —
excepto que os comunistas de Colónia já tinham problemas de sobra. Desde
o atentado contra o rei Frederico Guilherme IV que o governo prussiano
tinha redobrado a perseguição aos indivíduos subversivos e, no Verão de
1851, todos os 11 membros do Comité Central de Colónia se encontravam
na cadeia à espera de serem julgados por conspiração. O pobre velho Marx,
que esperava uma folga bem merecida, foi relutantemente arrastado no caso
quando começou a tentar pressionar as autoridades e a protestar em nome dos
«conspiradores» alemães. Não se tratou de simples altruísmo: para seu de-
sespero, tinha sido apontado pelo promotor da justiça como o cérebro por
detrás dos maquiavélicos planos dos réus. Trabalhou dia e noite, organizando
comités de defesa, angariando fundos e escrevendo cartas indignadas para
os jornais. «Foi instalado um escritório completo em nossa casa», contou
Jenny a uma amiga. «Duas ou três pessoas escrevem, outras fazem recados
e outras ainda tentam arranjar dinheiro para que os que escrevem possam
sobreviver e consigam provar ao mundo que a administração é culpada dos
escândalos mais ultrajantes. E, entretanto, os meus três alegres filhos cantam
e assobiam até serem severamente repreendidos pelo pai. Que confusão!»^^
Sete dos 11 acusados foram parar à prisão. A Liga Comunista estava ani-
quilada e muitos anos se passariam antes de Marx se juntar a qualquer ou-
tra organização. Compreensivelmente fatigado de comités, sociedades e li-
gas, as quais tanto exigiam e obtinham tão poucos resultados, retirou-se para
a sala de leituras do Museu Britânico, a dez minutos a pé da rua Dean, e
dedicou-se à ambiciosa tarefa de produzir uma explicação compreensiva e
sistemática da economia poKtica — um projecto monumental que viria a ser
intitulado O Capital.

No final de>l 850 — após passarem cinco miseráveis meses na rua Dean,
64 — Karl e Jenny encontraram alojamento a uma centena de metros. Era
no último andar do número 28 e tinha duas divisões. Actualmente, o prédio
é ocupado por um elegante restaurante cujo patrão é o temperamental
148^^ KARL MARX

cozinheiro Marco-Pierre White; uma pequena placa azul na parede, mandada


afixar pelo defianto Conselho Municipal da Grande Londres, assinala que
«Karl Marx (1818-1883) viveu aqui de 1851 a 1856». Este é o único mo-
numento oficial aos seus 34 anos passados em Inglaterra, país que nunca
soube se devia sentir orgulho, ou vergonha, pela sua ligação com o pai da re-
volução proletária. De forma bastante apropriada, as datas dessa placa são
incorrectas.
O annus horrihilis estava quase terminado, mas ainda tinha umas quantas
crueldades para infligir. Duas semanas antes dos Marx terem mudado para
a rua Dean, 28, o seu pequenino Heinrich Guido «Fawkesy» morreu subi-
tamente após uma crise de convulsões. «Ainda há pouco ria e brincava», con-
tou Marx a Engels. «Podes imaginar como nos encontramos todos aqui. A
tua ausência neste momento particular faz-nos sentir muito sozinhos.»^^
Jenny ficou de cabeça perdida, «num perigoso estado de excitação e exaus-
tão», enquanto Karl exprimiu o pesar que sentia em estilo característico
denunciando a perfídia dos seus camaradas. Desta vez, o alvo principal foi
Conrad Schramm, o qual, há apenas umas semanas, tinha arriscado a vida
para defender a honra de Marx.
«Durante dois dias inteiros, 19 e 20 de Novembro, não apareceu em nossa
casa», escreveu raivosamente Marx a Engels, «veio finalmente por uns ins-
tantes e voltou a desaparecer depois de fazer uma ou duas observações im-
becis. Tinha-se oferecido para nos acompanhar no dia do funeral; chegou
uns minutos antes da hora marcada, não pronunciou uma palavra acerca da
cerimónia, mas disse a minha mulher que tinha de se ir embora à pressa por
causa de um jantar com o irmão.»^'* Schramm juntou-se, assim, a uma longa
e sempre crescente lista de traidores. Rudolf Schramm, irmão de Conrad, já
lá estava incluído por ter tido o atrevimento de organizar uma reunião de
alemães em Londres sem convidar os associados de Marx e Engels.
Outro dos escorraçados era Eduard von Müller-Tellering, antigo corres-
pondente da Neue Kheinische Zeitung, conhecido por ser «um zaragateiro de
primeira classe» que tinha, contudo, encontrado alguém à sua medida quando
certa vez desafiara Marx. Como acontece a maior parte das vezes com es-
tas vendetas, o casus belli oú^nú era insignificante. Sem aviso prévio, TeUerin
pediu uma entrada a Engels para um baile organizado pela Associação
Educativa dos Trabalhadores Alemães; Engels, ao explicar-lhe que já era
demasiado tarde, não pôde resistir e fez-lhe notar que ele nunca tinha ido às
reuniões da Associação nem sequer fora buscar o seu cartão de membro —
o MEGALOSSAURO o<ÇJ» 149

«ainda anteontem, um tipo na mesma situação foi expulso da Associação».


Pouco tempo depois e aceitando a sugestão, a «corte de honra» da Associa-
ção, presidida por WiUich, rescindiu a adesão de Teilering. Este reagiu lan-
çando ataques difamadores à cuque Marx-Engels — ou, como é hoje em dia
frequentemente chamada — o Partido Marx.
Nessa altura, o chefe do partido em pessoa entrou na refrega. «Se fosses
h o m e m para aceitar, desafiava-te agora mesmo pela carta que escreveste
ontem à Associação dos Trabalhadores», rugiu Marx. «Espero por ti onde
quiseres para te arrancar a hipócrita máscara de fanatismo revolucionário
atrás da qual tens, até agora, sabido tão bem ocultar os teus interesses mes-
quinhos. A tua inveja, a tua vaidade sem limites e o teu raivoso desconten-
tamento pela falta de apreço que o m u n d o tem pelo génio — falta de apre-
ço essa que começou no dia em que não passaste nos exames.»^^ Tinha sido
Marx quem encorajara as ambições jornalísticas de Teilering e o recomen-
dara à Associação; era agora Marx quem mandava o infiel servidor para as
mais profundas trevas. Após um contra-ataque final — u m panfleto de his-
téricos insultos anti-semitas — , Teilering emigrou para os Estados Unidos
e nunca mais se ouviu falar dele.
Marx adorava conflitos e estava sempre alerta a qualquer provocação
verdadeira ou imaginária. TeUering e Rudolf Schramm eram «uns desgraça-
dos»; os Kderes da Associação Democrática — grupo rival da Associação
Educativa dos Trabalhadores Alemães — eram «charlatães e vigaristas»;
outro grupo de refugiados recentemente chegados era «um enxame de de-
mocratas velhacos». Se esses desgraçados e velhacos eram tão insignifican-
tes, poder-se-á perguntar, porque não os ignorava? Quando, certa vez, foi
difamado na Suíça por um obscuro político chamado Karl Vogt, tinha real-
mente de redigir uma polémica de 200 páginas — Herr Vogt— como res-
posta? Marx não era o único que antipatizava com o fanfarrão e vaidoso
poeta revolucionário, Gottfried Kinkel, mas mais ninguém achou necessá-
rio reagir aos seus comentários absurdos através de um calhamaço de cem
páginas escabrosamente trocistas intitulado Os Grandes Homens do Exílio.
Sempre que admiradores lhe sugeriam que um leão não devia perder tem-
po a lutar com insectos, Marx respondia que a denúncia impiedosa de char-
latães utópicos não era inferior ao seu dever de revolucionário: <A. nossa
missão é criticar implacavelmente e dirigir as nossas críticas mais contra os
nossos pretensos amigos do que contra os nossos inimigos declarados.»
1 5 0 ^ ^ KARI.MARX ' :•

Além do mais, ele gostava daquele desporto. Basta 1er alguns do fortuitos
retratos traçados em Os Grandes Homens do'Exíliopara ver o ptíLzer que ele tinha
em dar cabo deles. Rudolf Schramm: «Um homúnculo gabarolas e zaragateiro,
cuja lema na vida é saído do Sobrinho, de Rameau, "antes ser um faia-barato
insolente do que nada."» Gustav Struve: «Ao ver a sua aparência rugosa, os
olhos promberantes de expressão estúpida e manhosa, o brilho baço da ca-
reca e as feições meio eslavas, meio calmuques, uma pessoa não duvida de
que está em presença de um homem invulgar...» Arnold Ruge: «Não se pode
dizer que este h o m e m nobre possa ser recomendado pela sua beleza exte-
rior; os seus conhecidos de Paris resumem os seus traços eslavo-pomeranos
chamando-o "cara de fuinha"... A figura de Ruge na revolução alemã asseme-
Iha-se a certas ruas onde se pode 1er o seguinte aviso: "Pode-se urinar aqui."»
Longe de lhe tirar o vigor, estas ferozes tiradas renovavam-no. A raiva
vulcânica que jorrava sobre deviacionistas obscuros tinha a mesma paixão
que iluminava as suas denúncias do capitalismo e das suas contradições. Para
dar o seu melhor, Marx necessitava de se manter em estado de fúria eferves-
cente — para enfrentar as numerosas catástrofes domésticas, a sua péssima
saúde ou os idiotas que ousavam opor-se à sua sabedoria superior. A o escre-
ver O Capital, Marx jurou que os burgueses haveriam de ter bons motivos
para se lembrar dos furúnculos que lhe causavam dores e o mantinham de
mau humor. Os Vogt e os Kinkel serviam a mesma finalidade — não para
matar mosquitos a tiro de canhão mas para supurar os furúnculos no rabo.
As suas condições de vida talvez tivessem sido expressamente concebi-
daspara não o deixar ser feliz. A mobília e as instalações do seu apartamento
com duas divisões estavam partidas ou estragadas e tudo estava coberto por
uns centímetros de poeira. N o meio da sala da frente, a qual dava para a rua
Dean, havia uma grande mesa com u m oleado onde se encontravam os
manuscritos, livros e jornais de Marx bem como os brinquedos das crianças,
trapos e o cesto de costura da mulher, várias chávenas rachadas, facas, gar-
fos, lâmpadas, um tinteiro, cálices, cachimbos de cerâmica holandeses e uma
espessa camada de cinza de tabaco. Alguém que quisesse sentar-se corria
perigo. «Aqui está uma cadeira só com três pernas e as crianças têm estado
a brincar a cozinhar numa outra... Esta cadeira aqui tem por acaso quatro
pernas», contou um visitante. «É a que é oferecida às visitas, mas está suja dos
cozinhados das crianças; se uma pessoa se senta, arrisca um par de calças.»
U m dos raros espiões da polícia prussiana que entrou nesta gruta cheia
de fumo ficou chocado pelos hábitos desleixados de Marx:
o MEGALOSSAURO a ^ 151

«Leva a existencia de um autentico intelectual boémio. Lavar-se, pen-


tear-se e mudar de roupa são coisas que mal faz. E gosta de embebedar-
-se. E m b o r a passe dias seguidos sem fazer nada, trabalha infatigavel-
mente dia e noite quando tem trabalho. N ã o tem horas para dormir e
acordar. Fica muitas vezes levantado toda a noite e, depois, deita-se todo
vestido no sofá a meio do dia dormindo até à noite sem que as idas e
vindas de toda a gente o incomodem.»^''

A relutância de Marx em ir para a cama parece ser razoável, pois toda a


família — incluindo a governanta, Helene «Lenchen» D e m u t h — tinha de
dormir num pequeno quarto no fundo do prédio. Como é que Karl e Jenny
arranjaram privacidade para ter filhos continua a ser um mistério; presume-
-se que se aproveitavam das alturas em que Lenchen levava as crianças a
passear. Com Jenny doente e Karl inquieto, a tarefa de preservar qualquer
aparência de ordem doméstica recaía na criada. «Oh, se soubesses c o m o
tenho saudades tuas e das crianças», escreveu Jenny a Karl aquando da in-
frutífera expedição à Holanda em 1850. «Sei que tu e a Lenchen tratarão
deles. Sem a Lenchen, não me sentiria tranquila.»
E Lenchen estava, de facto, a cumprir os deveres de Jenny — incluindo
os do leito conjungal. Nove meses mais tarde, no dia 23 de J u n h o de 1854,
deu à luz u m menino. N a certidão de nascimento de Henry Frederick D e -
muth, conhecido mais tarde por Freddy, o espaço destinado ao n o m e e à
profissão o pai foi deixado em branco. A criança foi pouco depois adoptada,
provavelmente por um casal da classe operária, os Lewis, que viviam na parte
leste de Londres. (As provas são apenas circunstanciais: o filho de Lenchen
mudou o nome para Frederick Lewis Demuth e passou toda a vida adulta
em Hackney. Tornou-se um excelente torneiro mecânico e trabalhou em
várias fábricas de East End; apoiou entusiasticamente o sindicato e foi
membro-fundador do Partido Trabalhista de Hackney. Recordado pelos
colegas como um h o m e m sossegado que nunca falava da família, morreu a
28deJaneirodel929).
Como Freddy nasceu no pequeno quarto do fundo na rua Dean, 28 —
e a barriga inchada de Lenchen daria certamente nas vistas — esta concep-
ção aparentemente milagrosa não pôde ser ocultada de Jenny. Mas, apesar
de profundamente chocada e zangada, ela concordou que tal notícia, caso
fosse revelada, proporcionaria munições letais aos inimigos de Marx. E assim
152^^ KARI.MARX

começou uma das mais bem sucedidas simulações jamais organizadas para
o bem da causa comunista. Correram muitos boatos de que Marx era pai de
um filho uegítimo, mas a primeira referência pública à verdadeira paternidade
de Freddy só surgiu em 1962, quando o historiador alemão, Werner Blumen-
berg publicou um documento encontrado nos vastos arquivos marxistas
no Instituto Internacional de História Social, em Amesterdão. Trata-se de
uma carta escrita a 2 de Setembro de 1898 por Louise Freyberger, amiga de
Helene D e m u t h e governanta de Engels, a descrever a confissão do patrão
no seu leito de morte:

«Soube pela boca do próprio General (Engels) que Freddy Demuth


é filho de Marx. Tussy (a filha mais nova de Marx, Eleanor) importunou-
-me tanto que eu acabei por lhe perguntar directamente. O General fi-
cou muito surpreendido por Tussy se agarrar tão obstinadamente àquela
ideia e disse que, caso fosse necessário, eu deveria desmentir os mexeri-
cos que ele repudiara o filho. Lembra-te de que eu te falei disto muito
antes de o General morrer.
O facto de Frederick Demuth ser filho de Karl Marx e Helene De-
muth foi novamente confirmado por uma declaração feita pelo General
poucos dias antes de morrer ao Sr. Moore (Samuel Moore, tradutor do
Manifesto Comunista e de O Capital) que, a seguir, foi ter com Tussy a Or-
pington e lhe contou. Tussy contestou que o General estava a mentir e
que ele mesmo tinha sempre admitido que era o pai. Moore voltou de
Orpington e interrogou de novo o General, mas este insistiu que Freddy
era filho de Marx e disse: "A Tussy quer fazer do pai u m ídolo."
N o domingo, quer dizer, um dia antes de morrer, o General escreveu
isso mesmo numa ardósia para Tussy ver, e esta saiu do quarto tão per-
turbada que se esqueceu do ódio que me tinha e chorou amargamente ao
meu ombro.
O General deu-nos... a permissão de usar esta informação apenas se
ele fosse acusado de ter repudiado Freddy. Disse que não queria que o
nome dele fosse conspurcado, sobretudo porque já não podia fazer bem
a ninguém. Ao substitoir-se a Marx, tinha-o salvo de um conflito domés-
tico. À parte nós, o Sr. Moore e os filhos do Sr. Marx (julgo que Laura
sabia da história, embora talvez não a tivesse ouvido bem contada), os
- únicos que sabiam que Marx tinha um filho eram Lessner e Pfänder.
Depois da cartas do Freddy serem publicadas, Lessner disse-me: "Claro
o MEGALOSSAURO 4, ¿ 153

que o Freddy é irmão da Tussy, todos nós o sabemos, mas nunca soube-
mos onde é que ele foi criado.
Freddy parece-se cómicamente com Marx e, com aquela cara judia e
espessa cabeleira preta, e só por cegueira preconceituosas é que se p o -
dia ver nele qualquer semelhança com o General. Vi a carta que Marx
enviou para Manchester ao General naquela altura (o General, então,
ainda não vivia em Londres), mas acho que o General a destruiu, c o m o
tantas outras que eles trocaram.
É tudo o que eu sei sobre o assunto. Freddy nunca soube quem era
o seu pai verdadeiro, pois nem a mãe nem o General lhe contaram...
E s t o u a 1er outra vez o que me escreveste sobre a questão. Marx
sempre esteve consciente da possibilidade de um divórcio, pois a mulher
era muito ciumenta. N ã o gostava da criança e, se ousasse fazer qualquer
coisa por ela, o escândalo seria enorme.»^^

Desde que este documento foi tornado público em 1962 que a maior
parte dos historiadores marxistas o aceitam como prova conclusiva da infi-
delidade de Marx. Mas há uma ou outra pessoa céptica. A biógrafa de
Eleanor Marx, Yvonne Kapp, descreveu a carta de Freyberger como sendo
«uma fantasia» que «em muitos pontos não é críveb>; n o entanto, concede,
«não pode haver nenhuma dúvida aceitável de que ele (Freddy) era filho de
Marx»^^. O professor Terrell Carver, autor de uma biografia de Engels, vai
muito mais longe. Recusa acreditar que Marx ou Engels pudessem ser pais
de Freddy e descarta a carta como sendo falsa — «uma falsificação maqui-
nada, possivelmente por agentes nazis, para desacreditar o socialismo»^'.
Assinala que a versão dos arquivos de Amesterdão é uma cópia escrita à
máquina, cuja proveniência é desconhecida e que o original (se jamais exis-
tiu) nunca foi encontrado.
É certo que algumas das alegações feitas no documento desafiam toda a
lógica ou senso comum. Tome-se a «carta» que Marx é suposto ter enviado a
Engels na altura do nascimento e que Louise Freyberger diz ter visto. Como
ela nasceu em 1860 e só foi trabalhar para Engels em 1890, isso significa que
ele deve tê-la guardado entre os seus papéis durante muitas décadas. Porquê,
então, tendo-se dado ao trabalho de a guardar durante tanto tempo, destruiu
ele a única prova que «desmentiria os mexericos que ele repudiara o filho?»
Há também uma óbvia implausibilidade psicológica. Quando Jenny Marx
descobriu que a criada e o marido andavam a fazer mimos u m ao outro por
154 - - « KARLMARX

detrás das suas costas — enquanto ela própria estava grávida — devia ter
imediatamente posto a traiçoeira Lenchen fora de casa ou, pelo menos, olhá-
-la com desconfiança. N o entanto, as duas mulheres permaneceram amigas
o resto da vida. «No que respeita à identidade do pai, investigações feitas
sobre a vida de Frederick Demuth não deram qualquer resultado, e também
não existem dados que confirmem a alegada declaração de Engels que ele
tinha aceite a paternidade», conclui o professor Carver. «A correspondên-
cia e memórias que restam não fornecem quaisquer elementos positivos
quanto à história contada por Louise Freyberger.»-^"
Isso não é bem verdade. Embora os papéis de Marx e Engels tenham sido
cuidadosamente esquadrinhados pelos seus executores que não desejavam
embaraçar, ou injuriar, estas duas grandes figuras do comunismo, alguns
fragmentos reveladores sobreviveram. O primeiro é uma carta de Eleanor
Marx à irmã Laura, datada de 17 de Maio de 1882, a qual prova que as filhas
de Marx tinham aceite a história da paternidade de Engels: «Freddy portou-
-se admiravelmente em todos os aspectos e a irritação de Engels contra ele
é tão injusta como compreensível. Penso que nenhum de nós gosta de en-
frentar os nossos erros passados em carne e osso. Sou tomada por um sen-
timento de culpa sempre que vejo Freddy. A vida desse homem! Ouvi-lo
contá-la entristece-me e envergonha-me.» Dez anos mais tarde, a 26 de Julho
de 1892, Eleanor voltou ao mesmo assunto: «Talvez eu seja muito "sentimen-
tal".. . mas não posso deixar de sentir que Freddy sofreu muitas injustiças
durante toda a sua vida. N ã o é maravilhoso quando se pode olhar as coisas
de frente! Como é raro praticar todas as boas coisas que pregamos — aos
outros.» A luz da carta anterior, a zombaria é dirigida a Engels.
Tanto Karl Marx como a mulher deixaram pequenas, mas reveladoras
indicações quanto à verdade. O ensaio autobiográfico de Jenny, Breve Esbo-
ço de Uma Vida Plena, escrito em 1865, inclui uma curiosa revelação entre
parênteses: «No começo do Verão de 1851, aconteceu uma coisa que, em-
bora tenha contribuído para aumentar as nossas preocupações, pessoais e
outras, não desejo relatar aqui em pormenor.» O evento em questão só pode
ter sido o nascimento de Freddy. Se Helene Demuth tivesse sido engravidada
por outro amante, por que é que isso teria causado um pesar tão pessoal e
durável a Jenny?
Mais estranho é uma carta enviada por Marx a Engels, a 31 de Março de
1851, quando Helene estava grávida de seis meses. Depois de muitas épicas
resmungadelas quanto às suas dívidas, credores e a mãe avarenta, Marx
o MEGALOSSAURO ^Çj 155

acrescenta: «Tens de admitir que isto é o raio de uma alhada e que estou
enfiado até ao pescoço neste lodaçal pequeno-burguês... Mas, finalmente,
para dar à situação uma reviravolta tragicómica, há um mystère que te vou
contar en très peu de mots. Desculpa, mas acabei de ser interrompido e tenho
de ir tratar da minha mulher. O resto, em que tu também estás, seguirá na
próxima.» Mas, quando a carta seguinte chegou dois dias depois, ele já tinha
mudado de ideias. «Não te vou contar nada sobre o mystère porque, coûte que
coûte (custe o que custar), virei ver-te no fim de Abril. Tenho de fiagir daqui
por uma semana.»
Que outro mystère poderia ser senão a gravidez de Lenchen? O malicio-
so uso de eufemismos firanceses prova-o sem sombra de dúvidas, pois era
a sua linguagem habitual quando se sentia ginecológicamente embaraçado.
(Durante os vários períodos de gravidez de Jenny, dizia a Engels que ela es-
tava num «état trop intéressant>>. A sua relutância para dar mais pormenores por
escrito é sobejamente explicada mais tarde na mesma carta: «A minha mu-
lher deu à luz uma filha e não ViVa garçon. E, o que é pior, está em muito mau
estado.» Quem, ¥rau Marx ou a recém-nascida, Franziska? Provavelmente
ambas. Pelo Uvro de memórias de Jenny, sabemos que, no começo do Verão
de 1851, ela estava deprimida, e a carta de Marx de 31 de Março confirma
isso: <A- minha mulher adoeceu no dia 28. Embora o descanso lhe tenha feito
bem, está agora bastante doente, mais por razões domésticas do que físicas.»
E m princípios de Agosto, com duas mães a partilhar o apartamento
atulhado da rua Dean, os outros refugiados começaram a fazer mexericos
sobre o pai Marx. «As circunstâncias em que vivo são horrorosas», confes-
sou ao seu amigo Weydemeyer. «Se isto continua assim durante muito mais
tempo, a minha mulher acabará por sucumbir. As preocupações constantes
e a luta do dia a dia dão cabo dela. E, ainda por cima, há as infâmias dos meus
oponentes que, até agora, nunca tentaram atacar-me na minha essência, mas
que tentam vingar-se da sua impotência lançando suspeitas sobre a minha
reputação e espalhando as mais incríveis calúnias contra mim. Willich,
Schapper, Ruge e o resto da canalha democrática.»
Rudolf Schramm, irmão do duelista Conrad, andava a cochichar por en-
tre os amigos que «qualquer que seja o resultado da revolução, Marx est2iperdu.y>
«Eu cá, claro está, não m e ralo nada», escreveu Marx. «Nem por u m
instante deixo que isso interfira com o meu trabalho, mas, c o m o hás-de
compreender, a minha mulher, que está doente e é exposta às mais desagra-
dáveis dificuldades domésticas de manhã à noite, já não suporta respirar as
156 < ^ KARL MARX

infectas exalações que a pestilenta cloaca democrática lhe administra através


dos seus estúpidos boatos. A falta de tacto de alguns indivíduos quanto a isto
pode ser colossal.»^^
Tais palavras só podiam ter a ver com a misteriosa concepção do peque-
nino Freddy Demuth. Vale a pena notar que, embora deplorando a falta de
tacto daqueles que espalham os «incríveis» boatos, Marx não os nega.
A situação dificilmente podia piorar, mas piorou. N a Páscoa de 1852,
pouco depois do seu primeiro aniversário, Franziska teve uma grave bron-
quite e, a 14 de Abril, Marx escreveu uma breve carta a Engels: «Caro Fre-
derick, apenas umas curtas linhas para te informar que a nossa filha pe-
quenina morreu esta manhã à uma e um quarto.» Esta fria mensagem está
longe de descrever a agonia e o desespero que reinavam em casa dos Marx.
Temos, para isso, de nos debruçar sobre o Brepe Esboço de Uma \^ida Viena, de
Jenny: «Ela sofreu horrivelmente. Quando morreu, deixámos o seu pequenino
corpo sem vida no quarto do fundo e fizemos as camas no chão da sala da
frente. Os nossos três filhos ainda vivos deitaram-se ao nosso lado e todos
nós chorámos o anjinho cujo corpo lívido se encontrava no quarto ao lado.»
Os Marx nem sequer tinham dinheiro para contratar os serviços de uma
agência funerária, mas um vizinho francês teve pena deles e emprestou-lhes
duas libras. «O dinheiro foi utilizado para pagar o caixão no qual a minha filha
agora repousa em paz. N ã o tinha berço quando chegou a este m u n d o e,
durante muito tempo, foi-lhe recusado um lugar onde pudesse finalmente
repousar.»
Há pouco mais de dois anos que Marx vivia em Londres e já tinha per-
dido dois filhos. Engels identificou o motivo: «Se, pelo menos», lamentava
na sua carta de pêsames, «houvessem meios para tu e a tua família se muda-
rem para alojamentos mais espaçosos num bairro mais salubre!»"*^ Quer tenha
sido, ou não, a penúria a matar Franziska, o certo é que dificultou o enter-
ro. Ao longo das semanas anteriores à morte da filha, Marx tinha esperado
poder estabilizar as finanças através de doações provenientes de simpatizan-
tes americanos, mas, na própria manhã do funeral, recebeu uma mensagem
de Weydemeyer, o qual vivia agora em Nova Iorque, a dizer-lhe para não
contar com essa ajuda. «A carta de Weydemeyer desmoralizou toda a gente
aqui, em particular a minha mulher», disse Marx a Engels. «Há já dois anos
que ela vê todas as minhas tentativas serem goradas.»
OS L O B O S F A M I N T O S

Certa manhã de Abril de 1853, um padeiro dirigiu-se ao número 28 da


rua Dean para dizer aos seus inquilinos que não lhes forneceria mais pão até
as contas que eles lhe deviam serem pagas. Q u e m veio à porta foi Edgar
Marx, um garoto bochechudo de seis anos que já era um espertalhão. A pe-
quena estatura de Edgar tinha-lhe valido a alcunha de Musch (mosca) na in-
fância, mas, mais tarde, passarain a chamá-lo Coronel Musch em homenagem
às suas tácticas.
— A Sr.'' Marx está em casa? — perguntou o padeiro.
— N ã o — respondeu manhosamente o miúdo e, depois, agarrando em
três pães, fugiu.
O pai de Musch tinha imenso orgulho no rapazinho, mas não podia es-
perar que os credores se deixassem enganar tão facilmente. A o longo dos
anos passados em Soho, os Marx viveram em permanente estado de sítio:
agentes a soldo da Prússia espiavam-nos ostensivamente na rua, tomando
notas das idas e vindas, enquanto açougueiros, padeiros e oficiais de diligên-
cias lhes batiam à porta.
As cartas de Karl Marx a Engels são uma constante litania de desgraças
e miséria. «Há uma semana cheguei ao agradável ponto de não poder sair à
rua por os meus casacos se encontrarem n o prego e já não posso comer
carne por falta de- crédito. E m b o r a pareça fútil, receio bem que isto tudo
venha a dar um escândalo» (27 de Fevereiro de 1852). «A minha mulher está
doente, a pequenina Jenny também e Lenchen sofre de uma espécie de fe-
bre nervosa, mas não posso chamar o médico porque não tenho dinheiro para
comprar remédios. N o s últimos oito a dez dias, toda a família se aumenta
158*^ KARLMARX

unicamente de pão e batatas, mas duvido que hoje consigamos arranjar o que
quer que seja para comer... Como é que eu posso sair desta confusão infer-
nal?» (8 de Setembro de 1852). «Os nossos infortúnios atingiram o seu cH-
max» (21 Janeiro de 1853). «Há quase duas semanas que não temos um tostão
em casa» (8 de Outubro de 1853). «Só à loja de prego tenho agora de pagar
25 por cento (do dinheiro da casa) e, regra geral, nunca consigo recuperar
as coisas por causa cautelas atrasadas... A total falta de dinheiro é o mais
horrível — à parte o facto das necessidades familiares não cessarem nem um
instante — pois o Soho é um bairro infectado pela cólera e as pessoas es-
ticam o pernil a torto e a direito (uma média de três pessoas por casa na rua
Broad) e as "vitualhas" são a melhor defesa contra essa coisa monstruosa»
(13 de Setembro de 1854). «Enquanto estava no andar de cima a escrever a
minha última carta para ti, a minha mulher era atacada lá em baixo por lo-
bos famintos que, a pretexto dos "tempos difíceis", exigem que ela pague o
dinheiro que não tem» (8 de Dezembro de 1857). «Acabei de receber um ter-
ceiro efinal aviso do mesmo cobrador de impostos. Se não pagar até segunda-
-feira, chamam a polícia cá a casa. Por conseguinte, envia-me umas libras se
te for possível...» (18 de Dezembro de 1857).
Essas poucas libras somadas perfaziam uma boa maquia. E m 1852, um
dos mais miseráveis anos de Marx, ele recebeu um total de 150 libras de
Engels e outros apoiantes — o suficiente para uma família da classe média
viver com certo conforto. Nesse Outono, foi contratado para ser o corres-
pondente europeu do New York Daily Tribune, o joi^nal com maior tiragem do
mundo. Enviava regularmente dois artigos por semana a duas libra cada e,
embora os seus honorários baixassem ligeiramente depois de 1854, nessa
altura também recebia 50 libras ao ano pelas suas contribuições para o Neue
Olãer-Zeitung, em Breslau. E m resumo, a partir de 1852 tinha um rendimento
de, pelo menos, 200 libras e a renda anual do apartamento na rua Dean era
de apenas 22 libras. Porquê, então, andava sempre tão falido?
Se Marx fosse o despreocupado boémio descrito em tantos relatórios da
poKcia, talvez se desembaraçasse bastante bem. Mas a verdade é que perten-
cia à classe da gente bem-educada na penúria, desejosa de manter as aparên-
cias e recusando abdicar dos hábitos burgueses. Durante a maior parte da
década de 1850, mal se podia dar ao luxo de alimentar os próprios e, no
entanto, insistia em ter um secretário, o jovem filologista alemão, Wilhelm
Pieper, muito embora Jenny Marx lhe pedisse encarecidamente para ser ela
a exercer essas funções.
OS LOBOS FAMINTOS a<GJ 159

Pieper, descrito por Jenny como um «pateta desleixado», conseguia a rara


proeza de ser dogmático e frívolo ao mesmo tempo. E também não tinha
tacto nenhum, era extravagantemente gabarola e insaciavelmente libidino-
so. Algumas visitas femininas dos Marx eram reduzidas a lágrimas pelas suas
entediantes arengas políticas — e outras pela sua impudente lubricidade.
Considerava-se «uma mistura de Byron e de Leibniz»^ mas era, sobretudo,
um inútil secretário. A sua principal função era transcrever e traduzir os
artigos jornalísticos de Marx, mas as suas traduções tinham tantos erros que,
normalmente, Engels tinha de as refazer do princípio ao fim. De qualquer
modo, Marx sentiu-se suficientemente à vontade para começar a escrever em
inglês a partir da Primavera de 1853. «Não consigo perceber para que é que
ainda precisas dele», resmungava Engels numa carta^.
No fim desse Verão, Pieper passou duas semanas no hospital onde um
pequeno letreiro afixado aos pés da cama anunciava do que se tratava a quem
se desse ao trabalho de o 1er: «Wilhelm Pieper, syphilis secundarius.» Apesar de
ter prometido ser mais selectivo no fumro, as suas conquistas indiscriminadas
continuaram e, pouco tempo depois, foi parar novamente ao hospital.
Certo dia, chegou à rua Dean uma carta dirigida a ele. Estava escrita em
letra feminina e solicitava um encontro. Como o nome não lhe dizia nada,
Pieper p^ssou-a a Jenny Marx que reconheceu logo a assinatura — era a
antiga ama-de-leite, «uma velha gorda irlandesa». Karl e Jenny fizeram tro-
ça dele por causa desta sua nova admiradora, mas, segundo Marx notou, «ele
foi encontrar-se com a grande vaca»^. Todavia, umas semanas mais tarde,
Pieper declarava o seu amor infinito por a filha de um merceeiro da zona sul
de Londres, a qual era descrita por Marx como sendo uma vela de óculos —
«toda ela é verde, mais para o verdete que vegetal e, ainda por cima, sem carne
nenhuma»'*. Veio a saber-se que a principal razão do namoro era porque
Pieper tencionava cravar 20 libras ao pai, mas, como habitualmente acontecia
com todos os seus esquemas, tudo deu para o torto: o merceeiro recusou
emprestar-lhe um tostão que fosse, e a apaixonada filha foi a correr à rua
Dean propor-lhe que fugissem juntos imediatamente.
Pieper desaparecia às vezes durante semanas a fio, quer em perseguição
de um corpete jeitoso quer para tentar uma nova carreira — como jornalis-
ta, revisor de provas, funcionário municipal, vendedor, mestre-escola —, mas
os seus sonhos de amor e dinheiro nunca se concretizaram; regressa, assim,
à rua Dean em estado de meter dó, suplicando abrigo e sustento. «Tenho,
hélàs, outra vez, o Pieper às costas», gemia Marx em Julho de 1854. «Chegou
160^6 KARL MARX

com ar de leitão meio esfomeado depois de ter passado duas semanas com
uma puta que ele diz ser um bijou. Gastou umas 20 libras e, agora, ambas as
bolsas estão igualmente vazias. Com este tempo é uma chatice ter o tipo a
andar por aqui de manhã à noite, pois perturba o meu trabalho.»^ Por causa
das condições no apartamento, Pieper tinha de partilhar uma cama como
Marx. E, ainda pior, Pieper insistia em tocar música de Wagner — «a músi-
ca do futuro» — , que Marx achava horrível.
E m 1857, Pieper anunciou que lhe tinham oferecido o cargo de profes-
sor numa escola particular em Bognor, esperando, aparentemente, que Marx
insistisse para que ele ficasse a troco de um melhor salário. Finalmente,
contudo, o truque foi descoberto e Jenny tomou o seu lugar. «Transpirou que
a sua "indisponibilidade" era apenas fruto da sua imaginação», escreveu
Marx, esquecendo-se de acrescentar que ele também tinha caído na esparrela.
«A minha mulher desempenha perfeitamente as funções de secretária sem
nenhum dos incómodos provocados pelo nobre jovem... N ã o preciso dele
para nada 6
Como Jenny já tinha demonstrado as suas capacidades em várias ocasiões,
quando Marx estava doente e Pieper andava à caça às putas, porque levou
Marx tanto tempo a dar-se conta disso? Há anos que Pieper o irritava, chegan-
do em privado a chamar-lhe palhaço com cabeça de sumaúma e asno pateta.
«A combinação de diletantismo e ar sentencioso, insipidez e pedantismo,
torna-o ainda mais difícil de aturar. E, como acontece muitas vezes com este
género de rapazes, por debaixo de um temperamento aparentemente radioso
esconde-se muita irritabilidade,mudanças bruscas de humor e má-fé.»^
Desde o princípio que o emprego de Pieper constitma uma extravagân-
cia desnecessária, mas Marx não o tinha despedido porque achava inconce-
bível que u m h o m e m na sua posição não tivesse um secretário confidencial
— bem como férias à beira-mar, lições de piano para as crianças e todas as
outras dispendiosas marcas de respeitabilidade. Por mais que os seus bolsos
estivessem vazios, recusava-se a aceitar um modo de vida «subproletário»,
como dizia. Coisas que para outros refugiados pudessem ser consideradas
luxos, tornaram-se, para ele, «absolutas necessidades» enquanto exigências
mais imperativas, c o m o pagar a mercearia, eram tratadas c o m o extras
opcionais.
Estas prioridades invertidas são bastante evidentes numa suplicante carta
enviada a Engels em Junho de 1854, quando Jenny estava em convalescen-
ça e o Dr. Freund, o médico dela, exigia o pagamento dos seus honorários.
OS LOBOS FAMINTOS -^-'í^* 161

«Estou metido num lindo sarilho», escreveu Marx, explicando que estava
falido. «Tinha 12 libras para pagar as contas de casa, mas o que costumo
receber foi drasticamente reduzido por causa de uns artigos que acabei por
nãojsscrever. Só a factura da farmácia devorou grande parte do orçamento.»^
A compaixão motivada por este apelo é sabotada na frase seguinte em
que ele menciona que Jenny, os filhos e a governanta vão passar umas férias
de 15 dias numa vivenda em E d m o n t o n — depois das quais, «ela talvez se
sinta suficientemente restabelecida pelo ar do campo para fazer a viagem até
Trier». Se custava tanto a Marx pagar ao médico, deve ter pensado Engels,
como é que ele podia fazer a deslocação à Alemanha? A mesma pergunta
ocorreu certamente aos seus pacientes credores quando souberam que Jenny
tinha adquirido uma nova colecção de vestidos para a viagem. Marx fingiu
não compreender a indignação deles, e insistiu que a filha de u m barão ale-
mão «não podia muito naturalmente chegar a Trier em farrapos».
Era ridiculamente orgulhoso por se ter casado com uma mulher fina. Daí
os cartões-de-visita que tinha mandado imprimir para ela {«Madame ]ç.nPiY
Marx, née baronesa de Westphalen»), os quais às vezes exibia na esperança
de impressionar os comerciantes e os Tories. «O mar fez muito bem à minha
mulher», notou depois de Jenny ter gozado mais umas férias. «Conheceu, em
Ramsgate, umas requintadas e, horribile dictu (horrível de dizer) inteligentes
inglesas. Após anos passados em companhia de gente inferior, ou de nin-
guém, dar-se com pessoas da sua classe social parece fazer-lhe bem.»'^ Jenny
teve poucas oportunidades destas e Marx sentia-se culpado pelo esquálido
destino que tinha infligido à antiga princesa da alta sociedade de Trier. A
humilhação que sofrera ao ser apanhado a tentar vender a prata da família
de Jenny lembrava-lhe até que ponto tinham descido. A polícia tinha suspei-
tado, com certa razão, que um desgrenhado refugiado alemão não podia ter
adquirido legitimamente aquela herança ducal, e Marx foi preso até Jenny
convencer as autoridades da sua genuína aristocracia.
Incapaz de manter a mulher ao nível da «gente da classe dela», ele devia,
pelo menos, esforçar-se pelos filhos. As meninas tinham evidentemente de
fazer bons casamentos e, para atrair bons partidos, necessitavam de vestidos
de baile, aulas de dança e todas as outras vantagens sociais que o dinheiro
podia comprar — mesmo que, para isso, tivesse de pedir dinheiro empres-
tado a alguém. Engels, há muito habituado a ser esse alguém, nunca pôs em
causa a convicção do amigo de que valia a pena uma pessoa viver acima dos
seus meios para não perder o prestígio da casta e que, a longo termo, fazer
162 4 ^ KARL MARX ^

alarde da riqueza dava lucros. «Por mim, não me importaria de viver em


Whitechapel», assegurava Marx. «Mas, para raparigas, de modo algum seria
conveniente.»^*^. Na adolescência, as filhas de Marx frequentaram um «colégio
para meninas finas» que custava oito Kbras por trimestre e tinham Kções par-
ticulares de francês, italiano, desenho e música. «É verdade que a casa onde
vivo é demasiado cara para mim», admitiu a Engels em 1865, ano em que
mudou para uma mansão no Norte de Londres. «Mas é a única maneira das
crianças ganharem estatuto social e garantirem o seu futuro... Acho que tu
mesmo hás-de concordar que, de um ponto de vista puramente comercial,
levar uma vida proletária não seria recomendável nas presentes circunstân-
cias, muito embora se eu e a minha mulher estivéssemos só, ou se as rapa-
rigas fossem rapazes, não teria mal nenhum.»"
Nem mesmo Engels conseguia pagar os enfeites de um enxame de
debutantes casadoiras e, depois de muito matutar, decidiu que a única sal-
vação de Marx era um empréstimo da Sociedade de Seguros da Previdência
Popular: «Apesar de ter dado voltas ao miolo, não consigo pensar noutra
maneira de arranjar dinheiro em Inglaterra. Parece-me que chegou a altura
de tratares do assunto...»^^ Aparentemente, uma outra maneira óbvia —
arranjar um emprego — nem sequer lhe tinha passado pela cabeça, muito
embora o tenha recomendado em outras ocasiões a outros refugiados.
«Quem dera que os nossos rapazes em Londres arranjassem um trabalho
mais estável», disse a Marx uma vez sem querer ser sarcástico. «Pois estão a
tornar-se nuns vadios.»"
No decorrer dos seus 34 anos em Londres, houve apenas duas ocasiões
em que procurou uma forma de ganhar dinheiro. Numa carta de 1852 a
Joseph Weydemeyer, então a viver nos Estados Unidos, sabemos que Marx
foi informado acerca de «um verniz de laca recentemente inventado» por um
novo amigo, o coronel Bangya, misterioso imigrante húngaro que, mais
tarde, se veio a descobrir tratar-se de um agente secreto a soldo de metade das
cabeças coroadas da Europa. Weydemeyer deveria alugar um lugar na Feira
Industrial Internacional, em Nova Iorque, para atrair cHentes que ficariam
tão impressionados com essa invenção que «podes ganhar uma fortuna de
uma só cajadada» — e, claro está, render um bom lucro aos comanditarios
em Londres. «Responde imediatamente a dar pormenores quanto às despe-
sas que terás», aconselhava-o Marx. Nada mais se ouviu dizer quanto a esse
verniz mágico, o qual parece ter tido a mesma sorte que a engenhosa maqui-
neta de Weitiing para fazer chapéus de palha para senhoras. Dez anos mais
OS LOBOS FAMINTOS . " =163

tarde, quando as suas dívidas eram ainda maiores do que de costume, Marx,
desesperado, candidatou-se ao cargo de funcionário dos caminhos-de-ferro,
mas foi rejeitado por causa da sua letra ininteligível.
Sem o seu benfeitor, escreveu Marx, «há muito que teria sido obrigado
a começar uma "profissão'V"*. A repugnância representada por essas aspas
é quase audível. Assim sendo e graças à generosidade de Engels, podia pas-
sar a maior parte dos dias na sala de leitura do Museu Britânico a trabalhar
no seu há muito negligenciado estudo sobre economia. Após a dissolução
da Liga Comunista, em 1852, não tinha mais afazeres políticos para o dis-
trair e lidava com as suas obrigações para com o Tribune, de Nova Iorque, pas-
sando grande parte do trabalho a Engels. «Como ando muito ocupado com
a economia política, tens de me ajuda0>, pediu-lhe a 14 de Agosto de 1851.
«Escreve uma série de artigos sobre a situação na Alemanha a partir de 1848.
E m estilo descontraído e espirituoso.» Assim, a primeira série importante de
artigos assinada por Marx no Tribune — «Revolução e contra-revolução na
Alemanha», publicada em 19 episódios, entre Outubro de 1851 e Outubro de
1852 — foi, na realidade, totalmente escrita por Engels. U m artigo sobre a
guerra russo-turca, publicado sob a forma de um editorial anónimo em D e -
zembro de 1853, revelava tais conhecimentos de estratégica militar que foi
atribmdo, em Nova Iorque, a um conhecido soldado americano da época, o
general Winfield Scott. O director do jornal. Charles Dana, citou esses boa-
tos numa carta a Jenny Marx como prova do brilhantismo do marido — sem
lhe passar pela cabeça que o autor era, mais loma vez, o «General» Engels, antigo
soldado de infantaria na campanha do Paktínado.
«O Engels tem realmente muito que fazeD>, admitiu Marx, «mas como é
uma autêntica enciclopédia ambulante, é capaz, esteja bêbedo ou sóbrio, de
trabalhar a qualquer hora do dia ou da noite. Escreve depressa e tem u m
espírito diabólicamente vivo.»^^- Apesar de satisfeito por acarretar com este
fardo suplementar, Engels estava tão exausto pelas longas horas passadas na
fábrica de algodão que não se podia esperar que escrevesse tudo. N e m Marx
o queria: os numerosos e influentes leitores do Tribune— só a edição semanal
vendia mais de 200 000 exemplares — eram uma atracção irresistível para
um h o m e m acostumado a dirigir-se a audiências de uma dúzia de pessoas
numa sala do andar de cima de uma taberna londrina. Por vezes, enviava para
Manchester um esboço que, a seguir, Engels desenvolvia; outras vezes —
quando, por exemplo, o jornal queria algo sobre guerra ou a «questão orien-
164^0 KARI.MARX

tal» -— o secreto escritor-fantasma tinha de a escrever sozinho, pois Marx


«não entendia nada» dessas coisas.
No entanto, Marx merece provavelmente o crédito de ter escrito pelo
menos metade dos mais ou menos 500 artigos que submeteu ao Tribune. No
momentos de maior abatimento, ele por vezes esquecia-se da velha recomen-
dação jornaKstica de captar a atenção do leitor desde o princípio. («Os de-
bates parlamentares da semana oferecem pouco interesse»,'*^ é a pouco mo-
tivadora frase inicial de um artigo enviado em Março de 1853), mas a maior
parte dos seus comentários, em particular acerca da política britânica, têm
a forte marca das impressões digitais de Marx. Segue-se, por exemplo, um
relato das eleições de 1852: «Na Grã-Bretanha, os dias de eleições gerais são
tradicionalmente bacanais de deboche embriagado, termos convencionais de
especulação para desconto da consciência política, a época de colheita mais
rica dos patrões... São orgíacos no antigo sentido romano da palavra. O
mestre torna-se então servo e o servo em mestre. Se o servo for transforma-
do em mestre por um dia, a brutalidade reinará nesse dia.»"
As suas observações sobre a violenta insurreição dos cipaios, soldados
nativos do exército anglo-indiano, ainda são melhores: «Existe algo na his-
tória humana que se chama retribuição; e uma regra da retribuição humana
é que o instrumento seja forjado não pelo ofendido mas pelo ofensor. O pri-
meiro golpe que caiu sobre a monarquia francesa veio da nobreza, não dos
camponeses. A revolta indiana não começou com os camponeses indianos,
torturados, desonrados e despojados pelos britânicos mas com os cipaios.
vestidos, bem tratados e engordados por eles. 18
E de surpreender — ou, antes, deprimentemente pouco surpreendente
— que nenhum dessas farpas jornalísticas seja encontrada num dicionário
de citações. Alguém empalou Palmerston de forma mais letal? «O seu fito
não é a substância, mas a simples aparência de sucesso. Quando não conse-
gue fazer nada, imagina qualquer coisa. Onde ousa não interferir, serve de
intermediário. Incapaz de se bater contra um inimigo forte, improvisa um
que seja fraco... A seus olhos, o movimento da história é apenas um passa-
tempo expressamente inventado para a satisfação pessoal do nobre visconde
Palmerston de Palmerston.» " Ou esta sobre o infeKz e tímido lorde John
Russell? «Nenhum outro homem provou a tal grau a verdade do axioma
bíblico que ninguém consegue acrescentar um centímetro ao seu tamanho
natural. Colocado por nascimento, relações e acidentes sociais num enorme
OS LOBOS FAMINTOS a * ^ 165

pedestal, permaneceu sempre o mesmo homúnculo — um anão deforma-


do e maligno no alto de uma pirâmide.»
Caso tivesse suficientes espectadores e tempo, Marx podia manter este
tipo de humor indefinidamente e tornar-se ao mais penetrante jornalista do
século. N ã o conseguia, contudo, deixar de ouvir uma voz importuna sussur-
rar-lhe por detrás das costas: C'est magnifique, mais ce n'est pas la guerre (E for-
midável, mas não é a guerra).
E m princípios de Abril de 1851, Marx declarou estar «tão adiantado que
terminarei todo o trabalho de economia em cinco semanas. E, depois dis-
so, finalizarei a economia política em casa e dedicar-me-ei a outro ramo de
conhecimento no Museu»^*^. N o decorrer dos dois meses seguintes, ficava na
sala de leitura das nove da manhã às sete tarde quase todos os dias. «Marx
leva uma vida muito retirada», dizia Wilhelm Pieper. «Os seus únicos ami-
gos eram John Stuart Mill e Loyd [o economista Samuel Jones Loyd] e sem-
pre que alguém o vem visitar é recebido com termos económicos em vez de
saudações.»^'
Mas ainda não se via o fim da tarefa hercúlea que ele se dispusera a cum-
prir. «O material sobre o qual estou a trabalhar é tão complexo que, por mais
que me aplique, só conseguirei terminar daqui a seis ou oito semanas», dis-
se a Joseph Weydemeyer, em Junho. «Além do mais, há interrupções cons-
tantes de ordem prática, o que é inevitável nas circunstâncias em que estamos
aqui a vegetar. Mas, apesar disso tudo, a coisa está quase a chegar ao fim.
Chega uma altura em que temos forçosamente de parar.»^^
Isto demonstra um cómico desconhecimento de si mesmo. Marx esta-
va disposto a separar-se alegremente, e com impetuoso à-vontade, de todas
as velhas amizades ou associações políticas, mas o mesmo não acontecia em
relação ao seu trabalho — sobretudo este trabalho em particular, u m vasto
volume de estaü'stica, história e filosofia que denunciaria finalmente todos
os vergonhosos segredos do capitalismo. Quanto mais estudava e escrevia,
mais o Hvro parecia estar longe do fim: como com a interminável Chave para
Todas as Mitologias, de Casaubon, tva Middlemarch, surgiam sempre novas pistas
a ser seguidas e obscuras investigações a ser feitas. (Dava-se o caso de Marx
gostar dos romances de George Eliot. «Bem, o nosso amigo Dakyns é uma
espécie de Felix Holt menos afectado e com mais conhecimentos», escreveu
à filha Jenny depois de visitar o geólogo J. R. Dakyns, em 1869. «Não pude
impedir-me de brincar com ele e de o avisar para não se aproximar da Sr" EKot
porque, senão, ela faria dele propriedade literária.»)^-'
166 -^' KARI.MARX ;•

«O principal», aconselhou-o Engels em Novembro de 1851, «é que de-


vias lançar publicamente mais um livro... É essencial pôr fim à tua prolon-
gada ausência do mercado literário alemão.» Vítima de «constantes interrup-
ções» — muitas das quais, acrescente-se, eram feitas por ele mesmo, esse
projecto foi posto de lado durante os quatro anos seguintes. Imediatamen-
te após o golpe de Estado francês de Dezembro de 1852, ele começou a es-
crever O Detrito de Brumário de l^uís Bonaparte, a pedido do novo semanário
americano, Die devolution, fundado pelo seu amigo Joseph Weydemeyer: es-
crever livros volumosos talvez o excedessem, mas não tinha perdido nenhum
do seu brio panfletário.
Infelizmente, algumas das suas capacidades mais questionáveis também
não o tinham desertado e, na Primavera de 1852, Marx desperdiçou vários
meses a escrever Os Grandes Homens do Exílio, a sua verbosa sátira sobre os
«imbecis mais notórios» e «a canalha democrática» da diáspora socialista.
O principal vilão desta galeria de velhacos era Gottfried Kinkel, poeta oca-
sional e, por vezes, preso poHtico que estava agora a ser homenageado por
ilustres anfitriãs de Londres como a baronesa Von Brüningk, châtelaine de um
agradável salão em St. John's Wood. Marx passou todo o mês de Junho com
Engels em Manchester a temperar o texto com insultos ainda mais elabora-
dos contra Kinkel e companhia. «O processo para secar este bacalhau faz-
-nos rir até às lágrimas»^'^. Felizmente, para a sua reputação, ç-^t-a folie à deux
(loucura a dois) foi mantida em privado. Quando Marx confiou o manuscrito
a Bangya para o entregar ao editor alemão, o traiçoeiro coronel vendeu-o
imediatamente à polícia prussiana nas instalações da qual permaneceu du-
rante quase um século e ninguém que, agora, lesse o livro o consideraria uma
grande perda.
Mas Marx ainda não tinha terminado com o bacalhau seco. Em Julho,
ouviu contar que Kinkel, no decorrer de um digressão pelos Estados Uni-
dos para angariar fundos, tinha dito diante de uma audiência em Cincinnati,
«Marx e Engels não são nenhuns revolucionários, são uns canalhas que
foram expulsos das tabernas de Londres pelos trabalhadores». Marx de-
safiou-o a confirmar a história. «Espero uma resposta na volta do correio.
O silêncio será considerado como uma aceitação»^^. Kinkel replicou que des-
de que tinha sido atacado por Marx na Neue Kheinische Zeitung, em 1850, en-
quanto ainda se encontrava preso na Alemanha, «não queria ter mais nada
a ver consigo».
OS LOBOS FAMINTOS o < ^ 167

«Se acha que pode... fornecer provas que eu, mentindo, disse ou pu-
bliquei algo prejudicial para a sua honra ou a do Sr. Engels, devo indicar-
-Ihe, como faria com quem não tenho contactos pessoais nem políticos,
que os trâmites legais estão abertos a todos que se sintam difamados ou
insultados. Excepto assim, não desejo ter mais nada a ver consigo.»^''

Marx ficou irritado por o seu desafio não ser aceite. («Como tudo que
possa cheirar a duelo ou coisa parecida é rejeitado calmamente. Nem pen-
sar instaurar um processo por difamação, pois um tribunal britânico não
poderia julgar um caso de insultos feitos em Cincinnati. Assumindo que
Kinkel ignoraria qualquer correspondência futura com o carimbo dos cor-
reios de Soho, Marx planeou um elaborado ardil. Convenceu o líder cartista,
Ernest Jones, para endereçar um envelope a Kinkel (pois os seus gatafunhos
seriam imediatamente reconhecidos) e, depois, pediu a Wilhelm Wolff para
o enviar por correio em Wifidsor. O bühete em papel colorido enfeitado com
um ramo de malmequeres e rosas estava cheio das previsíveis insignificân-
cias que ele costumava lançar aos seus inimigos. Marx garantia ainda ter em
seu poder declarações de testemunhas feitas sob juramento e vociferava:
«a sua carta prova mais uma vez que a baixeza do dito Kinkel é apenas igua-
lada pela sua covardia».^''
Marx orgulhava-se das suas partidas à miúdo de escola. «O melhor»,
deleitou-se, «é que ele só se dará conta da piada quando o primeiro episó-
dio dos Grandes Homens do Exílio aparecer. Pouco antes do ataque a Gottfried,
vou divertir-me insultando-o directa e pessoalmente enquanto, ao mesmo
tempo, me justificarei aos olhos dos lorpas dos emigrados. Para isso, preci-
sava de algo a "branco e preto" de Johann etc. Falemos, agora, de assuntos
mais importantes.. .»^*
Esses «assuntos mais importantes» eram ainda mais querelas provocadas
.pelo começo, em Outubro de 1852, do há muito adiado julgamento dos co-
munistas de Colónia. Como as provas mais incriminadoras eram livros e re-
latórios que pregavam a insurreição armada, supostamente furtados da Liga
Comunista em Londres, Marx passou o Verão e o Outono juntando depoi-
mentos para provar que os documentos eram falsos. Quando julgamento
terminou, ele sentiu-se obrigado a escrever um artigo para repudiar as calúnias
contra o «grupo de Marx» que tinham sido proferidas no tribunal de Colónia
— e aproveitar a oportunidade para desferir um golpe mortal na facção da
Liga Comunista favorável a Willich-Schapper. O artigo adquiriu inevitável-
168%^ ia.RLMARX

mente as proporções de um livro, Revelações a Respeito doJulgamento dos Comunista


de Colónia, o qual, com igual inevitabilidade, foi denunciado por August WüKch.
A seguir, Marx redigiu outro panfleto, «O Cavaleiro da Nobre Consciência»,
criticando ferozmente a «pretensão mesquinha» e «insinuações imundas» dos
seus antigos camaradas. E assim por diante...
Com invulgar discrição, Marx omitiu um pormenor desagradável acer-
ca do ignóbil cavaleiro. E m 1852, a baronesa Von Brüningk alojou Willich
em sua casa, a norte de Londres, e, segundo a história transmitida por Marx
a Engels, «a exemplo do que era seu costume fazer com os outros ex-tenen-
tes, ela começou a namoriscar com o velho bode. U m dia, o sangue subiu à
cabeça do nosso asceta e ele assaltou brutalmente a madame, sendo expulso
com escândalo. Acabou-se o amor! E acabou-se o alojamento de borla!»^'^
Pouco depois deste acontecimento e com a reputação de rastos em Londres,
Willich emigrou para a América onde combateu corajosamente durante a
Guerra da Secessão. Muitos anos mais tarde, até mesmo Marx foi obrigado
a conceder que o velho bode se tinha redimido, pelo menos em parte.
Porque desperdiçava Marx o seu talento em vendetas extravagantes? Uma
explicação é que o seu caos doméstico não lhe permitia concentrar-se numa
trabalho mais exigente e importante. «Tudo o que uma pessoa pode fazer é
produzir montes de estrume em miniatura», suspirava) Talvez também a
cicatriz que, em estudante, recebera naquela duelo nunca tivesse cicatrizado.
Quando o jornal alemão de Londres, How Do You Do? sugeriu que ele esta-
va secretamente de mecha com o cunhado, Ferdinand von Westphalen, o
repressivo ministro do Interior prussiano, Marx foi à redacção desafiar o
director para um duelo. O aterrorizado homem publicou imediatamente uma
desculpa. E m Outubro de 1852, Marx empregou a mesma ameaça contra o
barão Von Brüningk que o tinha acusado de espalhar o boato que a coquete
baronesa era espia russa. Marx propôs um encontro no qual provou a sua
inocência — «e estou preparado para lhe dar a satisfação habitual entre
cavalheiros caso a minha explicação não lhe baste».
A disputa acabou por ser resolvida sem derramamento de sangue atra-
vés de uma troca formal de cartas. Mas, um mês mais tarde, meteu-se nova-
mente noutra. Desta vez enviando uma mal-humorada mensagem ao histo-
riador de esquerda, Karl Eduard Vehse, o qual, aparentemente, andava a fazer
mexericos «insolentes e impertinentes» em Dresden acerca do panfleto de
Marx sobre Os Grandes Homens do Exílio. «Caso se sinta insultado por esta
carta, basta vir a Londres», concluía após vários parágrafos de invectivas.
OS LOBOS FAMINTOS ^ ¡ » 1 6 9

«Sabe onde vivo e pode ter a certeza de que estarei sempre preparado para
lhe dar as satisfações necessárias.»
As únicas pessoas a tirar satisfação deste canibalismo comunista foram
provavelmente as autoridades prussianas: As vendetas de Marx contra homens
como Willich eram muito mais eficazes do que as fracassadas armadilhas e
sabotagens dos seus Keystone Cops. Embora consciente de que estava a aju-
dar o inimigo, Marx argumentava que o verdadeiro perigo eram os conspi-
radores que atacava, pois o seu canto de sereia quanto à revolução imediata
poderia seduzir os socialistas a levá-la a cabo de forma prematura e desas-
trosa. Os falsos messias, se não fossem denunciados, atraíam mais o povo
do que os monarcas autênticos. Os panfletos adhominem e a ameaça de duelos
ao nascer do dia eram, por conseguinte, intervenções políticas essenciais e
não meras manifestações de despeito e orgulho ferido — ou, pelo menos,
foi disso que ele se convenceu. «Estou empenhado num combate mortal
contra os liberais impostores», dizia^^.
A arma mais letal contra esses poltrões seria a sua magnum opus que de-
monstraria de uma vez por todas porquê os revolucionários nunca seriam
bem sucedidos sem estudar primeiro economia. «Os néscios democratas a
quem a inspiração vem "dos céus", não precisam evidentemente de se fati-
gar», resmungava. «Porque é que havia essa gente, nascida sob uma boa es-
trela, importunar a cabeça com estudos de economia e história? É tudo real-
mente tão simples, costumava dizer-me o bravo Willich. Para esse burros, é
tudo muito simples^ 33
Os inimigos de Marx, nessa altura e desde aí, atribuíram aos ciúmes a sua
antipatia por Willich e outros «grandes homens do exílio». Depois do ma-
logro das revoluções de 1848, muitos dos heróis dessa gloriosa derrocada
chegaram a Londres cobertos de medalhas e glamor romântico — como
Mazzini, de Itália; Louis Blanc, de França; Kossuth, da Hungria; Kinkel, da
Alemanha. As senhoras da alta sociedade suspiraram pela sua atenção, co-
piosos banquetes foram dados em sua honra, retratos e n c o m e n d a d o s . . .
Gottfried Kinkel, que se refugiara em Londres após a sua ousada fuga da
prisão de Spandau, foi elogiado por Dickens em Household Wors e, mais tar-
de, fez uma série de palestras sobre teatro e literatura ao espantoso preço de
um guinéu por pessoa. Conforme Marx comentou, «nenhuma pedinchice,
nenhuma publicidade, nenhum charlatanismo, nenhum oportunismo era in-
digno dele; em compensação, contudo, não passava despercebido. Gottfried
mirava-se complacentemente no espelho da sua própria fama e no gigantesco
170^» KARL MARX •-''••

espelho do Palácio de cristal do mundo!»^'* Apesar de pobre, desconhecido


e quase a morrer de fome, Marx nunca invejou esses libertadores fanfarrões.
Citava frequentemente a máxima de Dante, Segui il tuo corso e lascia dir legenti
— faz o que o teu coração manda e deixa falar os outros. O que ele admi-
rava no pioneiro britânico das cooperativas, Robert Owen, era que sempre
que uma das suas ideias se tornava popular, ele dizia imediatamente algo ul-
trajante para se tornar de novo impopular.
«Detestava os bons oradores e pobre daquele que usava fraseologia bara-
ta», observou Liebknecht. «Insistiu connosco, "a gente jovem", que era neces-
sário ter um pensamento lógico e exprimirmo-nos com clareza, e obrigou-nos
a estudar... Enquanto os outros imigrantes planeavam diariamente uma re-
volução mundial, intoxicando-se com o lema "Começará amanhã!", nós, a
"malta de mau génio", passávamos o tempo no Museu Britânico a cultivar-
-nos e a prepararmos as armas e a munição para o combate futuro.»
A sua história favorita sobre o perigo de fazer poses tinha a ver com Louis
Blanc, um homem pequenino mas muito vaidoso. Apareceu uma manhã na
rua Dean, e Lenchen convidou-o a aguardar na sala enquanto Marx se ves-
tia. Ao espreitar pela porta entreaberta, Karl e Jenny tiveram de se conter para
não desatar a rir: o grande historiador e político, antigo membro do gover-
no provisório francês, pavoneava-se de um lado para o outro diante de um
espelho. Ao cabo de uns minutos, Marx tossiu para anunciar a sua presen-
ça. O tribuno afastou-se dos prazeres narcisistas do espelho e «tomou apres-
sadamente uma atitude tão natural quanto lhe era possível».
Até os trabalhadores ficarem «espiritualmente embebidos» de ideias
socialistas — através da educação não elocução, organização poKtica em vez
de ostentação — , os aplausos da multidão nada valiam. E onde é que era
melhor começar tal tarefa? A Inglaterra não só era o berço do capitalismo
c o m o t a m b é m o local de nascimento d o cartismo. E n q u a n t o os seus
confrades exilados se contentavam com sociedades secretas e salões, os
nativos já tinham recrutado um enorme exército de resistência proletária.
«Os operários ingleses são os primogénitos da indústria moderna», declarou
Marx. «Não serão certamente os últimos a ajudar a revolução social produ-
zida por essa indústria.»

O cartismo tomou o seu nome e inspiração da Carta Popular de Maio de


1838, a qual fazia seis exigências fundamentais: sufrágio masculino univer-
sal; boletins de voto secretos; parlamentos anuais; salário para os membro
OS LOBOS FAMINTOS '>:!ÍJ'171

do Parlamento; abolição da propriedade para os parlamentares; e fim dos


bairros miseráveis. Apesar das constantes discussões entre os partidários da
insurreição violenta e aqueles que confiavam na «força moral», os cartistas
continuaram a constituir uma poderosa ameaça para a ordem estabelecida
durante a maior parte da década seguinte. U m dos seus jornais, o Northern
Star, tinha uma circulação superior a 30 000 exemplares por semana e, como
a maior parte era comprada nas fábricas e nas tabernas, os seus leitores eram
muitos mais. Foram travadas verdadeiras batalhas com a polícia, sobretudo
em Birmingham e Monmouthshire, e vários Kderes foram presos ou depor-
tados. Uma petição dos cartistas apresentada ao Parlamento, em 1842 — e
inevitavelmente rejeitada—, contava com 3 317 702 assinaturas e tinha mais
de nove quilómetros de comprimento. Nesse Verão, uma greve de duas sema-
nas em apoio da Carta paralisou o centro e o N o r t e da Inglaterra, e certas
regiões do País de Gales.
E m Abril de 1848, enquanto os anciens régimes da Europa vacilavam e
caíam, os cartistas anunciaram que se agrupariam em Kennington Common,
a sul do Tamisa, e marchariam sobre o Parlamento. A notícia provocou tal
pânico entre as classes dirigentes que o próprio duque de Wellington, o
vencedor de Waterloo, foi chamado para impedir que os manifestantes atra-
vessassem o rio. Foi o último hurra dos cartistas. Três anos mais tarde, gran-
des multidões juntaram-se, de facto, no centro da cidade — mas foi para
assistir à Feira Internacional, em Hyde Park. Com a sua riqueza industrial,
resistência da classe média e a omnipresença da polícia, a Inglaterra tinha
aparentemente superado melhor a tempestade revolucionária do que os seus
vizinhos continentais. Mesmo assim, uma espécie de radicalismo submerso
continuava a rondar por ali. O Hvro de Henry Mayhew, l^ndon luibour and the
Lj)ndon Poor, publicado em 1851, atestava que «os artesão são quase todos
proletários entusiastas com opiniões violentas».
Karl Marx tinha pouco tempo para consagrar ao Hder cartista, Feargus
O'Connor, demagogo irlandês brilhante mas cada vez mais demente. Ficou
mais impressionado com os seus dois lugares-tenentes, George Julian Har-
ney e Ernest Jones, que conhecera brevemente aquando da sua primeira vi-
sita a Inglaterra no Verão de 1845. Nesse ano, Engels escreveu uma série de
artigos para o jornal dirigido por Harney, Northern Star, e, pouco depois, con-
vidou-o para se juntar à rede de correspondência comunista. Tanto Harney
como Jones assistiram ao segundo congresso da Liga Comunista, que teve
172^^ KARL MARX

lugar em Novembro de 1847 e no qual foi solicitado a Marx e Engels a re-


dacção do seu manifesto.
Alarmado pelo galopante optimismo destes revolucionários alemães,
Harney puxou desesperadamente as rédeas. «A sua profecia que havemos de
obter a Carta n o decorrer do presente ano e a abolição da propriedade pri-
vada dentro de três, não será certamente realizada», preveniu Engels em
1846. «O conjunto da nação inglesa, apesar de não ser um povo escraviza-
do, está a tornar-se eminentemente pacífico... Conflitos organizados como
os que se passam em França, Alemanha, Itália e Espanha são impossíveis de
ocorrer neste país. Conspirar e organizar uma revolução aqui seria uma
loucura em vão.»^^ Engels ignorou os sinais de aviso e, logo a seguir à de-
monstração de Kennington Common, em Abril de 1848, disse ao seu cunha-
do comunista, Emil Blank, que a burguesia inglesa teria «uma surpresa
assim que os cartistas entrassem em cena. Dentro de uns meses, o meu amigo
G. H a r n e y . . . substituirá Palmerston. Aposto contigo o que quiseres»-"".
Meses mais tarde — para dizer a verdade, dois anos mais tarde — Palmerston
ainda era o ministro dos Negócios Estrangeiros.
O que é que tinha acontecido de errado? A i de Janeiro de 1848, Marx
passou em revista as abortadas revoluções de 1848 no Neue Tihejmsche Zeitung.
«K Inglaterra, país que transforma nações inteiras em proletariado, que englo-
ba todo o mundo no seu imenso amplexo, que já reembolsou o custo de uma
restauração europeia, o país em que as contradições de classe atingiram a
forma mais crítica e sem vergonha — a Inglaterra parece ser o rochedo con-
tra o qual as ondas revolucionárias quebram, o país onde a nova sociedade
é asfixiada no útero.» O mercado mundial era dominado peia Inglaterra e esta
era dominada pela burguesia. «Só quando os cartistas dirigirem o Governo
inglês é que a revolução social passará da utopia ã realidade.»
Resumindo, o fuluro da revolução mundial dependia de Harney e dos
seus colegas — Marx impunha-lhes uma pesada responsabiKdade, mas tam-
bém prestava homenagem às suas proezas. Mas, infelizmente, os cartistas já
se estavam a dividir em facções e grupos. Encorajado por Marx e Engels,
Harney separou-se de O'Connor em 1849 e fundou uma sucessão de jornais
criativos, mas evanescentes — Democratic Kevieiv, RßdRepublican (cuja maior
realização ao longo de seis meses de existência foi a de publicar a primeira
tradução inglesa do Manifesto Comunista) e Friend of the People.
Para contrariedade de Marx e Engels, Harney praticou o que pregava, a
«irmandade dos homens» — frase que Marx detestava, pois havia muitos
OS LOBOS FAMINTOS a ^ 173

homens que em nenhumas circunstâncias desejava ser irmão. O emoliente


Harney espalhava às mãos largas os seu favores políticos aplaudindo os
«vilmente inimigos» de Marx n o seio dos democratas continentais —
Mazzini, Ledru-Rollin, Louis Blanc, Ruge e Shapper, entre outros — e, de
certo modo, arranjando maneira para se dar bem com todos quando a Liga
Comunista se desintegrou. Marx não achava que ele fosse mau, apenas
impressionável — «impressionável, quer dizer, em relação a nomes famo-
sos em cuja sombra se sente honrado»^''. N a sua correspondência privada
com Engels, Marx alcunhava o pouco selectivo chefe de banda Chefe Hip-hip-
-hurra — ou, por vezes, O Nosso Querido, referência trocista à sua atenta e
enjoativamente afectuosa mulher, Mary Harney. «Estouya//¿í//deste incen-
so público tão incansavelmente utilizado por Harney para encher as narinas
Á.o% petits grands hommes», queixou-se em Fevereiro de ISSL"'^
A promiscuidade ideológica de Harney tinha, porém, um mérito: deixava
mais uma vez Marx sem aliados leais. «Estou muito satisfeito pelo isolamento
público em que nós dois, tu e eu, agora nos encontramos», escreveu a Engels.
«Está totalmente em conformidade com a nossa atitude e os nossos princípios.
O sistema de concessões mútuas e meias medidas toleradas em n o m e da
decência, e a obrigação de suportar uma parte do ridículo público no partido
juntamente com estes asnos acabou-se... Com a excepção de Pieper, quase
não vejo ninguém aqui [em Londres], e vivo completamente retirado.»
Engels concordou plenamente:

«Acho a inépcia e falta de tacto da parte de Harney mais irritante do


que tudo. Mas aufondt&ca pouca importância. Tenho, finalmente, a opor-
tunidade —- pela primeira vez há séculos — de provar que não precisa-
mos de popularidade nem do apoio de nenhum partido em nenhum país,
e que a nossa posição é totalmente independente dessas ridículas baga-
telas. A partir de agora, somos apenas responsáveis por nós mesmos e,
quando chegar a altura dessa gentalha necessitar de nós, estaremos em
posição de ditar os nossos termos. Até lá, beneficiaremos, pelo menos,
de um pouco de paz e sossego... Como é que pessoas como nós, que fo-
gem de eventos públicos como da peste, cabemos num "partido?" E o que
é nós, que cuspimos na popularidade e não sabemos onde nos meter
quando somos populares, temos a ver com um "partido, um rebanho de
asnos que juram por nós porque pensam que somos da mesma espécie
que eles?" N ã o se perde realmente grande coisa se já formos tidos como
174^^ KARL MARX

a "expressão adequada e correcta' dos cretinos com quem nos temos


dado nos últimos anos".»^'
anos".

Ambos desdenhavam o clube que os aceitasse como sócios: «Impiedoso


criticismo de toda a gente» era, agora, o seu lema. «Que mexericos pode todo
o bando de emigrados reunir contra ti», perguntava Engeles, «quando lhes
respondes com a tua economia política?»
Este condescendente desprezo por mexericos era gloriosamente pouco
sincero: Marx e Engels adoravam-nos e, durante o resto da vida, nunca
perderam uma ocasião para divertir ou enfurecer o outro à custa deles.
A pretensa indignação atingiu novas alturas em Fevereiro de 1851, quando
Harney ajudou a organizar um banquete em Londres em que Louis Blanc
era o convidado de honra. Dois dos raros aliados de Marx que ainda lhe res-
tavam entre os expatriados alemães, Conrad Schramm e Wilhelm Pieper,
foram enviados para observar a cerimónia — acabando por ser expulsos da
sala, denunciados como espiões e espancados por uma multidão de 200 pes-
soas, incluindo numerosos m e m b r o s do partido de Harney, inapropria-
damente chamado Democratas Fraternais. Shramm pediu socorro a um dos
organizadores, Landolphe, mas de nada lhe serviu. A seguir, c o m o Marx
prestamente informou Engels, «quem é que havia de chegar se não o N o s -
so Querido em pessoa. Mas, em vez de intervir energicamente, gaguejou que
os conhecia e lançou-se em longas explicações. O remédio ideal para uma
situação daquelas.»"^"
Engels sugeriu que Pieper e Schramm se vingassem esmurrando Lan-
dolphe, mas Marx, de forma perfeitamente previsível, era da opinião que nada
menos do que um duelo lavaria uma tal afronta — e «a pessoa a ser desafiada
tem de ser o pequenino escocés, o Hip-hip-hip Hurra, George JuHan Harney
e mais ninguém. O melhor será que ele comece a praticar tiro ao alvo.»
A partir daU, o único uso que Marx e Engels deram ao Cidadão Hip-hip-
-hip-hurra foi o de ser vítima das suas piadas. Mantiveram, contudo, relações
amistosas com Ernst Jones, o qual não fora ao infame banquete. Como Jones
tinha passado a infância na Alemanha, eles consideravam-no «pouco inglês»
— o mais alto cumprimento que podiam prestar a um cidadão britânico. (Em
1846, ainda na primeiro entusiasmo do n a m o r o , Engels tinha descrito
Harney como parecendo «mais francês do que inglês».)'^^ Marx colaborou no
jornal de Jones, o People's Paper, e nos artigos que escrevia para outras publi-
cações louvava a insistência dos cartistas em querer •A'à.t^2X o direito ao voto.
OS LOBOS FAMINTOS 175

«Depois das experiências que sabotaram o sufrágio universal na França, em


1848, os europeus continentais estão inclinados a subestimar a importância
e o significado da carta inglesa», escreveu no Neue Oder-Zeitung. «Esquecem-
-se que dois terços da população francesa são camponeses e mais de um terço
citadinos, enquanto em Inglaterra mais de dois terços vivem nas cidades e
menos de um terço no campo. Assim, e a exemplo do que acontece em rela-
ção à cidades e ao campo nestes dois países, os resultados do sufrágio uni-
versal em Inglaterra devem igualmente ser inversamente proporcionais aos
dos conseguidos em França.»'^^
E m França, o sufrágio constituía uma exigência poKtica, apoiada, em maior
ou menor medida, por quase todas as pessoas «educadas». N a Grã-Bretanha,
tratava-se de uma questão social que marcava a distinção entre a aristocracia
e a burguesia por um lado e «o povo» pelo outro. A agitação em Inglaterra a
favor do sufrágio tinha passado por «um desenvolvimento histórico» antes de
se tornar no slogan das massas; em França, o slogan chegara primeiro sem ne-
nhuma gestação. Vemos aqui mais uma vez a curiosa ambivalência da atimde
de Marx em relação ao seu país de adopção. Ao contrário dos seus vizinhos
infestados por camponeses, a Inglaterra tinha um imenso e sofisticado prole-
tariado metropolitano: estando, por conseguinte, mais «avançada» e pronta
para a revolução. N o entanto, a Inglaterra também possuía uma burguesia
mxiito segura de si, o rochedo contra o qual as vagas revolucionárias quebra-
vam em vão. Às vezes, ele convencia-se de que um cataclismo poKtico na
Grã-Bretanha não só era inevitável como iminente; mas, noutras ocasiões,
ficava desesperado pelo conservadorismo tolo dos seus habitantes. Mas o
que é que se podia esperar? Marx, mais do que qualquer outro pensador da
sua geração, era um conhecedor de contradições e paradoxos — pois eram
essas mesmas contradições que garantiam o fim do capitalismo.
«Há uma grande verdade característica do nosso Xix século, uma verda-
de que nenhum partido ousa negaD>, disse em Abril de 1856 no decorrer de
um jantar em Londres para festejar o quarto aniversário do People's Paper. «Por
um lado, foram iniciadas forças científicas e industriais que nenhuma outra
época da história humana jamais suspeitou, e, por outro, existem sintomas
de decadência que ultrapassam o horror dos últimos anos do Império Ro-
mano. Nos nossos dias, tudo parece estar prenhe do seu contrário.»'^^
A maquinaria, abençoada com o poder de encurtar e frutificar o labor das
pessoas, tinha-as esfomeado e extenuado. Por alquimia inversa, as novas fon-
tes de riqueza tinham-se tornado em fontes de miséria. A Grã-Bretanha —
176 ^^H? KARL MARX

a sociedade mais moderna e rica do mundo — era também a que estava mais
perto da destruição. «A liistória é o juiz — e o seu carrasco, o proletariado.»
Até mesmo jacobinos ingleses sentados à mesa depois de u m lauto jan-
tar, fortificados com «as iguarias e condimentos mais requintados», devem
ter franzido u m sobrolho interrogador perante esta retórica apocalíptica.
Podia a Inglaterra — o centro financeiro e industrial do mundo e do maior
império jamais visto, o coração palpitante do capitalismo — ser realmente
assim tão fi-ágil? Para Marx, o paradoxo era mais aparente do que real. Uma
«máxima antiga historicamente estabelecida» era que as forças sociais obso-
letas faziam apelo a todas as suas forças antes da agonia final e, por conse-
guinte, embora parecessem intimidadoras, encontravam-se no ponto mais
fraco. «Tal é a situação actual da oligarquia inglesa.»
Perguntamo-nos se algum dos seus ouvintes se lembrou do t o m mais
cauteloso que ele tinha usado no ensaio sobre a guerra civil em França que
publicara no Neue Kheinische Zeitung, em 1850. «O processo original ocorre
sempre na Inglaterra: ela é o demiurgo do cosmo burguês», tinha escrito
então. Mas, enquanto a Inglaterra se abandonar à prosperidade burguesa,
«não se poderá falar de uma revolução a sério... Uma nova revolução só é
possível em consequência de uma nova crise».
Há tempos que aguardava com impaciência a chegada da crise — inter-
pretando inscrições mágicas, procurando presságios. «Desde que nenhuma
fatalidade aconteça nas próximas seis semanas, a produção de algodão des-
te ano será de três milhões de fardos», informou-o Engels em Julho de 1851.
«Se a queda do mercado coincidir com esta gigantesca safra é que vão ser elas.
Só de pensar nisso o Peter E r m e n já se está a borrar nas calças.»'^'* Tais per-
das na indústria têxtil também poriam termo aos subsídios regulares que
Marx recebia de E r m e n & Engels, mas isso, aparentemente, era um preço
que vaUa a pena pagar para a ruína geral. «À agradável perspectiva de uma
crise comerciab/^ ele até lambia os beiços. E m Setembro, contudo, nada
aconteceu. E m vez disso, a descoberta de ouro em Victoria, no Sul da Aus-
trália, talvez abrisse novos mercados e, a exemplo da corrida ao ouro na
Califórnia em 1848, precipitasse a expansão do comércio mundial e de cré-
ditos. «Esperemos que o ouro australiano não interfira com a crise comer-
cial», atormentava-se Engels. Consolava-se com a ideia de que, mesmo no
caso do capitalismo ser salvo pelo sucesso nos antípodes, teriam pelo menos
o direito a qualquer coisa: «Em seis meses, a circum-navegação do mundo
OS LOBOS FAMINTOS «^177

a vapor terá avançado e as nossas previsões a respeito da supremacia do ocea-


no Pacífico serão realizadas ainda mais rapidamente do que prevíamos.»'*''
Austrália — esses «estados unidos de assassinos, ladrões, vigaristas e viola-
dores deportados» — espantaria então o mundo mostrando que maravilhas
uma nação de bandidos disfarçados podia fazer. «Darão cabo da Califórnia.»
D e qualquer modo, a procura do algodão de Lancashire estava ainda a bai-
xar agradavelmente e, em breve, «teremos uma tal excesso de produção que
vais ficar todo contente».
Um mês mais tarde houve mais um motivo de contentamento, proveniente
do cavalo de Tróia instalado por Marx na cidadela do capitalismo: «O comér-
cio de ferro está totalmente paralisado, e dois dos bancos mais importantes
que lhe dão crédito — em N e w p o r t — faliram... Há a possibilidade, se não
a certeza, de que as convulsões da próxima Primavera no continente coin-
cidam com uma boa crises. Mesmo que a Austrália pareça incapaz de fazer
grande coisa; desde os tempos da Califórnia que a descoberta de ouro se
tornou uma velha história e o mundo está a começar a ficar indiferente.. .»'"'^
Dois dias depois do Natal de 1851, Marx enviou uma alegre mensagem de
fim de ano ao poeta Ferdinand Freiügrath: «Pelo que Engels me diz, os co-
merciantes agora partilham a nossa opinião de que a crise, sustida por toda
a espécie de factores (incluindo, por exemplo, apreensões políticas, o eleva-
do preço do algodão n o ano passado), deve rebentar o mais tardar no Ou-
tono. E, desde os últimos acontecimentos, estou mais convencido do que nun-
ca que não haverá nenhuma revolução a sério sem uma crise comercial.»"*^
A queda da administração Whig, de Rüssel, em Fevereiro de 1852 e a nomea-
ção de um gabinete tory chefiado por Lorde Derby deu a impressão que o dia
ansiado estava próximo.
«Na Inglaterra, o nosso moviínento pode progredir apenas sob os tories»,
explicou Marx. «Os Whigs conciliam tudo e p õ e m toda a gente a dormir.
E, ainda por cima, há a crise comercial, a qual está cada vez mais perto e cujos
primeiros sintomas estão a verificar-se em toda a parte, l^s choses marchent. (As
coisas estão em marcha).»"*' O comércio livre e uma queda do preço do al-
godão talvez mantivessem a economia inglesa à tona de água até ao O u t o -
no, mas, depois, começaria a brincadeira.
Engels não tinha tanta certeza. E m b o r a a crise devesse certamente che-
gar por volta do final de 1852, «de acordo com todas as regras», a força dos
mercados indianos e o baixo preço das matérias-primas sugeriam que poderia
acontecer algo diferente. «Uma pessoa é quase tentada a prever que o pre-
178 KARLMARX

sente período de prosperidade será excepcionalmente de longa duração. De


qualquer modo, pode muito bem ser que dure até à Primavera.»^'^
E foi o que aconteceu; talvez Marx não tivesse ficado totalmente desa-
pontado. «A revolução pode vir mais cedo do que nós gostaríamos», escre-
veu em Agosto, comentando uma sucessão de falências e safras abaixo da
média. «Nada seria pior do que os revolucionários terem de fornecer o pão.»
Aqui, ele foi apanhado pela sua própria lógica explosiva: se a revolução
dependesse de uma catástrofe económica, como ele insistia, é evidente que
herdaria um mundo sem pão. No entanto, ao longo dos dois anos seguin-
tes, ele ainda se sentia jovialmente seguro de que os tempos difíceis se en-
contravam ao virar da esquina. «Sendo o estado das safras de Inverno o que
é, estou convencido de que a crise está para vir.»^^ (Janeiro de 1853); «As con-
dições presentes... a meu ver, conduzirão muito em breve a uma derroca-
da.» (Março de 1853) ; Les choses marchent merveilleusement (As coisas march
às mü maravilhas). «Será um pandemonio em França quando a bolha finan-
ceira rebentar.» (Setembro de 1853).
Na ausência de uma crise económica terminal, Marx começou a pergun-
tar se outra centelha pegaria fogo à conflagração. Talvez a guerra da Crimeia?
«Não nos podemos esquecer de que existe um sexto poder na Europa»,
escreveu no ^ew York Daily Tribune, de 2 de Fevereiro de 1854, «o qual, a
dados momentos, afirma a sua supremacia sobre os chamados cinco "gran-
des" poderes e os faz tremer. Esse poder é a Revolução... Basta um sinal e
este sexto e maior poder europeu surgirá de armadura reluzente e espada na
mão, como Minerva a sair da cabeça de OKmpico. A pendente guerra euro-
peia dará esse sinal...»
Mas não teve essa sorte. Aparentemente esquecendo-se de que, confor-
me insistia, a revolução só era possível em consequência de uma derrocada
económica, perscrutou o horizonte à procura de outra nuvem negra. A 24
de Junho de 1855, os cartistas fizeram uma manifestação em Hyde Park para
protestar contra a nova lei que bania a abertura de tabernas e a publicação
de jornais ao domingo. As senhoras e os cavalheiros que montavam em
Rotten Row foram molestados pelos manifestantes e alguns deles tiveram
de desmontar para fugir. «Fomos espectadores do princípio ao fim», escre-
veu Marx no IS^eue Oder Zeitung. «E não julgamos estar a exagerar se disser
mos que a revolução inglesa começou ontem em Hyde Park.»^^
Uma manifestação semelhante uma semana mais tarde juntou ainda mais
multidão — e Marx voltou a redigir um vivido relato para o ISleue Oder Zeitung
OS LOBOS FAMINTOS »1:^179

«A poKcia emboscada entrou logo em acção e, sacando dos cacetes do bolso,


pôs-se a bater na cabeça das pessoas até o sangue jorrar, puxando indivíduos
aqui e ali da imensa multidão (um total de 104 pessoas foram presas) e ar-
rastando-os para prisões improvisadas.»''^ Mas a nature2a da cena foi bastante
diferente da guerra do fim de semana anterior:

«No passado domingo, as massas foram confrontadas como indiví-


duos pela classe dirigente que, desta vez, surgiu como poder estatal, a lei,
o cacete. Mas, desta vez, a resistência significou insurreição e o inglês tem
de ser provocado durante muito tempo para se revoltar. Assim, a contrade-
monstração foi limitada, em geral, a assobios e vaias contra os carros da
polícia e a isolados e débeis tentativas para libertar a gente presa, mas, aci-
ma de tudo, resistência passiva a defender fleumaticamente a sua posição.»

Assim, expirou «a revolução inglesa», apenas sete dias depois da fanfar-


rice de Marx; e tudo porque a timidez dos nativos é deferente perante a ma-
jestade do poder institucionalizado. É demasiado parecido com uma cena das
operetas de Gilbert e Sullivan, em que os sangrentos piratas de Penzance
capturam um destacamento de poKcias e ameaçam as suas vítimas de espa-
da em punho.
— Rendam-se em nome da rainha Victoria! — ordena o sargento manie-
tado no chão.
O chefe dos piratas não tem outro remédio senão obedecer.
— Rendemo-nos já, humildemente, pois, apesar de todas as nossas cul-
pas, adoramos a rainha.
Durante toda a vida, a opinião de Marx do proletariado inglês oscilou
entre a reverência e o desprezo. E m Janeiro de 1862, citou o apoio dos tra-
balhadores britânicos ao N o r t e na Guerra da Secessão americana c o m o
«nova e esplêndida prova da indestrutível largueza de espírito das massas po-
pulares inglesas, que constitui o segredo da grandeza da Inglaterra»^''. Mas,
quando manifestantes antigovernamentais destruíram as grades de Hyde
Park em Julho de 1866, ele mostrou-se desesperado pela sua moderação. «O
inglês precisa, primeiro do que tudo, de uma educação revolucionária», es-
creveu a Engels. «Se as grades tivessem sido usadas defensiva e ofensivamen-
te contra a poHcia e uns quantos fossem derrubados, os militares teriam de
intervir em vez de se limitarem a desfilar. E, então, é que seriam elas. U m
coisa é certa, estes estúpidos J o h n Bulis, cujas cabeças parecem ter sido
180^^ KARI.MARX

fabricadas especialmente para os cacetes dos polícias, nunca hão-de chegar


a nenhum lado sem um confronto sangrento com as forças do poder.»^^
Conforme concedeu, contudo, não tinha havido grandes combates: os tra-
balhadores mostraram-se «servis», «enleados» e incuravelmente debilitados
por uma «infecção burguesa».
Esta doença tinha pequenos, mas esclarecedores sintomas. O historiador
Keith Thomas sugeriu que «as preocupações com a jardinagem, assim como
com animais de estimação, pesca e outros passatempos... ajuda a explicar
a relativa falta de impulsos poKticos e radicais entre o proletariado britânico»^''.
Daí a popularidade dos loteamentos no século XIX e a surpreendente penúria
de prédios grandes com apartamentos -— o que «teria privado os trabalhado-
res de se dedicarem à jardinagem, a qual consideravam uma necessidade». Por
cada trabalhador que tinha arrancado grades em Hyde Park havia dúzias que
queriam apenas levar os cães a passear ou admirar os canteiros de flores.
Até mesmo Ernst Jones, o líder cartista que Marx mais admirava, em
breve se revelou um diletante da classe média ao defender uma coligação
entre os cartistas e os radicais burgueses. «O que se passa com Jones é revol-
tante», escreveu Engels após ouvi-lo discursar numa manifestação em Man-
chester. «Uma pessoa é quase levada a acreditar que o movimento do pro-
letariado inglês na sua antiga forma cartista tradicional tem de desaparecer
completamente antes de poder desenvolver uma nova forma viável.» Mas
que forma seria essa? Como Engels notou com lúgubre presciência, «o
proletariado inglês está hoje em dia a tornar-se cada vez mais burguês e,
aparentemente, aspira possuir uma aristocracia burguesa e um proletariado
burguês, bem como uma burguesia.»^^
E foi o que veio a acontecer: actualmente em Inglaterra, tanto os aristo-
cratas como os trabalhadores compram alimentos nas superlojas Tesco e
assistem ao sorteio da Lotaria Nacional aos sábados à noite. Se os fantasmas
de Marx e Engels voltassem à Terra, também notariam a mais esquisita con-
tradição de todas: uma monarquia burguesa cujos príncipes usam bonés de
basebol, comem Big Macs e passam as férias na Disneylândia. Em Hyde Park,
onde outrora os cartistas provocavam os aristocratas e Karl Marx julgava que
a revolução inglesa tinha começado, o maior ajuntamento popular que há
memória ocorreu a 6 de Setembro de 1997 — para o funeral de Diana,
princesa de Gales. .
O veredicto final de Marx sobre o seu país de adopção figura numa carta
que escreveu, pouco antes de morrer, em 1883. Depois de troçar dos «pobres
OS LOBOS FAMINTOS 0^181

burgueses britânicos que gemem à medida que vão aceitando cada vez mais
"responsabilidades" ao serviço da sua missão histórica, enquanto protestam em
vão contra ela», conclui com um grito exasperado: «Ao diabo os Britânicos!»^**

A apostasia de Ernst Jones, ao juntar forças com os liberais da classe


média, incorreu na punição mais severa que Marx e Engels podiam dar: foi
etiquetado de «oportunista». Anos mais tarde, eles proferiram a mesma
sentença contra Ferdinand Lassalle por este ter proposto que os trabalhado-
res e os aristocratas prussianos se juntassem contra a burguesia industrial.
Apesar de se opor a estes casamentos de conveniência, Marx andava a for-
mar associações oportunistas com tipos bastante esquisitos.
O mais esquisito deles todos era David Urquhart, excêntrico aristocrata
escocês e antigo membro tory do Parlamento, que actualmente é lembrado, se
o for, por ter introduzido os banhos turcos em Inglaterra. «Até ao fim da vida,
Urquhart foi o hei, o chefe, o profeta, praticamente o "enviado divino", para
a maioria dos seus seguidores», declarou um dos seus discípulos. «Para a sua
pequenina filha, que sonhava com o pai..., não parecia estranho que o pai,
à maneira dos sonhos, se transformasse em Cristo. " É realmente a mesma
coisa, não é, mamã?", dizia. Mas, para os observadores menos reverentes, ele
não passava de uma velha morsa intratável de bigodes pendentes, laço de es-
guelha e opiniões muito controversas. "A arte que pratiquei com mais assidui-
dade foi a de fazer os homens odiar-me", gabava-se. "Isso torna-os menos
apáticos. Fá-los falar e, depois, posso apanhar-lhes as palavras e arremessá-
-las contra eles para os abater."»^' Muitas eminências vitorianas são testemu-
nhas do sucesso desta técnica: o h o m e m tinha inimigos para dar e vender.
Nascido na Escócia em 1805, educado em França, Suíça e Espanha,
Urquhart descobriu a sua longa obsessão com o Oriente quando, aos 21
anos, partiu — por sugestão de Jeremy Bentham, um admirador — para
tomar parte na guerra da independência da Grécia e foi gravemente ferido
no cerco de Seio. Tendo atraído a atenção de sir Herbert Taylor, secretário
particular de Guilherme IV, Urquhart foi a seguir enviado em missões diplo-
máticas secretas para Constantinopla, onde mudou abruptamente de cam-
po. «Este tipo foi para a Grécia como helenista e, após ter passado três anos
a combater os turcos, instalou-se na Turquia e apaixonou-se pelos turcos»,
escreveu Marx em 1853, depois de se ter divertido com o livro de Urquhart,
Turkey and Its ^esources?'^
1821^ I<:ARLMARX

«Entusiasma-se pelo Islão de acordo com o seguinte princípio: «Se


não fosse calvinista, só poderia ser maometano.» Os turcos, principal-
mente os do Império Otomano no seu apogeu, são a nação mais perfei-
ta que existe à superfície da Terra, e a sua língua é a mais melodiosa do
mundo Se um europeu é maltratado na Turquia, só pode culpar-se a
si mesmo; o turco não odeia a religião dos francos nem o seu carácter,
apenas o facto de as suas calças serem estreitas. A imitação da arquitec-
tura, etiqueta, etc. dos turcos é fortemente recomendada. O próprio autor
levou muitos pontapés no rabo dos turcos, mas, subsequentemente, deu-
-se conta de que a culpa fora dele... E m resumo, o turco é um cavalheiro
e a liberdade existe somente na Turquia.»

A sua excessiva turcolilia fascinou os anfitriões de Urquhart em Constan-


tinopla. Segundo o Didonário de Biografias Nacionais, «os funcionários turcos
confiavam tanto nele que o informavam acerca de tudo o que o embaixador
russo lhes comunicava. N o entanto. Lorde Palmerston ficou alarmado... e
pediu ao embaixador inglês, Lorde Ponsonby, que o tirasse de Constantinopla,
pois ele era um perigo para a paz na Europa». A parcialidade apaixonada de
Urquhart — pró-turco e anti-russo — antagonizou-o com a poUtica britâni-
ca e convenceu-o de que o Governo do seu país era influenciado por forças
sinistras e concluiu que o ministro dos Negócios Estrangeiros, Lorde Pal-
merston, devia ser um agente secreto russo. Ao regressar à Grã-Bretanha,
Urquhart encontrou vários jornais e uma rede nacional de comités dispos-
tos a disseminar a sua audaz teoria conspiratória. Após ter entrado para o Par-
lamento em 1847, fez uma série de discursos solicitando um inquérito ime-
diato sobre a conduta do Ministério dos Negócios Estrangeiros «a fim de
destituir o Muito Distinto Henry John Temple, visconde de Palmerston».
Essencialmente um romântico reaccionário, Urquhart conseguiu, con-
tudo, convencer alguns radicais de que estava realmente do lado deles e de-
fendia os trabalhadores explorados contra os patrões falsos e velhacos.
Apesar dos cartistas mais revolucionários o considerarem um espião tory,
cujas cruzadas populistas contra Lorde Palmerston eram uma manobra de
diversão, os outros louvavam a sua denúncia do «mal causado ao labor e ao
capital deste país pela expansão do Império Russo e da quase universal in-
fluência russa, a qual procurava destruir o comércio britânico».
Isto tudo fazia harmoniosamente coro com o ódio e desconfiança que
Karl Marx votava à Rússia czarista. «Excitado, mas não convencido» pelas
OS LOBOS FAMINTOS * ^ 183

alegações de Urquhart, meteu mãos à obra com característica diligência


debruçando-se sobre velhos exemplares do Hansard e dos «Livros Azuis»
diplomáticos à procura de provas. Os seus progresso podem ser seguidos
através do diferente tom das suas cartas a Engels. N a Primavera de 1853,
troçava de Urquhart chamando-o «o membro louco do Parlamento que de-
nuncia Palmerston dizendo que ele é pago pela Rússia». Mas, no Verão desse
mesmo ano, já se mostrava mais respeitoso: «Os comentários de D. Urquhart
sobre a questão oriental no Advertiser contêm, apesar das excentricidades,
muita coisa interés sante»''"). E, antes do final do Outono, rendia-se incon-
dicionalmente ao urquhartismo — se não ao próprio Urquhart. «Cheguei à
mesma conclusão que esse monomaniaco do Urquhart — nomeadamente
que Palmerston trabalha há várias décadas a soldo dos russos», escreveu a
2 de Novembro. «Estou satisfeito por o acaso me ter levado a observar mais
de perto a política estrangeira — diplomática — dos últimos 20 anos.
Negligenciámos muito este aspecto. Deve-se saber com quem se está a lidar.»
Os primeiros resultados desses estudos foram uma série de artigos para
o New York Tribune, no final de 1853, que descreviam as «ligações» clandes-
tinas de Palmerston com o Governo russo. Urquhart, compreensivelmente
deleitado, encontrou-se com o autor em princípios de 1854, fazendo-lhe os
maiores cumprimentos ao dizer que «os artigos pareciam ter sido escritos por
um turco». Marx, um pouco amuado, fez-lhe notar que era um revolucionário
alemão.
«Ele é louco varrido», comentou Marx p o u c o depois deste estranho
encontro:

«Está firmemente convencido de que, um dia, será primeiro-ministo


do país. Quando reinar a opressão, a Inglaterra virá ter com ele e dizer-
-Ihe: Salva-nos, UrquhartílL, então, ele há-de salvá-la. Tem autênticos ata-
ques quando fala, sobretudo quando o contradizem... A sua ideia mais
cómica é a seguinte: a Rússia governa o m u n d o através de uma onda
cerebral específica. Para lhe fazer face, uma pessoa tem de ter o cérebro
de um Urquhart e, se tiver o infortúnio de não ser o próprio Urquhart,
deveria ser, pelo menos, um urquhartista, quer dizer, acreditar no que
Urquhart acredita, na sua "metafísica", na sua "economia política", etc. etc.
Um pessoa deve ter estado no "Oriente" ou ter absorvido, pelo menos,
o "espírito mrco."»''^
184 ,;,Ä KARL MARX

Quando alguns destes artigos sobre Palmerston no Tribune foram publi-


cados como panfleto, Marx ficou horrorizado por descobrir que a polémica
de Urquhart aparecia na mesma série — e imediatamente proibiu outras
reimpressões. «Não desejo fazer parte dos adeptos desse cavalheiro com
quem tenho apenas uma coisa em comum, nomeadamente, a minha opinião
sobre Palmerston», explicou a Ferdinand Lassalle. «Quanto ao resto, sou
diametralmente o oposto.»*^^
, A partir disto, pode-se inferir que quaisquer outros convites ou enco-
rajamentos por parte do maníaco seriam rejeitadas com um brusco: «Sai-me
da vista, Satanás!» Mas Marx não pôde manter os seus princípios durante
muito tempo. Importunado por credores impacientes, não conseguiu resistir
a uma encomenda para escrever uma série para um dos jornais de Urquhart,
o Free Press, de Sheffield, no Verão de 1856. «Os urquhartistas estão a ser
muito importunos», rosnou. «Financeiramente, é bom, mas não sei se,poli-
ticamente, devo envolver-me com essa gente.»''^Os artigos eram apropriada-
mente sensacionais: declarava ter descoberto, entre os manuscritos diplomá-
ticos n o Museu Britânico, «uma série de documentos datados do final do
século XVIII à época de Pedro, o Grande, que revelava a secreta e permanente
colaboração do gabinete em Londres com Sampetersburgo.». Facto ainda
mais alarmante, o objectivo da Rússia ao longo de todo esse período era,
nada mais nada menos, a conquista do planeta. «A potítica de Pedro, o Grande,
continua a ser a da Rússia moderna, independentemente das mudanças de
nome, governo ou disposição pelas quais este poder hostil possa ter passa-
do. Pedro, o Grande, foi de facto o inventor da política da Rússia moderna,
mas fê-lo despojando o antigo método moscovita do seu carácter meramente
local e as suas acidentais misturas, destilando-o numa fórmula abstracta, ge-
neralizando a sua finalidade e exaltando o seu objectivo: da aniquilação de
determinados limites de poder à aspiração de poder ilimitado.»
Havia uma falha evidente na teoria de que a Grã-Bretanha e a Rússia ti-
nham sido cúmplices nos últimos 150 anos: a Guerra da Crimeia. Urquhart
e Marx davam uma pronta explicação. A Guerra fora um truque manhoso
para afastar as suspeitas da corrupta aliança de Palmerston com a Rússia; e
a Grã-Bretanha tinha deliberadamente prosseguido a guerra de forma tão in-
competente quanto possível. Para os dedicados teóricos de conspirações
tudo é explicável e quaisquer factos inconvenientes constituem simplesmente
mais uma confirmação da diabólica dissimulação das suas vítimas.
OS LOBOS FAMINTOS 185

Marx deve ter-se convencido a si mesmo, mas poucas pessoas foram


persuadidas. Os seu ataques contra Palmerston e a Rússia foram publicados
novamente em 1899, pela filha Eleanor, como dois panfletos, A História
Diplomática Secreta do Século XVIII e .A História da Vida de l^orde Palmerston —
embora algumas das passagens mais provocantes tivessem sido retiradas.
Durante a maior parte do século XX, estiveram fora do mercado e pratica-
mente esquecidos. O Instituto do Marxismo-Lenismo de Moscovo não os
incluiu nas suas exaustivas obras completas, presumivelmente porque os
editores soviéticos não podiam admitir que o espírito que encabeçara a re-
volução russa fosse um fervoroso russófobo.'''*
Os hagiógrafos marxistas do Ocidente também se mostraram relutantes
em chamar a atenção sobre esta embaraçosa mistura de revolucionário e
reaccionário. U m exemplo típico é A Vida e o ensinamento de Karl Marx, de
John Lewis, publicado em 1965; o leitor curioso pode procurar em vão
qualquer referência a David Urquhart ou à colaboração de Marx para a sua
obsessiva cruzada.
Mais tarde, o próprio Urquhart consagrou-se a outras causas igualmen-
te quixotescas. Devoto católico romano, se bem que não ortodoxo, suplicou
durante largos anos ao Papa Pio IX que restaurasse a lei canónica enquanto
continuava infatigavelmente a fazer propaganda dos banhos turcos. («Num
dos Guardians que me enviaste há uma notícia em que David Urquhart figura
como infanticida», escreveu Marx a Engels em 1858. «O pobre diabo deu um
banho turco ao filho de 11 meses que provocou uma congestão cerebral e
a sua morte. O inquérito do médico legista durou três dias, e foi por um triz
que Urquhart escapou a ser condenado.»)''^ A casa de Urquhart em Rick-
mansworth, Hertfordshire, foi descrita por um visitante como «um palácio
oriental com um banho turco... cujo luxo não é inferior a nenhum de Cons-
tantinopla»''''. Uma sessão nesta decorada câmara de suor talvez tivesse fei-
to bem aos furúnculos de Marx, mas, que se saiba, ele nunca teve o prazer
de ter lá estado.
o H E R Ó I A CAVALO

Pouco antes da madrugada de 16 de Janeiro de 1855, Jenny Marx deu


à luz outra filha, Eleanor. Não se pode dizer que o pai tenha ficado extasiado.
<A. infelicidade do "se.-xd"par excellence», disse a Engels. «Se tivesse sido u m
í:ãpã.2, seria melhor», disse a Engels'^^^ Já a sua participação da chegada de
Franziska, quatro anos mais cedo, fora igualmente desprovida de alegria.
Seria portanto fácil inferir que Marx sentia pouco afecto pelas filhas; fácil,
mas errado. Todas as cartas e fragmentos autobiográficos testemunham que
o Mouro era um pai extremoso que inspirava devoção dedicada por parte da
sua progenitura. Ao contrário de muitos homens da sua geração, tratava as
raparigas como potenciais adultas inteligentes. Leu Homero, Shakespeare,
o Canto dos Nibelungos, Gundrun, Dom Quixote, as Mile UmaNoites e tudo o mais
tanto a Eleanor como às irmãs antes dela nascer. Quando ela cumpriu seis
anos de idade, ofereceu-lhe o primeiro Hvro, Peter Simples, ao qual se seguiu,
mais tarde, as obras completas de Marryat, Cooper e Walter Scott. Assun-
tos considerados tabu diante das crianças em outros lares da classe média
vitoriana — ateísmo, socialismo — não só eram permitidos como também
encorajados. Depois de uma saída familiar para ouvir uma missa cantada
numa igreja católica romana, quando Eleanor tinha cerca de cinco anos, ela
confessou sentir «certos escrúpulos religiosos» e, então, o pai «elucidou-a»
contando-lhe pacientemente a história do carpinteiro que os ricos tinham
morto. «Podemos perdoar muita coisa ao cristianismo porque nos ensinou
a adorar a criança.»
A referência de Marx ao género «infeliz» da filha não deve portanto ser
tomada como prova de misoginia nem frieza paternal. Está simplesmente
188^» I<:ARLMARX

a encarar a realidade económica e social: como não se esperava que as rapa-


rigas da classe média ganhassem a vida ou provessem à sua própria subsis-
tência, Eleanor seria mais um fardo financeiro numa situação já periclitante.
Mas, mesmo assim, não há dúvida de que Edgar — o bochechudo e tra-
quinas coronelMusch — era o favorito. Rapaz doentio, cuja grande cabeça
parecia demasiado pesada para o seu corpo débil, ele era, contudo, uma ines-
gotável fonte de entusiasmo e graça. Quando os pais se deixavam abater, ele
conseguia sempre animá-los cantarolando cantigas absurdas — ou a Marse-
lhesa—, com muito sentimento e aos gritos. N o dia em que Edgar cumpriu
cinco anos, Wilhelm Pieper, o secretário de Marx, ofereceu-lhe um saco de
viagem, mas, depois, arrependeu-se e quis recuperá-lo. «Escondi-o bem,
Mouro», confiou Musch ao pai. «E se o Pieper me perguntar onde está, vou
dizer-lhe que o dei a um pobre.»
Marx adorava o pequenino espertalhão, «um amigo que, pessoalmente,
me era mais querido do que qualquer outro»^. Este favoritismo é confirma-
do por uma carta de 3 de Março de 1855 a Engels, em que fazia uma lista das
várias maleitas que estavam a transformar o seu apartamento num peque-
no hospital: Edgar padecia de uma espécie de febre gástrica; Karl estava de
cama com uma tosse terrível; Jenny tinha uma dolorosa e irritante inflama-
ção num dedo; a bebé Eleanor era muito frágil e estava cada vez mais fraca.
«A situação de Edgar, é a pior», comentava Marx, o que era bastante surpreen-
dente, pois a vida de Eleanor corria perigo enquanto Edgar «fazia progres-
sos e melhorava a olhos vistos».
Mas a recuperação foi cruelmente breve e, quando Edgar piorou grave-
mente em fins de Março, o médico diagnosticou uma tuberculose e avisou
que não havia esperança. «Embora o meu coração sangre e sinta a cabeça a
arder, tenho evidentemente de manter a compostura», escreveu Marx. «No
decorrer da sua doença, nunca o meu filho se mostrou um só instante con-
trário à sua boa índole»\ Edgar morreu nos braços do pai pouco antes das
seis da manhã de 6 de Abril. Era Sexta-Feira Santa, o dia mais triste do ca-
lendário cristão e, assim, o falecimento do rapaz foi marcado pelos sinos das
igrejas. Wilhelm Liebknecht chegou à rua Dean pouco depois e encontrou
Jenny a chorar silenciosamente ao lado do cadáver com Laura e. jennychen
agarradas às sais como para se defenderem da força maligna que lhes rou-
bara os irmãos e as irmãs. Marx, quase de cabeça perdida, resistia furiosa e
violentamente a todos as condolências.
o HERÓI A CAVALO 0^189

O funeral ocorreu dois dias mais tarde no tabernáculo de Whitefield, em


Tottenham Court Road, local do repouso final de Frawkesy e Franziska. N o
decorrer do curto percurso até ao cemitério, Liebknecht afagou a testa de
Marx e tentou, de forma um pouco estúpida, lembrar-lhe quantas pessoas
gostavam dele — a mulher, as filhas, os amigos. «Não podes devolver-me o
meu filho!», uivou Marx, agarrando fortemente a cabeça. Quando estavam
a baixar o caixão, ele deu um passo em frente e, durante uns instantes, os
presentes julgaram que ele se ia atirar para dentro da cova. Liebknecht agar-
rou-o pelo braço.
Marx mal podia resolver-se a regressar a casa, a qual parecia insuporta-
velmente desolada sem o seu bobo da corte. «Já tive o meu quinhão de azar»,
disse a Engels. «Mas só agora sei o que realmente significa a infelicidade.
Sinto-me destroçado.»'* Durante vários dias, ele teve «a boa fortuna» de sentir
tais dores de cabeça que não conseguia pensar, ouvir nem ver. U m das poucas
coisas que o reconfortou foi a amizade de Engels, que convidou Karl e Jenny
a passar uns dias em Manchester para saírem do detestável ambiente d o
apartamento de Soho. Anos mais tarde, muito depois de ter m u d a d o de
bairro, Marx declarou que «a área à volta de Soho Square ainda me causa
arrepios quando passo, por acaso, por lá perto.»^
Mas, assim que voltaram a Londres, os antigos vestígios da presença de
Edgar — livros e brinquedos — mergulhou-os num pesar ainda mais pro-
fundo. «Bacon afirma que as pessoas realmente importantes têm uma tal
relação com a natureza e o mundo, tantos objectos de interesse, que facil-
mente recuperam das perdas sofridas», escreveu a Ferdinand Lassalle três
meses mais tarde. «Não sou uma dessas pessoas importantes. A morte do
meu filho feriu-me mortalmente e sinto a sua perda como no primeiro dia.
A minha pobre mulher também está completamente destroçada.»""
D e Julho a Setembro, a família foi morar no subúrbio de Camberwell, no
Sul de Londres, onde o refugiado alemão. Peter Imandt, lhes cedeu o apar-
tamento enquanto ele se encontrava na Escócia. E m b o r a lhes agradasse
manterem-se afastados da rua Dean por uns tempos, o motivo principal
daquela mudança era esconderem-se dos credores que andavam outra vez
atrás deles — em particular do vingativo Dr. Freund que, agora, ameaçava
processá-los por falta de pagamento dos seus honorários. E m meados de
Setembro, quando Freund descobriu o seu paradeiro, Marx teve novamen-
te de maquinar um plano de fuga — inspirando-se, segundo reivindicou, na
retirada estratégica das tropas russas do Sul de Sebastopol na semana ante-
190^9 KARL MARX

rior, após terem sido derrotados pelos franceses na batalha de Chernaya. «Fui
forçado ^otforce supérieure a evacuar a frente sul sem, contudo, destruir tudo
atrás de mim», informou Engels num despacho de guerra proveniente de
Camberwell. «Mas, na verdade, as minhas tropas permanecerão aqui enquan-
to eu estiver ausente durante uma ou duas semanas. E m outras palavras, sou
obrigado a retirar para Manchester onde espero chegar amanhã à noite. Terei
de passar incógnito e, por isso, não fales a ninguém da minha presença.»^
Dois dias depois de 1er esta carta, Engels enviou um longo artigo, «Pers-
pectivas da Crimeia», ao New York Daily Tribune — sob o nome de Marx —
no qual justificava a luta aparentemente desnecessária dos russos a sul de
Sebastopol. «A resistência numa cidade sitiada é, a longo termo, desmora-
lizadora», argumentou. «Implica privações, fadiga, doenças e a presença, não
do perigo crítico que dá forças mas de u m perigo crónico que acaba por
cansar o espírito... N ã o é de admirar que a desmoralização se apodere das
tropas; o que admira é que isso ainda não tenha sucedido há mais tempo.»
É difícil de acreditar que Engels tenha escrito esta avaliação táctica sem ter
em mente a situação precária do seu amigo.

N a Primavera de 1855, entre o aniversário de Eleanor e a m o r t e de


Musch, deu-se um evento familiar que alegrou imenso Marx. «Fomos in-
formados ontem acerca de um ACONTECIMENTO MUITO FELIZ», escreveu
a 8 de Março. "A morte do tio da minha mulher aos 90 anos."» Nada tinha
contra Heinrich Georg von Westphalen, advogado e historiador inofen-
sivo, à parte o facto da sua longevidade ter atrasado a repartição da sua con-
siderável fortuna. E m casa de Marx, esse tio indestrutível era denomina-
do «o nega-heranças». A parte que cabia a Jenny, cerca de cem libras, chegou
no fim desse ano e, no Verão de 1856, ela recebeu mais 120 libras pela morte
da mãe. Nessa ocasião, contudo, até mesmo Marx se mostrou suficiente-
mente delicado para não se regozijar abertamente, sobretudo porque Jenny
passara os últimos dias à cabeceira da baronesa em Trier. «Ela parece ter
ficado muito afectada pela morte da velha senhora», notou ele em t o m li-
geiramente surpreso.
Estas duas heranças inesperadas permitiram-lhe escapar finalmente do
«velha toca» em Soho e, depois de calcar as ruas durante duas semanas à
procura de um alojamento mais salubre, decidiu-se por um prédio de qua-
tro andares localizado no número 9 de Grafton Terrace, em Kentish Town,
perto de Hampstead Heath. A renda anual de 36 libras era barata para o norte
o HERÓI A CAVALO t^ií» 191

de Londres — provavelmente porque, como Marx explicou a Engels, esta


parte de Hampstead tinha permanecido «um pouco inacabada». Mais do que
um pouco, deve-se acrescentar: as ruas não eram pavimentadas nem ilumi-
nadas, e um enorme estaleiro de construção elevava-se na vizinhança. Até
à década de 1840, tinha sido ocupada por campos verdes, mas a che-
gada dos caminhos-de-ferro transformara os arrabaldes rurais de Londres
em subúrbios para a classe média. Como acontece hoje com as urbanizações
em subúrbios distantes, o estilo arquitectónico era uma confusão híbrida e
caprichosa.
O prédio de Grafton Terrace fora oficialmente classificado de «terceira
classe» pelo Departamento Metropolitano de Construção, mas Marx acha-
va-a «muito simpático». Jenny deleitava-se com os prazeres esquecidos do
conforto doméstico e contratou a meia irmã de Helene Demuth, Marianne
Creuz, para ajudar na Hda da casa. «É realmente um alojamento principes-
co comparado com os buracos onde vivemos antes», disse a uma amiga. «E
embora tenha sido mobilado de alto a baixo por pouco mais de 40 libras
(sobretudo com mobílias em segunda mão), senti-me ao princípio muito
elegante na nossa confortável sala.»* Depois de ter recuperado a roupa bran-
ca e prata dos ArgyU do «tio» — da casa de prego — , era com grande pra-
zer que estendia as toalhas de damasco na mesa da casa de jantar. E também
houve celebrações de carácter mais íntimo: poucas semanas depois de se ins-
talarem em Grafton Terrace, Jenny ficou grávida pela sétima vez.
As três crianças adoravam a sua nova vida no seio da classe média.
Jennychen e Laura, agora com 12 e 11 anos respectivamente, passaram a fre-
quentar o colégio para meninas de South Hampstead, tornando-se dentro
de pouco tempo excelentes alunas em todas as disciplinas. Eleanor, com dois
anos e a quem chamavam Tmsy para rimar com Pussy (gatinha), representava
lindamente o seu papel de minichâtelaine e recebia todas as crianças que dese-
jassem visitá-la. Quando estava bom tempo, tomava chá sentada nos degraus
da porta principal antes de ir brincar na rua com as outras meninas. A sua
fama era tal, que a maior parte dos vizinhos tinha alcunhado a família Marx
de os Tussies.
Até mesmo o quintal das traseiras, pouco mais de alguns metros quadra-
dos de relva e cascalho, era uma novidade deliciosa. Uma das recordações
da infância de Eleanor é a de Marx transportando-a às cavalitas à volta do
jardim e enfeitando-lhe os caracóis castanhos com flores.
192 \f/-s KARL MARX

«O Mouro era, na opinião de todos, um esplêndido corcel. N o s primei-


ros tempos — não me lembro bem, mas ouvi falar deles vezes sem conta
— as minhas irmãs e o meu irmão pequenino — cuja m o r t e p o u c o
depois do meu aniversário foi um imenso desgosto para os meus pais —
atrelavam cadeiras ao Mouro, sentavam-se nelas e ele tinha de os puxar...
Pessoalmente — talvez por não ter irmãs com a minha idade — pre-
feria montá-lo como um cavalo. Sentava-me às suas cavaHtas bem agar-
rada à sua crina, a qual era então preta com alguns cabelos grisalhos. Dei
grandes cavalgadas à volta do pequeno jardim e nos campos —- agora
cobertos de construções — que rodeavam a nossa casa. 9

Aos domingos, os Marx e os amigos de visita iam de passeio até Hamps-


tead Heath para fazer um piquenique, frequentemente a sua única refeição
substancial durante toda a semana. Apesar do reduzido orçamento, Lenchen
conseguia normalmente arranjar uma perna de vitela acompanhada de pão,
queijo, camarões e legumes, bem como cerveja comprada na taberna local,
o Castelo, de Jack Straw. Depois do almoço, as crianças iam brincar às escon-
didas por entre as moitas enquanto os adultos faziam uma sesta ou liam os
jornais de domingo — no entanto, a exemplo do que acontece com tanta
frequência nos passeios de família, o relutante papá era muitas vezes arras-
tado do seu torpor e obrigado a juntar-se à brincadeira dos filhos. «Vamos
ver quem consegue atirar mais castanhas abaixo!», as filhas gritaram um dia,
apontando para o castanheiro carregado de frutos e, durante um hora, ou
duas, Marx bombardeava a árvore até esta ficar completamente nua, fican-
do depois incapacitado de mexer o braço direito durante uma semana.
Por vezes, aventuravam-se mais longe, até aos prados verdes e colinas
para lá de Hightgate, à procura de jacintos e malmequeres ignorando alegre-
mente os letreiros de «Proibida a Passagem», das propriedades privadas.
Wilhelm Liebknecht, que os acompanhou em várias destas expedições,
admirava-se pela quantidade de flores que cresciam na Primavera no clima
frio e húmido de Inglaterra. «Contemplávamos orgulhosamente dos nossos
prados fragrantes, a poderosa cidade sem limites que se estendia a nossos pés
envolta numa neblina misteriosa», escreveu.
N o caminho de regresso a casa, Marx cantava com as filhas cantigas fol-
clóricas alemãs e espirituais negros ou recitava longas passagens de Dante e
Shakespeare. «Julgávamos realmente que vivíamos num castelo encantado,
suspirava Jenny Marx. Mas o encanto dependia de prestidigitações financeiras.
o HERÓI A CAVALO . _ 193

Foi apropriadamente nessa altura que Marx começou a entreter a pequenina


Eleanor com os seus contos de Hans Röckle, o feiticeiro sem dinheiro «que
nunca conseguia cumprir as suas obrigações para com o diabo nem para com
o talho e, por conseguinte, se via constantemente obrigado — apesar do seu
desespero — a vender os brinquedos ao demónio.» A herança de Jenny tinha
sido toda gasta para pagar as dívidas e mobüar a casa, e, uma a uma, as novas
mobílias e a preciosa roupa branca antiga voltaram a ser penhoradas.
«As nuvens que se acumulam por cima do mercado financeiro são deve-
ras sombrias», escreveu Engels na própria semana em que os Marx se mu-
daram para Grafton Terrace. «Desta vez, haverá uma catástrofe nunca dan-
tes vista: toda a indústria europeia em ruínas, todos os mercados com excesso
de stock (já nada é enviado para a índia), todos os proprietários nas lonas, a
burguesia em falência total, guerra e libertinagem até ao último grau. Tam-
bém acredito que tudo isso virá a passar-se em 1857 e, quando ouvi dizer que
andavas a comprar de novo mobília, disse para comigo mesmo que a coisa
é certa e aceito apostas. Por hoje, é tudo. Saudades à tua mulher e crian-
ças.. .»^'^ Vistas as circunstâncias, a piada é um pouco insensível.
Assim que se instalou no castelo encantado, Marx apercebeu-se, com
horror, de que não havia dinheiro para a renda. «Aqui estou eu, sem nenhu-
mas perspectivas e com crescentes obrigações domésticas, completamente
às aranhas numa casa na qual investi o pouco que possuía e onde é impos-
sível viver o dia a dia como fazíamos na rua Dean», escreveu a Engels em
Janeiro de 1857. «Não sei o que fazer e encontro-me numa situação mais
desesperada do que há cinco anos. Julguei que já tinha bebido a amarga taça
da vida até à última gota. Mais non! E o pior é que não se trata de uma sim-
ples crise passageira. N ã o estou a ver como é que vou sair disto.»"
Engels ficou siderado: julgava que, finalmente, tudo estava a correr pelo
melhor — tu a viveres numa casa decente e os teus problemas resolvidos —
mas, afinal, tudo está na mesma.. .»^^ Prometeu enviar cinco libras por mês
mais um suplemento sempre que fosse necessário. «Nem que isso signifique
eu endividar-me. Devias ter-me falado do assunto há duas semanas.» Pois,
como confessou, tinha acabado de comprar um novo cavalo com o dinhei-
ro que o pai lhe oferecera no Natal. «Sinto-me muito envergonhado por ter
um cavalo aqui enquanto tu e a tua família estão a atravessar um mau m o -
mento em Londres.»
Quem mais sofria com os infortúnios domésticos era Jenny Marx. O ma-
rido podia retirar-se para o seu gabinete, barricando-se atrás de livros e jornais;
194''i£,- KARL MARX

e as raparigas distraíam-se com as novas amigas e os deveres escolares. Mas


Jenny não podia refugiar-se em nenhum lado. Sentia a falta das ruas anima-
das de West E n d , dos encontros, dos clubes epubs, e das conversas entre
compatriotas alemães com quem partilhavam a miséria do exílio:

«O acesso à nossa atraente casinha, a qual nos parecia um palácio em


comparação com os sítios em que tínhamos vivido, não era fácil. N ã o
tinha estrada e havia uma série de construções à volta. Uma pessoa era
obrigada a abrir caminho por entre montes de entulho e, quando chovia,
a lama vermelha colava-se aos sapatos. Chegávamos a casa extenuados
e com os pés pesados. E, além do mais, o bairro era escuro. Por isso, em
vez de termos de enfrentar a escuridão, o entulho e a lama, preferíamos
passar o serão diante da lareira. Passei bastante mal naquele Inverno, sem-
pre rodeada de remédios.»"

A 7 de Julho, deu à luz uma criança morta, mas mal teve forças para a
chorar. «Todos os dias me pareciam iguais.» Para além de Grafton Terrace,
o seu único contacto com o mundo era copiar os artigos que Marx escrevia
duas vezes por semana para o Dailj Tribune. Mas, depois, até mesmo isso
acabou. A o notar que o jornal publicava cada vez menos as suas contribui-
ções — e, claro está, ele era pago pelo que era impresso — , Marx entrou em
greve. «É realmente revoltante que uma pessoa seja condenada a conside-
rar uma bênção o facto de ser publicado num jornaleco como este», comen-
tava, enraivecido. Via-se como um mendigo num hospício a ter de esmiga-
lhar ossos para fazer uma sopa.
A sua ameaça de ir trabalhar para outro jornal deu resultado — mas,
apenas, em parte. O director do Tribune, Charles Dana, propôs pagar-lhe uma
coluna por semana quer esta fosse publicado, ou não. «Estão efectivamente
a reduzir a minha colaboração para metade»^*, queixou-se Marx. Como con-
cessão, Dana convidou-o então a escrever dois artigos para uma antologia
que iria editar, a New American Cyclopaedia — u m sobre grandes generais e
outro sobre a história da guerra. Embora se tratasse de uma tarefa entediante
e mercenária, Marx não se encontrava em posição para recusar os honorá-
rios de dois dólares por página.
O pretenso general Engels encarregou-se com prazer da maior parte do
trabalho — dar-lhe-ia uma coisa para fazer à noite, disse — e meteu imedia-
tamente mãos à obra: Abensberg, Ajudante, Actium, Alma, Armada, Arti-
o HEROl A CAVALO 195

Iharia... Mas uma crise de febre glandular pô-lo efectivamente fora de com-
bate e teve de passar o resto do Verão numas termas de Lancashire apropria-
damente chamadas Waterloo. Isto deixou a Marx o espinhoso problema de
ter de explicar a Dana o súbito corte de mantimentos. «O que é que eu vou
dizer-lhe?», gemeu. «Na medida em que continuo a enviar artigos para o
Tribune, não me posso desculpar que estou doente. É uma situação levada da
breca.»" Tentou ganhar tempo fingindo que a remessa se perdera nos cor-
reios.
A revolta dos cipaios contra o domínio britânico na índia veio aumen-
tar ainda mais os seus problemas, pois o jornal esperava, muito naturalmente,
que o seu perito em assuntos políticos lhes enviasse uma minuciosa análise
da situação. Felizmente, Marx tinha aprendido suficientes manhas com o
falecido Musch para resolver a questão. «Quanto ao caso de DeU», confessou
confidencialmente a Engels, «parece-me que os ingleses terão de retirar logo
que as monções começarem. Sendo obrigado, nas presentes circunstâncias,
a substituir-te como correspondente militar do Tribune, decidi adiantar essa
teoria... É muito possível que seja uma burrice e, assim, formulei a ideia de
modo a poder safar-me com um pouco de dialéctica.»^'' E m Setembro, Engels
sentiu-se suficientemente bem para poder continuar com a enciclopédia e
enviou uma torrente de artigos da ilha de Wight onde estava em convales-
cença — sobre Batalhas, Baterias, Blücher e muito mais. A o visitar Jérsia em
Outubro, passou para a letra seguinte do alfabeto, começando com Canhões.
Podiam Campanha e Cavalaria seguir em breve?
Tal produtividade foi, contudo, interrompida pela mais gloriosa notícia
imaginável: o cataclismo internacional financeiro tinha, finalmente, começa-
do. A falência de um banco em Nova Iorque tinha espalhado a crise através
da Austria, Alemanha, França e Inglaterra como uma apocalipse galopante.
Engels voltou apressadamente a Manchester em meados de Novembro para
assistir ao espectáculo —• preços em queda livre, falências e pânico. «O as-
pecto geral da Bolsa (de algodão) aqui foi deliciosa», disse a Marx. «Os meus
colegas estão furiosos pela minha súbita e inexplicável boa disposição.»"
O d o n o de uma fábrica já tinha vendido todos os cavalos e galgos, despe-
dido a criadagem e posto a sua mansão para alugar. «Mais duas semanas e
a crise atingirá o seu apogeu.»'**
Seguir-se-ia imediatamente a revolução? Engels duvidava: após um lon-
go período de prosperidade, os trabalhadores mostravam-se bastante letárgi-
cos. Mas tanto melhor, pois os futuros líderes das massas deviam, primeiro.
196«^ KARL MARX J

preparar-se para o combate. Segundo a visão de Engels, seria ele mesmo quem
comandaria o exército insurrecto para esmagar toda a resistência burguesa
— com cargas de cavalaria através das ruas de Manchester e Berlim —
enquanto Marx dirigiria a facção civil da campanha, elucidando o proleta-
riado quanto aos mistérios da economia política. «É um caso de fazer ou
morrer», anunciou Engels, afivelando as esporas. «Isto vai servir para pôr em
prática os meus estudos militares. Vou apresentar sem demora a minha
candidatura às escolas de táctica elementar dos exércitos austríacos, bávaros,
franceses e prussianos e, à parte isso, dedicar-me exclusivamente a montar
a cavalo e à caça à raposa, a melhor de todas as escolas.»^'
E n q u a n t o bebericavam os seus cocktails, os m e m b r o s d o clube de
Cheshire Hunt estavam longe de imaginar que o encantador Sr. Engels es-
tava secretamente a preparar-se para vir a ser o Napoleão do Noroeste da In-
glaterra. Mas Engels estava a falar muito a sério: «Afinal de contas, queremos
ensinar umas coisas à cavalaria prussiana quando voltarmos à Alemanha. Vai
ser difícil a esses cavalheiros competir comigo, porque já tenho muita prá-
tica e faço progressos todos os dias... A n d o agora a preparar-me para
montar em terreno acidentado; é bastante difícil.»^*' A equitação, julgava ele,
era a «base material» do sucesso militar. Por que é que o malvado Luís Bona-
parte era considerado um herói pela pequena burguesia francesa? «Porque
monta com muita elegância.» Estes comentários deviam irritar imenso Marx,
cuja falta de jeito para montar — demonstrada nos passeios domingueiros
de burro em Hampstead Heath — era uma piada de família.
N o fim de Dezembro, os constantes treinos de Engels tinham transforma-
do o comerciante de algodão num impetuoso cavaleiro. «Fui a uma caçada à
raposa no sábado — sete horas na sela», escreveu, ofegante, na véspera do
Ano Novo. «Este tipo de exercícios deixa-me num estado de diabólica ex-
citação durante dias; é o maior prazer físico que conheço. Apenas duas outras
pessoas, mais bem montadas, eram melhores cavaleiros do que eu. Pelo
menos 20 tipos caíram, dois cavalos rebentaram e matámos uma raposa
(numa acção em que eu estive presente)... E, agora. Feliz Ano N o v o para
toda a tua família e um Bom Ano de combate em 1858.»
Marx, sem estar lá muito convencido de que tudo isto servia para gran-
de coisa, perguntava-se como é que iria ganhar mais dólares com a Ciclopae-
dia, enquanto o seu co-autor andava a saltar fossas e sebes. Elstava cheio de
dívidas e os credores andavam novamente a ameaçá-lo. «Não mencionei an-
tes o assunto porque a última coisa que desejo é prejudicar a tua saúde».
o HERÓI A CAVALO « * ^ 197

sugeriu amavelmente. «Mas, às vezes, parece-me que, se conseguisses escre-


ver um pouco todos os dois dias talvez te acalmasses.»^' Engels recusou:
como é que podia 1er, ou escrever, com a cabeça cheia de visões de «ruína
geral»? Marx acusou o toque. Apesar de todos os seus protestos quanto à
necessidade de ganhar a vida, também ele se sentia contagiado pelo espíri-
to melodramático daquele m o m e n t o . Aceitava o facto do destino o ter
nomeado principal teórico da revolução. Fortificado por «uma simples limo-
nada numa mão e uma enorme quantidade de tabaco na outra», sentava-se
no seu gabinete todas as noite do longo Inverno de 1857-58, até às quatro
da madrugada, debruçado sobre os seus estudos de economia «para, pelo
menos, definir as suas linhas gerais antes do déluge.yp-
O dilúvio, porém, nunca veio: as sombrias nuvens tempestuosas eram
apenas anunciadoras de aguaceiros. Mas Marx continuou a construir a sua
de arca, convencido de que, mais cedo ou mais tarde, a terra seria inunda-
da. Quando a aritmética escolar se mostrou inadequada para resolver fórmu-
las económicas complexas, tirou um curso de álgebra à pressa. C o m o ele
mesmo explicou, «é essencial tratar a fundo desta matéria para benefício do
público»"\ E, realmente, aquelas suas anotações nocturnas encheram mais
de 800 páginas, as quais só foram tornadas públicas pelo Instituto Engels-
-Marx em 1939 e finalmente publicadas por uma editora alemã em 1953 sob
o ü'tulo Grundrisse der Kritik derPolitischen Oekonomie. A primeira edição inglesa
apareceu 20 anos mais tarde, em 1971.
Grudrisse — nome pelo qual é geralmente conhecida — é uma obra frag-
mentária e, por vezes, incoerente e foi descrita pelo próprio Marx como uma
autêntica salgalhada. Mas, como elo de ligação dos Manuscritos Hconómicos e
Filosóficos (1844) com o primeiro volume de O Capital{y 867), dissipa a comum
concepção falsa de que há uma espécie de «ruptura radicab> entre o jovem
e o velho Marx. O vinho pode amadurecer e melhorar engarrafado, mas con-
tinua a ser vinho. Há extensas secções sobre a alienação, a dialéctica e o sig-
nificado do dinheiro que retomam o que ele omitiu nos manuscritos de Paris,
sendo a diferença mais impressionante o facto de ele, agora, misturar a eco-
nomia e a filosofia enquanto, dantes, estas eram tratadas em separado. (Ci-
tando Lassalle, ele expôs isto como «um Hegel economista e um Ricardo
socialista».) D e resto, a análise do poder laboral e do valor excedentário
antecipa a exposição mais completa destas teorias em O Capitai
Propõe, na primeira página, que o material de produção — «os indivíduos
produzindo em sociedade» — deveriam constituir a base de qualquer inqué-
198 ^ B KARL MARX

rito sério à história económica. «O caçador ou o pescador individual e iso-


lado, que constitui o p o n t o de partida de Smith, ou Ricardo, pertence ãs
insípidas ilusões do século XVIII.» Os seres humanos são animais sociais, e
a crença de que a «produção» começa com pioneiros solitários agindo de for-
ma independente «é tão absurda como a ideia do desenvolvimento da lingua-
gem sem indivíduos a viver juntos e a falar uns com os outros».
Os subtítolos da introdução — A 'Relação Geral da Produção com Distribui-
ção, Troca e Consumo, O Método da Economia Politica, etc. — dão a impressão de
que se trata de um trabalho rigorosamente esquemático. Mas Marx nunca
consegue cingir-se a um programa determinado durante muito tempo e,
muito em breve, começa a entrar em digressões e rodeios pitorescos. N a suas
notas quanto à relação entre a produção e o desenvolvimento geral da so-
ciedade em qualquer altura dada, faz subitamente uma pausa para divagar
sobre a persistente atracção dos artefactos culturais. Porque ainda damos
valor ao Partenon, ou à Odisseia, muito embora a mitologia de onde provêm
nos seja, agora, totalmente alheia?

«É a perspectiva da natureza e das relações sociais que deram forma


à arte e imaginação gregas possível na época das máquinas automáticas,
caminhos-de-ferro e telégrafos? O n d e figura Vulcano em comparação
com Roberts & Company? Júpiter em comparação com o pára-raios...
É a Iliada compatível com a prensa tipográfica e até mesmo as máquinas
de impressão? O canto, a recitação e as musas, bem como, por conse-
guinte, os requisitos indispensáveis da poesia épica, não desaparecem ne-
cessariamente com o aparecimento do tipógrafo?»

Pelos vistos, não: Marx escrevia apenas uns anos antes de Alfred Ten-
nyson ser laureado como poeta e de o seu Ulisses se tornar num dos poemas
mais populares da nossa época. Porquê, então, a estética da Grécia antiga
continua a ser não apenas uma fonte de prazer, mas também o padrão, ou
modelo, aspirado por tantos artistas e escritores vitorianos?
Excelente pergunta — mas a breve resposta de Marx mal lhe fez justiça.
Embora nenhum homem possa tornar-se uma criança, escreveu, «não apre-
cia ele as maneiras naturais das crianças e não tem ele de se esforçar para
reproduzir a verdade num plano mais elevado?» Similarmente, «porque não
deveria exercer encanto a infância da sociedade humana, quando os mais
belos feitos foram alcançados, como a época que nunca mais há-de voltar?»
o HERÓI A CAVALO < * ^ 199

Talvez Marx estivesse a pensar nos seus jogos com as meninas em Hamps-
tead Heath: no interior daquele corpo de 39 anos, prematuramente envelhe-
cido, havia um adolescente a esbracejar e a pedir para sair. Por vezes, quan-
do observava as crianças a brincar, ansiava juntar-se a elas para clarear o
espírito de todas as misérias acumuladas.
A maior dor de cabeça de todas era a que ele denominava «a merda eco-
nómica». Já em 1845, tinha declarado que o seu tratado sobre economia
política estava quase terminado, e no decorrer dos 13 anos seguintes embele-
zou e repetiu tantas vezes a mentira que as expectativas dos amigos atingi-
ram um clímax impossível. A avaliar pelo tempo que demorou, raciocinaram
eles, deve tratar-se realmente de um magnum opus explosivo que iria fazer
desabar os edifícios, sem alicerces, do capitalismo — as torres que chegavam
às nuvens, os magníficos palácios, os templos solenes, o próprio globo
imenso — sem nada deixar de pé. Tal pretensão foi mantida através de
boletins enviados regularmente de Londres a Manchester a confirmar os seu
progressos na redacção da obra. «Demoli completamente a teoria do lucro
como até agora tem sido formulada», informou triunfalmente a Engels, em
Janeiro de 1858. Mas tudo o que ele tinha para mostrar depois de todos
aqueles longos dia no Museu Britânico e noites ainda mais longas à secre-
tária era uma pilha de livros de apontamentos por publicar cheios de gara-
tujas redigidas ao acaso.
A publicação no final daquele mês do novo livro de Ferdinand Lassalle
sobre a filosofia de Heraclito — um calhamaço de dois volumes — fê-lo mais
consciente da sua incapacidade em concluir o seu trabalho. C o m o tinha
Lassalle, que se dizia Hder do socialismo alemão, arranjado tempo para ter-
minar uma obra filosófica tão volumosa? Marx lidou com a sua consciência
culpada depreciando o feito de Lassalle e assegurando a Engels que o livro
sobre Heraclito era «uma confecção muito imbecü». É verdade que demons-
trava grande erudição — mas «desde que uma pessoa tenha tempo e dinhei-
ro, e, como n o caso do Sr. Lassalle, a possibilidade de lhe levarem a biblio-
teca da universidade de Bona a casa, é bastante fácu reunir uma tal quantidade
de citações. Nota-se que ele se julga muito importante... Uma palavra em
duas é uma asneira e extremamente pretensiosa».^'^
Lassalle era sete anos mais novo que Marx e embora tivessem muita coisa
em c o m u m — eram ambos burgueses judeus alemães, desmamados de
Heine e Hegel, com um fraco por mulheres aristocratas — , o contraste em
termos de sorte era dolorosamente nítido. Quando ainda era estudante de
200'^^ KARL MARX

filosofia, Lassalle tinha tomado vigorosamente a defesa da condessa Von


Hatzfeldt que estava a contestar uma famosa acção de divórcio. Parecia uma
heroína pouco provável da causa socialista, mas, para este jovem dogmático,
a situação desesperada dela constituía a prova da velhacaria das classes altas:
o conde roubara efectivamente o dote da mulher, mas, segundo as leis ale-
mãs da altura, ela tinha poucas possibilidades de o reaver. Lassalle envol-
veu-se no caso com total desrespeito por questões legais — subornando
testemunhas, sonegando documentos — até, após dez anos de dúzias de
processos, o marido exausto acabou por devolver o p r o d u t o do saque.
A recompensa que Lassalle recebeu fez a sua fortuna: instalou-se num pa-
lacete em Berlim decorado no mais exótico e luxuoso estilo; o seu cama-
rote na ópera ficava ao lado do rei e em nada lhe era inferior. Até mesmo
Bismark, que sabia reconhecer um h o m e m bem fadado logo que via um,
vinha cumprimentá-lo.
N ã o é portanto de admirar que alguns dos trabalhadores que Lassalle
dizia representar não confiassem nas suas intenções — além de se mostra-
rem perplexos pelo apoio aparente que Marx lhe dava. N a Primavera de 1856,
os comunistas de Düsseldorf enviaram um emissário a Londres, um certo
G u s t a v Lewy, na esperança de convencer Marx a cortar relações com
Lassalle. Durante um semana inteira, Lewy regalou o seu anfitrião com his-
tórias sobre as traficâncias, oportunismo e ambição ditatorial de Lassalle.
«Lassalle parece ver-se de uma maneira completamente diferente de como
nós o vemos a ele», escreveu Marx a Engels imediatamente depois desse
encontro. «Apesar dos meus preconceitos em favor de Lassalle e da minha
desconfiança em relação aos mexericos dos trabalhadores, tudo isto causou
uma profunda impressão sobre mim e Freiligrath. Disse porém a Lewy que
era impossível chegar a uma conclusão baseando-me nas informações de um
único lado.»^^
N ã o era c o m u m para Marx dar o benefício da dúvida a alguém, mas
Lassalle não era qualquer um. Ficara muito impressionado pelo seu entusias-
m o e ousadia quando se tinham encontrado pela primeira vez na Alemanha
durante a revolução de 48 e, embora a sua amizade desde então fosse pura-
mente epistolar, nada tinha ouvido que o fizesse rever a sua opinião. Talvez
Lassalle fosse um tirano potencial, como Lewy o preveniu, um megalómano
perigoso, pronto a esmagar os trabalhadores e a formar alianças com o ab-
solutismo prussiano para conquistar o poder; mas tal nunca transparecera,
conmdo, nas cartas que ele lhe tinha escrito. Até mesmo no apogeu da fama
o HERÓI A CAVALO .„ 201

Lassalle manteve-se leal ao seu camarada indigente de Londres — louvando


as suas ideias, encorajando-o a terminar o seu livro e enviando ocasionais
doações. Deveria repudiar um benfeitor tão generoso simplesmente por cau-
sa de mexericos dos trabalhadores? O único conselho de Marx a Lewy e ao
comunistas de Düsseldorf foi que «deveriam continuar a mantê-lo debaixo de
olho e evitar, por enquanto, qualquer querela pública».
Por volta da Primavera de 1858, Marx teve outro motivo para evitar
«qualquer querela púbHca»: Lassalle propunha arranjar-lhe um contrato com
um editor de Berlim, Franz Duncker (cuja mulher era amante de Lassalle).
Embora dissesse mal do livro sobre Heraclito na sua correspondência pri-
vada com Engels, transmitia ao autor um veredicto completamente diferente:
«Percorri atentamente o seu Heraclito. A sua reconstrução a partir de frag-
mentos é brilhante e fiquei igualmente impressionado pela perspicácia dos
seus argumentos... Não compreendo como é que arranjou tempo no meio
de todos os seus fazeres para conhecer tão bem a filologia grega.»^*" E, de-
pois de dar estas pouco sinceras felicitações, descreve a estriitura do seu pró-
prio trabalho em curso.

«Estou presentemente a redigir uma crítica das categorias económicas


ou, se preferir, a fazer uma exposição crítica do sistema da economia bur-
guesa. .. A ser repartida em seis volumes: 1, O Capital (com alguns capí-
tulos introdutórios); 2. A propriedade latifundiária; 3. A mão-de-obra; 4.
O Estado; 5. O comércio internacional; 6. O mercado mundial.»^''

Marx desejava que esta obra fosse publicada em fascículos. O primeiro


volume — sobre o capital, a competição e o crédito — estaria pronto para ser
impresso em Maio, o segundo alguns meses mais tarde e assim sucessivamente.
Os prazos eram bastante apertados e, como acontecia com frequência
quando ele se sentia pressionado, o seu organismo revoltou-se. «Tenho
andado tão doente esta semana por causa do fígado que me sinto incapaz de
pensar, 1er, escrever ou fazer o que quer que seja», disse a Engels a de 2 de
Abril. «O meu mal-estar é desastroso pois, até me sentir melhor e os dedos
recuperarem a força, não consigo trabalhar no livro para Duncker.» E pas-
sou o resto do mês sem escrever uma linha. «Nunca tinha tido uma crise de
fígado tão violenta. Cheguei a temer que se tratasse de esclerose... Sempre
que me sento e escrevo um par de horas, tenho depois de ficar deitado du-
rante dois dias.»
2 0 2 ^ . KARL MARX

Era um queixume famiUar. «Estamos tão acostumados a estas desculpas


por o trabalho não ser concluído!», comentou Engels muitas vezes ao reler
algumas das cartas de Marx. «Sempre que a sua saúde o impedia de continuar,
ficava muito deprimido e tentava encontrar uma desculpa teórica para jus-
tificar o não cumprimento da tarefa que tinha entre mãos.»^^ Uma tal decla-
ração assume que a saúde dele sabotava o seu trabalho, mas pode-se argu-
mentar que o que se passava era exactamente o contrário. Embora as maleitas
de Marx fossem autênticas, existia indubitavelmente um factor psicosso-
mático. Como ele mesmo admitia, «a minha doença tem sempre origem no
meu espírito».^'''
N o Verão de 1851, quando começou a escrever regularmente para o New
York Daily Tribune, sentiu-se imediatamente doente e suplicou a Engels que
o substituísse. Uns meses mais tarde, quando Weydemeyer lhe pediu uma
contribuição para o jornal que publicava. Die 'Revolution, ficou de cama uma
semana. N o Verão de 1857, quando a pobreza o obrigou a trabalhar para a
enciclopédia americana, teve problemas de fígado durante três semanas. E,
agora, que LassaUe e Duncker lhe pediam o envio do manuscrito, qualquer
pessoa que conhecesse Marx adivinharia a reacção dele. Jenny, por exemplo,
não ficou nada surpreendida pelo repentino ataque de bílis. E m Abril de
1858, altura em que Marx estava tão doente que nem conseguia escrever uma
carta, ela contou a Engels que «o facto de ele ter piorado deve-se, em gran-
de parte, à sua inquietação mental que, agora, depois de ter assinado o con-
trato com o editor, é maior e aumenta todos os dias, pois sente-se incapaz
de terminar o trabalho».^*^
Pouco depois, Marx passou uma semana em Manchester, onde Engels
lhe receitou o seu remédio favorito: exercícios equestres. «O Mouro andou
hoje a passear a cavalo durante duas horas», revelou Engels a Jenny num bo-
letim médico, «e sente-se tão bem que está todo entusiasmado.»^^ Mas, as-
sim que regressou à sua secretária em Grafton Terrace, todos as antigas an-
siedades voltaram-lhe a cair em cima.
Marx era muito irrequieto, sempre à procura de qualquer coisa ou a andar
de um lado para o outro no seu gabinete. (Uma parte da carpete entre a porta
e a janela estava tão bem assinalada como um atalho através de um prado.) Já
em Agosto de 1846, quando a sua «merda económica» já deveria ter sido en-
tregue a outro editor alemão, ele expMcou o atraso da seguinte maneira: «Como
o manuscrito do primeiro volume está aqui a apanhar poeira há tanto tem-
po, não quero que seja publicado antes de o rever novamente tanto no que
o HERÓI A CAVALO ^ 1 2 0 3

respeita o conteúdo como o estüo. Escusado será dizer que um escritor que
trabalha constantemente não pode publicar, palavra por palavra, o que escre-
veu há seis meses.»^^ Muitos autores conhecem este síndrome — o temor de
deixar finalmente um navio ser lançado à água sem lhe passar outra camada
de tinta ou apertar mais uns parafiasos. No Verão de 1846, pensava que leva-
ria cerca de seis meses para dar os retoquesfinais.«A versão revista do primeiro
volume estará pronta para publicação no fim do mês de Novembro. O segundo
volume, de natureza mais histórica, será entregue pouco tempo depois.»
Uma década mais tarde, a arca de Marx ainda se encontra na doca seca.
«Há já alguns meses que trabalho na fase final da minha economia poKtica»,
escreveu a Lassalle em fins de Fevereiro. «Mas avanço muito lentamente
porque assim que me debruço sobre temas a que dediquei anos de estudo,
novos aspectos que exigem uma maior reflexão começam a surgir.»^^ En-
quanto faltasse uma fonte a consultar, ou um tratado a ser lido — o que
estava sempre a acontecer —, não permitia que o manuscrito fosse entre-
gue ao editor.
E, claro está, tinha de debater-se contra os outros inimigos de promessas
— a doença, a pobreza e os deveres domésticos. Eleanor adoeceu com tosse
convulsa; Jenny estava «uma puha de nervos»; o talho, a casa de prego e demais
credores exigiam pagamento. Como Marx brincava lugubremente, «não creio
que ninguém tão teso tenha alguma vez escrito sobre dinheiro»^'^. A patinhar
num charco de vexames, quase nada escreveu ao longo desse Verão; no final
de Setembro, clamou que o manuscrito estaria pronto «em duas semanas,
mas, um mês mais tarde», admitiu que «só daqui a várias semanas poderei
mandá-lo»^^. Tudo parecia conspirar contra ele: a crise económica mundial,
tão alegremente esperada, tinha-se desvanecido demasiado depressa e Marx,
de «muito mau humor» por causa disso, sofria as consequências físicas pre-
visíveis — «uma dor de dentes horrível e aftas em toda a boca».^^'
Em meados de Novembro, seis meses depois do prazo previsto, o edi-
tor de Berlim começou a perguntar-se se o Hvro não seria uma quimera. Com
enorme lata, Marx explicou a Lassalle que aquela delonga «devia-se simples-
mente ao esforço para lhe entregar (a Duncker) um manuscrito de valor
superior à soma que ele pagara». Como assim?

«O que me preocupava era a forma. O estilo de tudo o que escreve-


ra parecia-me influenciado pelas crises de fígado e eu tinha dois rríotivos
para não querer que este trabalho fosse sabotado:
204 » 4 10\RL MARX

1. É o resultado de 15 anos de investigação, os melhores anos da


minha vida.
2. Trata-se de urna perspectiva importante das relações sociais que é aqui
cientificamente exposta pela primeira vez. Devo, assim, ao Partido não dei-
xar que, por razões de saúde, o estilo do meu trabalho seja desfigurado...
Comecei agora mesmo a escrevê-lo e deve estar terminado dentro de
quatro semanas.»^^

Só agora começava! Isto deve ter causado um choque bastante grande a


Lassalle e a Duncker, os quais tinham sido informados por Marx, em Feve-
reiro, que o texto estava na «fase final». N o entanto, se a obra fosse realmente
tão densa e profunda como Marx assegurava, valia a pena esperar.
A medida que o Natal se aproximava, a casa de Grafton Terrace parecia
cada vez mais desoladora. Ocupada a copiar o manuscrito de Karl entre idas
à casa de prego e respostas às cartas dos credores que chegavam diariamente,
Jenny não tinha tempo para organizar uma festa para as crianças. «A minha
mulher tem razão quando diz que, depois de toda a misère por que teve de
passar, a revolução ainda há-de tornar as coisas piores e dar-lhe a satisfação
de ver todos os charlatães daqui a celebrar novamente a vitória», observou
Marx. «As mulheres são assim, 38
; O livro ficou pronto em finais de Janeiro — mas ele não rinha u m tos-
tão para os selos nem para o seguro. Após ter arranjado as duas libras neces-
sárias, Engels foi recompensado por uma espantosa e horrível notícia: «O
manuscrito tem cerca de 192 páginas e — não te incomodes por isso —
embora se intitule Capital, nada ainda é mencionado sobre esse tópico.»-'''
Engels deve ter suspeitado que se passava qualquer coisa: de forma pouco
característica, Marx tinha recusado mostrar-lhe o que quer que fosse do
trabalho em curso. Depois de tantos anos de gabarolice, era u m grande
desapontamento. A montanha tinha parido um rato. Metade deste modes-
to volume pouco mais era do que um resumo crítico das teorias de outros
economistas, e a única parte com algum interesse era um prefácio autobio-
gráfico descrevendo como ele tinha chegado à conclusão de que «a anato-
mia da sociedade civil se encontra na economia poKtica», através da leitura
de Hegel e os anos que passara como jornalista no Rheinische Zeitung.

«O resultado geral a que cheguei e que serviu de fio condutor para os


meus estudos, pode ser brevemente formulado como se segue. N a pro-
o HERÓI A CAVALO . 205

dução social da sua vida, os homens entraram em relações determinadas


que são indispensáveis e independentes da sua vontade, relações de pro-
dução que correspondem a uma fase definida de desenvolvimento das
suas forças materiais de produção. A soma total destas relações consti-
tui a estrutura económica da sociedade, a verdadeira base sobre a qual a
superstrutura legal e política é construída e à qual correspondem formas
precisas da consciência social. O m o d o de produção da vida material
condiciona o processo social, poHtico e intelectual em geral. N ã o é a cons-
ciência dos homens que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu
ser social que determina a sua consciência.»^«

A uma dada fase de desenvolvimentos, estas «relações materiais» tornam-


-se intoleravelmente restritivas e inicia-se, deste modo, uma época de revo-
lução social na qual toda a imensa «superstrutura» da consciência — legal,
política, religiosa e estética — se funde tão rapidamente como flocos de neve
numa manhã invernosa de sol. Isso tinha acontecido em todos os modos de
produção anteriores, do asiático ao feudal, e também seria certamente o
destino da tirania burguesa moderna. Mas havia uma diferença: «As relações
burguesas de produção são a última forma antagónica do processo social de
produção — antagónica não n o sentido de antagonismo individual mas
resultante das condições sociais da vida dos indivíduos; ao mesmo tempo,
as forças produtivas que se desenvolvem no útero da sociedade burguesa
criam as condições materiais para a solução desse antagonismo. Esta forma-
ção social põe fim, por conseguinte, à pré-história da sociedade humana.»
U m «por conseguinte» bastante extravagante, diga-se de passagem. Só
estes parágrafos deram azo a uma inteira indústria de controvérsia, na qual
filósofos marxistas discutem uns com os outros sobre o significado preci-
so de «base e superstrutura», enquanto os cépticos se perguntam porquê o
capitalismo vitoriano deve necessariamente ser a última forma de produção
antagonista antes do aparecimento de um estado de nirvana comunista. N ã o
pode a sociedade burguesa transformar-se simplesmente numa versão mais
contrastada, embora mais subtil, de si mesma, com instrumentos de tortu-
ra mais sofisticados e justificações mais persuasivas para a sua hegemonia?
Uma Contribuiçãopara a Crítica da Hconomia Política, como Marx lhe chamou,
dava muito que pensar — mas pouco para satisfazer a fome dos seus admi-
radores. A data de publicação aproximava-se e ele continuava a apregoar que
o livro seria admirado e traduzido em todo o mundo civilizado. Mas o seu
206 ;;> KARL MARX

organismo não se deixou enganar: em meados de Julho de 1859, pouco


depois das provas finais terem chegado a Londres, foi «contaminado por uma
espécie de cólera devido ao calor e vomitava de manhã à noite»'*^ N ã o era de
admirar. A reacção dos amigos, quando, finalmente, tiveram a oportunidade
de 1er a obra há tanto tempo prometida, foi de consternação. E Wilhelm Lieb-
knecht chegou a afirmar que «nunca um livro o tinha desapontado tanto».
N ã o houve publicidade e as críticas foram poucas: a bomba explosiva não
passava de um foguete. «A secreta esperança que todos nós alimentámos em
relação ao Uvro de Karl foi reduzida a nada pela conspiração de silêncio dos
alemães, o qual só foi quebrado por um par de miseráveis artigos à&feuilleton
que se Umitaram a falar do prefácio e a ignorar o conteúdo do Hvro» quei-
xou-se Jenny no fim do ano. «Esperemos que o segundo volume desperte
os críticos da sua letargia.. .»"^^
Ah, pois... o segundo volume — devido poucos meses depois do pri-
meiro ou, pelo menos, assim tinha prometido o autor. Marx ajustou ligeira-
mente os prazos, impondo o mês de Dezembro de 1859 como «data-limite»
para completar a sua tese sobre o capital, tópico que fora tão excentricamente
omitido do primeiro volume. Aqueles que conheciam os hábitos de traba-
lho de Marx teriam imediatamente predito que ele não cumpriria o plano —
e, claro está, durante o ano seguinte os seus Uvros de apontamentos sobre
economia permaneceram fechados em cima da secretária, enquanto ele se
distraía com uma espectacular e fútil disputa contra um certo Karl Vogt,
professor de Ciências Naturais na Universidade de Berna.

A causa deste absurdo interludio foi uma observação acidental proferi-


da pelo escritor radical Karl Blind que participava, juntamente com Marx,
numa manifestação anti-russa organizada pelos urquhartistas em Maio de
1859. Assim que dois ou três socialistas alemães se juntavam, era quase certo
que começavam logo a falar mal de outros refugiados e, nessa ocasião, BHnd
mencionou que Karl Vogt — antigo membro liberal da assembleia de Frank-
furt agora exilado na Suíça — andava a receber dinheiro de Napoleão III às
escondidas.
Como Vogt tinha recentemente escrito um panfleto político favorável à
causa bonapartista, Marx achou este mexerico suficientemente interessan-
te para o passar ao jornalista Elard Biskamp, o qual o publicou prontamen-
te no seu novo semanário londrino. Das Volk. Entretanto, Blind escreveu u m
folheto a n ó n i m o repetindo a acusação que foi transcrito n o Augsburg
o HERÓI A CAVALO « ^ ^ 2 0 7

Allgemeine Zeitung, um respeitável jornal alemão. Vogt, assumindo erronea-


mente que Marx era o autor, processou o jornal — enquanto o h o m e m res-
ponsável por aquela confusão. Blind, entrou em pânico e recusou testemu-
nhar, dizendo que o folheto nada tinha a ver com ele. Embora o caso fosse
arquivado, Vogt reivindicou uma vitória moral, pois a defesa não consegui-
ra provar as suas alegações. (Documentos encontrados nos arquivos fran-
ceses anos mais tarde provavam que ele tinha de facto recebido dinheiro de
Bonaparte.)
Isto podia ter ficado por aqui, mas Vogt decidiu vangloriar-se do seu su-
cesso num pequeno livro intitulado Mein Process gegen die Allgemeine Zeitung
(O Meu Processo Jurídico contra o Allgemeine Zeitung, no qual denunciava Marx
como sendo um charlatão revolucionario que explorava os trabalhadores e
se dava com a aristocracia. E também o identificava como líder de um «bando
de Brimstone», que chantageava os comunistas alemães ameaçando-os
denunciá-los se não lhes dessem dinheiro. As inúmeras páginas de provas a
apoiar as suas acusações incluíam uma carta particularmente importuna de
Gustav Techow, ex-oficial da campanha de Baden, que descrevia uma reu-
nião da Liga Comunista pouco depois da sua chegada a Londres em 1850:

«Primeiro bebemos vinho do Porto, depois clarete (Bordeaux unto) e,


a seguir, champanhe. Depois do vinho tinto, ele (Marx) ficou completa-
mente embriagado. Era exactamente o que eu queria, pois ele estaria,
assim, mais aberto. Fui elucidado sobre muitas coisas, as quais, até ali,
tinham sidomeras suposições. Apesar do seu estado, Marx dominou a
conversa até ao último momento.
Deu-me a impressão de não só possuir rara superioridade intelec-
tual como também uma personalidade fora de comum. Se tivesse tanto
coração quanto intelecto e tanto amor quanto ódio, estaria disposto a
sacrificar-me por ele. E isto apesar de, por vezes, me ter dado a enten-
der que sentia desprezo por mim, o que acabou por manifestar aberta-
mente no fim. É o primeiro e o único entre todos nós a demonstrar
capacidade de liderança, mas, ao tratar de assuntos importantes, perde
tempo com ninharias.
Dado os nossos objectivos, lamento que este homem, possuidor de
um grande intelecto, não tenha nobreza de alma. Estou convencido de
que a sua perigosa ambição pessoal devorou tudo o que havia de b o m
nele. Assim como se ri dos comunistas à la Willich e da burguesia, troça
208 < ^ I<J\RLMARX

igualmente dos imbecis que repetem o seu catecismo proletário. As únicas


pessoas que respeita são o aristocratas, os genuínos, aqueles que têm
consciência de o ser, e moldou o seu sistema aos interesses do proleta-
riado, porque só neles encontra apoio para os expulsar do Governo. Fui-
-me embora com a impressão de que a finalidade de todos os seus esfor-
ços era adquirir poder pessoal.
Engels e os seus velhos associados, apesar dos seus inúmeros talen-
tos, não lhe chegam aos calcanhares. E se, um dia, eles ousassem esque-
cer-se disso, Marx pô-los-ia imediatamente no seu lugar com um desca-
ramento digno de Napoleão.»'*^

Apesar de alguns críticos modernos acharem este retrato «mais do que


credível», como aconteceu com Karl Vogt, trata-se de uma caricatura grosseira.
Marx pode ter-se sentido orgulhoso da nobreza nata de Jenny, mas não exis-
tem provas de que ele admirasse a aristocracia como classe social. Tinha mais
respeito pela burguesia, como o provou no Manifesto Comunista com a Krica
celebração dos feitos progressistas do capitalismo. E a representação de Engels
como mero subordinado é ridícula. N o entanto, a descrição do estilo domi-
nador de Marx é suficientemente verosímil para prejudicar a sua reputação.
O livro de Vogt alcançou imediatamente um grande sucesso na Alema-
nha, mas era difícil de encontrar em Londres. Durante algumas semanas,
Marx dependeu do que se contava sobre a «horrível virulência» e «calúnias
absurdas» incluídas nas suas páginas. «Escusado será dizer que ocultei este
assunto mesquinho da minha mulher», apressou-se a avisar Engels. «Mas ela
depressa se deu conta de tudo.» E m fins de Janeiro de 1860, o National-Zeitung
de Berlim publicou um longo artigo sobre a acusação de Vogt, confirman-
do a suspeita de Marx que ele «está obviamente a tentar fazer-me passar por
um canalha burguês insignificante e velhaco»; e iniciou um processo por
difamação contra o jornal. Quando o Hvro chegou a 13 de Fevereiro, encon-
trou «apenas merda, pura trampa».
Defender a sua honra iria ser dispendioso. Só os selos custaram várias
libras, pois enviou dúzias de cartas a convidar vários camaradas — alguns
dos quais não via desde 1848 — para servir de testemunhas da sua idonei-
dade moral. Teve de dar u m sinal de 15 táleres a u m advogado de Berlim,
J. M. Weber, que tinha contratado, e pagar a um funcionário da Embaixada
austríaca, «esse filho da mãe do Zimmerman», que tratara da procuração a
Weber. «Deves ter percebido pelo o que disse antes que fiquei sem um tos-
o HERÓI A CAVALO Í3«:: « 209

tão», disse a Engels. Chegou a pedir uma libra emprestada ao padeiro —


gesto saborosamente irónico da parte de um h o m e m refutando a insinua-
ção que ele explorava os trabalhadores.
O processo poderia não lhe ter custado nada se, em vez de intentar um
processo particular por difamação, ele tivesse utilizados os serviços do pro-
curador prussiano, mas Marx duvidava que esse cavalheiro «mostrasse um
zelo especial na defesa da honra do meu nome». E tinha toda a razão: sem
Marx ter conhecimento, o advogado dele tinha tentado essa abordagem e
fora informado que o caso não servia nenhum interesse púbuco. Tentou levar
a cabo um processo civil, mas isso foi igualmente rejeitado (a 5 de Junho de
1860) pois, segundo a decisão do tribunal, os artigos do Natíonal-Zeitungm&o
excediam os limites da crítica legítima» e não tinham «a intenção de insultar».
(«Como a história do turco que cortou a cabeça de um grego sem intenção
de o magoar», resmungou Marx).
Muito bem: haveria então de encontrar outra maneira de se vingar. A única
surpresa é que ele não tenha desafiado Voigt para um duelo: ou foi o preço
da viagem à Suíça que o dissuadiu ou, então, começava a sentir o peso da
idade. Refugiou-se no seu gabinete e redigiu um vociferante contra-ataque
que, tanto em tamanho quanto em ferocidade, excedia de longe o panfleto
original ao qual pretendia responder. «Taco a taco, as represálias fazem o mun-
do andar à volta!», trauteava alegremente dando livre curso ao seu sarcasmo
ao longo de mais de 300 páginas. Ora Vogt era um Cícero a preço reduzido,
ora não passava de um Falstaff sem humor. Era um palhaço, um fala barato,
um cão de circo, mas, sobretudo, um texugo — «o qual tem apenas uma
maneira para se defender nos momentos de perigo: um odor nauseabundo».
Todos os que tinham alguma vez ajudado ou encorajado o infame Vogt
eram tratados do mesmo modo. Vários baldes fumegantes de insultos esca-
tológicos foram vertidos sobre um jornal londrino que tinha publicado os
artigos do Natíonal-Zeitung:

«Por meio de um engenhoso sistema de canalização, todas as retretes


de Londres vertem os detritos físicos no Tamisa. Empregando o mesmo
método, a capital do mundo vomita os seus detritos sociais através de um
sistema de penas de ganso para uma grande cloaca de papel — o Daily
Telegraph... A entrada do esgoto, estão escritas as seguintes palavras em
cores sombrias: Hk quisquam faxit oletuml, as quais Byron traduziu poe-
ticamente, "Caminhante, pára e... mijal'V"*
210^^ I<L\RL]VIARX

Quando Marx se encontrava neste estado de espírito, não havia manei-


ra de o deter. Joseph Moses Levy, o director do Telegraph, foi sujeito a mui-
tas páginas de sarcasmos anti-semitas e de mau gosto por ter mudado a or-
tografia do seu apelido, Levi.

«Levy está decidido a ser anglo-saxão e, por conseguinte, ataca a po-


lítica pouco inglesa do Sr. Disraeli pelo menos uma vez por mês, pois
Disraeli, «o mistério asiático», não tem, ao contrário do Telegraph, ascen-
dência anglo-saxónica. Mas o que é que Levy lucra em atacar o Sr. Disraeli
e em mudar o <d» em «y» quando a mãe Natureza lhe inscreveu da for-
ma mais nítida possível as suas origens no meio da sua cara? O nariz do
misterioso estrangeiro de Slawkenbergius (ver Tristam S handy), o qual
recebeu o mais lindo nariz do promontório de narizes, foi apenas uma
maravilha ao longo de nove dias em Estrasburgo, enquanto o nariz de
Levy fornece um tema de conversa durante todo o ano em Londres...
Na verdade, o grande talento do nariz de Levy consiste na sua capacidade
de titilar com o cheiro a podre, de cheirá-lo a quilómetros de distância e
de o atrair. Assim, o nariz de Levy serve o Daily Telegraph como tromba de
elefante, farol e telégrafo.»

Bastante divertido, principalmente vindo de um h o m e m cujos antepas-


sados rabínicos também se chamavam Levi, nome que tinham abandonado
para melhor se assimilarem à sociedade prussiana.
Todos os editores alemães recusaram publicar o livro e, assim, Marx
imprimiu Herr Vogt em Londres depois de fazer um peditório para cobrir os
custos de produção: Lassalle e a condessa Von Hatzfeldt deram 12 libras,
mais 12 libras vieram do negociante de vinhos, Sigismund Borkheim, um ve-
lho aliado dos tempos da revolução de 48; e Engels enviou cinco libras.
Quem 1er hoje o Hvro poderá sentir que esses benfeitores lhe teriam prestado
um melhor serviço se o tivessem convencido a não perder tanto tempo com
aquuo; mas, aparentemente, a loucura de Marx era contagiosa. Engels consi-
derou Herr Vogt «a melhor obra polémica que jamais escreveste», até mes-
m o superior ao Dezoito Brumário de Touts Bonaparte;]enny, que transcreveu o
manuscrito, achou-o uma fonte de «admiração e prazer constante».
Como de costume, Marx esperava causar sensação e tornar-se no único
tópico de conversa em toda a Alemanha, se não de toda a Europa; mas, como
o HERÓI A CAVALO s*GJ211

de costume, ficou decepcionado. Herr Fög/foi recebido a 1 de Dezembro de


1860 com tão poucos aplausos e fanfarras como a Economía Crítica.
Consolou-se da maneira habitual. «Uma circunstancia que me ajudou
imenso foi ter uma grande dor de dentes», escreveu a Engels na semana em
que o Uvro foi pubMcado. «O dente foi arrancado anteontem. O dentista (que
se chama Gabriel) extraiu a raiz, magoando-me multo, mas deixou um bo-
cado do dente; e, agora, tenho o rosto todo dorido e inchado. Esta pressão
física contribui para eu deixar de pensar e poder abstrair pois, c o m o diz
Hegel, puro pensamento, ou puro ser, ou nada, é uma e a mesma coisa.»"^^
Esta anestesia mental era mais necessária do que nunca; à parte o seu
desapontamento pelo insucesso de ¥íerr Vogt, também a mulher tinha sido
atacada pela varíola há duas semanas. Enquanto Marx e Helene tratavam da
inválida, as filhas foram para casa dos Liebknecht durante um mês — em-
bora viessem às vezes espreitar a mãe pela janela a fim de que esta pudesse,
ao menos, vê-las da cama. «As pobres crianças estão muito assustadas», disse
Marx a Engels. O médico, o Dr. Allen, explicou que, se Jenny já não tivesse
sido vacinada duas vezes, teria sucumbido; e a descrição que ela mesma fez
numa carta a Louise Weydemeyer confirma que a sua vida tinha corrido
graves riscos:

«A varíola tomou proporções horrorosas e eu sentia-me cada hora


mais doente. Sofria imenso. Dores a queimadura no rosto, insónias e
ansiedade mortal quanto a Karl, que cuidava de mim com o maior cari-
nho, e, finalmente, a perda de todas as minhas faculdades exteriores,
enquanto as interiores — a consciência — permaneciam enubladas.
Passei todo o tempo deitada junto a uma janela aberta para que o ar frio
de Novembro me arejasse, com as chamas do inferno na lareira e gelo nos
lábios a arder entre os quais me deitavam de vez em quando umas gotas
de clarete. Mal conseguia engolir, ouvia cada vez menos e, finalmente, os
meus olhos fecharam-se e eu não sabia se não iria ficar para sempre
envolta naquela escuridãq.
Quando, por fim, as minhas filhas foram autorizadas a regressar a casa
na véspera do Natal, desataram a chorar ao ver a sua mãe adorada. Há
cinco semanas, ela era uma mulher de 46 anos bem conservada e sem um
cabelo branco; comparada à frescura das filhas, não tinha muito mau
aspecto. Mas, agora, tinha o rosto desfigurado por cicatrizes e uma tez
vermelha arroxeada. Via-se como um hipopótamo, ou um rinoceronte,
212 *î^-:-^ KARL MARX

e o seu lugar era mais num jardim zoológico do que no seio da raça cau-
casiana. Entretanto, o marido, ansioso e exausto, padecia mais uma vez
do fígado; e, depois, havia o problema de como pagar as exorbitantes
consultas médicas, pois há mais de um mês que não arranjava emprego.
A única coisa agradável que nos aconteceu naquele triste Natal foi a
prenda do Engels de umas garrafas de vinho do Porto que a Jenny achou
ser um remédio muito eficaz. Mas até mesmo isto foi negado ao Karl,
cujo médico lhe tinha imposto uma rigorosa dieta de limonada e óleo de
fígado de bacalhau.'"' «Estou a ser tão atormentado como Job», gemeu
ele. «Apesar de não ser tão temente a Deus.>/^

Segundo todas as leis da aerodinâmica, o zangão não deveria ser capaz


de voar. Marx possuía um talento semelhante que desafiava a gravidade:
quando estava a ponto de cair sob o peso da desgraça, chegaram notícias da
Alemanha que o mantiveram no ar. A 12 de Janeiro de 1861, o novo rei da
Prússia, Guilherme I, celebrou a sua coroação proclamando a amnistia de
todos os refugiados políticos e dando, assim, a Marx a esperança de poder
recuperar a sua cidadania há tanto tempo perdida; uma semana mais tarde.
Lassalle propôs que Marx e Engels regressassem à pátria para pubMc^r um
novo «órgão do partido» nos moldes do Neue Rheinische Zeitung.
Apesar de Marx não ter nenhuma fé no projecto e declarar que «a maré
na Alemanha ainda não subiu o suficiente para suportar o nosso barco»,
deixou-se contudo tentar — especialmente quando soube que a condessa
Von Hatzfeldt investira 300 000 táleres no jornal. Agora que o New York Daily
Tribune tinha-o mais ou menos abandonado por causa da Guerra da Seces-
são, precisava de uma fonte de rendimentos mais desesperadamente do que
nunca. A proposta de Lassalle justificava, pelo menos, uma viagem de reco-
nhecimento imediata. Viajando com u m passaporte falso e dinheiro que
Lassalle lhe emprestou, partiu para a Alemanha n o fim de Fevereiro —
parando em Zaltbommel, na Holanda, onde o tio. Lion Philips, lhe passou
um adiantamento de 160 libras sobre a herança que receberia quando Hen-
riette Marx esticasse o pernil.
Lassalle e a condessa receberam faustosamente Marx durante a sua es-
tada de um mês em Berlim — mostrando, assim, que não o conheciam lá
muito bem, pois a última coisa que um antimonárquico deseja é ser tratado
como um rei. Levaram-no, uma noite, a ver uma nova comédia à glória da
Prússia que ele detestou. N a noite seguinte, foi à ópera, e obrigado a assis-
o HERÓI A CAVALO «^213

tir a um hallet («mortalmente chato») durante três horas num camarote a pou-
cos metros do rei Guilherme em pessoa. N o decorrer de um jantar em sua
honra, a que um enxame de celebridades foi convidado, Marx ficou senta-
do ao lado da editora literária Ludmilla As sing («a criatura mais feia que ja-
mais vi na vida»), que passou a noite a namoriscar com ele — «eternamente
a sorrir e a fazer esgares, sempre a falar em prosa poética, tentando constan-
temente dizer qualquer coisa de extraordinário, fingindo-se entusiasmada e,
no transe dos seus êxtases, lançando perdigotos para cima do seu ouvinte».'*^
Após ter sido sujeito à intolerável hospitalidade de Lassalle durante um
mês, Marx uivava de tédio. «Sou tratado como uma espécie de leão e força-
do a conhecer uma data de "inteligências" profissionais, tanto homens como
mulheres», escreveu ao poeta alemão Cari Siebel, amigo de Engels. «É hor-
rível.» O único motivo para prolongar aquela estopada era que tinha de
aguardar uma decisão quanto ao seu pedido de cidadania, o qual Lassalle
tinha entregue em pessoa ao chefe da poKcia prussiana. A resposta chegou
a 10 de Abril. Como Marx tinha voluntariamente rejeitado os seus direitos
de cidadão prussiano em 1845, «era considerado estrangeiro», não poden-
do, por conseguinte, usufruir da amnistia real.
A condessa supHcou-lhe que ficasse para mais jantares e divertissements. «É
então assim que nos agradece a amizade que lhe temos demonstrado», ra-
Ihou-lhe. «Agora que tratou dos seus assuntos, vai já partir de BerHm.» Mas
não suportava mais aquele lugar: a presença de homens fardados e mulhe-
res literatas faziam-no sentir-se extremamente inconfortável. Caso uma
pessoa não fosse obrigada a viver na Alemanha, decidiu, o país era muito
bonito. «Se fosse livre e se, além disso, não fosse importunado por uma coisa
chamada "consciência poiïtica", nunca trocaria a Inglaterra pela Alemanha,
sobretudo a Prússia, nem muito menos por Berlim.»'*'' Também Jenny se
opunha veementemente a mais mudanças. Enquanto Marx estava ausente,
ela confiou a Engels: «Sinto poucas saudades da pátria, dos «caros» alemães
tão dignos de confiança, essa mater dolorosa de poetas. Q u a n t o às minhas
filhas, só a ideia de abandonar o país do seu querido Shakespeare põem-nas
doentes; tornaram-se inglesas de gema e agarram-se ao solo da Inglaterra
como lapas.»^" E, além do mais, Jenny não desejava ver as filhas cair sob a
influência do estonteante «círculo de Hatzfeldt».
O próprio Marx gostava da condessa — «senhora distinta, nada literata,
com grande intelecto natural e muita vivacidade. Está profundamente inte-
ressada no movimento revolucionário e tem uma atitude aristocrática muito
214^^ KARL MARX

superior às caretas pedantes das "sabichonas" profissionais»^' — e isto ape-


sar de usar demasiada maquilhagem para ocultar a idade e os estragos do tem-
po. Para ele, o principal argumento para não aceitar um emprego em Berlim
era não querer ser colega, nem vizinho, de Ferdinand LassaUe. E m mais de
dez anos de correspondência regular, não tinha conseguido detectar a vai-
dade e a incipiente megalomania do indivíduo, mas, após ter passado um mês
com ele debaixo do mesmo tecto, compreendeu porquê os comunistas de
Düsseldorf tinham tentado preveni-lo. Nas suas cartas a Engels, LassaUe
passou a ser alcunhado Lábaro, Barão Ii^ ou o Preto Judeu. Este último epíteto
começou por brincadeira; embora LassaUe fosse, de facto, escuro — como,
aUás, Marx — não tinha sangue negro, mas Marx repetiu a graça tantas vezes
que acabou por acreditar nela: «Parece-me, agora, óbvio — como a forma
da cabeça e a maneira do cabelo dele crescer atestam — que ele descende dos
negros que acompanharam a fuga de Moisés do Egipto (a não ser que a mãe
ou avô paterno, se tenha cruzado com um preto)», escreveu. «Essa mistura
de judeu e alemão, por um lado, e a origem negroide por outro, tem inevi-
tavelmente de dar origem a um produto pecuUar. O seu carácter importu-
no também é de preto.»^^ A exemplo dos seus comentários a propósito do
nariz do Sr. Levy, director do Daily Telegraph, deve-se assumir que, na época,
isto tinha piada.
A viagem à Alemanha não foi totalmente improdutiva: antes de abando-
nar o país, Marx passou dois dias em Trier com a mãe, a qual recompensou
esta rara manifestação de solicitude fUial anulando várias das suas dívidas para
com ela. Marx regressou assim a Londres a 29 de Abril com 160 Ubras do
tio Lion e o bolso cheio de vales rasgados. E m meados de Junho, contudo,
estava novamente a pedir dinheiro emprestado a Engels. «O facto de eu ter
já gasto o que trouxe não te há-de surpreende»), escreveu-lhe, «pois, além das
dívidas contraídas por causa da viagem, há quase quatro meses que não
ganho nada. Só a escola e o médico me custaram 40 Ubras»-^^. Voltou, den-
tro de p o u c o tempo, aos velhos subterfúgios e medidas de emergência.
Sempre que o senhorio vinha cobrar a renda, Jenny expUcava-lhe que Karl
se encontrava ausente em viagem de negócios — quando, na realidade, ele
estava escondido n o andar de cima — e mandava-o embora de mãos a
abanar. Foram de novo obrigados penhorar coisas, incluindo as roupas das
filhas «até às botas e sapatos». Durante o Inverno de 1861-62, Jennycòen es-
teve continuamente doente e Marx deduziu que, aos 17 anos, «ela já tinha
idade para sentir a pressão e o estigma das nossas circunstâncias, e acho que
^ o HERÓI A CAVALO 4|JÍ215

é isso que a indispõe fisicamente.» Engels enviou-lhe imediatamente o seu


medicamente patenteado para «sangue fraco» — oito garrafas de clarete,
quatro de vinho branco do Reno e dez de sherry — , que lhe levantou o âni-
mo, mas não produziu efeito no seu corpo emaciado.
O estado de espírito em casa de Marx tornou-se ainda mais deprimente
no Verãode 1862 enquanto Londres festejava a segunda Grande Exposição,
uma gabarolice de orgulho e feitos vitorianos. «O desejo diário da minha
mulher é estar, juntamente com as filhas, na sepultura, e eu sinceramente não
a culpo, pois as humilhações e tormentos por que temos de passar na pre-
sente situação são indescritíveis», escreveu. «Sinto ainda mais pena das in-
felizes crianças por isto acontecer durante a Exposição. Todas as amigas delas
se divertem, enquanto elas passam os dias receosas que alguém as venha
visitar e se dê conta da miséria em que vivem... Ainda bem que ninguém me
vem ver.»
Mas enganou-se. Três semanas mais tarde, estando o Barão I^^ Lassalle
na cidade, para ver as maravuhas industriais exibidas em Hyde Park, veio ba-
ter-lhe à porta. Era uma altura odiosamente inoportuna, mas Marx sentiu-
-se n o dever de lhe retribuir a hospitalidade que aceitara — embora sem
prazer — o ano anterior em Berlim. T u d o o que não estava pregado às
paredes ou aparafusado ao chão foi parar à casa de prego e, no decorrer das
três semanas seguinte. Lassalle representou o papel do convidado vindo dos
infernos — comendo e bebendo como u m glutão esfomeado enquanto
falava pelos cotovelos dos seus talentos e ambições sem limites. Apesar de
saber que Marx já não recebia dinheiro do New York Daily Tribune, Lassalle
mostrou-se espantosamente insensível em relação à sua situação económica;
gabou-se de ter perdido cem Hbras em especulações na Bolsa, como se fos-
se uma ninharia, e gastou mais de uma libra por dia em táxis e charutos sem
nada oferecer aos seus anfitriões. E teve a insolência de pedir a Karl e a Jenny
que lhe cedessem uma das filhas adolescentes para fazer companhia à la
Hatzfeldt — uma espécie de aia de luxo.
«O tipo tem-me feito perder imenso tempo», anotou Marx na terceira
semana daquela aflição. «E, ainda por cima, essa besta ousou dizer-me que,
como eu não tinha agora nenhum "assunto" a tratar e andava apenas a fazer
um "trabalho teórico", poderia passar tempo com ele!» Toda a família tinha
agora de acompanhar LassaMe nos seus passeios por Londres — e até mais lon-
ge, a Windsor e Virginia Water — e ouvir os seus intermináveis monólogos.
Ao admirar a Pedra da Roseta, no Museu Britânico, ele virou-se para Marx e
216 «¿> • KARL MARX

perguntou: «Acha que eu deva passar seis meses a estudar isto para criar nome
como egiptólogo?» Se Marx não estivesse tão furioso com «este oportunista
carregado com sacos de dinheiro», talvez achasse aquilo divertido.
«Desde a última vez que o vi, há um ano, que ele enlouqueceu», disse a
Engels. E, agora, não somente se julga o maior erudito, o pensador mais
profundo, o cientista mais brilhante e assim por diante, como também u m
D.Juan e um cardeal Richelieu revolucionário. Acrescente-se a isto o pairar
incessante em voz estridente, os gestos histriónicos e poucos estéticos, e o
tom dogmático!»^^ U m dia. Lassalle revelou o «profundo segredo» que os
libertadores italianos, Manzini e Garibaldi, a exemplo do Governo prussiano,
eram piões dirigidos pelas suas mãos. Incapazes de se conter, Karl e Jenny
começaram a arreliá-lo por causa daquelas fantasias napoleónicas e, então,
o Messias alemão perdeu a cabeça e desatou a gritar que Marx era demasiado
«abstracto» para perceber a realidade da política. Depois de LassaUe se ter
ido deitar, Marx desapareceu no seu gabinete para escrever outra carta a
Engels em que troçava das características «negroides» do seu convidado.
O relato de Jenny da invasão de LassaUe é menos rancoroso e mais bem
humorado:

«Ele era quase esmagado pelo peso da fama que adquirira como eru-
dito, pensador, poeta e político. A coroa de louros que lhe cingia a fron-
te oKmpica e a divina cabeleira ou antes, a sua carapinha de negro, ainda
estava fresca. Tinha acabado de sair vencedor da campanha na Itália —
um novo golpe poKtico estava a ser planeado por outros homens de acção
notáveis — e batalhas sangrentas destroçavam-lhe a alma. Ainda havia
campos da ciência a ser explorados! Os segredos da egiptologia aguarda-
vam-no: "Deveria eu causar o espanto do mundo como egiptólogo ou
demonstrar a minha versatilidade como homem de acção, poHtico ou mi-
litar?" Era um dilema esplêndido. Hesitava entre os pensamentos e senti-
mentos do coração e exprimia com frequência esse debate em tons realmente
estrondosos. Como transportado pelas asas do vento, caminhava pela
nossa casa gesticulando e perorando em voz tão alta e estridente que os vi-
zinhos ficavam assustados e perguntavam o que é que estava a acontecer.
Era o debate interior do "grande" homem a jorrar desordenadamente.»^''

Só quando já estava de partida, a 4 de Agosto, é que LassaUe se deu conta


da situação desesperada de Marx — como não podia deixar de ser, pois o
o HERÓI A CAVALO ^ 1 2 1 7

senhorio e outros credores tinham escolhido aquele preciso momento para


vir bater à porta e ameaçar chamar a poKcia. Mas, mesmo assim, a sua ge-
nerosidade foi bastante limitada. Prontificou-se a emprestar 15 libras a Marx
a curto prazo, mas só depois de Engels prometer servir de fiador.
N o s dois meses seguintes, Lassalle fez tanto rebuliço a propósito deste
insignificante empréstimo — insistindo para que Engels assinasse um com-
promisso e se marcasse uma data de pagamento — , que Max lamentou ter
aceite o dinheiro. Após uma furiosa troca de correspondência, contudo, ele
apresentou uma meia desculpa. «Vamo-nos zangar por causa disto?... Espe-
ro que, apesar disto tudo, as nossas relações continuem como eram dantes.»^^
Era um h o m e m sentado num barril de pólvora, um infeliz desesperado à
beira do suicídio: não era isto suficiente para desculpar a sua ingratidão?
Lassalle deu como pretexto «motivos financeiros» para o fim da relação,
mas as diferenças políticas entre os dois homens teriam, de qualquer modo,
provocado uma ruptura dentro de pouco tempo. Lasalle tinha um respeito
hegeliano pelo poderio do Estado prussiano e, agora, defendia a coopera-
ção entre a antiga classe dirigentej>/«/èí?r (representada por Bismark) e o novo
proletariado industrial (representado, claro está, por ele mesmo) para fazer
frente às aspirações políticas da burguesia liberal. E m Junho de 1863, duas
semanas após a fundação da Associação dos Trabalhadores Alemães, Lassalle
escreveu ao Chanceler de Ferro gabando-se do poder absoluto que tinha
sobre os seus membros, «facto que talvez lhe cause inveja! Isto há-de certa-
mente convencê-lo de que a classe operária, uma vez convencida de que a
ditadura servirá os seus interesses, se sente instintivamente atraída por ela.
E como por conseguinte estaria inclinada, como lhe disse recentemente, ape-
sar de todos os sentimentos repubUcanos — ou, talvez, a esse título — a ver
a Coroa como portadora natural da ditadura social, em contraste com o
egoísmo da sociedade burguesa»^*^. (Esta carta desmente a reivindicação de
um dos biógrafos de Marx, Fritz J. Reddatz, que «a famosa conspiração com
Bismark nunca existiu».) O que os trabalhadores queriam não era u m a
monarquia criada pela burguesia, como a de Luís Filipe em França, mas uma
«monarquia que ainda se ergue moldada na sua massa original e de espada
empunho...»
É de perguntar se o rei prussiano se sentiria Lisonjeado por esta estranha
imagem de uma baguette à espadeirada. Talvez não: apesar da sua exuberan-
te fidelidade, Lassalle encarava a possibilidade de um triunvirato formado
pelo rei Guilherme, Bismark e ele mesmo. E, logo que a classe média fosse
218 . I<J^RLMARX

posta no seu lugar pela força, deixaria de necessitar dos dois socios. Este
plano ditatorial, excelentemente descrito como «cesarismo social», era aná-
tema para Marx — e tanto mais irritante porque a sua retórica plagiava in-
solentemente muitas passagens do Manifesto Comunista, às quais Lassalle ti-
nha acrescentado comentários reaccionários para proveito próprio. Ele era
o Mestre, o Redentor, o Herói a Cavalo. Já aos 20 anos, num «Manifesto de
Guerra Contra o Mundo», o seu egoísmo melodramático tinha-se revelado
inesgotável: «Para mim, todos os meios são iguais; nada é sagrado ao ponto
de me fazer recuar; e ganhei o direito do tigre, o direito de dilacerar... E n -
quanto tiver poder sobre a mente de um indivíduo, hei-de abusar sem pie-
dade.. . Só força de vontade da cabeça aos pés.» Se ele não tivesse existido,
Nietzsche tê-lo-ia inventado.
Era nesse estado de espírito que vivia—e viria a morrer. E m 1864, Lassalle
enamorou-se de uma bela jovem com cabelos à Ticiano chamada Helene von
Dönniges, prometida a um certo Janko von Rakowitz, príncipe romeno. O
pobre noivo desafiou o super-herói para um duelo à pistola e acertou-lhe fa-
talmente na barriga. LassaUe nem sequer apontou a arma contra ele, Hmitan-
do-se a sorrir enigmaticamente enquanto o rival fazia pontaria. Teria acabado
por acreditar na sua invencibilidade? O u tinha decidido que uma morte pre-
matura e romântica lhe garantiria fama imortal? Foi tudo um grande misté-
rio. Como Engels comentou: «Uma coisa destas só podia ter acontecido a
Lassalle. Era um homem com uma estranha e única mistura de frivolidade e
sentimentalidade, cavalheirismo e características judaicas.»^' A notícia pertur-
bou Marx mais do que ele esperava. O que quer que pudesse ter sido, Lassalle
era «o inimigo dos nossos inimigos», um da velha guarda dos quarante-huitards.
«Só Deus sabe como as nossas fileiras estão a ser reduzidas e não há refor-
ços à vista.»*^" Ofereceu à condessa Von Hatzfeldt a consolação de que, pelo
menos, «ele morreu jovem, num período de triunfo, como Aquiles».''^
E m tais circunstância, foi um tributo generoso. Dois anos antes, Marx
quase se tinha arruinado para receber Lassalle em Grafton Terrace; fora
recompensado com irritabilidade, desconfiança e, finalmente, suêncio. Desde
aquela vista — e, em parte, por causa dela, suspeitava Marx — as finanças
da família tinham evoluído de más a piores. E m Agosto de 1862, uns dias
depois de LassaUe partir de Londres, Marx deslocou-se a Zaltbommel na
esperança de conseguir outro empréstimo de Lion Phiups, mas o tio encon-
trava-se ausente. Dirigiu-se então a Trier, mas a mãe recusou dar-lhe o que
quer que fosse. N o Natal desse ano, Jenny Marx tentou ganhar a simpatia de
o HERÓI A CAVALO ^ ^ 2 1 9

Monsieur Abarbanel, banqueiro francês seu conhecido, mas os resultados


ainda foram mais desastrosos. O barco para Bolonha quase se afundou numa
tempestade e o comboio que ela tomou até à casa de Abarbanel atrasou-se
duas horas; quando ela finalmente chegou, o banqueiro tinha tido uma
apoplexia que o deixara paralisado. Ao regressar a Londres de mãos a aba-
nar, Jenny foi vítima de mais acidentes: o autocarro onde estava virou-se e
o táxi que tomou em Londres chocou com outro veículo, perdendo uma
roda. Ao chegar a Grafton Terrace a pé, acompanhada por dois rapazes que
transportavam a bagagem, foi informada que Madame Creuz, a meia irmã de
Helene Demuth, tinha morrido de um ataque cardíaco duas horas mais cedo.
Imagine-se a cena: uma criada morta na sala da frente, outra a chorar de
mágoa, uma mulher exausta e toda enlameada — e o dono da casa a pergun-
tar-se onde é que raio iria encontrar sete libras e dez para pagar ao canga-
Iheiro. Marx permitiu-se um comentário sarcástico perante este quadro
tragicómico: «Um Hndo Natal para as coitadas das crianças.»''^
Por uma vez, porém, esta desgraça grotesca não teve o habitual efeito
nocivo sobre a sua saúde e produtividade. Os sarcasmos de Lassalle quanto
às suas «teorias» espicaçaram-no a terminar o Uvro que fora tão catastrófi-
camente interrompido por causa da querela com Vogt. «Se pelo menos
soubesse c o m o m o n t a r u m negócio qualquer!», escreveu a Engels n u m
m o m e n t o de depressão pouco depois da viagem de Lassalle a Londres.
«Todas as teorias, meu caro amigo, são pardas e só os negócios, verdes vi-
çosos. Mas, infelizmente, apercebi-me disso demasiado tarde.»*"^
Foi por volta desta altura que Marx se candidatou a u m emprego admi-
nistrativo nos caminhos-de-ferro, mas foi rejeitado por causa da sua letra.
N ã o importa: ainda podia tirar partido da escrita desde que Jenny transcre-
vesse os seus gatafunhos de forma legível. Com poucas encomendas jor-
nalísticas para o distrair, começou a escrever o segundo volume da sua eco-
nomia crítica.

«É curioso e até certo ponto significativo que o país onde Karl Marx é
menos conhecido seja aquele onde viveu e trabalhou durante os últimos 30
anos», comentou o economista John Rae na Contemporary Review, de Outu-
bro de 1881, dois anos antes da morte de Marx. «A sua palavra percorreu
toda a Terra e evocou em certos círculos ecos que os governos não deixam
viver nem morrer; mas, aqui, onde foi pronunciada, o seu som mal foi ou-
vido.»^"* Quando Engels enviou uma análise pormenorizada de O Capita/k
220-^^v^ KARL MARX

liberal Fortnightly Review, em 1869, a direcção devolveu-a com a uma breve


nota explicando que era «demasiado científica para os leitores ingleses da
RemiP»''^. Uns anos mais tarde, no decorrer de uma palestra proferida por um
economista inglês sobre a «harmonia dos interesses sociais», um socialista
na assistência questionou a desatinada suposição de que todas as classes da
sociedade tinham os mesmos interesses, referindo-se a O Capital pãía sus-
tentar o seu cepticismo. «Não conheço tal obra», retorquiu o conferencista.
Quase nenhum dos principais livros de Marx foi traduzido em inglês du-
rante a sua vida e a excepção mais importante, o Manifesto Comunista, só era
conhecida do punhado de cartistas que assinavam o Red Republican, de George
Julian Harney, em Novembro de 1850. Dez mais tarde, conmdo, um exemplar
foi enviado tardiamente ao The Times, o qual se apressou a prevenir os seus
leitores quanto às «publicações de má qualidade que contêm as mais anárqui-
cas e disparatadas doutrinas... nas quais a religião e a moral são pervertidas e
ridicularizadas, e todas as regras de conduta sancionadas pela experiência, das
quais a própria existência da sociedade depende, são abertamente atacadas»''''.
Seguiam-se dois extractos do Manifesto—embora a origem não fosse mencio-
nada, pois The Times «não estava ansioso em nomear os seus autores nem
promover aquela obra». O político conservador John Wilson Croker tentou
assustar mais as pessoas com o perigo vermelho, denunciando a «Literatura
Revolucionária» (com as mesmas citações do Manifesto) n'a Quarterly Review, de
Setembro de 1851. Mas ninguém se mostrou interessado, e o Manifesto Comu-
nista desapareceu da circulação em Inglaterra até Samuel Moore publicar uma
nova tradução em 1888, cinco anos depois da morte do seu autor.
John Rae pode ter achado «curioso» que os ingleses tenham prestado tão
pouca atenção à presença da velha toupeira enfiada no centro de Londres,
mas isso era perfeitamente razoável. Como é que podiam ter ouvido falar
dele? Depois de se ter zangado com o radical Harney e o louco Urquhart,
Marx perdeu os seus meios de comunicação com os intelectuais e trabalhado-
res ingleses. Os artigos com que suportava a família na década de 1850 fo-
ram publicados no f^ew York Tribune. Para o público inglês, ele era pratica-
mente invisível. Passava os dias n o museu e as noites na companhia de
compatriotas alemães. E m Maio de 1869 juntou-se à Real Sociedade para a
Promoção das Artes, Manufacmras & Comércio, que se tinha tornado famosa
pelo seu envolvimento no decorrer das Grandes Exposições de 1851 e 1862,
mas não há provas de que ele tenha assistido às suas conferências ou usado
a biblioteca^^. Pode ter sido desencorajado pela sua experiência durante a
o HERÓI A CAVALO sr*^-221

festa estival da Sociedade, uma Conversazione que teve lugar no museu de


South Kensington a 1 de Julho de \8>69. Jennychen, a sua companhia nessa
noite, enviou um relatório completo a Engels:

«Entre todos os mais entediantes eventos, as conversai^ones são certa-


mente as piores. Que jeito têm os ingleses para inventar diversões abor-
recidas! Imagina uma multidão de sete mu pessoas em traje de cerimónia
tão apertadas umas contra as outras que não se podiam mexer ou sen-
tar-se nas cadeiras que algumas senhoras idosas tinham tomado de assal-
t o . . . N ã o se via outra coisa senão sedas, cetins, brocados e rendas, e isto
nos modelos mais feios — em mulheres vulgares, de traços grosseiros,
olhos baços, pequenas e curtas ou altas e desengonçadas. N ã o havia tra-
ços da tão falada beleza da aristocracia inglesa, e vimos apenas duas ra-
parigas razoavelmente bonitas. Entre os homens, havia um punhado de
rostos interessantes, provavelmente artistas, mas a grande maioria era
gente com ar insípido e demasiado gorda.»*"^

O pai à& Jennychen aliviou o tédio embriagando-se e rindo ostensivamente


de um boletim distribuído entre todos os convidados e intitulado «Assalto
a Pessoas Distintas», solicitando que fosse permitida a livre passagem dos
aristocratas e outras eminências sem ser molestados. Como Jennychen pro-
meteu, «não nos apanharão aqui outra vez».
Os encontros de Karl Marx com os nativos foram quase sempre desas-
trosos, em particular quando ele tinha bebido uns copos. Uma noite, foi com
Edgar Bauer e Wilhelm Liebknecht a Tottenham Court Road com a inten-
ção de beber pelo menos uma cerveja em todos os bares entre a rua Oxford
e Hampstead Road. Como o itinerário incluía cerca de 18 bares, ele estava
pronto para uma zaragata quando chegaram ao último. U m grupo de pes-
soas que jantava tranquilamente foi acostado por este trio de bêbedos que
se pôs a troçar da cultura inglesa. Só a Alemanha, declarou Marx, podia
produzir mestres como Beethoven, Mozart, Handel e Haydn; a hipócrita e
pretensiosa Inglaterra era uma terra de gente inculta.
— Raio de estrangeiros! — rosnou u m dos clientes, enquanto os outros
cerraram os punhos.
Escolhendo a melhor estratégia, os truculentos alemães fugiram. Lieb-
knecht deixou-nos um relato do resto da história:
222 ^ ^ v : ICARLMARX

«Agora, já estávamos fartos de cerveja e, para nos acalmarmos, ace-


lerámos o passo até Edgar Bauer tropeçar num monte de pedras. "Eureca,
tenho uma ideia!" E em memória das partidas de estudantes, pegou numa
pedra e zás! quebrou um candeeiro a gás. As acções absurdas são conta-
giosas — Marx e eu não nos ficámos e partimos quatro ou cinco can-
deeiros — , deviam ser umas duas da manhã e as ruas estavam desertas...
Mas o barulho atraiu um polícia que, por sua vez, avisou os colegas que es-
tavam a fazer a mesma ronda. A nossa situação tornou-se crítica. Fugimos
com três ou quatro polícias no nosso encalço. Marx deu provas de uma
agilidade invejável. A perseguição durou uns minutos, mas, felizmente,
conseguimos meter por uma viela e os pob'cias perderam o nosso rasto.
Estávamos salvos. Desconheciam a nossa identidade e pudemos chegar
tranquilamente a casa.»*"^

Quando passeava pelas ruas de Londres, Marx detinha-se muitas vezes para
fazer uma festa na cabeça de um miúdo sentado à soleira de uma porta e meter-
-Ihe uma moeda na mão. Mas a experiência ensinou-lhe que os adultos britâ-
nicos não vêem com bons olhos os estrangeiros com sotaque estranho. Um
dia, ao passar por Tottenham Court Road de autocarro, ele e Liebknecht re-
pararam numa grande multidão apinhada à porta de uma taberna e ouviram
a voz lancinante de uma mulher a gritar por socorro. Embora Liebknecht tenha
tentado detê-lo, Marx saltou do autocarro e abriu caminho. Mas a mulher,
completamente bêbada, estava apenas a discutir com o marido; a chegada de
Marx teve o condão de aHar o casal que descarregou a sua fúria contra o im-
portuno. «A multidão cercou-nos», recordou Liebknecht, «e tomou uma ati-
tude ameaçadora contra o raio dos estrangeiros. A mulher, em particular, fi-
cou furiosa com Marx e concentrou-se na sua magnífica barba preta luzidia.
Tentei acalmar, em vão, a situação. Se não tivessem aparecido dois robustos
poKcias a tempo, teríamos pago bastante caro a nossa filantrópica intervenção.»
A partir dessa altura, notou Liebknecht, Marx mostrou-se «um pouco mais
prudente» nos seus contactos com o proletariado londrino.
Como o historiador Kirk Willis observou, «por volta de 1860, Marx não
estava interessado em ter discípulos, ou propagandistas, ingleses, pois tinha
outros planos mais importantes — a destruição intelectual da economia
política clássica»^*'.^ N o s quatro anos seguintes, refugiou-se novamente no
anonimato da sala de leitura do Museu Britânico a fim de se preparar para
o assalto final ao capitalismo. «Quanto a mim, estou a trabalhar imenso e, por
o HERÓI A CAVALO rt^ 223

estranho que pareça, a minha matéria cinzenta está a funcionar melhor do


que nunca no meio da misère que me rodeia», disse a Engels em Junho de
1862, acrescentando que tinha descoberto «uma ou duas agradáveis e sur-
preendentes novidades» na sua análise^^ Entre 1861 e 1862, preencheu mais
de 1500 páginas. «Estou a expandir este volume», expHcou, «pois os velhacos
dos alemães julgam o valor de um Mvro em termos de capacidade cúbica.»
A solução de problemas teóricos que dantes não consegtiia encontrar,
surgia-lhe agora cristalina e revigorante como um copo à&gin. A questão das
rendas agrícolas, por exemplo — ou esta «merda da questão das rendas»,
como dizia: «Há muito que tinha apreensões quanto à exactidão absoluta da
teoria de Ricardo e, por fim, lá cheguei ao fiindo da vigarice.» Ricardo tinha
simplesmente confiandido o valor e o preço de custo. N a Inglaterra de mea-
dos da época vitoriana, o preço dos produtos agrícolas eram mais elevados
do que o seu valor real (por exemplo, o tempo laboral envolvido) e o pro-
prietário embolsava a diferença sob a forma de rendas mais altas. Sob o
socialismo, contudo, este excedente seria redistribuído em benefício dos tra-
balhadores. Assim, mesmo que o preço de mercado permanecesse o mes-
mo, o valor dos produtos — o seu «carácter social» -— mudaria totalmente.
Estava tão satisfeito com os seus progressos que, às vezes, era ganho pelo
optimismo — como na ocasião em que um médico de Hanôver, Ludwig
Kugelmann, lhe escreveu em fins de 1862 a perguntar quando é que seria
publicada a continuação de Uma Contribuição para a Crítica da Economia Política.
«Fiquei encantado por me dar conta, através da sua carta, do caloroso interesse
que você e os seus amigos manifestam pela minha crítica da economia polí-
tica», respondeu imediatamente Marx. <A. segunda parte está finalmente ter-
minada, mas terá de ser passada a Hmpo e revista antes de ir para a tipografia.»^^
Concluía sugerindo «escreva-me de vez em quando para me dar notícias
da situação na Alemanha.» E assim começou uma amigável correspondên-
cia que iria durar dez anos, até Marx decidir subitamente que não queria ter
mais nada a ver com aquele coca-bichinhos.
Claro que o manuscrito não estava nada acabado: ainda era necessário
muito trabalho de carpintaria antes de poder levar os «retoques finais». Mas,
pelo menos, já tinha a madeira para construir a grande obra-prima barroca
que iria finalmente emergir em 1867. O desajeitado título provisório — Uma
Contribuição para a Crítica da Economia Crítica, Volume II— foi abandonado. Por
lógica inversa, os livros grandes mereciam títulos pequenos e, assim, ele
revelou pela primeira vez na carta a Kungelmann, será chamado O Capital.
OS B U L D O G U E S E A H I E N A

Jenny Marx nunca poderia partilhar a afeição do marido por Friedrich


Engels. É evidente que estava grata pela generosidade dele, bem como apre-
ciava a sua companhia intelectual e os encorajamentos que dava a Karl. E o
interesse que ele demonstrava pelas crianças, as quais adoravam o avuncular
«General», também a tocava. Para Jenny, contudo, ele continuaria sempre a
ser o Sr. Engels. Mulher que dificilmente se deixava chocar e que contem-
plava com satisfação o advento de revoluções violentas e a derrocada da
burguesia, ela ainda tinha suficientes preconceitos da classe média — ou
melindres — para se escandalizar com a ideia de um h o m e m e de uma mu-
lher a viverem juntos sem ser casados, especialmente quando a mulher em
questão era uma operária analfabeta.
Engels tinha conhecido Mary Burns aquando da sua primeira visita a
Manchester, em 1842, para reunir material destinado ao seu livro. As Condições
da Classe Operária em Inglaterra. E m breve se tornaram amantes e, embora esta
animada ruiva de origem proletária irlandesa fosse bastante ignorante, ensinou
tanto a Engels quanto aprendeu com ele. Engels admirava nela, assim como
na irmã Lydia, a qual se juntou a eles num ménage à trois, «a paixão pela sua classe,
que era nata. Tinha imicnso valor para mim e mantivera-se ao meu lado em
todos os momentos críticos, dando-me melhores provas do que todas as
delicadezas das raparigas "inducadas" e "sintimentais" da burguesia».
O romance foi reatado quando Engels voltou com Marx em 1845 e ele
então convidou Mary para ficar com ele uns tempos em Bruxelas. Depois
de se resignar a uma vida dedicada ao vil comércio em Manchester, Engels
instalou-a numa pequenina casa perto da dele e, no final da década de 1850,
226 ^ í* KARL MARX

começaram a viver juntos. Nas raras ocasiões em que Jenny foi obrigada a
reconhecer a existência de Mary, referia-se a ele como «a tua mulher», em-
bora a relação nunca tivesse sido realmente legalizada. O facto de Lydia
(Li^^J se ter juntado ao casal constituiu uma maior afronta à sensibilidade
puritana de Frau Marx. Mas Engels não se ralou.
A sua dedicação a Mary Burns também provocou o único momento de
frieza ao longo da calorosa e ininterrupta relação com Karl Marx. Apesar de
Marx não ter objecções quanto ao pouco ortodoxo comportamento domés-
tico do amigo (e até lhe provocar uma certa titilação por procuração), a sua
tendência foi de subestimar a importância das irmãs Burns por deferência para
com Jenny. Tal tendência nunca se manifestou de forma mais desastrosa
quando, a 7 de Janeiro de 1863, recebeu um breve e horrível bilhete de Engels:

Caro Mouro,
A Mary morreu. Deitou-se cedo ontem à noite e, quando -L?^,^ de-
cidiu ir para a cama pouco depois da meia-noite, encontrou-a já morta.
Tudo se passou muito rapidamente. Uma apoplexia ou um ataque car-
díaco. Só fui informado esta manhã; na noite de segunda-feira ainda
estava bem. N ã o consigo transmitir como me sinto. A pobre da rapariga
amava-me profundamente.
Teu,
FE

Marx respondeu no dia seguinte. <A. notícia da morte de Mary surpreen-


deu-me tanto quanto me transtornou. Era tão bem-disposta, espirituosa e
afeiçoada a ti.» Até aqui, tudo bem; mas isto era apenas o começo de u m lon-
go rol das suas próprias desgraças. «Só o diabo sabe porquê o azar se aba-
teu agora sobre todos nós. Já nem sei para que lado me hei-de virar...» As
tentativas para angariar dinheiro na Alemanha e em França não tinham dado
resultado e já ninguém lhe vendia nada a crédito. Estava a ser importunado
por causa da mensalidade da escola das filhas e da renda, e era impossível
prosseguir o seu trabalho. Após mais queixumes deste género, Marx lem-
brou-se do desgosto do amigo. «É horrivelmente egoísta da minha parte
contar-te estes horreurs nesta, altura», concedeu. «Mas é um remédio homeo-
pático. Uma calamidade distrai-nos das outras. E, no final de contas, que mais
posso eu fazer?» .:
OS BUIDOGUES E A HIENA •: ,¿j» 227

Bem, para começar, poderia ter tentado dar os pêsames com mais tacto.
É verdade que a situação de Marx era realmente calamitosa: desde o Natal
que as filhas não tinham voltado para a escola, em parte porque a conta do
período anterior ainda não fora paga mas também porque a única roupa e
sapatos decentes que possuíam se encontravam no prego. Até mesmo as
últimas palavras de despedida de Marx tinham mais a ver com os seus pro-
blemas do que com a perda de Engels: «Em vez de Mary, não deveria antes
ter sido a minha mãe que está cheia de maleitas e já viveu o suficiente? Estás
a ver as ideias estranhas que surgem na cabeça de " h o m e n s civilizados"
pressionados por certas circunstâncias. Salut.»
Engels leu tudo isto com espanto e raiva. Como ousava Marx falar de
dinheiro numa altura destas — em particular sabendo que ele próprio se
encontrava numa situação financeira difícil por causa da queda dos preços
de algodão? Manteve-se em silêncio durante cinco dias, e depois enviou u m
ríspido agradecimento. As suas cartas começavam, normalmente, por «Caro
Mouro», mas tal informalidade já não servia:

«Caro Marx,
Hás-de compreender que devido ao meu infortúnio e à maneira fria
como o encaraste me foi impossível responder-te mais cedo. Todos os
meus amigos, incluindo meros conhecidos, deram-me nesta ocasião mais
provas de amizade e simpatia do que eu esperava. Achaste que era o
momento adequado para afirmar a superioridade da "indiferença do teu
m o d o de pensar". Seja!»^

Agora, não havia nada de indiferente quanto ao modo de pensar de Marx


e, no decorrer das três semanas seguintes, amargas recriminações foram
trocadas à volta da mesa da cozinha em Grafton Terrace, enquanto Jenny
censurava Karl por não ter alertado Engels mais cedo acerca da estado das
suas finanças e ele a censurava por julgar que podiam depender das subven-
ções provenientes de Manchester para todo o sempre. («Como as mulheres
têm o hábito de desejar o impossível, a pobre coitada tinha de sofrer por algo
quanto ao qual estava de facto inocente», comentou indelicadamente Marx
mais tarde. <A.s mulheres, mesmo aquelas dotadas de inteligência, são cria-
turas esquisitas.») Após muitas e longas discussões, concordaram que Karl
deveria declarar-se falido diante do tribunal. Jennychen e Laura poderiam
228''^'«~ KARL MARX •

procurar emprego como governantas. Lenchen iria trabalhar para outra casa,
e a pequenina Tussy e os pais mudariam para um alojamento reservado aos
indigentes.
Teve realmente Marx essa intenção ou foi este martírio de autopunição
um ardil para comover Engels? É difícil de dizer. Mas não há dúvidas quanto
à sinceridade do seu acto de contrição:

r. «Fiz muito mal em escrever-te uma carta daquelas e lamentei-o assim


que a pus no correio. N o entanto, o que aconteceu nada tem a ver com
crueldade. Como a minha mulher e as minhas filhas poderão testemu-
nhar, fiquei tão abatido quando a tua carta chegou (de manhã cedo) como
se se tratasse do meu parente mais querido. Porém, ao escrever-te à noite,
fi-lo pressionado por circunstâncias extremamente desesperadas. O se-
nhorio tinha chamado um oficial de diligências, o homem do talho insistia
em ser pago, escassez de carvão e provisões e a pequenina Jenny de cama.
Regra geral, em tais circunstâncias, o meu único recurso é o cinismo.»^

Apesar desta autolaceração ainda estar misturada com piedade por si


mesmo, esta carta constitui o único pedido sincero de desculpas que Marx
jamais enviou a alguém.
Engels, com a sua habitual generosidade, reconheceu imediatamente
o arrependimento do amigo. «Caro Mouro», escreveu, retomando o seu tra-
tamento carinhoso:

«Obrigado por seres tão franco. Percebes agora a má impressão que


a tua penúltima carta provocou em mim. N ã o se pode viver com uma mu-
lher durante anos e não ser terrivelmente afectado pela sua morte. Senti
como se, juntamente com a Mary, eu também estivesse a enterrar os
liltimos vesti'gios da minha juventude. Quando a tua carta chegou, ela ain-
da não fora para o cemitério e essa carta obcecou-tne durante uma se-
mana inteira; não conseguia tirá-la da cabeça. Mas, agora, já não impor-
ta. A tua última carta reconciliou tudo e estou contente por, ao perder
•• a Mary, também não perdi o meu mais antigo e melhor amigo.»^

A desavença não voltou a ser mencionada e, sem mais histórias, Engels


tratou de salvar a família Marx da falência. Incapaz de pedir dinheiro empres-
tado, tirou simplesmente um cheque de cem libras enviado a Ermen & Engels
OS BULDOGUES E A HIENA •.-'Jî229

e endossou-o a Marx. «Foi uma acção excessivamente ousada da minha parte»,


reconheceu, «mas tem de se correr riscos.» Seguiram-se 250 libras uns meses
mais tarde para Marx poder aguentar-se até ao fim do Verão — o que veio
mesmo a calhar, pois uma crise de fiirúnculos impediu-o quase de trabalhar.
E m Novembro, chegou um telegrama de Trier anunciando a morte de
Henriette Marx aos 75 anos. Ela previra o seu fim com precisão suspeita —
às 16 horas do dia 30 de Novembro, a mesma hora e dia do seu quinquagé-
simo aniversário de casamento — mas ninguém parece ter-se interrogado
quanto a isso. O único comentário de Karl ao ouvir a notícia foi, como era
de esperar, fleumático: «O destino reclamou um dos nossos parentes. Eu, por
mim, já estive com um pé para a cova. Vistas as circunstâncias, eu sou mais
preciso do que a minha mãe.»'^ Engels enviou dez libras para pagar a viagem
a Trier, mas nem uma palavra de pêsames: conhecia suficientemente Marx
para saber que lamentações falsas seriam mais ofensivas do que nenhumas.
A execução o testamento arrastou-se durante meses e, depois de todos
os adiantamentos e empréstimos do tio Lion terem sido descontados, a parte
de Marx ficou reduzida a pouco mais de cem libras. N o entanto, foi suficiente
para justificar uma leviandade. N o seu desprezo pela prudência financeira
burguesa, Marx praticava o que pregava: se não havia dinheiro, ele sobrevi-
via através de expedientes; mas, logo que arranjava umas libras, esbanjava-
-as sem pensar no dia de amanhã. Os Marx tinham mudado para Grafton
Terrace em 1856 à custa da pequena herança que Jenny recebera de Caroline
von Westphalen, embora soubessem que a renda da casa era superior aos
seus meios. Agora, a mesma loucura repetia-se. E m Março de 1846, assim
que o dinheiro da herança de Henriette começou a chegar, alugaram uma es-
paçosa casa no número 1 de Modena Villas, em Maidand Park, por três anos.
A nova morada ficava apenas a 200 metros de Grafton Terrace, mas a u m
m u n d o de distância em termos de estilo e estatuto — o tipo de residencia
preferido por advogados e médicos abastados com um grande jardim, uma
«encantadora estufa» e espaço suficiente para cada uma das meninas ter o seu
quarto de dormir. Uma sala do primeiro andar que dava para o parque foi
escolhida por Marx para ser o seu escritório.
A renda anual de Modena Villas era de 65 libras, quase o dobro da de
Grafton Terrace. C o m o é que Marx esperava pagar todo este luxo é u m
mistério: mas, como aconteceu tantas vezes, a sua fé foi vindicada. A 9 de
Maio de 1864, Wilhelm L.upm Wolff morreu com uma meningite, legando
«todos meus livros, mobília, dinheiro que me é devido e todas as minhas
230 «C^ KARL MARX
•>•

propriedades, bens imóveis, alugados, ou que venha a ter direito ou poder


para dispor, ao dito Karl Marx»^. Wolff era um dos raros antigos companhei-
ros da década de 1840 que sempre se mantivera fiel a Marx e a Engels. Ti-
nha trabalhado com eles no Comité de Correspondência Comunista, em
Bruxelas; durante a revolução de 1848 em Paris, e quando Marx fora director
do Neue Rheinische Zeitung, em Colónia. A partir de 1853 tinha vivido tran-
quilamente em Manchester, ganhando a vida como professor de b'nguas e a
par das notícias políticas através de Engels. «Não acredito que alguém em
Manchester tenha sido tão universalmente amado como o nosso querido
amigo», escreve Karl a Jenny após ter proferido a oração fúnebre no decor-
rer da qual se desfez em lágrimas várias vezes.
Como executantes do testamento, Marx e Engels ficaram espantados ao
descobrir que o modesto Lupus tinha amassado uma pequena fortuna à custa
de trabalho árduo e poupanças. Mesmo após terem sido deduzidas as des-
pesas do funeral, impostos, cem libras para E,ngels e outras cem para o mé-
dico de Wolff, Louis Borchardt — o que muito irritou Marx, pois conside-
rava este «bombástico incompetente» responsável pela morte do amigo — ,
ainda ficavam 820 libras para o principal herdeiro. Isto era muito mais do que
Marx jamais tinha ganho com a escrita e explica porquê o primeiro volume
de O Capital (pubHcado três anos mais tarde) é dedicado ao «meu inesque-
cível amigo, Wilhelm Wolff, intrépido, fiel e nobre protagonista do proleta-
riado», e não ao mais óbvio e valioso candidato, Friedrich Engels.
Os Marx não perderam tempo a gastar aquele dinheiro caído do céu.
Jenny mobilou e redecorou a casa de novo, explicando que «achei melhor
usar o dinheiro nisto do que gastá-lo aos poucos em ninharias». Foram com-
prados animais de estimação para as crianças (três cães, dois gatos e dois
pássaros), que receberam os nomes das bebidas favoritas de Karl, incluin-
do Whisky e Toddy. E m Julho, Marx levou toda a família a passar férias em
Ramsgate durante três semanas, embora a erupção de um furúnculo malig-
no na ponta do pénis tenha estragado a diversão e o obrigasse a ficar de cama
na pensão bastante amuado. «O teu amigo filisteu, e ainda mais a sua cara-
-metade e a sua progenitura feminina, estão aqui a divertir-se à grande», ob-
servou, contemplando a praia com inveja através da janela.«É quase deprimen-
te ver o venerável oceano, esse antigo Titã, a ter de suportar estes pigmeus a
gozar ã sua frente e a servir-lhes de diversão.»'' Os furúnculos tinham substi-
tuído os oficiais de diligência como fonte principal de irritação. Mas, a maior
parte das vezes, ele tratava-os com o mesmo desprezo negligente. Nesse
OS BULDOGUES E A HIENA «IÍÍÍ* 231

Outono, deu um grande bañe na nova moradia em honra ác Jennychen e Laura,


que tinham passado muitos anos a recusar convites para festas por recearem
não poder retribuir a atenção. Cinquenta dos seus jovens amigos divertiram-
-se até às quatro da manhã, e restou tanta comida que a pequenina Tussy foi
autorizada a convidar as crianças da vizinhança no dia seguinte.
N u m a carta á Lion Philips, escrita no Verão de 1864, Marx revelou u m
pormenor do seu novo estilo de vida ainda mais notável:

«Lima coisa que não deixará de te surpreender é que tenho andado a


especular na Bolsa — em parte em fundos americanos e, em especial, em
acções inglesas, as quais estão a crescer como cogumelos este ano (para
espanto de todas as sociedades de acções imagináveis e inimagináveis) e
a atingir níveis pouco razoáveis para, depois, na maior parte, cair. Ganhei,
desta forma, mais de 400 libras, e agora que a complexidade da situação
política permite mais oportunidades, vou começar tudo de novo, Trata-
-se de um tipo de operação que não exige muito tempo e que, embora
se corra alguns riscos para subtrair dinheiro ao inimigo, vale a pena.»^

Como não há provas de tais transacções, alguns historiadores assumiram


que Marx inventou simplesmente esta história para impressionar o tio. Mas
pode muito bem ser verdade. Mantinha-se certamente inform^ado quanto ao
preço das acções e, ao falar com Engels sobre o próximo pagamento prove-
niente das propriedades de Lupus, mencionou que «se eu tivesse tido dinhei-
ro nestes últimos dez dias, teria feito um grande negócio na Bolsa daqui. Com
esperteza e uma quantia modesta pode-se ganhar dinheiro em Londres.»^
A especular no mercado, a dar festas e a passear os cães no parque, Marx
corria o grande perigo de se tornar respeitável. U m dia, recebeu um curio-
so d o c u m e n t o anunciando que fora eleito, sem o saber, para a sinecura
municipal de «Grande Oficial da Ordem de São Pancrácio». Engels achou
isto hilariante: «Salut, ô connétable de Saint Pancrace! Agot2i devias arranjar um
traje adequado: uma camisa de noite vermelha, uma touca branca, chinelos,
calças brancas e um cachimbo comprido.»'^ Mas Marx boicotou a cerimónia
de investidura, seguindo o conselho de um vizinho irlandês que «eu devia
dizer-lhes que era estrangeiro e que fossem para o diabo que os carregue»."'
Desde a ruptura da Liga Comunista que Marx estava determinado a não
se juntar ao que quer que fosse e rejeitava os comités e partidos que tenta-
vam recrutá-lo. «Agrada-me imenso o isolamento público em que nós dois,
232 p ' KJ\RLMARX

tu e eu, actualmente vivemos», tinha já dito a Engels em Fevereiro de 1851,


e certamente que seria preciso mais do que os filisteus de São Pancrácio para
o tirar dessa longa hibernação. Após 30 anos de «autêntico isolamento» (em-
bora nem sempre pacífico e tranquilo), Marx ainda não estava preparado para
emergir. A primeira indicação de um novo estado de espírito pode ser de-
tectada na sua entusiástica reacção ao levantamento de 1863 na Polónia
contra a opressão czarista. «O que é que pensas do que se está a passar na
Polónia?», perguntou a Engels a 13 de Fevereiro. «Uma coisa é certa, a tem-
porada das revoluções abriu novamente na Europa.» Quatro dias mais tar-
de, ele tomou a decisão que a intervenção da Prússia a favor do czar contra
os insurgentes polacos «impele-nos a falar». Nessa altura, ele estava simples-
mente a pensar em escrever um panfleto ou um manifesto — e, de facto,
publicou uma breve Proclamação sobre a Polónia, em Novembro. Mal podia
então imaginar que, dentro de 11 meses, seria o verdadeiro líder do primeiro
movimento de massas da classe operária internacional.

A vida adulta de Marx tem u m ritmo de maré em que as vagas espuman-


tes, que avançam, são seguidas por um longo rugido de recuo. Este movi-
mento alternativo de envolvimento e isolamento ultrapassava e m grande
parte o seu controlo, o qual era ditado por acidentes e circunstâncias —
doença, exílio, catástrofes domésticas, reserva política, amizades destroçadas.
Mas também pode ser visto como a obstinada necessidade de reconciliar a
teoria e a prática, a contemplação privada e o empenho social. A exemplo
de muitos escritores, ele era uma espécie de solitário gregário que ansiava por
um pouco de solidão, a fim de poder trabalhar ininterruptamente, mas que
também desejava o estimulo da acção e do debate. Marx sentia esse dilema
mais profundamente do que a maioria, pois a separação dos indivíduos da
sociedade constituía uma das suas principais obsessões.
• N u m ensaio de 1835 cheio das simples certezas de um rapaz de 17 anos
que acabou de comprar a sua primeira navalha de barbear, o problema era
eliminado tão facilmente como os pelos da barba de um jovem. «Directiva
principal que nos deve guiar na escolha de uma profissão é o bem-estar da
humanidade e a nossa própria perfeição», escreveu. «Não se deve pensar que
estes dois interesses sejam conflituosos.» E porque não? Porque a natureza
hpmana era constituída de m o d o a que os indivíduos alcançassem o apogeu
da perfeição através da sua dedicação aos outros. Aquele que trabalha só para
si mesmo «pode talvez tornar-se famoso, um grande erudito ou um poeta
OS BULDOGUES E A HIENA - ' - 233

excelente, mas nunca pode ser um h o m e m verdadeiramente perfeito e no-


tável». A história aclama apenas quem se enobrece enriquecendo a sua tri-
bo e «a própria religião ensina-nos que o ser ideal que todos se esforçam por
imitar se sacrificou para salvar a humanidade... Quem ousaria não tomar isto
em conta?»
O próprio Marx, por exemplo. Após perceber que a religião não era cura
para a alienação, mas simplesmente um opiáceo para amenizar a dor, viu-se
forçado a procurar a perfeição noutro sítio — em primeiro lugar, na auto-
consciência unificadora da filosofia hegeliana e, depois, n o materialismo
histórico. Mas não havia meio de escapar ao velho argumento teológico da
fé contra o trabalho, o qual meramente assumia uma forma secular — teo-
ria contra prática ou palavras contra feitos.
«Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de várias maneiras; o
ponto fundamental é mudá-lo», declarou em 1845, como se abolisse a divi-
são do trabalho de uma penada: no futuro, toda a gente seria filósofo e sol-
dado, assim como todos nós deveríamos guardar os rebanhos de manhã,
pintar um quadro à tarde e pescar ao anoitecer. Nessa época, Marx, toma-
do de fervor existencialista, não tinha paciência para com a mentalidade
daqueles que viviam em torres de marfim. N u m artigo pouco conhecido de
1847, ridicularizou o jornalista belga, Adolphe Bartels, que se tinha assus-
tado com as actividades revolucionários dos refugiados alemães:

«O Sr. Adolphe Bartels declara que, para ele, a vida púbuca terminou.
E, de fato, retirou-se para o conforto da vida privada e não faz tenção de lá
sair; limita-se a protestar sempre que ocorre qualquer manifestação públi-
ca e a proclamar em voz alta que é dono de si mesmo, que o movimento
foi feito sem ele, Sr. Bartels, apesar dele, Sr. Bartels, e que tem o direito
de lhe recusar a sua sanção suprema. Temos de concordar que isto é uma
maneira de participar na vida pública como qualquer outra e que, através
de todas estas declarações, proclamações e protestos, o h o m e m público
se esconde por detrás da aparência modesta do indivíduo privado. E deste
m o d o que o génio pouco apreciado e mal compreendido se revela.»"

E m alguns anos, porém, Marx veio a acreditar que um génio mal com-
preendido como ele podia muito bem participar na vida pública, lançando
protestos e proclamações da solidão da sua secretária. Há uma altura para
tudo: altura para estragar e outra para remendar; tempo de guerra e tempo
234 KARLMARX

de paz. Ou, então, para confundir as referências, porquê imitar a acção do


tigre quando o clamor da guerra se calou?
Daí o impressionante contraste entre o seu sardónico ataque a Bartels e
o prefácio autobiográfico em Uma Contribuição para a Crítica da Economia
Politica (1859), onde confessou que o encerramento do Rheinische Zeitung, em
1843, tinha-lhe dado a oportunidade há muito aguardada «de trocar a vida
pública pelo estudo» que ele «avidamente aproveitou». Esse prefácio foi
escrito n o decorrer de u m afastamento muito mais longo dos assuntos
públicos — uma abstinência que ele não mostrou desejo de pôr fim, muito
embora os jornais alemães censurassem por vezes a sua inactividade. E m
1857, um grupo de revolucionários de Nova Iorque escreveu-lhe suplican-
do que restaurasse a velha Liga Comunista em Londres; levou mais de um
ano a responder e, quando o fez, foi para explicar que «não estou associado
com nenhuma organização desde 1852, e que estou firmemente convencido
de que os meus estudos teóricos são de maior importância para a classe ope-
rária do que me misturar com associações que já passaram de moda no con-
tinente». C o m o contou a Ferdinand Freiligrath, em Fevereiro de 1860,
«enquanto tu és poeta, eu sou crítico e, para mim, as experiências de 1849-52
chegaram-me. A Liga, como a maior parte da société des saisons em Paris e cen-
tenas de outras, foi simplesmente um episódio na história de um partido que
está a germinar naturalmente em toda a parte do solo da sociedade moderna»^^.
Esta metáfora orgánica é a descrição mais apta de como a Associação Inter-
nacional do Operariado emergiu à luz do dia quatro anos mais tarde.
Parece quase paradoxal dizer que uma organização com o nome de In-
ternacional podia ter começado em Inglaterra, onde a insularidade há mui-
to não só tem sido um capricho geográfico como um m o d o de vida; gera-
ções e crianças aprenderam a recitar o poema de Shakespeare sobre esta ilha
coroada, este outro Paraíso:

Esta pedra preciosa incrustada no mar de prata,


O qual lhe serve de muralha,
O u fosso defensivo de uma casa.
Contra a inveja de nações menos afortunados,
Este terra abençoada, este reino, esta Inglaterra...

Quando os ingleses falam da «Europa», ou «o Continente», não inclui o


seu próprio país: referem-se ao estrangeiro, um lugar estranho e selvagem
onde os nativos urinam nos sapatos e comem alho na cama. Claro que se
OS BULDOGUES E A HIENA ««".•• 235

pode visitar o estrangeiro — e conquistá-lo para criar o maior império que


jamais existiu — , mas a finalidade de tais expedições, quer por diplomatas
vitorianos apoiados por força armada ou modernos vândalos do futebol, é
para lembrar ao estrangeiro que ele será sempre inferior. Afinal de contas,
que outra nação pode gabar-se de se ter erguido do oceano azul por ordem
dos céus? O humorista do século XIX, Douglas Jerrold, amigo de Dickens
e colaborador da revista Punch, não estava a brincar ao escrever: «A melhor
coisa que conheço entre a França e a Inglaterra é... o mar.» Estas meias pia-
das ainda são comuns nas manchetes dos tablóides ingleses. A própria ideia
de Inglaterra chega a transformar pessoas inteligentes em vendedores de
banha de cobra. «Ao regressar a Inglaterra de um país estrangeiro, tem-se
imediatamente a sensação de respirar um ar diferente», escreveu George
Orwell n u m ensaio famoso e exageradamente elogiado. «Nos primeiros
minutos, dúzias de pequenos pormenores conspiram para dar essa sensação.
A cerveja é mais amarga, as moedas mais pesadas, a erva mais v e r d e . . . » "
Pobres países estrangeiros: nem sequer sabem cultivar relva decente.
Juntamente com a fanfarronice e a xenofobia, existe ainda outra tradição
— mais discreta, mas não menos persistente — do internacionalismo inglês,
em particular entre os sindicalistas. Basta pensar na sua campanha contra o
apartheid sul-africano e na sua recusa em produzir artigos para a ditadura
chilena na década de 1970: pelo menos alguns operários britânicos quiseram
mostrar, repetidas vezes, uma solidariedade instintiva com os oprimidos.
Como disse o cartista George Julian Harney aquando da insurreição portu-
guesa em 1847: «As pessoas estão a começar a compreender que tanto as
questões estrangeiras como as domésticas as afectam; que uma agressão à
Liberdade no Tejo é uma ofensa aos amigos da liberdade no Tamisa; que o
sucesso do republicanismo em França é o fim da tirania em outros países;
e que o triunfo da carta democrática em Inglaterra é a salvação de milhões
de pessoas na Europa.»^"^ Seria fácil pensar, como as classes dirigentes des-
sa época fizeram, que os amigos da liberdade e do Tamisa só existiam na ima-
ginação de Harney. Porque outro motivo se manteve a Inglaterra imune à
epidemia revolucionária que se alastrou pelo resto da Europa em 1848? O
partido dos Democratas Fraternais de Harney — cujo comité incluía refu-
giados de França, Alemanha, Suíça e Escandinávia — podia organizar reu-
niões para debater os empolgantes acontecimentos que ocorriam no Con-
tinente, mas estavam os operários britânicos interessados na luta que se
travava em países distantes e sobre a qual nada sabiam?
236 j ^ , KARL MARX

A resposta foi proporcionada pelo espantoso «incidente Haynau», em


1850 — o qual, por feliz coincidência, teve lugar mesmo à beira do Tamisa.
O marechal barão Von Haynau era um comandante austríaco brutal, conhe-
cido por a Hiena; tinha ganho tal alcunha por ter torturado prisioneiros e
chicoteado mulheres na supressão de revoltas na Itália e Hungria. E m Agos-
to de 1850, e para repousar de obrigações tão fatigantes, foi passar umas cur-
tas férias a Londres, onde o seu itinerário turístico incluiu uma visita à torre
de Barclay e à fábrica de cerveja Perkins na margem sul do Tamisa. E m b o -
ra George Julian Harney tivesse encorajado todos os amigos da Liberdade
para protestar contra essa visita, tinha poucas esperanças de sucesso — e
ficou tão surpreendido como os outros com o que aconteceu a seguir. «As-
sim que a Hiena entrou na fábrica de cerveja, um grupo de trabalhadores
atirou-lhe com um fardo de palha à cabeça e lançou-lhe uma saraivada de
estrume. O barão fugiu para a rua, mas outras pessoas juntaram-se à perse-
guição — rasgando-lhe a roupa, arrancando-lhe tufos do bigode e gritando:
"Abaixo o carniceiro austríaco!"»^^ Haynau tentou esconder-se num caixo-
te do lixo da George Inn, em Bankside, mas foi descoberto e apedrejado.
Quando a polícia chegou à estalagem e o levou de barco para a outra mar-
gem do Tamisa, o esfarrapado e humilhado marechal já não estava ern es-
tado para prosseguir as férias. E m poucas horas, uma nova canção ressoava
nas ruas de Southwark:

i, Ponham-no daqui para fora,


Tirem-no desta margem do Tamisa,
Deixem-no ir ter com os tories
E as senhoras finas.
E pavonear-se em West End,
Mas nunca mais há-de voltar a Bankside.

O jornal Red Republican, de Harney, viu neste incidente a prova dos «pro-
gressos alcançados pela classe operária em matéria poKtica, do seu incorruptível
amor da justiça e do seu intenso ódio pela tirania e a crueldade». Tanta gente
compareceu a uma celebração em Farringdon Han, no decorrer da qual Engels
discursou, que muitas pessoas não puderam entrar. Inúmeras associações de
trabalhadores — de Paris a Nova Iorque — enviaram felicitações e até mes-
mo Palmerston ficou secretamente divertido, considerando que a administra-
ção de um pouco do remédio do marechal ao próprio não lhe faria mal ne-
OS BULDOGUES E A HIENA ::„_. 237

nhum. Mas os jornais conservadores, como o Quarterly Keview, não acharam


piada nenhuma: os motins de Bankside eram uma alarmante «indicação de
influência estrangeira no meio do nosso povo» — influência estrangeira era
o eufemismo-padrão do século XIX para o temível vírus do socialismo.
O Quarterly Keview não precisava de se preocupar; pelo menos por en-
quanto. Ao longo dos dez anos seguintes, o espírito de Bankside permaneceu
invisível e os poucos grupos socialistas na Grã-Bretanha — a Liga Comu-
nista, os Cartistas, os Democratas Fraternais — adormeceram ou desapare-
ceram. Só por volta de 1860 é que o proletariado acordou do seu longo sono.
Conforme o historiador Eric Hobsbwan observou, esse despertar manifes-
tou-se numa «curiosa amálgama de acção política e industrial, de vários
géneros de radicalismo — do democrático ao anárquico — , de lutas de
classe, alianças entre classes sociais e governo, e concessões capitalistas.
Mas, acima de tudo, era internacional, não apenas porque, como o despertar
do Liberalismo, ocorreu simultaneamente em vários países, mas porque era
inseparável da solidariedade internacional das classes operárias»."'
O Conselho Comercial de Londres, fundado em 1860, estava por detrás
de grande parte dessa actividade. Organizou uma demonstração (a qual atraiu
uma multidão de cerca de 50 000 pessoas) para receber o libertador italiano
Giuseppe Garibaldi, e, em Março de 1863, em plena Guerra de Secessão,
apoiou uma reunião pública em St. James' Hall para apoiar a luta de Abraham
Lincoln contra a escravidão. Marx, que se deslocou de propósito para a oca-
sião, teve o prazer de notar que «os próprios operários exprimiram-se real-
mente muito bem sem vestígios de retórica burguesa».^'' Mas não se pode
ignorar a involuntária contribuição de Napoleão III, o qual convidou uma
delegação de trabalhadores franceses a visitar Londres durante a Exposição
de 1862, proporcionando-lhes assim a oportunidade de estabelecer contacto
com indivíduos como George Odger, secretário do Conselho Comercial.
Quando vários desses representantes voltaram a Londres em Julho de 1863
para celebrar a insurreição polaca, Odger fez uma alocução em norae do ope-
rários de Inglaterra aos operários de França, propondo que formalizassem
a sua solidariedade. Foi convocada outra reunião para o dia 28 de Setembro
de 1864 — desta vez no cavernoso St Martin's Hall, em Convent Garden — ,
a fim de consagrar essa nova união e a criação da Associação Internacional
dos Trabalhadores.
O nome da associação merece ser comentado: se isto viesse a ser mais
do que uma mera aliança anglo-francesa, deviam ter pelo menos acrescen-
238 «^, KARL MARX

tado outras figuras simbólicas provenientes de outros países. Exactamente


por isso é que, uma certa manhã de Setembro de 1864, um jovem francês
chamado Victor Le Lubez foi bater à porta do número 1 de Modena Villas
e pediu a Karl Marx para sugerir alguém que falasse em nome dos «trabalha-
dores alemães». O próprio Marx era demasiado burguês para ser elegível e,
assim, recomendou Johann Georg Eccarius, alfaiate refugiado e velho alia-
do da Liga Comunista. É de admirar que Le Lubez e Odger não tivessem
pensado em Eccarius, pois conheciam-no bem devido à sua participação no
Conselho Comercial de Londres. Talvez a familiaridade tivesse dado azo a
desprezo, sentimento que Eccarius despertava com frequência: os seus
m o d o s desajeitados e sem humor antagonizaram quase toda a gente que
trabalhou com ele e eles devem ter julgado que Maiií conseguiria arranjar um
orador proletário mais inspirado.
Vale a pena fazer uma pequena pausa para considerar o que o apoio de
Marx a Eccarius nos diz acerca do seu próprio carácter. Segundo a lenda
incansavelmente divulgada pelos seus críticos, Marx era um snob incorrigí-
vel que desprezava os socialistas da classe operária e os considerava uns
burros que tinham adquirido ideias que os ultrapassavam. O biógrafo Robert
Payne, por exemplo, fala do «desprezo de Marx pela humanidade, *em, par-
ticular o sector chamado proletariado»^*^. Até mesmo o sofisticado especia-
lista de Marx, o professor Shiomo Avineri, escreve que «a céptica perspec-
tiva de Marx quanto à capacidade do proletariado conceber os seus próprios
objectivos e concretizá-los sem ajuda intelectual exterior tem sido frequen-
temente documentada. Isto confirma a sua observação de que as revoluções
nunca começam com as "massas", mas têm a sua origem em grupos de elite»^^.
Onde é que essas perspectivas e observações se encontram documentadas?
N ã o nas obras de Marx nem nas notas de Avineri^°. Este menciona que Marx
tinha uma atitude arrogante em relação a Wñhelm Weitiing, mas, como vimos,
ele até o tratou com bastante generosidade, argumentado que não se devia ser
demasiado brutal com um pobre alfaiate que sofrera realmente por causa das
suas crenças. E o que provocou a sua zanga não foi desdém pelas classes
baixas, mas exaspero perante as ilusões políticas e religiosas de u m ego-
cêntrico insuportável. N o caso de Weitling ter sido um intelectual da classe
média, Marx tê-lo-ia tratado de forma muito mais brutal.
O que nos traz à segunda prova de Avineri. «Até mesmo um dos seus
adeptos mais leais, George Eccarius, também alfaiate de profissão, foi víti-
ma de desprezo imerecicio por parte do seu mestre e professor.» Mas, mais
OS BULDOGUES E A HIENA 239

uma vez, não cita quaisquer fontes: é evidente que o desprezo de Marx por
alfaiates, sapateiros e outras vis profissões era tão universalmente conheci-
do que nem sequer precisava de ser comprovado.
Isto é exactamente o oposto da verdade. Foi Marx quem deu a primeira
oportunidade a Eccarius ao publicar o seu artigo, «Alfaiate em Londres», no
efémero jornal londrino NRZ Review. «O autor deste artigo», informou Marx
os leitores, «trabalha numa das alfaiatarias de Londres. Perguntamos à bur-
guesia alemã quantos autores possui que sejam capazes de apreender o
movimento genuíno de maneira semelhante?... O leitor notará como, aqui,
em vez das críticas de ordem sentimental, moral e psicológica usadas con-
tra as condições existentes por Weitling e outros trabalhadores, uma com-
preensão puramente materialista e mais livre, isenta de caprichos sentimen-
tais, confronta a sociedade burguesa e o seu movimento.»^^
N ã o há nisto quaisquer sinais de desprezo. Ao longo dos maus momen-
tos da década de 1850, Marx manteve-se atento e complacente, ajudando
Eccarius a publicar artigos em jornais de língua alemã no estrangeiro com
a esperança de o salvar do árduo trabalho que o ocupava das cinco da manhã
até às oito da noite na alfaiataria. «Se houver dinheiro, sugiro que Eccarius
seja o primeiro a receber para que não tenha de passar todo o dia a trabalhar»,
aconselhou um colega jornalista em Washington. «Tenta, se for possível,
arranjar-lhe algum dinheiro.» Por mais dramática que fosse a sua própria
situação financeira, insistia sempre para que Eccarius tivesse prioridade.
Quando Eccarius adoeceu com tuberculose, em Fevereiro de 1859, Marx
descreveu o mal do companheiro como «a coisa mais trágica que vivi aqui
em Londres»^^. Uns meses mais tarde, observou tristemente que Eccarius
«andava de novo a passar um mau bocado na alfaiataria»^^ e pediu a Engels
que enviasse umas garrafas de vinho do Porto ao pobre h o m e m para o
animar. E m 1860, obrigado por motivos de saúde a desistir do emprego
durante uns tempos, Eccarius foi viver para um quarto à custa de Marx, o
qual também lhe arranjou trabalho na imprensa americana a três dólares por
artigo. Quando três dos filhos de Eccarius morreram durante a epidemia de
escarlatina, em 1862, foi também Marx que, apesar de estar quase na misé-
ria, angariou fundos para cobrir as despesas do funeral, e, finalmente, quando
lhe pediram para nomear um orador para a histórica assembleia pública de
1864, foi ele novamente quem deu o nome do seu velho amigo. Eccarius
«saiu-se admiravelmente», disse, depois, Marx a Engels, acrescentando que
ficara muito contente por ter permanecido calado. N o entanto, muitos his-
240 %, KARL MARX

toriadores continuam a repetir ainda hoje que Marx desdenhava gente de


profissão modesta.
A verdade é que foi a presença de muitos trabalhadores autênticos — e
a refrescante falta de diletantes da classe média pretensiosos — que o atraí-
ram para o encontro inaugural da Internacional persuadindo-o «a abando-
nar a minha habitual atitude de declinar esse tipo de convites». E, apesar de
ter estado presente em St Martin's Hall apenas como observador, foi eleito
para o Conselho-Geral no fim da sessão.
Parece haver aqui um ligeiro paradoxo. N a medida em que Marx era in-
discutivelmente u m intelectual burguês, não iria ele diluir a pureza prole-
tária que tanto admirava ao juntar-se a esse conselho? Para responder a esta
pergunta precisamos de olhar mais de perto para a composição da Interna-
cional. O Conselho-Geral era formado por dois alemães (Marx e Eccarius),
dois italianos, três franceses e 27 ingleses — quase todos da classe operá-
ria. Tratava-se de uma mistura confusa: sindicalistas ingleses defendiam
apaixonadamente o interesse de liberalizar as negociações colectivas, mas
não estavam interessados na revolução socialista; adeptos franceses de
P r o u d h o n que sonhavam com a utopia, mas não gostavam de sindicatos;
mais alguns republicanos, discípulos de Mazzini e defensores da liberdade
polaca. Discordavam sobre quase tudo — em particular do papel, se tal
fosse o caso, que a classe média esclarecida desempenharia na Internacio-
nal. N u m a carta a Engels, escrita dois anos depois da sua fundação, Marx
informava-o de um contratempo típico:

«Para exasperar os cavalheiros franceses — que queriam excluir toda


a gente excepto os trabalhadores manuais de ser membros da Associa-
ção Internacional ou, pelo menos, de ser eleitos como delegados do con-
gresso — os ingleses propuseram-me ontem para Presidente do Conse-
lho-Geral. Declarei que em nenhumas circunstâncias aceitaria tal coisa
e propus Odger (o líder sindical inglês), que foi então reeleito, embora
algumas insistissem em votar por mim apesar da minha declaração.»^"^

O livro de minutas desta assembleia regista que Marx «se considerou


incapacitado porque era um trabalhador cerebral e não manual, mas não foi
assim tão simples. (O seu desejo de continuar a escrever O Capita/deve ter
tido influência.) Uns anos mais tarde, quando um médico chamado Sexton
foi proposto como membro, houve os habituais comentários: «Se deviam ser
OS BULDOGUES E A HIENA --*"^* 241

acrescentados profissionais no Conselho; segundo as minutas, "o cidadão


Marx achou que, embora a grande maioria do Conselho fosse composta por
trabalhadores, a admissão de profissionais não era de temer".»^^ E m 1872,
quando houve receio de que várias seitas americanas excêntricas se infiltras-
sem na Internacional, foi o próprio Marx quem propôs — com sucesso —
que nenhuma fosse autorizada a filiar-se a não ser que pelo menos dois terços
dos seus membros fossem trabalhadores assalariados.
E m resumo, embora aceitasse que a maior parte da direcção e dos mem-
bros pertencesse à classe trabalhadora, Marx não se intimidou por não ter
credencias proletárias: homens como ele ainda tinham muito para oferecer
à associação, desde que não abusassem da sua posição hierárquica nem ar-
massem em vedetas. Engels seguiu este exemplo, mas sendo um capitalista
abastado mostrava-se compreensivamente mais relutante em se impor.
Depois de ter vendido a sua parte na firma da família e mudar-se para Lon-
dres em 1870, aceitou um lugar no Conselho-Geral quase imediatamente,
mas recusou ser tesoureiro. «O cidadão Engels objectou que só um traba-
lhador deveria ser nomeado para um cargo relacionado com finanças», está
assente nas minutas. «O cidadão Marx achou que tal objecção não era defen-
sável, pois u m h o m e m com experiência comercial era o mais indicado para
desempenhar tal cargo.»
Engels manteve a sua recusa — e tinha provavelmente razão. Como o
historiador marxista Hal Draper sublinhou, lidar com dinheiro era o posto
mais susceptível de uma associação de trabalhadores, pois acusações de irre-
gularidade financeira eram bastante comuns sempre que havia um conflito
político; e um homem de negócios recentemente chegado de Manchester era
um alvo óbvio para qualquer «cavalheiro francês» que quisesse criar sarilhos.
Marx pode ter preferido trabalhar nos bastidores, mas a verdade é que
trabalhou a valer: sem os seus esforços, a Internacional talvez se tivesse
desintegrado dentro de um ano. O Conselho reunia todas as terças-feiras na
sua miserável sede em Greek Street, no Soho — no sítio onde, quase um
século mais tarde, comediantes como Lenny Bruce e Peter Cook iriam em-
pregar técnicas diferentes para sabotar os poderes estabelecidos. Os livros
de minutas mostram que ele estava satisfeito por fazer o seu trabalho. («Os
cidadãos Fox, Marx e Cremer foram delegados para assistir a Sociedade de
Compositores... O cidadão Marx propôs e o cidadão Cremer apoiou que o
Conselho-Geral agradeça ao cidadão Cottam a sua generosa doação... O
cidadão Marx declarou que sociedades na Basileia e em Zurique se tinham
242 V " ' I<j\RLMARX

juntado à Associação... O cidadão Marx informou ter recebido três libras


da Alemanha para cartões de sócios que ele devidamente entregou ao secre-
tário financeiro...») A sua influência foi aparente desde o princípio. O assun-
to que deu início à primeira assembleia do Conselho-Geral, a 5 de Outubro
de 1864, foi a proposta de Marx que Wüiam Randal Cremer, do Conselho Co-
mercial de Londres, devia ser nomeado secretário. (O Sr. Cremer foi eleito por
unanimidade.) Mais tarde, nessa mesma noite, Marx foi eleito para u m
subcomité, cuja tarefa era redigir as regras e princípios da nova Associação.
Até aqui, tudo bem. Mas, depois, Marx adoeceu, faltando assim às duas
reuniões seguintes. Levantou-se da cama a 18 de Outubro por causa de uma
carta urgente de Eccarius avisando-o de que, se não viesse ao Conselho-
-Geral naquela noite, uma série de medidas confusas e insípidas seriam apro-
vadas na sua ausência. Marx dirigiu-se a custo à rua Greek e ouviu, aterra-
do, o bravo Le Lubez 1er «uma declaração de princípios cheia de clichés e mal
escrita, em que Mazzini transparecia por debaixo de uma crosta dos mais
insubstanciais fragmentos de sociaKsmo francês» "^. Após u m longo deba-
te, Eccarius propôs que este pouco apetitoso menu fosse revisto por um
subcomité, mas, para evitar tal m a n o b r a parecesse suspeita, p r o m e t e u
manhosamente que o seu «conteúdo» seria mantido.
Era a oportunidade que Marx necessitava. Tomando a sua expressão mais
inocente, sugeriu que o subcomité se reunisse dois dias mais tarde em sua
casa, a qual oferecia maior conforto (e uma cave mais abastecida de garra-
fas de vinho) do que a pequena sala na rua Greek. Quando os delegados
apareceram, Marx pôs-se a discursar sobre regulamentos durante tanto tem-
po que, por volta da uma da manhã, aitida não tinham chegado ao que in-
teressava. Como é que a declaração estaria pronta a tempo para a próxima
assembleia do Conselho-Geral, cinco dias mais tarde? Os seus extenuados
colegas aceitaram então, a bocejar e com gratidão, que Marx se encarregas-
se do assunto, e todos os documentos foram deixados com ele quando se
foram deitar.
«Vi logo que era impossível fazer qualquer coisa com aquilo para justificar
a alteração do conteúdo», contou a Engels. «Redigi então Um Comunicado à
Classe Operária (o que não fazia parte do plano original: uma espécie de revi-
são das tribulações da classe operária desde 1845) e, a pretexto de que todos
os factos importantes se encontravam aí incluídos e que não devíamos repe-
tir a mesma coisa três vezes seguidas, alterei o preâmbulo, excluí a déclaration
des principes e, finalmente, reduzi os 40 regulamentos a dez.»
OS BULDOGUES E A HIEN7\ •::«243

Para apaziguar os membros mais devotos e menos revolucionarios, in-


cluiu umas referências à verdade, moral, dever e justiça, evitando o belige-
rante floreado retórico que tinha animado o Manifesto Comunista. Como ex-
plicou a Engels: «Até podermos novamente usar uma linguagem ousada, vai
demorar certo tempo. Temos áefortiter in re, suaviter in modo.» O que significa,
essencialmente, falar de forma amena com um varapau na mão.
Apesar dos anos passados em reclusão, Marx não tinha perdido nenhu-
ma da sua antiga astúcia. N a reunião de 1 de Novembro, data marcada em
parte por sugestão dele, o Conselho-Geral admitiu vários novos membros,
entre os quais se encontravam Karl Pfänder, o veterano da Liga Comunista
que outrora examinara o crânio de Wilhelm Liebknecht; H e r m a n n Jung,
relojoeiro suíço; Eugène Dupont, fabricante francês de instrumentos mu-
sicais; e Friedrich Lessner, o alfaiate que, em 1848, tinha levado o manuscrito
do Manifesto Comunista à pressa. Todos eles apoiavam resolutamente Marx —
e este precisava de todo o apoio que pudesse arranjar, pois alguns dos mem-
bros ingleses não estavam nada contentes com o novo texto. Uma das su-
gestões mais amenas, conforme consta nas minutas, era que «devia ser dada
uma explicação (em nota de pé de página) quanto aos termos "nitrogénio"
e "carbono". (Marx achou isto desnecessário. «Não há necessidade de lem-
brar ao leitor que», comentou em tom enfastiado na nota, «além dos elemen-
tos da água e determinadas substâncias inorgânicas, o carbono e o nitrogénio
constituem as matérias-primas da alimentação humana.») A queixa mais
hostil proveio de um tipógrafo, William Worley, o qual, na última reunião,
tinha criticado a expressão, «o capitalista opunha-se ao trabalhador». Desta
vez, a sua consciência reformista sentia-se ofendida por Marx descrever os
capitalistas de «exploradores» e, por 11 votos contra dez, o conselho concor-
dou em omitir a palavra inflamatória. A alocução foi a seguir aceite.
A aceitação unânime desta «revisão das tribulações da classe operária» é
um tributo à capacidade de Marx saber até onde podia ir. N ã o havia vaticí-
nios nem espectros ou papões revolucionários a pairar sobre a Europa —
muito embora ele tivesse tentado arrepiar o leitor descrevendo a indústria
britânica como um vampiro que sobrevivia à custa do sangue de crianças.
Permitia, sobretudo, que os factos falassem por si, entremeando o documen-
to com estatísticas oficiais tiradas da obra que estava a escrever, O Capital,
a fim de justificar a reivindicação que «a miséria da massa operária não di-
minuiu de 1848 a 1864». Mas, como sempre, a sua tentativa para imaginar
uma alternativa era informe. «Como o trabalho escravo, ou o servil, a mão-
244^^ KARL MARX

-de-obra contratada é apenas uma forma inferior e transitória destinada a


desaparecer perante o trabalho colectivo exercido com determinação, espí-
rito alerta e coração alegre.»
A alocução terminava com as palavras, «Proletários de todo o mundo,
uni-vos!»; a frase igualmente familiar encorajando-os para se livrarem das
correntes era diplomaticamente omitida. Mesmo assim, não se pode deixar
de perguntar com que profundidade foi o texto escrutinado pelos seus
colegas antes de ser aprovado. «Os senhores da terra e os senhores do ca-
pital hão-de sempre utilizar os seus privilégios políticos para defender e
perpetuar o seu monopólio económico», anunciava nas páginas finais. «Con-
quistar o poder poKtico tornou-se, por conseguinte, o dever da classe ope-
rária.» Tais ideias eram anátema para muitos dos representantes ingleses do
Conselho-Geral que julgavam que o maior dever da classe operária era formar
sindicatos a fim de negociar melhores pagamentos e condições, deixando a
política para o Parlamento. Tal era certamente a opinião do impecavelmente
moderado secretário-geral, William Randal Cremer, o qual foi nomeado mais
tarde membro parlamentar da ala liberal e terminou a carreira como cavalei-
ro do reino. O facto de até ele ter votado a favor da alocução demonstra os
poderes de persuasão de Marx. Como os veteranos da Liga Comunista sa-
biam, entre os quais Pfänder e Lessner, a presença intimidadora de Marx —
os olhos negros, a ironia cortante, o seu formidável cérebro analítico ^ ha-
veria sempre de dominar qualquer comité. Há pouco mais de um mês que
se sentara silenciosamente em St. Martin's Hall e já controlava tudo.
Mas a mera força da sua personalidade não era suficiente para apaziguar
as animosidades e querelas que inevitavelmente caracterizavam uma orga-
nização tão híbrida e incongruente como a Internacional. Até mesmo o
pequeno contigente francês estava dividido em duas facções irreconciliáveis
de republicanos e adeptos de Proudhon. Os republicanos, representados por
Le Lubez, eram fundamentalmente radicais da classe média — partidários
da liberté, égalité etfranternité, mas menos entusiastas quanto a discussões so-
bre a indústria ou propriedade. Os conscienciosos discípulos de Proudhon,
chefiados pelo gravador Henri Louis Tolain, consideravam as repúblicas e
os governos tiranias centralizadas que não serviam os interesses dos artesãos
e pequenos lojistas, cuja causa defendiam; tudo o que queria era uma rede
de sociedades de crédito mútuo e cooperativas a pequenas escala. O u t r o
proudhonista que se tinha tornado membro do Conselho-Geral em 1866 era
o jovem estudante de medicina, Paul Lafargue, que viria a casar-se com Laura
OS BULDOGUES E A HIENA ;; 245

Marx. Os seus primeiros encontros com o futuro sogro não foram lá mui-
to prometedores. «O raio do jovem Lafargue está sempre a irritar-me com
as suas ideias protagonistas», queixou-se Karl a Laura. «E não há-de descan-
sar até eu lhe pregar uma boa descompostura.»^^
Depois de um dos muitos discursos de Lafargue que afirmavam que as
nações e as nacionalidades eram puras tolices, Marx provocou a risota en-
tre os seus colegas ingleses assinalando que «o nosso amigo Lafargue, assim
como os outros que aboliram a nacionalidade, dirigem-se a nós em francês,
uma Kngua que nove décimos da audiência não compreende»^*. E acrescen-
tou ainda maldosamente que, ao negar a existência da nacionalidade, o jo-
vem fanático «parecia implicar inconscientemente que fora absorvido pela
nação francesa».
Os bravos sindicalistas ingleses divertiam-se à custa destas disputas de
sabor francês, mas ficavam completamente espantados por Mazzini — uma
figura heróica em Londres — ser tratado pelos alemães e franceses como u m
imbecil, cuja paixão pela liberação nacional tinha eclipsado a consciência de
classe. «A nossa posição, agora, é difícil», admitiu Marx após outra tumul-
tuosa sessão na rua Greek, «pois, por um lado, temos de contrariar o imbe-
cil italianismo dos ingleses e, por outro, a errada polémica dos franceses».
Era uma tarefa em que se perdia demasiado tempo. N u m a carta a Engels
de Março de 1865, Marx descreveu o trabalho típico de uma semana: terça-
-feira à noite era consagrada ao Conselho-Geral; Tolain e Le Lubez tinham
brigado até à meia-noite e, depois, ele ainda tivera de se instalar numa tasca
da vizinhança para assinar 200 cartões de sócio. N o dia seguinte, tinha as-
sistido em St Martin's Hall à comemoração do aniversário da insurreição
polaca. Reuniões de subcomités no sábado e na segunda-feira dedicadas à
«questão francesa», ambas as quais tinham durado até à uma da manhã, E,
na terça-feira seguinte, outra tempestuosa sessão do Conselho-Geral «dei-
xara sobretudo os ingleses com a impressão de que a bancada francesa pre-
cisava realmente de um Bonaparte!» Entre essas sessões, havia «gente que
surgia de todos os lados para falar comigo» sobre um sufrágio a ter lugar na
semana seguinte. «Que desperdício de tempo!»'29
Engels pensava a mesma coisa e, após a morte de Marx, disse que «a vida
do Mouro sem a Internacional teria sido um anel de diamantes com o diamante
lascado»-'^ mas que, ao princípio, não conseguia compreender porquê o ami-
go gostava de passar horas em lúgubres salas do fundo no Soho quando podia
muito bem estar sentado no seu gabinete de Hampstead a escrever O Capital.
246 KARL MARX .

«Estive sempre meio convencido de que a ingénua fraternidade que reinava na


Associação Internacional não duraria muito tempo», comentou presunçosa-
mente em 1895, depois de outra zaragata entre os franceses. «Hás-de passar
por muitas mais destas crises e vais perder muito do teu tempo.»-^^ Até se re-
tirar para Londres em 1870, Engels nunca participou nessas sessões.
Por volta de 1865, Marx era o verdadeiro líder da Internacional, embo-
ra o seu título oficial fosse «secretário corresponde para a Alemanha». Mas
mesmo isso era um erro: a morte de Lassalle tinha-o deixado com poucos
amigos em toda a Alemanha — Wilhelm Liebknecht e o ginecologista Lud-
wig Kugelmann — , e a maior parte da sua «correspondência» era uma tro-
ca de gracejos sobre a alegada homossexualidade do sucessor de Lassalle,
Johann Baptist von Schweitzer, mais umas desdenhosas observações quanto
ao consternante atraso político da raça teutónica. «Não há nada que, de
momento, possa fazer na Prússia», escreveu ao Dr. Kugelmann. «Prefiro cem
vezes mais a agitação que passo aqui na Associação Internacional. O efeito
sobre o proletariado inglês é directo e da maior importância. Estamos ago-
ra a tratar da questão do sufrágio-geral, cujo significado é evidentemente
maior do que na Prússia. 32
Ampliar o direito de voto era o problema parlamentar dominante do
momento — embora se deva acrescentar que as várias propostas de refor-
ma apresentadas por tories e whigs, em meados da década de 1860, deviam
menos a princípios elevados do que a lutas para obter vantagens partidárias.
Havia inúmeros debates que, hoje em dia, parecem tão remotos e incom-
preensíveis como a questão Schleswig-Holstein sobre os direitos de voto dos
«proprietários de terras com escritura», «tributários a seis libras» e «arrenda-
tários vitalícios a 50 libras». Mas, no meio de todos os arcanos argumentos
quanto a caprichosos direitos de voto e voto colectivo, uma coisa era aceite
por todos os pares e membros do Parlamento: tinha de haver um tipo de
qualificação de propriedade qualquer para impedir que a populaça tivesse
uma palavra a dizer sobre os assuntos do país. «O que eu temo», escreveu
Walter Bagehot no seu livro, English Constitution, «é que ambos os nossos
partidos soHcitem o apoio do trabalhador e que ambos prometam fazer o que
ele quer...» Até mesmo a União de Reforma Nacional, um presumível gru-
po de pressão radical, desejava apenas a emancipação de proprietários e
inquilinos que pagavam impostos.
N a Primavera de 1865, após uma reunião à cunha em St. Martin's Hall,
foi fundada uma liga reformadora para fazer campanha pelo sufrágio uni-
OS BULDOGUES E A HIENA ^ ^ 247

versal masculino. (A possibilidade que as mulheres quisessem ou tivessem


a capacidade de votar era aparentemente demasiado esquisita para merecer
consideração.) Marx e os colegas da Internacional dominaram o evento:
«Toda a liderança encontra-se nas nossas mãos», informou triunfalmente
Engels. N o ano seguinte, e enquanto se ocupava simultaneamente da Inter-
nacional, da redacção de O Capital, das exigências da família e dos credores
— e, claro está, dos furúnculos no rabo, os quais era mais prolíficos do que
nunca, Marx envolveu-se com entusiasmo na cruzada. Atirou-se aos seus
adversários de navalha em punho, contemplando com viciosa satisfação
aquele derramamento de sangue. Por vezes, depois de passar várias noites
seguidas a deitar-se às quatro horas da manhã, sentia-se «infernalmente
esgotado» e desejava nunca ter acordado do seu estado de hibernação.
Valia o jogo tantas noites à luz da vela? Convenceu-se de que sim. «Se
conseguirmos reelectrificar o movimento político dos trabalhadores ingle-
ses», escreveu depois e lançar a Liga Reformadora, «a nossa Associação já
terá feito mais pela classe operária europeia do que seria possível de outra
maneira. E há boas perspectivas de sucesso.»^-^ Mas tal não aconteceu. Os lí-
deres sindicais reformistas, como Cremer e Odger, em breve fizeram con-
cessões, decidindo que ficariam bastante satisfeito corno o voto dos donos
de casa em vez de um voto por homem. E foi isso, mais ou menos, o que
obtiveram. N o Verão de 1867, o Parlamento aprovou a Lei da Reforma de
Disraeli, a qual baixou a qualificação de propriedade para os eleitores rurais
e ampliou o direito de voto a todos os proprietários urbanos — duplican-
do, assim, o número do eleitorado. Mas a vasta maioria da população ope-
rária permaneceu sem direito a voto.
A Internacional nunca foi fiel ã hipérbole de Marx. Houve alguns suces-
sos ao princípio, nomeadamente na sabotagem das tentativas dos patrões
ingleses contratarem mão-de-obra estrangeira como furadores de greves, e
a fama assim conseguida convenceu várias pequenas corporações a filiarem-
-se — entre as quais empresas com nomes exóticos como os Cordoeiros
Amalgamados de DarUngton, a Sociedade de Tanoeiros de Mãos Dadas, os
Marceneiros de West-End, os Encadernadores Diurnos, os Cabeleireiros
Ambulantes Ingleses, a Sociedade dos Tecedores de Teia Elástica e os Fa-
bricantes de Charutos. Mas os grandes sindicatos industriais mantiveram-se
afastados. William Allen, secretário-geral dos Sociedade Amalgamada de
Engenheiros, chegou a recusar encontrar-se com uma delegação da Inter-
nacional. Ainda mais exasperante foi o fiasco de não conseguirem a parti-
248 ¿ î « KARL MARX

cipação do Conselho Comercial de Londres, muito embora o seu secretário,


George Odger, ser também presidente da Internacional. Por altura do pri-
meiro congresso europeu da Associação, que teve lugar em Genebra no
Verão de 1866, o número total de firmas filiadas era de 25 173 — número de
m o d o algum desprezível, mas longe de constituir prova que o proletariado
inglês fora «reelectrificado». A Internacional tinha de alargar os seus hori-
zontes para além dos Cordoeiros de Darüngton, a fim de se expandir e fa-
zer mais jus ao seu nome.
Apesar de Marx não ter ido ao congresso em Genebra, conseguiu, no
entanto, dominar os debates. Quando os proudhonistas franceses comuni-
caram o seu bem ensaiado protesto contra os sociaMstas da classe média («to-
dos os homens com o dever de representar a classe operária deveriam ser
operários»), WiUiam Randal Cremer defendeu o currículo dos poucos tra-
balhadores não manuais que faziam parte do Conselho-Geral. «Entre esses
membros, nomearei apenas um, o cidadão Marx, que dedicou a vida ao triun-
fo da classe operária.» Tal defesa foi a seguir retomada por James Carter, dos
Cabeleireiros Ambulante:

«O cidadão Marx acabou de ser mencionado; compreendendo per-


feitamente a importância deste primeiro congresso, onde só deveriam
participar delegados da classe operária, ele recusou o convite do Conse-
lho-Geral. Mas não é este o motivo que o impediu, a ele ou a qualquer
outra pessoa, de se juntar a nós. Pelo contrário. Aqueles que se dedicam
totalmente ã causa do proletariado são demasiado raros para nós os afas-
tarmos. A classe média só triunfou quando, apesar de poderosa e rica, se
aliou a homens de ciências...»

Após este depoimento de barbearia, até mesmo o Mder da facção proud-


honista, Henri Tolain, se sentiu obrigado a felicitar o herói ausente. «Como
trabalhador, agradeço ao cidadão Marx por não ter aceite ser delegado. A sua
recusa mostra que este congresso deve contar apenas com a presença de
trabalhadores manuais.» A intenção do cidadão Marx não era de mostrar
nada disso e não existem provas de que ele não se tenha deslocado a Gene-
bra para evitar ofender a sensibilidade proletária. Uma explicação mais pro-
vável é que não esteve para aturar as enfadonhas arengas dos exclusionistas
franceses e poder, assim, continuar a trabalhar, sem ser interrompido durante
alguns dias, na redacção de O Capital.
OS BULDOGUES E A HIENA ,#G;,: 249

N o ano anterior, dissera a Engels que o manuscrito precisava apenas de uns


«retoques», os quais seriam feitos em Setembro de 1865. «De momento, ando
a trabalhar como um cavalo.» O seu amigo tinha ouvido muitas destas previ-
sões optimistas ao longo dos anos, mas, dessa vez, Marx parecia realmente estar
na recta final — apesar da velha pileca ir a trote e não a galope. Tinha passa-
do o Verão daquele ano a vomitar todos os dias («por causa do tempo quente
e consequentes crises hepáticas»), e uma repentina invasão de convidados
ainda mais o distraira. O pateta do irmão de Jenny, Edgar von Westphalen,
veio instalar-se em casa deles durante seis meses, esvaziando todas as garrafas
de vinho que havia na cave e «reflectindo sobre as necessidades do seu es-
tômago de manhã à noite»; incluídos nas demais visitas figuravam o cunha-
do de Marx que vivia na Africa do Sul, uma sobrinha de Maastricht e a fa-
mília de Freiligrath. Foi o preço que ele teve de pagar por se ter mudado para
uma casa com quartos livres, mas era um preço que ele dificilmente podia
suportar. «Há dois meses que vivo exclusivamente à custa da casa de prego»,
resmungava, arreliado. «Tenho uma data de credores a bater-me à porta e a
situação está a tornar-se cada dia mais insustentável.»-^'^
N o entanto, no centro deste turbilhão, a sua obra-prima estava a apro-
ximar-se do fim. Por volta de 1865, O Capilal tinha 1200 páginas, uma con-
fusão barroca de gatafunhos, riscos e manchas de tinta. N o primeiro dia do
Ano N o v o de 1866, sentou-se para redigir uma versão Hmpa e pohr o estilo
— «lambendo o recém-nascido depois de longas dores de parto». Mas, então,
os furúnculos voltaram ao ataque. Por ordem médica, exilou-se durante u m
mês em Margate onde pouco mais fez do que banhar-se n o mar, tomar
arsénico três vezes ao dia e sentir pena de si mesmo. «Posso cantar como o
moleiro solitário: " N ã o me importo com ninguém e ninguém se importa
comigo." N o fim deste tratamento, os furúnculos desapareceram — sendo
substituídos por reumatismo e dores de dentes. A seguir, os velhos proble-
mas de fígado voltaram e, mesmo nos dias em que ele se sentia suficiente-
mente bem para trabalhar, aconteciam novas desgraças, como quando a pa-
pelaria recusou fornecer mais resmas de papel até ser paga.
Com requintada falta de oportunidade, Paul Lafargue escolheu a altura
para pedir Laura Marx, que contava então 20 anos, em casamento. Após ter
conhecido Marx através da Internacional, o estudante crioulo de medicina
tinha transferido a sua atenção para a filha de olhos verdes e começara a fa-
zer-lhe a corte com um entusiasmo que Karl achava absolutamente indeco-
roso. Lafargue era de qualquer m o d o suspeito, não pelas suas tendências
250 I<CARLMARX

proudhonistas como também por ter exótica ascendencia franco-hispano-


- afro-indiana, o que, para o eventual sogro, sugeria uma certa leviandade ge-
nética. Assim que arranjou papel de carta, Marx escreveu uma carta ao ze-
loso pretendente digna do mais vitoriano chefe de família.

«Meu caro Lafargue,


Permita-me fazer as seguintes observações:
1. Se desejar continuar as suas relações com a minha filha, terá de
abandonar a sua presente maneira de lhe fazer a corte. Sabe muito bem
que não há n e n h u m compromisso e que tudo está ainda p o r decidir.
E que mesmo que ela fosse oficialmente a sua noiva, não deveria esque-
cer-se que se trata de um assunto que demora muito tempo. A prática de
excessiva intimidade é especialmente inadequada, pois os dois namora-
dos terão de viver no mesmo lugar por u m período necessariamente
prolongado de purgatório e testes severos... Quanto a mim, o verdadei-
ro amor exprime-se em reticências, modéstia e até mesmo timidez por
parte do namorado em relação ao seu objecto de veneração sem dar rédea
• solta à paixão em prematuras demonstrações de familiaridade. Se argu-
mentar em sua defesa o seu temperamento crioulo, será naeu dever inter-
por o meu sólido bom senso entre o seu temperamento e a minha filha. Se,
na presença dela, for incapaz de a amar em conformidade com a latitude
londrina, terá de se resignar e amá-la à distância.»^^

• • N a verdade, foi Marx, e não Lafargue, que atribuiu esse ardor — e qua-
se tudo o mais — ao «temperamento crioulo». Ainda falava do assunto em
Novembro de 1882, contando a Engels que «Lafargue possui o defeito que
se encontra habitualmente nas tribos negras — nenhuma noção da vergonha, quer
dizer, nenhuma vergonha em fazer figura de parvo».'*''
Antes de dar o seu consentimento, Marx exigiu ao jovem uma lista com-
pleta das suas perspectivas futuras. «Sabe que sacrifiquei toda a minha for-
mna à causa revolucionária», escreveu a Lafargue. «Não estou arrependido.
Muito pelo contrário. Se tivesse de viver de novo a minha vida, faria exac-
tamente o mesmo. Mas não me casaria. Desejo quanto possível poupar a
minha filha aos escolhos onde a mãe dela arruinou a vida... Tem de realizar
algo na vida antes de pensar em casar e você e Laura terão de passar por um
longo período de provações.»^^^ Mas não foi assim tão longo. O noivado de
Laura Marx com Paul Lafargue foi anunciado em Setembro de 1866, apenas
OS BULDOGUES E A HIENA a ^ - 251

urn mês depois de Marx ter enviado essa carta, e casaram-se em St. Paneras,
a 2 de Abril de 1868. Marx, em veia pouco romântica, descreveu o casamento
como «um grande alívio para toda a família, pois era como se Lafargue vi-
vesse connosco, o que aumentava perceptivelmente as despesas»'^^. D u -
rante a festa, Engels contou tantas piadas sobre a noiva que esta fundiu-se
em lágrimas.^'
Sem a vivacidade de Jennychen e Eleanor, Laura nunca gostou de ser o
centro das atenções. «Como tenho o costume de me manter na sombra, sou
muitas vezes esquecida e ignorada pelos outros.)/'^ De todas as filhas de Marx,
ela era a mais parecida com a mãe: enquanto as irmãs sonhavam com car-
reiras no palco, a única ambição de Laura era ser boa esposa. O primeiro
filho, Charles-Etienne (a quem chamavam Schnapps), nasceu a 1 de Janeiro
de 1869, quase exactamente nove meses depois do casamento, e foi segui-
do por uma filha e outro rapaz no espaço de dois anos. Todos morreram
ainda bebés. Era impossível escapar àqueles escolhos onde a vida da mãe fora
destroçada. «Em todas estas lutas pela vida, somos nós, as mulheres, que
temos de suportar a parte mais difícil, porque é a mais insignificante», escre-
veu Jenny Marx, chorando a morte dos netos. «Um homem tira forças do seu
combate com o mundo exterior, e a vista do inimigo, mesmo que seja uma
legião, revigora-o. Mas nós ficamos em casa a remendar peúgas.»'*^
10

o CÃO P E L U D O

H á muito que a casa em Modena Villas, 1 caiu em ruínas, mas Paul Lafar-
gue deixou uma descrição evocadora do caótico covil no andar de cima onde
Marx trabalhava, que deve alegrar o coração de todos os escritores desarru-
mados do mundo:

«Do lado oposto à janela e em ambos os lados da lareira, havia estan-


tes alinhadas contra as paredes cheias de livros e pilhas de jornais e ma-
nuscritos até ao tecto. Diante da lareira, a um dos lados da janela, duas
mesas com livros e papéis empilhados em cima; no meio do gabinete,
uma pequena e simples secretária (90x60 centímetros) bem iluminada e
uma poltrona de madeira; entre esta e a estante, um sofá de cabedal onde
Marx costumava deitar-se de vez em quando para descansar. Mais livros,
charutos, fósforos, caixas de tabaco, pesos de papel e fotografias da mu-
lher e das filhas de Marx, de Wilhelm Wolff e de Friedrich Engels co-
briam a cornija da lareira...
Nunca deixava ninguém arrumar os livros e papéis — ou desarrumá-
-los. A desordem em que se encontram era apenas aparente, todo estava
na realidade onde devia estar e, assim, era fácil para ele encontrar o uvro
ou o documento que precisava. Mesmo enquanto conversava, fazia por
vezes uma pausa para mostrar num determinado Hvro a citação que ti-
nha acabado de mencionar. Ele e o seu gabinete constituíam uma só en-
tidade: controlava os livros e papéis que lá se encontravam tão bem como
os seus próprios membros.»^
254*^ KARL MARX

Isto é quase idêntico à descrição do relatório sobre a casa de Marx da rua


Dean, no Soho, escrito 12 anos antes pelo espião da polícia prussiana: «Ma-
nuscritos, livros e jornais, bem como brinquedos de crianças, trapos e objec-
tos do cesto de costura da mulher, várias chávenas partidas, facas, garfos,
lâmpadas, um tinteiro, dedais, cachimbos de espuma, tabaco, cinza — numa
palavra, mdo espalhado em desordem total.» Os seus hábitos de trabalho não
tinham mudado: continuava a gastar centenas de fósforos para acender o ca-
chimbo e a abandonar charutos que se esquecia de fumar até ao fim. «O Ca-
pital», disse a Lafargue, «nem sequer há-de pagar os charutos que fumei
enquanto o escrevia.»
A impossibilidade de fumar bons Havanas inspirou-lhe uma fantasiosa
ideia para fazer economias ao reparar numa tabacaria em Holsborn que, atra-
vés do slogan «quanto mais fuma, mais poupa», vendia charutos ainda mais
baratos e malcheirosos do que os que ele fumava habitualmente. Ao mudar
para a nova marca, explicou aos amigos que, assim, economizava um xelim
e seis cêntimos por caixa, e, por conseguinte, se fumasse bastante poderia, um
dia, viver das suas economias. A teoria foi posta à prova com tantos ataques
de tosse que o médico da família teve finalmente de intervir e ordenar-lhe
que arranjasse outra maneira de enriquecer.
Marx passou o Inverno de 1866-67 com as doenças do costume, mas
mesmo elas já não podiam contrariar a sua determinação de terminar o pri-
meiro volume de O Capital. Escreveu as últimas páginas de pé, pois os fu-
rúnculos impediam-no de se sentar. (O habitual analgésico, arsénio, «embota-
-me demasiado o espírito e eu tenho de me manter bem atento».) O olho
experiente de Engels notou imediatamente certas passagens no texto «em que
os furúnculos tinham deixado marca», e Marx concordou que a febre devia ter
dado um tom lívido à prosa. «Espero que, em todo o caso, a burguesia há-de
lembrar-se dos meus furúnculos até morrer. São uma cambada de suínos!»^
N o entanto, após 20 anos de gestação, o ovo estava finalmente chocado.
«Tinha resolvido não te escrever até poder anunciar o fim do livro», disse a
Engels a 2 de Abril de 1867, «e tal é agora o caso.» Uma semana mais tarde,
e depois de ter enviado a inevitável carta a Engels a pedir-lhe dinheiro para
tirar a roupa e o relógio do prego, partiu para Hamburgo a fim de entregar
o manuscrito ao editor, Meissner. «Também não deixar a família sem um
tostão e com os credores cada vez mais atrevidos. Para terminar e antes que
me esqueça, todo o dinheiro que tinha para gastar com champanhe para
Laura desapareceu e ela, agora, quer vinho tinto da melhor qualidade. Voilà
o CAO PELUDO te<'íj;255

la situation.y? C o m o sempre, E-ngels resolveu a situation enviando-lhe sete


notas de cinco libras pelo correio.
Tendo-se despedido dos fiarúnculos e de O Capital, Marx deixou a Ingla-
terra sentindo-se «tão voraz como 500 javalis»: até m e s m o uma horrível
viagem de 52 horas com fortes rajadas e chuva não conseguiu diminuir o seu
entusiasmo. «Com toda aquela gente enjoada e a ser atirada de um lado para
o outro, poderia ter sido incómodo se um determinado núcleo não tivesse
aguentado», informou. O núcleo incluía um negociante de gado («um autên-
tico John Buli, bovino em todos os aspectos»), um explorador alemão que
há 15 anos vagueava pelo Peru e uma senhora de idade com sotaque de
Hanôver muito devota. «O que é que fascinava esta bela criatora em circuns-
tâncias tão hostis? Por que é que ela não se retirou para os seus aposentos?
O nosso aventureiro alemão regalava-nos com um excitante relato das de-
pravações sexuais dos selvagens.»"^
Marx entregou a sua preciosa carga a Meissner que, por sua vez, a enviou
para a tipografia a fim de ser publicada em fins de Maio. O exultante autor
alojou-se no mês seguinte em casa do Dr. Ludwig Kugelmann, em Hanôver,
para rever as provas. «O Kugelmann é um médico muito famoso na sua
especialidade, a ginecologia», escreveu a Engels. «E, em segundo lugar, é um
adepto fanático (e, para meu gosto, demasiado vestfaHano) das nossas ideias
e, em particular, de nós dois. Por vezes, o seu entusiasmo incomoda-me...»
E m b o r a os dois homens não se conhecessem pessoalmente, há anos que
Kugelmann lhe enviava cartas admirativas. Além do mais, Kugelmann pos-
suía uma colecção mais completa das obras de Marx e Engels do que os
próprios interessados: durante a sua estada em casa do médico, Marx depa-
rou com A Sagrada Vamília, livro que nunca mais vira desde que tinha per-
dido o seu próprio exemplar pouco depois da publicação.
Apesar da sufocante adulação de Kugelmann, Marx escreveu, «ele com-
preende e é, deveras, um homem excelente; mais importante ainda é o facto de
estar absolutamente convencido. Tem uma mulher encantadora (Gertrude) e
uma filha de oito anos (Franziska) que é um amor»^ Marx deu-lhes logo
alcunhas, sinal seguro de aprovação: a Sra. Kugelmann passou a ser a «senho-
ra condessa» por causa da sua elegância social e bons modos, enquanto o
marido foi apelidado «Wenzeb>, nome de dois antigos dirigentes boémios de
contrastada reputação. «O meu pai era muito franco em relação às suas
antipatias e simpatias», recordou Franciska Kugelmann. «E Marx, em con-
formidade com as atitudes dele, chamava-lhe o b o m ou o mau Wenzel.»
256^^ I-ÍARLMARX

Quando o médico começava a discutir política na presença de Franziska ou


da senhora condessa, Marx silenciava-o imediatamente: «Não são conversas
para senhoras jovens, falaremos disso mais tarde.» E, em vez disso, o prazen-
teiro erudito entretinha as senhoras com graças, anedotas literárias e canções
folclóricas. A única vez que se irritou foi quando uma visita lhe perguntou
quem engraxaria os sapatos num regime comunista. «Você», retorquiu Marx,
zangado. A Sra. Kugelmann interveio brincando com ele e comentando que
não conseguia imaginá-lo a viver numa sociedade verdadeiramente igualitária
pois os seus gostos e hábitos eram aristocráticos. «Eu também não consigo
imaginar tal coisa», concordou ele. «Esses tempos hão-de vir, mas nós já cá
não havemos de estar.» Certa vez, sentiu-se imensamente lisonjeado por
Kugelmann o achar parecido com um busto de Zeus que se encontrava na
sala — a poderosa cabeça, a cabeleira abundante, a fronte olímpica, a expres-
são bondosa, mas autoritária.
Não foram só os Kugeknann que acolheram triunfalmente Marx enquanto
ele permaneceu em Hanôver. «A reputação que nós ambos temos na Alema-
nha», escreveu a Engels, «em particular entre os funcionários "educados", é de
uma ordem muito diferente do que imaginávamos. Assim, o director do de-
partamento de estatística aqui, Merkel, veio visitar-me no outro dia e disse-me
que tinha andado a estudar assuntos relacionados com dinheiro há anos sem
nenhum resultado, mas que eu o esclarecera imediatamente de uma vez por
todas.» Marx foi convidado para jantar pelo director da companhia de cami-
nhos-de-ferro local, que lhe agradeceu profusamente «dar-lhe tal honra». Ainda
mais lisonjeiro foi a chegada de um emissário de Bismark que lhe anunciou que
o Chanceler desejava «utilizá-lo, a si e ao seu enorme talento, para o bem do
povo alemão». E Rudolf von Benningsen, chefe da ala conservadora do Par-
tido Nacional Liberal, compareceu em pessoa para lhe render homenagem.
N ã o admira que Marx se sentisse tão jovial. A sua saúde era excelente,
sem furúnculos à vista, e, apesar dos jantares bem regados todas as noites,
não havia traços de complicações hepáticas. Os anos sem dormir devido a
doenças, esqualidez e obscuridade encontravam-se, agora, nos caixotes do
lixo da história. «Tive sempre a sensação de que esse raio de Hvro, com que
andaste às voltas durante tanto tempo, era a causa de todos os teus infortú-
nios», escreveu-lhe Engels a 27 de Abril. «E que nunca conseguirias safar-
-te até te veres livre dele.» •
U m atraso na tipografia fez com que ele só recebesse as provas a 5 de
Maio, dia do seu quadragésimo nono aniversário; mas até mesmo essa incon-
o CÃO PELUDO «^:j'257

veniência, a qual noutra altura teria provocado grande irritação durante um


dia ou dois, não conseguiu suprimir a sua boa disposição. «Espero e confian-
temente creio que, dentro de um ano, hei-de resolver a minha situação finan-
ceira e tornar-me, novamente, independente», predisse. Novamente? ^^L sua
vida adulta, nunca tinha havido um momento em que Marx não precisasse
de ajuda. Como ele mesmo admitiu numa carta a Engels: «Sem ti, nunca teria
sido capaz de terminar o meu trabalho e posso assegurar-te que o facto de
deixares a tua energia ser desperdiçada e enferrujar num trabalho comercial,
sobretudo por minha causa, além de partilhares as minhas pequenas misé-
rias, sempre pesou como um pesadelo na minha consciência.» Umas frases
mais adiante, contudo, a angústia e o desânimo recomeçaram mais uma vez
a vir ao de cima. O editor aguardava o envio do segundo e do terceiro vo-
lume antes do final do ano; os credores em Londres aprontavam-se para lhe
bater à porta assim que ele chegasse; «e, depois, os tormentos da vida fami-
liar, os conflitos domésticos e as importunações constantes em vez de me
instalar para trabalhar calmo e sem cuidados».
As aflições de um londrino da classe média não são as mesmas dos in-
digentes. O seu primeiro pedido a Engels, depois de ter regressado a Lon-
dres, foi várias caixas de clarete e vinho do Reno, porque «as minhas filhas
têm de convidar outras raparigas para um baile no dia 2 de Julho. N ã o pu-
deram convidar ninguém durante todo o ano nem aceitar convites e, por con-
seguinte, estão quase a baixar de casta»''. Enquanto outrora se tinha batido
para arranjar uns cêntimos para comprar pão e jornais, agora as suas neces-
sidades domésticas eram as de um suburbano ansioso para manter aparên-
cias. Ao saber que o poeta FreiHgrath, depois de ter perdido o emprego na
filial londrina de um banco suíço, vivia actualmente em grande estilo à cus-
ta da cotização de admiradores britânicos, americanos e alemães, sentiu-se
«muito vexado». O melhor tratamento era enviar as filhas para passar férias
em Bordéus (financiado por Engels, claro está), a fim de poder rever, sem
interrupções, as provas de O Capital. Comentários entre aqueles que tinham
lido partes da obra levaram-no a esperar que, no dia seguinte à publicação,
o seu nome e fama ressoariam por toda a Europa. Johann Georg Eccarius dis-
sera a amigos que o «próprio Profeta está mesmo agora a publicar a quinta-
-essência de toda a sabedoria».
Marx terminou a revisão e correcção das provas do primeiro volume na
madrugada de 16 de Agosto e enviou um sincero agradecimento ao seu
patrocinador. «Este volume, portanto, está terminado. Devo-o só a ti! Sem
258 ^ W KARL MARX

OS teus sacrifícios por mim nunca conseguiria ter lidado com o imenso tra-
balho exigido pelos três volumes. U m abraço cheio de reconhecimento...
Salut, meu estimado e querido amigo.»**

Exactamente um século depois da sua publicação, o primeiro-ministro


britânico, Harold Wilson, gabou-se de nunca ter lido O Capital. «Só li as duas
primeiras páginas... onde há um nota de roda pé quase do comprimento de
uma página. Achei que era demasiado para apenas duas frases do texto.»^
Wilson era formado em ciência política, filosofia e economia, mas pensou
que confessar a sua ignorância agradaria à classe média educada, a qual, em
particular na Grã-Bretanha e nos EUA, tem o perverso orgulho de não 1er
Marx. Daí os exasperantes e viciosos argumentos das pessoas que n e m
chegaram à segunda página. «O Capitale absurdo.» E como é que sabem isso?
«Porque não vale a pena ser lido.»
Uma objecção mais requintada é feita pelo filósofo Karl Popper: não se
pode dizer se Marx escreveu coisas absurdas, ou não, porque as suas «leis
férreas» quanto ao desenvolvimento capitalista não são mais do que incon-
dicionais profecias históricas, tão vagas e incompreensíveis como as de Nos-
tradamus. Ao contrário das hipóteses científicas adequadas, não podem ser
demonstradas nem — o teste popperiano crucial — falsificadas. «Em ciên-
cia, as previsões normais são condicionais», declara Popper. «Demonstram
que certas mudanças (de temperatura da água numa chaleira, por exemplo)
serão acompanhadas por outras mudanças (fervura da água, por exemplo).»
N a realidade, seria fácil submeter as afirmações sobre economia de Marx a
uma experiência semelhante estudando o que aconteceu, na prática, duran-
te o século passado. A medida que o capitalismo vai amadurecendo, previu,
assistiremos a recessões periódicas, a uma dependência crescente da tecno-
logia e ao crescimento de enormes corporações quase monopolistas que
estenderão os seus tentáculos por todo o mundo à procura de mercados para
explorar. Se nada disto tivesse acontecido, poderíamos ser levados a concor-
dar que o velhote estava a dizer balelas. N o entanto, os ciclos de expansão
da economia ocidental no século XIX, como o domínio da Microsoft, de BiUy
Gates, por exemplo, sugerem que ele tinha razão.
Ah, pois, dizem os críticos, mas, então, o que dizer do facto de Marx ter
acreditado na «miséria progressiva» do proletariado? N ã o previu ele que a
prosperidade do capitalismo seria alcançada através de uma redução abso-
luta do salário e dos padrões de vida do trabalhador? Vejam a classe opera-
o CÃO PELUDO 259

ria de hoje com carros e antenas parabólicas: não estão lá muito miseráveis,
pois não? O economista Paul Samuelson declarou que toda a obra de Marx
pode, com segurança, ser ignorada, pois o empobrecimento do trabalhador
«simplesmente nunca ocorreu» — e na medida em que os manuais de
Samuelson são há gerações a dieta dos estudantes de economia, tanto na Grã-
-Bretanha como nos EUA, isto tornou-se aceite. Mas trata-se de um mito
baseado numa interpretação incorrecta da «lei geral da acumulação capita-
lista» de Marx, inscrita no capítulo 25 do primeiro volume. «A indigência»
constitui uma condição da produção capitalista e do desenvolvimento capi-
talista de riqueza. Faz parte das despesas incidentais da produção capitalis-
ta: mas o capital sabe habitualmente como se desfazer delas e as passar para
a classe operária e a pequena burguesia.»^" Neste contexto, porém, ele não
se refere à indigência de todo o proletariado, mas à dos «sedimentos mais
baixos» da sociedade — os desempregados, os miseráveis, os doentes, os
velhos, as viúvas e os órfãos. Pode alguém negar que tal subclasse ainda
existe? Outro pária judeu disse uma vez que «os pobres estarão sempre entre
nós», mas ainda nenhum economista sugeriu que os ensinamentos de Jesus
estavam desacreditados pela sua previsão de miséria perpétua.
O que Marx previu foi que, sob o capitalismo, haveria u m declínio rela-
tivo — e não absoluto — dos salários. Isto é obviamente verdadeiro: poucas
firmas, se houver alguma, com um lucro de 20 por cento, aumentam ime-
diatamente em 20 por cento o salário dos seus empregados. E, assim, por
muitos microndas que o trabalhador possa comprar, a mão-de-obra distan-
cia-se cada vez mais do capital. «Segue-se, por conseguinte, que à medida que
o capital se acumula, a situação do trabalhador, quero seu salário seja elevado ou
baixo, torna-se pior.»" (Os itálicos são do autor.)
Como no caso de Cristo, a definição de pobreza de Marx era tão espiri-
tual quanto económica. Qual é o proveito de um h o m e m ganhar o m u n d o
e perder a alma? Ou, como Marx escreveu em O Capital, os meios através dos
quais o capitalismo aumenta a produtividade,

«reduzem o trabalhador a um fragmento de homem, degradam-no ao


nível de um apêndice de máquina e destroem o conteúdo do seu traba-
lho transformando-o num tormento; alienam-no das potencialidades in-
telectuais do processo laboral na mesma proporção em que a ciência está
incorporada nele como poder independente; deformam as condições em
que trabalha e sujeitam-no a um despotismo odioso; trans for mam-lhe o
260 * i ^ KARL MARX

tempo de vida em tempo de trabalho, arrastando a mulher e o filho para


baixo das engrenagens do capital... A acumulação de rique2a a um deter-
minado pólo corresponde simultaneamente uma acumulação de miséria,
tormento laboral, escravidão, ignorância, brutalÍ2ação e degradação m o -
ral no pólo oposto.»

A última frase, isolada, podia ser dada como exemplo de outra previsão
do empobrecimento absoluto dos trabalhadores, mas apenas u m idiota —
ou um conferencista de temas económicos — manteria esta interpretação
depois de 1er a condenação que a precede.
«Deve-se ter em mente», admite Leszek Kolakowski, um dos mais in-
fluentes críticos modernos do marxismo, «que o empobrecimento material
não constituía uma premissa natural da análise de Marx sobre a desumaniza-
ção do salário laboral ou da sua predição quanto à inevitável ruína do capi-
talismo»^^. Correcto. Mas, a seguir, Kolakowski ignora o seu próprio conselho
e coloca outro naco de queijo na velha ratoeira de Karl Popper. «Como in-
terpretação dos fenómenos económicos», adverte, «a teoria de valores de
Marx não satisfaz os requisitos normais da hipótese científica, em particu-
lar os da falsificação.»^^ Bem, claro que não: nenhum papel tornasol, micros-
cópio electrónico ou programa informático pode detectar a presença de algo
tão intangível como a «alienação» e a «degradação moral».
O CapitaloÃo é realmente uma hipótese cienti'fica, nem sequer um trata-
do económico, embora os fanáticos de ambos os campos tenham insistido
em considerá-lo assim. O próprio autor foi bastante claro quanto às suas
intenções. «No que respeita ao meu trabalho, vou dizer-te a pura das verda-
des», escreveu a Engels a 31 de Julho de 1865. «Ainda tenho de escrever mais
três capítulos para terminar a parte teórica... Mas não consigo enviar nada
até ter tudo à minha frente. Independentemente dos defeitos que possam ter,
a vantagem dos meus escritos é que constituem um todo artístico...» Ou-
tra carta escrita uma semana mais tarde refere-se ao livro como uma «obra
de arte», e cita «considerações artísticas» como motivo do atraso em apre-
sentar o manuscrito.
N o caso de Marx desejar produzir um texto de economia clássica em vez
de uma obra arti'stica, poderia tê-lo feito. E fê-lo realmente: duas palestras
em Junho de 1865, mais tarde publicadas sob o título Valor, Preço eVucro dão
um resumo conciso e lúcido das suas conclusões:
o CÃO PELUDO « 1 ^ 2 6 1

Como os valores permutáveis dos artigos são apenas funções sociais


dessas coisas e nada têm a ver com as suas qualidades naturais, temos pri-
meiro de perguntar: qual é o elo social comum de todos os artigos? É o
trabalho. Uma certa quantidade de trabalho tem de ser exercida para pro-
duzir um artigo. E não me refiro simplesmente ao trabalho, mas ao tra-
balho social. Uma pessoa que produz um artigo para uso pessoal imediato
cria wvaproduto, não um artigo... U m artigo tem um 2^ií/orporque é a cris-
tali^ção do trabalho social... O preço, tomado por si só, não passa da expressão
monetária do valor... O que o trabalhador vende não é directamente o seu
trabalho mas o ?,e\ípoder laboral, o qual põe temporariamente à disposição
do capitalista... Suponhamos agora que um trabalhador precisa de uma
média de seis horas diárias para produzir. Suponhamos ainda que são
necessárias seis horas em média para produzir uma quantidade de ouro
equivalente a três xelins. O preço, ou a expressão monetária do valor diá-
rio do poder laboral desse homem, seria então de três xelins... Mas, ao
pagar-lhe o valor diário, ou semanal, do pode laboral, o capitalista adqui-
riu o direito de utiHzar o poder laboral durante todo o dia ou toda a semana.
E, por conseguinte, fá-lo-á trabalhar diariamente por exemplo M horas...
Ao dar três xelins, o capitalista realiza um valor de seis xelins pois, pa-
gando um valor no qual seis horas de trabalho estão cristalizadas, rece-
berá, em compensação, um valor no qual 12 horas de trabalho estão cris-
talizadas. A o repetir diariamente este m e s m o processo, o capitalista
pagara diariamente três xelins e meterá diariamente seis xelins ao bolso,
metade dos quais servirá para pagar novamente salários e a outra meta-
de para formar um valor excedentário pelo qual o capitalista não pagou a
soma equivalente. É sobre esta espécie de permuta entre o capital e o tra-
balho que se funda a produção capitalista, ou o sistema de salários, o que
resulta constantemente na reprodução do trabalhador como trabalhador
e do capitalista como capitalista.^'*

Independentemente dos seus méritos como análise económica, pode ser


entendido por uma criança inteligente: não há metáforas elaboradas nem
temas metafísicos, digressões confusas, tiradas filosóficas ou floreados lite-
rários. Porquê então o estilo de O Capital, que trata exactamente do mesmo
assunto, é tão totalmente diferente? Será que Marx perdeu de repente o dom
de falar com simplicidade? É evidente que não: na altura em que deu essas
conferências, estava também a terminar o primeiro volume de O Capital.
262 KARL MARX

Encontramos uma pista numa das raras analogias que se permitiu fazer em
Valor, Preço e l^ucro para explicar que o lucro resulta em vender artigos ao
preço «real» e não — como se poderia assumir — em acrescentar um valor
adicional. «Isto parece ser um paradoxo e contrário à observação diária», es-
creveu. «Também é um paradoxo a Terra mover-se à volta do Sol e a água
ser formada por dois gases altamente inflamáveis. A verdade científica é sem-
pre paradoxal quando vista através da experiência diária, a qual capta ape-
nas a natureza ilusória das coisas.»
Isto parece um convite para avaliar a sua obra-prima através de padrões
científicos. Mas ouçamo-lo mais de perto: ele está a Mdar com «a natureza ilu-
sória das coisas», assunto que não pode ser limitado a um género como a
economia política, antropologia ou história. Como Marx indica: «A primeira
vista, um artigo parece ser uma coisa muito trivial e facilmente compreendida.
Mas a sua anáuse demonstra que, na verdade, é uma coisa muito bizarra cheia
de subtilezas metafísicas e pontos teológicos.» Admirava o que era objectivo,
a metodologia sem sentimentalismos de Ricardo e Adam Smith: de facto, os
aspectos de O Capitalc^c são mais frequentemente ridicularizados hoje em dia
-— como a teoria laboral do valor — derivavam destes economistas clássicos
e eram a ortodoxia prevalecente da época. N o entanto, sentia que, apesar de
todas as suas realizações, «a ciência burguesa da economia tinha chegado aos
limites para além dos quais não conseguia passar»^^ As medidas empíricas
nunca poderiam quantificar o custo humano da exploração e da alienação.
Marx descobrira no Museu Britânico um banco de dados sobre a práti-
ca capitalista — registos governamentais, gráficos estatísticos, relatórios de
inspectores de fábricas e de funcionários da saúde pública — que ele utili-
zou com o mesmo efeito devastador que Engels em As Condições da Classe
Operária em Inglaterra. Mas a sua outra fonte principal, menos notada, foi a
ficção literária. Ao debater o efeito das máquinas sobre o poder laboral, uti-
Uza números do consenso de 1861, estatística essa para demonstrar que há
mais criados domésticos do que trabalhadores empregados nas indústrias
mecanizadas, como as tecelagens e as siderurgias. («Que resultado notável
este da exploração capitalista das máquinas!») Como podem os capitalistas
negar as suas responsabilidades pelas vidas humanas perdidas ao longo do
progresso tecnológico? Pondo de lado estas estatísticas, Marx cita o discurso
de Bnl Sykes, personagem do livro de Charles Dickens, Oliver Tmst. «Senhores
jurados, não há dúvida de que este caixeiro-viajante foi degolado, explicou
Sykes. Mas a culpa não é minha. A culpada é a faca. Devemos abolir o uso
o CÃO PELUDO ^#263

das facas por causa desta temporaria inconveniencia?... Se abolirem a faca


— voltam a atirar-nos para as profundezas do barbarismo.»
Poderemos tirar mais valor de utilização e até mais lucro se lermos O Ca-
pital coxxxo uma obra de ficção: um melodrama vitoriano ou um denso ro-
mance gótico cujos heróis são escravizados e consumidos pelo monstro que
criaram («o capital que vem ao m u n d o conspurcado da cabeça aos pés e
sangrando por todos os poros»); ou, talvez, uma utopia satírica, como a terra
dos Houyhnhnms, de Jonathan Swift, onde tudo é agradável e só o h o m e m
é vil. N a visão marxista da sociedade capitalista, como no pseudoparaíso
equídeo de Swift, o falso Éden é criado reduzindo vulgares humanos ao es-
tatuto àç.yahoos exilados e impotentes. Tudo o que é sólido derrete no ar,
escreveu Marx no Manifesto Comunista; mas já em O Capital, tudo o que é
realmente humano se torna congelado, ou cristalizado, numa força material
impessoal, enquanto os objectos mortos se animam de forma ameaçadora
e vigorosa. O dinheiro, outrora nada mais do que expressão de v a l o r — uma
espécie de língua franca na qual o artigo de consumo se torna o próprio valor.
N o mais simples dos mundos, o valor de troca mal existe; as pessoas
produzem para satisfazer as suas necessidades — uma perna de carneiro, pão,
uma vela — e negoceiam apenas quando esses artigos excedem os seus
requisitos. Mas vem então o h o m e m do talho, o padeiro e o fabricante de
velas, todos os três corruptos. Para comprar os seus atraentes produtos,
temos de nos tornar salariados; em vez de vivermos do nosso trabalho, tra-
balhamos para viver. Somos arrastados gradual e inevitavelmente para a
conjunção social dos artigos de consumo e salários, preços e lucros, uma terra
de fantasia onde nada é o que parece. Leiam a primeira frase do primeiro
capítulo de O Capital: «A riqueza das sociedades, nas quais o m o d o capita-
lista de produção prevalece, surge como uma "imensa acumulação de arti-
gos de consumo"; os artigos individuais surgem como a sua forma mais ele-
mentar.» O que deve impressionar imediatamente o leitor mais alerta é a
escolha do verbo, repetido para dar ênfase — «surgir como». E m b o r a me-
nos dramática do que a frase de abertura do Manifesto Comunista, tem uma fi-
nalidade semelhante: entramos num mundo de espectros e aparições. Como
ele regularmente nos lembra ao longo das mil páginas seguintes.

- «O valor de troca parece ser'algo acidental e puramente relativo... Va-


mos olhar para o resíduo dos produtos de trabalho. Nada resta em todos
os casos senão a mesma o\i)Q.ctN'\ÒAdL(í fantasma... Isto levou à ascensão
264 y. I^RLMARX

de um sistema mercantil restaurado que vê no valor apenas uma forma


social, ou, antes, o fantasma insubstancial àc?,^2L forma... A diferença entre
trabalho complexo e simples, "trabalho especializado" e "não especiali-
zado", é, em parte,/i/^nz ilusão... E m vez de revelar a relação-capital, eles
[os economistas políticos] mostram-nos a semelhança falsa de uma rela-
ção.. .» (Os itálicos são do autor)

Expor a diferença entre aparência heróica e a realidade inglória — des-


pindo o disfarce de galante cavaleiro a fim de revelar um homenzinho re-
chonchudo em cuecas — é, evidentemente, um dos métodos clássicos da
comédia.
As coisas absurdas encontradas em O Capital, e que foram prontamente
usadas por aqueles que desejam denunciar Marx c o m o louco, reflectem a
loucura do assunto e não a do autor. Desde o princípio, quando ele mergu-
lha numa furiosa meditação cada vez mais surrealista sobre os valores rela-
tivos de um casaco e 20 metros de linho, que isso é quase óbvio.

«É verdade que a fabricação do casaco é um trabalho concreto, dife-


rente da tecelagem que faz o linho. Mas equacionar a fabricação do ca-
saco com a tecelagem reduz o primeiro ao que é realmente igual nestes
dois tipos de trabalho, às características que têm em comum pelo facto
de ambos constituírem trabalho humano... N o entanto, o casaco em si,
o aspecto físico do casaco-artigo, é puro valor de utilização. U m tal ca-
saco não exprime mais valor do que a primeira peça de unho com que
deparamos. Assim como alguns homens contam mais quando metidos
numa farda com galões dourados, isto prova que, na sua relação de va-
lor com o linho, o casaco significa mais do que fora dessa relação.»^''

Esta absurda comparação devia prevenir-nos de que, na realidade, esta-


mos a 1er uma história sem pés nem cabeça, o que se torna cada vez mais evi-
dente à medida que Marx prossegue:

<A.pesar de abotoado, o Unho reconhece nele [no casaco] uma alma


gémea, a alma do valor. O casaco, contudo, não pode representar valor
para o linho a não ser que, para este, o valor assumir simultaneamente a
forma de um casaco. Por exemplo, um indivíduo. A, não pode ser "Sua
Majestade" para outro indivíduo, B, a não ser que a majestade aos olhos
o CÃO PELUDO ^^265

de B assuma a forma física de A, e, além do mais, modifique as feições,


o cabelo e muitas outras coisas com cada "novo pai do seu povo"... Como
valor de utiMzação, o Knho é algo palpavelmente diferente do casaco; como
valor, é idêntico ao casaco e, por conseguinte, parece o casaco.»

A seguir, e ña altura em que a cabeça do leitor começa a rodopiar incon-


trolavelmente, Marx chega à seguinte conclusão:

«O Hnho adquire, assim, uma forma de valor diferente da sua forma


natural. A sua existência como valor é manifestada através da sua igual-
dade com o casaco, assim como a natureza de carneiro do cristão é re-
velada pela sua semelhança com o anho de Deus.»

A não ser que tivesse mandado imprimir a página às avessas e a tinta


verde, Marx não poderia dar-nos melhor a entender que nos embarcou numa
picaresca odisseia através do reino do absurdo. Vem-nos à cabeça as últimas
linhas de Tristam Shandy, livro que ele adorava:

« — Deus meu! — exclamou a minha mãe. — Que história é essa?


— É a de u m galo e um boi — disse Yorick. — E uma das melhores
do género que ouvi.»"

Quando da sua primeira paixão de juventude por Laurence Sterne, Marx


tentou escrever uma história cómica sem pés nem cabeça e, quase 30 anos
depois, encontrou finalmente um tema para a escrever. Segundo o biógra-
fo de Sterne, Thomas Yoseloff, este escritor «quebrou com as tradições da
literatura contemporânea e o seu romance tanto podia ser lido c o m o u m
ensaio de filosofia, como uma autobiografia ou como uma sátira local em
estilo de panfleto. Escreveu como falava e pensava; o livro não era estru-
turado e estava cheio de pormenores curiosos e difíceis de entender.. .»^^ O
mesmo poderia ser dito da epopeia de Marx. A exemplo de Tristam Shandy,
O Capital está repleto de sistemas e silogismos, paradoxos, metafísica, teo-
rias, hipóteses, explicações complicadas e ironia absurda. Uma das passagens
tem c o m o protagonista u m capitalista em embrião, o Sr. Moneybags. «A
fim de poder extrair valor do consumo de um determinado artigo, o nosso
amigo. Moneybags, tem de ter a sorte de encontrar, dentro da esfera de cir-
culação, no mercado, um artigo cujo valor de utilização possua a propriedade
266 Vi)«-. KARL MARX

particular de ser fonte de valor... e, consequentemente, criar valor.» Por


sorte, o velho Moneybags encontra exactamente esse artigo na força laboral,
a qual tem a capacidade única de multiplicar o seu próprio valor.
Para fazer justiça à demente lógica do capitalismo, o texto de Marx está
saturado, por vezes inundado, de ironia — ironia essa que há mais de uín
século tem escapado a quase todOs os leitores. Uma das raras excepções é o
crítico Hterário americano, Edmund Wilson, que saudou Marx como «o maior
escritor satírico desde Swift». Trata-se de um tributo de tal modo extravagan-
te que podem ser requeridas provas de apoio e, assim, vamos citar uma pas-
sagem de Teorias de Valor Excedente, o quarto volume de O Capital.

DIVAGAÇÃO SOBRE O TRABALHO PRODUTIVO

U m filósofo produz ideias; um poeta, poemas; um clérigo, sermões;


um professor, manuais, e assim por diante. U m criminoso produz crimes.
Se nos debruçarmos sobre a relação entre este último ramo de produção
e a sociedade como um todo, livrar-nos-emos de muitos preconceitos.
O criminoso não só produz crimes como também leis criminais e, com
estas, igualmente o professor que ensina a legislação criminal e o inevi-
tável manual em que o mesmo professor lança no mercado as suas lições
como «artigos de consumo»... Além disso, o criminoso produz toda
polícia e justiça criminal, agentes, juízes, carrascos, jurados, etc; e todas
estas diferentes linhas de negócio, as quais formam igual n ú m e r o de
categorias da divisão social do trabalho, desenvolvem capacidades dife-
rentes da mente humana, criam novas necessidades e novas maneiras de
as satisfazer. Só a tortura deu origem às mais engenhosas invenções
mecânicas e empregou muitos honestos artesãos na produção desses
instrumentos. O criminoso produz uma impressão, em parte moral e em
parte trágica, consoante o caso, e assim, estimulando os sentimentos
morais e estéticos do público, presta um «serviço». N ã o somente produz
manuais sobre a lei criminal, códigos penais e legisladores, como também
arte, literatura, romances e até m e s m o tragédias — c o m o o provam
Schuld, de Müllner; Rauher, de Schiller; e também Édipo e acardo III... Os
efeitos do crime sobre o desenvolvimento do poder produtivo podem ser
ilustrados em pormenor. Teriam as fechaduras alcançado o seu actual
grau de excelência sem ladrões? A fabricação das notas de banco teria
atingido a sua presente perfeição sem falsificadores?... E, pondo o sector
o CAO PELUDO ^ . 267

do crime privado de parte, teria o mercado mundial jamais sido criado


sem a existencia de crimes a nivel nacional? Teriam até mesmo nações
sido criadas? E a Arvore do Pecado não tem sido simultaneamente a Ár-
vore do Conhecimento desde os tempos de Adão?''''

Isto pode ser comparado à modesta proposta feita por Swift de conven-
cer os pobres a comer os bebés a mais a fim de solucionar o problema da
miséria na Irlanda. (Talvez valha a pena notar que, em 1870, Marx comprou
uma edição das obras completas de Jonathan Swift em 14 volumes, pelo pre-
ço de quatro xelins e seis cêntimos.) Como Edmund Wilson justamente ob-
serva, o propósito das abstracções teóricas de Marx —- a dança dos artigos
de consumo, os fantásticos ziguezagues lógicos — sobretudo irónicos, jun-
tamente com sinistros retratos bem documentados da miséria e sujidade que,
na prática, as leis capitalistas criam. «O significado das fórmulas aparente-
mente impessoais que Marx produz com ar tão científico é, lembra-nos ele
de tempos a tempos assim como não quer a coisa, dinheiro retirado do bolso
do trabalhador, suor espremido do seu corpo e satisfação natural negada à
sua alma», prossegue Wilson. «Ao competir com as autoridades em econo-
mia, Marx escreveu algo como uma paródia.. .»^^
N o final, contudo, até mesmo E d m u n d Wilson perde o fio da intriga:
umas páginas depois de ter elevado Marx ao panteão dos génios satíricos, ao
lado de^wift, protesta contra «a crueza da motivação psicológica subjacente
à visão mundial de Marx», e queixa-se de que a teoria apresentada em O
Capital é «simplesmente, como a dialéctica, uma criação do metafísico que
nunca abdicou perante o economista existente em Marx». Essa queixa nem
sequer tem o mérito de ser original: alguns críticos alemães da primeira edição
acusaram Marx de «sofismo hegeliano», acusação que ele alegremente acei-
tou e no posfácio da segunda edição alemã, publicada em 1873, lembrou-lhes
que tinha criticado o «lado mistificador da dialéctica hegeUana», quando esta
ainda estava na moda, há quase 30 anos. «Mas, quando ainda trabalhava no
primeiro volume de O Capital, os arrogantes, mal-humorados e medíocres
epígonos que, agora, se pavoneiam nos círculos intelectuais alemães trata-
vam Hegel... de "cão m o r t o " . Declarei-me então abertamente discípulo
desse notável pensador e, no capítulo sobre a teoria, namorisquei aqui e ali
com os modos de expressão que lhe eram particulares.»
Estes namoros dialécticos que ofenderam E d m u n d Wilson têm a ver
com a ironia que ele tanto apreciou: ambas as técnicas empregam a realida-
2 6 8 1 ^ KARL MARX

de aparente para expor a verdade oculta. «Os fingidos e incongruentes es-


pecialistas de economia alemã resmungaram quanto ao estilo do meu livro»,
escreveu Marx em 1873. «Ninguém pode aperceber-se dos defeitos literários
de O Capital meVaot do que eu.» Mas os demais críticos, até mesmo aqueles
hostis às suas teorias, elogiaram as qualidades estilísticas. A Staurãaj B^view,
revista londrina, comentou que «a visão do autor pode ser tão perniciosa
como achamos que é, mas não há dúvidas quanto à plausibilidade da sua
lógica, o vigor da sua retórica e a sedutora mestria cotn que trata dos pro-
blemas mais enfadonho da economia poKtica»^^ A Contemporary Repkw, em-
bora patrióticamente desinteressada da economia alemã («não cremos que
Karl Marx tenha muito para nos ensinar»)^^ cumprimentou o autor por não
ter omitido «o interesse humano — "o esfomeado e sedento interesse" sub-
jacente à ciência». Marx ficou particularmente sensibilizado por um artigo
no Sampetersburgo Journal c[ue louvava o <ánvulgar vigor» da sua prosa. «Quanto
a isso», acrescentava, «o autor não se parece de modo algum... com a maior
parte dos eruditos alemães cuja Hnguagem é tão seca e obscura... que racha
a cabeça do comum dos mortais.»
Apesar de ser lindamente escrito, o primeiro volume de O Capita/ ainda
era bastante perigoso para a cabeça do comum dos mortais, cuja tarefa se
tornou ainda mais difícil pela decisão de Marx em colocar os capítulos mais
impenetráveis logo no princípio do livro. «O começo é sempre difícil em
todos os livros científicos», explicou no prefácio. <A. compreensão do pri-
meiro capítulo, em particular a secção que contém a análise dos artigos de
consumo, apresentará por conseguinte as maiores dificuldades. Popularizei
as passagens que dizem respeito à substância e à magnitude do valor tanto
quanto foi possível.» Já a forma de valor, assegurou os leitores, era a simpli-
cidade personificada. «No entanto, a mente humana esforçou-se durante
mais de dois mil anos para a compreender... Portanto, com excepção da
secção sobre a forma de valor, este volume não pode ser criticado por cau-
sa das dificuldades. Suponho, evidentemente, que o leitor quer aprender algo
novo e pensar por si próprio.»
Suposição bastante ambiciosa, como veio a provar-se. Enquanto o livro
estava a ser impresso, Engels aconselhou-o a esclarecer os pontos abstractos
subdividindo-os em secções mais curtas e dando-lhes títulos. «O Hvro teria
mais aspecto de manual, mas muitos leitores compreendê-lo-iam melhor.»^^
Marx fez algumas modificações nas provas, mas não passavam de simples
anotações nas margens. «Como é que pudeste deixar a estrutura exterior do
o CÃO PELUDO o»G^269

livro na forma presente!», perguntou Engels, um pouso exasperado, após ter


examinado as provas finais. «O quarto capítulo tem quase 200 páginas e
apenas quatro subsecções... Além do mais, o fio do pensamento é constan-
temente interrompido por exemplos e, como o ponto a ser exemplificado
nunca é resumido depois de dares o exemplo, o leitor está sempre a passar do
exemplo de um determinado ponto para a exposição de outro ponto. Tor-
na-se terrivelmente cansativo e confuso.» Mas acrescentava de forma pou-
co convincente, «de qualquer modo, isso não tem importância».^'*
Até mesmo alguns dos mais apaixonados discípulos de Marx ficaram
vidrados ao tentar perceber estes obscuros primeiros capítulos. «Por favor
previna a sua mulher», escreveu a Ludwig Kugelmann, «que os capítulos
sobre " O Dia de Trabalho", "Cooperação, Divisão do Trabalho e Maquina-
ria" e "Acumulação Primitiva" são os que se lêem com maior faciMdade. Terá
de lhe expHcar a terminologia mais incompreensível. Se houver outras dú-
vidas, terei o maior prazer em ajudar.»^^ Quanto ao famoso socialista inglês,
William Morris, «sofreu horrores» ao 1er O Capital'unos mais tarde: «Li o que
podia e espero ter absorvido alguma informação.» Pura incompreensão e não
preconceitos poKticos podem explicar a reacção quando O Capitalíd\ publi-
cado. «O silêncio com que o meu Hvro foi recebido põe-me nervoso», escre-
veu Marx a Engels, em Outubro, a propósito das noites de insónia que ti-
nham voltado a importuná-lo. «A origem da minha doença é mental.»^''
Engels fez o possível para criar interesse à volta da obra, enviando críticas
hostis sob u m p s e u d ó n i m o à imprensa burguesa alemã e encorajou os
amigos de Marx a fazer o mesmo. «O importante é que o Uvro seja discuti-
do de qualquer maneira», comunicou a Kugelmann. «E como Marx não é
nenhum publicitário e, ainda por cima, é tímido como uma donzela, cabe-
-nos a nós fazer isso... Citando o nosso velho amigo, Jesus Cristo, temos de
ser inocentes como pombas e manhosos como serpentes.»^^ O Dr. Kugel-
mann fez o melhor que pôde e remeteu artigos para um ou dois jornais de
Hanover, mas de pouco serviram, pois ele mesmo mal tinha compreendi-
do o livro. «Kugelmann está a tornar-se cada dia mais palerma», queixou-se
Engels. Jenny Marx mostrou-se mais amável: o acólito de Hanover talvez
fosse idiota, mas tinha, pelo menos, boas intenções. Deprimida pela indife-
rença universal com que a magnum opus do marido era acolhida e alarmada
pela saúde dele estar a piorar, agradecia todos os gestos de apoio. «Poucos
livros foram escritos em circunstâncias tão más», comentou, «e tenho a
270^0 KARL MARX

certeza de que eu poderia escrever uma história secreta a contar os inúme-


ros tormentos, aflições e ansiedades porque Karl passou. Se os trabalhado-
res soubessem dos sacrifícios que foram necessários para terminar este livro,
escrito por causa deles, talvez se mostrassem um pouco mais interessados.»^^
Dois dias antes do Natal de 1867, estava Jenny na cozinha a preparar tris-
temente um bolo enquanto Marx se encontrava de cama com furúnculos,
quando ouviu uma voz chamar do fundo das escadas: «Chegou uma gran-
de estátua.» Era o busto de Zeus, apenas ligeiramente lascado da longa via-
gem, que Kugelmann enviara da Alemanha como presente de Natal. «Nem
imaginam o prazer e a surpresa que nos causaram», escreveu ela a agradecer
ao médico. «Obrigado também pelo seu interesse e infatigável esforços em
favor do livro de Karl.»^' A forma de aplauso preferida pela maior parte dos
alemães, acrescentava amargamente, «é o mais absoluto silêncio».
Durante os primeiros três meses de 1868. Marx foi incapaz de trabalhar.
O furúnculo na parte interior da coxa roçava nas calças incapacitando-o de
se deslocar ao Museu Britânico; sentado à secretária, o furúnculo no rabo
obrigava-o passado pouco tempo a ir deitar-se, de lado, no divã; e, quando
tentava escrever, o furúnculo localizado abaixo da omoplata vingava-se
dolorosamente. Até as suas cartas a Engels se tornaram distintamente mais
curtas. «Padeci de inúmeras inflamações durante toda a semana passada;
sobretudo na axila esquerda», comunicou-lhe a 23 de Março. «Mas sinto-me
bastante melhor...» N ã o por muito tempo: no dia seguinte, enquanto üa um
Hvro, «uma espécie de véu negro toldou-me a vista e tive uma terrível dor de
cabeça acompanhada de contracções no peito». Se, pelo menos, não tivesse
ainda de escrever «o raio dos dois volumes» de O Capital c\u& faltavam e
procurar um editor inglês, poderia partir para a Suíça. E m Londres, o custo
de vida dos Marx era de 400 a 500 libras por ano, mas, em Genebra, ele
calculava que poderiam viver confortavelmente com cerca de 200.
Os únicos motivos para permanecer em Londres eram as duas institui-
ções que ocupavam a maior parte do seu tempo — o Museu Britânico e o
Conselho-Geral da Associação Internacional do Operariado. N o entanto,
outra razão talvez lhe tenha atravessado o espírito: Genebra era agora o lugar
onde vivia Michail Bakunine, o qual Marx já identificara como sendo o ho-
mem que poderia vir a destruir a Internacional.
11

o ELEFANTE VELHACO

Michail Bakunine era u m russo gigantesco e hirsuto, o modelo em pes-


soa de um revolucionário, todo ele feito de impulso, paixão e força de von-
tade. Conta-se que o compositor Richard Wagner, seu camarada de armas
durante a sublevação de 1849 em Dresden, inspirou-se nele para criar o per-
sonagem de Siegfried, e a sua presença também pode ser notada em Os Pos-
sessos, de Dostoïevski. Há naturalmente muitas lendas à volta de Bakunine,
mmtas delas inventadas por ele mesmo. Conta-se, por exemplo, a história de
como, durante uma revolta em ItáKa, o destemido colosso saiu de uma casa
cercada e atravessou uma multidão de soldados sem que nenhum deles ou-
sasse tocar-lhe. Percorreu o mundo clamando ser o líder de uma imensa Ir-
mandade, ou Liga, insurreccional, a qual, segundo se vinha a verificar, não
passava de uma dúzia de companheiros de bar. Possuía um entusiasmo ju-
venil por conspirações — códigos, palavras de passe, tinta invisível. Marx
chamava-lhe o hierofante russo, mas Engels sugeriu que elefante seria mais
apropriado: a sua estatura gigantesca, o andar de lenhador e o hábito de pisar
tudo o que se atravessasse no seu caminho.
Bakunine é com frequência apelidado o Pai do Anarquismo M o d e r n o
(o principal rival a este tímlo é Proudhon), mas ele não legou grandes teorias.
A sua herança foi a ideia fixa que o Estado era pernicioso e devia ser destruído.
Os estados comunistas não eram melhores do que os capitalistas; a autori-
dade continuava a ser centralizada nas mãos de uns quantos e mesmo que
o Estado fosse governado por «trabalhadores», estes depressa se tornariam
tão corruptos como os tiranos que tinham derrubado. E m vez disso, pro-
pôs portanto uma forma de anarquia federal, na qual o poder estaria tão dis-
perso que ninguém poderia abusar dele.
272^'« KARL MARX

Ou, pelo menos, era nisso que os seus discípulos queriam que acreditás-
semos. É extraordinário como ainda existem tantos: em vida, Bakunine pode
ter sido um general sem exército, ou um maometano sem Corão, mas, n o
século XX, atraiu uma legião de admiradores — muitos deles nada anarquistas
nem revolucionários — , que o aclamaram como aquele que tinha previsto
que as ideias marxistas poderiam apenas conduzir •àogulag. O s dois homens
)ustapõem-se consistentemente e sempre para descrédito de Marx. «Ainda
hoje, a luta entre os dois reside no âmago de todos os debates sobre a his-
tória do movimento dos trabalhadores», escreve o especialista alemão de
Marx, professor Fritz Raddatz. «Não há maneira de evadir a resposta... Marx
e Bakunine são iguais a Estaline e Trotsky.»^
Comparando Bakunine e Marx, o historiador britânico, E. H. Carr, fala
do «homem com impulsos generosos e incontroláveis e do h o m e m cujos
sentimentos eram tão perfeitamente sujeitos ao seu intelecto que observa-
dores superficiais não acreditavam que os tivesse... o h o m e m de personali-
dade magnética e o h o m e m cuja frieza intimidava e repelia»^. Carr concede,
contudo, que Bakunine era por vezes indiferente e incoerente, mas mesmo
esses defeitos tornaram-se virtudes quando comparados à disciplina desu-
mana e glaciar da máquina calculadora marxista.
Segundo Isaiah Berlin, «Bakunine diferia de Marx assim como a poesia
difere da prosa»^. A implicação aparente — que Bakunine era um espírito
livre e lírico, e Marx u m tipo prosaico — pouco mais é do que a citação
erudita dita em outras palavras da crua fórmula Trotsky/Estaline: o defen-
sor da liberdade humana contra o impiedoso autoritário. Trata-se de um mito
com suficiente verdade para o manter vivo. Bakunine era, de facto, um in-
divíduo com emoções puras que desprezava o meticuloso racionalismo de
Marx. A sua falta de interesse pelo complexo mecanismo do capital era
compensada pelo desdém de Marx por atitudes clandestinas. Além disso,
contudo, quase tudo o que se diz e escreve sobre esta luta de gigantes é absurdo.
Encontraram-se em Paris em 1844 e, depois, em Bruxelas, pouco depois
da insurreições de 1848, quando Bakunine ainda era mais comunista do que
anarquista. Apesar de quatro anos mais velho do que Marx, reconhecia a eru-
dição superior do jovem («Nessa altura, eu nada sabia de economia políti-
ca»), e adivinhava que os seus temperamentos irreconciliáveis nunca permi-
tiriam «nenhuma intimidade sincera». Nesse Verão, o Nene Rheinische Zeitung
de Marx publicou uns mexericos de Paris, atribuídos a George Sand, que ale-
gavam ser Bakunine um agente secreto do czar: a vontade de Marx em es-
o ELEFANTE VELHACO π^ 273

palhar o boato deve-se provavelmente à sua instintiva desconfiança da Rússia


e dos russos. N o entanto, não se fez rogado para publicar uma carta de
George Sand negando tal responsabilidade, onde incluiu um breve editori-
al pedindo desculpa pelo engano. Umas semanas mais tarde, os dois homens
encontraram-se por acaso em Berlim. «Sabe u m a coisa», ter-lhe-ia dito
melodramáticamente Marx, «sou actualmente chefe de uma sociedade secre-
ta comunista tão bem disciplinada, que se eu pedisse a um dos membros para
o matar, ele matá-lo-ia»'^. Como a fonte desta história é o próprio Bakunine,
um mitómano incorrigível, não devemos necessariamente acreditar nela. Se
Marx tivesse realmente proferido essa ameaça, teria o temperamental russo
voltado a dirigir-lhe a palavra?
Deu-se o caso de não se verem novamente durante 16 anos, mas isso foi
uma separação puramente geográfica. Após as suas aventuras com Richard
Wagner em 1849, Bakunine passou os oito anos seguintes como um peripa-
tético prisioneiro em Dresden, Praga e Sampetersburgo. E m 1857, a seguir à
morte do czar Nicolau, a sua sentença foi comutada para «exílio perpétuo» na
Sibéria. Escapou quatro anos mais tarde, escondendo-se a bordo de um bar-
co com destino a São Francisco, de onde regressou à Europa via Nova Iorque.
Como com Lassalle, e por muito que não apreciasse os ares de determi-
nada pessoa, Marx sabia reconhecer um homem notável de longe. Engels fez
notar isso muito bem ao denunciar publicamente, em 1849, o plano de
Bakunine para criar uma nação pan-eslava: «Bakunine é nosso amigo. Mas
isso não nos impede de criticar o seu panfleto.»^ O u troçar dos seus hábitos,
já agora. A exemplo de Lassalle, Bakunine era motivo de chacota na corres-
pondência entre Marx e Engels. «Bakunine transformou-se num monstro,
uma enorme massa de carne e gordura que mal consegue andar», assinalou
alegremente Marx em 1863. «E, ainda por cima, é sexualmente perverso e
ciumento da rapariga polaca de 17 anos que casou com ele na Sibéria por
causa do seu martírio. Encontra-se presentemente na Suécia, onde está a ma-
quinar revoluções com osfinlandeses.»*"N a altura em que escreveu isto, Marx
não tinha voltado a pôr-lhe a vista em cima desde 1848, mas renovaram
relações no O u t o n o de 1864, quando Bakunine, vindo da Suécia, fez escala
em Londres a caminho da Itália para encomendar uns fatos ao alfaiate so-
cialista Friedrich Lessner.
Alguns historiadores afirmaram que Marx sempre detestou Bakunine,
mas os pormenores desse encontro provam o contrário. E m primeiro lugar
porque foi Marx a solicitar o encontro quando soube, através de Lessner (seu
2 7 4 ^ ^ I<:ARLMARX

colega no Conselho-Geral da Internacional), que Bakunine se encontrava em


Londres. Porquê dar-se ao incómodo de procurar uma pessoa que despre-
zava? A carta enviado por Marx a Engels n o dia seguinte confirma que se
tratou de uma reunião amigável. «Devo dizer que gostei muitíssimo dele,
mais do que dantes... Ele é uma das raras pessoas que, na minha opinião,
fez progressos ao longo destes 16 anos.»'' Semanas mais tarde, numa men-
sagem exuberantemente afectuosa, Bakunine tratava Marx por «meu muito
querido amigo», elogiava o seu discurso de abertura da Internacional e pe-
dia-lhe uma fotografia autografada.
Bakunine confessou, no decorrer das conversas que os dois homens ti-
veram em Londres, que abandonara a obsessão juvenil com conspirações e
sociedades secretas: de ora em diante, prometeu, dedicar-se-ia exclusivamen-
te ao «movimento socialista», quer dizer, a Internacional. Mas, após ter
chegado a Itália, em breve voltou aos seus antigos esquemas — ajudado por
uma nova patrocinadora rica, a princesa Obolensky, a qual, pelos vistos,
achou irresistível este homem gordo e desdentado. E, ao longo dos três anos
seguintes, Bakunine não teve quaisquer contactos com a Internacional.
E m 1867, a princesa e o seu anarquista de estimação instalaram-se na
Suíça, onde Bakunine rapidamente notou que a Internacional se estava a es-
tabelecer com significativa força. Para compensar o tempo perdido decidiu
apoderar-se da organização, e concebeu para o efeito o que o seu biógrafo,
E. H. Carr, denomina «um ousado plano». Ousado, mas também incrivel-
mente absurdo. Como pretenso Hder da Aliança Internacional da Democra-
cia Socialista — o mais recente dos seus minigrupos com nome grandioso
— escreveu à internacional p r o p o n d o uma fusão, uma fusão em termos
iguais, claro está, para, desse modo, se tornar efectivamente co-presidente
da nova organização. Muito naturalmente, Marx e os seus camaradas do
Conselho-Geral recusaram tal ideia: juntamente com as associações e sindi-
catos filiados, representavam dezenas de milhares de trabalhadores, enquanto
a totalidade dos membros da Aliança Internacional de Bakunine não con-
tava com mais de 20. A o ver este seu ataque frontal desdenhado, Bakunine
decidiu então entrar pela porta das traseiras em bicos dos pés e informou o
Conselho-Geral que a Aliança Internacional deixara de existir. Mas a sua
nova organização, denominada simplesmente AHança para a Democracia So-
cialista, desejava, como qualquer outra secção local, tornar-se uma humilde
filiada da Internacional. Marx não viu nenhum mal nisso e recomendou que
a proposta fosse aceite.
o ELEFANTE VELHACO. » ^ 275

Aqueles que retratam Bakunine como um heroico oponente do poder


centralizado e hierarquias rígidas têm dificuldade em explicar o seu compor-
tamento subsequente — e deve ser por isso que, na maior parte dos casos,
preferem ignorá-lo completamente. N o primeiro e único congresso da In-
ternacional em que participou (em Basileia, em 1869), defendeu «a funda-
ção de u m estado internacional composto por milhões de trabalhadores,
estado esse que seria construído pela Internacional» — esquecendo-se tem-
porariamente que «estados» de qualquer tipo eram anátema para um verda-
deiro anarquista como ele. N o decorrer de outro debate, ele chegou mesmo
a propor que o poder do Conselho-Geral fosse fortalecido, a fim de ter a
possibiKdade de vetar a admissão de novos membros ou de expulsar os que
já existiam. E não admira: como o próprio Carr admite, «a ambição de Ba-
kunine nesta fase era conquistar o Conselho-Geral e não destruí-lo».
Quanto mais nos debruçamos sobre este ponto, mais se torna evidente
que a sua posterior raiva contra o Conselho-Geral devia-se menos à aversão
que sentia pela autoridade do que ao facto de não ter conseguido controlá-lo.
Nos bastidores, continuava a fazer maquinações como de costume. U m
bom exemplo do modus operandi àt Bakunine é a conversa, citada por E. fI. Carr,
com um dos seus acólitos, Charles Perron:

«Bakunine assegurou-lhe que a Internacional era uma instituição ex-


celente em si, mas que havia algo melhor a que Perron deveria também
aderir — a Aliança. Perron concordou. A seguir, Bakunine disse que,
mesmo no seio da Aliança, havia indivíduos que não eram revolucio-
nários autênticos, que prejudicavam as suas actividades e que, por con-
seguinte, a Aliança deveria ter um grupo de "Irmãos Internacionais".
Perron concordou novamente e, quando voltaram a encontrar-se uns dias
mais tarde, Bakunine declarou que os "Irmãos Internacionais" era uma
organização demasiado grande e que, por detrás deles, deveria haver um
Directório constituído por três pessoas — entre as quais Perron. Este riu-
-se e voltou a concordar.»**

Assim falava o grande defensor do poder popular.


N o congresso de 1869, em Basileia, foi acordado que os delegados de-
veriam voltar a reunir-se um ano mais tarde em Paris. Mas este projecto foi
cancelado com o rebentar da Guerra Franco-Prussiana, em Julho de 1870
— última tentativa desesperada de Napoleão III consolidar o seu vacilante
276 '-^y 'S KARL MARX

Segundo Império desafiando o poderoso Bismark. Há muito que a Interna-


cional se tinha preparado para este momento. O seu congresso de 1868, em
Bruxelas, tinha passado uma moção apelando para uma greve geral assim que
a guerra começasse — apesar de Marx ter descartado a ideia como sendo
uma «absurdidade belga» e declarado que a classe trabalhadora «ainda não
está suficientemente organizada para pesar de forma decisiva na balança».
Na sua opinião, tudo o que devia fazer-se era emitir uma adequada «decla-
ração pomposa e cheia de frases pretensiosas» para o efeito, dizendo que uma
guerra entre a França e a Alemanha seria ruinosa para ambos os países e para
a Europa.
E foi exactamente o que ele fez. A 23 de Julho de 1870, quatro dias depois
da declaração das hostilidades, o Conselho-Geral aprovou uma alocução
escrita por Marx. A derrota da sua velha bete mire, Luís Bonaparte, foi jovial
(e correctamente) predita. Mas avisou que, sé os trabalhadores alemães
permitiam que a guerra perdesse «o seu carácter estritamente defensivo» e
degenerasse num ataquem ao povo francês, tanto a vitória como a derrota
seriam igualmente desastrosas. Felizmente, a classe trabalhadora alemã era
demasiado esclarecida para deixar que tal acontecesse:

«Independentemente do rumo que esta horrível guerra possa tomar,


as alianças das classes trabalhadoras de todos os países porá fim à guer-
ra. O próprio facto, sem paralelo na história, dos trabalhadores fran-
ceses e alemães se enviarem mensagens de paz e de boa vontade enquan-
to, oficialmente, a França e a Alemanha estão envolvidas numa luta
fratricida, permite vislumbrar um futuro mais brilhante. E prova que, em
contraste com a sociedade antiga, com a sua miséria e delírio poKtico, se
está a constituir uma nova sociedade cuja regra Internacional será a P Ö ^
pois o seu governante natural será o mesmo por toda a parte — o Tra-
balho! O Pioneiro dessa nova sociedade é a Associação Internacional dos
Trabalhadores.»^

Tudo muito inspirador. John Stuart Mill enviou as suas felicitações, de-
clarando-se «muito agradado com a alocução. Não há uma única palavra que
não deveria lá estar; nem poderia ter sido escrita com menos palavras».^*' N o
entanto, e embora mantivesse uma neutralidade oficial, Marx não podia
resistir, em privado, a calcular as vantagens e a ruminar sobre o resultado que
mais conviria aos seus objectos.
o ELEFANTE VELHACO g ^ l l l

Já em Fevereiro de 1859, ele tinha dito a Lassalle por carta que uma guerra
entre a França e a Alemanha «teria naturalmente graves consequências; as
quais, a longo termo, seriam certamente revolucionárias. Mas, ao princípio,
haveria de apoiar o bonapartismo em França e fazer recuar o movimento
interno em Inglaterra e na Rússia, despertar de novo paixões mesquinhas
quanto ao problema do nacionalismo na Alemanha e ter, na minha opinião,
um efeito sobretudo contra-revolucionário em todos os aspectos»." Ao lon-
go de 11 anos, este jogo de consequências tinha-se tornado uma obsessão.
«Há quatro noites que não consigo dormir por causa do reumatismo», disse
a Engels, em Agosto de 1870. «Passo o tempo a fantasiar sobre Paris, etc.»'^
Uma dessas fantasias era que ambas as facções se gladiariam, enfraquecendo
tanto Bonaparte como Bismark. Mas, depois, os alemães haveriam de ven-
cer. «Desejo que tal aconteça porque a derrota definitiva de Bonaparte há-
-de provavelmente provocar a revolução em França, enquanto a derrota de-
finitiva da Alemanha prolongaria a actual situação durante uns 20 anos.»"
N e m a mulher nem o seu melhor amigo necessitavam tantas justificações
complicadas por ele tomar um determinado partido. Jenny achava que a
França merecia uma boa sova por ter rido o atrevimento de tentar exportar
a sua «civilização» para o solo sagrado da Alemanha. «Todos os franceses, até
mesmo o insignificante número dos melhores, têm uma molécula chauvinista
a um canto do coração», escreveu a Engels. «E isto tem de lhes ser extirpa-
do.»^'* Engels, que passou a guerra de m o d o lucrativo fazendo análises mi-
litares para a Pali Mali Gazette, também sentia essa mesma fidelidade atávica.
«A minha confiança nas proezas militares alemãs aumenta diariamente»,
entusiasmava-se. «Parece realmente que ganhámos as primeiras batalhas.»*^
Uma vez que Bonaparte fosse esmagado, os seus pacientes cidadãos pode-
riam, finalmente, tomar o poder.
Mas tinham os parisienses os meios, ou os Kderes, para levar a cabo uma
revolução e, simultaneamente, resistir ao exército prussiano? Esta questão,
mais do que qualquer outra, atormentava Marx durante as noites de insónia.
«Não se pode ocultar o facto desta farsa bonapartista, que dura há 20 anos,
ter provocado uma grande desmoralização», escreveu a Engels. «Não se pode
contar com heroísmo revolucionário. O que é que pensas disto?»''' Engels
mal teve tempo de responder a esta pergunta: Bonaparte rendeu-se em Sedan
e u m novo regime — a III República — foi proclamado em Paris.
Se aguardamos à beira do rio, acabamos por ver os cadáveres dos nossos
inimigos a flutuar. 20 anos mais cedo, a nomeação do diminuto Napoleão ti-
278 ^ > » KARL MARX -,

nha levado Marx a escrever Debito de Brumário de IJÍÍS Bonaparte; agora, ele tinha
o prazer de redigir o obituário. A 9 de Setembro, a Internacional distribuiu
uma segunda alocução sobre a guerra que começava com a presumida afir-
mação de que «não nos enganámos quanto à vitalidade do Segundo Impé-
rio». E Marx prosseguia, «a nossa apreensão caso a guerra "perdesse o seu
carácter estritamente defensivo e degenerasse numa guerra contra o povo
francês" também não era incorrecta»". Q u e m tenha presente a primeira
alocução talvez se lembre que ele tinha, realmente, negado essa possibilida-
de e insistira que a heróica classe trabalhadora alemã se anteciparia a isso. Mas
a campanha puramente «defensiva» tinha terminado com a capitulação em
Sedan e, agora que os alemães pediam a anexação de Alsácia e Lorena, ele
rescrevia a história a fim de não passar por uma vergonha.
Não devemos ser demasiado críticos em relação a Marx. O seu primeiro
tributo à contenção alemã tinha sido um triunfo da esperança sobre a expe-
riência, mas com a notável excepção que a sua leitura era espantosamente
correcta. O que é que fazia se a fortuna das armas e a arrogância do sucesso
levava a Prússia a desmembrar a França? N a segunda alocução, ele preveniu
que a Alemanha se tornaria «o confesso instrumento do engrandecimento
da Rússia ou, após um breve interregno, se prepararia para mais uma guer-
ra «defensiva», não uma dessas modernas guerras "localizadas", mas uma
guerra de raças — uma guerra das raças romanas e eslavas combinadas».
Uma carta ao organizador americano da Internacional, Friedrich Adolph
Sorge, era ainda mais presciente. «O que os burros prussianos não vêem é
que a presente guerra conduz... a uma inevitável confrontação entre a Ale-
manha e a Rússia. E essa guerra n.° 2 será a parteira da inevitável revolução
social na Rússia.»^** Marx não viveu para assistir ao drama de 1917, mas não
teria ficado minimamente surpreendido. Por vezes, parecia estar a olhar ainda
para mais longe:

«Se por interesse militar forem estabelecidos limites, as reivindicações


não terão fim, pois todas as linhas militares são necessariamente incor-
rectas e só poderão ser melhoradas anexando mais território; além do
mais, nunca poderão ser fixadas de forma final e razoável, pois são im-
postas pelo conquistador ao conquistado e, por conseguinte, transpor-
tam com elas a semente da discórdia.»
o ELEFANTE VELHACO ö G # 279

O s que se referem aos ocasionais erros de Marx como prova da sua mio-
pia histórica, talve2 não se importem de nos dizer que outras figuras dessa
época tiveram uma premonição tão precisa da ascensão de Hitler.
A segunda alocução de Marx saudava a nova República Francesa (Vive
la République!), mas não sem apreensões. «Essa república não subverteu o
trono, apenas ocupou o seu lugar quando ficou vazio», fez notar. «Foi pro-
clamada, não como uma conquista social, mas c o m o medida nacional de
defesa.»
O governo provisório era uma instável coligação de orleanistas e repu-
blicanos, bonapartistas e jacobinos que podia vir a tornar-se numa ponta para
a restauração da realeza. N o entanto, os trabalhadores franceses tinham de
cumprir o seu dever como cidadãos e banir toda a ideia de revolução. «Qual-
quer tentativa para derrubar o novo governo na crise actual, quando o ini-
migo está quase a bater às portas de Paris, seria uma loucura desesperada.»
A loucura desesperada era, claro está, o passatempo favorito de Michail
Bakunine que seguia as notícias na sua vivenda suíça em França. A o ouvir
falar de uma insurreição em Lyons após a derrota em Sedan, apressou-se a
lá ir imediatamente, entrou com ar importante na Câmara Municipal e no-
meou-se chefe do «comité de Salvação Nacional». E , a seguir, numa procla-
mação da varanda do edifício, declarou a aboução do Estado — acrescen-
tando [muito libertariamente) que quem discordasse dele seria executado. O
estado sob a forma de um pelotão da Guarda Nacional, penetrou pronta-
mente por uma porta da câmara que, por inadvertência, não se encontrava
guardada e obrigou o Messias de Lyons a fugir para as margens seguras do
lago de Genebra.
A admoestação de Marx para a situação não balançar o barco não teve
mais influência do que as vangloriosas palhaçadas de Bakunine. Adolphe
Thiers, veterano advogado liberal, foi nomeado Presidente da Terceira Re-
pública e dentro de pouco tempo soHcitou a paz com a Prússia em nome do
seu desajeitadamente chamado «Governo de Defesa Nacional». A raiva dos
parisienses perante esta rendição redobrou quando ele anunciou que as repara-
ções seriam financiadas pelo pagamento imediato de todas as contas e rendas
suspensas durante o cerco. A 18 de Março de 1871, uma multidão indigna-
da invadiu as ruas — apoiada pela Guarda Nacional da cidade, que se recusa-
va obedecer à ordem de entregar as armas ao governo. Thiers e os seus adep-
tos fugiram para Versalhes, deixando a capital nas mãos dos seus cidadãos.
2 8 0 % ^ ICARLMARX

O galo gaulês tinha, mais uma vez, cantado. Ao princípio, os governantes


da Europa fíngiram-se de surdos, na esperança de que, se não lhe dessem
ouvidos, o cacarejar talvez desvanecesse. Quando isto falhou, o pânico que
se apoderou deles foi delicioso de ver. The Times, de Londres, bradou con-
tra «este perigoso sentimento da democracia, esta conspiração contra a ci-
vilização na sua capital». O próprio Karl Marx, informava, tinha ficado tão
horrorizado por aquela insurreição que enviara uma dura repreensão aos
membros firanceses da Internacional. O jornal teve depois de publicar um
desmentido de Marx, o qual revelou que alegada carta era «uma falsificação
impudente»^'. («Não deves acreditar numa só palavra do que se escreve nos
jornais burgueses sobre o que se está a passar em Paris», aconselhou Liebk-
necht, que se encontrava na Alemanha. «São tudo mentiras. Nunca a vilania
dos jornais burgueses se manifestou de forma tão esplêndida.»^*'
A excitação de Marx quanto «ao que se estava a passar em Paris era apenas
temperada pelo receio de que os revolucionários pudessem ser demasiado
decentes para o seu próprio bem. E m vez de marchar imediatamente sobre
Versalhes para acabar com Thiers e a sua desgraçada equipa, perderam
«momentos preciosos» a organizar uma eleição geral para a Comuna. Marx
também desaprovou a sua decisão de permitir que o Banco Nacional pros-
seguisse as suas actividades normais: se fosse ele a mandar, há muito que os
cofres teriam sido postos a saque. Mesmo assim, era uma bênção estar vivo
naquela madrugada. «Que resiliência, que iniciativa histórica, que capacida-
de de sacrifício a desses parisienses!», exclamou. «Após seis meses de fome
e ruína provocadas por traição interna e não inimigos de fora, erguem-se por
debaixo das baionetas prussianas como nunca tivesse havido uma guerra
entre a Alemanha e a França e o inimigo ainda não se encontrasse às portas
de Paris! A história não tem outro exemplo de tal grandeza!»^^
D o s 92 partidários da Comuna eleitos por sufrágio popular a 28 de Mar-
ço, 17 eram membros da Internacional. N o decorrer de uma reunião em
Londres nesse mesmo dia, o Conselho-Geral concordou por unanimidade
que Marx deveria fazer uma nova «alocução ao povo de Paris». Mas, depois,
nada aconteceu. Ao longo dos dois meses que durou a Comuna, a Internacio-
nal não fez qualquer declaração púbHca e, quando Marx proferiu a sua alocução
de 50 páginas, foi mais como um epitáfio: As tropas de Thiers tinham recon-
quistado a cidade há três dias e pedras de Paris estavam vermelhas com o
sangue de, pelo menos, 20 000 partidários da Comuna assassinados.
o ELEFANTE VELHACO «*<^ 281

Qual a razão de tal demora? N a maior parte dos casos, os seus biógra-
fos atribuem-na à «ambivalencia pessoal de Marx em relação à Comuna»^^.
É verdade que receava que esta falhasse, mas apreensão não é a mesma coisa
que ambivalencia. A principal razão, mais banal e familiar, é que, durante
Abril e Maio, teve bronquite e problemas de fígado, o que o impediu de
participar no Conselho-Geral — quanto mais reunir as provas necessárias
para render uma homenagem de 50 páginas à histórica levée en masse (levan-
tamento em massa) dos Parisienses. «A presente situação causa intenso
sofrimento ao nosso querido Moura», escreveu a filha, Jenny, em meados de
Abril. «É sem dúvida essa a razão principal da sua doença. Muitos dos nos-
sos amigos fazem parte da Comuna.»^-^ U m deles era Charles Longuet, direc-
tor do àiúÁo Journal Officiel, que se mudou para Londres depois da queda da
Comuna e se casou com Jennychen em 1872.
Outro partidário da Comuna, Olivier Lissagaray, tornou-se mais tarde o
noivo secreto de Eleanor Marx — embora o noivado acabasse por ser des-
feito. Paul e Laura Lafargue tinham fugido de Paris pouco antes dos Prus-
sianos cercarem a capital, mas continuavam a fazer campanha em favor da
Comuna de Bordéus.
Doente e cheio de maus pressentimentos, Marx também tinha de lutar
contra o seu obsessivo perfeccionismo: quer em O Capital ou num simples
panfleto, mostrava-se relutante em publicar uma opinião definitiva sobre
qualquer assunto sem reunir primeiro todas a informação necessária. Duran-
te os dias da Comuna, escreveu dúzias de cartas a camaradas que viviam n o
Continente, importünando-os para lhe enviarem documentação e recortes
de jornais. A julgar pelas passagens mais caluniosas da sua há muito aguar-
dada alocução -— a qual foi finalmente publicada sob o título de A. Guerra
Civil em França — , a sua pesquisa também incluiu um estudo aprofundado
das colunas de mexericos. Logo nas primeiras páginas oferece-nos este en-
cantador retrato do ministro dos Negócios Estrangeiros de Thiers: «Jules
Favre, que vive em concubinagem com a mulher de um bêbedo residente em
Argel, arranjou meio de se apoderar, em nome dos filhos resultantes do seu
adultério e através de uma série de ousadas vigarices feitas ao longo de muitos
anos, de uma grande herança que o tornou rico.» O ministro das Finanças,
Ernest Picard, é alcunhado o Joe Miller ào Governo de Defesa Nacional» —
um comediante londrino de musicais. C o m o os conhecimentos de Marx
sobre a cultura popular inglesa eram quase nulos, adivinha-se que foram as
filhas, apaixonadas por teatro, que sugeriram o nome.
282<<¿?t KARLMARX ;

Mas o resto do ataque a Picard é puro Marx, e cada novo tópico desta lista
de acusações é redigido com floreados legalistas. Ficamos a saber que Picard
«é irmão de um certo Arthur Picard, indivíduo expulso da Bolsa de Paris por
vigarice (ver relatório da Prefeitura da PoKcia datado de 31 de Julho de 1867),
e condenado pelo roubo de 300 000 francos efectuado, segundo ele mesmo
confessou, quando era gerente da Société Générale, rua Palestro, 5 (ver re-
latório da Prefeitura da Polícia, 11 de Dezembro de 1868). Arthur Picard foi
nomeado pelo irmão director do jornal, l'ÉlecteurI^ibre...» Os partidários da
Comuna podem não ter tocado nos cofres bancários, mas foi certamente
com muito prazer que revistaram os arquivos da polícia.
Depois de ter introduzido os actores secundários, Marx faz a apresenta-
ção de Thiers em pessoa — o «gnomo monstruoso»:

«Mestre em vigarice a pequena escala, virtuoso do perjúrio e da difa-


mação, artista em todos os estratagemas mesquinhos, planos manhosos
e perfídia da guerrilha parlamentar; sem escrúpulos, quando não parti-
cipa no governo, de provocar uma revolução e de a suprimir num banho
de sangue caso seja primeiro-ministro; os preconceitos de classe substi-
tuem nele as ideias e aqueles são, por sua vez, substituídos pela vaidade;
a sua vida privada é tão infame quanto a sua vida pública é odiosa —
m e s m o agora, em que desempenha o papel de um Sula francês, não
consegue compensar os seus feitos abomináveis através da sua ridícula
ostentação.»

A seguir, Marx faz um esboço das origens da Comuna. Longe de ser uma
espécie de sublevação contra um Governo legítimo, foi uma tentativa para
salvar a III República da ordem inconstitucional de Thiers, para que a Guarda
Nacional entregasse as armas e deixasse Paris indefeso. Marx acrescenta
ainda orgulhosamente que a insurreição popular de 18 de Março não fora
afectada «pelos actos de violência que caracterizam as revoluções, e sobre-
tudo as contra-revoluções, das "classes superiores"».
E para dar um exemplo do comportamento dessas classes superiores,
menciona o próprio Presidente sem esconder nada aos leitores:

«A segunda campanha de Thiers contra Paris teve início em Abril.


A primeira leva de prisioneiros parisienses trazida para Versalhes foi su-
jeita às mais revoltantes atrocidades, enquanto Ernest Picard, de mãos
o ELEFANTE VELHACO «s*^ 283

nos bolsos, os injuriava, e as senhoras Thiers e Favre, no meio das suas


damas de companhia, aplaudiam da varanda os ultrajes cometido pelo
povo de Versalhes. Os soldados capturados foram massacrados a sangue-
fi-io; o nosso valente amigo, general Duval, foi fuzilado sem julgamento.
GaUifet, o amante da mulher dele, a qual se tornou sobejamente conheci-
da pelas suas desavergonhadas exibições nas orgias do Segundo Império
gabou-se, numa proclamação, de ter ordenado o assassínio de u m pe-
queno grupo de guardas nacionais... Com a prosápia de um Polegarzi-
nho parlamentar autorizado a desempenhar o papel de Tamerlão, Thiers
negou aos revoltosos todos os direitos de uma guerra civilizada, incluin-
do a neutralidade das ambulâncias. Como previu Voltaire, não há nada mais
horrível do que ver um macaco dar livre curso aos seus instintos de tigre.»

A fim de não sobrecarregar o leitor com todo esta fiaria e violência, Marx
muda de t o m e faz uma pausa para nos falar da lição aprendida c o m a
Comuna. Cita um manifesto de 18 de Março, em que se lia que os proletá-
rios de Paris se tinham tornado «donos do seu próprio destino ao apodera-
rem-se do poder governamental». Que ilusão ingénua, comenta. A classe tra-
balhadora não pode simplesmente «da maquinaria estatal já estabelecida e
utilizá-la para os seus próprios fins»: mais valeria então tentar tocar uma
sonata para piano com um gaita de beiços.
Felizmente, a Comuna entendeu rapidamente isso e livrou-se da polícia
política, substituindo-a por um exército de populares armados, desesta-
bilizando a Igreja, libertando o ensino da influência dos bispos e instituin-
do concursos para todos os funcionários públicos — incluindo os juízes —
para estes serem «responsáveis e revogáveis». A constituição recuperou para
a sociedade todas as forças até então absorvidas pelo Estado, e tal acção
tornou-se imediatamente visível: «As alterações introduzidas em Paris pela
Comuna foram realmente maravilhosas!... Paris deixou de ser o local de
encontro de latifundiários britânicos, foragidos irlandeses, esclavagistas
americanos e gente suspeita. Já não há cadáveres na morgue nem roubos à
noite; pela primeira vez, desde Fevereiro de 1848, as ruas de Paris são segu-
ras e não se vê nenhum polícia.»
Mas esse estado de coisas não durou muito tempo. Como Marx assina-
la, Thiers não podia ter tudo: se a Comuna era obra de um p u n h a d o de
«usurpadores» que mantivera os parisienses como reféns durante dois me-
ses, por que é que, então, os carniceiros de Versalhes tinham tido de assas-
284 « 5 ^ KARI.MARX

sinar dezenas de milhares de pessoas para debelar a revolução? E, assim,


conclui as suas observações com outro rugido de saeva indignation perante a
brutalidade do governo e a promessa de que o espírito da Comuna não será
suprimido nem em França nem em nenhuma outra parte do mundo.

«O solo do qual germina é a própria sociedade moderna e não pode


ser espezinhado por quaisquer carnificinas. Para o espezinhar, os gover-
nos teriam de espezinhar o despotismo do capital sobre o trabalho —
condição da sua existência de parasita.
Com a Comuna, os trabalhadores parisienses serão para sempre ce-
lebrados como os gloriosos fundadores de uma nova sociedade. O s seus
mártires estão guardados como relíquias no coração da classe trabalha-
dora e os seus exterminadores já se encontram amarrados ao pelouro da
história. As preces dos seus sacerdotes nunca conseguirão redimi-los.»

A- Guerra Civil em França foi um dos mais inebriantes panfletos de Marx


— mas demasiado tóxico para os sindicalistas ingleses, Benjamin Lucraft e
George Odger, que se demitiram do Conselho-Geral logo que o texto foi
aprovado, protestando que a Internacional não tinha de se envolver em
política. (E, a partir dessa data, prosseguiram as suas modestas ambições
c o m o membros do velho e apolítico Partido Liberal.) As primeiras duas
edições de três mu exemplares foram esgotadas em duas semanas e, logo de-
pois, seguiram-se as edições alemãs e francesas. O feito mais impressionante
de Marx foi talvez o de fazer com que as facções rivais da esquerda esque-
cessem as suas rixas. «A tradução francesa átA. Guerra Civil tevt um efeito
excelente sobre os refugiados», escreveu a sua filha, Jenny. «Pois agradou a
todos os partidos — blanquistas, proudhonistas e comunistas.»
E foi igualmente excelente para a reputação de Karl Marx e da sua As-
sociação. Aqueles que apoiam o status quo não acreditam que as pessoas
possam ou queiram desafiá-lo, e, assim, qualquer acto de desobediência civil
é invariavelmente seguido pela tentativa de captar o seu instigador — seja ele
uma pessoa importante ou «um grupo de gente politicamente motivada».
(Um dos mais deliciosos exemplos desta tendência paranóica é o romance
de Agatha Christie, The Secret Adversary, publicado em 1922, em que os des-
temidos detectives, Tomrny e Tuppence, investigam urna repentina série de
greves industriais. «Os bolchevistas estão por detrás dos motins laborais»,
informam-nos, «mas quem está por detrás dos bolchevistas é este homem.»
o ELEFANTE VELHACO jtÛJ 285

E acabam por descobrir que quem planeou e manipulou toda a revolução


russa sem dar nas vistas é u m inglês c h a m a d o Sr. Brown,) As versões
vitorianas de Tommy e Tuppence não tiveram de ir muito longe para des-
cobrir a força criminosa por detrás da Comuna de Paris. A prova encontra-
va-se na última página de A Guerra Civil em França. «A desconfiada mente bur-
guesa julga que a Associação Internacional de Trabalhadores está a preparar
uma conspiração e que os seus dirigentes ordenam, de tempos a tempos,
explosões em países diferentes», anotou sarcasticamente Marx. «Na realida-
de, a nossa associação é apenas o elo internacional entre os trabalhadores
mais progressivos do m u n d o civilizado. É portanto natural que os seus
membros figurem em primeiro plano sempre que a luta de classes ganhe
consistência.»
E m b o r a alguns dos seus membros fizessem parte da Comuna, a Inter-
nacional em si nada tinha dito ou feito no decorrer daqueles dois meses à
parte ter encarregado Marx de compor uma alocução que apareceu dema-
siado tarde para ter qualquer influência sobre o resultado. Mas a exagerada
afirmação de Karl Marx de que ela se figurava «no primeiro plano» desen-
cadeou umi clamor de protestos em toda a Europa. Jules Favre, que era n o -
vamente ministro dos Negócios Estrangeiros, solicitou a todos os governos
europeus que ilegalizassem imediatamente a Internacional, e um jornal fran-
cês, alegando que Marx «organizara» a insurreição de 18 de Fevereiro do seu
covil em Londres, identificou-o como o «chefe-supremo» dos conspirado-
res. Dizia-se que a Internacional contava com sete milhões de membros,
todos eles à espera das ordens de Marx para se revoltar.
O grande Mazzini, herói romântico do nacionalismo republicano, apro-
veitou a oportunidade para ajustar contas antigas e informou a imprensa
italiana e britânica que Marx era «um h o m e m dominador, ciumento da in-
fluência dos outros e governado por crenças desonestas e ateias. Receio que
haja mais raiva do que amor no seu temperamento.»^^
Outros governos europeus atearam o pânico. A Espanha expulsou refii-
giados da Comuna e o embaixador alemão, em Londres, incitou Lorde Gran-
ville, ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, a tratar Marx como um
criminoso por causa das suas ultrajantes «ameaças contra a vida e a proprie-
dade». Depois de ter consultado o primeiro-ministro e a rainha, Grandville
replicou que «as opiniões socialistas radicais não pareciam ter ganho qual-
quer influência sobre a classe trabalhadora deste país» e, «que se saiba, a filial
inglesa dessa Associação não tomou nenhumas iniciativas de ordem prática
286^5^
•.í'
KARL MARX

em outros países estrangeiros». E, além do mais, não se podia prender nin-


guém que não tinha infringido a lei.
Lorde Aberdare, o ministro do Interior, foi constantemente importunado
para agir contra Marx e a Internacional, em particular por u m ruidoso
m e m b r o do Parlamento chamado Alexander Baillie-Cochrane. Antes de
emitir u m parecer, Aberdare pediu ao seu secretário particular para obter
cópias da suposta incendiária propaganda da Internacional. Marx teve o
maior gosto em cooperar e, a 12 de Julho, enviou ao Ministério do Interior
uma resma de papéis que incluía a alocução inaugural, os regulamentos
provisionais e uma cópia de A Guerra Civil em Trança. Ao ouvir esta notícia,
Bakunine denunciou Marx como sendo um «traiçoeiro espião da polícia» —
difamação que, desde essa altura, tem sido periodicamente repetida. U m dos
mais recentes biógrafos de Marx, Robert Payne, conclui que há «alguma
verdade nessa acusação».
Mas porquê não haveria Marx de tentar esclarecer um mal-entendido que,
de outro modo, poderia levar o Governo britânico a tomar uma acção drás-
tica? A o contrário de Bakunine, ele não tinha t e m p o para conspirações.
A Internacional era uma associação de sindicatos legalmente constituída e,
por isso, porquê se comportar então como se houvessem segredos compro-
metedores? Essa atitude franca foi plenamente vindicada quando Aberdare,
depois de examinar os documentos, garantiu ao Parlamento que Marx e os
seus adeptos descontentes inofensivos que necessitavam apenas de receber
«alguma educação religiosa» para seguir pelo bom caminho. The Times não ficou
convencido pois temia que os sólidos sindicalistas ingleses, os quais nada mais
queriam do que «um razoável salário diário por um honesto dia de trabalho»,
fossem corrompidos por «estranhas teorias» importadas do estrangeiro.^''
Graças ao panfleto de Marx, os jornais britânicos encontravam-se, ago-
ra, em estado de alerta e de olhos postos no inimigo vindo do interior.
«Apesar de pouco vermos ou ouvirmos abertamente da influência da Inter-
nacional, esta tornou-se a verdadeira força motivadora cuja mão oculta
guiava toda a máquina da Revolução com misterioso e temível poder», no-
ticiou Traser's Magazine, em J u n h o de 1871^^. Uma revista católica. Tablet,
preveniu os seus leitores quanto ao sinistro significado de uma modesta li-
vraria localizada no centro de Londres. «Deveríamos considerá-la superior
a um palácio ou monumento, pois é o quartel-general de uma sociedade cujas
ordens são obedecidas de Moscovo a Madrid e tanto no Mundo Novo como
o ELEFANTE VELHACO ,^287

no Antigo. Os seus discípulos já declararam uma guerra desesperada a u m


governo e juraram declarar guerra a todos os demais. Trata-se da maléfica
e ubíqua Associação Internacional do Operariado.»^^ U m editorial do Spec-
tator, embora louvasse o estilo da prosa de Marx («tão vigoroso como o de
Cobbett»), achou que a sua alocução era «possivelmente o mais maléfico e
significativo sinal dos tempos»^'. Até mesmo a Pali Mali Ga^iette, para a qual
Engels tinha colaborado durante a guerra fi-anco-prussiana, se juntou à ca-
çada às bruxas, descrevendo Marx como «um israelita de nascimento» que
se proclamara chefe de «uma vasta conspiração cujo objectivo era implan-
tar o comunismo poKtico».
Após anos passados na obscuridade, Karl Marx descobriu repentinamen-
te que era «infamoso». «E sem dúvida verdade que o secretário daquela
organização, que faia e escreve em seu nome, é um alemão temperamental,
impetuoso e provocador chamado Karl Marx», informou os Quarterly Revkw.
«E também é verdade que muitos dos seus colegas ingleses estão fartos da
sua violência e resistem ao seu comportamento imperativo, recusando ser
arrastados num banho de sangue, coisa que a ele não repugna.»-''* Ao prin-
cípio, Marx sentiu-se lisonjeado por todo o alvoroço. «Tenho a honra de,
neste momento, ser o homem mais caluniado e ameaçado de Londres», con-
fessou seu amigo alemão, Ludwig Kugelmann. «Depois de um aborrecido
idíHo de 20 anos nas berças, isso faz-me realmente bem. O jornal do Governo
— o Observer— ameaça processar-me. Atrevam-se! N ã o me ralo nada com
esses patifes!»-'^
Mas, à medida que a imprensa continuava a publicar falsidades e fanta-
sias quase diariamente, essa despreocupada gabarolice deu lugar a um sen-
timento de orgulho ofendido e, quando Jenny se ofereceu para exigir um
pedido de desculpa em nome dele à revista semanal Public Opinion, Marx deu-
-Ihe instruções para enviar igualmente o seu antigo cartão-de-visitas (Sra. Jenny
Marx, baronesa Von Westphalen) — qual, segundo ele esperava, «amedron-
tará esses conservadores». N o entanto, Karl preferia, a maior parte das vezes,
métodos menos subtis de contra-ataque. «Se o seu jornal continuar a publi-
car essas mentiras, ver-me-ei obrigado a instaurar-vos um processo», avisou
ele o director do jornal francês em Londres, Ulnternational, que tinha afirma-
do que os «pretensiosos» trabalhadores europeus se estavam a endividar para
dar a Marx «uma vida confortável em Londres». Recentes difamações noti-
ciadas na PO//MÍZZ/GÍ?.-^«?//!? provocaram outra reacção:
2881^ I^ARLMARX

Sr. Director,
Li na secção da correspondência de Paris do seu jornal de ontem que,
embora me tivesse instalado em Londres, eu fora preso na Holanda a pe-
dido de Bismark-Favre. Mas talvez isso não passe de mais uma das inume-
ráveis histórias sensacionais sobre a Internacional que, nos últimos dois
meses, a polícia franco-prussiana não se cansa de inventar, a imprensa de
Versalhes de publicar e o resto da imprensa europeia de reproduzir.
Com os meus cumprimentos,
Karl Marx
1, Modena Villas, Maidand Park^^

A ¥allMall Gazette retaliou, acusando Marx de caluniar o poKtico fran-


cês, Jules Favre — e o obediente correspondente de Modena ViUas escre-
veu nova carta. «Você não passa de um difamador», chamou ao director,
Frederick Greenwood. «Não tenho culpa de que, além de ignorante, seja
arrogante. Se vivêssemos na Europa continental, exigir-lhe-ia uma explica-
ção e resolveríamos o assunto de outra maneira. Sinceramente, Karl Marx.»^^
É evidente que para os leitores ingleses, a publicação desta carta meramen-
te confirmou os seus piores receios quanto a este perigoso rufia alemão.
E m meados de Julho, um correspondente do World, de Nova Iorque,
deslocou-se expressamente a Modena Villas para visitar a fera no seu covil.
A primeira surpresa foi que a aparência de Marx era a de um h o m e m abas-
tado da classe média — género agente próspero da Bolsa.

«O apartamento onde mora é o de um h o m e m com gosto e dinhei-


ro, o conforto personificado, mas sem nada que caracterize a persona-
lidade do seu dono. N o entanto, um excelente álbum com paisagens do
Reno sobre a mesa dava uma indicação quanto à sua nacionalidade.
Espreitei prudentemente para dentro de um jarro à espera de encontrar
uma bomba. Farejei o ar, mas tudo o que senti foi o odor a rosas e não
o de explosivos. Voltei a sentar-me e aguardei nervosamente o pior.
Ele entrou e cumprimentou-me cordialmente. Sentámo-nos diante
um do outro. Sim, estou agora a conversar com a revolução em carne e
osso, o fundador e guia espiritual da Associação Internacional, o autor
da alocução que ameaça o capital e o previne para não se meter com os
trabalhadores — numa palavra, o apologista da Comuna de Paris. Lem-
bram-se da prisão de Sócrates, o h o m e m que preferiu morrer a ter de
o ELEFANTE VELHACO o < ^ 289

aceitar os deuses da sua época — o filósofo de nobre perfil, cuja fi'onte


ampia desee arrebitando ligeiramente no nariz? Guardem na mente este
busto, pintem a barba de preto com pelos grisalhos aqui e ali, coloquem
a cabeça assim feita num corpo imponente de altura média e eis Marx à
nossa frente. Tapem~lhe a parte superior do rosto com um véu e vão
julgar que se encontram na companhia de um membro do clero. Note-
-se na feição essencial, o imenso sobrolho e damo-nos imediatamente
conta de que temos de lidar com a mais formidável das forças — um
sonhador que pensa, um pensador que sonha.»-''^

A entrevista em si não é comparável a esta elaborada encenação. Era Marx


o manipulador invisível por detrás da Internacional? «Não há nenhum mis-
tério para desvendar, meu caro senhoo), riu-se ele. «A não ser talvez o mis-
tério da estupidez humana, daqueles que teimam em ignorar que a nossa
Associação é pública e que as suas actas são publicadas para quem as queira
1er. Pode comprar os nossos estatutos por nmpenny e um xelim gasto em
panfletos ensinar-lhe-á quase tanto sobre nós como nós mesmos sabemos.»
O jornalista americano não ficou, contudo, convencido. A Internacional
era provavelmente uma sociedade de trabalhadores autênticos, mas não eram
eles meros instrumentos nas mãos de um génio maléfico disfarçado num
respeitável cidadão da classe média? «Não existe nada que possa provar tal
coisa», respondeu Marx com rispidez.
Começou ficar cansado de refutar os boatos sensacionalistas que cor-
riam por toda a Europa ocidental e até para lá das suas fronteiras. Um jornal
francês, UA-Venir Libéral, publicou a notícia de que ele tinha morrido; e Marx
leu o seu próprio obitoário no World, de Nova Iorque, que elogiava «um dos
defensores mais dedicados, mais destemidos e menos egoístas do povo e de
todas as classes oprimidas». Não deixava de ser bastante gratificante, mas, na
medida em que a sua saúde era frágil, também era uma desagradável lembrança
da mortalidade. Em meados de Agosto, o médico diagnosticou «fadiga exces-
siva» e recomendou-lhe duas semanas de repouso à beira-mar. «Não trouxe o
remédio para o fígado comigo», escreveu Marx a Engels do Hotel Globe, em
Brighton. «Mas o ar faz-me muito bem.» Esqueceu-se de acrescentar que não
parava de chover e que tinha apanhado uma grande constipação.
A fama seguia-o por toda a parte. Pouco depois de ter chegado a Brighton,
reconheceu um homem que o espiava a uma esquina — tratava-se do inep-
to espião que costumava muitas vezes segui-lo, a ele e a Engels, em Londres.
290 t ^ I<ARLMARX

Uns dias mais tarde, farto de ser seguido a cada passo, Marx estacou de re-
pente, virou-se e lançou um olhar ameaçador ao homem que o perseguia.
Este baixou humildemente o chapéu e desapareceu para sempre.
Se estes espiões soubessem a verdade, teriam poupado muitas solas de
sapato. O enorme e disciplinado exército de revolucionários comandado por
Marx existia apenas na imaginação dos políticos e directores de jornais
excitáveis. Logo após a Comuna ter sido esmaga, a Internacional começou
a desintegrar-se. A secção francesa foi ilegalizada e os seus membros mor-
tos ou enviados em exílio para as colónias da Nova Caledónia; os líderes in-
gleses dos sindicatos juntaram-se ao Partido Liberal de Gladstone e muitas
dasfiliaisamericanas passaram a ser controladas pelos adeptos de duas extra-
vagantes irmãs, Victoria Woodhull e Tennessee Claflin, as quais advogavam
o espiritualismo, a necromancia, o amor livre, a abstinência alcoólica e a lin-
guagem universal. (WoodhuU, que usava os seus indubitáveis encantos para
extrair grandes somas de dinheiro ao milionário Cornelius Vanderbüt, tinha
começado a sua carreira como vendedora de banha da cobra. Beneficiara da
política marxista da porta aberta, a qual estipulava que todos os que aceitas-
sem mais ou menos os objectivos da Associação seriam admitidos; mas ele
acabou por perder a paciência quando ela anunciou a sua intenção de se apre;
sentar às eleições presidenciais americanas como candidata da Associação
Internacional dos Trabalhadores e da Sociedade Nacional de Espiritoalistas.)
Durante a ausência de Marx à beira-mar, vários parisienses refugiados em
Londres foram eleitos para o Conselho-Geral, mas como a maior parte era
proudhonista, as antigas querelas recomeçaram novamente.
E, claro está, ainda havia a ameaça de Michail Bukanine, o qual observava
a Internacional moribunda como uma hiena esfomeada. Andava agora a in-
trigar mais brutalmente que nunca com o seu novo acólito, Sergei Nechayev,
um louco anarco-terrorista russo que se refugiara na Suíça em 1869. Ba-
kunine, não menos fantasista, deixou-se impressionar pela gabarolice de
Nechayev, que tinha organizado uma rede de células revolucionárias por toda
a Rússia, e pelo relato da sua sensacional fuga da fortaleza de Pedro e Paulo
em Sampetersburgo. Embora ambas estas coisas fossem pura ficção, a vio-
lência de Nechayev era bastante autêntica; antes de fugir da Rússia, tinha
assassinado um colega estudante simplesmente porque queria provar que era
capaz de o fazer. Depois de se juntar a Bakunine, publicou uma série de pro-
clamações e artigos incendiários, provenientes ostensivamente da Interna-
cional, a anunciar vingança.
o ELEFANTE VELHACO Ï # * ^ 291

As acções bizarras dos bakuninistas dividiu a Federação Romande, a


secção suíça da Internacional, e provou uma confusão sem fim — especial-
mente porque ambas as facções continuaram a emitir comunicados em nome
da extinta Federação. Para resolver a disputa, o quartel-general em Londres
convocou um congresso extraordinário em Setembro de 1871, o qual teve
lugar na taberna Blue Posts, em Tottenham Court Road. «Foi uma tarefa
difícil», escreveu Marx à mulher que, à cautela, tinha ido para Ramsgate.
«Sessões de manhã e de noite, com outras sessões nos intervalos, para ouvir
testemunhas, redigir relatórios, etc. Mas como não havia assistência e não
tínhamos portanto de encenar comédias retóricas, fizemos mais do que em
todos os outros congressos juntos.»^^
Marx, que actuava sempre muito bem em tabernas, dominou as sessões
e chamou a atenção sobre o facto de que, embora Bakunine tivesse prome-
tido dissolver a sua Aliança da Democracia Socialista para se juntar à Inter-
nacional, «a Aliança nunca foi realmente dissolvida e tem mantido u m a
espécie de organização». Bakunine não foi directamente condenado, mas os
delegados passaram uma moção: Nechayev, que nunca fora membro nem
agente da Internacional, «tem fraudulentamente usado o n o m e da Asso-
ciação Internacional de Trabalhadores a fim de enganar gente na Rússia».
E também mandava os bakuninistas deixarem de empregar o nome da Fe-
deração Romande, permitindo-lhes apenas formar uma secção suíça sepa-
rada com o nome de Federação do Jura.
Tinham-se mostrado tolerantes em relação a Bakunine, mas este sabia
que Marx se preparava para um ajuste de contas final, pois a Internacional
não era suficientemente grande para ambos. Pouco depois do congresso de
Londres, a nova Federação do Jura reuniu-se na cidade suíça de SonvilUer
onde houve muitas discussões sobre a «falta de representatividade» do con-
gresso de Londres. O que era verdade: 13 membros do Conselho-Geral ti-
nham marcado presença na taberna Blue Posts, mas apenas dez represen-
tavam o resto do mundo — dois suíços (ambos anti-Bakunine), um francês
e outro espanhol, e, pelo menos, seis belgas.
A reunião em Sonviliier foi, porém, ainda menos representativa: 16 de-
legados, todos pró-Bakunine. Produziram uma circular que foi distribuída
em todas as filiais da Internacional do continente europeu: «Uma verdade
que não se pode negar e que foi provada vezes sem conta é o efeito corrup-
tivo da autoridade sobre aqueles em que cujas mãos tal autoridade é posta...
292 ^ * B KJMILMARX

As funções dos membros do Conselho-Geral têm vindo a ser encaradas


como propriedade privada por uns quantos indivíduos... Tornaram-se uma
espécie de governo e consideram natural que as suas próprias ideias cons-
tituam a doutrina oficial da Associação e a única que é autorizada, enquan-
to as ideias divergentes dos outros grupos já não lhes parecem uma legíti-
ma expressão de opinião com valor igual à deles, mas sim uma autêntica
heresia.» O único remédio contra o autoritarismo, decidiram, era despojar
o Conselho-Geral do seu poder e reduzi-lo a uma simples «caixa de correio».
Nos meses seguintes, Bakunine enviou uma série de circulares histéricas
aos membros da Internacional em Espanha e Itália, apresentando-se como a
vítima de «uma conspiração de judeus alemães e russos fanaticamente dedica-
dos ao seu tirânico messias, Marx». Só a «raça latina», acrescentava lisonjeira-
mente, podia pôr fim aos planos secretos dos hebreus para dominar o mundo.

«Todo este mundo judeu constitui uma única seita de exploradores


que suga o sangue das pessoas. É uma espécie de parasita colectivo, voraz
e organizado não só através das fronteiras mas também através das di-
ferentes opiniões poiïticas. Este mundo, pelo menos em grande parte,
está actualmente nas mãos de Marx por um lado e, por outro, dos Roths-,
chüds. Sei que os Rothschilds, reaccionários como são e deveriam ser, dão
grande valor aos méritos do comunista Marx e que este, por sua vez, se
sente irresistivelmente atraído — atracção essa instintiva e cheia de res-
peitosa admiração — pelo génio financeiro de Rothschild. Essa poderosa
solidariedade judaica tem-se mantido ao longo de toda a história e une-os.»^""

Estas pútridas elucubrações eram, pelo menos, sinceras. E m 1869, ele


tinha escrito uma volumosa tirada contra os judeus («isentos de qualquer
sentido moral e de dignidade pessoal») em que nomeava somente cinco
excepções à regra: Jesus Cristo, São Paulo, Espinosa, Lassalle e Marx. E,
quando u m amigo lhe perguntou porquê Marx fora absolvido, Bakunine
explicou que queria alertar o inimigo: «Pode ser que, dentro de pouco tem-
po, tenha de lhe dar luta... Mas há tempo para tudo e a hora da batalha ainda
não chegou.» Mas, agora que essa batalha tinha começado, já não precisava
de esconder os seus verdadeiros sentimentos.
Há aqui uma distinção importante a fazer. Até à Segunda Guerra Mun-
dial, escritores populares, como Agatha Christie, faziam por vezes observa-
ções anti-semitas nos seus livros («Claro que ele é judeu, mas muito simpá-
o ELEFANTE VELHACO o d ^ 293

tico»); no entanto, nunca ninguém acusou Christie de querer eliminar seis


milhões de judeus. D o mesmo modo, o estereótipo do «judeu avarento» era
quase universal no século XIX e o próprio Marx usou-o num dos seus primei-
ros ensaios, Sobre a Questão Judaica. Bakunine, contudo, dirigia as suas vicio-
sas diatribes contra os «judeus louros» independentemente da sua religião,
métodos de negócio, classe social ou ideologia política. E n q u a n t o Marx
argumentava que a emancipação da humanidade libertaria os judeus da tira-
nia do Judaísmo, o desejo de Bakunine era apenas de os aniquilar. «Os judeus
são detestados em todos os países», escreveu numa circular à secção da Inter-
nacional em Bolonha. «Odeiam-nos tanto que, como consequência natural,
todas as revoluções populares são acompanhadas por massacres de judeus...»
Compreensivelmente, o Conselho-Geral sentiu-se obrigado a distanciar-
-se dessas tendências genocidas, em particular numa altura em que todos os
directores dos jornais europeus queriam conspurcar a Associação Interna-
cional do Operariado. E, em Junho de 1872, publicou um panfleto escrito
por Marx, A.s Fictícias Divisões na Internacional— o título era negado logo na
primeira página, pois confirmava a existência de uma divisão tão vasta como
o canal da Mancha: «Desde a sua fundação que a Internacional não atravessa
uma crise tão grave.»^^ E Bakunine era acusado de instigar uma «guerra ra-
cial» e de, como parte do seu plano anarquista, organizar sociedades secre-
tas para destruir o movimento dos trabalhadores.
Bakunine retaliou exigindo a convocação de um congresso para resolver
a disputa uma vez por todas. Como desde 1869 não tinha sido realizado ne-
nhum congresso — em primeiro lugar por causa da Guerra Franco-Prussiana,
e, depois, por causa das perseguições policiais que se seguiram à Comuna de
Paris — o Conselho-Geral dificilmente poderia recusar e, por conseguinte,
anunciou uma sessão plenária para o dia 2 de Setembro de 1872 em Haia.
Isto provocou ainda mais uivos de protesto por parte de Bakunine, que que-
ria que o congresso tivesse lugar na sua praça-forte, Genebra, mas o Con-
selho-Geral fez-lhe notar que três dos quatro congressos da Internacional
já tinham ocorrido na Suíça e que não se podia ter tudo. Bakunine decidiu,
então, boicotar o evento e instruiu os seus adeptos «para enviar os delega-
dos a Haia com "mandatos imperativos", ordenando-lhes para abandonar
o congresso por solidariedade assim que a maioria votasse a favor de Marx
sobre qualquer questão».
Depois destas escaramuças preliminares, o congresso abriu em Haia num
ambiente de frenesim conspiratório no inadequadamente chamado Salão da
294 <¿.--« líARLMARX ' .' '

Concórdia. Havia 65 delegados, mas muito mais repórteres, espiões e curio-


sos que tinham vindo para ver de perto os perigosos revolucionários, como
se estes fossem leões de circo. U m jornal belga publicou a triste noü'cia que
o Dr. Marx, padrinho do terrorismo e do caos, parecia um «cavalheiro ru-
ral». O liberal jornalista holandês, S. M. N. Calisch, assinalou que Marx tinha
parentes em Amesterdão. «Se isso é verdade, então a família não verá incon-
venientes em apresentá-lo à alta sociedade ou em tomar chá com ele no café
Zoo. Com o seu fato cinzento de flanela, tem um aspecto absolutamente cor-
recto, e quem não o conhecer e não souber da sua relação com a temida In-
ternacional, tomá-lo-á por um turista a dar um passeio a pé.»38
Mesmo assim, os ourives trancavam as lojas com medo que os comunis-
tas quebrassem as montras e roubassem as jóias. U m jornal local, o Haager-
-Dagblaad, aconselhou as mulheres e as crianças a não sair à rua.
Para consternação da polícia e da imprensa, o congresso teve início à
porta fechada, enquanto a boa intenção dos delegados era verificada. U m
espião enviou um deprimente relatório para Berlim informando que «não era
permitida a entrada no primeiro andar onde corriam as sessões e nem sequer
se conseguia ouvir uma palavra do que se passava lá dentro pela janela aber-
ta»^'. O correspondente de The Times conseguiu encostar o ouvido à fecha-
dura, mas tudo o que ouviu foi «o tilintar de uma campainha acima de uma
algazarra de vozes irritadas»'*'^. Os debates foram irados e longos: as facções
rivais gladiaram-se durante três dias para obter vantagens pondo em questão
as credenciais de quase todos os oponentes. E quando foi dito que Maltman
Barry, representante dos trabalhadores alemães de Chicago, era na realidade
um conservador londrino e «não um líder reconhecido dos trabalhadores
tagleses», Marx replicou que isso não era nenhuma novidade, pois «quase todos
os reconhecidos líderes dos trabalhadores ingleses estavam vendidos a
Gladstone» — observação que não se pode dizer ter sido calculada para ga-
nhar os votos dos representantes ingleses. N o entanto, podia, pelo menos,
confiar nos alemães e nos franceses, nas fileiras dos quais se encontrava o noivo
át Jennychen, Charles Longuet. O genro. Paul Lafargue, tinha-se manhosamente
juntado à delegação espanhola e o resto era a favor de Bakunine.
Ao cabo de uma maratona de três dias, tornou-se evidente que os anar-
quistas estavam em minoria. Alguns delegados, impossibilitados de se man-
terem afastados da sua vida profissional durante mais tempo, voltaram para
casa sem aguardar o fim dos debates e a votação, enquanto outros partiram
à procura de discussões mais estimulantes nos bordéis locais.
o ELEFANTE VELHACO * ^ 295

«Assistimos, finalmente, a uma auténtica sessão do congresso da Inter-


nacional», informou o jornal L Í Français quando as portas foram abertas ao
púbMco na noite de 5 de Setembro, «com uma assistência dez vezes superior
ao que a sala podia comportar, aplausos, interrupções, empurrões, vaias, ata-
ques pessoais, declarações extremamente radicais, mas, ao mesmo tempo, ex-
tremamente conflituosas, recriminações, denúncias, protestos, chamadas à
ordem e, por fim, o encerramento da sessão às dez horas, no meio da maior
confusão e de um calor tropical.»''^^
Apesar de Marx tentar passar despercebido e se sentar discretamente
atrás de Engels, ninguém duvidou que era aquele «cavalheiro rurab> quem
dirigia o espectáculo. Logo no primeiro debate sobre a extensão dos pode-
res do Conselho-Geral, um delegado de Nova Iorque argumentou que a
Internacional necessitava de uma cabeça forte «com miolos». Ouviram-se
risos quando todos os olhos se viraram para Marx. A moção foi aprovada:
32 votos a favor e seis contra com 16 abstenções.
Quando este resultado foi anunciado, Engels ergueu-se subitamente e
pediu licença para «fazer uma comunicação ao congresso». Perante a mani-
festa falta de unidade no seio da Internacional e a impossibilidade de recon-
ciliar franceses e espanhóis ou alemães e ingleses, ele e Marx desejavam
propor que a sede do Conselho-Geral mudasse para Nova Iorque.
Não podendo acreditar no que tinham ouvido, os delegados ficaram
sentados em silêncio estupefacto durante um minuto ou dois. No dizer de
um observador inglês. «Foi um verdadeiro golpe de Estado e todos se en-
treolhavam ã espera que um deles quebrasse o silêncio.»''^ Como a Comuna
de Paris tinha mostrado há pouco mais de um ano, a Europa era o berço do
novo movimento revolucionário: como poderia a Internacional alimentar e
educar os seus filhos do outro lado do Atiântico? O tributo de Engels à su-
perior «capacidade e zelo» do trabalho organizado nos EUA era particular-
mente pouco convincente, pois todos sabiam que, nos últimos dois anos, a
secção americana da Internacional andava preocupada com a luta contra
Victoria WoodhuU e a sua extravagante seita. Era verdade que um Conselho-
-Geral constituído exclusivamente por americanos talvez fosse palco de
menos querelas entre protagonistas, blanquistas e comunistas, mas também
não poderia contar com as poderosas qualidades intelectuais de Karl Marx.
Assim como muitos dos seus aliados votaram contra essa ideia, alguns dos
seus piores inimigos aprovaram-na por essa mesma razão. «A sua direcção
e supervisão pessoais são absolutamente essenciais», argumentou um marxis-
296 _^,>- KAR1.MARX

ta em pânico. E outro disse que mais valia então transferir a sede para a Lua.
No entanto, e graças ao veto anarquista, Marx e Engels conseguiram o que
queriam com 26 votos a favor, 23 contra e seis abstenções.
Ao exilar a Internacional para os EUA, Marx condenava-a deliberada-
mente à morte. «A estrela da Comuna já ultrapassou a sua não muito elevada
altitude mediana», comentou o Spectator, em 14 de Setembro. «E, a não ser
na Rússia, nunca a veremos novamente tão alta.»
Então, por que é que ele fez tal coisa? Historiadores marxistas têm tra-
tado a questão como um enigma sem solução, mas não há nenhum misté-
rio: ele estava simplesmente exausto pelo esforço de manter unidas as tribos
que se guerreavam. Um ou dois camaradas já estavam a par do segredo.
«Ando tão fatigado e isso interfere tanto nos meus estudos que, depois de
Setembro, penso afastar-me do "negócio"» (nome de código para o Conse-
Iho-Geral), escreveu a um amigo russo três meses antes do congresso, «é de
uma grande responsabilidade, sobremdo para mim, pois tem, como sabe, ra-
mificações por todo o mundo e eu já não consigo combinar duas coisas tão
diferentes.»'*-' Numa carta ao socialista belga César de Paepe, datada de 28 de
Maio de 1872, parecia ainda mais desmotivado: «Estou ansioso para que o
novo congresso comece. Será o fim da minha escravidão. Quando terminar,
voltarei a ser Uvre e nunca mais aceitarei funções administrativas.. .»'^"^
Marx sabia que, sem a sua presença, o Conselho-Geral se desintegraria,
mas que, antes de expirar, poderia prejudicar seriamente o comunismo. Mais
valia pôr fim ao sofrimento do animal ferido.
Após a decisão de mudar o quartel-general da Internacional para Nova
Iorque, os subsequentes debates do congresso em Haia tornar-se-iam me-
nos importantes. Mas, antes de abandonar o palco, Marx tinha encenado mais
um golpe teatral. Duas semanas antes de se deslocar à Holanda, tinha ob-
tido um documento proveniente de Sampetersburgo que parecia provar que
Michail Bukanine era um maníaco homicida. Ia agora mostrá-lo e desenca-
dear uma fogueira de vaidades final.
No Inverno de 1869, Bakunine, como de costume sem dinheiro, aceitou
300 rublos de um editor chamado Lyubavin para traduzir O Capital çxa russo.
Era difícil pensar em alguém menos inadequado para tal tarefa: além de ser
um preguiçoso incorrigível, era pouco provável que Bakunine estivesse dis-
posto a enaltecer a reputação de Marx. Mas, aparentemente, Lyubavin nada
sabia disso e, passados alguns meses, lembrou-lhe amavelmente que o ma-
nuscrito ainda não fora entregue. Como resposta, recebeu uma raivosa carta
o ELEFANTE VELHACO * ^ 297

de Sergei Nechayev, o cão de fila de Bakunine, em que este clamava agir em


nome de urna organização secreta de assassinos revolucionários. Denunciava
Lyubavin como parasita e extorsionarlo e dizia que este queria impedir Ba-
kunine de «ajudar a causa suprema do povo russo», forçando-o a fazer tra-
balhos literários. Nechayev ordenava-lhe ainda que rasgasse o contrato e não
obrigasse Bakunine a reembolsar o dinheiro — caso contrário...

«Sabendo com quem está a lidar, fará, por conseguinte, o necessário


para evitar a nefasta possibilidade de nos dirigirmos a si uma segunda vez
de forma menos civilizada... Somos muito rigorosos e calculámos o dia
exacto em que irá receber esta carta. Deverá sujeitar-se às nossas ordens
de modo a não termos a necessidade de recorrer a medidas extremas...
Depende inteiramente de si mantermos relações mais amigáveis ou ser-
mos obrigados a tomar uma atitude desagradável.»
Com os melhores cumprimentos, sinceramente seu...

Como indicação da natureza dessas «medidas extremas», Nechayev deco-


rou o papel de carta com uma pistola, um machado e um punhal.
Não é uma técnica que recomendamos a um escritor que não cumpra o
prazo de entrega. Mais tarde, Bakunine insistiu que não tinha conhecimento
dessa carta, assim como não estava a par de que Nachayev fosse procurado
pela morte de um estudante em Sampetersburgo: logo que soube a verda-
de, na Primavera de 1870, repudiou imediatamente o seu violento associa-
do. Desde então, historiadores e biógrafos aceitaram os seus protestos de
inocência, mas essa declaração de Bakunine é tão digna de confiança como
tudo o que emana dele.
A verdade encontra-se nos arquivos da Biblioteca Nacional de Paris onde,
em 1966, o professor Michael Confino descobriu uma longa carta de Baku-
nine a Nechayev datada de Junho de 1870 — quer dizer, após o pai do anar-
quismo ter, supostamente, deserdado o filho delinquente. Longe de o repu-
diar, Bakunine propunha-lhe que continuassem a conspirar e a maquinar
planos juntos com a condição de Bay (como apeüdava ternamente Nechayev)
ser futuramente mais discriminatório na escolha das vítimas. «Esta simples
regra deve constituir a base da nossa actividade: verdade, honestidade e
confiança mútua entre todos os Irmãos e em relação a todos os que possam
e desejem juntar-se à nossa irmandade; as mentiras, a manha e, se necessário.
298*1?-:' KARL MARX ' '

a violencia são reservadas aos nossos inimigos.»"^^ Eis o que pode ser dito
quanto à rejeição do «gangsterismo» feita por Bakunine.
Essa outra carta incriminatória, a de Nechayev ao pobre Lyubavin, teve
o efeito desejado quando Marx a mostrou aos delegados em Haia. No últi-
mo dia do congresso, e por uma maioria de 27 votos contra sete, foi acor-
dado que Bakunine deveria ser expulso.
A Internacional caiu em rápido declínio após a sua sede ter sido radicada
em Nova Iorque e dissolveu-se formalmente em 1876. Michail Bakunine
morreu no mesmo ano, e Nechayev, o seu Boy adorado, foi deportado da
Suíça no Outono de 1872 para a Rússia, condenado por homicídio e enviado
para a fortaleza de S. Pedro e Paulo onde, após dez anos de solitária numa
húmida masmorra, morreu com 35 anos. Marx sobreviveu a todos eles.
12

O OURIÇO TOSQUIADO

O paradoxo, a ironia e a contradição, os espíritos que animam a obra de


Marx, também constituíam a maliciosa trindade que moldaram a sua própria
vida. Supõe-se que ele teria aplaudido o credo de Ralph Waldo Emerson:
«Uma consistência insensata é o papão das mentes mesquinhas e é adorada
por estadistas, filósofos e divindades insignificantes. Com consistência, uma
grande alma não tem, muito simplesmente, nada que fazer.»
Não é surpreendente, portanto, que um homem perpetuamente sem
dinheiro através de toda a sua carreira profissional, só tenha acabado por
encontra segurança financeira quando desistiu de ganhar a vida. No Verão
de 1870, Engels vendeu a sua parte na empresa da família a um dos irmãos
Ermen e, com o lucro do negócio, garantiu ao imprevidente amigo uma pen-
são de 350 libras por ano. «Fiquei estarrecido pela tua generosa amabilida-
de», confessou Marx, espantado.
Durante duas décadas, Engels sustentou uma vasta tribo — as irmãs
Burns, a família Marx, Helene Demuth —, enquanto também escrevia e pro-
movia energicamente a sua causa política. Nunca se queixou nem sequer uma
vez. Como Jenny Marx disse: «Mostra-se sempre alegre, saudável, vigoroso,
bem disposto e gosta imenso de beber cerveja (em particular a vienense).»^
Acompanhado por Lizzy Burns e a sua retardada sobrinha, Mary EUen (Pumps)
— mais uma pobre coitada por quem tinha assumido a responsabilidade —
Engels mudou-se para Londres, alugando uma elegante casa em Regent's
Park Road, 122.
Nem todas as ironias do destino foram tão benignas. Os anos de conflito
na Internacional tinham dado a Marx uma violenta alergia aos socialistas
300 i p * ICARLMARX

franceses, os quais tivera a esperança de curar ao demitir-se do Conselho-


-Geral; mas agora, castigo do destino, dois desses irritantes indivíduos eram
seus genros. A 2 de Outubro de 1872, um par de semanas depois do con-
gresso em Haia, Jemjcòen tinha-se casado com Charles Longuet numa ceri-
mónia civil em São Pancrácio.
A mãe da noiva, que nem sempre partilhava dos mais extremos precon-
ceitos de Karl, aprovou o casamento de pleno agrado. Quase tudo nos fran-
ceses a irritava — a sua hauteur, o seu élan, o seu savoir faire, as suas idées fixe
as suas grandes passions e, muito provavelmente, um certo^é' ne sais quoi.
«Longuet é muito dotado», escreveu a Liebknecht quando o noivado foi
anunciado. «É um homem bom, honesto e decente... Mas não consgo en-
carar a sua união sem um certo desconforto, e teria realmente preferido que
a Jenny tivesse escolhido (por uma vez) um inglês, ou um alemão, em vez de
um francês, o qual, embora possua todas as encantadoras qualidades do seu
país, também tem as suas fraquezas e incapacidades.»^
Como era de esperar. Longuet provou ser um bruto enfadonho e egoís-
ta que condenou a mulher à lida da casa. «Apesar de eu trabalhar como um
preto», confessou ela à irmã, Eleanor. «Ele passa o tempo a gritar comigo
e a resmungar sempre que está em casa.»^ Para Karl Marx, a única consola-
ção desse casamento miserável foi o nascimento de netos — cinco rapazes,
um dos quais morreu em tenra idade —, e o facto de Longuet ter um orde-
nado regular como professor na Universidade de Londres. (Dois anos an-
tes do casamento, quando as finanças da família estavam bastante em bai-
xo. Jennychen vira-se forçada a procurar trabalho com governanta.)
O marido de Laura, em contrapartida, parecia ser um caso perdido. Paul
Lafargue tinha abandonado os estudos de medicina porque a morte dos três
filhos o fizera perder a confiança nos médicos; dedicou-se aos negócios e com-
prou a patente de um «novo processo de emulsão fotográfica». O empreendi-
mento foi prejudicado desde o princípio por causa das constantes discussões
com o sócio, o refugiado da Comuna, Benjamin Constant Le Moussu, e, para
salvar a honra da família, Marx viu-se na obrigação de adquirir a parte de Lon-
guet (financiado, inútil será dizer, pelo bom velho Engels). Mais tarde, o pró-
prio Marx desentendeu-se com Le Moussu sobre a propriedade de uma deter-
minada patente. Em vez de suportar o embaraço e a despesa de recorrer ao
tribunal, decidiram submeter a disputa ao arbítrio particular de um advogado de
esquerda, Frederic Harrison, o qual menciona o episódio nas suas memórias:
o OURIÇO TOSQUIADO a < ^ 301

«Antes de fazerem qualquer depoimento, pedi-lhes que prestassem


juramento sobre a Bíblia, conforme é requerido por lei. Ambos ficaram
horrorizados. Marx protestou que não se rebaixaria a tal coisa e Le Moussu
declarou que nunca seria acusado de cometer um acto tão vu. Discutiram
durante meia hora, cada um deles recusando ser o primeiro a prestar
, juramento na presença do outro. Consegui, por fim, convencê-los a che-
gar a um compromisso: tocariam ao mesmo tempo na Bíblia sem pro-
: ferir uma palavra. Pareceu-me que, assim como Mefistófeles na cena da
ópera em que tem de enfrentar a cruz, ambos receavam a poluição do
livro sagrado. Q u a n d o chegou a altura de apresentarem o caso, foi o
esperto Le Moussu quem ganhou pois as provas dadas por Marx eram
. totalmente confusas.»"*

í Esta derrota fortaleceu a convicção de Marx de que, por debaixo das suas
«peneiras francesas», os socialistas parisienses eram todos uma cambada de
mentirosos e velhacos. Le Moussu foi imediatamente incluído no seu bes-
tiario particular de gente desonesta e classificado de vigarista, «que extorquiu
elevadas somas de dinheiros a mim e a outi-os e que, depois, recorreu a in-
fames calúnias para limpar a sua reputação e se apresentar como uma pes-
soa inocente cuja magnânima alma não fora devidamente apreciada»^. Mas,
muito em breve, a ira de Marx virou-se contra Paul Lafargue, o pateta incom-
petente que o tinha metido neste sarilho. A parte as suas «fraquezas e inca-
pacidades», tanto Lafargue como Longuet eram uns irresponsáveis que re-
cusavam dar ouvidos aos numerosos conselhos e sermões do exasperado
sogro. «Longuet c o m o último proudhonista e Lafargue c o m o o último
bakuninista!», queixou-se a Engels. «Que o diabo os carregue a ambos!»"^
Que franceses lhe tivessem tirado duas filhas podia ser considerado uma
desgraça; mas perder uma terceira às mãos dessa gente era impensável. Pode-
-se portanto imaginar a reacção de Marx quando Eleanor se apaixonou pelo
elegante Hippolyte Prosper Olivier Lissagaray, o qual, com 34 anos, tinha
exactamente o dobro da idade dela. Lissagaray teve a infelicidade de chegar
a Modena Villas quando as guerras gaulesas contra Lafargue e Longuet já ti-
nha começado; em outras circunstâncias, ele até talvez fosse bastante acei-
tável. «Com uma única excepção, todos os livros que até agora apareceram
sobre a Comuna são lixo. Essa excepção à regra-geral, é a obra de Lissagaray»,
disse Jennjchen aos Kugelmanns em 1871, repetindo, aparentemente, a opi-
nião do pai.^
302 4£5^. KARL MARX ^' '

Quando, anos mais tarde, Lissagaray publicou uma História da Comuna


mais completa, Marx chegou a ajudar Eleanor a preparar uma tradução em
inglês. No entanto, o homem era indubitavelmente francês: caracol colado
à testa, sorriso desdenhoso e ostentação negligente, tudo parecia indicar um
individualista caprichoso. Lissagaray tinha por conseguinte de dar provas de
que poderia vir a ser um marido responsável. «Nada lhe pedi», escreveu Marx
a Engels, «a não ser provas, em vez de palavras, que era melhor do que a sua
reputação e que havia boas razões para confiar nele... A chatice é que tenho
de ser muito circunspecto e indulgente por causa da minha filha.»^
Não era verdade: proibiu 'Tussy de ver Ussa durante longos períodos
enquanto a realmente circunspecta e indulgente Jenny Marx era cúmplice do
seu namoro secreto. Mas esses encontros às escondidas agravavam ainda
mais a dor da separação. Em Maio de 1873, Eleanor aceitou um posto de
ensino num seminário para senhoras em Brighton, na esperança de escapar
ao pai (e, possivelmente, à sua dependência financeira); regressou a casa por
volta de Setembro com uma depressão nervosa. Se tivesse de escolher en-
tre o pai e o amante, não poderia desafiar a força gravitacional da devoção
filial -— mas porquê essa escolha deveria se imposta? Uma carta que deixou
em cima da secretária do pai uns meses mais tarde revelou o seu desespero
e eterna obediência:

Meu «'^//o querido Mo//rö,


Vou pedir-te uma coisa, mas, primeiro, quero que me prometas não
ficar muito zangado. Quero saber, querido Mouro, quando poderei vol-
tar a ver L. Custa-me tanto nunca o ver. Faço o possível por ser paciente,
mas é tão difícil que sinto que não consigo aguentar mais. Não espero que
digas que ele pode vir cá. Nem sequer devo desejar tal coisa, mas não
poderei eu ir dar um passeio com ele de vez em quando?...
Quando me encontrava muito doente em Brighton (numa altura em
que desmaiava duas ou três vezes ao dia), o L. veio ver-me e, após cada
visita, sentia-me mais forte e feliz; e mais capaz de suportar o pesado
fardo sobre as minhas costas. [Marx, evidentemente, não estava a par de
tais visitas.] Há tanto tempo que não o vejo que, apesar de todos os meus
esforços para ser alegre, estou a começar a sentir-me muito infeliz.
De qualquer modo, meu muito querido Mouro, se não posso vê-lo
agora, podes pelo menos dizer-me quando o poderei fazer. Dar-me-ia es-
perança e seria menos difícil ter de esperar.
o OURIÇO TOSQUIADO ^ 303

Meu queridíssimo Mouro, por favor não te zangues por eu ter escrito
isto e perdoa-me ser egoísta ao ponto de te causar novas preocupações.
Tua,
Tussy.'

Marx recusou ceder.


E Eleanor, a exemplo do pai, tentou distrair-se mantendo-se ocupada.
Inscreveu-se num curso de actores dado por uma certa Sra. Vezin, na espe-
rança de iniciar uma carreira no palco e realizar o seu sonho de infância;
juntou-se, depois, à Nova Sociedade de Shakespeare e à Sociedade Browning,
dois dos muitos grupos fundados pelo professor socialista Fredrick James
Furnivall; como Marx antes dela, descobriu o caloroso santuário do Mu-
seu Britânico, dedicando-se à pesquisa e a traduções. (Foi enquanto traba-
lhava na sala de leitura que conheceu um jovem irlandês chamado, George
Bernard Shaw, recentemente chegado a Inglaterra, que se tornou num b o m
amigo.) Anos mais tarde, após ter dado um recital no decorrer do encontro
anual da Sociedade Browning, em Junho de 1882, escreveu excitadamente
2. Jennychen:

«O local estava à cunha — e, ao ver todos a aqueles literatos e gente


fina, senti-me ridiculamente nervosa, mas prossegui. A Sra. Sutherland
O r r (irmã de Frederick Leighton, o presidente da Academia Real) quer
que eu vá com ela visitar Browning e lhe recite os seus próprios poemas!
Também me convidaram para ir esta tarde a uma festa em casa de Lady
Wilde. E mãe daquele jovem muito malcriado, Oscar Wilde, que tem
andado a fazer uma tal figura de burro nos EUA. Como o filho ainda não
regressou é muito simpática, sou capaz de lá ir.
Que coisa maravilhosa é o entusiasmo!»^"

Os pontos de exclamação, bem como o facto de citar gente conhecida,


são dignas de Charles Footer.
Apesar do entusiasmo lhe trazer alguma alegria e consolação, isso não
podia distraía-la completamente do romance com Lissagaray. O que mais
pesava a Eleanor era que Jenny, que nunca a tinha compreendido, fosse tão
simpática com ela enquanto o adorado Mouro parecia nem sequer reparar no
seu sacrifício — muito embora «os nossos temperamentos fossem tão iguais».
Como muitas visitas notaram, também havia uma espantosa semelhança
304-, KARI.IVIARX

física entre os dois: uma testa baixa e larga por cima de olhos brilhantes e
escuros, e um nariz proeminente. Se desenharmos uma barba numa fotogra-
fia de Eleanor, teremos diante de nós a imagem do jovem Karl Marx. «In-
felizmente, só herdei o nariz do meu pai», costumava ela brincar. «E não o
seu génio.»"
Quando comparava as filhas, Marx reconhecia que «Jenny é a que se
parece mais comigo, mas Tiissy sou eu exactamente». Seguindo o exemplo
dele, Eleanor tentava acalmar os nervos fumando sem parar, hábito bastante
comum entre gente literária, mas raro e chocante para uma menina bem
educada da época vitoriana.
Até mesmo as maleitas de pai e filha se sincronizavam de forma estranha.
As depressões de Tussy manifestavam-se através de dores de cabeça, insónias
e quase todos os outros sintomas (excepto furúnculos). «Nem o papá, nem
os médicos, nem ninguém hão-de jamais compreender uma coisa», queixa-
va-se Eleanor. «O que me afecta são sobretudo preocupações de ordem
mentab> — estranho lapso para um homem que tinha uma vez admitido que
«a origem da minha doença é a mente»^^. Durante a maior parte da década
de 1870, estes semi-invaHdos percorreram as termas da Europa à procura de
tratamento, mas é difícil não chegar à conclusão que eles prejudicavam a
saúde um do outro.
Em Agosto de 1873, quando Tussy tinha repetidos desmaios em Brighton,
Marx escreveu a um camarada em Sampetersburgo a seguinte carta, «Há
meses que sofro imenso e durante algum tempo pensei que o meu estado de
saúde era crítico por causa do excesso de trabalho. A minha cabeça estava
tão gravemente afectada que julguei que iria ter um ataque.. .»^-^ Duas sema-
nas mais tarde, ao tomar uma colher de vinagre de amora na esperança de
melhorar, engasgou-se. «O meu rosto enegreceu, etc. Mais um segundo e eu
teria morrido.»^* Após o regresso de Tussy a Londres, ele começou a pensar na
«séria possibilidade de ter uma apoplexia»". Ao princípio, o médico julgou que
ele talvez tivesse sofrido um ataque cardíaco, mas, depois, chegou à conclu-
são de que se tinha tratado de exaustão nervosa. A 24 de Novembro, e para
alívio de Jenny Marx, pai e filha foram para umas termas em Harrogate.
Ambos desfrutaram as três semanas de repouso e banhos, mas Marx não
poupou o seu torturado cérebro e passou o tempo a 1er Saint-Beuve, autor
que nunca apreciara. «Este homem deve ter-se tornado famoso em França
porque encarna, sob todos os aspectos, a vanitéítancesã... pavoneando-se
em trajes românticos e falando idiomas recentemente cunhados», escreveu
o OURIÇO TOSQUIADO ^^305

a Engels. «Não era o livro ideal para o fazer esquecer aquele outro francês
por quem a filha estava apaixonada. Mas parecia estar bastante alegre, e isso
apesar do facto de ter uma crise de furúnculos ao chegar a Modena Villas e
os jornais publicarem uma série de mexericos a propósito da sua saúde. «Não
dando sinais de vida, eu mesmo permito que a imprensa inglesa noticie a minha
morte de vez em quando», explicou a Kugelmann. «Estou-me nas tintas para
o púbMco e, se por vezes a minha doença é exagerada, isso tem a vantagem
de me poupar toda o tipo de solicitações (teóricas e outras) por parte de
pessoas que não conheço e provenientes dos quatro cantos do mundo.»^^
Ao regressar a Londres, tinha passado um dia em Manchester para ser
examinado por um amigo de Engels, o Dr. Eduard Gumpert, que detectou
«uma certa dilatação do fígado» e lhe recomendou uma temporada na cida-
de termal de Carlsbad, na Boémia. Como isso o obrigava a atravessar a Ale-
manha e arriscar-se a ser preso como elemento subversivo, Marx achou que
não era possível. Mas teve então uma ideia: um refugiado que vivia em In-
glaterra há mais de um ano tinha direito à nacionalidade britânica e usufruía,
por conseguinte, de toda a protecção de Sua Majestade Britânica contra os
guardas da fronteira. Após ter submetido o seu requerimento ao Ministério
do Interior, juntamente com atestados de quatro vizinhos de Hampstead a
testemunhar a sua «idoneidade moral», ele e Eleanor partiram para a Alema-
nha a 15 de Agosto de 1874, julgando que o certificado de naturalização lhe
seria remetido dentro de alguns dias. A 26 de Agosto, contudo, o secretário
do Ministério do Interior escreveu-lhe para o informar que o seu pedido fora
rejeitado. Não foi dado nenhum motivo, mas uma carta confidencial de 17
de Agosto enviada pela Scotland Yard ao Ministério do Interior e actual-
mente no Departamento de Arquivos Públicos, revela o seguinte:

Cari Marx — Naturalização

Com referência ao assunto acima, informo que se trata de um famoso


agitador alemão, Hder da Internacional e defensor de princípios comunistas,
e que não tem sido leal em relação ao seu próprio rei e país.
Os abonadores, Srs. Seton, Matheson, Manning e Adcock são cidadãos
britânicos e respeitáveis e os atestados por eles assinados quanto ao interes-
sado estão correctos.
W Reimers, sargento
R Williamson, superintendente"
306%^ KARL MARX

Deu-se o caso de Marx chegar a Carlsbad sem ter de solicitar a assistência


da rainha Victoria nem dos seus plenipotenciarios — provavelmente por ir
acompanhado de Eleanor, cidadã britânica por nascimento. Mas mostrou-
-se prudente e registou-se no Hotel Germania sob o nome de «Sr. Charles
Marx», para que ninguém descobrisse a sua identidade. Apesar da poiïcia
local se aperceber imediatamente de quem ele era, foi obrigada a admitir
que Marx não dera motivos de suspeita depois de ter passado um mês a vigiá-
-lo constantemente — o que não era de surpreender, pois o seu tratamento
não lhe dava tempo para fomentar uma revolução entre os pacientes e os
médicos.
«Ambos seguimos rigorosamente os regulamentos», escreveu a Engels.
«Vamos para as nossas fontes respectivas às seis da manhã e bebemos sete
copos de água. D e dois em dois copos temos de fazer uma pausa de um quarto
de hora, durante a qual andamos de um lado para o outro. Depois do último
copo, passeamos durante uma hora e, finalmente, tomamos café. E, à noite,
bebemos mais outro copo de água antes de nos deitarmos.»^*^ A tarde, explo-
ravam as falésias de granito arborizadas de Schlossberg e os outros pacientes
ficavam escandalizados por ver Eleanor a fumar cigarro atrás de cigarro.
Toda aquela água mineral deve ter feito maravilhas ao fígado de Marx,
mas também lhe causava uma grande irritação — a qual não melhorou com
a chegada de Ludwig e Gertrude Kugelmann que se instalaram no quarto ao
lado. Ultimamente, andava cada vez mais irritado com o carácter enfadonho
e as indiscrições deste autodenominado discípulo e, agora, não conseguia
dormir porque ouvia, através das finas paredes do hotel, Herr Kugelmann
a ralhar com a mulher. «Perdi finalmente a paciência quando ele começou a
impor-me essas cenas domésticas», escreveu Marx a Engels. <A. verdade é que
este arquipedante, este mesquinho filisteu burguês meteu na cabeça que a
mulher não o compreende; que é incapaz de compreender o seu carácter
digno de Fausto com as suas elevadas aspirações e é por isso que ele ator-
menta da maneira mais repulsiva a pobre coitada, a qual, em todos os aspec-
tos, é superior a ele.»^'' Marx acabou por mudar para um quarto num andar
mais alto e nunca mais voltou a dirigir a palavra ao Dr. Kugelmann.
Era de esperar que Marx tivesse perdido a cabeça com o tédio e estrei-
teza de espírito que reinavam nas termas, mas a verdade é que em breve se
tranformou num aficionado e, em 1875 e 1876, voltou a passar férias em
Carlsbad; mais tarde, quando as leis alemãs anti-socialistas tornaram a via-
o OURIÇO TOSQUIADO ^^307

gem demasiado perigosa, transferiu o seu afecto para a insuperavelmente


burguesa ilha de Wight, as termas preferidas da rainha Victoria e de Lorde
Tennyson. Onde quer que fosse, os outros visitantes ficavam espantados ao
dar-se conta de que o aterrador papão comunista era, na realidade, a alma da
festa. No decorrer da sua visita a Carlsbad, em 1875, um jornal vienense
descreveu-o com sendo o contador de histórias mais popular da cidade:

«Tem sempre a palavra justa, um atraente sorriso e a piada mais engra-


çada. Se partilhamos a sua sociedade acompanhados por uma senhora de
espírito — as mulheres e as crianças são os melhores agentsprovocateurs em.
conversas, pois apreciam as generalidades e favorecem os encontros pes-
soais —, Marx brinda-nos com punhados de ricos tesouros da sua me-
mória. Prefere falar do tempo passado quando o romantismo entoava o
seu último canto livre, quando... Heine trazia poemas com a tinta ainda
fresca no bolso.»^*^

Signficativamente, o mesmo jornal informava que «Marx tem agora 63


anos» quando, na verdade, contava apenas 57. Três anos mais tarde, um
entrevistador do Chicago Tribune sublinhava que «ele devia ter mais de 70
anos». Embora ainda a trabalhar nos dois volumes seguintes de O Capital
quando o médico lho permitia, era como se ele tivesse tacitamente aceite a
derrota e, satisfeito por limitar-se a cumprir o seu papei e a recordar, se
dedicasse, agora, a contar histórias benignas. Os anos de militância apaixo-
nada — panfletos e petições, reuniões e manobras — tinham terminado.

Com as duas filhas mais velhas casadas e instaladas algures em Hampstead,


a vivenda em Maitland Park Road tinha-se tornado demasiado grande para
as necessidades do seu reduzido ménage. Em Março de 1875, os restantes
membros da casa — Karl, Jenny, Eleanor, Helene — mudaram-se para o
número 44 da mesma rua, uns cem metros mais longe. Era uma casa de
quatro andares e um terraço, ligeiramente mais pequena e muito mais bara-
ta, onde Marx morou até morrer.
A medida que envelhecia, os hábitos de Marx tornaram-se mais mode-
rados e regulares. Já não tinha energia para as tabernas cheias de gente de
Tottenham Court Road, épicas partidas de xadrez ou para passar a noite
inteira sentado à secretária. Como qualquer outro cavalheiro da classe mé-
dia, acordava a horas convencionais, üa The Times enquanto tomava o peque-
3 0 8 ^ 0 KARL MARX

no-almoço e, depois retirava-se para o seu gabinete onde passava o resto do


dia. Ao anoitecer, vestia o seu manto preto e punha o chapéu de feltro na
cabeça e passeava pelas ruas de Londres durante mais ou menos uma hora.
Estava agora muito míope e, às vezes, ao voltar desses passeios, metia a chave
na porta da casa de um vizinho.
O s domingos eram dedicados à famíMa: roast-heef ao almoço (maravilho-
samente cozinhado por Helene) seguido por uma longa caminhada até Heath
juntamente com Lauta., Jennjcòen e os filhos desta. August Bebei, u m dos
fundadores da democracia social alemã, foi «agradavelmente surpreendido
ao reparar nos m o d o s afectuosos e ternos com que Marx, descrito nessa
época como o pior dos misantropos, brincava com os netos e no amor que
estes lhe manifestavam»^^ Aos 18 meses, o pequenino Edgar Longuet fora
apanhado a mordiscar um rim cru julgando que era chocolate — e mesmo
depois de o prevenirem do engano, continuou a mastigá-lo. Marx alcunhou-
-o logo de Wo/f, alcunha que foi mais tarde mudada para Mr. Tea por causa
da sua sede insaciável.
As visitas eram desencorajadas a aparecer durante o dia, excepto ao do-
mingo, mas como o médico (e a mulher) não o deixavam trabalhar de noi-
te, ele adorava desempenhar o papel de anfitrião cordial ao jantar, servindo
vinho e contando histórias aos peregrinos estrangeiros que vinham conhe-
cer o grande homem.
«Era muito afável», recordou o revolucionário russo, Nikolai Morozov.
«Ao contrário do que me garantiram muitas vezes, não achei que tivesse ar
distante nem enfadado.»^'^
Todos os que visitaram Maitland Park Road, descobriram a mesma coi-
sa espantosa: havia um gatinho brincalhão e a ronronar por debaixo daque-
la juba leonina. «Não era nada como a imagem que eu tinha feito dele e falava
com o tom de voz calmo e impassível de um patriarca», declarou o jornalis-
ta alemão Eduard Bernstein. «Das descrições que tenho ouvido contar prin-
cipalmente, devo confessar, pelos seus inimigos, esperava encontrar u m
velho enfadonho e irasdvel, mas deparei com um cavalheiro de cabelo bran-
co, cujos olhos pretos e risonhos eram amigáveis e as palavras doces. Quando
uns dias mais tarde exprimi a minha surpresa a Engels, este disse-me: «Bem,
mas olha que o Marx ainda pode levantar um vendaval.»^^
Outro socialista alemão, Karl Kautsky, chegou a Maitiand Park Road,
quase catatónico de ansiedade, pois tinha ouvido contar uma data de histó-
rias sobre essas tempestades. Tinha medo de fazer figura de parvo — como
o OURIÇO TOSQUIADO ^^309

o jovem Heinrich Heine que, ao conhecer Goethe, ficou tão intimidado que
só conseguiu falar das deliciosas ameixas que se encontravam ao longo da
estrada entre Jena e Weimar. Mas Marx não era de modo algum tão distante,
ou antipático, como o velho Goethe, e recebeu Kautsky com um sorriso ami-
gável, perguntando-lhe se era parecido com a mãe, a popular escritora, Minna
Kautsky. Nem por isso, respondeu Kautsky jovialmente sem se aperceber
que Marx, o qual antipatizara de imediato com os seus ruidosos modos
juvenis, felicitava mudamente a Sra. Kautsky pela sorte que tinha tido.
«Independentemente do que Marx possa ter pensado de mim», escreveu
Kautsky muitos anos mais tarde. «A verdade é que nunca me manifestou o
mais pequeno sinal de má vontade.»^''^ Como Marx, em privado, considera-
va Karl Kautsky um «medíocre imbecil», tal tolerância prova que o seu
carácter se tornara mais ameno.
Já não se arreliava com as difamações nem com as faltas de precisão dos
seus adversários. «Se tivesse de contestar tudo o que tem sido dito e escrito
sobre mim», confessou a um entrevistador americano em 1879. «Precisaria
de uma data de secretários.»^^ Uma biografia «tendenciosa» publicada por um
editor de Haarlem foi desdenhosamente ignorada. «Não respondo a pica-
das», explicou ao ser convidado para comentar o Uvro por um jornal holan-
dês. «Na minha juventude, reagia por vezes com violência, mas uma pessoa
torna-se mais sensata com a idade e não desperdiça energia inutilmente.»^''
A idade também lhe conferia eminência; até mesmo os ingleses, que o tinham
ignorado durante 30 anos (quando não o denegriam como assassino), come-
çavam agora a manifestar certa curiosidade e respeito pela sua pessoa. Em
1879, a princesa coroada, Victoria, filha da rainha inglesa e mulher do futu-
ro imperador alemão, Frederico Guilherme, pediu a um velho político libe-
ral que lhe contasse o que sabia sobre esse tal Marx. O membro do Parlamen-
to, Sir Mountstuart Elphinstone Grant Duff, teve de admitir que nada sabia,
mas prometeu que iria convidar o «Doutor Terrorista Vermelho» para almo-
çar e que, depois, a viria informar.
A julgar pelas posteriores cartas de Sir Mountstuart à princesa, Marx
portara-se lindamente durante o almoço de três horas que tivera lugar no
Devonshire Club, em St. James.

«É baixo e tem barba e cabelo grisalhos que contrastam de forma es-


tranha com o bigode ainda preto. O rosto é um pouco arredondado, a
testa ampla e bem desenhada — o olhar duro, mas toda a sua expressão
310^^ KARLMARX

é agradável e de m o d o algum a de um homem que, ao contrário do que


a polícia pensa dele, tem por hábito comer crianças de berço ao pequeno-
-almoço.
A sua conversa é a de uma pessoa culta e bem informada — interes-
sa-se imenso por gramática comparada, o que levou a estudar eslavo
antigo e outros tópicos pouco comuns — variada e com apartes de hu-
mor cáustico...»^^

Depois de esgotar as possibilidades da gramática eslava, Marx começou


a falar de poKtica. Previa a irrupção de «acontecimentos graves e próximos»
na Rússia, reformas e o fim do czarismo e, depois, uma revolta contra «o
sistema miutar em vigoD> na Alemanha. Quando Grant Duff sugeriu que os
governantes da Europa poderiam antecipar-se à revolução reduzindo a sua
despesa em armamento e aliviando, desse modo, o fardo económico sobre
o povo, Marx assegurou-lhe que isso era impossível devido a «toda a espé-
cie de receios e invejas». «À medida que a ciência for progredindo, esse far-
do tornar-se-á cada vez pior», declarou. «Pois os melhoramentos na arte da
destruição acompanharão o progresso e, todos os anos, mais dinheiro será
investido em dispendiosos engenhos de guerra.»
Está bem, concordou Grant Duff, mas, se houver de facto uma revolu-
ção, esta não concretizará necessariamente todos os sonhos e planos dos
comunistas. «Certamente», respondeu Marx. «Mas todos os grandes movi-
mentos são lentos. Será certamente um passo em frente em direcção a uma
vida melhor como aconteceu com a vossa revolução de 1688.» Touché!
Apesar de ignorar que os seus comentários seriam anotados, Marx foi
suficientemente prudente e sensato para evitar as pequenas armadilhas do
astucioso político inglês. Conforme Sir Mountstuart informou mais tarde a
princesa:

«No decorrer da conversa, Karl Marx mencionou várias vezes Sua Al-
teza Imperial e a princesa coroada sempre com o devido respeito. E mes-
m o quando falou de indivíduos eminentes de forma menos respeitosa
nunca manifestou azedume nem má-fé — muitas críticas azedas e corro-
sivas, mas nada que se compare ao tom que Marx emprega normalmente.
Falou como qualquer pessoas respeitável faria de todas as horríveis
coisas atribuídas à Internacional...
o OURIÇO TOSQUIADO 0^311

E m resumo, e tendo em conta que as suas opiniões são o oposto das


minhas, devo admitir que a minha impressão não foi totalmente desfa-
vorável e teria muito prazer em voltar a encontrar-me com ele. N ã o será
Karl Marx, quer ele queira ou não, que virará o mundo ao avesso...»

E m momentos mais deprimentes, Marx receava por vezes a mesma coisa.


«Tinha deparado com a exacta descrição da sua ansiedade no romance de
Balzac, A Obra-Prima Desconhecida, história de um artista brilhante tão obce-
cado pela perfeição que passou muitos anos a pintar e retocar o retrato de
uma cortesã, a fim de conseguir «a representação mais completa da realida-
de» ^^. Mas, quando mostra a obra-prima a u m amigo, todo o que vêem é uma
massa disforme de cor e linhas desenhados ao acaso. «Nada! Nada! Após dez
anos de trabalho...» Acaba por lançar o quadro às chamas — «o fogo de
Prometeu» — e morre nessa mesma noite.
N o entanto, a obra-prima desconhecida de Karl Marx tinha, pelo menos,
um leitor famoso que a apreciava — ou assim julgava. E m Outubro de 1873,
uns meses depois da publicação da segunda edição alemã de O Capital, tinha
recebido a seguinte carta:

Downe, Beckenham, Kent


Caro Senhor:
Agradeço-lhe a honra que me fez ao enviar-me a sua grande obra, O
Capital, e desejaria de todo o coração ser mais digno de a receber para
melhor compreender os importantes e profundos temas da economia
política. Embora os nossos respectivos interesses sejam bastante diferen-
tes, acredito que ambos desejamos honestamente propagar o conheci-
mento. A longo prazo, esta obra não deixará certamente de tornar a
humanidade mais feliz.
Fielmente seu.
Charles Darwin^^

Marx e Darwin foram os dois mais influentes e revolucionários pensa-


dores do século XX; e, como viviam apenas a uns 30 quilómetros de distân-
cia um do outro, durante a maior parte da sua idade adulta e tinham vários
amigos comuns, a tentação de procurar um elo de ligação entre eles é difícil
de resistir. Engels fez essa conexão no cemitério de Highgate quando o cai-
xão de Marx estava a ser baixado para a cova. «Assim como Darwin deseó-
312 "-^w KARL MARX

briu a lei da evolução da natureza humana», declarou. «Também Marx des-


cobriu a lei da evolução da história humana.» O pequeno grupo de pessoas
presentes incluía um amigo íntimo de Darwin e Marx, o professor Edwin Ray
Lankester, o qual, aparentemente, não fez qualquer objecção contra esta
associação entre o evolucionista e o revolucionário. E o próprio Marx, o
único que podia ter protestado, não estava em situação de o poder fazer.
A sua reacção à obra de Darwin, A Origem das Espéães, publicada em 1867,
parece justificar a opinião póstuma de Engels. «Apesar de ser redigido em
estilo rudimentar», escreveu em Dezembro de 1860, «este Hvro contém os
fundamentos da história natural.»^'' Um mês mais tarde, Marx disse a Lassalle
que «o livro de Darwin é extremamente importante e constitui a minha base,
em história natural, para a luta de classes em história»^^ Mas o seu entusias-
mo inicial modificou-se e diluiu ao longo dos anos seguintes: embora a «luta
pela sobrevivência» de Darwin possa ser aplicada à fauna e à flora, como
explicação da sociedade humana conduzia à fantasia malthusiana que o
excesso de população era a força motriz da economia poKtica.
O ódio de Marx por Malthus obrigou-o a refugiar-se numa teoria ainda
mais aberrante, proposta pelo naturalista francês Pierre Trémaux, em 1865.
No seu livro Origem e Transformação do Homem e Outros Seres, Trémaux pos
lava que a evolução era governada por transformações geológicas e quími-
cas do solo. Esta ideia atraiu pouca atenção na época e, agora, está totalmente
esquecida, mas Marx não pensou em outra coisa durante algumas semanas.
«Representa um progresso muito significativo em relação a Darwin», escreveu.
«Pois determinadas questões, como a nacionalidade, etc., só aqui foi encon-
trada uma base na natureza.»^^
Assim como o segredo de como «o tipo comum de negro é uma degene-
ração de um tipo muito mais elevado» podia ser encontrado nas savanas po-
eirentas de Africa, a «formações à superfície» da paisagem russa transforma-
ra os eslavos em tártaros e mongóis. Engels, que habitualmente exprimia as
suas críticas a Marx o mais delicada e respeitosamente possível, não se deu ao
trabalho de ocultar a opinião de que o seu amigo tinha perdido a cabeça. Pouco
tempo depois, Trémaux foi discretamente retirado do panteão marxista e
Darwin reabilitado. A edição de O Capital, que ele enviou em 1872 com a ins-
crição ao «Sr. Charles Darwin da parte do seu sincero admirador, Karl Marx»,
incluía uma nota de rodapé referindo-se à influência de :A Origem das Espécies.
Se não fosse por causa de outra carta, a qual foi encontrada há 70 anos
e que, desde então, tem iludido inúmeros historiadores marxistas, o episó-
o OURIÇO TOSQUIADO a < ^ 313

dio da associação entre Marx e Darwin poderia ter terminado nessa altura.
A data dessa carta é de 13 de Outubro de 1880:

Downe, Beckenham, Kent


Caro Senhor:
Agradeço-lhe imenso a sua amável carta assim como a encomenda
junta. A publicação, sob qualquer forma, das suas observações sobre os
meus escritos não necessitam de qualquer consentimento da minha parte.
Seria ridículo da minha parte. Preferia que o capítulo, ou volume, não me
fosse dedicado (embora lhe agradeça a honra que me faz), pois isso im-
plicaria, até certo ponto, a minha aprovação da publicação em geral quan-
to à qual nada sei — além do mais, e embora seja um vigoroso defensor
do livre pensamento em todos os assuntos, parece-me (quer correcta-
mente ou não) que directos argumentos contra o cristianismo e a cren-
ça numa criação divina não produzem qualquer efeito sobre o púbHco;
a liberdade de pensamento é melhor promovida pela gradual iluminação
da mente humana, a qual segue o progresso da ciência. Por conseguinte,
evitei sempre escrever sobre a religião e tenho-me limitado à ciência.
Posso, contudo, ter sido indevidamente influenciado pelo pesar que daria
a alguns membros da minha família se apoiasse de forma directa quais-
quer ataques contra a religião — Lamento recusar o seu pedido, mas
estou velho, restam-me poucas forças para 1er provas tipográficas (como
me dei conta pela presente experiência) fatiga-me muito.
Queira aceitar, caro Senhor, os meus melhores cumprimentos.
Seu, Ch. Darwin^^

Esta carta foi publicada pela primeira vez em 1931 num jornal soviéti-
co. Sob a Bandeira do Marxismo, o qual formulou a hipótese de a «encomen-
da» ter sido dois capítulos da edição inglesa de O Capitúlele tinham a ver com
a teoria da evolução. É evidente que isso é absurdo, pois o livro só foi tra-
duzido para o inglês em 1886, três anos depois da morte de Marx.
E, a seguir, Isaiah Berlin aumentou ainda mais a confusão, afirmando no
seu influente ensaio sobre Marx, publicado em 1939, que fora a edição origi-
nal alemã que Marx tinha querido dedicar a Darwin, «por quem tinha uma
maior admiração intelectual do que por qualquer outro dos seus contempo-
râneos». Segundo Berlin, «Darwin declinou a honra numa carta deUcada e
prudente, dizendo que, infelizmente, nada sabia de economia, mas desejando
314^^ KARL MARX .. ':

ao autor boa sorte para alcançar o que ele assumia ser o objectivo comum
de ambos — o progresso do conhecimento humano»^'*. Berlin conseguiu,
assim, fundir as duas cartas numa, negligenciando completamente o facto de
O Capital— com a sua dedicatória a Wühelm Wolff — ter aparecido em 1867,
13 anos antes de Marx ter, supostamente, oferecido tal «honra» a Darwin,
Desde a Segunda Guerra Mundial que todos aqueles que escreveram so-
bre Marx (e mmtos sobre Darwin) têm aceitado a lenda da dedicatória recu-
sada, diferindo apenas entre eles na questão de saber de que edição se trata.
«Marx desejava certamente dedicar a segunda edição de O Capitais, Darwin»,
escreveu David McLellan na sua biografia de 1973 — afirmação que ainda
podemos ver na mais recente edição em livro de bolso (1995). Isto não é mais
plausível do que a teoria de Isaiah Berlin: somente depois da morte de Marx
é que o volume II foi composto por Engels a partir de vários manuscritos
e notas. Darwin não pode ter sido solicitado para «1er provas tipográficas»
em 1880, pois tais páginas não existiam. Além disso, a introdução de Engels
ao segundo volume confirma que «o segundo e o terceiro livro de O Capital
eram para ser dedicados, como o Mouro declarara repetidas ve:(es, à mulher.»
Tudo sobre a segunda «carta a Marx» soa a falso. Por que é que Darwin
se apoquentaria com «ataques contra a religião», quando o livro que lhe ti-
nham mandado era sobre economia política? No entanto, nenhum sobro-
lho se ergueu de perplexidade até 1967, ano em que o professor Shlomo
Avineri argumentou na revista Encounter o^ç. as apreensões de Marx quanto
à aplicação política do darwinismo tornou «impensável» a possibilidade do
grande comunista pedir a aprovação do grande evolucionista. Como expli-
car, então, a carta de 1880? «A dedicatória de O Capital-x Darwin foi, claro
está, feita por ironia...», propôs ele de forma pouco convincente.. ?^
O cepticismo de Avineri — se não a conclusão a que chegou — comu-
nicou algo a Margaret Fay, jovem Hcenciada da universidade da Califórnia,
quando esta leu o artigo da Encounter sett anos mais tarde. <A. impressão que
senti nas entranhas levou-me a ir inúmeras vezes e ao acaso à biblioteca de
biologia», escreveu Fay. «Onde vagueei folheando várias biografias de
Darwin e interpretações marxistas da sua teoria da evolução para ver se
haveria, afinal de contas, algum significado poKtico na obra de Darwin que
me tivesse escapado.» Mas em vez disso, e por sorte, ela encontrou um pe-
queno volume intitulado Darwin para Estudantes. Nada tinha de especial,
apenas uma exposição bastante escolar da teoria da evolução. O que lhe cha-
o OURIÇO TOSQUIADO o » ^ 315

mou a atenção, porém, foi a data de pubHcação, 1881, e o nome do autor —


Edward B. Aveling, o futuro amante de Eleanor Marx. E se a segunda carta
de Darwing não tivesse sido dirigida a Marx, mas sim a Aveling?
Num momento de inspiração, Margaret Fay tinha resolvido o enigma que
escapara a Isaiah Berlin e a outros numerosos ao longo de meio séculos.
Darwin para Estudantes era o segundo volume de uma série chamada «A Bi-
blioteca Internacional de Ciência e Livre Pensamento» e editada por ateus
convictos, Annie Besant e Charles Bradiaugh. Daí a referência de Darwin a
«capítulo ou volume» de uma publicação mais geral «sobre o qual nada sei»
e a sua relutância em ser associado com «argumentos contra o cristianismo
e a crença numa criação divina». A intuição de Fay foi confirmada pela
descoberta, no meio dos papéis de Darwin na biblioteca da Universidade de
Cambridge, de uma carta de Edward Aveling, com a data de 12 de Outubro
de 1880, apensa a uns capítulos de Darwin para Estudantes. Depois de solici-
tar «o ilustre apoio do seu consentimento», Aveling acrescentava que «pro-
ponho, sujeito mais uma vez à sua aprovação, honrar o meu nome dedican-
do-lhe a minha obra.»
A única pergunta que restava — como a carta de Aveling fora parar aos
arquivos de Marx — era fácil de responder. Em 1895, Eleanor Marx e
Edward Aveling começaram a seleccionar as cartas e manuscritos do pai que
tinham ficado em sua posse depois da morte de Engels. Dois anos mais tarde,
Aveling escreveu um artigo comparando os seus dois heróis e no qual cita-
va a carta de 1873, mencionando de passagem que também ele se corres-
pondera com Darwin. Depois de terminar o seu trabalho, guardou todo o
material de investigação num envelope sem se aperceber que estava a dar uma
pista falsa — a qual seria seguida por montes e vales durante a maior parte
do século seguinte. Recentemente, em Outubro de 1998, o historiador bri-
tânico. Paul Johnson, escreveu que «ao contrário de Marx, Darwin era um
autêntico cientista que, numa ocasião famosa, tinha delicada mas firmemente
recusado o convite de Marx para fazerem um negócio das Arábias».^''
De facto, o único contacto que se conhece entre estes dois sábios vito-
rianos é a carta indiscutivelmente genuína de agradecimento que Marx mos-
trava com orgulho a amigos e parentes como prova de que Darwin tinha
considerado O Capitalwraà, «obra notável». Mas o Hvro em questão, o que ainda
hoje se encontra numa estante em Downe House, em Kent, conta uma histó-
ria infelizmente diferente. Não tem nenhuma das notas a lápis com que Darwin
embelezava habitualmente tudo o que lia, e apenas as 105 primeiras páginas
3 1 6 % ^ KARI.MARX

do volume de 822 páginas foram abertas. É-se forçado a concluir que ele só
lançou uma vista de olhos ao primeiro ou segundo capítulo antes de enviar os
seus agradecimentos — e nunca mais voltou a pôr-lhe a vista em cima.
«Um inglês ti'pico», teria Marx provavelmente resmungado se soubesse
a verdade. Ao 1er pela primeira vez A Origem das E.ípécies, tinha prevenido
Engels que «uma pessoa tem, claro está, de tolerar o desajeitado estilo inglês
de argumentação». E a reacção incompreensível muda a O Capitai conv&a-
ceu-o de que «o particular dom de cretinice fleumática» era um direito ad-
quirido por todos os ingleses à nascença.
Graças a outra farsa do destino, o mestre da dialéctica tinha sido exila-
do para o país mais filisteu do planeta — uma terra governada por instinto
e empirismo grosseiro, onde a palavra «intelectual» era um insulto mortal.
«Apesar de Marx viver há muito tempo em Inglaterra», o advogado Sir John
MacdonneU escreveu no número de Março de 1875 da ¥ortnightlj Remm «Ele
é aqui quase a sombra de um nome. As pessoas podem fazer-lhe a honra de
abusar dele, mas não o lêem.»-'^ O facto de não ter sido pubHcada nenhuma
edição inglesa de O Capita/ durante a sua vida, parecia a Marx um sintoma,
e não uma causa, da miopia nacional. («Agradecemos-lhe muito a sua car-
ta», escreveu Macmillan & Co. a um amigo de Engels, Carl Schorlemmer,
professor de química orgânica da Universidade de Manchester. «Mas não
acolhemos favoravelmente a proposta de uma tradução de Das Kapital») A
barreira linguística era um obstáculo intransponível para os raros ingleses que
desejavam realmente 1er o livro. Um antigo camarada da Internacional, Peter
Fox, disse que, ao oferecerem-lhe um exemplar, se sentiu como um homem
a quem tinham dado um elefante e não sabia o que fazer com ele. Por entre
os papéis de Marx há várias cartas desesperadas de um trabalhador escocês,
Robert Banner, a pedir ajuda:

«Não há esperança que venha a ser traduzido? Não há nenhuma obra


em inglês que defenda a classe trabalhadora, todos os livros em que nós,
jovens socialistas, pomos as mãos em cima são escritos no interesse do
capital e é por isso que a nossa causa não avança neste país. Com uma obra
sobre economia cujo ponto de vista fosse socialista, dentro de pouco tempo
veríamos aqui um movimento que acabaria com esta coisa, filha da mãe.»^''

Aqueles que melhor apreciariam o livro eram os menos capazes de o


compreender, enquanto a elite educada que o podia 1er não se mostrava in-
o OURIÇO TOSQUIADO ^^317

teressada nisso. O socialista inglês. Henry Hyndman, queixava-se: «Acostu-


mados como estamos hoje em dia, sobretudo em Inglaterra, a esgrimir com
protecções na ponta das nossas espadas, as terríveis estocadas de Marx sobre
os adversários, com a lâmina nua, pareciam tão impróprias que era impos-
sível para os nossos distintos e falsos combatentes e ginastas mentais acre-
ditar que este controverso e impiedoso esgrimista que atacava furiosamen-
te o capital e os capitalistas era realmente o pensador mais profundo dos
tempos modernos.»'"^
O próprio Hyndman era uma excepção a esta regra — e a todas as ou-
tras. Produto de E t o n e do Trinity College, em Cambridge, e antigo jogador
do Sussex Country Cricket Club, dizia-se que ele tinha-se tornado socialis-
ta «por rancor, pois não fora incluído no clube de críquete de Cambridge»'*^
(Há muito dele no personagem de P. G. Wodehouse, Psmith, o qual se con-
verteu ao marxismo por ter sido expulso de E t o n e não poder, por conse-
guinte, ter a honra de jogar críquete contra Harrow, em Lord's; a partir des-
sa altura, passou a tratar toda a gente por «camarada».)
Hyndman nunca chegou a desembaraçar-se dos floreados da sua classe
social e comparecia frequentemente nas reuniões socialistas de
chapéu alto. A sua política era igualmente de haut en has: q proletariado não
podia ser Libertado pelos próprios trabalhadores, mas somente por «aque-
les com um estatuto social diferente, que são treinados desde tenra idade para
usar as suas faculdades.» N o entanto, convenceu-se (embora não tenha con-
vencido mais ninguém) de que era o radical mais vermelho e honesto que
havia. «Não poderia continuar», disse. «Se não esperasse que a revolução re-
bentaria às dez da manhã da próxima segunda-feira.» N o começo de 1880, e
depois de ter lido uma tradução francesa de O Capital, bombardeou Marx com
tantas e extravagantes homenagens que este acabou por aceitar recebê-lo.
«O nosso método de conversa foi muito particulaD>, escreveu Hyndman
a propósito do primeiro encontro em Maitland Park Road, 4 1 . «Quando
profundamente interessado numa discussão, Marx tem o hábito de andar de
um lado para o outro, como se estivesse a passear n o convés de um galeão.
T a m b é m tenho o mesmo hábito, adquirido no curso das minhas longas
viagens, quando a minha mente está muito ocupada. Consequentemente, o
mestre e o discípulo podiam ser visto a andar em sentido contrário de um
lado para o outro durante duas ou três horas, discutindo assuntos passados
e actuais.»**^ Embora Hyndman alegasse que estava «ansioso por aprendcD),
Marx dizia que quem falava mais era o antigo estudante de Eton.
318 pi KARL MARX

Tendo ganho acesso a casa de Marx e sabendo que o médico o proibia


de trabalhar à noite, Hyndman adquiriu o hábito de passar em Maitland Park
Road depois do jantar sem ser convidado. Toda a família de Marx achava isto
muito maçador — em particular nas noites em que o grupo de amigos de
Eleanor, o Dogberry Club, se reunia na sala de visitas para representar uma
peça de Shakespeare. Marx adorava essas representações e insistia sempre
em jogar às adivinhas depois («rindo até as lágrimas lhe escorrerem pelas
faces abaixo quando achava graça a qualquer coisa», segundo disse u m dos
membros do Dogberry Club)'^^; mas Hyndman entrava pela casa adentro e
desatava a dar opiniões sobre o Sr. Gladstone. C o m o Marx escreveu a
Jennychen depois de uma dessas ocasiões:

«Fomos invadidos por Hyndman e a mulher, cujo poder para se in-


crustar como lapas é notável. Eu até gosto dela por causa da sua manei-
ra brusca e inconvencional de pensar e falar, mas é divertido ver como
ela sorve admirativamente as palavras do marido, que é uma autêntica
picareta falante! A mamã estava tão estafada (eram quase dez e meia da
noite) que acabou por se retirar.»"^"^

A inevitável ruptura ocorreu em Junho de 1881 quando Hyndman pu-


blicou o seu manifesto socialista, A Inglaterra para Todos. Marx ficou espan-
tado ao descobrir que dois dos capítulos plagiavam à grande O Capital Uma
referência no prefácio admitia que «muito do material contido nos capítu-
los 11 e III deve-se ã obra de um grande pensador e escritor original que,
segundo confio, em breve poderá ser lida pela maioria dos meus compatrio-
tas». Marx achou tudo aquilo bastante inadequado. Por que é que Hyndman
não citava O Capitalç: o seu autor pelo nome? A reles explicação de Hyndman
foi que os ingleses tinham «horror do socialismo» e «não gostavam de rece-
ber lições de um estrangeiro». N o entanto, como Marx indicou, era pouco
provável que o livro apaziguasse esse horror evocando «o demónio do socia-
lismo» na página 86, e o leitor inglês mais obtoso podia dar-se conta logo no
prefácio que o anónimo pensador era estrangeiro. Tratava-se pura e simples-
mente de uma apropriação desavergonhada — à mistura com a inserção de
erros imbecis nos raros parágrafos que não tinham sido tirados directamente
de O Capital Hyndman foi banido de Maitiand Park Road. Nas suas memó-
rias, escritas 30 anos depois, ele balbucia umas coisas sobre o entusiasmo de
Marx por novas ideias, acrescentando, «se bem tivesse razões para se queixar,
o OURIÇO TOSQUIADO Í ^ 319

não se preocupava muito que o plagiassem». Como tanta gente da sua classe
social, Hyndman tinha a sensibilidade de um rinoceronte anestesiado.
Felizmente, assim que Marx se zangava com u m discípulo inglês, surgia
logo outro — muito embora, desta vez, ele tivesse tomado a precaução de
nunca o conhecer pessoalmente, pois receava ver-se a braços com outra
complacente picareta falante. Ernest Beifort Bax, nascido em 1854, provi-
nha de uma família da classe média de fabricantes de impermeáveis e cris-
tãos devotos, mas a Comuna de Paris tinha-o radicalizado quando ainda an-
dava na escola. E m 1879, a revista mensal de cultura, Modern Thought, iniciou
a publicação de uma longa série de artigos sobre os líderes intelectuais da época,
incluindo pareceres de Schopenhauer, Wagner e, em 1881, Marx. Tendo es-
tudado filosofia hegeliana na Alemanha, Bax era o único socialista inglês da
sua geração a aceitar que a dialéctica era a força motriz interior da vida. Des-
creu O Capital como um livro «que formula o funcionamento de uma dou-
trina em economia comparável, na sua natureza revolucionária e importân-
cia global, ao sistema astronómico de Copérnio ou à lei da gravidade»."*^
Marx ficou todo contente: tinha, finalmente, encontrado um «bife» que
o compreendia. «É a primeira publicação do género imbuída de um verda-
deiro entusiasmo por ideias novas que ousa enfrentar a burguesia britânica»,
escreveu a Friedrich Adolph Sorge, veterano de '48 que vivia nos EUA'^''. Mas
o melhor foi que 2L Modern Thought •àn^on cartazes anunciando o artigo nas
paredes do bairro de West End, em Londres. Quando Marx leu os comen-
tários de Bax à mulher doente, esta melhorou imediatamente.

O plágio e a falta de educação foram sem dúvida os principais motivos que


levara à expulsão de Hyndman do pequeno círculo à volta de Marx, mas ele
talvez tivesse razão em suspeitar que a doença de Jenny tinha perturbado Marx
e «dispusera-o a só ver o lado mau das coisas». N o Verão de 1880, Karl estava
tão inquieto por causa de Jenny que a levou a Manchester para ser consulta-
do pelo seu amigo, o Dr. Eduard Gumpert. Este diagnosticou que ela sofria
de uma grave doença de fígado e receitou-lhe uma temporada de dolcefar
niente, de preferência à beira-mar, e, assim, toda a tribo partiu para passar
férias em Ramsgate — Engels, Karl e Jenny, Laura e Paul Lafargue, Jenny e
Charles Longuet, mais as crianças, Jean, Henri e Edgar. «A estada está a ser
particularmente benéfica a Marx que, espero, ganhará novas forças», escre-
veu Engels a um camarada comunista em Genebra. <A. mulher, infelizmente,
continua doente, mas anda tão bem-disposta quanto lhe é possível.»"*^
3 2 0 1 ^ KARL MARX

E m outras palavras, não estava nada bem-disposta. Pouco satisfeito com


o diagnóstico do Dr. Gumpert, Marx encorajou-a a consultar um especia-
lista em Carlsbad, o Dr. Ferdinand Fleckles — o qual, como não conhecia
Jenny, pediu um relato pormenorizado sobre o seu estado físico. «O que
talvez tenha agravado a minha saúde», disse-lhe ela depois de ter feito uma
lista dos sintomas. «É a grande ansiedade que nós, os velhos, sentimos.»
Agora que o Governo francês tinha amnistiado os refugiados políticos, não
havia nada que impedisse o seu genro, Paul Lafargue, de regressar a Paris e
de ela ficar sem a filha e os netos. «Caro e bom doutor, gostaria tanto de viver
um pouco mais. Como é estranho que à medida que tudo se aproxima do fim,
mais uma pessoa se agarra a este "vale de lágrimas".»"*^ Apesar de Marx nunca
ter lido esta carta, compreendia os terrores mortais da mulher: depois de
passar um mês de ociosidade em Ramsgate, informou que a doença de Jenny
«se tinha repentinamente agravado a um ponto que ameaça ser fatal».
O próprio Marx sentiu-se ligeiramente mais restabelecido pelo tratamen-
to e o repouso, mas voltou a piorar dentro de pouco tempo por causa do
Inverno frio e húmido que «me abençoou com uma constipação constante
e tosse que não me deixa dormir, etc.», conforme escreveu a u m correspon-
dente em Sampetersburgo, expHcando-lhe que mal conseguia responder às
cartas que recebia quanto mais terminar os volumes de O Capitúlele falta-
vam. «O pior é que, apesar de recorrer aos melhores médicos de Londres,
o estado de saúde da Sra. Marx se torna diariamente mais grave e de eu ter,
além do mais, inúmeros problemas domésticos.»'^' U m desses problemas
tinha sido a partida repentina de Jennichen e os filhos para Paris, onde Charles
Longuet fora nomeado director do diário radical de Georges Clemenceau,
Injustice. «Tendo em conta o estado actual da Sra. Marx, esta separação é
muito dolorosa. Os nossos netos, três rapazinhos, eram, tanto para ela como
para mim, uma fonte inesgotável de deleite e vida.» Às vezes, ao ouvir vo-
zes de crianças na rua, ele precipitava-se para a janela esquecendo-se momen-
taneamente que as adoradas crianças viviam, agora, do outro lado do canal
da Mancha. E, um dia, ao atravessar o parque de Maitiand, sentiu terríveis
saudades quando o guarda lhe veio perguntar pelo pequeno «Johnny», aliás,
Jean Longuet. Ainda pior foi não ter assistido ao nascimento, em Abril de
1881, de um novo neto, Marcel, na nova morada dos Longuet em Argenteuil.
Talvez seja essa a causa do tom rabugento com que enviou os parabéns à filha
e ao genro. «Fui, claro está, encarregado pela mamã e pela Tussy... de vos
desejar todas as felicidades, mas não vejo que esses "desejos" sirvam para o
o OURIÇO TOSQUIADO 321

que quer que seja, excepto atenuar a nossa própria impotência.» N o entan-
to, a criança era, pelo menos, um rapaz. E m b o r a Jenny Marx desejasse uma
neta, «por mim, prefiro que as crianças nascidas neste m o m e n t o da história
sejam do sexo masculino. T ê m diante delas a época mais revolucionária
jamais vivida pelo homem. Ser "velho" e poder apenas prever e não ver é que
é mau».^*^
Tanto ele como a mulher sentiam ter a idade de Matusalém. Karl toma-
va banhos turcos para tratar a perna tolhida pelo reumático e Jenny estava
cada vez mais magra e passava dias seguidos na cama. Iam passear de vez em
quando ou, então, ao teatro, mas Marx sabia que não havia cura. Jenny tinha
u m cancro. «Aqui entre nós, a doença da minha mulher é, infelizmente,
incurável», escreveu em Junho de 1881 ao seu velho amigo, Sorge. «Vou levá-
-la a passar uma temporada à beira-mar, em Eastbourne, dentro de alguns
dias.»^^ Enquanto lá estiveram, ela foi obrigada a andar numa cadeira de rodas
— «coisa que eu, um "p&àtsttepar excellence, teria considerado abaixo da minha
dignidade há uns meses».
Depois de passar duas semanas na costa sul, Jeny}'^ ganhou suficientes
forças para atravessar o canal com Karl, a fim de visitar o novo neto. Mas,
ao chegar a Argenteuil, teve uma crise de diarreia. A anfitriã também não es-
tava lá muito bem. «A casa da Jennychen tem muitas correntes de ar e a asma
dela piorou», escreveu Marx a Engels. «Mas, como sempre, mostra-se herói-
ca.»^^ Foi então que chegou a notícia de Inglaterra de que Tussy fora atacada
por uma doença terrível, mas não especificada, e regressou apressadamen-
te a Londres sozinho para se dar conta do que tinha acontecido. Encontrou
a filha num estado de «abatimento nervoso total» que, actualmente, seria dia-
gnosticado de anorexia. «Há semanas que não come quase nada», escreveu
a Engels. «Donkin [o médico] diz que não há nenhum problema orgânico.
O coração e os pulmões estão bons, e a causa do seu estado deve-se funda-
mentalmente ao facto de o estômago não funcionar por se ter desabituado
à comida (complicação que ela tornou pior porque bebe muito chá, coisa que
ele imediatamente lhe proibiu de tomar) e a uma grave perturbação do sis-
tema nervoso.»^^
Jenny Marx voltou a Londres umas semanas mais tarde, acompanhada
pela infatigável Helene D e m u t h , e caiu logo de cama. E m princípios de
Outubro, Marx convenceu-se de que a vida dela «estava a aproximar-se do
fim»^'^. Ele mesmo estava de cama com bronquite, mas reanimou ao saber
que o Partido Social Democrata alemão tinha ganho 12 lugares Reichstag.
322-^^ KARLÎvIARX

«Se houve um acontecimento exterior que contribuiu para pôr Marx mais ou
menos bom de novo, foram estas eleições», escreveu Engels a Eduard Bern-
stein no fim de Novembro. «Nunca o proletariado se portou de m o d o tão
magnífico... N a Alemanha, após três anos de perseguições sem preceden-
tes e pressões constantes durante os quais qualquer forma de organização
pública e até m e s m o de comunicação era impossível, os nossos rapazes
voltaram à carga, não só com toda a sua antiga força mas realmente mais
fortes do que dantes.»^^
Jenny Marx morreu a 2 de Dezembro de 1881. Durante as últimas três
semanas, ela e o marido nem sequer conseguiram ver-se; a pleurisia tinha
compHcado a bronquite de Marx e ele fora confinado num quarto ao lado
sem poder mexer-se. As últimas palavras dela foram para o chamar e gritar-
-Ihe em inglês: «Karl, estou a perder as forças...» O médico proibiu-o de
assistir ao funeral, o qual teve lugar três dias mais tarde a u m canto de terra
não consagrada do cemitério de Highgate. Entretanto, a consolação de Karl
Marx foi a lembrança do raspanete que Jenny dera a uma enfermeira um dia
antes de morrer, a propósito de uma formalidade negligenciada: «Nós não
somos gente externa dessa! 56
A outra distracção do pesar que ele sentia era o seu próprio estado de
saúde. Tinha de esfregar o peito e o pescoço com tintura de iodo várias vezes
ao dia. «Só existe um único antídoto eficaz para o sofrimento mental: a dor
física», escreveu. «O fim do mundo não é comparável a uma dor de dentes.»
Engels afirmou que Marx tinha, a partir daquele momento, morrido —
observação cruel que continha, contudo, uma terrível verdade. Durante os
últimos dias de vida de Jenny, exausto por insónias e falta de exercício, ele
contraiu a doença que acabaria por matá-lo. Embora o editor alemão tenha
escolhido esta inoportona altura para lhe pedir uma nova edição de O Capi-
tal, Marx não podia pensar em trabalhar. A conselho do médico e acompa-
nhado por Eleanor, passou duas semanas no «cHma mais quente e ar seco»
da üha de Wight — debaixo de tempestade e chuva, além de temperaturas
abaixo de zero. Graças aos caprichos do tempo, o catarro brônquico piorou
e um médico local teve de lhe dar uma máscara de oxigénio para ele poder
passear em Ventnor.
O comportamento de Eleanor, que continuava sem comer nem dormir
como devia ser, oscilava entre um silêncio mal-humorado e crises de «natu-
reza alarmantemente histéricas». As suas ambições de uma carreira teatral
tinham-se agora tornado numa necessidade quase física, e até esta fome ser
o OURIÇO TOSQUIADO *vlj"'323

saciada não conseguia alimentar os seus outros apetites. O dia em que regres-
saram de Ventnor, 16 de Janeiro de 1882, coincidiu com o aniversário de
Eleanor (27 anos), dolorosa lembrança que os seus melhores anos estavam
a ser sacrificados no altar do dever famüiar. Marx sabia que tinha de a libertar.
«Quanto a planos para o ñituro», escreveu a Engels a 12 de Janeiro, <A. minha
primeira consideração é de dispensar Tussy do papel de m e fazer compa-
nhia. .. A rapariga encontra-se sob tal pressão mental que a sua saúde está
a deteriorar-se a olhos vistos. N e m viagens, nem mudanças de cUrna, nem
os médicos podem fazer nada neste caso.»
N o entanto, para Marx, uma mudança de clima era urgentemente neces-
sária: não havia alívio para o seu catarro — «esta maldita doença inglesa» —
a não ser que fugisse do Inverno na Inglaterra. Como não podia entrar em
Itália (um h o m e m tinha recentemente sido preso em Milão apenas porqué
se chamava Marx), decidiu abandonar a Europa pela primeira vez e, a 18 de
Fevereiro, partiu para a Argélia de barco.
Assim começou u m ano de vagabundagem constante: três meses na
Argélia, u m mês em Monte Cario, outros três meses com os Longuet em
Argenteuil, um mês na estância suíça de Vevey. Com cómica consistência,
a sua chegada a estes lugares era acompanhada de chuvas torrenciais e tem-
pestades, mesmo nos sítios onde há pouco o sol brilhava. Voltou a Londres
em Outubro, mas o frio e a humidade obrigaram-no a partir de novo para
Ventnor, onde permaneceu até Janeiro de 1883. N a década de 1840, tinha
andado pelas capitais europeias varrido pelas rajadas da revolução e da
reacção, mas, agora, movido apenas por uma irritação nos brônquios, tor-
nara-se novamente num nómada. A história repetia-se, desta vez como uma
farsa um tanto enfadonha. N a Argélia, raramente se dava ao incómodo de
1er jornais, preferindo visitar os jardins botânicos, conversar com pessoas
hospedadas no mesmo hotel ou simplesmente contemplar o mar. Para que
é que, agora, serviam o materialismo e a dialéctica? Contou uma fábula ára-
be numa carta a Laura que parecia aparentar-se com a sua situação actual:

«Um barqueiro aguarda passageiros para atravessar as águas tempes-


tuosas de um rio. U m filósofo que deseja chegar à outra margem entra
no barco. Segue-se o seguinte diálogo:
FILÓSOFO: Sabes alguma coisa de história, barqueiro?
BARQUEIRO: N ã o !
3 2 4 ^ » KARL MARX

FILÓSOFO: Quer dizer, então, que desperdiçaste metade da tua vida!


Estudaste matemática?
BARQUEIRO: Não!
FILÓSOFO: Então desperdiçaste mais de metade da tua vida.
Mal o filósofo tinha acabado de dizer estas palavras, uma onda virou
o barco e eles foram parar dentro de água. O barqueiro grita então ao fi-
lósofo, «Sabes nadar?»
FILÓSOFO: Não!
BARQUEIRO: Então desperdiçaste toda a vida.»^^

A aparência exterior de Marx ainda era imponente: u m inglês que o


conheceu por volta dessa altura lembrava-se dele como «um h o m e m gran-
de em todos os sentidos»: uma grande cabeça e uma cabeleira como «São
Pedro costumava usar a dele»^^. Ou, então, como Sansão, no poema de J o h n
Milton, com «pelos eriçados como os que cobrem o dorso dos javalis selva-
gens ou ouriços despenteados». Mas durante os últimos anos de vida, enfra-
quecido pela bronquite e pleurisia, Marx já não tinha força para pôr em
debandada os filisteus, armado com uma queixada de burro. Por fim, e re-
signando-se à perda de vigor, ofereceu a sua preciosa juba a um barbeiro ar-
gelino. «Desembaracei-me da minha barba de profeta e da minha gloriosa
coroa», contou a Engels a 28 de Abril de 1882.
Sem olhos em Gaza e sem cabelo em Argel. É quase impossível imagi-
nar um Karl Marx careca e barbeado de fresco — e ele certificou-se de que
a posteridade nunca o veria daquela maneira. Tirou uma fotografia, hirsuto
e de olhos cintilantes, antes de ser tosquiado para as filhas não se esquece-
rem do h o m e m que tinham conhecido. É a última fotografia em nosso p o -
der: um Júpiter cordial, um pai-Natal intelectual. Como ele mesmo disse por
brincadeira: «Ainda estou a encarar as coisas com entusiasmo.» E estava real-
mente, pelo menos diante da família. A pleurisia resistia teimosamente a
tratamentos e, quando ele se encontrava em Monte Cario, um especialista
local confirmou que a bronquite era, agora, crónica; mas não contou nada
disso às filhas. «O que eu escrevo e digo às minhas filhas é verdade, mas não
toda», explicou. «Não há razão para as alarmar.»^'
'Entretanto, Jennychen também lhe escondia u m segredo: tinha um cancro
na bexiga. Apesar de grávida e exausta (tinha de cuidar de quatro filhos
pequenos) conseguiu ocultar o seu sofrimento quando o pai a veio visitar em
Argenteuil n o Verão de 1882 — ajudada, sem dúvida, pela chegada de
o OURIÇO TOSQUIADO . .,. 325

Eleanor e Helene. Desde que tinha partido de França que o pequeno Johnny
Longuet andava endiabrado («tornou-se traquinas por tédio», deduziu Marx)
e, quando Eleanor voltou a Londres em meados de Agosto, levou-o miúdo
de seis anos com ela, prometendo educá-lo e discipliná-lo durante alguns
meses. A esperança de escapar à escravatura do dever tinha-se gorado: de en-
fermeira do pai passara a governanta do sobrinho em menos de um ano. Mas
esta nova responsabilidade proporcionou grandes alegrias a Eleanor e, den-
tro de pouco tempo, tratava Johnny como se fosse filho dela. O s irmãos,
Edgar e LIarry, foram passar férias com o pai a Calvados no fim de Agosto,
deixando Jennjcòen apenas com o bebé, Marcel. Mas ela continuava fatigada
e com dores constantes. E, finalmente, depois de dar à luz uma menina
(baptizada Jenny, mas mais conhecida por Memé), acabou por confessar o
seu mal numa carta a Eleanor: «Não desejo a ninguém as torturas que sofro
há oito meses; são indescritíveis e, agora ter de dar de mamar ao bebé torna
a minha vida no inferno.»'''^ Insistia para que a irmã nada dissesse ao Mouro.
Mas um Verão passado debaixo do mesmo tecto tinha dado inúmeras indi-
cações que havia algo de grave. D a sua residência de Inverno na ilha Wright,
Marx escreveu regularmente a pedir notícias da «pobre Jennychen» e do bebé.
«Aflige-me imenso, pois receio bem que ela não possa suportar u m fardo
desses», disse a Eleanor.
Marx nada podia fazer para aliviar tal fardo. Passou a maior parte do mês
de D e z e m b r o sem poder sair do seu alojamento, em St. Boniface, 1, por
causa de uma crise de catarro na traqueia — apesar da pleurisia e da bron-
quite se encontrarem, agora, temporariamente controladas. («Isto é bastan-
te encorajador, pois a maior parte dos meus contemporâneos, quer dizer,
gente da mesma idade, estão a esticar o pernil como tordos.»)''^
A 5 de Janeiro de 1883, foi informado por Lafargues que a doença de
Jennychen tinha atingido um ponto crítico e, na manhã seguinte, Marx acor-
dou com um ataque de tosse tão violento que julgou que ia morrer sufocado.
Havia, por acaso, alguma relação entre estes dois acontecimentos? Pergun-
tou a um médico local, um amável jovem originário de Yorkshire chamado
James Williamson, se a angústia mental tinha «influência sobre o fluxo da
mucosidade».''^
Jenny Longuet morreu às cinco da tarde do dia 11 de Janeiro, com 38 anos
de idade e Eleanor partiu para Vantoor assim que soube da notícia.
326 ^ f c I<CARL MARX

«Vivi muitas horas tristes, mas nenhuma tão triste como esta. Senti
que levava ao meu pai a sua sentença de morte. Ao longo de toda a via-
gem, dei voltas à cabeça para encontrar uma maneira de lhe transmitir a
notícia. Mas não houve necessidade de o fazer, porque a expressão do meu
rosto denunciou-me, e o Mouro disse imediatamente, "a no^y^y. Jennychen
morreu". E, a seguir, insistiu logo comigo para que fosse a Paris tratar das
crianças. Queria ficar com ele, mas ele não me deixou. Há meia hora que
tinha chegado a Ventnor e já era obrigado a voltar a Londres e, de lá, para
Paris. Estava a fazer o que o Mouro queria por causa das crianças.
Nada mais direi sobre o meu regresso. Sempre que penso que nesse
momento tenho arrepios. A angústia e o tormento que foi. Mas já chega.
E u voltei e o Mouro regressou a casa para morrer.»""^

Antes de partir de Ventnor, Marx escrevinhou um recado ao Dr. Wil-


liamson explicando-lhe a sua partida apressada. «Por favor, caro doutor,
envie-me a conta para Maitiand Park, 41, Londres N W Lamento não ter tido
tempo para me despedir de si. A àót de cabeça que sinto dá-me um certo
alívio. A dor física é o único "analgésico" do sofrimento mental.» Q u e se
saiba, esta é a última carta que escreveu. Marx junto uma fotografia dele
como recordação e dedicou-a com mão trémula, «com os desejos de um Feliz
Ano Novo».
Como Eleanor sabia, o pai tinha regressado a casa para morrer. Sofren-
do de laringite, bronquite, insónias e suores à noite, estava demasiado fraco
para 1er os romances vitorianos que tantas vezes o tinham aliviado. Contem-
plava o espaço ou folheava ocasionalmente catálogos de editores com os pés
metido num banho de mostarda. Helene D e m u t h tentava animá-lo cozi-
nhando pratos exóticos, mas Marx preferia seguir uma dieta inventada por
ele -— u m copo diário de leite (que ele dantes detestava) acompanhado de
generosas doses de rum ou brandy. E m Fevereiro, contraiu um abcesso no
pulmão e refugiou-se na cama. Engels anotou a 7 de Março que a saúde de
Marx «não está realmente a fazer os progressos que devia. Se fosse há dois
meses, o calor e o ar teriam dado resultado, mas com vento de nordeste e
flocos de neve, quase uma tempestade, como é que uma pessoa se pode curar
de um caso de bronquite aguda!»"''^
A 14 de Março, uma quarta-feira, Engels chegou a casa de Marx às duas
e meia da tarde, hora a que habitualmente o visitava. Lenchen desceu as
escadas para lhe dizer que Marx estava «meio adormecido» na sua poltrona
o OURIÇO TOSQUIADO -^^ ^ 327

favorita junto à lareira, mas, quando entraram na sala, um ou dois minutos


mais tarde, encontraram-no morto. «A Humanidade ficou uma cabeça mais
pequena», escreveu Engels a u m camarada nos EUA. — A cabeça mais
notável da nossa época. 65
Karl Marx foi enterrado a 17 de Março de 1883, num distante canto do
cemitério de Highgate, no mesmo lote onde a mulher fora enterrada 15 anos
mais cedo. Apenas 11 pessoas assistiram ao funeral. N u m discurso fúnebre
à beira da sepultura, Engels descreveu-o como um génio revolucionário que
se tinha tornado o mais caluniado e odiado homem da sua época, predizendo
que «o seu nome e a sua obra hão-de perdurar ao longo dos séculos». O s
jornais socialistas franceses, russos e americanos publicaram os panegíricos
sob títulos semelhantes — O Melhor A^migo e Professor da Classe Operária, Uma
Desgraça para a Humanidade, Muito depois dos Reis Serem esquecidos, a Sua Recor-
dação Perdurará, Um dos Homens mais Nobres a Caminhar nesta Terra. Mas a sua
morte passou quase despercebida no país onde tinha vivido mais de meta-
de dos seus 65 anos.
«Foi anunciada a morte do Dr. Karl Marx, sociaKsta alemão», informou
o Daily News. «Viveu para ver partes das suas teorias, as quais outrora ater-
rorizaram imperadores e chanceleres, desaparecerem... A classe operária
inglesa não se identificou com tais princípios.»'''' The Times publicou u m
obituário de um só parágrafo, com um erro em todas as frases, afirmando
que le tinha nascido em Colónia e emigrara para a França aos 20 anos. Só a
Pali Mali Ga^tte adivinhou que ele seria lembrado: «O Capital, embora ina-
cabado, dará origem a inúmeras obras mais pequenas e exercitará uma
influência crescente sobre os homens de todas as classes sociais que se in-
teressam por questões sociais.»'^''
Que epitáfio teria Marx escolhido para si mesmo? Quando, no Verão de
1880, passava férias em Ramsgate, tinha encontrado u m jornalista america-
no, John Swinton, que escrevia uma série dedicada a «viagens em França e
Inglaterra» para o New York Sun. Swinton observou o velho patriarca a brin-
car na praia com os netos («Karl Marx entende a arte de ser avô de forma
não menos admirável do que Victor Hugo») e, ao anoitecer, Marx concedeu-
-Ihe uma entrevista.

Enquanto os nossos copos tiniam por cima do mar, conversámos so-


bre o mundo, o homem, o tempo e as ideias. O comboio não espera por
328^0 KARI.MARX , . : "

ninguém e a noite está próxima. Sobre os pensamentos e a destruição do


tempo e dos tempos, sobre a conversa do dia e das cenas da noite, sur-
giu no meu espírito uma questão que tinha a ver com a lei final do ser,
cuja resposta eu procuraria obter deste homem sábio. Descendo às pro-
fundidades da Hnguagem e ascendendo ao cume da ênfase, interrompi,
durante um espaço de silêncio, o revolucionário e filósofo com estas
palavras fatais: «O que é?»
E, enquanto ele olhava para o mar revolto diante dele e a multidão
irrequieta na praia, parecia que a mente dele se tinha invertido um ins-
tante. «O que é?», tinha eu perguntado e ele respondeu em tom profundo
e solene: «A luta!»
Ao princípio pensei que tinha ouvido o eco do desespero, mas era
porventura a lei da vida.^^
POS^ESCRITO 1:

CONSEQUÊNCIAS

Karl Marx morreu sem nacionalidade e sem deixar testamento. Os seus


bens foram avaliados em 250 libras, baseado sobretudo no valor da mo-
bília e dos livros da casa em Maitland Park Road, 41. Estes, juntamente com
a vasta colecção de cartas e apontamentos, foram guardados por Engels —
assim como por Helene Demuth, que foi governanta em Regent's Park Road,
122, até vir a falecer de cancro intestinal, a 4 de Novembro de 1890.
Engels dedicou-se a reunir as notas e manuscritos para O Capital. O vo-
lume II foi publicado (na Alemanha) em Julho de 1885 e o Volume III, em
Novembro de 1894. A primeira tradução inglesa oficial (1887) vendeu-se
mal, mas uma edição pirata em Língua inglesa, de cinco mil exemplares, es-
gotou-se em pouco tempo — provavelmente porque o editor enviou uma
circular aos banqueiros de Wall Street a dizer que o livro revelava «como acu-
mular capitai». Eingels morreu de cancro no esófago a 5 de Agosto de 1895.
Cerca de 80 pessoas assistiram ao seu funeral no crematório de Woking;
Eleanor Marx e três amigas deslocaram-se a Eastbourne, foram de bote a seis
milhas de Beachy Head e lançaram as cinzas de Engels ao mar.
Após a morte de Engels, a tarefa de guardar e seleccionar os papéis de
Marx coube a Eleanor Marx e ao seu amante, Edward Aveling. Embora
espantosamente feio e merecedor de pouca confiança, Aveling era um sedu-
tor que «precisava apenas de meia hora de avanço sobre o mais belo homem
de Londres para seduzir qualquer mulheD>. Ele e Eleanor viveram juntos às
claras, mas como a maior parte dos amigos eram actores, livres pensadores
e boémios, ninguém se escandalizou. O que chocava muitos dos seus con-
vidados era a maneira grosseira como ele a tratava: o escritor Oliver Schreiner
330 *Ä> KARL MARX

descreveu Aveling como sendo um «rufia»; e, na opinião de WiUiam Morris,


ele não passava de «um tipo com péssima reputação». Eleanor deu-se con-
ta de como eles tinham razão em Março de 1898 ao descobrir que ele se tinha
casado em segredo com uma actriz de 22 anos no Verão anterior. A solução
de Aveling para resolver a crise foi propor suicidarem-se juntos. Eleanor
redigiu obedientemente um terno bilhete de despedida e tomou o ácido
prússico que ele lhe deu. Escusado será dizer que Aveling nunca tencionou
cumprir tal pacto e, logo que ela tomou a dose letal, saiu de casa. Apesar de
não ter sido condenado, não há dúvida de que foi ele quem a matou.
Laura e Paul Lafargue foram viver para os arredores de Paris à custa do
dinheiro que tinham conseguido sacar a Engels. Em Novembro de 1911,
quando ele tinha 69 anos e ela 66, decidiram que não valia a pena viver e
suicidaram-se juntos. Um dos oradores do seu funeral foi um representan-
te dos comunistas russos, um certo Vladimir Ilyich Lenine, que afirmou que
as ideias do pai de Laura viriam a reaHzar-se mais cedo do que se julgava.
Quatro dos filhos de Marx morreram antes dele e os dois sobreviventes
mataram-se. O único membro da família a escapar esta maldição foi Freddy
Demuth, que viveu e trabalhou tranquilamente na zona leste de Londres.
Morreu aos 77 anos, vítima de um ataque cardíaco, a 28 de Janeiro de 1929.
Nem ele nem ninguém nunca suspeitaram que pudesse ser o filho de um
homem cujo rosto e nome eram já então conhecidos no mundo inteiro.
POS-ESCRITO 2:

CONFISSÕES

Todas as três filhas de Marx adoravam o jogo de salão vitoriano «Con-


fissões» — actualmente mais conhecido pelo Questionário de Proust —
e em meados da década de 1860 convidaram o pai a sujeitar-se a um inqué-
rito. Seguem-se as suas respostas:

A virtude preferida: a simplicidade


Jí virtude masculina preferida: a força
A virtudefeminina preferida: a firaqueza
A sua principal característica: a obstinação
A sua ideia de felicidade: o combate
A sua ideia de desgraça: a submissão
O defeito que mais tolera: deixar-se enganar
O defeito que mais , o servilismo
A sua aversão: Martin Tupper
(escritor popular vitoriano)
Ocupação preferida: a leitura
Poeta preferido: Shakespeare, Esquilo, Goethe
Escritorpreferido: Diderot
Herói preferido: Espar taco, Kepler
Heroina preferida: Gretchen
Florpreferida:
Corpreferida: o vermelho
Nome preferido: Laura, Jenny
332 ^ o KARL MARX

Prato preferido: peixe


Máxima preferida: Nihil humani a me alienum puto
(Tudo o que é humano me interessa)
Divisa preferida: De omnibus dubitandum
(De\e-sc duvidar de tudo)
POS-ESCRITO 3:

REGICIDA

No decorrer da sua visita à Alemanha, em 1867, e enquanto aguardava


as provas de O Capital, Karl Marx foi convidado a uma festa dada pelo mestre
de xadre2, Gustav R. L. Neumann. Sobreviveu a anotação de uma partida
que jogou naquela noite contra um indivíduo chamado Meyer.

Marx Meyer

1. e2-e4 e7-e5 16. Cd5xf4 Cc6-e5


2. f2-f4 e5-e4 17. Df3-e4 d7-d6
3. Cgl-f3 g7-g5 18. h2-h4 Dg5-g4
4. Bfl-c4 g5-g4 19. Bc4-f7 Tg8-f8
5. 0-0 g4xNf3 20. Bf7-h5 Dg4-g7
6. Ddtxf3 Dd8-f6 21. d3-d4 Ce5-c6
7. e4-e5 Df6-e5 22. c2-c3 a7-a5
8. d2-d3 Bf8-h6 23. Cf4-e6 Bc8xCe6
9. Cbl-c3 Cg8-e7 24. TflxfS Dg7xTf8
10. Bel-d2 b8-c6 25. De4-xBe6 Ta8-a6
11. Tal-el De5-f5 26. Tel-fl Df8~g7
12. Cc3-d5 Re8-d8 27. Bh5-g4 Cc6-b8
13. Bd2-c3 Th8-g8 28. Tfl-f7 Negras
14. Bc3-f6 Bh6-g5 abandonam
15. Bf6-xBg5 DfSxBgS
AGRADECIMENTOS

Agradeço a colaboração das seguintes instituições: Instituto Internacional


de História Social, Amesterdão, onde se encontram as cartas e manuscritos
de Karl Marx bem como muitos outros arquivos socialistas da época; Mu-
seu Karl Marx (Fundação Friedrich Elbert), em Trier, e a sua filial Centro de
Estudos Karl Marx, sobremdo por me ajudar a encontrar a anotação de uma
das últimas partidas de xadre2 jogadas por KM; Biblioteca Memorial Marx,
Londres; Biblioteca Britânica; Biblioteca de Londres; D e p a r t a m e n t o de
Arquivos Públicos, Kew; Departamento Estatístico. Os meus agradecimen-
tos também às pessoas que me proporcionaram livros e documentos que, de
outro modo, me teriam escapado: Anna Cuss, da Sociedade Real das Artes,
Paul Foot, Mark Garnett, E d Günert, Ronald Gray, Bruce Page, Christopher
Hawtree, professor Colin Matthews, Bob O'Hara, Nick Spurrier. Ambas as
minhas agentes, Pat Kavanagh e Victoria Barnsley, de Fourth State, respon-
deram afirmativamente à minha sugestão de escrever uma biografia de Marx
com calorosa alacridade. A minha maior dívida de amor e gratidão é para
com Julia Thorogood, a qual nunca perdeu o entusiasmo mesmo nos m o -
mentos em que a minha fé e pálpebras descaíam. Jack, Frank e George Anna
Thorogood também me encorajaram. Quaisquer erros quanto a factos e in-
terpretação são, claro está, da exclusiva responsabilidade dos meus adorados
filhos Bertie e Archie.
NOTAS FINAIS

As seguintes abreviaturas foram usadas:

MECW Karl Marx, Frederick Engels, Collected Works (47 volumes publicados desde 1975
por Progress Publishers, Moscovo, e preparados em colaboração com
International Publishers Co. Inc., Nova Iorque, and Lawrence & Wishart,
Londres).
RME K.eminiscences of Marx and Engels (Foreign Languages Publishing House,
Moscovo, sem data)
KMIR Karl Marx: Interviews and RecoUecüons

1. O MARGINAL

1. Carta de KM a FE, 21 de Junho de 1854


2. De Karl Marx, de Eleanor Marx, RME, p. 25
3. De Meetings mth Marx, de Maxim Kovalevsky, em RME, p. 299
4. MECW, Vol. I, p. 4
5. Eleanor Marx a Wilhelm Liebknecht eva Mohr und General: Erinnerungen anMarx undEngels
(Dietz Verlag, Berlim, 1965)
6. «A Campanha Francesa», de Goethe, citado em Karl Marx, Man and Fighter, de Boris
Nicolaievsky e Otto Maenchen-Helfen (Methuen, Londres, 1936; edição revista
publicada por Penguin, Harmondsworth, 1973)
7. De The Baptism of Karl Marx, de Eugene Kamenka, The Hibbertjournal. Vol. LVI (1958),
pp. 340-51
8. Carta de Henriette Marx a KM, 29 de Novembro de 1835
9. Carta de KM a FE, 8 de Janeiro de 1863
338^^ KARL MARX

10. Carta de Heinrich Marx a KM, 18 de Novembro de 1835


11. Carta de Heinrich Marx a I<M, 18 de Novembro de 1835
12. De Speech of Dr. Marx on Protection, Free Trade, and the Working Class, Northern Star
de Outubro de 1847
13. Carta de Heinrich Marx a KM, 18-25 de Novembro de 1835
14. Carta de Heinrich Marx a KM, princípios de 1836
15. Carta de Henriette Marx a KM, princípios de 1836
16. Certificado de Dispensa da Universidade de Bona, 22 de Agosto de 1836, MECW,
Vol I,pp. 657-8
17. Carta de Heinrich Marx a KM, cerca de Maio/Junho de 1836
18. Carta de KM a Jenny Marx, 15 de Dezembro de 1863
\9. T)e Reminiscences of Marx, de Vaul hãía.rgae,RME, Ç. 74
20. Carta de KM a FE, 10 de Abril de 1856
21. De Karl Marx and World Uterature, de S.S. Prawer (Oxford University Press, 1976), p. 209
22. Carta de KM a Jenny Marx, 21 de Junho de 1856
23. Posfácio à segunda edição alemã de O Capital, MECW, Vol. 35, p. 9
24. De On Hegel de Karl Marx, MECW, Vol. I, p. 576
25. Carta de Heinrich Marx a KM, 9 de Dezembro de 1837
26. Carta de KM a Heinrich Marx, 10-11 de Novembro de 1837
27. Do texto original de 1852 de O Dei^oito Brumário, MECW, Vol. II, p. 103
28. Carta de Heinrich Marx a KM, 9 de Dezembro de 1837
29. Carta de Heinrich Marx a KM, 2 de Março de 1837

2. O PEQUENO JAVALI SELVAGEM

1. Carta de Georg Jung a Arnold Ruge, Marx-Engels Gesamtausgabe, I i (2), p. 261


2. De The Early Texts, de Karl Marx (Oxford University Press, 1971), p. 13
3. Carta de Jenny von Westphalen a KM, 10 de Agosto de 1841
4. Carta de KM a Arnold Ruge, 20 de Março de 1842
5. Carta de KM a Arnold Ruge, 17 de Abril de 1842
6. Carta de Jenny von Westphalen a KM, 10 de Agosto de 1841
7. Artigo em Rheinische Zeitung, 14 de Julho de 1842, traduzido em MECW, Vol. I, p. 195
8. Artigo em Rheinische Zeitung, 19 de Maio de 1842, traduzido em WECW, Vol. I, p. 172
9. De Briefwechsel de Moses Hess, ed. E. SEberner (Haia, 1959), traduzido em KMIR, pp. 2-3
10. De The Insolently Threatened Yet Miraculously Rescued Bible, publicado como panfleto
anónimo em Dezembro de 1842, traduzido em MECW, Vo. 2, p. 336
11. Excepção solitária é o grande investigador americano, Hal Draper, que incluiu uma
divertida nota final sobre Marx e a Pilosidade em Karl Marx's Theory of Revolution, Vol II
The Politics of Social Classes (Monthly Review Press, Nova Iorque e Londres, 1978
NOTAS FINAIS « * ^ 339

12. De Great Men of the Exile, de Karl Marx e Friedrich Engels, traduzido em The (
Communist Trial (Lawrence & Wishart, Londres, 1971), p.l66
13. Carta de FE a Marie Engels, 29 de Outubro de 1840.
14. Marx-Engels Gesamtausgabe, I i (2), p. 257, traduzido em KarlMarx, de Werner Blumenber
. (NewLeftBooks, Londres, 1972)
15. De Erlebtes, de Kari Marx (Boston, Mass., 1874), em KMIR, pp. 5-6
16. Yet Against the Current: TheUfeof KarlHein^ien 1809-80, de Carl Wittke (University of
Chicago Press, 1945)
17. De Karl Marx: Biographical Memoirs, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Unter-
mann (Londres, 1901)
18. Rheinische Zeitung, 16 de Outubro de 1842, traduzido em MECIV, Vol. I, p. 220
19. Carta de KM a Arnold Ruge, 30 de Novembro de 1842
20. D e ^ Contribution to the Critique of Political Economy (1859), traduzido em The Portable K
Marx (Penguin Books, Nova Iorque, 1983), p. 158
21. Rheinische Zeitung, 25 de Outubro de 1842, traduzido em MECW, Vol. I, p. 225
22. Carta de KM a Arnold Ruge, 9 de Julho de 1842
23. De Kari Marx ais Mensch, de Wilhelm Bios, Die Glocke v (1919), traduzido em KMIR,
pp. 3-4
24. Carta de KM a Arnold Ruge, 25 de Janeiro de 1843
25. Carta de KM a Arnold Ruge, 25 de Janeiro de 1843
26. Carta de KM a Arnold Ruge, 13 de Março de 1843
27. Carta de Jenny von Westphalen a KM, 10 de Agosto de 1841
28. De RedJenny: A Eife with Karl Marx, de H. F. Peters (Allen & Unwin, Londres, 1986)
29. Carta de Jenny von Westphalen a KM, c. 1839-40
30. Carta de KM a Ludwig Feuerbach, 3 de Outubro de 1843
31. Carta de KM a Ludwig Feuerbach, 11 de Agosto de 1844
32. Carta de KM a FE, 30 de Julho de 1862
33. Karl Marx: Early Writings, traduzido por Rodney Livingstone e Gregor Benton (Pelican
Books, Londres, 1975), pp. 212-41
34. KarlMarx: Early Writings, traduzido por Rodney Livingstone e Gregor Benson (Pelican
Books, Londres, 1975), pp. 243-57

3. O REI CORRUPTO

1. De Zwei Jahre in Paris, de Arnold Ruge (Leipzig, 1846)


2. De 1848: Briefe von und an Herwegh, editado por Marcel Herwegh (Munique, 1898), tra-
duzido em KMIR, pp. 6-7
3. Tie Arnold Ruge Briefwechsel und Tagebuchblätter 1825-80, editado por P. Nerrlich (Berlim
1886), traduzido em XMJR, pp. 9-9
340^^ KARL MARX

4. Carta de Arnold Ruge a Julian Fröbel, 4 de Junho de 1844


5. Carta de Jenny Marx a KM, 21 de Junho de 1844
6. De MikhailBakunin andKarlMarx, de K. Kenafick (Melburne, 1948), p. 25
y.DeiÖWZR, p. 10
8. De Karl Marx: Man and Fighter, de Boris Nicolaievsky e Otto Maenchen-Helfen
(Methuen, Londres, 1936)
9. T>e ArnoldKugeBriefwechselundTagebuchblätter 1825-80, editado por O. Nerrlich (Berlim
1886), traduzido em Karl Marx: Man andFighter
10. Carta de Jenny Marx a KM, 11 -18 de Agosto de 1844
11. De Fünffunsteh^tg]ahre. in der alten und neuen Welt, de Heinrich Börnstein (Leipzig, 1881
12. De «Notas Críticas Marginais sobre o artigo: "O Rei da Prússia e a Reforma Social."
Por um Prussiano» Vorwärts!, 7 e 10 de Agosto de 1844. Traduzido pem MECW, Vol.
3, pp. 189-206
13. Carta de KM a FE, 4 de Dezembro de 1863
14. Carta de KM a FE, 17 de Dezembro de 1863
15. De KarlMarw: A Few Stray Notes, de Eleanor Marx, RME, pp. 252-1
16. De Karl Marx: Biographical Memoirs, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Unter-
mann (Londres, 1901)
17. De On the History of the Communist League, por FE, 1885, traduzido em The Cologne
Co«?«?««?>/Tm/(Lawrence & Wishart, Londres, 1971)
18. De Friedrich Engels: A Biography, de Gustave Mayer, traduzido por Gilbert e Helen
Higher, editado por R. H. S. Crossman (Chapman & Hall, Londres, 1936)
19. Carta de FE a Friedrich e Wilhelm Graeber, 1 de Setembro de 1838
20.MECir,Vol. I l , p . 4
21. Carta de FE a Wilhelm Graeber, 17-18 de Setembro de 1838
22. Carta de FE a Friedrich e Wilhelm Graeber, 1 de Setembro de 1838
23. Carta de FE a Friedrich Graeber, 8 de Abril de 1839
24. Carta de FE a Friedrich Graeber, 24 de Abril de 1839
25. The Condition of the Working Class in England, de Friedrich Engels (Londres, 1892)
26. Carta de FE a Eduard Bernstein, 25 de Outubro de 1881
27. Carta de FE a KM, princípios de Outubro de 1844
28. Carta de FE a KM, 19 de Novembro de 1844
29. Carta de FE a K, 22 de Fevereiro-7 de Março de 1845
30. Carta de FE a KM, 17 de Março de 1845
31. Carta de KM a FE, 24 de Abril de 1867
NOTAS FINAIS * < ^ 341

4. O RATO NO SÓTÃO

1. Vorwärts!, 17 de Agosto de 1844, traduzido em MBCW, Vol. 3, pp. 207-10


2. Carta de FE a KM, 22 de Fevereiro-7 de Março de 1845
3. De My Recollections of Karl Marx, de Marian Comyn, em Nineteenth Century and After,
Vol. XCI(1922),pp. 161ff
4. Carta de Jenny Marx a KM, após 14 de Agosto de 1845
5. Carta de KM a Karl Leske, 1 de Agosto de 1846
6. De Teses sobre Feuerbach, de Karl Marx, MECW, Vol. 5, pp. 3-5
7. A Ideologia Alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels, MECW, Vol. 5, pp. 19-531
8. De Notas Marginais Críticas sobre o Artigo por um Prussiano, de Karl Marx, Vorwärts!, 10 de
Agosto de 1844
9. Carta de Joseph Weydemeyer a Louise Lüning, 2 de Fevereiro de 1846, publicada no
Münchner Post, 30 de Abril de 1926
10. De «Sobre a Historia da Liga Comunista», de Friedrich Engels, MECW, Vol. 26, p. 320
11. Citado em To the Filand Station, de Edmund Wilson, (Macmülan, Londres, edição de
1972), pp. 193-4
12. De A Wonderful Ten Years, de Pavel Annekov, em RME, pp. 269-72
13. De CircularAgainst Kriege, por Marx e Engels, 11 de Maio de 1846, traduzido em MECW,
Vol. 6, pp. 35-51
14. Carta de KM a Pierre-Joseph Proudhon, 5 de Maio de 1846
15. Confessions d'un révolutionnaire, de Pierre-Joseph Proudhon (Paris, 1849)
16. Misère dé la Philosophie, de Karl Marx (publicado por A. Frank, Paris, e C G . Vogler,
Bruxelas, 1847)
17. Carta de FE ao Comité de Correspondência Comunista, 19 de Agosto de 1846
18. Carta de FE a KM, 18 de Setembro de 1846
19. Carta de FE a KM, cerca de 18 de Outubro de 1846
20. Carta de FE a I<M, 9 de Março de 1847
21. Carta de FE a KM, 9 de Março de 1847
22. De «Regras da Liga Comunista», adoptadas durante o I Congresso, Junho 1847
23. Carta de KM a Herwegh, 26 de Outubro de 1847
24. De A Circular of the 1" Congress of the Communist Eeague to the Eeague Members, 9 de J
nho de 1847, traduzido em MECW, Vol. 6, p. 589

5. O PAPÃO ATERRADOR

1. De Rascunho de uma Confissão de Fé Comunista, de Friedrich ILn.gds,MECW, Vol. 6, pp. 96-10


2. Carta de FE a KM, 25-26 de Outubro de 1847
342 ^ X » KARLMARX

3. De Principios do Comunismo, de Friedrich Engels, MECW, Vol. 6, pp. 341-57


4. De Anies de 1848 e Depois, de Friedrich Lessner, em RME, pp. 149-66
5. De Gründungsdokument des Bundes der Kommunisten (Juni bis September 1847), editado por B
Andreas (Hamburgo, 1969)
6. De Die Communisten-Verschwörungen des neun^enhnten Joahrhunderts, de Karl Wermuth
Wilhelm Stieber (BerHm, 1853)
7. Citado em O Manifesto Comunista de KarlMarx e Friedrich Engels, editado por David
Ryazanov (Russell & Russell, Nova Iorque, 1963)
8. De AJl That is Solid Melts in the Air: The Experience of Modernity, de Marshall Berman (Verso,
Londres, 1982)
9. Deutsche-Brüssels Zetung, 27 de Fevereiro de 1848
10. Carta de FE a KM, 15 de Novembro de 1847
l l . M E C i r , V o l . 6,p. 649
12. De Short Sketch of an Eventful Eife, de Jenny Marx, RAÍE, p. 223
13. Ver «Ao Editor de Northern Stan>, de Friedrich Engels, Northern Star, 15 de Março de
1848, e carta de Karl Marx em Ea Réforme, 8 de Março de 1848
14. Carta de FE a I-OM, 25 de Abril de 1848
15. De Erinnerungen eines Achtundviersigers, de Stephan Born (Leipzig, 1898), traduzido em
KMJR,p. 16
16. Neue Rheinische Zeitung, 1 de Junho de 1848
17. The Reminiscences of CarlSchm\ (Londres, 1909), Vol. I, p. 138
18. Publicado em Neue Rheinische Zeitung, 13 de Setembro de 1848
19. Neue Rheinische Zeitung, 9 de Setembro de 1848 '
20. Kölnische Zeitung^ 4 de Outubro de 1848
21. Neue Rheinische Zeitung, 12 de Outubro de 1848
22. Neue Rheinische Zeitung, 29 de Outubro de 1848
23. De From Paris to Berne, por Friedrich Engels, MECW, Vol. 7, pp. 505-29
24. Carta de KM a FE, primeira quinzena de Novembro de 1848
25. Carta de KM a FE, 29 de Novembro de 1848
26. De «The Revolutionary Movement», Neue RJoeinische Zeitung, 1 de Janeiro de 1849
27. Deutsche Eondoner Zeitung, 16 de Fevereiro de 1849
28. Carta do coronel Engels a Oberpräsident Eichman, 17 de Fevereiro de 1849
29. Carta de KM ao coronel Engels, 3 de Março de 1849; ver igualmente carta de FE a Karl
Kautsky, 2 de Dezembro de 1885
30. De «Marx and the Neue Rheinische Zeitung), de Friedrich Engels, publicado em Der
Sozialdemokrat, 13 de Março de 1884
31. Carta de FE a Jenny Marx, 25 de Julho de 1849
32. Carta de KM a FE, 7 de Junho de 1849
NOTAS FINAIS * G # 343

33. Carta de I<M a FE, fins de Julho de 1849


34. Carta de KM a FE, 23 de Agosto de 1849
35. H O 3/53, Departamento de Arquivos Públicos, Londres
36. Carta de KM a FE, 23 de Agosto de 1849

6. O MEGALOSSAURO

1. Bleak House, de Charles Dickes (Cahpman & Hall, Londres, 1853), p. 1


2. The Times, 5 de Julho de 1849
3. Carta de KM a Ferdinand Freiügrath, 5 de Setembro de 1849
4. Carta de KM a Louis Nauer, 30 de Novembro de 1849
5. Carta de FE a Jakob Lukas Schabelitz, 22 de Dezembro de 1849
6. Northern Star, 1 de Dezembro de 1849
7. De Karl Marx: BiographicalMemoirs, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Untermann
(Londres, 1901)
8. Westdeutsche Zeitung, 8 de Janeiro de 1850
9. Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 19 de Dezembro de 1849
10. De ^ j Liitas de Classe em Trança, 1848-1850, traduzido em MECW, Vol. 10, pp. 47-145
11. De Karl Marx: A Study in Fanaticism, de E.H. Carr (}. M. Dent & Sons, Londres, 1934)
12. Carta de Jenny Marx a Joseph Weydemeyer, 20 de Maio de 1850
13. Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 27 de Junho de 1850
14. Carta de Jenny Marx a Joseph Weydemeyer, 20 de Maio de 1850
15. Carta de Jenny Marx a FE, 2 de Dezembro de 1850
16. Carta de FE a KM, 25 de Novembro de 1850
17. Carta de F a KM, 6 de Julho de 1851
18. FE a KM, 10 de Março de 1853
19. Spectator, 15 de Junho de 1850
20. FO 64/317, Departamento de Arquivos Públicos, Londres
21. Mtí^, de Robert Payne (WH. Allen, Londres, 1968)
22. Carta de Jenny Marx a Adolf Cluss, 30 de Outubro de 1852
23. Carta de KM a FE, 19 de Novembro de 1850
24. Carta de KM a Eduard von Müller-Tellering, 12 de Março de 1850
25. Relatório de um espião anónimo da polícia alemã, em KMIR, pp. 34-6
26. Original no Instituto Internacional de História Social, Amesterdão; publicado pela
primeira vez em Karl Marx, de Werner Blumenberg (Rowohlt, 1962; edição inglesa
publicada por Verso, Londres, 1972)
27. De Eleanor Marx: Volume One, Family Eif 1855-1883, de Yvonne Kapp (Lawrence and
Wishart, Londres, 1972)
344 ^ ^ KARL MARX

28. Friedrich Engels: His Tife and Thought, de Terrell Carver (Macmillan, Londres e
Basingstoke, 1989)
29. Carta de Terrell Carver, Sunday Times, Londres, 27 de Junho de 1982
30. Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 2 de Agosto de 1851
31. Carta de FE a KM, 20 de Abril de 1852

7. OS LOBOS FAMINTOS

1. Carta de KM a FE, 22 de Abril de 1854


2. Carta de FE a KM, 1 de Junho de 1853
3. Carta de KM a FE, 13 de Fevereiro de 1856
4. Carta de KM a FE, 10 de Abril de 1856
5. Carta de KM a FE, 27 de Julho de 1854
6. Carta de KM a FE, 23 de Abril de 1857
7. Carta de I<CM a FE, 7 de Janeiro de 1858
8. Carta de KM a FE, 21 de Junho de 1854
9. Carta de KM a FE, 13 de Agosto de 1858
10. Carta de KM a FE, 15 de Julho de 1858
11. Carta de KM a FE, 31 de Julho de 1865
12. Carta de FE a KM, 16 de Julho de 1858
13. Carta de FE a KM, 11 de Janeirol853
14. Carta de I<CM a Ludwig Kugelmann, 25 de Outubro de 1866
15. Carta de KM a Adolf Cluss, 18 de Outubro de 1853
16. New York Daily Tribune, 15 de Março de 1853
17. New York Daily Tribune, 4 de Setembro de 1852
18. New York Daily Tribune, 16 de Setembro de 1857
19. New York Daily Tribune, 19 de Outubro de 1853
20. Carta de KM a FE, 2 de Abril de 1851
21. Carta de Wilhelm Pieper a FE, 27 de Janeiro de 1851
22. Carta de I<M a Joseph Weydemeyer, 27 de Junho de 1851
23. Carta de KM a Jenny Marx (filha), 10 de Junho de 1869
24. Carta de KM a Jenny Marx, 11 de Junho de 1852
25. Carta de KM a J.G. Kinkel, 22 de Julho de 1852
26. Carta de J.G. Kinkel a KM, 24 de Julho de 1852
27. Carta de KM a J.G. Kinkel, 24 de Julho de 1852
28. Carta de KM a Adolf Cluss, 30 de Julho de 1852
29. Carta de KM a FE, 22 de Maio de 1852
NOTAS FINAIS « « ^ 345

30. Carta de KM ao barão A. von Brüningk, 18 de Outubro de 1852


31. Carta de KM a Karl Eduard Vehse, fins de Novembro de 1852
32. Carta de KM a Karl Eduard Vehse, fins de Novembro de 1852
33. Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 27 de Junho de 1851
34. De Os Grande Homens do Exilio, de Karl Marx e Friedrich Engels, em «The Cologne
Communist Trial»(Lawí:ence & Wishart, Londres, 1971), p. 167
35. Carta de George Julian Harney a FE, 30 de Março de 1846
36. Carta de FE a Emil Blank, 15 de Abril de 1848
37. Carta de KM a FE, 23 de Fevereiro de 1851
38. Carta de KM a FE, 11 de Fevereiro de 1851
39. Carta de FE a KM, 13 de Fevereiro de 1851
40. Carta de KM a FE, 24 de Fevereiro de 1851
41. Ver carta de George Julian Harney a FE, 30 de Março de 1846
42. De Neue Oder Zeitung, 8 de Junho de 1855
43. Discurso feito por KM a 14 de Abril de 1856, publicado em People's Paper, 19 de Abril
de 1856
44. Carta de FE a KM, 30 de Julho de 1851
45. Carta de KM a FE, 31 de Julho de 1851
46. Carta de FE a KM, 23 de Setembro de 1851
47. Carta de FE a KM, 15 de Outubro de 1851
48. Carta de FM a Ferdinand Freiligrath, 27 de Dezembro de 1851
49. Carta de KM a Lassaile, 23 de Fevereiro de 1852
50. Carta de FE a KM, 20 de Abril de 1852
51. Ver Cartas de KM a FE, 29 de Janeiro 1853,10 de Março de 1853,28 de Setembro de
1853
52. Neue Oder Zeitung, 28 de Junho de 1855
53. Neue Oder Zeitung, 5 de Julho de 1855
54. Die Presse (Viena), 2 de Fevereiro de 1862
55. Carta de KM a FE, 27 de Julho de 1866
5().T>c Man and theNatural World: Changing Attitudes in England 1500-1800, ácVdáÚiT^h.om
(Allen Lane, Londres, 1983), p. 240
57. Carta de FE a KM, 7 de Outubro de 1858
58. Carta de KM a Eleanor Marx, 9 de Janeiro de 1883
59. De David Urquhart: Some Chapters in the Ufe of a Yictorian Knight Errant of Justice andUbe
de Gertrude Robinson (Basil Blackwell, Oxford, 1920)
60. Carta de I<CM a FE, 10 de Março de 1853
61. Carta de KM a FE, 18 de Agosto de 1853
62. Carta de KM a FE, 9 de Fevereiro de 1854 -
63. Carta de KM a Ferdinand Lassalle
346 « 5 ^ KARL MARX

64. Carta de KM a Jenny Marx, 8 de Agosto de 1856


65. Os textos ofensivos foram retirados das obras completas alemãs e russas, mas foram
finalmente publicados na edição inglesa — embora apenas em 1986 e após muitos anos
de tenaz discussão entre os editores britânicos e as autoridades em Moscovo
66. Carta de KM a FE, 5 de Março de 1858
67. In the Days of the Dandies, de Lorde Lamington (Londres, 1890)

8. O HERÓI A CAVALO

L Carta de KM a FE, 17 de Janeiro de 1855


2. Carta de KM a Amalle Daniels, 6 de Novembro de 1855
3. Carta de KM a FE, 30 de Março de 1855
4. Carta de KM a FE, 12 de Abril de 1855
5. Carta de KM a FE, 13 de Fevereiro de 1863
6. Carta de KM a Ferdinand Lassalle, 28 de Julho de 1855
7. Carta de KM a FE, 11 de Setembro de 1855
8. Carta de Jenny Marx a Louise Weydemeyer, 11 de Março de 1861
9. De Karl Marx: A Few Stray Notes, de Eleanor Marx, em KME, pp. 250-1
10. Carta de FE a KM, posterior a 17 de Setembro de 1856
11. Carta de ¥M a FE, 20 de Janeiro de 1857
12. Carta de FE a KM, cerca de 22 de Janeiro de 1857
13. De Short Sketch of an Evenful Efe, de Jenny Marx, traduzido em RME, pp. 229-30
14. Carta de KM a FE, 24 de Março de 1857
15. Carta de KM a FE, 29 de Junho de 1857
16. Carta de KM a FE, 15 de Agosto de 1857
17. Carta de FE a KM, 15 de Novembro de 1857
18. Carta de FE a KM, 7 de Dezembro de 1857
19. Carta de FE a KM, 15 de Novembro de 1857
20. Carta de FE a KM, 11 de Fevereiro de 1858
21. Carta de KM a FE, 5 de Janeiro de 1858
22. Carta de KM a FE, 8 de Dezembro de 1857
23. Carta de KM a FE, 18 de Dezembro de 1857
24. Carta de KM a FE, 1 de Fevereiro de 1858
25. Carta de KM a FE, 5 de Março de 1856
26. Carta de KM a Lassalle, 31 de Maio de 1858
27. Carta de KM a Lassalle, 22 de Fevereiro de 1858
28. Carta de FE a Nikolai Danielson, 13 de Novembro de 1885
29. Carta de KM a FE, 19 de Outubro de 1867
NOTAS FINAIS ^ à * 347

30. Carta de Jenny Marx a FE, 9 de Abril de 1858


31. Carta de FE a Jenny Marx, 11 de Maio de 1858
32. Carta de KM a Cari Friedrich Julius Leske, 1 de Agosto de 1846
33. Carta de KM a Lassalle, 22 de Fevereiro de 1858
34. Carta de KM a FE, 21 de Janeiro de 1859
35. Carta de KM a FE, 22 de Outubro de 1858
36. Carta de KM a FE, 10 de Novembro de 1858
37. Carta de KM a Lassalle, 12 de Novembro de 1858
38. Carta de KM a FE, 11 de Dezembro de 1858
39. Carta de KM a FE, 13-15 de Janeiro de 1859
40. Do Prefácio ÍLA Critique of Political Economy, de Karl Marx, traduzido em MESW, Vol.
I, pp. 361 ff
41. Carta de KM a FE, 22 de Julho de 1859
42. Carta de Jenny Marx a FE, 23 ou 24 de Dezembro de 1859
43. De Mein Process gegen die Allgemeine Zeitung, de Karl Vogt (Genebra, 1859), traduzido e
KMIR, pp. 17-19
44. De Herr Vogt, de Karl Marx, em MECW, Vol. 17, p. 243
45. Carta de KM a FE, 28 de Novembro de 1860
46. Carta de Jenny Marx a Louise Wydemeyer, 11 de Março de 1861
47. Carta de KM a FE, 18 de Janeiro de 1861
48. Carta de KM a Antoinette Philips, 24 de Março de 1861
49. Carta de KM a Antoinette Philips, 13 de Abril de 1861
50. Carta de Jenny Marx a FE, princípios de Abril de 1861
51. Carta de KM a Antoinette Philips, 24 de Março de 1861
52. Carta de KM a FE, 30 de Julho de 1862
53. Carta de KM a FE, 19 de Junho de 1861
54. Carta de KM a FE, 18 de Junho de 1862
55. Carta de KM a FE, 30 de Julho de 1862
56. De Short Sketch of an Eventful Eife, de Jenny Marx, traduzido em KME, p. 234
57. Carta de KM a Lassalle, 7 de Novembro de 1862
58. Carta de Lassalle a Bismark, 8 de Junho de 1863, traduzida em Karl Marx's Theory of
Revolution, Volume TV: Critique of Other Socialisms, de Hal Draper (Monthly Review Pre
Nova Iorque, 1990), p. 55
59. Carta de FE a KM, 4 de Setembro de 1864
60. Carta de KM a FE, 7 de Setembro de 1864
61. Carta de KM a Sophie von Hatzfeldt, 12 de Setembro de 1864
(,2. Caita, de KM a FE, 24 de Dezembro de 1862
63. Carta de KM a FE, 20 de Agosto de 1862
3481^ KARL MARX

64. De The Socialism of KarlMarx and the Young Hegelians, de John Rae, Contemporary Kepie
vol. XL, Outubro de 1881, p. 585
65. Carta de KM a Collet Dobson Collet, 6 de Setembro de 1871
66. The Times, 2 de Setembro de 1851
67. Ver The "Ked Doctor" Amongst the Virtuosi: Karl Marx and the Society, de D. G. C. Allan,
Journal of the Royal Society of Arts, Vol. 129 (1981), pp. 259-61 e 309-311
68. Carta de Jenny Marx (filha) a FE, 2 de Julho de 1869
69. De Karl Marx: Biographical Memories, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Unter-
mann (Londres, 1901)
70. De The Introduction and CriticallReception of MarxistThought in Britain, 1850-1900, de Kirk
Wilüs, The Historical Journal, 20, 2 (1977), pp. 417-459
71. Carta de KM a FE, 18 de Junho de 1862
72. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 28 de Dezembro de 1862

9. OS BULDOGUES E A HIENA

1. Carta de FE a KM, 13 de Janeiro de 1863


2. Carta de KM a FE, 14 de Janeiro de 1863
3. Carta de FE a KM, 16 de Janeiro de 1863
4. Carta de KM a FE, 2 de Dezembro de 1863
5. De «As últimas vontades e testamento de Johann Friedrich Wolfß>, Manchester Probate
Court, Registo N.° 1 (1864), Folio 606
6. Carta de KM a FE, 25 de Julho de 1864
7. Carta de KM a Lion Philips, 25 de Junho de,1864
8. Carta de KM a FE, 4 de Julho de 1864
9. Carta de FE a KM, 28 de Junho de 1868
10. Carta de KM a FE, 27 de Junho de 1868
11. De «Observações sobre o Artigo do Sr. Adolphe Bartels», de Karl Marx, Deutsche-
Brüsseler-Zeitung, 19 de Dezembro de 1847
12. Carta de KM a Ferdinand Freiiigrath, 29 de Fevereiro de 1860
13. The Tion and the Unicom: Sodalism and the English Genius, de George Orwell (Seeker &
Warburg, Londres, 1941)
14. Northern Star, 19 de Junho de 1847
15. Para relatos do caso Haynau, ver The Chartist Challenge:A Portrait of GeorgeJulian Harney
de A. R. Schoyen (Heinemann, Londres, 1958); A History of the Chartist Movement, de
Julius West (Constable, Londres, 1920); The Common People 1746-1938, de G. D. H. Cole
e Raymond Pistgate (Methuen, Londres, 1938) e o editorial de Harney no Red Republican,
14 de Setembro de 1850 ' : ,
NOTAS FINAIS o < ^ 349

16. The Age of Capital, E.J. Hobsbawn (Abacus, Londrs, 1977), pp. 134-5
17. Carta de KM FE, 9 de Abril de 1863
18. Marx, de Robert Payne (W H. Allen, Londres, 1968), p. 322
19. The Social and Political Tought of Karl Marx, de Schlomo Avineri (Cambridge University
Press, 1968), p. 63
20. Para uma minuciosa dissecação dos erros de Avineri, ver apêndice em Karl Marx's
. Theorrj of K£volution — Volume II: The Politics of Social Classes, de Hal Draper (Month
Review Press, Nova Iorque, 1978), pp. 635ff
21. De Neue Rheinische Zeitung, Politisch-ökonomische Revue, N.°' 5-6, 1850
22. Carta de KM a FE, 9 de Fevereiro de 1859
23. Carta de KM a FE, 18 de Maio de 1859
24. Carta de KM a FE, 26 de Setembro de 1866
25. Todas as citações das minutas são tiradas de The General Council of the First International
compilação em cinco volumes dos registos do Conselho, publicada por Foreign Lan-
guages Publishing House, Moscovo
26. Carta de KM a FE, 4 de Novembro de 1864
27. Carta de KM a Laura Marx, 20 de Março de 1866
28. Carta de KM a FE, 20 de Junho de 1866
29. Carta de KM a FE, 13 de Março de 1865
30. Carta de FE a Laura Lafargue (nascida Marx), 24 de Junho de 1883
31. Carta de FE a KM, 12 de Abril de 1865
32. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 1865
33. Carta de KM a FE, 1 de Maio de 1865
34. Carta de 1<M a FE, 31 de Julho de 1865
35. Carta de KM a Paul Lafargue, 13 de Agosto de 1866
36. Carta de KM a FE, 11 de Novembro de 1882
37. Carta de KM a Paul Lafargue, 13 de Agosto de 1866
38. Carta de KM a FE, 6 de Março de 1868
39. Ver carta de Laura Lafargue a FE, 6 de Março de 1893, na Correspondência Engels-
-Lafargue, Vol. III, pp. 246-7
40. Carta de Laura Marx a FE, 16 de Outubro de 1893, na Correspondência Engels-
• -Lafargue, Vol. III, p. 304
41. Carta de Jenny Marx a Wilhelm Liebknecht, 26 de Maio de 1872

10. O CAO PELUDO

1. De «Reminiscencias de Marx», de Paul Lafargue, em RAÍE, p. 73


2. Carta de KM a FE, 22 de Junho de 1867
3501?*:: KARL MARX

3. Carta de KM a FE, 2 de Abril de 1867


4. Carta de KM a FE, 13 de Abril de 1867
.5. Carta de KM a FE, 24 de Abril de 1867
6. Carta de I<:M a FE, 7 de Maio de 1867
7. Carta de KM a FE, 22 de Junho de 1867
8. Carta de KM a FE, 16 de Agosto de 1867
9. Conversations, de Kenneth Harris (Hodder & Stoughton, Londres, 1967), p. 268. Wüson
repetiu a afirmação numa entrevista para The Times, 2 de Agosto de 1976
10. De O Capital: «Uma Crítica da Economia PoKoca», Vol. I, de Karl Marx, traduzido por
BenFowltes (PelicanBoolcs, Londres, em associação com ÍVÍ?»^LÍ/?RÍW>», 1976), p. 797
11. Ibid., p. 799
12. Main Currents of Marxism: Its Rise, Growth and Dissolution, Vol. I, de Leszek Kolakowski
(Clarendon Press, Oxford, 1978), p. 291
13. Ibid., p. 329
14. Conferências de Karl Marx no Conselho-Geral da Primeira Internacional, 20 e 27 de
Junho de 1865, publicadas no panfleto Value, Price andProfit, editado por Eleanor Marx
— Aveling (Londres, 1898)
15. Posfácio à segunda edição alemã de O Capital, 1873
16. O Capital, Vol. I, pp. 142-3
17. De The Tife and Opinions of Tristam Shandj, Gent, de Laurence Sterne, em The Works of
Taurence Sterne, Vol. I (Bickers & Son, Londres, 1885)
ÍS.LMurence Sterne: A. Fellow of Infinite Jest, de Thomas Yoseloff (Francis Aldor, Londres,
1948), p. 87
19. M E C I F ; Vol. 30, pp. 306-310
20. To the Finland Station, de Edmund Wilson (MacmiUan, Londres, 1972), pp. 340-2
21. Saturday Review of Politics, Uterature, Science and Art, Londres, 18 de Janeiro de 1868
22. Contemporary Review, Londres, Junho de 1868
23. Carta de FE a KM, 16 de Junho de 1867
24. Carta de FE a ÍCM, 23 de Agosto de 1867
25. Carta de KM a Kugelmann, 30 de Novembro de 1867
26. Carta de KM a FE, 19 de Outubro de 1867
27. Carta de FE a Ludwig Kugelmann, 8 e 20 de Novembro de 1867
28. Carta de Jenny Marx a Ludwig Kugelmann, 24 de Dezembro de 1867
29. Ibid.
NOTAS FINAIS ö ^ 351

II. O ELEFANTE VELHACO

1. Karl Marx: A Political Biography, de Fritz J. Raddatz, traduzido por Richard Barry,
(Weidenfeld & Nicholson, Londres, 1978), p. 207
2. Karl Marx, de E.H. Carr (J. M. Dent & Sons, Londres, 1934), p. 224
3. Karl Marx: His Ufe and Environment, de Isaiah Berlin (Butterworh, Londres, 1939), p. 79
4. Archives Bakounine, editado por A. Lehning (International Institute for Social History,
Amesterdão, 1967)
5. Democratic Pan-Slavism, de Friedrich Engels, Neue RJjeinische Zeitung, 15 de Fevereiro de
1849
6. Carta de KM a FE, 12 de Setembro de 1863
7. Carta de I<M a FE, 4 de Novembro de 1864
8. Michael Bakounin, de E. H. Carr (Vintage Books, Nova Iorque, 1961)
9. Discurso «Aos Membros da Associação Internacional dos Trabalhadores da Europa e
dos EUA» publicado por IWMA, Julho de 1870
10. Minutas do ConselhoGeral, 22 de Agosto de 1870
11. Carta de KM a Ferdinand Lassalle, 4 de Fevereiro de 1859
12. Carta de KM a FE, 17 de Agosto de 1870
13. Carta de KM a Paul e Laura Lafargue, 28 de Julho de 1870
14. Carta de Jenny Marx a FE, 10 de Agosto de 1870
15. Carta de FE a KM, 31 de Julho de 1870
16. Cartade KM a FE, 8 de Agosto de 1870
17. Discurso «Aos Membros da Associação Internacional dos Trabalhadores da Europa
e dos EUA», publicado por IWMA, Setembro de 1870
18. Carta de KM a Friedrich Adolph Sorge, 1 de Setembro de 1870
19. Ti)í Tiwé-J, 22 de Março de 1871
20. Carta de KM a Wilhelm Liebknecht, 6 de Abril de 1871
21. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 12 de Abril de 1871
22. Ver, por exemplo, Karl Marx: A Biography, de David McLellan, p. 359
23. Carta de Jenny Marx (filha) aos Kugelmann, 18 de Abril de 1871
24. The Civil War in France (Edward Truelove, Londres, Junho de 1871)
25. «A Internacional Dirigida à Classe Operária», de Joseph Mazzini, Contemporary Revue,
XX (Julho de 1872), 155
26. The Times, 16 de Abril de 1872
27. The Commune of 1871, de EBM, Fraser's Magai^ine, Junho de 1871
^8. The Tablet, 15 de Julho de 1871
29. jr^íí-/«/or, 17 de Junho de 1871
30. «O Proletariado numa Falsa Pista», de W. R. Gt&^, Quarterly Revieiv CXXXII (Janeiro
de 1872), p. 133
3 5 2 * 1 ^ KARL MARX

31. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 18 de Junho de 1871


32. Ml Mall Gazette, 9 de Junho de 1871
33. P«//M«//G«^í//í, 3 de Julho de 1871
34. The World, Nova Iorque, 18 de Julho de 1871
35. Carta de KM a Jenny Marx, 23 de Setembro de 1871
36. Archives Bakounine, traduzido em Karl Marx's Theory of Revolution, Volume IV: Critique of
Other Sodalisms, p. 296
37. lues Prétendues Scissions dans l'Internationale (Co-operative Press, Genebra, 1872)
38. Ein Zesdaagsch International Débat (Dordrecht, 1872), traduzido em KMIR, pp. 114-15
39. Nicolaievsky e Maenchen-Helfen, p. 382
40. TA? T/Ä'iJ, 7 de Setembro de 1872
41. Nicolaievsky e Maendhen-Helfen, p. 384
42. «Relatório do V Congresso Geral Anual da Associação Internacional dos Trabalha-
dores, ocorrido em Haia, Holanda», 2-9 de Setembro de 1872, Maltman Barry (Lon-
dres, 1873)
43. Carta de KM a Nicolai Danielson, 28 de Maio de 1872
44. Carta de KM a César de Paepe, 28 de Maio de 1872
45. Violence dans la violence: le débat Bakounine-Necaev, de Michael Confino (Maspero, Paris
1973), p. 88; ver igualmente Karl Marx's Theory of Revolution, Volume IV: Critique of Other
Socialisms, p. 302

12. O OURIÇO TOSQUIADO

1. Carta de Jenny Marx a Friedrich Adolphe Sorge, 20 ou 2Ide Janeiro de 1877


2. Carta de Jenny Marx a Wilhelm Liebknecht, 26 de Maio de 1872
3. Carta de Jenny Marx (filha) a Eleanor Marx, 10 de Abril de 1882, citada em Eleanor Marx,
Volume I: Family Ufe /á'i5-/á'á'i, de Yvonne Kapp (Lawrence & Wishart, Londres, 1972),
p. 240
4. T)c Autobiographic Memoirs, de Frederic Harrison (Londres, 1911), Vol. II, p. 33
5. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 4 de Agosto de 1874
6. Carta de KM a FE, 11 de Novembro de 1882
7. Carta de Jenny Marx (filha) a Ludwig e Gertrud Kugelmann, 21-22 de Dezembro de
1871
8. Carta de KM a FE, 31 de Maio de 1873
9. Carta de Eleanor Marx a KM, 23 de Março de 1874; traduzida em Eleanor Marx, Volu-
me I: Family Ufe 1855-1883, de Yvonne Kapp (Lawrence & Wishart, Londres, 1972), pp.
153-4
10. Carta de Eleanor Marx a Jenny Longuet, 1 de Julho de 1882
NOTAS FINAISfi*G<»353

11. Carta de Eleanor Marx a Karl Kautsky, 28 de Dezembro de 1896


12. Carta de Eleanor Marx a Jenny Longuet, 8 de Janeiro de 1882
13. Carta de KM a Nikolai Danielson, 12 de Agosto de 1873
14. Carta de KM a FE, 20 de Agosto de 1973
15. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 27 de Setembro de 1873
16. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 19 de Janeiro de 1974
17. Ficha H045/9366/36228 no Departamento de Arquivos Públicos, Londres
18. Carta de KM a FE, 1 de Setembro de 1874
19. Carta de KM a FE, 18 de Setembro de 1874
20. De Sprudel (Viena), 19 de Setembro de 1875, traduzido em KMIR, pp. 124-5
21. De Going to Canossa, de August Bebei, RME, p. 216
22. De Visits to Karl Marx, de Nikolai Morozov, RME, p. 303
23. De Aus den Jahren meines Exils: Erinnerungen eines Socialisten, de Eduard Bernstein (Berli
1919), traduzido em EMIK, pp. 152-3
24. Tie Aus denErü^toeit des Marxismus, de Karl Kautsky (Praga, 1935), traduzido em KMIR,
pp. 153-6
25. Chicago Tribune, 5 àe]ã.neito de 1&79
26. Carta de KM a Ferdinand Dómela Nieuwenhuis, 22 de Fevereiro de 1881
27. Carta de Sir Mountstuart Elphinstone Grant Duff, membro do Parlamento, à princesa
real Victoria, 1 de Fevereiro de 1879; primeiro publicada em «A Meeting with Karl
Marx»j Times Literary Supplement, 15 de Julho de 1949
28. Ver Karl Marx. Persönliche Erinnerungen, de Paul L,a.ia.i:gae, Die Neue Zeit, Vol. IX, p.
(1890-1), traduzido em KMIR, p. 73; e também Karl Marx and the Promethean Complex,
de Lewis S. Feuer, Encounter, Vol. XXXI, N.° 6 (Dezembro de 1968), p. 15
29. Carta de Charles Darwin a KM, 1 de Outubro de 1873
30. Carta de KM a FE, 19 de Dezembro de 1860
31. Carta de KM a Lassalle, 16 de Janeiro de 1861
32. Carta de KM a FE, 7 de Agosto de 1866
33. Carta de Charles Darwin a Edward Aveüng, 13 de Outubro de 1880. Esta e a outra carta
de Darwdn de O umbro de 1873 podem ser encontradas no HSH, Amesterdão. Ambas
têm borrões idênticos onde alguém — provavelmente o próprio Aveling — entornou
tinta; como tais borrões estão ligeiramente desbotados na carta de Marx, deduz-se que
estas missivas estavam juntas na sua secretária, com a carta de 1880 por cima, quando
o acidente ocorreu. Para mais pormenores sobre o mito Marx-Darwin, consultar o
seguinte: «Os Contactos entre Karl Marx e Charles Darwin», e Ralph Colp]t., Journal
of the History of Ideas, Vol. XXXV, N.° 2 (Abril-Junho de 1974), pp. 329-38; «Quis Marx
Dedicar O Capital a Charles Darwin?», de Margaret A. V'ny, Journal of the Histoty of Ideas,
Vol. XXXIX, N.° 1 Qaneiro-Março de 1978), pp. 133-46; «O Caso da Carta Marx-
-Darwin», de Lewis S. Feuer, Encounter, Vol. LI, N.° 4 (Outubro de 1978), pp. dl-ll;
354 < j ^ KARI.MARX

«Marx e Darwin: Uma História Policial Literária», de Margaret A. Fay, Monthly Review
(Nova Iorque), Vol. 31, N.° 10 (Março de 1980), pp. 40-57; «O Mito da Carta Marx-
-Darwin», de Ralph Colp Jr, History of Political Economy (Duke University, CaroHna do
Norte, Vol. 14, N.° 4 (Inverno de 1982), pp. 461-82
34. De Karl Marx, por Isaiah Berlin (Thornton Butterworth, Londres, 1939) p. 218
35. «De Brincadeira a Dogma: Uma nota de rodapé sobre Marx e Darwin», de Schlomo
Avineri, Encounter, Vol. XXVIII (Março de 1967) pp. 30-32
36. Spectator, 17 de Outubro de 1998
37. «Karl Marx e o Socialismo Alemão», de John Macdonneil, Fortnightly Review, 1 de Março
de 1875
38. Carta de Macmillan & Co. (Londres) ao professor Carl Schorlemmer, 25 de Maio de
1883
39. Carta de Robert Banner a KM, 6 de Dezembro de 1880
40. The Record of an Adventurous Life, de H. M. Hyndman (Macmillan, Londres, 1911)
pp. 271-2
41. V&c The Proud Tower: A Portrait of the World Before the War, 1800-1914, de Barbara Tuch
man (Macmillan, Londres, 1980), p. 360
42. Hyndman, p. 273
43. «As Minhas Recordações de Karl Marx», de Marian Comyn em Nineteen Century and
_4r/f;r (Londres, 1922), pp. 161 ff.
44. Carta de KM Jenny Longuet, 11 de Abril de 1881
45. Ver The Victorian Encounter with Marx: A Study of Ernest Beifort Bax, de John Cowley
(British Academy Press, Londres & Nova Iorque, 1992)
46. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 15 de Dezembro de 1881
47. Carta de FE a Johann Philipp Becker, 17 de Agosto de 1880
48. Citado em EleanorMarx, Vol. I, de Yvonne Kapp (Lawrence & Wishart, Londres, 1972),
pp. 215-16
49. Carta de KM a Nikolai Danielson, 19 de Fevereiro del 881
50. Carta de KM a Jenny Longuet, 29 de Abril de 1881
51. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 20 de Junho de 1881
52. Carta de KM a FE, 9 de Agosto de 1881
53. Carta de KM a FE, 18 de Agosto de 1881
54. Carta de KM a Kari Kautsky, 1 de Outubro de 1881
55. Carta de FE a Eduard Bernstein, 30 de Novembro de 1881
56. Ver carta de KM a Jenny Longuet, 7 de Dezembro de 1881
57. Carta de KM a Laura Lafargue, 13 e 14 de Abril de 1882
58. A mulher era Virginia Bateman, mãe do romancista Compton Mackenzie. As suas
reminiscências podem ser encontradas em My Efe and Times, de Compton Mackenzie
(Londres, 1968), Vol. VII, p. 181
NOTAS FINAIS ^ J 355

59. Carta de KM a FE, 20 de Maio de 1882


60. Carta de Jenny Longuet a Eleanor Marx, 8 de Novembro de 1882
61. Carta de KM a Laura Lafargue, 14 de Dezembro de 1882
62. Carta de KM ao Dr. James M. Williamson, 6 de Janeiro de 1883. Ver igualmente
Prometheus Bound: Karl Marx on the Isle of Wight, de Dr. A. E. Lawrence e Dr. A. N. Inso
(Departamento dos Serviços Culturais do Conselho do Condado da Ilha de Wight,
Newport, 1981)
63. De RME, p. 128
64. Carta de FE a August Bebel, 7 de Março de 1883
65. Carta de FE a Friedrich Adolpe Sorge, 15 de Março de 1883
66. Dailj News (Londres), 17 de Março de 1883
67. PallMall Gazette, 16 de Março de 1883
68. New York Sun, 6 de Setembro de 1^
INDICE REMISSIVO

Aberdare, Lorde, 288 Bauer, Edgar, 73, 82, 223-24


Agoult, condessa Marie d', 65 Bauer Heinrich, 93
Aliança Internacional da Democracia Bauer, Louis, 138
Socialista, 276, 293 Bax, Ernest Beiford, 321-22
Allgemeine Uteratur-Zeitung, 83 Becker, Hermann, 125
Anneke, Friedrich, 123-24 Berlin, Isaiah, 315-16
Annenkov, Pavel, 97, 98 Bernays, Karl Ludwig, 66
Antigo Testamento, 10 Hleak Mouse (Dickens), 135-37
Arnim, Bettina von, 51 Blind, Karl, 208-9
Assembleia Nacional Alemã, 122-123 Bios, Wilhelm, 47
Assembleia Nacional Prussiana, 131,133 Börnstein, Heinrich, 66
Associação Educativa dos Trabalhadores Brandeburgo, conde, 129
Alemães {ver também Liga dos Justos), 93, Breve Esboço à: Uma VidaPlena (J. Marx), 156-57
109-110,115,137,138-140,150-51 Burns, Lydia, 227-28, 301
Associação Internacional do Operariado, Burns, Mary, 19,78, 227-30
236-250, 272, 276-283, 286-300
Associação dos Trabalhadores de Colónia, Capital, O (Marx), 140
122-23,127,149-50 censurado, 260-271
Aveling, Edward B , 317, 321-22 dedicação, 232, 315-18
Avineri, professor Shlomo, 276, 316 influência dos economistas ingleses sobre,
264
Babeuf, Gracchus, 92 influência de Engels em, 79-80, 232
Bachmann, Dr. Carl Friedrich, 37 influência da literatura de ficção sobre,
Bakunine, Michail, 63-66, 272-277, 281, 292- 264-70
-296, 298-300 Karl Marx termina o volume I, 259-60
Bangya, coronel, 164 nascimento de, 149, 168-169, 199, 221-22,
Bartels, Adolphe, 235-236 225, 250-51, 256-57
Barthélémy, Emmanuel, 148-149 opinião de Darwin sobre, 313-318
Bauer, Bruno, 32, 35-36, 37-39, 42, 56-57, 83, plagiado, 320-321
90, 104 publicação dos volumes, II e III, 331
358 KARL MARX

Teorias do Valor Excedente, 268-69 conhecimento das infidelidades de Karl


tradução inglesa de, 318-19, 331 Marx, 154-55
Carr, E.H, 142, 274 contribuição para a A Ideologia Alemã, 88-93
Carter, James, 250 contribuição pzïaA Sagrada Familia, 81-2
Carver, professor Terrell, 155-56 contribuição para O Manifesto Comunista,
Cartismo, 78,121,172-73 107-111
Claflin, Tennessee, 292 críticas à estrutura de O Capital, 270-71
Clube dos Trabalhadores Alemães, 118 críticas ao jornalismo de Karl Marx, 120-21
Comité Comunista de Correspondência, 96, denuncia Heinzen, 43-4
101-5 desavença com Karl Marx, 229-31
Comuna de Paris, 282-88, 292, 298, 303 discurso fúnebre no fiinerai de Karl Marx, 329
Condições da Classe Operária em Inglaterra, As, em Paris (1846), 101-5
78-9, 86-7, 264 em poder do hirsuto, 41-2
Conselho Comercial de Londres, 239-40, 244, encontros com os revolucionários da classe
250 operária, 92-5
Cremer, Randal, 243-44, 245-47, 248-50 encontrou Karl Marx morto, 328-29
escritor fantasma das fichas de Karl Marx
Daily Telegraph, 211-12, 216 para a New American Cyclopaedia, 196-99
Dana, Charles, 165 escritor fantasma dos artigos de Karl Marx
Darwin, Charles, 313-317 para o Tribune, 165-66, 191-3
expulso da Bélgica, 1848,126
Demuth, Helene, 87,114, 117, 153-58,194,
fuga de Colónia, 1848,125-6
323, 328, 331
infância, 74-79
Demuth, Henry Frederick, 153-158, 332
na Alemanha, 120-1, 125
Deutsche-Brüsseler Zeitung, 110,115-16
na Assembleia Nacional Alemã, 122
Deutsche-Tran^ösiche Jahrbücher, 50, 54, 62, 63-
na contribuição de Karl Marx para a
-66,73
Internacional, 247-48
Deutsche Jahrbücher, 39, 47, 49
na preferência alemã, 324
Dickens, Charles, 135-137
nas revoluções de 1848, 115-16
Dolleschall, Laurenz, 47-48
no cataclismo internacional financeiro,
Dronke, Ernst, 120-21, 124, 126 . ,
1885,197-98
Duff, Sire Mountstuart Eiphinstone Grant,
no Marxismo, 67
311-13
no Neue VJoeinishe Zeitung, 132-33
Duncker, Franz, 203-4, 206
no proletariado inglês, 182
nos hábitos burgueses de Karl Marx, 233
Eccarius Johann Georg, 240-42, 259
ódio ao funcionalismo prussiano, 125
Engels, Frederick,
passeios pior França, 127-8
acompanhando Karl Marx para a Bélgica, 86 predição da crise no mundo de negócios,
alistamento no exército, 133
178-81,195
amizade com Karl Marx, 79-81 primeiras impressões de Karl Marx, 40, 72-73
apetite carnal, 103-4, 145, 227-231 relacionamento com os pais, 74, 76-77, 78,
carácter, 79-81 79, 85-86
cavaleiro, 198-99 reunir notas para O Capital, 331
com Julian Harney, 174-177 suporte financeiro para Karl Marx, 81, 87,
com Weitling, 95-6 128-29,137-39,144-45,162-165,195-96,
começa a trabalhar na firma Ermen & 206-207, 216-17, 218-19, 229-31, 232,
Engels, 144-5 , , . ; 257, 258, 301
NOTAS FINAIS 359

tentativas de criar interesse à volta de O Jane Eyre (Bronte), 52


Capital, 271 Jones, Ernest, 169, 173, 176, 182-3
trabalhos, 72-3, 77-80, 86-7
Kinkel, Gottfried, 138, 168-172
Engels, coronel Friedrich, 131-2 Koppen, Karl Friedrich, 42-3
Ermen & Engels, 74, 78,144-5, 230 Kriege, Hermann, 98-9
Ewerbeck, August Hermann, 102-3 Kugelmann, Ludwig, 248, 257-8, 271-2, 308-9
EstaHne, 10-11
Lö BJforme, 116, 118
Favre,Jules, 287, 290-91 Lafargue, Paul, 26, 246, 252-3, 296, 302-4,
Fay, Margaret, 316-7 332
Feuerbach, Ludwig, 23, 35, 54-5, 82, 89-90 Lassale, Ferdinand, 55, 183, 186, 201-6, 212,
Flocon, Ferdinand, 116 214-6,217,221,248,275
Frankenstein (M. Shelley), 70 Le Lubez, Victor, 240, 244, 246
Freiligrath, Ferdinand, 137, 179, 236, 259 Le Moussu, Benjamin Constant, 302
Freyberger, Louise, 154-6 Lenine, Vladimir Iliych, 10, 332
Filosofia da Pobrei^a, A., 100 Leopoldo I, 86
Leske, Karl, 88
Gans, Eduard, 30, 35 Lessner Friedrich, 41, 94,109,115, 154, 245,
Garibaldi, Giusepp, 239 246
Goethe, Johann Wofgang von, 17-8, 31-2 Lev)r, Joseph Moses, 212-3, 216
Gottschalk, Andreas, 122-4, 132 Liebknecht, Wilhelm, 41, 72-3, 113-4,139-40,
Grande Exposição, A, 217 191,194,208,223-24,248
Granville, Lorde, 287 Liga Comunista, 104, 108-10, 118, 119-21,
Grün, Karl, 99-100, 102-3, 104 122-23, 137,138-39,148-49,165,169-70,
Guerra Franco-Prussiana, 277-9, ,295 173-4, 208-10, 233-4
Guilherme I, rei, 214-5 Liga dos Justos, 92-4
Guilherme IV, rei Frederico, 36, 39, 48-9, 85- Liga dos Marginais, 92, 102-4,108
-6, 146-7, 149 Lissagaray, Prosper Olivier, 283, 303, 305
Guilherme II, Frederico, 129 Longuet, Charles, 283, 296, 302, 303-304, 322
Lucas, Betty, 51
Harney, JuHan, 173-7, 237-8 Luis FiHpe, rei, 61-2, 86, 115
Healey, Denis, 20
Hecker, Friedrich, 127 Manifesto Comunista, O (Marx e Engels)
Hegel, G. W. F , 27-32, 35-40, 53-4, 70-1, 88- celebração da burguesia de, 111-3, 210
-9,110,206,213,269 comparações com O Capital, 265-6
Heine, Heinrich, 28, 64-65, 66-67, 76, 96 comparadas com as «Exigencias do Partido
Heinzen, Karl, 43-5, 86, 138 Comunista», 118-20
Herwegh, George, 62, 66-7, 104, 118-9 concluindo a ameaça, 12
Hess, Moses, 40, 45, 82, 86, 99,108 contribuição de Engels para, 108-10
Hon' dojou do?, 170 críticas a, 113
Hyndman, Henry, 319-21 estilo, 107-10,113-15
inconsistências em, 121-2
«Incidente Haynau», 238-9 paralelismo com trabalhos mais antigos, 58-9
Inglaterra para Todos, ^ (Hyndman), 320-21 plagiado, 219-20
primeira tradução inglesa, 174-5
360%^ KARL MARX

recepção em Inglaterra, 222 sobre Grafton Terrace, 190-93


ressonância contemporânea, 114 sobre o carácter de Engels, 299
versões antigas de, 107-110 sobre o esforço da família Marx para sobre-
Mao, presidente, 9-10 viver, 139-41
Marx, Edgar, 104, 159,190-2 torna-se secretária de Karl Marx, 160
Marx, Eleanor, 14, 24, 53, 63, 68,152-53,154, Marx, Karl,
185,187-8,191-3,203,231,281,301-8,314, Carácter
318,322,324-6,329-30 absorvido de imediato com as circunstâncias,
Marx, Franziska, 157-8, 189 133-135
Marx, Heinrich (anteriormente Hirschel Marx), agente do Diabo, 9
18-9,20-5,33-4,116 alienação de si próprio, 68-70
Marx, Heinrich Guido («Fawkesp), 137,144,150 amante de charutos, 254
Marx, Henriette, 17, 19, 25,116, 212, 214, 229 apetência para duelos, 20-1, 145-6, 168,
Marx, Jenny (Jennychen), 24-5, 61,191,203,214, 207-8
216, 221, 228, 230-1, 294, 300, 301, 324-6 arrogância, 237-241
Marx, Johanna Bertha JuUe Jenny (anteriormente consumismo, 61
Von Westphaler) denunciando rivais, 25-6, 42-3, 52-3, 59,
atitude em relação ao casamento, 48 80-1,86-8,95-101,121-3,148-50,165-71,
casa com Karl Marx, 50 209-11,213-14,309-10
casamento com Karl Marx, 22-5, 34-6 desafiando as limitações fisicas, 18-9
deprimida pela indiferença para com O desespero com dinheiro, 50-51
Capital, 269 desordenação, 31-2, 60-1, 150-1, 253-4
efeitos perante a pobreza, 203-4, 215, 218-9, distraidíssimo, 41
227-8 efeito da barba na percepção dos outros,
elogios à vitalidade de Engels, 225-6 10, 38-40, 324-325
herança, 190, 229-30 excesso estíh'stico, 56-57
intimidada por Karl Marx, 49-50 falta de calma, 150
lamentos pela perda dos netos, 251 fanfarrão intelectual, 42-44, 94-96, 97,121-
morte de, 322 -122,136-138, 206-208, 285-86
opinião da Bélgica, 85 gregário isolado, 232-234
paternidade incompetente, 61 hábitos de bebida, 19-20,31-32,35-37,41-
perseguida por Willich, 145-6 -42, 44, 70-71, 84-85,150-151, 221-222
preocupada com a fidelidade de Karl Marx, hábitos de trabalho, 31-32, 51-52, 60-61,
64 107-109, 202-204, 206, 253-54
prisão, 115,124 impassibilidade, 47-48, 49, 226-229
procura angariar suporte financeiro para a isolado de si próprio, 231-233, 307-308
família, 140-1, 143 manuscritos ilegíveis, 78-80
reacções à infidelidade de Karl Marx, 151-2, paixão pelo xadrez, 111-2, 333
153-56 paixão por pseudónimos, 135-136
saúde, 203-4,211-3, 319-22 paternidade incompetente, 61-62
segundo plano, 22-5 patriarca burguês, 70-1,158-62,190-4,229-
sobre a Alemanha, 213-14 -30, 231, 257-8, 288-9, 293-4, 306-10
sobre a fraca recepção de Críticas de Economia perfeccionismo obsessivo, 117-119, 202-
Política, 206 -203,281-282,311
sobre a Guerra Franco-Prussiana, 277 prática oratória, 40-41
sobre Ferdinand Lassalle, 216-17 presença dominante, 106-108
ÍNDICE REMISSIVO ^ J 361

propensão para a folia, 20-21, 31-32, 35- O Debito Brumário de Fuis Bonaparte, 15,29,
-37, 40-42, 44, 70-71, 84-85, 221-222 166, 210, 277
protelação, 107-109 Pobreza da Filosofia, 59, 98-100
prudência diplomática, 45-7 Proclamação sobre a Polónia, 232
qualidade para o ensino, 138 'Revelações a Respeito do Julgamento dos Comu-
Questionário Proust, 331-332 nistas da Colónia, 168
talento como contador de histórias 15, 68- trabalhos antigos com título, 26-27
-69, 193 Um Comunicado à Classe Operária, 242-244
técnica de argumentação, 138-139 Valor, Preço e Fuero, 260-61

Infância e Mocidade Precoce Fama


antigas ambições literárias, 26-29 antiga, 37-38
doutorou-se em Filosofia, 35 na Grã-Bretanha, 219-223, 309-11, 316-320
infância, 14, 18-19,23-24 torna-se infame, 284-290, 293-294
Local de nascimento, 13-18
Universidade de Berlim, 33-35 Família
Universidade de Bona, 19-21, 35 afecto por Edgar Marx, 157-158,188-189
afecto pelas filhas, 23-25, 187-188, 191-
Artigos, ensaios, peças jornalísticas e manuscritos, -193, 214-15, 303-304, 317-18, 320,
críticas e ¡ 322-23, 325-26
«A Última Trompeta do Juízo Final contra afecto pelos netos, 307-8, 324-25
o Ateu Anticristo Hegel», 35 anfitrião de u m baile para as filhas, 230-31
«Circular contra Kriege», 96-98 desconfiança dos genros, 244-45, 249-251,
«Exigências do Partido Comunista», 117-118 300-303
«O Cavaleiro da Nobre Consciência», 168 desmazelo com os pais, 31-32, 34-35,
«Para uma Crítica da Filosofia do Direito, de 228-29
Hegel: Uma Introdução», 55-57 filho ilegítimo, 151-155
«Sobre a Questão Judaica», 53-54, 61 influência paterna, 13-15
«A Diferença entre as Filosofias Demo- mãe segura o património, 35-36
crática e Epicurista», 33-35 opinião da sua mãe, 17-18
A História da Vida de LMrde Palmerston, 185 reacção à morte de Franziska Marx, 156
A História Diplomática Secreta do Século XV7II, reacção à morte de Heinrich Georg Marx,
185 190-191
A Ideologia Alemã, 86-91, 99 reacção à morte de Henrich Guido Marx,
A Sagrada Família, 79-81, 255 148
As Fictícias Divisões na Internacional, 293
Crítica Económica e PoKtica, 86-87 Finanças
Grandes Homens do Exílio, 136,149-150,166, ã beira da pobreza, 140-142
167-169 doar dinheiro aos trabalhadores alemães
Grundrisse der Kritik derPolitischen Oekonomie, para armas, 114-115
197-198 efeitos da pobreza no trabalho, 203-204
Guerra Civil em França, A, 281-288 especulações na Bolsa de Valores, 231
Herr Vogt, W),2\Çi-2\\ esperança na caridade de Engells, 79-80,
Manuscritos de Paris. 65-71, 197-198 84-85,126-7,135-36,142,157-158,159-
Manuscritos filosóficos, yéírManuscritos de -164,193-94,214,216-17,226-231,254-
Paris -55, 256-57, 299
3621^ KARL MARX

extravagâncias, 135-136,158-162,190-193, Smith (Adam), 223, 262


229-30 Swift, 263, 266-67
fortunas aproveitadas, 190-192, 230-232 tradição de Trier, 14-16
fugas aos credores, 189-191, 214-15 Trémaux, 311-313
herança,35-36,114-115,118-119,212-13, Tristram Shandy, 29, 265-266
228-231 Urquhart, 181-185
honorários do jornalismo, 158 Von Westphalen (barão), 22-24
mãe cancela dívidas, 214-15 Welding, 92-97
na casa de penhores, 161-162
objecto de procedimento de dívidas, 34-35 Obras literárias
património, 329 Escorpião e Félix, 29
pedido de empréstimo ao padeiro, 208-209 Oulanem, 9-10, 29-30
recebe uma herança de Wilhelm Wolff, poesia juvenil, 26-29
229-230
sorte com o rendimento regular, 61,101-102 ]/ida amorosa
tentativa para arranjar um emprego lucra-
tivo, 162-63, 219-20 apaixonado, 21-22
casamento, 51
tentativa para conseguir empréstimos, 220
compromisso, 22-25, 34-35, 47-49
pai de filho ilegítimo, 151-156
Saúde
adolescente, 19-20
Movimentos
colapso nervoso, 29-30
deterioração grave, 321-328 9 Grafton Terrace, 190-229
efeito de escrever O Capital, perto de, 256- 28 Dean Street, 147-190
-257 44 Maidand Park Road, 307-328
64 Dean Street, 135-147
furúnculos insuportáveis, 68,150, 228-29,
aplicados aos cidadãos ingleses, 305-306
230, 246-247, 249-50, 253-55, 270
Bélgica (1845), 83-114
influência psicossomática, 28-30,201-202,
Bona (1841), 35
203-04,210-12,268-70,280-81,304-305
chegada à Grã-Bretanha, 132-136
visita a centros clínicos, 304-307
cidadania prussiana, 117-119, 212-214
Influências Colónia (1842), 35-40, 41-48
Colónia (1848-49) «o ano louco», 118-132
Bakunine, Tll-TlS
expulso da Bélgica, 114
Cartismo, 127-128, 170-176, 178-179
expulso de Paris, 84
Darwin, 311-313
Modena ViUas, 229-307
Engels, 70-72, 79-81
Paris (1843-45), 59-85
Feuerbach, 52-53, 86-87
Paris (1848), 114-118
Harney, 173
Paris (1849), 131-132
Hegel, 25-32, 33-38, 204-205, 211, 232-
passeio pela Europa (1882), 322-325
-233, 267
saída da Alemanha (1848), 59-60
Heine, 62-63 :
visita a Alemanha (1862), 212-215
Lasalle, 199-201,212-214
visita a Alemanha (1867), 254-258
Owen, 170
Proudhon, 98-102
Ricardo, 223, 262 Molestamente policial
Shakespeare, 23-25 briga com os censores, 45-48
ÍNDICE REMISSIVO ^ > 363

molestado pelas autoridades prussianas, mencionar Paris como centro da revolução


122-124,125,128-132 europeia, 59
preso, 114 movimento do idealismo para o materia-
sob espionagem, 144-46,150-151,157,289- lismo, 36-38
-90, 292 opinião da Gra-Bretanha, 219-223
opinião do carácter de um poeta, 25
envolvimentos políticos opiniões do comunismo libertino, 63-64,
Associação Educativa dos Trabalhadores 70
Alemães, 107-08,113,135,136-138,148- pensamento antigo de esforço do trabalho,
-149 56-57
Associação Internacional do Operariado, questões da inacessibilidade inglesa para a
237-248, 270, 273-281, 284-298, 300 revolução, 127-128
Clube dos Doutores, 29-30, 34, 36, 37-38, recusa perceptiva de que a Revolução
39-40 Francesa de 1848 será um malogro, 139-
Liga Comunista, 102, 106-108, 115-16, -140
117-119,120-121, 135,136-37, 146-47, sobre a natureza da burguesia, 108-111
163,167-68,171-73, 206-07, 232 sobre a natureza da revolução, 64-65
Liga Reformadora, 246-48 sobre a tirania da religião, 54-57
sobre capital, 65-67
Pensamentos e ideias sobre comodidade, 260-263
sobre destino, 30-31, 36-37
advogados anulam herança, 116-117
sobre interesses militares, 278-279, 310
à espera da revolução inglesa, XIA-Xl')
sobre o proletariado europeu, 65
anti-semitismo, 53-55, 209-211, 213-215,
sobre produtividade, 259-260
292-293
sobre propriedade, 67-68
atitude ambivalente para com a Grã-Bre-
sobre trabalho^ 67-69
tanha, 174-180
vaga humanista, 69-70
atitude para com o proletariado inglês, 179-
Marx, Laura, 24, 154, 191, 227-229, 244-245,
-181
aversão aos socialistas franceses, 300-304 249-251,254,281,300,330
bem-vinda III República, 278-279 Marx, Louise, 14
carência antiga da visão de uma grande Marx, Sophie, 23
arquitectura, 68-70 Marx-Engels Institute (Moscovo), 197
críticas à burguesia alemã, 126-127 Mazzini, Giuseppe, 240-241, 285-286
críticas ao Governo belga, 124-125 Mein Pro:(ess gagen die Algemeine Zeitung (Vogt),
descobertas comunistas, 44-45 209-210
desdém pela vida do campo, 89 Metternich, principe Klemens Wenzel Nepo-
esboço sobre as desvantagens de um estado muk Lothar, 63-64, 113
capitalista, 116-117 Meyen, Eduard, 44
estudando o capitalismo, 10-11 Mill,John Stuart, 276
experiência no comunismo patriarcal, 60 Modern Thought, 321-322
fantasias acerca do resultado da Guerra Moll, Joseph, 91,102
Franco-Prussiana, 276-278 Moore, Samuel, 113, 152
fascinação com a lenda de Prometeu, 49-
-50, 68-69 Napoleão III, 237, 275-276
homossexualidade de Hegel, 51-53 National Zeitung, 208-209
materiaüsmo histórico, 88-90,98-101,232-33 Nechayev, Sergei, 290-291, 296-298
364 ^ > B KARL MARX

Neue Oder-Zeitung, 158,175, 178 Sand, George, 275


Neue Rheinische Zeitung, 117-131, 148,166, 172, Schapper, Karl, 93, 104, 118, 119, 125, 169
272 Schramm, Conrad, 141, 148-9, 176
Neue Rheinische ZeitungPolitisch-ökonomische Revue,Schramm, Rudolph, 150-2
139-140 Schurz, Carl, 123-4
New York Daily Tribune, 163-16A, 178,183-84, Schwarzschild, Leopold, 10-11
202-3,212,215,220 Semprun, Jorge, 16
New Yorker, 10 SheUey, Mary, 70
Nicolau I, czar, 47-48 Smith, Adam, 67, 69-70, 225, 264
Northern Star, 137, 170-172 Sorge, Friedrich Adolph, 280, 321
Novos hegelianos, 28, 29-30, 33, 37-38, 43- Southcott, Joanna, 11
-47,70-71,75,86-87,87-88 Spectator, The, 145-6
Stahl, Julius, 35
Obolensky, princesa, 276 Stern, Laurence, 267-8
Observer, 289 Stieber, Wilhelm, 146
O'Connor, Feargus, 173 Stirner, Max, 90-2
Odger, George, 239-40, 249-50, 286 Sue, Eugène, 83
Sung, Kim 11,10
Pali Mall Gazette, 279, 289, 290-1 Swift, Jonathan, 265-6
Palmerston, Lorde, 147, 174, 184-7, 238
Partido Social Democrata Alemão, 20,139, 323 Thiers, Adolphe, 281-5
Partido Trabalhista Britânico, 12, 20 Tiwj.Tk, 281,288,296
Payne, Robert, 11,240,288 Tolain, Henri-Louis, 246-7, 250-1
People's Paper, 177-8 Trémaux, Pierre, 314-15
Perron, Charles, 277 Trista Shandy (Sterne), 31, 267
Pfander, Karl, 139, 154, 245-6 Turkey and Its Resources (Urquhart), 183-4
Philips Lion, 144-5, 214, 216, 220, 231, 233
Pieper, Wilhelm, 26, 160-63, 167, 176, 190 Uma Contribuição para a Crítica da
Popper, Karl, 260 Economia PoKüca, 200-8, 225, 235-6
Prawer, professor S.S, 26 União Soviética, 10-12
Prometeu Ubertado (Shelly), 51-2, 70 Universidade de Jena, 36-7
Proudhon, Pierre Joseph, 61, 72, 99-103, 104, Urquhart, David, 183-7
242,246
Vehse, Karl Eduard, 170
Quarterly Review, 239, 289 Viagens de Gulliver, As, 265
Que é a propriedade. Oí", 11 Vida e o Ensinamento de KarlMarK, A (Lewis),
187
Red Republican, 114, 174, 238 Vogt, Karl, 151,208-211
Rheinishe Zeitung, 38-40, 41, 42, 44-50, 54, 73, von Bornstedt, Adalbert, 118-9
206, 236 von Brüningk, barão, 170
Ricardo, David, 67, 69, 225, 264 von Brüningk, baronesa, 168,170-71
Ruge, Arnold, 32, 39, 47, 49-50, 53-54, 57, von Hatzfeldt, condessa, 212, 214-6, 220
62-67,152 von MüUer-Tellering, Eduard, 150-1
Rutenberg, Adolf, 39, 45-6, 48 ' von Savigny, Friedrich Karl, 30-1
Ryazanov, David, 67 von Schaper, Oberpräsident, 48
von SchelHng, F W, 36-7, 54
INDICE REMISSIVO 4^5^-365

von Schweitzer, Johann Baptist, 248


von Struve, Gustav, 138, 152
von Westphalen, barão Ludwig, 24-6, 37, 49
von Westphalen, baronesa Caroline Heubel,
25,52,63,87,192,231
von Westphalen, Edgar, 25, 86, 251
von Westphalen, Ferdinand, 25, 146,170
von Westphalen, Heinrich Georg, 192
Vorwärts!, 65-6, 85-6, 103

Wagner, Richard, 273, 275


Was Karl Marx a Satanist? (Era Karl Marx um
adepto de Satã?) (Wumbrand), 11
Weber,J.M,210
Weitung, Wilhelm, 93-9, 105, 240
Weydemeyer, Joseph, 86-7, 95-6, 138,142,
157-8, 167-8
WilHch, August, 133-4,148-9,169-171
Wilson, Edmund, 268, 269-70
Wilson, Harold, 260
Wolff, Wilhelm, 104,119-20, 231-2, 316
WoodhuU, Victoria, 292, 297
World, 290^1
Wurmbrand, reverendo Richard, 11-2
Wyttenbach, Hugo, 20-21
INDICE

Introdução 9
1. O Marginal 15
2. O Pequeno Javali Selvagem 35
3. O Rei Corrupto 61
4. O Rato no Sótão 85
5. O Papão Aterrador 105
6. O Megalossauro 133
7. Os Lobos Famintos 157
8. O Herói a Cavalo 187
9. Os Buldogues e a Hiena 225
10. O Cão Peludo 253
11. O Elefante Velhaco 271
12. O Ouriço Tosquiado 299
P.S. 1: Consequências 329
P.S. 2: Confissões 331
P.S. 3: Regicídio 333
Agradecimentos 335
Notas Finais 337
índice Remissivo 357
rancis wheen e um jornalista e escritor
e reconhecido talento.Trabalhou como
freelancer em jornais e revistas, entre os quais
The Statesmanjhe Independente
The Guardian. Foi ainda como locutor na BBC.
Na sua obra constam títulos como a famosa
biografia de Tom Driberg, que esteve nomeada
para o prémio Whitbread. KarlMarxM
considerado pela crítica especializada
o melhor livro do ano de 1999.
ó ' • ; HEMINGWAY
Â.F.Hotchner

t; ::/ ARMINDO MONTEIRO


. Uma biografia política
Pedro Aires Oliveira

'' D. AFONSO HENRIQUES, Biografia


Diogo Freitas do Amaral

Destino maldito de um rei sacrificado


Jean Pailler

NORTON DE MATOS, Biografia.


Fronteiras do Tempo
José Norton

KARL MARX, Biografia


Francis Wheen

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