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KARL MARX
FRANCIS WHEEN
KARL MARX
Tradução de
José Luís Luna
BERTRAND EDITORA
CHIADO 2003
Título original: Karl Marx
© Francis Wheen, 1999
Todos os direitos para a publicação desta obra
em Mngua portuguesa, excepto Brasil, reservados por:
Bertrand Editora, Lda.
• Rua Anchieta, n.° 29, 1.°
1249-060 Lisboa
Telefone: 210 305 500
Fax: 210 305 563
Correio electrónico: editora@bertrand.pt
Revisão: André Cardoso
o MARGINAL
Tinha trinta e seis anos na altura, e há muito que cortara os seus laços um-
bilicais. O pai estava morto, assim como os txês irmãos e uma das cinco ir-
mãs; outra irmã tinha morrido dois anos mais tarde, e as sobreviventes pouco
tinham a ver com ele. As relações com a mãe eram frias e distantes, sobre-
tudo porque ela mostrava suficiente falta de consideração mantendo-se viva
e impedindo, assim, o filho rebelde de herdar.
Marx era um judeu burguês de uma cidade predominantemente católi-
ca, num país cuja religião oficial era o protestantismo evangélico. Morreu ateu
e sem pátria, tendo dedicado a vida adulta a profetizar a queda da burguesia
e o enfraquecimento do Estado-Nação. Afastando-se da religião, classe so-
cial e cidadania, personificou a alienação que definiu como sendo a maldi-
ção infligida pelo capitalismo à humanidade.
Este respeitável alemão da classe média pode parecer um estranho repre-
sentante das massas oprimidas, mas o seu estatuto emblemático não teria sur-
preendido o próprio Marx, o qual acreditava que os indivíduos reflectem o
mundo em que habitam. A educação que recebeu ensinou-lhe tudo o que
precisava saber sobre a sedutora tirania da religião, armando-o com a elo-
quência didáctica e a autoconfiança necessárias para exortar a humanidade
a livrar-se das suas cadeias.
«Era um contador de histórias único e sem igual», recordou a filha, Eleanor,
ao falar de um dos poucos episódios da infância do pai que ':hegaram até nós.
«Ouvi as minhas tias dizer que, em rapazinho, tratava de forma tirânica as irmãs,
"conduzindo-as" como cavalos a todo o galope por Markusberg abaixo, em
Trier, e, pior ainda, obrigando-as a comer os "bolos" de massa suja que fazia
com mãos ainda mais porcas. Mas elas aguentavam ser "conduzidas" à ré-
dea solta e comiam os "bolos" sem um queixume, só pelo prazer de ouvir
as histórias que Karl lhes contaria para as recompensar da sua paciência.»^
Anos mais tarde — quando as meninas brincalhonas já se tinham tornado
respeitáveis mulheres casadas — mostraram-se menos indulgentes para com
o irmão rebelde. Louise Marx, que emigrou para a Africa do Sul, jantou uma
vez em casa dele no decorrer de uma visita a Londres.
«Ela não podia admitir que o irmão fosse líder dos socialistas», relatou
u m outro convidado. «E insistiu, na minha presença, que ambos pertenciam
à respeitada família de um advogado que contava com a simpatia de toda a
gente de Trier.»^
Os esforços determinados de Marx para se afastar da influência da famí-
lia, da religião, da classe social e da sua nacionalidade nunca foram totalmente
bem sucedidos. Velho e venerável continuava a ser o filho pródigo, bombar-
o MARGINAL ^ J 17
deando tios ricos com cartas suplicantes ou insinuando-se nas boas graças
de primos distantes que estivessem a ponto de redigir os seus testamentos.
Quando morreu, encontraram uma fotografia daguerreótipo do pai no bolso
do seu casaco. Foi colocada no caixão e enterrada no cemitério de Highgate.
Estava tolhido — embora contrariado — pela força da sua lógica. N u m
precoce ensaio escolar aos 17 anos, «Reflexões de um Jovem sobre a Esco-
lha de uma Profissão», Karl Marx observava que «nem sempre podemos
alcançar a posição para a qual julgamos ter vocação; as nossas relações em
sociedades começam, em certa medida, a ser estabelecidas antes de nos en-
contrarmos em posição de as determinar»."* O seu primeiro biógrafo, Franz
Mehring, pode ter exagerado ao detectar o germe do marxismo nesta frase,
mas a observação é pertinente. Mesmo em plena maturidade, Marx insistia
que os seres humanos não podem ser isolados nem abstraídos das suas circuns-
tâncias sociais e económicas — ou da arrepiante sombra dos antepassados.
«A tradição de todas as gerações mortas», escreveu em O Dezoito Brumário de
IMÍS Bonaparte, «pesa como uma montanha no espírito dos vivos.»
Um dos antepassados paternos de Marx, Joshue Heschel Lwow, foi n o -
meado rabino de Trier em 1723 e o cargo tornou-se uma espécie de sinecu-
ra familiar desde então. O tio Samuel de Karl sucedeu como rabino da cidade
ao avô, Meier ílalevi Marx. E mais gerações mortas foram acrescentadas à
carga pela mãe de Karl, Henriette, uma judia holandesa em cuja famíHa «os
filhos eram rabinos há séculos» — incluindo o pai dela. Como filho mais
velho de tal família, Karl talvez não tivesse escapado ao seu destino rabínico
senão fossem aquelas «circunstâncias sociais e económicas».^
Ao peso das gerações mortas somou-se a asfixiante tradição espiritual de
Trier, a cidade mais antiga da Rehânia.
Conforme Goethe observou lugubremente após uma visita em 1793:
«No interior das suas muralhas é sobrecarregada e até mesmo oprimida por
igrejas, capelas, claustros, estabelecimentos de ensino e edifícios dedicados
a ordens religiosas e de cavalaria, para nada dizer das abadias, conventos
cartuxos e instituições que a cercam, não! Obstruem-na.»*" Todavia, quando
foi anexada pela França durante as Guerras Napoleónicas, os habitantes fo-
ram expostos a ideias tão pouco germânicas como à liberdade constitucio-
nal e da imprensa e — ainda mais significativamente para a família Marx —
à tolerância religiosa. Embora a Renânia fosse reincorporada na Prússia im-
perial pelo Congresso de Viena, três anos antes do nascimento de Marx, o
inebriante odor do Século das Euzes francês ainda pairava no ar.
18 ^ ^ KARLiMARX
enviou ao amigo uma brutal carta de pêsames: «Estou a ser importunado por
causa das propinas e da renda... E m ve2 da Mary, não devia ter sido antes
a minha mãe que, de qualquer modo, é um poço de doenças e já gozou a sua
parte de vida?»^
neste mundo miserável ele é sempre acompanhado pelo corpo, o qual de-
termina o bem-estar de toda a máquina. U m estudante doente é o ser mais
infeliz da Terra. Por conseguinte, não estudes mais do que a tua saúde pode
suportar.»^^
Karl não ligou, nem nessa altura nem nunca: e, anos mais tarde, traba-
lhou muitas vezes noites inteiras à custa de cerveja barata e charutos infectos.
Com a sua habitual franqueza impetuosa, o rapaz retorquiu que se sentia de
facto doente — o que provocou outro severo sermão do seu polónio pai.
«Os pecados de juventude, em qualquer recreação imoderada, ou até
mesmo nociva, são horrivelmente punidos. Aqui, o Sr. Giinster é um triste
exemplo disso. É verdade que no caso dele não se trata de vício, mas o ta-
baco e a bebida deram-lhe cabo dos pulmões e ele dificilmente resistirá até
ao Verão.»^'*
A mãe, inquieta como sempre, incluiu a sua própria lista de recomenda-
ções: «Tens de evitar tudo o que possa piorar a tua saúde; não deves excitar-
-te muito, beber demasiado vinho ou café, comer comida picante, muita pi-
menta ou outros condimentos. Não deves fumar nem deitar-me muito tarde.
E levanta-te cedo. Tem também cuidado para não apanhares frio, querido
Karl, e não dances até te sentires novamente bem.»^^
Pode-se sem risco afirmar que a mãe não era lá muito divertida.
Pouco depois dos 18 anos, Marx foi dispensado do serviço militar por
causa de problemas respiratórios, embora ele possa muito bem ter exagera-
do o seu estado físico. (A suspeita de cunhas é fortalecida por uma carta do
pai aconselhando-o a como escapar à tropa: «Querido Karl, se puderes, tenta
arranjar aí certificados de médicos competentes e conhecidos. Podes fazê-
-lo com boa consciência... Mas sê consistente com a tua consciência e não
fumes demasiado.») A suposta incapacidade não prejudicou certamente que
ele se divertisse à grande. U m «Certificado de Dispensa» oficial, emitido de-
pois de Marx ter passado um ano na Universidade de Bona, apesar de lou-
var os seus sucessos académicos («zelo e atenção excelentes»), notava que ele
«tinha sido castigado com um dia de detenção por perturbar a paz à noite em
estado de embriaguez... Foi subsequentemente acusado de transportar armas
proibidas em Colónia. A investigação ainda está pendente. Não se suspeita que
tenha participado em qualquer associação proibida de estudantes».^''
As autoridades universitárias não sabiam da missa a metade. É verdade
que o Clube dos Poetas — ao qual se juntou no primeiro trimestre — não
era uma «associação proibida», mas também não era tão inocente como o
o MARGINAL ( Ä J 23
O único amigo dos tempos da escola de Trier com quem Marx manteve
ligações em adulto era Edgar von Westphalen, um pateta amigável e diletante
com ideias revolucionárias. Esta amizade duradoura nada tinha a ver com as
qualidades de Edgar e tudo a ver com a irmã dele, a encantadora Johanna
Bertha Julie Jenny von Westphalen, mais conhecida por Jenny, a qual veio a
ser a primeira e única Sra. Karl Marx.
Era um excelente partido. Ao revisitar a sua cidade natal muitos anos mais
tarde, Karl escreveu afectuosamente a Jenny: «Todos os dias e em todos os la-
dos, perguntam-me pela quondam mais "bonita rapariga de Trier" e a "rainha dos
bailes". É um enorme prazer para um homem ter uma mulher que vive assim,
como uma "princesa encantada", na imaginação de uma cidade inteira.»^**
Pode parecer surpreendente que uma princesa de 22 anos, da classe di-
rigente prussiana — filha do barão Ludwig von Westphalen — , se tivesse
apaixonado por u m espertalhão burguês judeu, quatro anos mais novo do
que ela e não por um impetuoso nobre de farda bordada e fortuna pessoal;
mas Jenny era uma rapariga inteligente e livre pensadora que achou a fan-
farronice intelectual de Marx irresistível. Depois de se livrar do seu preten-
dente oficial, um respeitável jovem alferes, ficou noiva de Karl durante as
férias de Verão de 1836. Ele sentiu-se tão orgulhoso que não conseguiu dei-
xar de se gabar diante dos pais, mas a notícia foi mantida secreta da família
de Jenny durante quase um ano.
O s motivos desta dissimulação são suficientemente óbvios à primeira
vista. O barão Ludwig von Westphalen, funcionário superior do governo
provincial da Prússia real, era um homem de linhagem duplamente aristo-
crática: o pai tinha sido chefe do Estado-Maior durante a guerra dos Sete
Anos, e a mãe escocesa, Anne Wishart, descendia dos condes de Argyll. U m
puro-sangue de tal m o d o magnífico dificilmente desejaria que a filha se
encabrestasse com o descendente plebeu de uma longa linhagem de rabinos.
U m exame mais minucioso, contudo, revela que tanto segredo é inexpli-
cável, pois Von Westphalen não era snobe nem reaccionário. Após um ca-
o MARGINAL ^ß 25
A última frase, como Jenny não precisaria que lhe dissessem, era tirada
de Hamkt.
Porquê, então, se mostraram Karl e Jenny tão relutantes em falar do noi-
vado aos pais dela? Talvez Karl pensasse que a diferença de idades contaria
contra ele: casamentos com mulheres mais velhas ainda eram suficientemen-
te raros para parecerem um crime contra as leis da natureza. O u talvez te-
messe que, apesar de toda a sua generosidade de espírito, o barão tentaria
dissuadir a sua adorada filha a unir o seu destino ao de um brilhante, mas
pusilânime, não conformista. A vida com Karl nunca seria monótona, mas
a promessa de estabilidade ou prosperidade era reduzida.
Ninguém que escreveu sobre Marx parece ter notado a semelhança entre
este conceito chistoso e o famoso parágrafo de abertura do De^oitó Brumário
de Euis Bonaparte escrito 15 anos mais tarde:
tinham conduzido a isso. «Há momentos na vida de uma pessoa que são
como postos fronteiriços marcando o fim de um dado período, mas que, ao
mesmo tempo, indicam claramente uma nova direcção. E m tais momentos
de transição sentimo-nos compelidos a encarar o passado e o presente com
os olhos de águia do pensamento a fim de nos tornarmos conscientes da
nossa posição. Com efeito, a própria história gosta de olhar para trás dessa
maneira para avaliar os acontecimentos...»
Nenhuma falsa modéstia nestes propósitos: aos 19 anos, ele já estava a
experimentar a roupa de um H o m e m de Destino e a descobrir que lhe iam
lindamente. Agora, que iniciara a fase seguinte da vida, queria erguer um mo-
numento ao que tinha vivido... «e onde encontrar lugar mais sagrado do que
o coração de um pai, o juiz mais misericordioso, o simpatizante mais íntimo,
o sol de amor cujo fogo caloroso é sentido no âmago dos nossos esforços!»
A lisonja florida não o levou a lado nenhum. Heinrich não se mostrou
complacente nem misericordioso ao 1er, com crescente horror, toda a his-
tória das aventuras intelectuais do filho. Ter um hegeliano na família era su-
ficientemente vergonhoso; mas o pior era dar-se conta de que o rapaz tinha
andado a desperdiçar tempo e talento com a filosofia, quando deveria uni-
camente ter-se concentrado para obter um b o m diploma de direito e arran-
jar um emprego lucrativo. N ã o tinha ele nenhuma consideração pelos seus
pobres pais? Nenhuma gratidão para com Deus que o tinha abençoado com
tantos e magníficos dons naturais? E a sua responsabilidade para com a
futura mulher — «uma rapariga que, dados os seus notáveis méritos e a sua
posição social, fez um enorme sacrifício ao abandonar as suas esperanças e
brilhante situação por um futuro incerto e sem fulgor acorrentando-se ao
destino de um h o m e m mais novo»? Mesmo que Karl não se preocupasse
com os nervos da mãe e o pai doentes, devia certamente sentir-se obrigado a
assegurar um futuro feliz e próspero à Hnda Jenny; e isso dificilmente poderia
ser conseguido a 1er livros sobre animais artísticos num quarto cheio de fumo.
«Tenho de ir para Colonia dentro de uns dias, pois acho intolerável a pro-
ximidade dos professores de Bona», disse Marx ao filósofo hegeliano radi-
cal, Arnold Ruge, em Março de 1842. «Quem desejaria estar sempre a falar
com texugos intelectuais, gente que estuda apenas n o intuito de encontrar
impasses ao virar de todas as esquinas do mundo!»'*
U m mês mais tarde, mudava de ideias: «Abandonei o plano de me ins-
talar em Colónia. A vida é muito barulhenta para o meu gosto e o grande
número de amigos que lá tenho não é bom para quem estuda filosofia.. . A s -
sim, continuo por enquanto a residir em Bona; seria uma pena, afinal de
contas, se ninguém ficasse aqui e os homens sagrados não tivessem com
quem se 2angar.»^
Mas a atracção de Colónia era difícil de resistir. O «barulho» de que ele
se queixava era como um eco das reuniões do Clube dos Doutores no café
Hippel — a principal diferença era a qualidade das bebidas.
«Como estou contente que te sintas feliz», escreveu Jenny a Karl em
Agosto de 1841. «E que bebas champanhe em Colónia, que haja aí clubes
hegelianos e que tenhas andado a sonhar.. .»^
O champanhe parecia ser um lubrificante mais apropriado do que a cer-
veja bebida em BerHm: Colónia era a maior e mais rica cidade da Renânia,
a qual era, por sua vez, a província mais política e industrialmente avançada
de toda a Prússia, e os banqueiros e homens de negócios locais tinham re-
centemente começado a reivindicar uma forma de governo mais adequada
a uma economia moderna do que o antiquado e asmático sistema da monar-
quia absoluta e a opressão burocrática sob a qual trabalhavam. C o m o o
próprio Marx assinalou muitas vezes anos mais tarde, a natureza da socie-
dade é ditada pelas suas formas de produção; e agora que o capitalismo
industrial se estabelecera, a conversa nos bares de Colónia era a de que a de-
mocracia, uma imprensa livre e uma Alemanha unificada tinham de ser es-
tabelecidas. Não constituía portanto nenhuma surpresa que a cidade atraísse,
c o m o u m imã, os pensadores heréticos e os boémios descontentes que
ofereciam a riqueza do seu conhecimento em troca do conhecimento da ri-
queza dos magnatas. O filho desta união era Rheinische Zeitung, jornal Uberal
fundado no Outono de 1841 por u m grupo de abastados fabricantes e finan-
ceiros (incluindo o presidente da Câmara de Comércio de Colónia) para de-
safiar o conservador e lúgubre Kölnische Zeitung.
Retrospectivamente, era inevitável que Marx escrevesse para esse jornal
e viesse rapidamente a ser o seu génio. Mas, embora o Marxismo tenha sido
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM „v^-:- 39
publicar o jornal recaía a maior parte das vezes sobre Moses Hess, socialis-
ta jovem e rico. Mais tarde, Hess tornou-se um feroz inimigo, mas, nessa
época, a sua atitude para com Marx era de reverência. Escreveu o seguinte
ao seu amigo Berthold Auerbach:
Nessa altura, Marx teve o mesmo efeito sobre quase toda a gente que en-
controu. Apesar dos homens do Clube dos Doutores de BerHm e do Círculo
de Colónia serem oito ou dez anos mais velhos do que ele, a maior parte
tratava-o com imenso respeito. Quando Friedrich Engels chegou a Berlim
para fazer o serviço militar poucos meses depois de Marx ter partido, des-
cobriu que o jovem renano já era uma lenda. Um poema escrito por Engels
em 1842 conta com uma viva descrição do seu futuro colaborador — que
ele ainda não conhecia —, baseada inteiramente nas recordações admirativas
dos seus companheiros intelectuais:
Era, de facto, moreno (daí ser alcunhado Mouro) e a sua pele escura era
realçada pelo espesso cabelo preto que parecia crescer de quase todos os
poros das faces, braços, orelhas e nariz.
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM Í * ^ 41
É fácil deixar escapar o óbvio e talvez seja por isso que tão poucos au-
tores que escreveram sobre Marx repararam no que estava à vista": ele era,
tal como Esaú, um homem peludo. No entanto, na recordação de todos qtie
o conheceram, o efeito impressionante dessa juba magnífica é repetidas vezes
mencionado. Eis a opinião de Gustav Mevissen, um homem de negócios de
Colónia, em 1842: «Karl Marx, de Trier, era um homem corpulento de 24
anos, cujo espesso cabelo preto jorrava das faces, dos braços, do nariz e das
orelhas. Era apaixonado, dominador, impetuoso, e a confiança que tinha em
si mesmo era ilimitada...» E o poeta George Herwegh, que veio a conhecer
Marx em Paris, disse: «Cabelo preto luxuriante ocultava-Ihe a testa. Poderia
desempenhar soberbamente o papel do último dos escolásticos.» Pavel
Annenkov, que encontrou Marx em 1846: «A sua aparência era notável.
Tinha uma cabeleira muito preta e mãos peludas... parecia um homem com
o direito e o poder de impor respeito.» Friedrich Lessner: «Tinha uma fronte
alta muito bem desenhada, o cabelo espesso e preto de azeviche... Marx era
um líder nato.» Cari Schurz: «Homem um pouco corpulento de testa ampla,
cabelo muito preto e olhos escuros cintilantes que atraía imediatamente a
atenção. Tinha a reputação de ser muito letrado...» Wilhelm Liebknecht, ao
escrever em 1896, ainda tremia ao lembrar-se do momento em que, 50 anos
antes, tinha «enfrentado o olhar daquela cabeça leonina de juba negra».
Esta exuberância de aparência negligente era deliberadamente estudada.
Tanto Marx como Engels compreenderam o poder do aspecto hirsuto, con-
forme provaram num aparte sarcástico a meio de um panfleto sobre o poeta
e crítico Gottfried Kinkel, escrito em 1852:
Talvez pela mesma razão, Marx deixou crescer o cabelo e a barba na uni-
versidade e cultivou-os com orgulho ao longo da idade adulta até ficar tão
lazudo como um rebanho de ovelhas. (Um espião prussiano em Londres, ao
enviar um relatório em 1852 para os seus patrões em Berum, achou impor-
tante incluir que «ele nunca faz a barba».)
Friedrich Engels também parece ter formulado uma teoria política quan-
to ao pêlo facial muito cedo. «Domingo passado tivemos uma noite bigo-
42 ^ O KARLMARX
manifestava através de uma distracção que o tornava simpático aos olhos dos
outros. O jornalista Karl Heinzen adorava observar Marx sentado numa ta-
berna a olhar miopiamente para um jornal enquanto tomava o café da
manhã. «De repente levantava-se e, depois, sentava-se a outra mesa esten-
dendo a mão para um jornal inexistente; ou, quando ia protestar ao censor
o corte de um artigo e, em vez de mostrar o artigo em questão, tirava outro
recorte ou um lenço e voltava a sair.»^^
Igualmente divertido para aqueles que tinham estômago forte, era o gosto
de Marx por rebalderias e zaragatas. Heinzen descreve uma noite em que teve
de conduzir Marx depois de terem bebido várias garrafas de vinho:
Gritei-lhe depois da rua para ele voltar a fechar a porta por causa dos la-
drões. Espantado por eu ter escapado ao seu fascínio, ele veio debruçar-
-se à janela olhando para mim com os seus pequenos olhos arregalados
como um fantasma assustado.»
Ainda mais escandaloso era o facto de o ofensor ter de pagar o valor da ma-
deira ao dono da floresta, cujo valor seria calculado pelo próprio proprietá-
rio. Tamanha desonestidade legaUzada obrigou Marx a reflectir, pela primeira
vez, sobre a questão de classes, propriedade privada e o Estado. E também
lhe permitiu exercitar o seu talento para demolir um argumento descabido
com a sua própria lógica. Ao assinalar os comentários de um dos fidalgos im-
becis na assembleia provincial — «É justamente por a pilhagem de madeira
não ser considerado furto que acontece tantas vezes» — ele explodiu cole-
ricamente com um reductio ad absurdum característico. «Por analogia, o legis-
lador deveria chegar à seguinte conclusão: é por um murro na cara não ser
considerado crime que acontece com tanta frequência. Deve, por conseguin-
te, ser decretado que um murro na cara é um crime.»^'
Isto pode não ser comunismo, mas era suficientemente grave para preo-
cupar a Administração prussiana — especialmente porque a circulação e a
reputação do jornal estavam a aumentar rapidamente.
«Não imagines que nós, no Reno, vivemos num eldorado poKtico», es-
creveu Marx a Arnold Ruge, cujo Deutsche Jahrbücher uïûiz levado uma seve-
ra repreensão das autoridades de Dresden. «Para dirigir um jornal como o
Rheinische Zeitung é necessário a mais inabalável persistência.»^^
Durante grande parte do ano de 1842, o censor instalado no jornal era
Laurenz DoUeschaU, um poMcia estúpido que chegara a proibir um anúncio da
Divina Comédia, de Dante, porque «o divino não podia ser tema de comédia».
Todas as noites, ao receber todas as provas, ele marcava a lápis azul quaisquer
artigos que não compreendia (a maior parte) e, consequentemente, o director
tinha de passar horas a convencê-lo de que eram inofensivos — enquanto os
tipógrafos esperavam até altas horas. Marx gostava de citar o angustiado la-
mento de DoUeschaU sempre que os seus superiores lhe ralhavam por ter
deixado passar algum comentário maléfico: «A minha vida, agora, está em
jogo!» Este pobre funcionário é quase digno de simpatia, pois qualquer cen-
sor suficientemente azarento para ter de discutir com Karl Marx todos os
dias deveria sentir-se muito infeliz. Uma história contada pelo jornaUsta de
esquerda, Wilhelm Bios, demonstra o que DoUeschaU tinha de aguentar:
Sete anos depois de prometer casar-se com Jenny, até mesmo o pouco
sensível Karl Marx estava a começar a sentir punhaladas de culpa. «Por mi-
nha causa», admitiu em Março de 1843, «a minha noiva tem combatido as
mais violentas batalhas que quase minaram a sua saúde. E m parte contra os
seus piosos parentes aristocratas para quem "o Senhor nos Céus" ou "o
senhor em Berlim" são igualmente objecto de um culto religioso, e, por outra
parte, contra a minha própria família, no seio da qual alguns padres e outros
inimigos meus se instalaram. Durante anos, portanto, a minha noiva e eu te-
mos estado implicados em conflitos mais desnecessários e cansativos do que
muita gente que é três vezes mais velha do que nós.»'^''
Mas nem todas as aflições e tormentos deste longo noivado podiam ser
culpa dos outros. Enquanto Karl se divertia em Berlim ou provocava sari-
lhos em Colónia, Jenny permanecia em casa, em Trier, perguntando-se se ele
ainda a amaria no dia seguinte. As vezes, essas ansiedades eram visíveis nas
suas cartas — as quais eram seguidamente interpretadas por Marx como
prova da inconstância dela. «Fiquei abalada pelas tuas dúvidas do meu amor
e fidelidade», queixava-se Jenny em 1839 — «Oh, Karl, como tu me conhe-
ces pouco, como pouco aprecias a minha posição e como desconheces o meu
pesar... Se pudesses, pelo menos, ser rapariga por um bocadinho e, sobre-
tudo, uma rapariga tão estranha como eu.»
Com as raparigas, conforme ela tentava explicar, era diferente. Conde-
nadas à passividade pelo pecado original de Eva, podiam apenas esperar, so-
frer e resistir. «Uma rapariga, claro está, só pode dar ao homem amor, ela pró-
pria e a sua pessoa, como ela é, toda inteira e para sempre. E m circunstâncias
normais, uma rapariga tem igualmente de encontrar completa satisfação no
amor do homem e esquecer tudo em amor.» Mas como pode ela esquecer-
-se de tudo quando premonições de desgraça zumbem dentro da sua cabe-
ça como abelhas furiosas? <AJi, querido, querido, meu doce amor, agora tam-
bém andas a envolver-te em política», escreveu em Agosto de 1841 enquanto
Marx fazia trinta por uma Hnha em Bona com Bruno Bauer. «É a coisa mais
arriscada de todas. Querido pequenino Karl, nunca te esqueças que tens aqui
uma namorada que te aguarda, sofre e depende totalmente de ti.»^^
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM ^ » 51
Para dÍ2er a verdade, a actividade poKtica dele era a menor das preocu-
pações de Jenny: era certamente perigoso, mas também arrepiantemente he-
róico. N ã o esperava nada menos do seu «selvagem javali preto», o seu «tra-
tante manhoso». O que retinha Jenny de se render à felicidade era o receio
do «teu amor ardente cessar». Havia bons motivos para essas inquietações.
Enquanto estudava em Berlim, Karl caiu sob o encanto da famosa poetisa
romântica Bettina von Arnim — que tinha idade para ser mãe dele — e,
numa ocasião, com obtusa insensibilidade, chegou mesmo a levá-la a Trier
para conhecer a sua futura noiva. A amiga de Jenny, Betty Lucas, testemu-
nhou esse despropositado encontro:
Como podia uma rapariga pouco culta competir com tais serias? O vi-
gor intelectual de Marx intimidava Jenny. E r a espirituosa, animada e
supremamente segura quando conversava com aristocratas medíocres nos
bailes, mas, na presença do seu adorado, bastava um olhar daqueles olhos
negros e profundos para ela ficar sem saber o que dizer: «De nervoso, não
consigo dizer palavra. O sangue gela-me nas veias e a minha alma treme.»
Quase não vale a pena acrescentar que Jenny era uma criança da Idade Ro-
mântica e, como muitos espíritos irrequietos dessa geração, tinha lido e reli-
do o Prometeu Ubertado, de SheMey, cujo herói estava preso com correntes a uma
rocha por desafiar os deuses e tentar esclarecer a humanidade. («Prometeu é
o santo e mártir mais eminente do calendário filosófico», declarou Marx na sua
tese de doutoramento. Uma caricatura publicada depois da supressão do
Rheinische Zeitung representava Marx disfarçado de Prometeu agrilhoado a uma
prensa de impressão, enquanto uma águia prussiana lhe bicava o fígado.) In-
capaz de acompanhar as impetuosas passadas de Karl, Jenny começou a
sonhar que também ele teria de ser manietado:
52 ^ > e KARL MARX
«Assim, meu querido, desde a tua última carta que me torturo com o
receio de que, por minha causa, tu te envolvas numa disputa e, depois,
num duelo. Vejo-te, dia e noite, ferido, a sangrar e doente. Para te dizer
toda a verdade, Karl, tal ideia não me tornava totalmente infeliz pois
?:•• imaginava vivamente que tinhas perdido a mão direita e isso punha-me
•> num estado de êxtase, de felicidade suprema. Pensei então, meu queri-
•f do, que, nesse caso, eu me tornaria realmente indispensável para ti, que
. ! me guardarias sempre ao teu lado e me amarias. Também pensei que seria
eu então que assentaria todas as tuas preciosas e sublimes ideias e que te
seria realmente útil.»""''
também expHcar por que a filosofia alemã tinha falhado? Hegel, por exem-
plo, assumira que «a Ideia do Estado» era o sujeito e a sociedade o predicado,
enquanto a história mostrava que era o inverso. Nada havia de errado em
Hegel que não tivesse solução virando-o de cabeça para baixo: a religião não
faz o homem, o homem é que faz a religião; a constituição não cria o povo,
mas o povo cria a constituição. Tudo fazia sentido, às avessas.
A honra desta descoberta pertence ao filósofo alemão Ludwig Feuerbach,
cuja Tese Introdutória à Keforma da Filosofiatinhasido publicada em Março d
1848. «Ser é sujeito; o pensamento, predicado», afirmou. «O pensamento
provém do ser e não o ser do pensamento.» Marx foi muito mais longe, es-
tendendo esta lógica da filosofia abstracta ao mundo real — acima de tudo,
o mundo da política, o Estado e a sociedade. Feuerbach, antigo discípulo de
Hegel, já tinha percorrido uma grande distância a partir do ideaKsmo do seu
mentor na direcção do materialismo (o seu mais memorável aforismo, o qual
ainda se encontra em dicionários de citações, era: «O homem é o que come»);
mas tratava-se de um materialismo deliberadamente cerebral sem relação
com as condições económicas e sociais da sua época ou lugar. A incursão de
Marx no jornalismo tinha-o convencido de que os filósofos radicais não de-
viam passar a vida no alto de uma coluna como os antigos anacoretas gre-
gos; tinham de descer e participar no momento presente.
Feuerbach foi um dos primeiros escritores a quem Marx soKcitou a co-
laboração para o Deutsche-Frantiösische Jahrbücher ?L'&sim que soube que a
publicação estava assegurada. A 3 de Outubro de 1843, mesmo antes de
partir para se juntar a Ruge em Paris, escreveu-lhe para sugerir um artigo
demolidor contra o filósofo da corte prussiana, F. W von Schelüng, o seu
velho antagonista da Universidade de Berlim.
«Toda a poKcia alemã se encontra à disposição dele, como eu mesmo tive
a experiência quando era director do Kheinische Zeitung. Quer dizer, uma or-
dem da censura pode impedir que o que quer que seja escrito contra o sa-
grado ScheUing passe... Mas imagine ScheUing exposto em Paris, perante o
mundo Hterário francês!... Aguardo confiantemente a sua contribuição na
forma que achar mais conveniente.»^'' E, como isca suplementar, acrescen-
tou um descarado P. S.: «Embora não o conheça, a minha mulher envia-lhe
cumprimentos. Nem calcula a quantidade de admiradoras que tem.»
Feuerbach não se deixou seduzir e respondeu que, na sua opinião, seria
imprudente passar da teoria à prática sem a teoria ter sido aperfeiçoada.
Marx, em contrapartida, achava que as duas eram — ou deviam ser —
o PEQUENO JAVALI SELVAGEM s*^ J 55
mas, entretanto, era absurdo e cruel recusar aos Judeus o mesmo estatuto que
a qualquer outro cidadão. O compromisso de Marx em relação a direitos
iguais é confirmado por uma carta que enviou de Colónia, em Março de
1843, a Arnold Ruge: <A.cabei de receber a visita do chefe da comunidade
judaica nesta cidade, que me pediu para assinar uma petição a favor dos
Judeus a ser enviada à Assembleia Provincial e aceitei. Por muito que a fé
judaica não me agrade, a perspectiva de Bauer parece-me demasiado abs-
tracta. O que há a fazer é abrir tantas brechas quantas forem possíveis no
estado cristão e introduzir lá dentro o máximo de racionalidade possível.»
Tais palavras também são corroboradas por outra obra importante que
ele começou a redigir após a lua-de-mel, no Verão de 1843: «Para uma Crí-
tica da Filosofia do Direito, de Hegel: uma Introdução», e terminou em Paris
uns meses mais tarde. Este ensaio foi publicado na Primavera de 1844 e, em-
bora o título possa ser familiar apenas aos iniciados, é tão célebre quanto o
artigo sobre Judaísmo é obscuro. Muitas pessoas que nunca leram nada de
Marx citam, contudo, o epigrama declarando que a religião é o ópio do povo.
Trata-se de uma das suas metáforas mais poderosas — inspirada, segundo
tudo leva a crer, pela Guerra do Ópio combatida entre a Grã-Bretanha e os
Chineses, de 1839 a 1842. Mas compreendem realmente estas palavras àque-
les que as repetem? Graças aos seus autoproclamados intérpretes na União
Soviética, que se apoderam da frase para justificar a perseguição de que eram
alvo os antigos crentes, é normalmente tomada como significando que a re-
ligião é uma droga administrada pela iníqua classe dirigente, a fim de man-
ter as massas em estado de passividade embrutecida.
O ponto de vista de Marx era mais subtil e compassivo. Apesar de insis-
tir que «a crítica da religião é o requisito indispensável para todas as críticas»,
ele compreendeu o impulso espiritual. O s pobres e os desgraçados que não
esperam alegrias neste mundo podem necessitar consolar-se com a promessa
de uma vida melhor no próximo; e, se o estado não ouve os seus clamores
nem os seus gritos, porquê não apelar para uma entidade mais poderosa que
promete atender todas as súplicas? A religião era uma justificação para a
opressão — mas também um refúgio.
«O sofrimento religioso é simultaneamente a expressão do verdadeiro so-
frimento e um protesto contra o sofrimento verdadeiro. A religião é o sus-
piro dos oprimidos, o coração deste mundo impiedoso e a alma das condi-
ções desumanas. É o ópio do povo.»^"^
58 « i ^ KARL MARX ;
«Na França, basta ser algo para querer ser tudo. Na Alemanha, nin-
guém pode ser nada a não se renuncie a tudo. Na França, a emancipação
parcial é a base da emancipação universal. Na Alemanha, a emancipação
universal é a condição sine qua non da emancipação parcial.»
que se batem contra a classe acima, envolvem-se em luta com a classe abai-
xo. Assim, os príncipes lutam contra reis, os burocratas contra os aristocra-
tas e a burguesia contra todos eles, enquanto o proletariado já está a começar
o seu combate contra a burguesia.» Por conseguinte, o papel do emancipador
passa de uma classe à seguinte até a libertação universal ser finalmente
alcançada. Na França, a burguesia já derrubara a nobreza e o clero, e outra
revolução parecia iminente. Até mesmo na imperturbável Prússia, o Gover-
no medieval não podia prolongar indefinidamente o seu reino. Com uma es-
tocada de despedida à eficiência teutónica — «Não pode haver uma revo-
lução na Alemanha, a qual é conhecida pela sua meticulosidade, a não ser que
seja meticulosa» — partiu para Paris. Era, sentia, o único lugar para estar
nesta época. «Quando todas as condições internas forem satisfeitas, a res-
surreição da Alemanha será anunciada pelo canto do galo gaulês.»
o REI CORRUPTO
foram a única vez que, no decorrer da sua vida de casada, ela se pôde dar ao
luxo de satisfazer o seu apetite, pois uma doação de mil táleres, enviada de
Colónia por antigos accionistas do Kheinische 7.eitung,Y¿\.o aumentar o sala-
rio de Marx. Além disso, ele queria que ela desfrutasse aquela última opor-
tunidade antes de ficar limitada pelas exigências da maternidade. A 1 de Maio
de 1844, ela deu à luz uma menina, Jenny — mais conhecida pelo diminu-
tivo/¿•««yf^é'« — , cujos olhos escuros e cabeleira preta lhe dava a aparência
de um Karl em miniatura.
Os pais noviços, embora babados, eram totalmente incompetentes e, em
princípios de Junho, concordaram que o melhor seria que Jenny fosse com
a filha passar vários meses com a baronesa Von Westphalen, em Trier, para
aprender os rudimentos da maternidade. «A pobre bonequinha ficou bas-
tante indisposta e doente depois da viagem», escreveu Jenny a Karl a 21 de
Junho. «E veio a verificar-se que ela não só sofria de diarreia como também
de sobrealimentação. Tivemos de chamar o porco gordo (Robert Schleicher,
o médico da família), e a sua decisão foi que ela precisava de uma ama para
a amamentar porque, com comida artificial, ela não consegue recuperar tão
depressa. N ã o foi fácil salvá-la, mas, agora, já está quase fora de perigo.»^
A ama concordou vir para Paris com elas, mas, apesar da felicidade de
Jenny («todo o meu ser exprime satisfação e ahunáânciaf>), não conseguia li-
vrar-se completamente dos seus antigos pressentimentos. «Meu mais que
tudo, estou muito preocupada quanto ao nosso futuro... Acalma, se pude-
res, os meus anseios. Fala-se muito por todos os lados de um rendimento re-
gular.» O rendimento regular foi uma das necessidades da vida que sempre
escapou a Karl Marx.
O seu trabalho em Paris, que parecia prometer segurança financeira,
verificou-se ainda mais temporário do que o seu emprego anterior. Apenas
um número do Deutsche-Fran^sischeJahrbücher íd\ pubHcado antes dos desen-
tendimentos com Ruge se tornarem irreparáveis — e mal chegou a mostrar-
-se à altura da promessa do seu nome. Embora França tivesse bastantes es-
critores, nenhum quis contribuir e, para preencher essa lacuna, Marx incluiu
os seus ensaios sobre a questão judaica e sobre Hegel, juntamente com uma
versão adaptada da sua correspondência com Ruge ao longo do ano ante-
rior. A única voz não alemã era a de um comunista anarquista russo, Michail
Bakunine. «Marx estava, então, mais avançado do que eu», declarou. «Em-
bora mais novo, já era ateu, materialista culto e consciente socialista... Tentei
impacientemente convertê-lo, o que era sempre instrutivo e divertido quando
64 ^ « KARL MARX
teria provocado o seu mais feroz desprezo. Como Eleanor Marx escreveu:
«Ele amava o poeta e a sua obra, e encarava a sua fraqueza política tão ge-
nerosamente quanto lhe era possível. Os poetas, explicava, eram gente es-
tranha e deviam ser autorizados a seguir o seu próprio caminho. Nunca
deveriam ser avaliados pela mesma bitola que os homens vulgares ou até
mesmo extraordinários.»^
O Jahrbücher pode ter sido um desastre financeiro, mas gozou de grande
succès d'estime, e não só por causa das odes satíricas de Heinrich Heine sobre
o rei Ludwig da Baviera. Centenas de números enviados para a Alemanha
foram confiscados pela polícia, que fora avisada pelo Governo prussiano que
o seu conteúdo era uma incitação á alta traição. Foi emitida uma ordem para
prender imediatamente Marx, Ruge e Heine caso alguma vez tentassem regres-
sar à pátria. Na Áustria, Metternich prometeu «severas sentenças» contra qual-
quer livreiro que fosse apanhado a vender esse «repugnante» jornal.
Arnold Ruge assustou-se e deixou Marx em apuros ao suspender a pu-
blicação e não lhe pagando o ordenado prometido. Alguns historiadores
pretendem que a discórdia não teria sido definitiva se «não tivessem havido
outras diferenças de ordem pessoal, em particular sobre questões fundamen-
tais de princípio que duravam há já bastante tempo»**. Mas a verdade é que
a mais importante «questão fundamental de princípio» era uma ridícula
querela sobre a vida sexual do seu colega, Georg Herwegh, que tinha atrai-
çoada a mulher e tinha um caso com a condessa Marie d'Agoult, antiga
amante de Lizt e mãe da menina que se tornou Cosima Wagner. «Estou in-
dignado pelo estilo de vida e preguiça de Herwegh», escreveu Ruge à mãe.
«Chamei-lhe cordialmente velhaco vários vezes e declarei que, quando um
homem se casa tem de saber o que está a fazer. Marx não proferiu palavra
e tomou a sua demissão de forma perfeitamente amigável. Escreveu-me no
dia seguinte a dizer que Herwegh era um génio com grande futuro e que o
facto de eu lhe ter chamado de velhaco enchia-o de indignação, acrescentan-
do ainda que as minhas ideias sobre o casamento eram estreitas e desuma-
nas. Não nos voltámos a ver desde então.»'
Apesar de Marx se manifestar muitas vezes contra a promiscuidade e a
libertinagem com a ferocidade puritana de um Savonarola — quanto mais
não fosse para repudiar a acusação que o comunismo era sinónimo de sexo
colectivo —, encarava divertidamente as escapadas amorosas dos amigos e,
talvez, com um pouco de inveja, atitude que inquietava certamente Jenny.
«Embora o espírito tenha força de vontade, a carne é fraca», escreveu ela de
66 ^ ^ KARLMARX
classe que os tecelões possuíam para dar e vender. Ruge (ou «o alegado
prussiano», como Marx lhe chamava) pensava que uma revolução social sem
alma política era impossível; Marx descartou essa «mistura absurda», man-
tendo que todas as revoluções são tanto sociais como políticas, na medida
em que dissolvem a velha sociedade e derrubam o velho poder. Mesmo que
a revolução ocorresse numa única região fabril, como no caso dos tecelões
silesianos, continuava a ameaçar todo o estado pois «representa o protesto
do homem contra a vida desumanizada»^^. Isso era um pouco optimista de
mais. A única influência duradoira da revolta foi a de ter inspirado um dos
mais famosos poemas de Heine, O Canto dos Tecelões Silesianos, publicado no
mesmo número de Vorwärts!
«O proletariado alemão é o teórico do proletariado europeu, assim como
o proletariado inglês é o seu economista e o francês o seu político», escre-
veu Marx na réplica a Ruge, prefigurando uma opinião mais tardia de Engels
que afirmava que o marxismo em si era um híbrido dessas três linhagens. Aos
26 anos, Marx já era bastante versado em filosofia alemã e socialismo fran-
cês; decidiu, agora, educar-se em economia política e, no Verão de 1844, leu
sistematicamente as obras principais de economia poMtica inglesa — Adam
Smith, David Ricardo, James MiU — , garatujando comentários à medida que
ia avançando. Estas notas, cerca de 50 000 palavras, só foram descobertas na
década de 1930, altura em que o investigador soviético David Ryazanov as
publicou sob o útalo Manuscritos Económicos e Políticos. São actualmente conhe-
cidos pelos manuscritos de Paris.
trabalhador é quem sofre mais. Mas o que é que acontece se a sociedade está
a prosperar? «Tal condição é a única favorável ao trabalhador. Nesse caso,
a competição ocorre entre os capitalistas e a procura de trabalhadores excede
a oferta. Mas...»
Naturalmente. O capital nada mais é do que os frutos acumulados do tra-
balho e, assim, os capitais e rendimentos de um país aumentam apenas
«quando cada vez mais os produtos do trabalhador forem tirados dele,
quando o seu próprio trabalho o confrontar cada vez mais como proprie-
dade alheia e os meios da sua existência e da sua actividade forem cada vez
mais concentrados nas mãos do capitalista» — assim como uma galinha
inteligente (caso tal improvável criatura exista) que se tornasse mais cons-
ciente da sua impotência no seu estado mais fértil, pondo dúzias de ovos para
vê-los serem roubados ainda quentes.
Além do mais, numa sociedade próspera haverá uma crescente concen-
tração de capital e competição mais intensa. «Os grandes capitalistas arrui-
nam os pequenos, e uma parte dos antigos capitalistas afunda-se na classe
dos trabalhadores, a qual, devido ao aumento em número, sofre mais uma
depressão salarial e torna-se ainda mais dependente de um punhado de
grandes capitalistas. Porque o número de capitalistas diminui, a competição
para procurar trabalhadores deixa de existir; e porque o número de trabalha-
dores aumenta, a competição entre eles torna-se maior, anormal e violenta.
Assim, conclui Marx, até mesmo nas condições mais propícias, a única
consequência para os trabalhadores é "excesso de trabalho e morte prema-
tura, ser reduzido a uma máquina, sujeição ao capital". A divisão do traba-
lho torna-o ainda mais dependente e introduz a competição das máquinas
assim como a dos homens. "Na medida em que o trabalhador foi reduzido
a máquina, a máquina confronta-o como um competidor." Finalmente, a
acumulação de capital dá a possibilidade à indústria de fabricar ainda uma
maior quantidade de produtos colocando um grande número de trabalha-
dores sem emprego ou reduzindo os seus salários a uma ninharia. "Uma tal
situação," concluiu Marx com sinistra ironia. "São as consequências de um
estado da sociedade que é a mais favorável ao trabalhador, quer dizer, um
estado de riqueza crescente. Mas, com o tempo, há-de chegar uma altura em
que esse estado alcança o ponto mais alto. E qual será, então, a situação do
trabalhador?"» Bastante miserável, o que não é nenhuma surpresa.
As vantagens favorecem o capital. Um grande industrial pode guardaros
produtos da sua fábrica até eles atingirem um preço decente, enquanto o
o REI CORRUPTO a ^ 69
«Durou meses e meses; era uma série de histórias... Hans Röckle era
um mágico à Hoffmann, que tinha uma loja de brinquedos e que estava
sempre "teso". A loja dele estava cheia das coisas mais maravilhosas —
bonecos e bonecas de madeira, gigantes e anões, reis e rainhas, trabalha-
dores e patrões, aves e animais tão numerosos como os que N o é meteu
dentro da arca, mesas e cadeiras, carruagens, caixas de todos os tamanhos
e feitios. Embora fosse um mágico, Hans nunca podia cumprir as suas
obrigações para com o diabo nem para com o h o m e m do talho e, por
o REI CORRUPTO ^ß 71
Era bastante fácil num conto de fadas, mas como podia u m trabalhador
recuperar os frutos do seu trabalho sem recorrer à magia? Para Hegel, a
alienação era simplesmente uma realidade da vida, a sombra que cai entre o
conceito e a criação, entre o desejo e o espasmo. Uma vez que a ideia se torna
um objecto — quer seja uma máquina ou u m livro — era "exteriorizada" e
separada do seu produtor. A separação era a conclusão inevitável de todo o
trabalho.
Para Marx, o labor alienado não era u m problema eterno e inelutável da
consciência humana, mas o resultado de uma particular forma de organiza-
ção económica e social. U m a mãe, por exemplo, não é automaticamente
separada do seu bebé logo que este sai do útero, muito embora o parto seja,
sem dúvida, um exemplo da «exteriorização» de Hegel. Mas ela sentir-se-ia
deveras muito alienada se, sempre que desse à luz, a criança aos guinchos lhe
fosse imediatamente tirada por u m m o d e r n o Heredes. Tal era, mais ou
menos, a sorte diária dos trabalhadores que constantemente produziam o
que não podiam guardar. N ã o admira que se sentissem menos do que hu-
manos. «O resultado é que», observou Marx num paradoxo característico, «o
h o m e m (o trabalhador) sente que está apenas a agir livremente nas suas
funções mais animais — comendo, bebendo e procriando ou, no máximo,
no que respeita a sua habitação e ornamentação — , enquanto nas suas fun-
ções humanas não passa de um animal.»
Qual era a alternativa? Q u a n d o escreveu os manuscritos de Paris, em
1844, Marx já possuía um formidável talento para detectar as falhas estru-
turais da sociedade — a humidade, a madeira a apodrecer, os barrotes que
não podiam suster o peso colocado por cima deles — e explicar porquê a sua
demolição era urgentemente requerida. Mas as suas capacidades de capataz
e demolidor ainda não incluíam uma grande visão arquitectónica própria. «A
suplantação da propriedade privada é... a total emancipação de todos os atri-
butos e sentidos humanos», escreveu. «Apenas através da exposição objectiva
da riqueza da natureza humana pode a riqueza da sensibilidade subjectiva
humana—um ouvido musical, um olho para apreciar a beleza das formas, em
resumo, sentidos capazes de gratificação humana — ser cultivada ou criada.»
Só o comunismo poderia resolver o conflito entre o homem e a natureza, e
72 ;>o KARL MARX
da Rue Vanneau, Friedrich Engels, então com 23 anos, passava por Paris
vindo de Inglaterra a caminho da Alemanha. E m b o r a os dois homens já se
tivessem visto uma vez — quando Engels visitara a redacção do Kheinische
Zeitung2i 16 de Novembro de 1842 — , tinha sido u m encontro frio e pouco
memorável: Engels desconfiou do jovem director que «se exalta como se dez
mil diabos o agarrassem pelos cabelos», conforme Edgar Bauer o tinha
prevenido. Marx mostrou-se igualmente desconfiado, pressupondo acertada-
mente que, como Engels vivia em Berlim, devia com certeza ser cúmplice das
loucuras dos irmãos Bruno e Edgar Bauer, hegeUanos livres. Engels redimiu-
-se dentro de pouco tempo abandonando Berlim para ir morar em Manchester
e foi-Ihe permitido escrever vários artigos para o Rheinische Zeitung, o que des-
pertou realmente o interesse de Marx foi uma braçada de ensaios submetida
ao Deutsche-Fran^sischeJahrbücher— uma crítica de Passado e Presente, de Thomas
Carlyle, e uma volumosa Crítica de Economia Política, a qual Marx considerou uma
obra de génio. Percebe-se porquê: apesar de ele já ter decidido que o idealis-
mo abstracto não passava de conversa e que o motor da história era accionado
por forças económicas e sociais, os seus conhecimentos práticos quanto ao ca-
pitalismo eram nulos. Tinha andado de tal m o d o embrenhado em contendas
dialécticas com filósofos alemães que a situação da Inglaterra — o primei-
ro país industrializado e berço do proletariado — tinha escapado à sua aten-
ção. Engels, da sua posição vantajosa no meio dos teares de algodão em
Lancashire, estava bem colocado para o esclarecer.
Quando voltaram a encontrar-se em Agosto de 1844, a atitude de Marx
tinha mudado e, em vez de desconfiança, manifestou uma curiosidade res-
peitosa. Depois de tomarem uns aperitivos no Café de la Régence — anti-
go covil de Voltaire e Diderot — Marx convidou Engels a vir ao seu apar-
tamento para continuarem a conversa. Esta, acompanhada por copiosas
quantidades de vinho tinto, durou dez dias intensos que se prolongaram pela
noite fora e, no fim, eles juraram amizade eterna.
Curiosamente, nenhum deles escreveu sobre esse épico diálogo. N u m
prefácio escrito cerca de 40 anos mais tarde, o relato de Engels resume-se
a uma frase: «Quando visitei Marx no Verão de 1844, a nossa total concor-
dância em todos os campos teóricos tornou-se evidente e o nosso trabalho
comum data dessa época.»'"' C'est tout: ninguém adivinharia que essa brusca
passagem de Engels por Paris poderia justamente vir a ser descrita como os
dez dias que abalaram o mundo.
74 ^ ^ KARL MARX ^ •
«... e quando fecham, por volta das onze, os bêbedos saem aos tram-
bolhões e, regra geral, cozem a bebedeira na valeta... As razões de tal
coisa são perfeitamente claras. Primeiro e principalmente, o grande res-
ponsável é o trabalho na fábrica. Salas acanhadas onde os trabalhadores
respiram mais fumo de carvão e poeira do que oxigénio — e a maior parte
dos casos de intoxicação começam aos seis anos de idade — , privam-nos
de toda a energia e alegria de viver. O s tecelões, que têm teares em casa,
trabalham debruçados sobre eles de manhã à noite e dissecam a espinal
medula diante de u m fogão. Aqueles que escapam ao misticismo são
destruídos pela bebida.»
O que conferiu intensidade e profundidade e este livro foi a hábil teia (era,
afinal de contas, um industrial de têxteis) de observações em primeira mão.
o REI CORRUPTO ^ß 79
isso lhe foi agora proibido por Bonaparte, ela "descarrega-se". E apenas um
silvo, um pequeno murmúrio, quase nada, mas sabes muito bem que os
franceses são muito sensíveis ao menor sopro de vento.»
Como cosmopolitas sem terra, chegaram a criar uma linguagem própria;
uma estranha algaraviada em inglês, francês, latim e alemão. Todas as cita-
ções neste livro foram traduzidas para poupar ao leitor a angústia de tentar
decifrar o código marxista, mas uma breve frase dará uma ideia da sua ex-
pressiva, embora incompreensível, sintaxe: Diese excessive technicality of an-
cient law i^eigtjurispruden^asfeather of the same bird, als d. religiösen Formalitäten
^. i3. Auguris etc. od. d. Hokus Fokus des mediane man der savages. Engels apren-
deu a compreender esta confusão facilmente e, assim como Jenny, conseguia
1er os gatafunhos de Marx. À parte estes dois próximos colaboradores, pou-
cos foram aqueles que, sem arrancar os cabelos, tiveram sucesso. Após a
morte de Marx, Engels teve de dar longas lições de paleografia aos demo-
cratas sociais alemãs que desejavam compilar os documentos inéditos do
grande homem.
Engels serviu Marx como espécie de mãe substituta — enviando-lhe
dinheiro, preocupando-se com a sua saúde e lembrando-lhe constantemente
para não negligenciar os estudos. Na primeira carta que existe e que foi escrita
em Outubro de 1844, já insistia para que Marx terminasse os manuscritos
sobre poKtíca e economia: «Mexe-te para que o material que compilaste seja
pubHcado em breve. Já não é sem tempo!» E, novamente, a 20 de Janeiro do
ano seguinte: «Tenta terminar o teu livro de economia política. Mesmo que
haja muita coisa com que não estejas satisfeito, não interessa. As pessoas
estão prontas e devemos bater no ferro enquanto ele ainda está quente... Por
isso, tenta terminá-lo antes de Abril. Faz como eu, marca uma data para o teres
27
definitivamente acabado e certifica-te de que vai rapidamente para a tipografia.»
Mas não havia nada a fazer. Marx era desencaminhado pelo próprio
Engels. Este cometeu o erro de propor que colaborassem juntos num pan-
fleto contra Bruno Bauer e a sua trupe de palhaços sob o título de Crítica do
Criticismo C^'Z/Vo, assinalando que não deveria ter mais de 40 páginas, pois
«acho estas balelas teóricas cada vez mais entediantes e irrita-me o número
de palavras que tem de ser consagrado ao tópico do " h o m e m " e todas as
Mnhas que têm de ser lidas, ou escritas, contra a teologia e a abstracção...»28
Engels redigiu rapidamente a sua parte de 20 páginas enquanto ainda se
encontrava no apartamento da Rue Vanneau e, depois, regressou para casa
na Renânia. Vários meses depois, ficou «bastante surpreendido» ao saber que.
82 ^ ^ KARL MARX
agora, o panfleto era uma monstruosidade com mais de 300 páginas e fora
reintitulado A. Sagrada Família.
«Vai parecer estranho se mantiveres o meu nome na capa», comentou. «A
minha contribuição foi praticamente nula.» Mas este não era o único moti-
vo para desejar que o seu nome fosse retirado. «O Criticismo Crítico ainda não
chegou!», disse a Marx em Fevereiro de 1845. «O seu novo titvXo^ASagrada
Família, vai certamente causar-me sarilhos com o meu piedoso e já muito
exasperado parente, embora tu, claro está, não pudesses estar ao corrente de
uma coisa dessas.»^^ O parente irritado era, claro está, o seu beato e despó-
tico pai que começava a recear pela salvação da alma cristã do filho.
«Quando recebo uma carta, é farejada por todos os lados antes que ma
entreguem», resmungava Engels. «Não posso comer, beber, dormir n e m
mandar um peido sem ter de enfrentar a mesma maldita expressão de cor-
deiro de Deus.»^°
U m dia, quando Engels chegou a cambalear duas da manhã, o
desconfiado patriarca perguntou-lhe se ele fora preso. D e m o d o algum,
ripostou Engels de maneira tranquilizadora: tinha simplesmente estado a
discutir ideias comunistas com Moses Hess. «Com o Hess!», gaguejou o pai.
«Deus nos valha! Andas com péssimas companhias!»
E o pai não sabia da missa a metade. «Agora, tudo o que o meu velho tem
de fazer é descobrir a existência do Criticismo Critico pata me pôr, certamen-
te, no olho da rua. E, ainda por cima, há a constante irritação de ver que não
há nada a fazer com esta gente; adoram flagelar-se, torturar-se com as suas
fantasia infernais e ninguém consegue sequer ensinar-lhes os mais banais
princípios de justiça.».
yí Sagrada Família, ou a Crítica do Criticismo Crítico: Contra Bruno Bauer e
Consortes, foi pubUcada em Frankfürt na Primavera de 1845. Ao voltar a 1er
o livro cerca de 20 anos mais tarde, Marx ficou «agradavelmente surpreso por
se dar conta de que não há razão para nos sentirmos envergonhados do texto,
embora o culto a Feuerbach provoque, agora, uma impressão cómica».^^
Poucos outros leitores partilharam da sua satisfação. Por volta da altura em
que Marx começou a escrever esta epopeia desdenhosa, os irmãos Bruno,
Edgar e Egbert Bauer — a sagrada família do título — já tinham derrapa-
do do ateísmo e comunismo militantes para uma mera palhaçada, assim
como os Dadaístas ou Futuristas dos anos de 1930. Tudo o que eles mere-
ciam, ou precisavam, era uma bofetada e não um bombardeamento em lar-
ga escala. Q u e m mata moscas com um bacamarte?
o REI CORRUPTO o * ^ 83
«Era uma vez um tipo valente que julgava que os homens se afoga-
vam apenas porque estavam possuídos pela ideia da gravidade. Se conse-
guissem tirar tal ideia da cabeça, confessando, por exemplo, que se tra-
tava de uma superstição, de um conceito religioso, ficariam sublimemente
livres dos perigos da água. Ele tinha lutado toda a sua vida contra a ilu-
são da gravidade e todas as estati'sticas davam-lhe novas e múltiplas pro-
vas das suas nocivas consequências. Este tipo valente era o protótipo dos
novos filósofos revolucionários alemães.»^
do paraíso era um idílio pastoral — o que, visto o desprezo de Marx pela vida
no campo, a qual costumava descrever como uma «idiotice rural», não dei-
xava de ser estranhamente irónico. Sob a presente divisão do trabalho, ob-
servaram, todos os homens estavam encurralados numa esfera exclusiva de
actividade:
«Sancho [quer dizer, Stirner] imagina que Rafael produziu quadros in-
dependentemente da divisão de trabalho que existia em Roma nessa
época. Se ele comparasse Rafael com Leonardo da Vinci e Ticiano, ve-
ria como as obras de arte de Rafael dependiam enormemente da pros-
peridade de Roma, a qual ocorreu sob influência florentina, enquanto a
obra de Leonardo dependia do estado das coisas em Florença e a de
Ticiano, num período mais tardio, dependia do desenvolvimento total-
mente diferente de Veneza. Rafael, c o m o qualquer outro artista, foi
92 * ^ KARL MARX
florestal que tinha ganho os seus galões de revolucionário num ataque a uma
esquadra em 1833; Heinrich Bauer, pequeno sapateiro espirituoso da
Francónia; e Joseph Moll, relojoeiro de Colónia de altura média, mas enor-
me coragem física. «Quantas vezes», escreveu Engeles, «ele e Schapper de-
fenderam vitoriosamente a entrada da Associação contra centenas de opo-
nentes!» (Heróico até ao último momento, Moll foi abatido a tiro num campo
de batalha alemão durante a revolta de Baden, em 1849).
Engels veio a conhecer este triunvirato no decorrer de uma visita a Lon-
dres, em 1843. Eram os primeiros revolucionários da classe operária que ja-
mais tinha conhecido e, para um impressionável jovem burguês, o seu esta-
tuto de «homens a valer» fadlmente superou a estreiteza e ingenuidade da sua
ideologia. Além do mais, eram sem dúvida eficazes, pois reestruturaram a Liga
dos Justos em Londres e organizaram uma rede de apoiantes na Suíça, Alema-
nha e França. Onde as associações de trabalhadores eram proibidas por lei, eles
faziam-nas passar por sociedades corais ou clubes de ginástica.
depois da abortada rebelião fi-ancesa de 1839, fiandou filiais da Liga dos Jus-
tos em Genebra e Zurique, o que acabou por chamar a atenção das autori-
dades suíças. N o decorrer de uma rusga aos seus alojamentos, a polícia
encontrou provas incriminadoras — um manuscrito autobiográfico, O Evan-
gelho de um Pobre Pecador, no qual ele se comparava a Jesus Cristo, o coitado
de um marginal que fora crucificado por ousar denunciar a injustiça. Tal
impudência valeu-lhe seis meses de prisão por blasfémia, seguida da sua
deportação para a Alemanha — onde em breve foi novamente preso, dessa
vez por tentar escapar ao serviço militar. Q u a n d o , finalmente, chegou a
Londres, em 1844, o alfaiate de 36 anos era uma figura lendária que, com a
sua retórica revivalista, atraía grandes multidões de socialistas alemães
expatriados e Cartistas ingleses. N u m dos seus favoritos lances teatrais, le-
vantava a perna das elegantes calças (sendo alfaiate, Weitung andava sempre
vestido com fatos bem cortados) para mostrar as lívidas cicatrizes deixadas
pelos gruhões dos seus carcereiros.
É difícil imaginar alguém com menos probabilidade de seduzir Marx do
que este vaidoso e utópico sonhador, cujo programa político se encontrava
resumido no prefácio do seu Uvro Garantias de Harmonia e l^iherdade: «Que-
remos ser livres como as aves no céu; passar pela vida como elas, voando
alegre e despreocupadamente em doce harmonia.» E a melhor maneira para
conseguir levantar voo, sugeria Weitling, era recrutar um exército de 40 000
ladrões condenados — os quais, motivados pelo seu rancor contra a proprie-
dade privada, derrubariam os poderosos e iniciariam uma nova era de paz
e alegria. «Os criminosos são produto da ordem actual da sociedade.» Escre-
veu. «Sob o regime comunista, deixariam de ser criminosos.»
N o paraíso terrestre de Weitling, todos se vestiriam com roupa idêntica
(feita, sem dúvida, por ele mesmo), e aqueles que quisessem usar algo dife-
rente teriam de o ganhar trabalhando horas extraordinárias. As refeições
teriam lugar em cantinas comuns, mas as normas quanto aos talheres ainda
estavam por decidir. («Estes alfaiates são tipos espantosos», comentou
Engels depois de se ter encontrado com alguns adeptos de Weitling. «Há bem
pouco tempo, andavam a discutir muito seriamente a questão dos garfos e
das facas.») Ao chegar aos 50 anos, as pessoas deixariam de trabalhar e se-
riam enviadas para colónias de reforma — uma espécie de Eastbourne co-
munistas, mas sem os clubes de howling.
Quase se pode ouvir Marx rosnar de desdém ao ouvir um tal chorrilho
de asneiras. Mas ele hesitou em condená-lo publicamente. Apesar de, 1834,
o RATO NO SÓTÃO a * ^ 95
para intelectuais burgueses. Como Engels escreveu: «Ele era, agora, o grande
homem, o profeta, perseguido de país para país, que levava uma receita
pronta a usar no bolso para a realização do céu na Terra, e imaginava que
andavam a tentar roubar-lha. 10
Quando Heinrich Heine conheceu Weitling, ficou escandalizado pela
«falta de respeito que manifestou quando conversava comigo. Não tirou o
chapéu e, enquanto eu me mantive de pé diante dele, permaneceu sentado
com o joelho direito levantado até ao queixo esfregando o tornozelo da dita
perna com a mão esquerda»". Réplica do velho truque para mostrar as ci-
catrizes da prisão, mas mesmo deixou Heine impassível. «Confesso que me
mostrei impressionado quando o alfaiate Weitling me falou das correntes.
Eu, que uma vez em Münster beijei fervorosamente as reKquias do alfaiate
John, de Leyden —- os grilhões que tinha usado e os instrumentos com que
o tinham torturado que se encontram na Câmara daquela cidade — eu, que
venerava esse alfaiate morto, sentia agora uma aversão insuperável por este
alfaiate vivo, Wühelm Welding, embora ambos os homens fossem apósto-
los e mártires da mesma causa.»
Marx e Engels sentiam a mesma repulsa, especialmente quando Weitung
se pôs a tratá-los por «meus caros jovens», mas, por respeito pelo seu estatu-
to de proletário e os longos anos passados na prisão, fizeram o possível para
a ocultar. Em princípios de 1846, convidaram-no para ser membro fundador
do novo Comité Comunista de Correspondência, em Bruxelas, cujo objectivo
era manter «um permanente intercâmbio de cartas» com a Liga dos Justos e
outras associações fraternas na Europa ocidental. Como este comité foi o Adão
original a partir do qual todos os outros partidos comunistas subsequentes
descendiam, vale a pena enumerar os 18 signatários fundadores: Karl Marx,
Friedrich Engels, Jenny Marx, Edgar von Westphalen, Ferdinand Freiligrath,
Joseph Weydemeyer, Moses Hess, Hermann Kriege, Wilhelm Weitung, Ernst
Dronke, Louis Heilberg, Georg Weerth, Sebastian Seiler, Philippe Gigot,
Wilhelm Wolff, Ferdinand Wolff, Karl Wallau, Stephan Born. Como a maior
parte das suas sucessoras no século XX, esta célula comunista reivindicou a sua
autoridade purgando quem fosse suspeito de divergência com a política ofi-
cial; Weitung foi, inevitavelmente, designado como a primeira vítima.
A altura escolhida para esta humilhação ritual foi uma reunião na noite
de 30 de Março de 1846, a que assistiram meia dúzia de membros mais um
observador exterior, Pavel Annenkov, jovem «turista estético» russo que
aparecera recentemente em Bruxelas com uma carta de apresentação de um
o RATO NO SÓTÃO *aCl# 97
«Vou-me embora por volta de 7 de Abril — ainda não sei para onde
— e, por essa altura, também terei um pouco de dinheiro. Por isso, po-
deríamos divertir-nos ã grande em todas as tabernas... Se tivesse um
rendimento de cinco mil francos, não faria mais nada senão trabalhar e
divertir-me com mulheres até cair aos bocados. Se as francesas não exis-
tissem, não valeria a pena viver. Mas, enquanto \\QMSiexgrisettes, tudo bem
Isso não impede uma pessoa de, por vezes, sentir vontade de falar sobre
um tópico decente ou desfrutar a vida com certo requinte, o que é im-
possível com toda a gente que aqui conheço. Tens de cá vir.»
N ã o foi tanto uma fusão quanto uma tomada de passo. Marx tinha re-
cusado aliar-se aos londrinos — Schapper, Bauer, Moll — até eles se reestru-
turarem numa Liga Comunista, cortando os laços com quem se tinham as-
sociados. Estavam agora dispostos a aceitar as suas exigências. Proudhon,
G r ü n e Weitling deveriam ser ritualmente denunciados por «hostilidade para
com os comunistas», e o lema da antiga Liga que Marx tanto desprezava —
«Todos os Homens São Irmãos» — seria substituído pelo imperativo «Tra-
balhadores de Todos os Países, Uni-vos!»
Dois meses depois da reunião inaugural da Liga Comunista em Londres,
o comité de correspondência de Bruxelas converteu-se numa filial (ou «co-
munidade») da Liga sob a presidência de Marx. Segundo os novos regula-
mentos, todas as comunidades deviam ter pelo menos três e, no máximo, 12
membros, cada um dos quais tinha de «dar a palavra de honra que trabalha-
ria com lealdade e manteria segredo».^^
Tratava-se, no final de contas, de uma organização ilegal. N o entanto, e
seguindo o exemplo dos londrinos, Marx também fundou uma Associação
de Trabalhadores mais aberta e menos política, que organizou debates quase
parlamentares assim como sessões de «canto, recitação, teatro e eventos do
mesmo género». Nas primeiras semanas, mais de cem trabalhadores torna-
ram-me membros. «Por pouco que pareça», escreveu Marx a George Her-
wegh, «a actividade pública é infinitamente refrescante».^^
Os interesses de Marx foram representado durante o congresso de Ju-
nho, em Londres, por outro comunista alemão de Bruxelas, Wilhelm Wolff,
bem como pelo delegado da filial da Liga em Paris, um certo F. Engels, que
chegou com uma declaração preliminar de princípios para a nova Liga
Comunista. Apesar de não ter sido formalmente adoptada, essa declaração
foi enviada a todas as comunidades da Europa «para séria e matura consi-
deração». Como uma circular do quartel-general explicava: «Tentámos, por
um lado, abstermo-nos de todo o comunismo de caserna que criasse siste-
mas, e, por outro, evitar a sentimentalidade fátua e insípida dos comunistas
emocionais e lacrimosos [quer dizer, utopistas como Weitling]... Esperamos
que proponham muitos acréscimos e emendas à autoridade central. Voltare-
mos a convocá-los para discutir o projecto com particular entusiasmo.»^^
Ninguém recebeu o convite com maior entusiasmo do que Marx, o qual,
no espaço de um ano, transformou o embrionário credo de Engels num dos
livros mais influentes que jamais foi publicado.
o PAPÃO ATERRADOR
«Marx era um líder nato do povo. O seu discurso foi breve, convin-
cente e irresistível na sua lógica. Nunca disse palavras supérfluas, cada fra-
se era um pensamento e todo o pensamento era um elo essencial na
cadeia da sua demonstração. Marx nada tinha de sonhador. Quanto mais
me dava conta da diferença entre o comunismo da época de Weitling e
do Manifesto Comunista, mais claramente percebia que Marx representa-
va a maturidade do pensamento socialista.»'^
porém, a ideia do papão assustador nunca pegou. A versão que toda a gen-
te agora conhece é a tradução, por Samuel Moore, publicada pela primeira
vez em 1883 e reeditada numerosas vezes depois: «Um espectro assombra
a E u r o p a . . . o espectro do comunismo. Todos os poderes da velha Europa
fizeram uma aliança sagrada para exorcizar esses espectro. O Papa e o czar,
Metternich e Guizot, os radicais franceses e os espiões da poHcia alemã.»
Esta salva de abertura ficou desactualizada quase logo após Marx a ter
disparado. A edição alemã do manifesto foi publicada a 24 de Fevereiro de
1848, ou próximo dessa data, composta, utilizando novos tipos góticos, na
Associação Educativa dos Trabalhadores, em Londres, e, a seguir, entregue
a toda a pressa numa tipografia perto da rua Liverpool pelo jovem e prestável
Friedrich Lessner. «Estávamos intoxicados de entusiasmo», relatou Lessner.
Quando ele foi buscar os exemplares — apropriadamente encadernados em
amarelo-vivo — já havia de notícias vindas de França que a revolução tinha
começado e que se levantavam barricadas nas ruas de Paris.
François Guizot, o h o m e m que tinha assinado a ordem de expulsão de
Marx em 1845, foi demitido do cargo de primeiro-ministro e o rei Luís Fi-
lipe abdicou no dia seguinte com o trono literalmente a arder. Uma outra bete
noire de Marx, o chanceler austríaco, Metternich, foi derrubado dentro de três
semanas e, a 18 de Março, a agitação alastrou-se para Berlim.
O galo gaulês tinha cantado e, de repente, toda a Europa tinha desper-
tado. «A nossa era, a era de democracia, está a desmoronar-se», escreveu
Engels num entusiástico despacho ao Deutsche-Brüsseler Zeitung. «As chamas
das Tulherias e do Palais-Royal são a aurora do proletariado. O regime bur-
guês cairá por toda a parte ou será destruido. A Alemanha, esperamos, será
a próxima e, agora ou nunca, erguer-se-á da sua degradação...» "^
Mas a Alemanha — ou, aüás, o rei da Prússia — tinha outras ideias. Os
seus espiões na Bélgica andavam a vigiar o Deutsche-Brüsseler Zeitung com
horror crescente.
alcunhados Red Wolff & I^upus). Mas, como Engels admitiu, o jornal era es-
sencialmente «uma ditadura governada por Marx». Segundo Stephan Born,
que visitou a redacção uns meses mais tarde, até mesmo os súbditos mais
leais do tirano achavam por vezes difícil enfrentar esta caótica autocracia. «As
queixas mais amargas sobre Marx provinham de Engels. "Ele não é nenhum
jornalista", dizia. " E nunca o será. Leva um dia inteiro para escrever um ar-
tigo que outra pessoa faria num par de horas, como se se tratasse de u m pro-
blema profundamente filosófico. Faz alterações, aperfeiçoa e muda as mudan-
ças, e por causa da sua infatigável meticulosidade nunca termina a tempo." Era
um autêntico alívio para Engels poder, uma vez por outra, desabafar.»^^
Embora Marx não fosse certamente cumpridor de prazos. Born talvez
esteja a exagerar. O Neue Rheinische Zeitiung era pubHcado diariamente, com
frequência acompanhado de um volumoso suplemento para acomodar to-
das as notícias e artigos que não cabiam na secção principal, e, em ocasiões
especiais, também saía uma edição à tarde. Se o director fosse tão lento como
Born alegava, o jornal nunca chegaria à tipografia.
O que distinguia o Neue Rheinische Zeitung do resto da imprensa «demo-
crática» na Alemanha era a sua preferência por informações sobre teorias de
longo fôlego. Reunindo cuidadosamente os factos que convinham aos seus
objectivos, Marx achava que conseguia muito mais do que as eruditas refle-
xões liberais sobre o significado do republicanismo. Também prestava par-
ticular atenção às actividades dos cartistas na Grã-Bretanha e aos jacobinos
em França, na esperança de que estes alertariam os leitores quanto ao neces-
sário antagonismo entre a burguesia e o proletariado — antagonismo esse
que ele não ousava articular mais explicitamente. (A primeira coisa que fez
ao chegar a Colónia foi fazer-se assinante de três jornais ingleses, The Times,
o Telegraph e o Economist)
Os 12 meses que Marx viveu na Alemanha, entre 1848 e 1849, são mui-
tas vezes denominado «o ano louco», e ele parece realmente ter passado esse
período a espumar de raiva — sobretudo contra ele mesmo enquanto andava
a tentar harmonizar dois impulsos irreconciliáveis. O dilema era óbvio para
quem tivesse üdo mais atentamente o Alanifesto Comunista: Mãtx argumentava
que os comunistas deveriam encorajar o proletariado a apoiar a burguesia
«sempre que esta agisse de forma revolucionária» e, ao mesmo tempo, instilar
nos trabalhadores «o hostil antagonismo existente entre a burguesia e o
proletariado». As classes médias — não se pode viver com elas nem sem elas.
120 V:--* I<CARI.MARX
como um ninho de gente que perdia tempo com ninharias, pode-se pensar
que esta crítica cheirava a hipocrisia. E, ainda com maior perversidade,
queixava-se de que Gottschalk estava pronto a aceitar uma monarquia cons-
titucionalmente limitada em vez de um regime republicano imediato. N o
entanto, o próprio Marx declarou num editorial de 7 de Junho: «Não quere-
mos utópicamente pedir que, logo de início, seja proclamada uma república
alemã unida e indivisível.»
O pobre Gottschalk viu-se, assim, simultaneamente condenado por ti-
midez e excesso de zelo; não admira que se tenha demitido da Liga Comu-
nista semanas depois da estapafúrdica chegada de Marx a Colónia. Mesmo
quando Gottschalk e o seu amigo, Friedrich Anneke, foram presos e acusa-
dos de incitação à violência em princípios de Julho, o Neue Rheinische Zeitung
pareceu curiosamente desinteressado. «Reservamos a nossa opinião, pois
ainda não obtivemos informação suficiente sobre a sua prisão e a maneira
como foi executada», comentou Marx num breve editorial a 4 de Julho. «Os
trabalhadores devem mostrar-se razoáveis e não se deixarem levar a provo-
car distúrbios.» O jornal do dia seguinte continha um artigo mais comple-
to, concentrando-se sobre o tratamento que Anneke recebera por parte dos
agentes que o tinham detido e acusando o promotor público, Herr Hecker,
de ter chegado meia hora depois da polícia a fim de lhes dar tempo para
espancar o suspeito e aterrorizar a mulher grávida. «Herr Hecker declarou
não ter dado ordens para cometer brutalidades», acrescentou sarcasticamente
Marx. «Como se Herr Hecker pudesse ordenar uma coisa dessas!» Todavia,
o coitado de Gottschalk mal era mencionado.
Gottschalk ficou cinco meses na cadeia à espera de ser julgado. U m cí-
nico poderá suspeitar que Marx não se sentiu totalmente descontente com
o desaparecimento do seu rival, pois isso dava-lhe a oportunidade de impor
a sua própria autoridade e unir as facções em litígio. Mas Marx nunca foi u m
conciliador nato. Cari Schurz, um estudante de Bona, viu-o actuar no decor-
rer de uma reunião dos democratas de Colónia, em 1848:
«Na altura, ele não devia ter muito mais do que 32 anos, mas já era o
reconhecido chefe da escola socialista superior... E u cá nunca tinha visto
um h o m e m cuja atitude fosse tão provocadora e intolerável. N ã o con-
cedia nem sequer a honra de considerar de maneira condescendente as
opiniões que diferiam da sua. Todos aqueles que o contradiziam eram tra-
tados com desprezo abjecto e respondia a todos os argumentos de que
122^8 KARL MARX
não gostava com mordaz desdém pela infinita ignorância que os tinham
incitado ou com calúnias infames sobre os motivos de quem os articu-
lara. Lembro-me muito distintamente do tom desdenhoso com que pro-
nunciava a palavra "burguês"; e como um "burguês" — quer dizer, um
detestável exemplo da mais profunda degenerescência mental e moral —
denunciava todos que ousavam opor-se à opinião dele... É evidente que
não só não ganhou nenhuns adeptos como também repeliu muitos que,
de outro modo, poderiam ter-se tornado seus seguidores.»"
É de assinalar que isto foi escrito cerca de 50 anos mais tarde, muito de-
pois de Schurz ter emigrado para a América e de se tornar um respeitável ho-
mem de Estado como senador e secretário do Ministério do Interior dos EUA.
N o entanto, soa terrivelmente verdadeiro. Como Marx era raramente capaz
de manter boas relações com os seus próprios camarada mais íntimos, se-
ria absurdo imaginar que ele pudesse harmonizar uma coligação já dividida
de liberais, esquerdistas, camponeses e proletários. Nos seus discursos e edi-
toriais, insistia que a Alemanha devia ter um governo democrático consti-
tuído pelos «elementos mais heterogéneos» e não uma ditadura de comunis-
tas inteligentes como ele mesmo, mas a veemência com a qual declarava isso
— lançando escárnios e insultos a quem ousasse discordar com ele — , su-
geria que ele era um homem que não reconheceria o pluralismo nem que lhe
fosse apresentado numa bandeja de prata enfeitada.
As autoridades prussianas nunca se deixaram enganar pelas suas atitudes
de reformador benigno. Já em Abril, o inspector Hünermund, de Colónia,
tinha avisado os seus superiores acerca do «politicamente incerto Dr. Marx»
e, quando o Neue Kheinische Zeitung publicou o cáustico relato da prisão de
Anneke, aproveitou a oportunidade. A 7 de Julho, Marx foi levado diante do
juiz para interrogatório por «difamações e insultos contra o promotor da jus-
tiça», enquanto a poKcia vasculhava a redacção à procura de qualquer documen-
to que identificasse o autor anónimo do pérfido artigo. Duas semanas mais
tarde, Marx foi mais uma vez interrogado e, em Agosto, os seus colegas,
Dronke e Engels, foram chamados como testemunhas. A 6 de Setembro, o
Zeitung publicou uma notícia preocupante: «Ontem, um dos nossos redac-
tores, Friedrich Engels, foi mais uma vez convocado para comparecer diante
do juiz no que se refere à investigação em curso contra Marx e associados,
mas, desta vez, não como testemunha, mas sim como co-acusado.»
o PAPÃO ATERRADOR ~T^-123
«Os belgas estão gradualmente a tornar-se nos polícias dos países vi-
zinhos e ficam todos contentes quando são felicitados pelo seu compor-
tamento paciente e submisso. N o entanto, há algo ridículo, sobre o bom
poKcia belga. Até o honesto T/A^ÍJ reconhece ironicamente o desejo de
agradar dos belgas e, ainda há pouco tempo, aconselhou a Bélgica a trans-
o PAPÃO ATERRADOR o * ^ 125
formar-se num grande clube com Ne risque^ rien (Não arrisquem nada)
como lema depois de se livrar de todas as associações de trabalhadores.
É evidente que a imprensa oficial belga, no seu cretinismo, reproduziu
esse lisonjeiro artigo e saudou-o com júbilo.»
Depois, podem, quanto a mim, pôr-me diante de dez mil juízes. Mas, quan-
do uma pessoa é detida para interrogações, não a deixam fumar e eu cá não
me vou deixar prender para isso.»
Após ter sido assegurado que não precisava sacrificar os seus charutos
pela causa. Engels voltou para a Alemanha em Janeiro — apenas para des-
cobrir que a revolução estava praticamente terminada. Fora formado um
novo governo chefiado pelo conde Brandeburgo, reaccionário e filho bas-
tardo de Frederico Guilherme II, e o rei tinha dissolvido a assembleia prus-
siana: «A burguesia não levantou u m dedo; deixou simplesmente o povo
combater por ela», resmungou Marx no Neue Rheinische Zeitung, admitindo
que a sua teoria de uma aliança entre os trabalhadores e a classe média não
passara de um sonho. A derrocada prussiana provava que uma revolução
burguesa era impossível na Alemanha; agora, seria necessário uma insurrei-
ção republicana. Mas a classe operária alemã estava incapaz de entrar em
acção sem encorajamento do exterior — em particular da França. Após ter
reflectido sobre as lições do ano anterior, Marx publicou um menu revolu-
cionário revisto a 1 de Janeiro de 1849:
anunciava que «a sua última palavra por toda a parte será sempre: emancipa-
ção da classe operária!» A seguir, Marx e os outros jornalistas saíram do prédio,
com a bandeira vermelha hasteada orgulhosamente no telhado e uma ban-
da a tocar, de armas e bagagem na mão.
Depois de vender tudo — incluindo a tipografia do jornal que lhe per-
tencia e a mobília de sua casa — Marx conseguiu liquidar as dívidas mais
importantes, mas ficou sem mais nenhum dinheiro. A prata da família de
Jenny foi posta no prego, desta vez em Frankfurt, enquanto ela e os filhos
partiram para casa da mãe em Trier. Marx e Engels dirigiram-se para Frank-
furt na esperança de convencer os deputados da esquerda a apoiar as tropas
insurgentes do Sudoeste da Alemanha que ainda combatiam pelo «governo
provisório» em Baden e no Palatinado. Mas ninguém lhes deu ouvidos e,
assim, partiram no dia seguinte para Baden, a fim de exortar as forças revo-
lucionárias a marchar sobre Frankfurt sem serem convidados. Mais uma vez
os seus apelos foram ignorados, embora tivessem um encontro amigável com
o antigo colega deles, WiUich, que chefiava agora os guerrilheiros.
Engels, um estudioso de estratégia militar, não resistiu à oportunidade de
vestir uma farda e juntar-se à guerra. Alistando-se como voluntário, em breve
nomeado ajudante de campo de WiUich e dirigindo conjuntamente a cam-
panha e as operações. N o decorrer das semanas seguintes combateu em al-
gumas escaramuças — todas elas foram perdidas. A sua descoberta mais im-
portante, disse ele a Jenny Marx, foi a de que «a muito vangloriada bravura
sob fogo é a qualidade mais comum que uma pessoa possui. O silvar das
balas é realmente uma coisa bastante trivial»^^ Assistiu a poucos actos
cobardes, mas muita «valentia estúpida».
Marx, que não tinha inclinação nem físico para ser soldado, deu-se con-
ta de que não havia mais nada que podia fazer na Alemanha e, em princípios
de Junho, partiu para Paris com um passaporte falso, apresentando-se às
autoridades francesas como o enviado especial do governo revolucionário
do Palatinado. Ao chegar, contodo. Paris estava a braços com uma reacção rea-
lista e uma epidemia de cólera. «Por todo isso», escreveu jovialmente a Engels
a 7 de Junho, «nunca uma colossal erupção do vulcão revolucionário esteve
mais iminente do que actoalmente em Paris... Dou-me com todo o partido
revolucionário e, dentro de alguns dias, terei todos os jornais revolucioná-
rios à minha disposição».^^
Mas, dentro de dias, não havia mais jornais revolucionários. Q u a n d o
a facção dos montagnards da Assembleia Nacional francesa convocou uma
132 î ^ KARLxMARX
ram um clube exclusivo, onde Heinzen se queixa das doutrinas nocivas dos
comunistas»^ Quando The Times descreveu Heinzen como um «farol do
Partido Social Democrata alemão», Engels enviou uma dura refutação ao
Northern Star, jornal cartista: «Herr Heinzen, ao contrário de ser um farol,
tem-se incansavelmente oposto desde 1842, embora sem sucesso, a tudo o
que é socialismo e comunismo.»'' Era exactamente como nos velhos tempos
em Paris, ou Bruxelas — um turbilhão de intrigas, ajustes de contas e luta
pelo poder. Na sala da Associação, na rua Great Windmill, no Soho, Marx
em breve se encarregou de examinar minuciosamente os recém-chegados e
de impor regulamentos.
Wilhelm Liebknecht, que fugiu para Londres em 1850, deixou um vivo
relato dos métodos intimidadores usados por Marx para estabelecer o seu
domínio. Durante um piquenique da Associação, pouco depois da sua che-
gada, o «père Marx» chamou-o à parte e pôs-se a inspeccionar a forma do seu
crânio. Não tendo encontrado nenhuma anormalidade, Marx convidou-o
então no dia seguinte a ir à «sala privada» da rua Great Windmill para o
escrutinar mais pormenorizadamente:
«Não sabia o que era uma "sala privada", mas tive o pressentimento
que o exame "final" estava prestes a acontecer. Segui-o confiantemen-
te. Marx inspirava confiança e tinha-me causado boa impressão no dia
anterior. Conduziu-me pelo braço à sala privada, quer dizer, o gabinete
do anfitrião — ou seria anfitriã? — onde Engels me recebeu alegremente
com piadas e uma caneca de cerveja na mão... A maciça mesa de mog-
no, as canecas de estanho, a cerveja espumante, a perspectiva de um bom
bife inglês com acessórios e compridos cachimbos de espuma — era
realmente confortável e lembrava as ilustrações inglesas de Boz. Mas,
apesar de tudo isso, examinaram-me a sério.»^
e está constantemente entre a vida e a morte. Mama com tanta força que
tenho uma ferida no peito que muitas vezes chega a sangrar na sua b o -
quinha. U m dia, estava sentada a dar-lhe de mamar quando chegou a se-
nhoria, a quem já pagámos mais de 250 tâleres durante o Inverno e com
quem concordámos, por contrato, pagar o resto mais tarde. Mas ela, ago-
ra, nega a existência de tal contrato e exige as cinco libra que lhe deve-
mos. .. Como não temos dinheiro, vieram dois oficiais de diligências cá
a casa e confiscaram o pouco que ainda possuo — camas, roupa, tudo,
até mesmo o berço do meu pobre filho e os brinquedos das meninas que
desataram a chorar. Ameaçaram levar tudo dentro de duas horas —
deixando-me a dormir no chão com as crianças cheia de firio e o meu pei-
to ferido. O nosso amigo Schramm foi imediatamente à cidade à procura
de ajuda, mas, ao entrar no coche, os cavalos assustaram-se e abalaram
a toda a brida. Ele saltou e trouxeram-no a sangrar para casa onde eu me
lamentava na companhia dos meus pobres filhos a tremer de frio.
Fomos obrigados a deixar a casa no dia seguinte. Estava tanto frio e
húmido que o meu marido foi em busca de alojamento, mas ninguém nos
quer receber por causa das quatro crianças. Por fim, um amigo veio em
nossa ajuda. Pagámos o que devíamos e vendi tudo à pressa para pagar
igualmente aos boticários, padeiros, talhantes e leiteiro que, receosos pelo
escândalo provocado pelos oficiais de diligências, nos assaltaram subita-
mente com as suas contas. As cama que vendi foram levadas para a rua
e carregadas num carrinho de mão. E, depois, o que é que aconteceu? O
Sol já se tinha posto há muito e a lei inglesa proíbe isso. Então o senho-
rio vem ter connosco e os polícias e declara que podemos ter metido coi-
sas dele no meio das nossas posses e que vamos fugir para o estrangeiro.
E m menos de cinco minutos, junta-se uma multidão de 200 ou 300 pes-
soas à porta, toda a canalha de Chelsea. As camas voltam a entrar pois só
podem ser entregues ao comprador no dia seguinte depois de o Sol nas-
cer, enquanto eu e os meus pobres filhos nos alojamos n o G e r m a n
Hotel, 1, Leicester Street, em Leicester Square, onde nos receberam de-
centemente por 5,10 libras por semana.»"
pre que alguém entra ou sai, como é impossível dar um único passo sem ser-
mos seguidos para onde quer que vamos. N e m podemos apanhar u m auto-
carro ou entrar num café sem termos o prazer da companhia de, pelo me-
nos, um desses amigos desconhecidos, 19
E com toda a razão, devem ter pensado os leitores do Spectator, sobretu-
do porque os autores orgulhosamente se identificavam como sendo revo-
lucionários fugidos do seu país. Mas Marx e Engels anteciparam essa
objecção fazendo astuciosamente apelo à vaidade inglesa e à sua fobia con-
tra os hunos, revelando que nos seus santuários anteriores — França, Bél-
gica, Suíça — não tinham conseguido escapar ao maléfico poder do rei
prussiano. «Se, através de sua influência, formos forçados a deixar este úl-
timo refúgio na Europa, por que é que a Prússia não há-de julgar que governa
o m u n d o . . . Achamos, Sr. Director, que, nestas circunstâncias, nada pode-
mos fazer de melhor do que dar a conhecer o caso ao público, pois acredi-
tamos que os ingleses estão interessados em tudo que possa afectar a bem
estabelecida reputação de Inglaterra como o local de asilo mais seguro para
os refugiados de todos os partidos e países.»
Apesar do tom divertido, Marx precisava desesperadamente da garantia
de que a Inglaterra não o abandonaria. Desde a recente tentativa de assas-
sinar o rei Frederico Guilherme IV, que o ministro do Interior prussiano
tinha intensificado a sua campanha contra os «conspiradores políticos», en-
viando espiões da polícia e agentsprovocateurs p2Lt'ã. várias capitais europeias
— sobretudo Londres e, em particular, a rua Dean, no Soho. E não era de
admirar, pois o ministro do Inteiro era o reaccionário meio irmão de Jenny,
Ferdinand von Westphalen. N ã o tendo conseguido impedir que Marx entras-
se na família sete anos mais cedo, estava, agora, bem decidido a vingar-se.
N a carta ao Spectator, Marx alegava que, uns 15 dias antes do atentado
contra o rei Frederico Guilherme, «pessoas que tenho todas as razões para
acreditar que sejam agentes do Governo prussiano, ou ultra-reaüstas, apre-
sentaram-se a nós e tentaram quase directamente envolver-nos em regicídios
em Berlim e noutras cidades. Escusado será dizer que tais indivíduos não nos
convenceram.» O objectivo deles, segundo explicou, era persuadir as auto-
ridades britânicas «a expulsar deste país os pretensos chefes da pretensa
conspiração». U m desses agentes não identificados eraWüheltn Stieber, mais
tarde chefe do serviços secretos de Bismark, que, fazendo-se passar por um
jornalista de nome Schmidt, chegara a Londres em 1850. Stieber tinha rece-
bido ordens para vigiar Karl Marx e, depois de se infiltrar no quartel-gene-
o MEGALOSSAURO o í ^ 145
«Numa reunião presidida por Wolff e Marx, que teve lugar anteon-
tem e à qual assisti, ouvi um dos oradores afirmar "A Vitela da Lua (a
rainha Victoria) também não escapará ao seu destino. O aço inglês é o
melhor, as lâminas de machado sobretudo são particularmente afiadas e
a guilhotina aguarda todas as cabeças coroadas." Assim, o assassínio da
rainha de Inglaterra é proclamado por alemães apenas a umas centenas
de metros do palácio de Buckingham... Antes da reunião terminar, Marx
declarou à audiência que podia estar tranquila pois havia cúmpHces co-
locados por toda a parte. Medidas infalíveis foram tomadas para que
nenhum dos assassinos das cabeças coroadas europeias possa escapar.»™
No final de>l 850 — após passarem cinco miseráveis meses na rua Dean,
64 — Karl e Jenny encontraram alojamento a uma centena de metros. Era
no último andar do número 28 e tinha duas divisões. Actualmente, o prédio
é ocupado por um elegante restaurante cujo patrão é o temperamental
148^^ KARL MARX
Além do mais, ele gostava daquele desporto. Basta 1er alguns do fortuitos
retratos traçados em Os Grandes Homens do'Exíliopara ver o ptíLzer que ele tinha
em dar cabo deles. Rudolf Schramm: «Um homúnculo gabarolas e zaragateiro,
cuja lema na vida é saído do Sobrinho, de Rameau, "antes ser um faia-barato
insolente do que nada."» Gustav Struve: «Ao ver a sua aparência rugosa, os
olhos promberantes de expressão estúpida e manhosa, o brilho baço da ca-
reca e as feições meio eslavas, meio calmuques, uma pessoa não duvida de
que está em presença de um homem invulgar...» Arnold Ruge: «Não se pode
dizer que este h o m e m nobre possa ser recomendado pela sua beleza exte-
rior; os seus conhecidos de Paris resumem os seus traços eslavo-pomeranos
chamando-o "cara de fuinha"... A figura de Ruge na revolução alemã asseme-
Iha-se a certas ruas onde se pode 1er o seguinte aviso: "Pode-se urinar aqui."»
Longe de lhe tirar o vigor, estas ferozes tiradas renovavam-no. A raiva
vulcânica que jorrava sobre deviacionistas obscuros tinha a mesma paixão
que iluminava as suas denúncias do capitalismo e das suas contradições. Para
dar o seu melhor, Marx necessitava de se manter em estado de fúria eferves-
cente — para enfrentar as numerosas catástrofes domésticas, a sua péssima
saúde ou os idiotas que ousavam opor-se à sua sabedoria superior. A o escre-
ver O Capital, Marx jurou que os burgueses haveriam de ter bons motivos
para se lembrar dos furúnculos que lhe causavam dores e o mantinham de
mau humor. Os Vogt e os Kinkel serviam a mesma finalidade — não para
matar mosquitos a tiro de canhão mas para supurar os furúnculos no rabo.
As suas condições de vida talvez tivessem sido expressamente concebi-
daspara não o deixar ser feliz. A mobília e as instalações do seu apartamento
com duas divisões estavam partidas ou estragadas e tudo estava coberto por
uns centímetros de poeira. N o meio da sala da frente, a qual dava para a rua
Dean, havia uma grande mesa com u m oleado onde se encontravam os
manuscritos, livros e jornais de Marx bem como os brinquedos das crianças,
trapos e o cesto de costura da mulher, várias chávenas rachadas, facas, gar-
fos, lâmpadas, um tinteiro, cálices, cachimbos de cerâmica holandeses e uma
espessa camada de cinza de tabaco. Alguém que quisesse sentar-se corria
perigo. «Aqui está uma cadeira só com três pernas e as crianças têm estado
a brincar a cozinhar numa outra... Esta cadeira aqui tem por acaso quatro
pernas», contou um visitante. «É a que é oferecida às visitas, mas está suja dos
cozinhados das crianças; se uma pessoa se senta, arrisca um par de calças.»
U m dos raros espiões da polícia prussiana que entrou nesta gruta cheia
de fumo ficou chocado pelos hábitos desleixados de Marx:
o MEGALOSSAURO a ^ 151
começou uma das mais bem sucedidas simulações jamais organizadas para
o bem da causa comunista. Correram muitos boatos de que Marx era pai de
um filho uegítimo, mas a primeira referência pública à verdadeira paternidade
de Freddy só surgiu em 1962, quando o historiador alemão, Werner Blumen-
berg publicou um documento encontrado nos vastos arquivos marxistas
no Instituto Internacional de História Social, em Amesterdão. Trata-se de
uma carta escrita a 2 de Setembro de 1898 por Louise Freyberger, amiga de
Helene D e m u t h e governanta de Engels, a descrever a confissão do patrão
no seu leito de morte:
que o Freddy é irmão da Tussy, todos nós o sabemos, mas nunca soube-
mos onde é que ele foi criado.
Freddy parece-se cómicamente com Marx e, com aquela cara judia e
espessa cabeleira preta, e só por cegueira preconceituosas é que se p o -
dia ver nele qualquer semelhança com o General. Vi a carta que Marx
enviou para Manchester ao General naquela altura (o General, então,
ainda não vivia em Londres), mas acho que o General a destruiu, c o m o
tantas outras que eles trocaram.
É tudo o que eu sei sobre o assunto. Freddy nunca soube quem era
o seu pai verdadeiro, pois nem a mãe nem o General lhe contaram...
E s t o u a 1er outra vez o que me escreveste sobre a questão. Marx
sempre esteve consciente da possibilidade de um divórcio, pois a mulher
era muito ciumenta. N ã o gostava da criança e, se ousasse fazer qualquer
coisa por ela, o escândalo seria enorme.»^^
Desde que este documento foi tornado público em 1962 que a maior
parte dos historiadores marxistas o aceitam como prova conclusiva da infi-
delidade de Marx. Mas há uma ou outra pessoa céptica. A biógrafa de
Eleanor Marx, Yvonne Kapp, descreveu a carta de Freyberger como sendo
«uma fantasia» que «em muitos pontos não é críveb>; n o entanto, concede,
«não pode haver nenhuma dúvida aceitável de que ele (Freddy) era filho de
Marx»^^. O professor Terrell Carver, autor de uma biografia de Engels, vai
muito mais longe. Recusa acreditar que Marx ou Engels pudessem ser pais
de Freddy e descarta a carta como sendo falsa — «uma falsificação maqui-
nada, possivelmente por agentes nazis, para desacreditar o socialismo»^'.
Assinala que a versão dos arquivos de Amesterdão é uma cópia escrita à
máquina, cuja proveniência é desconhecida e que o original (se jamais exis-
tiu) nunca foi encontrado.
É certo que algumas das alegações feitas no documento desafiam toda a
lógica ou senso comum. Tome-se a «carta» que Marx é suposto ter enviado a
Engels na altura do nascimento e que Louise Freyberger diz ter visto. Como
ela nasceu em 1860 e só foi trabalhar para Engels em 1890, isso significa que
ele deve tê-la guardado entre os seus papéis durante muitas décadas. Porquê,
então, tendo-se dado ao trabalho de a guardar durante tanto tempo, destruiu
ele a única prova que «desmentiria os mexericos que ele repudiara o filho?»
Há também uma óbvia implausibilidade psicológica. Quando Jenny Marx
descobriu que a criada e o marido andavam a fazer mimos u m ao outro por
154 - - « KARLMARX
detrás das suas costas — enquanto ela própria estava grávida — devia ter
imediatamente posto a traiçoeira Lenchen fora de casa ou, pelo menos, olhá-
-la com desconfiança. N o entanto, as duas mulheres permaneceram amigas
o resto da vida. «No que respeita à identidade do pai, investigações feitas
sobre a vida de Frederick Demuth não deram qualquer resultado, e também
não existem dados que confirmem a alegada declaração de Engels que ele
tinha aceite a paternidade», conclui o professor Carver. «A correspondên-
cia e memórias que restam não fornecem quaisquer elementos positivos
quanto à história contada por Louise Freyberger.»-^"
Isso não é bem verdade. Embora os papéis de Marx e Engels tenham sido
cuidadosamente esquadrinhados pelos seus executores que não desejavam
embaraçar, ou injuriar, estas duas grandes figuras do comunismo, alguns
fragmentos reveladores sobreviveram. O primeiro é uma carta de Eleanor
Marx à irmã Laura, datada de 17 de Maio de 1882, a qual prova que as filhas
de Marx tinham aceite a história da paternidade de Engels: «Freddy portou-
-se admiravelmente em todos os aspectos e a irritação de Engels contra ele
é tão injusta como compreensível. Penso que nenhum de nós gosta de en-
frentar os nossos erros passados em carne e osso. Sou tomada por um sen-
timento de culpa sempre que vejo Freddy. A vida desse homem! Ouvi-lo
contá-la entristece-me e envergonha-me.» Dez anos mais tarde, a 26 de Julho
de 1892, Eleanor voltou ao mesmo assunto: «Talvez eu seja muito "sentimen-
tal".. . mas não posso deixar de sentir que Freddy sofreu muitas injustiças
durante toda a sua vida. N ã o é maravilhoso quando se pode olhar as coisas
de frente! Como é raro praticar todas as boas coisas que pregamos — aos
outros.» A luz da carta anterior, a zombaria é dirigida a Engels.
Tanto Karl Marx como a mulher deixaram pequenas, mas reveladoras
indicações quanto à verdade. O ensaio autobiográfico de Jenny, Breve Esbo-
ço de Uma Vida Plena, escrito em 1865, inclui uma curiosa revelação entre
parênteses: «No começo do Verão de 1851, aconteceu uma coisa que, em-
bora tenha contribuído para aumentar as nossas preocupações, pessoais e
outras, não desejo relatar aqui em pormenor.» O evento em questão só pode
ter sido o nascimento de Freddy. Se Helene Demuth tivesse sido engravidada
por outro amante, por que é que isso teria causado um pesar tão pessoal e
durável a Jenny?
Mais estranho é uma carta enviada por Marx a Engels, a 31 de Março de
1851, quando Helene estava grávida de seis meses. Depois de muitas épicas
resmungadelas quanto às suas dívidas, credores e a mãe avarenta, Marx
o MEGALOSSAURO ^Çj 155
acrescenta: «Tens de admitir que isto é o raio de uma alhada e que estou
enfiado até ao pescoço neste lodaçal pequeno-burguês... Mas, finalmente,
para dar à situação uma reviravolta tragicómica, há um mystère que te vou
contar en très peu de mots. Desculpa, mas acabei de ser interrompido e tenho
de ir tratar da minha mulher. O resto, em que tu também estás, seguirá na
próxima.» Mas, quando a carta seguinte chegou dois dias depois, ele já tinha
mudado de ideias. «Não te vou contar nada sobre o mystère porque, coûte que
coûte (custe o que custar), virei ver-te no fim de Abril. Tenho de fiagir daqui
por uma semana.»
Que outro mystère poderia ser senão a gravidez de Lenchen? O malicio-
so uso de eufemismos firanceses prova-o sem sombra de dúvidas, pois era
a sua linguagem habitual quando se sentia ginecológicamente embaraçado.
(Durante os vários períodos de gravidez de Jenny, dizia a Engels que ela es-
tava num «état trop intéressant>>. A sua relutância para dar mais pormenores por
escrito é sobejamente explicada mais tarde na mesma carta: «A minha mu-
lher deu à luz uma filha e não ViVa garçon. E, o que é pior, está em muito mau
estado.» Quem, ¥rau Marx ou a recém-nascida, Franziska? Provavelmente
ambas. Pelo Uvro de memórias de Jenny, sabemos que, no começo do Verão
de 1851, ela estava deprimida, e a carta de Marx de 31 de Março confirma
isso: <A- minha mulher adoeceu no dia 28. Embora o descanso lhe tenha feito
bem, está agora bastante doente, mais por razões domésticas do que físicas.»
E m princípios de Agosto, com duas mães a partilhar o apartamento
atulhado da rua Dean, os outros refugiados começaram a fazer mexericos
sobre o pai Marx. «As circunstâncias em que vivo são horrorosas», confes-
sou ao seu amigo Weydemeyer. «Se isto continua assim durante muito mais
tempo, a minha mulher acabará por sucumbir. As preocupações constantes
e a luta do dia a dia dão cabo dela. E, ainda por cima, há as infâmias dos meus
oponentes que, até agora, nunca tentaram atacar-me na minha essência, mas
que tentam vingar-se da sua impotência lançando suspeitas sobre a minha
reputação e espalhando as mais incríveis calúnias contra mim. Willich,
Schapper, Ruge e o resto da canalha democrática.»
Rudolf Schramm, irmão do duelista Conrad, andava a cochichar por en-
tre os amigos que «qualquer que seja o resultado da revolução, Marx est2iperdu.y>
«Eu cá, claro está, não m e ralo nada», escreveu Marx. «Nem por u m
instante deixo que isso interfira com o meu trabalho, mas, c o m o hás-de
compreender, a minha mulher, que está doente e é exposta às mais desagra-
dáveis dificuldades domésticas de manhã à noite, já não suporta respirar as
156 < ^ KARL MARX
unicamente de pão e batatas, mas duvido que hoje consigamos arranjar o que
quer que seja para comer... Como é que eu posso sair desta confusão infer-
nal?» (8 de Setembro de 1852). «Os nossos infortúnios atingiram o seu cH-
max» (21 Janeiro de 1853). «Há quase duas semanas que não temos um tostão
em casa» (8 de Outubro de 1853). «Só à loja de prego tenho agora de pagar
25 por cento (do dinheiro da casa) e, regra geral, nunca consigo recuperar
as coisas por causa cautelas atrasadas... A total falta de dinheiro é o mais
horrível — à parte o facto das necessidades familiares não cessarem nem um
instante — pois o Soho é um bairro infectado pela cólera e as pessoas es-
ticam o pernil a torto e a direito (uma média de três pessoas por casa na rua
Broad) e as "vitualhas" são a melhor defesa contra essa coisa monstruosa»
(13 de Setembro de 1854). «Enquanto estava no andar de cima a escrever a
minha última carta para ti, a minha mulher era atacada lá em baixo por lo-
bos famintos que, a pretexto dos "tempos difíceis", exigem que ela pague o
dinheiro que não tem» (8 de Dezembro de 1857). «Acabei de receber um ter-
ceiro efinal aviso do mesmo cobrador de impostos. Se não pagar até segunda-
-feira, chamam a polícia cá a casa. Por conseguinte, envia-me umas libras se
te for possível...» (18 de Dezembro de 1857).
Essas poucas libras somadas perfaziam uma boa maquia. E m 1852, um
dos mais miseráveis anos de Marx, ele recebeu um total de 150 libras de
Engels e outros apoiantes — o suficiente para uma família da classe média
viver com certo conforto. Nesse Outono, foi contratado para ser o corres-
pondente europeu do New York Daily Tribune, o joi^nal com maior tiragem do
mundo. Enviava regularmente dois artigos por semana a duas libra cada e,
embora os seus honorários baixassem ligeiramente depois de 1854, nessa
altura também recebia 50 libras ao ano pelas suas contribuições para o Neue
Olãer-Zeitung, em Breslau. E m resumo, a partir de 1852 tinha um rendimento
de, pelo menos, 200 libras e a renda anual do apartamento na rua Dean era
de apenas 22 libras. Porquê, então, andava sempre tão falido?
Se Marx fosse o despreocupado boémio descrito em tantos relatórios da
poKcia, talvez se desembaraçasse bastante bem. Mas a verdade é que perten-
cia à classe da gente bem-educada na penúria, desejosa de manter as aparên-
cias e recusando abdicar dos hábitos burgueses. Durante a maior parte da
década de 1850, mal se podia dar ao luxo de alimentar os próprios e, no
entanto, insistia em ter um secretário, o jovem filologista alemão, Wilhelm
Pieper, muito embora Jenny Marx lhe pedisse encarecidamente para ser ela
a exercer essas funções.
OS LOBOS FAMINTOS a<GJ 159
com ar de leitão meio esfomeado depois de ter passado duas semanas com
uma puta que ele diz ser um bijou. Gastou umas 20 libras e, agora, ambas as
bolsas estão igualmente vazias. Com este tempo é uma chatice ter o tipo a
andar por aqui de manhã à noite, pois perturba o meu trabalho.»^ Por causa
das condições no apartamento, Pieper tinha de partilhar uma cama como
Marx. E, ainda pior, Pieper insistia em tocar música de Wagner — «a músi-
ca do futuro» — , que Marx achava horrível.
E m 1857, Pieper anunciou que lhe tinham oferecido o cargo de profes-
sor numa escola particular em Bognor, esperando, aparentemente, que Marx
insistisse para que ele ficasse a troco de um melhor salário. Finalmente,
contudo, o truque foi descoberto e Jenny tomou o seu lugar. «Transpirou que
a sua "indisponibilidade" era apenas fruto da sua imaginação», escreveu
Marx, esquecendo-se de acrescentar que ele também tinha caído na esparrela.
«A minha mulher desempenha perfeitamente as funções de secretária sem
nenhum dos incómodos provocados pelo nobre jovem... N ã o preciso dele
para nada 6
Como Jenny já tinha demonstrado as suas capacidades em várias ocasiões,
quando Marx estava doente e Pieper andava à caça às putas, porque levou
Marx tanto tempo a dar-se conta disso? Há anos que Pieper o irritava, chegan-
do em privado a chamar-lhe palhaço com cabeça de sumaúma e asno pateta.
«A combinação de diletantismo e ar sentencioso, insipidez e pedantismo,
torna-o ainda mais difícil de aturar. E, como acontece muitas vezes com este
género de rapazes, por debaixo de um temperamento aparentemente radioso
esconde-se muita irritabilidade,mudanças bruscas de humor e má-fé.»^
Desde o princípio que o emprego de Pieper constitma uma extravagân-
cia desnecessária, mas Marx não o tinha despedido porque achava inconce-
bível que u m h o m e m na sua posição não tivesse um secretário confidencial
— bem como férias à beira-mar, lições de piano para as crianças e todas as
outras dispendiosas marcas de respeitabilidade. Por mais que os seus bolsos
estivessem vazios, recusava-se a aceitar um modo de vida «subproletário»,
como dizia. Coisas que para outros refugiados pudessem ser consideradas
luxos, tornaram-se, para ele, «absolutas necessidades» enquanto exigências
mais imperativas, c o m o pagar a mercearia, eram tratadas c o m o extras
opcionais.
Estas prioridades invertidas são bastante evidentes numa suplicante carta
enviada a Engels em Junho de 1854, quando Jenny estava em convalescen-
ça e o Dr. Freund, o médico dela, exigia o pagamento dos seus honorários.
OS LOBOS FAMINTOS -^-'í^* 161
«Estou metido num lindo sarilho», escreveu Marx, explicando que estava
falido. «Tinha 12 libras para pagar as contas de casa, mas o que costumo
receber foi drasticamente reduzido por causa de uns artigos que acabei por
nãojsscrever. Só a factura da farmácia devorou grande parte do orçamento.»^
A compaixão motivada por este apelo é sabotada na frase seguinte em
que ele menciona que Jenny, os filhos e a governanta vão passar umas férias
de 15 dias numa vivenda em E d m o n t o n — depois das quais, «ela talvez se
sinta suficientemente restabelecida pelo ar do campo para fazer a viagem até
Trier». Se custava tanto a Marx pagar ao médico, deve ter pensado Engels,
como é que ele podia fazer a deslocação à Alemanha? A mesma pergunta
ocorreu certamente aos seus pacientes credores quando souberam que Jenny
tinha adquirido uma nova colecção de vestidos para a viagem. Marx fingiu
não compreender a indignação deles, e insistiu que a filha de u m barão ale-
mão «não podia muito naturalmente chegar a Trier em farrapos».
Era ridiculamente orgulhoso por se ter casado com uma mulher fina. Daí
os cartões-de-visita que tinha mandado imprimir para ela {«Madame ]ç.nPiY
Marx, née baronesa de Westphalen»), os quais às vezes exibia na esperança
de impressionar os comerciantes e os Tories. «O mar fez muito bem à minha
mulher», notou depois de Jenny ter gozado mais umas férias. «Conheceu, em
Ramsgate, umas requintadas e, horribile dictu (horrível de dizer) inteligentes
inglesas. Após anos passados em companhia de gente inferior, ou de nin-
guém, dar-se com pessoas da sua classe social parece fazer-lhe bem.»'^ Jenny
teve poucas oportunidades destas e Marx sentia-se culpado pelo esquálido
destino que tinha infligido à antiga princesa da alta sociedade de Trier. A
humilhação que sofrera ao ser apanhado a tentar vender a prata da família
de Jenny lembrava-lhe até que ponto tinham descido. A polícia tinha suspei-
tado, com certa razão, que um desgrenhado refugiado alemão não podia ter
adquirido legitimamente aquela herança ducal, e Marx foi preso até Jenny
convencer as autoridades da sua genuína aristocracia.
Incapaz de manter a mulher ao nível da «gente da classe dela», ele devia,
pelo menos, esforçar-se pelos filhos. As meninas tinham evidentemente de
fazer bons casamentos e, para atrair bons partidos, necessitavam de vestidos
de baile, aulas de dança e todas as outras vantagens sociais que o dinheiro
podia comprar — mesmo que, para isso, tivesse de pedir dinheiro empres-
tado a alguém. Engels, há muito habituado a ser esse alguém, nunca pôs em
causa a convicção do amigo de que valia a pena uma pessoa viver acima dos
seus meios para não perder o prestígio da casta e que, a longo termo, fazer
162 4 ^ KARL MARX ^
tarde, quando as suas dívidas eram ainda maiores do que de costume, Marx,
desesperado, candidatou-se ao cargo de funcionário dos caminhos-de-ferro,
mas foi rejeitado por causa da sua letra ininteligível.
Sem o seu benfeitor, escreveu Marx, «há muito que teria sido obrigado
a começar uma "profissão'V"*. A repugnância representada por essas aspas
é quase audível. Assim sendo e graças à generosidade de Engels, podia pas-
sar a maior parte dos dias na sala de leitura do Museu Britânico a trabalhar
no seu há muito negligenciado estudo sobre economia. Após a dissolução
da Liga Comunista, em 1852, não tinha mais afazeres políticos para o dis-
trair e lidava com as suas obrigações para com o Tribune, de Nova Iorque, pas-
sando grande parte do trabalho a Engels. «Como ando muito ocupado com
a economia política, tens de me ajuda0>, pediu-lhe a 14 de Agosto de 1851.
«Escreve uma série de artigos sobre a situação na Alemanha a partir de 1848.
E m estilo descontraído e espirituoso.» Assim, a primeira série importante de
artigos assinada por Marx no Tribune — «Revolução e contra-revolução na
Alemanha», publicada em 19 episódios, entre Outubro de 1851 e Outubro de
1852 — foi, na realidade, totalmente escrita por Engels. U m artigo sobre a
guerra russo-turca, publicado sob a forma de um editorial anónimo em D e -
zembro de 1853, revelava tais conhecimentos de estratégica militar que foi
atribmdo, em Nova Iorque, a um conhecido soldado americano da época, o
general Winfield Scott. O director do jornal. Charles Dana, citou esses boa-
tos numa carta a Jenny Marx como prova do brilhantismo do marido — sem
lhe passar pela cabeça que o autor era, mais loma vez, o «General» Engels, antigo
soldado de infantaria na campanha do Paktínado.
«O Engels tem realmente muito que fazeD>, admitiu Marx, «mas como é
uma autêntica enciclopédia ambulante, é capaz, esteja bêbedo ou sóbrio, de
trabalhar a qualquer hora do dia ou da noite. Escreve depressa e tem u m
espírito diabólicamente vivo.»^^- Apesar de satisfeito por acarretar com este
fardo suplementar, Engels estava tão exausto pelas longas horas passadas na
fábrica de algodão que não se podia esperar que escrevesse tudo. N e m Marx
o queria: os numerosos e influentes leitores do Tribune— só a edição semanal
vendia mais de 200 000 exemplares — eram uma atracção irresistível para
um h o m e m acostumado a dirigir-se a audiências de uma dúzia de pessoas
numa sala do andar de cima de uma taberna londrina. Por vezes, enviava para
Manchester um esboço que, a seguir, Engels desenvolvia; outras vezes —
quando, por exemplo, o jornal queria algo sobre guerra ou a «questão orien-
164^0 KARI.MARX
«Se acha que pode... fornecer provas que eu, mentindo, disse ou pu-
bliquei algo prejudicial para a sua honra ou a do Sr. Engels, devo indicar-
-Ihe, como faria com quem não tenho contactos pessoais nem políticos,
que os trâmites legais estão abertos a todos que se sintam difamados ou
insultados. Excepto assim, não desejo ter mais nada a ver consigo.»^''
Marx ficou irritado por o seu desafio não ser aceite. («Como tudo que
possa cheirar a duelo ou coisa parecida é rejeitado calmamente. Nem pen-
sar instaurar um processo por difamação, pois um tribunal britânico não
poderia julgar um caso de insultos feitos em Cincinnati. Assumindo que
Kinkel ignoraria qualquer correspondência futura com o carimbo dos cor-
reios de Soho, Marx planeou um elaborado ardil. Convenceu o líder cartista,
Ernest Jones, para endereçar um envelope a Kinkel (pois os seus gatafunhos
seriam imediatamente reconhecidos) e, depois, pediu a Wilhelm Wolff para
o enviar por correio em Wifidsor. O bühete em papel colorido enfeitado com
um ramo de malmequeres e rosas estava cheio das previsíveis insignificân-
cias que ele costumava lançar aos seus inimigos. Marx garantia ainda ter em
seu poder declarações de testemunhas feitas sob juramento e vociferava:
«a sua carta prova mais uma vez que a baixeza do dito Kinkel é apenas igua-
lada pela sua covardia».^''
Marx orgulhava-se das suas partidas à miúdo de escola. «O melhor»,
deleitou-se, «é que ele só se dará conta da piada quando o primeiro episó-
dio dos Grandes Homens do Exílio aparecer. Pouco antes do ataque a Gottfried,
vou divertir-me insultando-o directa e pessoalmente enquanto, ao mesmo
tempo, me justificarei aos olhos dos lorpas dos emigrados. Para isso, preci-
sava de algo a "branco e preto" de Johann etc. Falemos, agora, de assuntos
mais importantes.. .»^*
Esses «assuntos mais importantes» eram ainda mais querelas provocadas
.pelo começo, em Outubro de 1852, do há muito adiado julgamento dos co-
munistas de Colónia. Como as provas mais incriminadoras eram livros e re-
latórios que pregavam a insurreição armada, supostamente furtados da Liga
Comunista em Londres, Marx passou o Verão e o Outono juntando depoi-
mentos para provar que os documentos eram falsos. Quando julgamento
terminou, ele sentiu-se obrigado a escrever um artigo para repudiar as calúnias
contra o «grupo de Marx» que tinham sido proferidas no tribunal de Colónia
— e aproveitar a oportunidade para desferir um golpe mortal na facção da
Liga Comunista favorável a Willich-Schapper. O artigo adquiriu inevitável-
168%^ ia.RLMARX
«Sabe onde vivo e pode ter a certeza de que estarei sempre preparado para
lhe dar as satisfações necessárias.»
As únicas pessoas a tirar satisfação deste canibalismo comunista foram
provavelmente as autoridades prussianas: As vendetas de Marx contra homens
como Willich eram muito mais eficazes do que as fracassadas armadilhas e
sabotagens dos seus Keystone Cops. Embora consciente de que estava a aju-
dar o inimigo, Marx argumentava que o verdadeiro perigo eram os conspi-
radores que atacava, pois o seu canto de sereia quanto à revolução imediata
poderia seduzir os socialistas a levá-la a cabo de forma prematura e desas-
trosa. Os falsos messias, se não fossem denunciados, atraíam mais o povo
do que os monarcas autênticos. Os panfletos adhominem e a ameaça de duelos
ao nascer do dia eram, por conseguinte, intervenções políticas essenciais e
não meras manifestações de despeito e orgulho ferido — ou, pelo menos,
foi disso que ele se convenceu. «Estou empenhado num combate mortal
contra os liberais impostores», dizia^^.
A arma mais letal contra esses poltrões seria a sua magnum opus que de-
monstraria de uma vez por todas porquê os revolucionários nunca seriam
bem sucedidos sem estudar primeiro economia. «Os néscios democratas a
quem a inspiração vem "dos céus", não precisam evidentemente de se fati-
gar», resmungava. «Porque é que havia essa gente, nascida sob uma boa es-
trela, importunar a cabeça com estudos de economia e história? É tudo real-
mente tão simples, costumava dizer-me o bravo Willich. Para esse burros, é
tudo muito simples^ 33
Os inimigos de Marx, nessa altura e desde aí, atribuíram aos ciúmes a sua
antipatia por Willich e outros «grandes homens do exílio». Depois do ma-
logro das revoluções de 1848, muitos dos heróis dessa gloriosa derrocada
chegaram a Londres cobertos de medalhas e glamor romântico — como
Mazzini, de Itália; Louis Blanc, de França; Kossuth, da Hungria; Kinkel, da
Alemanha. As senhoras da alta sociedade suspiraram pela sua atenção, co-
piosos banquetes foram dados em sua honra, retratos e n c o m e n d a d o s . . .
Gottfried Kinkel, que se refugiara em Londres após a sua ousada fuga da
prisão de Spandau, foi elogiado por Dickens em Household Wors e, mais tar-
de, fez uma série de palestras sobre teatro e literatura ao espantoso preço de
um guinéu por pessoa. Conforme Marx comentou, «nenhuma pedinchice,
nenhuma publicidade, nenhum charlatanismo, nenhum oportunismo era in-
digno dele; em compensação, contudo, não passava despercebido. Gottfried
mirava-se complacentemente no espelho da sua própria fama e no gigantesco
170^» KARL MARX •-''••
a sociedade mais moderna e rica do mundo — era também a que estava mais
perto da destruição. «A liistória é o juiz — e o seu carrasco, o proletariado.»
Até mesmo jacobinos ingleses sentados à mesa depois de u m lauto jan-
tar, fortificados com «as iguarias e condimentos mais requintados», devem
ter franzido u m sobrolho interrogador perante esta retórica apocalíptica.
Podia a Inglaterra — o centro financeiro e industrial do mundo e do maior
império jamais visto, o coração palpitante do capitalismo — ser realmente
assim tão fi-ágil? Para Marx, o paradoxo era mais aparente do que real. Uma
«máxima antiga historicamente estabelecida» era que as forças sociais obso-
letas faziam apelo a todas as suas forças antes da agonia final e, por conse-
guinte, embora parecessem intimidadoras, encontravam-se no ponto mais
fraco. «Tal é a situação actual da oligarquia inglesa.»
Perguntamo-nos se algum dos seus ouvintes se lembrou do t o m mais
cauteloso que ele tinha usado no ensaio sobre a guerra civil em França que
publicara no Neue Kheinische Zeitung, em 1850. «O processo original ocorre
sempre na Inglaterra: ela é o demiurgo do cosmo burguês», tinha escrito
então. Mas, enquanto a Inglaterra se abandonar à prosperidade burguesa,
«não se poderá falar de uma revolução a sério... Uma nova revolução só é
possível em consequência de uma nova crise».
Há tempos que aguardava com impaciência a chegada da crise — inter-
pretando inscrições mágicas, procurando presságios. «Desde que nenhuma
fatalidade aconteça nas próximas seis semanas, a produção de algodão des-
te ano será de três milhões de fardos», informou-o Engels em Julho de 1851.
«Se a queda do mercado coincidir com esta gigantesca safra é que vão ser elas.
Só de pensar nisso o Peter E r m e n já se está a borrar nas calças.»'^'* Tais per-
das na indústria têxtil também poriam termo aos subsídios regulares que
Marx recebia de E r m e n & Engels, mas isso, aparentemente, era um preço
que vaUa a pena pagar para a ruína geral. «À agradável perspectiva de uma
crise comerciab/^ ele até lambia os beiços. E m Setembro, contudo, nada
aconteceu. E m vez disso, a descoberta de ouro em Victoria, no Sul da Aus-
trália, talvez abrisse novos mercados e, a exemplo da corrida ao ouro na
Califórnia em 1848, precipitasse a expansão do comércio mundial e de cré-
ditos. «Esperemos que o ouro australiano não interfira com a crise comer-
cial», atormentava-se Engels. Consolava-se com a ideia de que, mesmo no
caso do capitalismo ser salvo pelo sucesso nos antípodes, teriam pelo menos
o direito a qualquer coisa: «Em seis meses, a circum-navegação do mundo
OS LOBOS FAMINTOS «^177
burgueses britânicos que gemem à medida que vão aceitando cada vez mais
"responsabilidades" ao serviço da sua missão histórica, enquanto protestam em
vão contra ela», conclui com um grito exasperado: «Ao diabo os Britânicos!»^**
rior, após terem sido derrotados pelos franceses na batalha de Chernaya. «Fui
forçado ^otforce supérieure a evacuar a frente sul sem, contudo, destruir tudo
atrás de mim», informou Engels num despacho de guerra proveniente de
Camberwell. «Mas, na verdade, as minhas tropas permanecerão aqui enquan-
to eu estiver ausente durante uma ou duas semanas. E m outras palavras, sou
obrigado a retirar para Manchester onde espero chegar amanhã à noite. Terei
de passar incógnito e, por isso, não fales a ninguém da minha presença.»^
Dois dias depois de 1er esta carta, Engels enviou um longo artigo, «Pers-
pectivas da Crimeia», ao New York Daily Tribune — sob o nome de Marx —
no qual justificava a luta aparentemente desnecessária dos russos a sul de
Sebastopol. «A resistência numa cidade sitiada é, a longo termo, desmora-
lizadora», argumentou. «Implica privações, fadiga, doenças e a presença, não
do perigo crítico que dá forças mas de u m perigo crónico que acaba por
cansar o espírito... N ã o é de admirar que a desmoralização se apodere das
tropas; o que admira é que isso ainda não tenha sucedido há mais tempo.»
É difícil de acreditar que Engels tenha escrito esta avaliação táctica sem ter
em mente a situação precária do seu amigo.
A 7 de Julho, deu à luz uma criança morta, mas mal teve forças para a
chorar. «Todos os dias me pareciam iguais.» Para além de Grafton Terrace,
o seu único contacto com o mundo era copiar os artigos que Marx escrevia
duas vezes por semana para o Dailj Tribune. Mas, depois, até mesmo isso
acabou. A o notar que o jornal publicava cada vez menos as suas contribui-
ções — e, claro está, ele era pago pelo que era impresso — , Marx entrou em
greve. «É realmente revoltante que uma pessoa seja condenada a conside-
rar uma bênção o facto de ser publicado num jornaleco como este», comen-
tava, enraivecido. Via-se como um mendigo num hospício a ter de esmiga-
lhar ossos para fazer uma sopa.
A sua ameaça de ir trabalhar para outro jornal deu resultado — mas,
apenas, em parte. O director do Tribune, Charles Dana, propôs pagar-lhe uma
coluna por semana quer esta fosse publicado, ou não. «Estão efectivamente
a reduzir a minha colaboração para metade»^*, queixou-se Marx. Como con-
cessão, Dana convidou-o então a escrever dois artigos para uma antologia
que iria editar, a New American Cyclopaedia — u m sobre grandes generais e
outro sobre a história da guerra. Embora se tratasse de uma tarefa entediante
e mercenária, Marx não se encontrava em posição para recusar os honorá-
rios de dois dólares por página.
O pretenso general Engels encarregou-se com prazer da maior parte do
trabalho — dar-lhe-ia uma coisa para fazer à noite, disse — e meteu imedia-
tamente mãos à obra: Abensberg, Ajudante, Actium, Alma, Armada, Arti-
o HEROl A CAVALO 195
Iharia... Mas uma crise de febre glandular pô-lo efectivamente fora de com-
bate e teve de passar o resto do Verão numas termas de Lancashire apropria-
damente chamadas Waterloo. Isto deixou a Marx o espinhoso problema de
ter de explicar a Dana o súbito corte de mantimentos. «O que é que eu vou
dizer-lhe?», gemeu. «Na medida em que continuo a enviar artigos para o
Tribune, não me posso desculpar que estou doente. É uma situação levada da
breca.»" Tentou ganhar tempo fingindo que a remessa se perdera nos cor-
reios.
A revolta dos cipaios contra o domínio britânico na índia veio aumen-
tar ainda mais os seus problemas, pois o jornal esperava, muito naturalmente,
que o seu perito em assuntos políticos lhes enviasse uma minuciosa análise
da situação. Felizmente, Marx tinha aprendido suficientes manhas com o
falecido Musch para resolver a questão. «Quanto ao caso de DeU», confessou
confidencialmente a Engels, «parece-me que os ingleses terão de retirar logo
que as monções começarem. Sendo obrigado, nas presentes circunstâncias,
a substituir-te como correspondente militar do Tribune, decidi adiantar essa
teoria... É muito possível que seja uma burrice e, assim, formulei a ideia de
modo a poder safar-me com um pouco de dialéctica.»^'' E m Setembro, Engels
sentiu-se suficientemente bem para poder continuar com a enciclopédia e
enviou uma torrente de artigos da ilha de Wight onde estava em convales-
cença — sobre Batalhas, Baterias, Blücher e muito mais. A o visitar Jérsia em
Outubro, passou para a letra seguinte do alfabeto, começando com Canhões.
Podiam Campanha e Cavalaria seguir em breve?
Tal produtividade foi, contudo, interrompida pela mais gloriosa notícia
imaginável: o cataclismo internacional financeiro tinha, finalmente, começa-
do. A falência de um banco em Nova Iorque tinha espalhado a crise através
da Austria, Alemanha, França e Inglaterra como uma apocalipse galopante.
Engels voltou apressadamente a Manchester em meados de Novembro para
assistir ao espectáculo —• preços em queda livre, falências e pânico. «O as-
pecto geral da Bolsa (de algodão) aqui foi deliciosa», disse a Marx. «Os meus
colegas estão furiosos pela minha súbita e inexplicável boa disposição.»"
O d o n o de uma fábrica já tinha vendido todos os cavalos e galgos, despe-
dido a criadagem e posto a sua mansão para alugar. «Mais duas semanas e
a crise atingirá o seu apogeu.»'**
Seguir-se-ia imediatamente a revolução? Engels duvidava: após um lon-
go período de prosperidade, os trabalhadores mostravam-se bastante letárgi-
cos. Mas tanto melhor, pois os futuros líderes das massas deviam, primeiro.
196«^ KARL MARX J
preparar-se para o combate. Segundo a visão de Engels, seria ele mesmo quem
comandaria o exército insurrecto para esmagar toda a resistência burguesa
— com cargas de cavalaria através das ruas de Manchester e Berlim —
enquanto Marx dirigiria a facção civil da campanha, elucidando o proleta-
riado quanto aos mistérios da economia política. «É um caso de fazer ou
morrer», anunciou Engels, afivelando as esporas. «Isto vai servir para pôr em
prática os meus estudos militares. Vou apresentar sem demora a minha
candidatura às escolas de táctica elementar dos exércitos austríacos, bávaros,
franceses e prussianos e, à parte isso, dedicar-me exclusivamente a montar
a cavalo e à caça à raposa, a melhor de todas as escolas.»^'
E n q u a n t o bebericavam os seus cocktails, os m e m b r o s d o clube de
Cheshire Hunt estavam longe de imaginar que o encantador Sr. Engels es-
tava secretamente a preparar-se para vir a ser o Napoleão do Noroeste da In-
glaterra. Mas Engels estava a falar muito a sério: «Afinal de contas, queremos
ensinar umas coisas à cavalaria prussiana quando voltarmos à Alemanha. Vai
ser difícil a esses cavalheiros competir comigo, porque já tenho muita prá-
tica e faço progressos todos os dias... A n d o agora a preparar-me para
montar em terreno acidentado; é bastante difícil.»^*' A equitação, julgava ele,
era a «base material» do sucesso militar. Por que é que o malvado Luís Bona-
parte era considerado um herói pela pequena burguesia francesa? «Porque
monta com muita elegância.» Estes comentários deviam irritar imenso Marx,
cuja falta de jeito para montar — demonstrada nos passeios domingueiros
de burro em Hampstead Heath — era uma piada de família.
N o fim de Dezembro, os constantes treinos de Engels tinham transforma-
do o comerciante de algodão num impetuoso cavaleiro. «Fui a uma caçada à
raposa no sábado — sete horas na sela», escreveu, ofegante, na véspera do
Ano Novo. «Este tipo de exercícios deixa-me num estado de diabólica ex-
citação durante dias; é o maior prazer físico que conheço. Apenas duas outras
pessoas, mais bem montadas, eram melhores cavaleiros do que eu. Pelo
menos 20 tipos caíram, dois cavalos rebentaram e matámos uma raposa
(numa acção em que eu estive presente)... E, agora. Feliz Ano N o v o para
toda a tua família e um Bom Ano de combate em 1858.»
Marx, sem estar lá muito convencido de que tudo isto servia para gran-
de coisa, perguntava-se como é que iria ganhar mais dólares com a Ciclopae-
dia, enquanto o seu co-autor andava a saltar fossas e sebes. Elstava cheio de
dívidas e os credores andavam novamente a ameaçá-lo. «Não mencionei an-
tes o assunto porque a última coisa que desejo é prejudicar a tua saúde».
o HERÓI A CAVALO « * ^ 197
Pelos vistos, não: Marx escrevia apenas uns anos antes de Alfred Ten-
nyson ser laureado como poeta e de o seu Ulisses se tornar num dos poemas
mais populares da nossa época. Porquê, então, a estética da Grécia antiga
continua a ser não apenas uma fonte de prazer, mas também o padrão, ou
modelo, aspirado por tantos artistas e escritores vitorianos?
Excelente pergunta — mas a breve resposta de Marx mal lhe fez justiça.
Embora nenhum homem possa tornar-se uma criança, escreveu, «não apre-
cia ele as maneiras naturais das crianças e não tem ele de se esforçar para
reproduzir a verdade num plano mais elevado?» Similarmente, «porque não
deveria exercer encanto a infância da sociedade humana, quando os mais
belos feitos foram alcançados, como a época que nunca mais há-de voltar?»
o HERÓI A CAVALO < * ^ 199
Talvez Marx estivesse a pensar nos seus jogos com as meninas em Hamps-
tead Heath: no interior daquele corpo de 39 anos, prematuramente envelhe-
cido, havia um adolescente a esbracejar e a pedir para sair. Por vezes, quan-
do observava as crianças a brincar, ansiava juntar-se a elas para clarear o
espírito de todas as misérias acumuladas.
A maior dor de cabeça de todas era a que ele denominava «a merda eco-
nómica». Já em 1845, tinha declarado que o seu tratado sobre economia
política estava quase terminado, e no decorrer dos 13 anos seguintes embele-
zou e repetiu tantas vezes a mentira que as expectativas dos amigos atingi-
ram um clímax impossível. A avaliar pelo tempo que demorou, raciocinaram
eles, deve tratar-se realmente de um magnum opus explosivo que iria fazer
desabar os edifícios, sem alicerces, do capitalismo — as torres que chegavam
às nuvens, os magníficos palácios, os templos solenes, o próprio globo
imenso — sem nada deixar de pé. Tal pretensão foi mantida através de
boletins enviados regularmente de Londres a Manchester a confirmar os seu
progressos na redacção da obra. «Demoli completamente a teoria do lucro
como até agora tem sido formulada», informou triunfalmente a Engels, em
Janeiro de 1858. Mas tudo o que ele tinha para mostrar depois de todos
aqueles longos dia no Museu Britânico e noites ainda mais longas à secre-
tária era uma pilha de livros de apontamentos por publicar cheios de gara-
tujas redigidas ao acaso.
A publicação no final daquele mês do novo livro de Ferdinand Lassalle
sobre a filosofia de Heraclito — um calhamaço de dois volumes — fê-lo mais
consciente da sua incapacidade em concluir o seu trabalho. C o m o tinha
Lassalle, que se dizia Hder do socialismo alemão, arranjado tempo para ter-
minar uma obra filosófica tão volumosa? Marx lidou com a sua consciência
culpada depreciando o feito de Lassalle e assegurando a Engels que o livro
sobre Heraclito era «uma confecção muito imbecü». É verdade que demons-
trava grande erudição — mas «desde que uma pessoa tenha tempo e dinhei-
ro, e, como n o caso do Sr. Lassalle, a possibilidade de lhe levarem a biblio-
teca da universidade de Bona a casa, é bastante fácu reunir uma tal quantidade
de citações. Nota-se que ele se julga muito importante... Uma palavra em
duas é uma asneira e extremamente pretensiosa».^'^
Lassalle era sete anos mais novo que Marx e embora tivessem muita coisa
em c o m u m — eram ambos burgueses judeus alemães, desmamados de
Heine e Hegel, com um fraco por mulheres aristocratas — , o contraste em
termos de sorte era dolorosamente nítido. Quando ainda era estudante de
200'^^ KARL MARX
respeita o conteúdo como o estüo. Escusado será dizer que um escritor que
trabalha constantemente não pode publicar, palavra por palavra, o que escre-
veu há seis meses.»^^ Muitos autores conhecem este síndrome — o temor de
deixar finalmente um navio ser lançado à água sem lhe passar outra camada
de tinta ou apertar mais uns parafiasos. No Verão de 1846, pensava que leva-
ria cerca de seis meses para dar os retoquesfinais.«A versão revista do primeiro
volume estará pronta para publicação no fim do mês de Novembro. O segundo
volume, de natureza mais histórica, será entregue pouco tempo depois.»
Uma década mais tarde, a arca de Marx ainda se encontra na doca seca.
«Há já alguns meses que trabalho na fase final da minha economia poKtica»,
escreveu a Lassalle em fins de Fevereiro. «Mas avanço muito lentamente
porque assim que me debruço sobre temas a que dediquei anos de estudo,
novos aspectos que exigem uma maior reflexão começam a surgir.»^^ En-
quanto faltasse uma fonte a consultar, ou um tratado a ser lido — o que
estava sempre a acontecer —, não permitia que o manuscrito fosse entre-
gue ao editor.
E, claro está, tinha de debater-se contra os outros inimigos de promessas
— a doença, a pobreza e os deveres domésticos. Eleanor adoeceu com tosse
convulsa; Jenny estava «uma puha de nervos»; o talho, a casa de prego e demais
credores exigiam pagamento. Como Marx brincava lugubremente, «não creio
que ninguém tão teso tenha alguma vez escrito sobre dinheiro»^'^. A patinhar
num charco de vexames, quase nada escreveu ao longo desse Verão; no final
de Setembro, clamou que o manuscrito estaria pronto «em duas semanas,
mas, um mês mais tarde», admitiu que «só daqui a várias semanas poderei
mandá-lo»^^. Tudo parecia conspirar contra ele: a crise económica mundial,
tão alegremente esperada, tinha-se desvanecido demasiado depressa e Marx,
de «muito mau humor» por causa disso, sofria as consequências físicas pre-
visíveis — «uma dor de dentes horrível e aftas em toda a boca».^^'
Em meados de Novembro, seis meses depois do prazo previsto, o edi-
tor de Berlim começou a perguntar-se se o Hvro não seria uma quimera. Com
enorme lata, Marx explicou a Lassalle que aquela delonga «devia-se simples-
mente ao esforço para lhe entregar (a Duncker) um manuscrito de valor
superior à soma que ele pagara». Como assim?
e o seu lugar era mais num jardim zoológico do que no seio da raça cau-
casiana. Entretanto, o marido, ansioso e exausto, padecia mais uma vez
do fígado; e, depois, havia o problema de como pagar as exorbitantes
consultas médicas, pois há mais de um mês que não arranjava emprego.
A única coisa agradável que nos aconteceu naquele triste Natal foi a
prenda do Engels de umas garrafas de vinho do Porto que a Jenny achou
ser um remédio muito eficaz. Mas até mesmo isto foi negado ao Karl,
cujo médico lhe tinha imposto uma rigorosa dieta de limonada e óleo de
fígado de bacalhau.'"' «Estou a ser tão atormentado como Job», gemeu
ele. «Apesar de não ser tão temente a Deus.>/^
tir a um hallet («mortalmente chato») durante três horas num camarote a pou-
cos metros do rei Guilherme em pessoa. N o decorrer de um jantar em sua
honra, a que um enxame de celebridades foi convidado, Marx ficou senta-
do ao lado da editora literária Ludmilla As sing («a criatura mais feia que ja-
mais vi na vida»), que passou a noite a namoriscar com ele — «eternamente
a sorrir e a fazer esgares, sempre a falar em prosa poética, tentando constan-
temente dizer qualquer coisa de extraordinário, fingindo-se entusiasmada e,
no transe dos seus êxtases, lançando perdigotos para cima do seu ouvinte».'*^
Após ter sido sujeito à intolerável hospitalidade de Lassalle durante um
mês, Marx uivava de tédio. «Sou tratado como uma espécie de leão e força-
do a conhecer uma data de "inteligências" profissionais, tanto homens como
mulheres», escreveu ao poeta alemão Cari Siebel, amigo de Engels. «É hor-
rível.» O único motivo para prolongar aquela estopada era que tinha de
aguardar uma decisão quanto ao seu pedido de cidadania, o qual Lassalle
tinha entregue em pessoa ao chefe da poKcia prussiana. A resposta chegou
a 10 de Abril. Como Marx tinha voluntariamente rejeitado os seus direitos
de cidadão prussiano em 1845, «era considerado estrangeiro», não poden-
do, por conseguinte, usufruir da amnistia real.
A condessa supHcou-lhe que ficasse para mais jantares e divertissements. «É
então assim que nos agradece a amizade que lhe temos demonstrado», ra-
Ihou-lhe. «Agora que tratou dos seus assuntos, vai já partir de BerHm.» Mas
não suportava mais aquele lugar: a presença de homens fardados e mulhe-
res literatas faziam-no sentir-se extremamente inconfortável. Caso uma
pessoa não fosse obrigada a viver na Alemanha, decidiu, o país era muito
bonito. «Se fosse livre e se, além disso, não fosse importunado por uma coisa
chamada "consciência poiïtica", nunca trocaria a Inglaterra pela Alemanha,
sobretudo a Prússia, nem muito menos por Berlim.»'*'' Também Jenny se
opunha veementemente a mais mudanças. Enquanto Marx estava ausente,
ela confiou a Engels: «Sinto poucas saudades da pátria, dos «caros» alemães
tão dignos de confiança, essa mater dolorosa de poetas. Q u a n t o às minhas
filhas, só a ideia de abandonar o país do seu querido Shakespeare põem-nas
doentes; tornaram-se inglesas de gema e agarram-se ao solo da Inglaterra
como lapas.»^" E, além do mais, Jenny não desejava ver as filhas cair sob a
influência do estonteante «círculo de Hatzfeldt».
O próprio Marx gostava da condessa — «senhora distinta, nada literata,
com grande intelecto natural e muita vivacidade. Está profundamente inte-
ressada no movimento revolucionário e tem uma atitude aristocrática muito
214^^ KARL MARX
perguntou: «Acha que eu deva passar seis meses a estudar isto para criar nome
como egiptólogo?» Se Marx não estivesse tão furioso com «este oportunista
carregado com sacos de dinheiro», talvez achasse aquilo divertido.
«Desde a última vez que o vi, há um ano, que ele enlouqueceu», disse a
Engels. E, agora, não somente se julga o maior erudito, o pensador mais
profundo, o cientista mais brilhante e assim por diante, como também u m
D.Juan e um cardeal Richelieu revolucionário. Acrescente-se a isto o pairar
incessante em voz estridente, os gestos histriónicos e poucos estéticos, e o
tom dogmático!»^^ U m dia. Lassalle revelou o «profundo segredo» que os
libertadores italianos, Manzini e Garibaldi, a exemplo do Governo prussiano,
eram piões dirigidos pelas suas mãos. Incapazes de se conter, Karl e Jenny
começaram a arreliá-lo por causa daquelas fantasias napoleónicas e, então,
o Messias alemão perdeu a cabeça e desatou a gritar que Marx era demasiado
«abstracto» para perceber a realidade da política. Depois de LassaUe se ter
ido deitar, Marx desapareceu no seu gabinete para escrever outra carta a
Engels em que troçava das características «negroides» do seu convidado.
O relato de Jenny da invasão de LassaUe é menos rancoroso e mais bem
humorado:
«Ele era quase esmagado pelo peso da fama que adquirira como eru-
dito, pensador, poeta e político. A coroa de louros que lhe cingia a fron-
te oKmpica e a divina cabeleira ou antes, a sua carapinha de negro, ainda
estava fresca. Tinha acabado de sair vencedor da campanha na Itália —
um novo golpe poKtico estava a ser planeado por outros homens de acção
notáveis — e batalhas sangrentas destroçavam-lhe a alma. Ainda havia
campos da ciência a ser explorados! Os segredos da egiptologia aguarda-
vam-no: "Deveria eu causar o espanto do mundo como egiptólogo ou
demonstrar a minha versatilidade como homem de acção, poHtico ou mi-
litar?" Era um dilema esplêndido. Hesitava entre os pensamentos e senti-
mentos do coração e exprimia com frequência esse debate em tons realmente
estrondosos. Como transportado pelas asas do vento, caminhava pela
nossa casa gesticulando e perorando em voz tão alta e estridente que os vi-
zinhos ficavam assustados e perguntavam o que é que estava a acontecer.
Era o debate interior do "grande" homem a jorrar desordenadamente.»^''
posta no seu lugar pela força, deixaria de necessitar dos dois socios. Este
plano ditatorial, excelentemente descrito como «cesarismo social», era aná-
tema para Marx — e tanto mais irritante porque a sua retórica plagiava in-
solentemente muitas passagens do Manifesto Comunista, às quais Lassalle ti-
nha acrescentado comentários reaccionários para proveito próprio. Ele era
o Mestre, o Redentor, o Herói a Cavalo. Já aos 20 anos, num «Manifesto de
Guerra Contra o Mundo», o seu egoísmo melodramático tinha-se revelado
inesgotável: «Para mim, todos os meios são iguais; nada é sagrado ao ponto
de me fazer recuar; e ganhei o direito do tigre, o direito de dilacerar... E n -
quanto tiver poder sobre a mente de um indivíduo, hei-de abusar sem pie-
dade.. . Só força de vontade da cabeça aos pés.» Se ele não tivesse existido,
Nietzsche tê-lo-ia inventado.
Era nesse estado de espírito que vivia—e viria a morrer. E m 1864, Lassalle
enamorou-se de uma bela jovem com cabelos à Ticiano chamada Helene von
Dönniges, prometida a um certo Janko von Rakowitz, príncipe romeno. O
pobre noivo desafiou o super-herói para um duelo à pistola e acertou-lhe fa-
talmente na barriga. LassaUe nem sequer apontou a arma contra ele, Hmitan-
do-se a sorrir enigmaticamente enquanto o rival fazia pontaria. Teria acabado
por acreditar na sua invencibilidade? O u tinha decidido que uma morte pre-
matura e romântica lhe garantiria fama imortal? Foi tudo um grande misté-
rio. Como Engels comentou: «Uma coisa destas só podia ter acontecido a
Lassalle. Era um homem com uma estranha e única mistura de frivolidade e
sentimentalidade, cavalheirismo e características judaicas.»^' A notícia pertur-
bou Marx mais do que ele esperava. O que quer que pudesse ter sido, Lassalle
era «o inimigo dos nossos inimigos», um da velha guarda dos quarante-huitards.
«Só Deus sabe como as nossas fileiras estão a ser reduzidas e não há refor-
ços à vista.»*^" Ofereceu à condessa Von Hatzfeldt a consolação de que, pelo
menos, «ele morreu jovem, num período de triunfo, como Aquiles».''^
E m tais circunstância, foi um tributo generoso. Dois anos antes, Marx
quase se tinha arruinado para receber Lassalle em Grafton Terrace; fora
recompensado com irritabilidade, desconfiança e, finalmente, suêncio. Desde
aquela vista — e, em parte, por causa dela, suspeitava Marx — as finanças
da família tinham evoluído de más a piores. E m Agosto de 1862, uns dias
depois de LassaUe partir de Londres, Marx deslocou-se a Zaltbommel na
esperança de conseguir outro empréstimo de Lion Phiups, mas o tio encon-
trava-se ausente. Dirigiu-se então a Trier, mas a mãe recusou dar-lhe o que
quer que fosse. N o Natal desse ano, Jenny Marx tentou ganhar a simpatia de
o HERÓI A CAVALO ^ ^ 2 1 9
«É curioso e até certo ponto significativo que o país onde Karl Marx é
menos conhecido seja aquele onde viveu e trabalhou durante os últimos 30
anos», comentou o economista John Rae na Contemporary Review, de Outu-
bro de 1881, dois anos antes da morte de Marx. «A sua palavra percorreu
toda a Terra e evocou em certos círculos ecos que os governos não deixam
viver nem morrer; mas, aqui, onde foi pronunciada, o seu som mal foi ou-
vido.»^"* Quando Engels enviou uma análise pormenorizada de O Capita/k
220-^^v^ KARL MARX
Quando passeava pelas ruas de Londres, Marx detinha-se muitas vezes para
fazer uma festa na cabeça de um miúdo sentado à soleira de uma porta e meter-
-Ihe uma moeda na mão. Mas a experiência ensinou-lhe que os adultos britâ-
nicos não vêem com bons olhos os estrangeiros com sotaque estranho. Um
dia, ao passar por Tottenham Court Road de autocarro, ele e Liebknecht re-
pararam numa grande multidão apinhada à porta de uma taberna e ouviram
a voz lancinante de uma mulher a gritar por socorro. Embora Liebknecht tenha
tentado detê-lo, Marx saltou do autocarro e abriu caminho. Mas a mulher,
completamente bêbada, estava apenas a discutir com o marido; a chegada de
Marx teve o condão de aHar o casal que descarregou a sua fúria contra o im-
portuno. «A multidão cercou-nos», recordou Liebknecht, «e tomou uma ati-
tude ameaçadora contra o raio dos estrangeiros. A mulher, em particular, fi-
cou furiosa com Marx e concentrou-se na sua magnífica barba preta luzidia.
Tentei acalmar, em vão, a situação. Se não tivessem aparecido dois robustos
poKcias a tempo, teríamos pago bastante caro a nossa filantrópica intervenção.»
A partir dessa altura, notou Liebknecht, Marx mostrou-se «um pouco mais
prudente» nos seus contactos com o proletariado londrino.
Como o historiador Kirk Willis observou, «por volta de 1860, Marx não
estava interessado em ter discípulos, ou propagandistas, ingleses, pois tinha
outros planos mais importantes — a destruição intelectual da economia
política clássica»^*'.^ N o s quatro anos seguintes, refugiou-se novamente no
anonimato da sala de leitura do Museu Britânico a fim de se preparar para
o assalto final ao capitalismo. «Quanto a mim, estou a trabalhar imenso e, por
o HERÓI A CAVALO rt^ 223
começaram a viver juntos. Nas raras ocasiões em que Jenny foi obrigada a
reconhecer a existência de Mary, referia-se a ele como «a tua mulher», em-
bora a relação nunca tivesse sido realmente legalizada. O facto de Lydia
(Li^^J se ter juntado ao casal constituiu uma maior afronta à sensibilidade
puritana de Frau Marx. Mas Engels não se ralou.
A sua dedicação a Mary Burns também provocou o único momento de
frieza ao longo da calorosa e ininterrupta relação com Karl Marx. Apesar de
Marx não ter objecções quanto ao pouco ortodoxo comportamento domés-
tico do amigo (e até lhe provocar uma certa titilação por procuração), a sua
tendência foi de subestimar a importância das irmãs Burns por deferência para
com Jenny. Tal tendência nunca se manifestou de forma mais desastrosa
quando, a 7 de Janeiro de 1863, recebeu um breve e horrível bilhete de Engels:
Caro Mouro,
A Mary morreu. Deitou-se cedo ontem à noite e, quando -L?^,^ de-
cidiu ir para a cama pouco depois da meia-noite, encontrou-a já morta.
Tudo se passou muito rapidamente. Uma apoplexia ou um ataque car-
díaco. Só fui informado esta manhã; na noite de segunda-feira ainda
estava bem. N ã o consigo transmitir como me sinto. A pobre da rapariga
amava-me profundamente.
Teu,
FE
Bem, para começar, poderia ter tentado dar os pêsames com mais tacto.
É verdade que a situação de Marx era realmente calamitosa: desde o Natal
que as filhas não tinham voltado para a escola, em parte porque a conta do
período anterior ainda não fora paga mas também porque a única roupa e
sapatos decentes que possuíam se encontravam no prego. Até mesmo as
últimas palavras de despedida de Marx tinham mais a ver com os seus pro-
blemas do que com a perda de Engels: «Em vez de Mary, não deveria antes
ter sido a minha mãe que está cheia de maleitas e já viveu o suficiente? Estás
a ver as ideias estranhas que surgem na cabeça de " h o m e n s civilizados"
pressionados por certas circunstâncias. Salut.»
Engels leu tudo isto com espanto e raiva. Como ousava Marx falar de
dinheiro numa altura destas — em particular sabendo que ele próprio se
encontrava numa situação financeira difícil por causa da queda dos preços
de algodão? Manteve-se em silêncio durante cinco dias, e depois enviou u m
ríspido agradecimento. As suas cartas começavam, normalmente, por «Caro
Mouro», mas tal informalidade já não servia:
«Caro Marx,
Hás-de compreender que devido ao meu infortúnio e à maneira fria
como o encaraste me foi impossível responder-te mais cedo. Todos os
meus amigos, incluindo meros conhecidos, deram-me nesta ocasião mais
provas de amizade e simpatia do que eu esperava. Achaste que era o
momento adequado para afirmar a superioridade da "indiferença do teu
m o d o de pensar". Seja!»^
procurar emprego como governantas. Lenchen iria trabalhar para outra casa,
e a pequenina Tussy e os pais mudariam para um alojamento reservado aos
indigentes.
Teve realmente Marx essa intenção ou foi este martírio de autopunição
um ardil para comover Engels? É difícil de dizer. Mas não há dúvidas quanto
à sinceridade do seu acto de contrição:
«O Sr. Adolphe Bartels declara que, para ele, a vida púbuca terminou.
E, de fato, retirou-se para o conforto da vida privada e não faz tenção de lá
sair; limita-se a protestar sempre que ocorre qualquer manifestação públi-
ca e a proclamar em voz alta que é dono de si mesmo, que o movimento
foi feito sem ele, Sr. Bartels, apesar dele, Sr. Bartels, e que tem o direito
de lhe recusar a sua sanção suprema. Temos de concordar que isto é uma
maneira de participar na vida pública como qualquer outra e que, através
de todas estas declarações, proclamações e protestos, o h o m e m público
se esconde por detrás da aparência modesta do indivíduo privado. E deste
m o d o que o génio pouco apreciado e mal compreendido se revela.»"
E m alguns anos, porém, Marx veio a acreditar que um génio mal com-
preendido como ele podia muito bem participar na vida pública, lançando
protestos e proclamações da solidão da sua secretária. Há uma altura para
tudo: altura para estragar e outra para remendar; tempo de guerra e tempo
234 KARLMARX
O jornal Red Republican, de Harney, viu neste incidente a prova dos «pro-
gressos alcançados pela classe operária em matéria poKtica, do seu incorruptível
amor da justiça e do seu intenso ódio pela tirania e a crueldade». Tanta gente
compareceu a uma celebração em Farringdon Han, no decorrer da qual Engels
discursou, que muitas pessoas não puderam entrar. Inúmeras associações de
trabalhadores — de Paris a Nova Iorque — enviaram felicitações e até mes-
mo Palmerston ficou secretamente divertido, considerando que a administra-
ção de um pouco do remédio do marechal ao próprio não lhe faria mal ne-
OS BULDOGUES E A HIENA ::„_. 237
uma vez, não cita quaisquer fontes: é evidente que o desprezo de Marx por
alfaiates, sapateiros e outras vis profissões era tão universalmente conheci-
do que nem sequer precisava de ser comprovado.
Isto é exactamente o oposto da verdade. Foi Marx quem deu a primeira
oportunidade a Eccarius ao publicar o seu artigo, «Alfaiate em Londres», no
efémero jornal londrino NRZ Review. «O autor deste artigo», informou Marx
os leitores, «trabalha numa das alfaiatarias de Londres. Perguntamos à bur-
guesia alemã quantos autores possui que sejam capazes de apreender o
movimento genuíno de maneira semelhante?... O leitor notará como, aqui,
em vez das críticas de ordem sentimental, moral e psicológica usadas con-
tra as condições existentes por Weitling e outros trabalhadores, uma com-
preensão puramente materialista e mais livre, isenta de caprichos sentimen-
tais, confronta a sociedade burguesa e o seu movimento.»^^
N ã o há nisto quaisquer sinais de desprezo. Ao longo dos maus momen-
tos da década de 1850, Marx manteve-se atento e complacente, ajudando
Eccarius a publicar artigos em jornais de língua alemã no estrangeiro com
a esperança de o salvar do árduo trabalho que o ocupava das cinco da manhã
até às oito da noite na alfaiataria. «Se houver dinheiro, sugiro que Eccarius
seja o primeiro a receber para que não tenha de passar todo o dia a trabalhar»,
aconselhou um colega jornalista em Washington. «Tenta, se for possível,
arranjar-lhe algum dinheiro.» Por mais dramática que fosse a sua própria
situação financeira, insistia sempre para que Eccarius tivesse prioridade.
Quando Eccarius adoeceu com tuberculose, em Fevereiro de 1859, Marx
descreveu o mal do companheiro como «a coisa mais trágica que vivi aqui
em Londres»^^. Uns meses mais tarde, observou tristemente que Eccarius
«andava de novo a passar um mau bocado na alfaiataria»^^ e pediu a Engels
que enviasse umas garrafas de vinho do Porto ao pobre h o m e m para o
animar. E m 1860, obrigado por motivos de saúde a desistir do emprego
durante uns tempos, Eccarius foi viver para um quarto à custa de Marx, o
qual também lhe arranjou trabalho na imprensa americana a três dólares por
artigo. Quando três dos filhos de Eccarius morreram durante a epidemia de
escarlatina, em 1862, foi também Marx que, apesar de estar quase na misé-
ria, angariou fundos para cobrir as despesas do funeral, e, finalmente, quando
lhe pediram para nomear um orador para a histórica assembleia pública de
1864, foi ele novamente quem deu o nome do seu velho amigo. Eccarius
«saiu-se admiravelmente», disse, depois, Marx a Engels, acrescentando que
ficara muito contente por ter permanecido calado. N o entanto, muitos his-
240 %, KARL MARX
Marx. Os seus primeiros encontros com o futuro sogro não foram lá mui-
to prometedores. «O raio do jovem Lafargue está sempre a irritar-me com
as suas ideias protagonistas», queixou-se Karl a Laura. «E não há-de descan-
sar até eu lhe pregar uma boa descompostura.»^^
Depois de um dos muitos discursos de Lafargue que afirmavam que as
nações e as nacionalidades eram puras tolices, Marx provocou a risota en-
tre os seus colegas ingleses assinalando que «o nosso amigo Lafargue, assim
como os outros que aboliram a nacionalidade, dirigem-se a nós em francês,
uma Kngua que nove décimos da audiência não compreende»^*. E acrescen-
tou ainda maldosamente que, ao negar a existência da nacionalidade, o jo-
vem fanático «parecia implicar inconscientemente que fora absorvido pela
nação francesa».
Os bravos sindicalistas ingleses divertiam-se à custa destas disputas de
sabor francês, mas ficavam completamente espantados por Mazzini — uma
figura heróica em Londres — ser tratado pelos alemães e franceses como u m
imbecil, cuja paixão pela liberação nacional tinha eclipsado a consciência de
classe. «A nossa posição, agora, é difícil», admitiu Marx após outra tumul-
tuosa sessão na rua Greek, «pois, por um lado, temos de contrariar o imbe-
cil italianismo dos ingleses e, por outro, a errada polémica dos franceses».
Era uma tarefa em que se perdia demasiado tempo. N u m a carta a Engels
de Março de 1865, Marx descreveu o trabalho típico de uma semana: terça-
-feira à noite era consagrada ao Conselho-Geral; Tolain e Le Lubez tinham
brigado até à meia-noite e, depois, ele ainda tivera de se instalar numa tasca
da vizinhança para assinar 200 cartões de sócio. N o dia seguinte, tinha as-
sistido em St Martin's Hall à comemoração do aniversário da insurreição
polaca. Reuniões de subcomités no sábado e na segunda-feira dedicadas à
«questão francesa», ambas as quais tinham durado até à uma da manhã, E,
na terça-feira seguinte, outra tempestuosa sessão do Conselho-Geral «dei-
xara sobretudo os ingleses com a impressão de que a bancada francesa pre-
cisava realmente de um Bonaparte!» Entre essas sessões, havia «gente que
surgia de todos os lados para falar comigo» sobre um sufrágio a ter lugar na
semana seguinte. «Que desperdício de tempo!»'29
Engels pensava a mesma coisa e, após a morte de Marx, disse que «a vida
do Mouro sem a Internacional teria sido um anel de diamantes com o diamante
lascado»-'^ mas que, ao princípio, não conseguia compreender porquê o ami-
go gostava de passar horas em lúgubres salas do fundo no Soho quando podia
muito bem estar sentado no seu gabinete de Hampstead a escrever O Capital.
246 KARL MARX .
• • N a verdade, foi Marx, e não Lafargue, que atribuiu esse ardor — e qua-
se tudo o mais — ao «temperamento crioulo». Ainda falava do assunto em
Novembro de 1882, contando a Engels que «Lafargue possui o defeito que
se encontra habitualmente nas tribos negras — nenhuma noção da vergonha, quer
dizer, nenhuma vergonha em fazer figura de parvo».'*''
Antes de dar o seu consentimento, Marx exigiu ao jovem uma lista com-
pleta das suas perspectivas futuras. «Sabe que sacrifiquei toda a minha for-
mna à causa revolucionária», escreveu a Lafargue. «Não estou arrependido.
Muito pelo contrário. Se tivesse de viver de novo a minha vida, faria exac-
tamente o mesmo. Mas não me casaria. Desejo quanto possível poupar a
minha filha aos escolhos onde a mãe dela arruinou a vida... Tem de realizar
algo na vida antes de pensar em casar e você e Laura terão de passar por um
longo período de provações.»^^^ Mas não foi assim tão longo. O noivado de
Laura Marx com Paul Lafargue foi anunciado em Setembro de 1866, apenas
OS BULDOGUES E A HIENA a ^ - 251
urn mês depois de Marx ter enviado essa carta, e casaram-se em St. Paneras,
a 2 de Abril de 1868. Marx, em veia pouco romântica, descreveu o casamento
como «um grande alívio para toda a família, pois era como se Lafargue vi-
vesse connosco, o que aumentava perceptivelmente as despesas»'^^. D u -
rante a festa, Engels contou tantas piadas sobre a noiva que esta fundiu-se
em lágrimas.^'
Sem a vivacidade de Jennychen e Eleanor, Laura nunca gostou de ser o
centro das atenções. «Como tenho o costume de me manter na sombra, sou
muitas vezes esquecida e ignorada pelos outros.)/'^ De todas as filhas de Marx,
ela era a mais parecida com a mãe: enquanto as irmãs sonhavam com car-
reiras no palco, a única ambição de Laura era ser boa esposa. O primeiro
filho, Charles-Etienne (a quem chamavam Schnapps), nasceu a 1 de Janeiro
de 1869, quase exactamente nove meses depois do casamento, e foi segui-
do por uma filha e outro rapaz no espaço de dois anos. Todos morreram
ainda bebés. Era impossível escapar àqueles escolhos onde a vida da mãe fora
destroçada. «Em todas estas lutas pela vida, somos nós, as mulheres, que
temos de suportar a parte mais difícil, porque é a mais insignificante», escre-
veu Jenny Marx, chorando a morte dos netos. «Um homem tira forças do seu
combate com o mundo exterior, e a vista do inimigo, mesmo que seja uma
legião, revigora-o. Mas nós ficamos em casa a remendar peúgas.»'*^
10
o CÃO P E L U D O
H á muito que a casa em Modena Villas, 1 caiu em ruínas, mas Paul Lafar-
gue deixou uma descrição evocadora do caótico covil no andar de cima onde
Marx trabalhava, que deve alegrar o coração de todos os escritores desarru-
mados do mundo:
OS teus sacrifícios por mim nunca conseguiria ter lidado com o imenso tra-
balho exigido pelos três volumes. U m abraço cheio de reconhecimento...
Salut, meu estimado e querido amigo.»**
ria de hoje com carros e antenas parabólicas: não estão lá muito miseráveis,
pois não? O economista Paul Samuelson declarou que toda a obra de Marx
pode, com segurança, ser ignorada, pois o empobrecimento do trabalhador
«simplesmente nunca ocorreu» — e na medida em que os manuais de
Samuelson são há gerações a dieta dos estudantes de economia, tanto na Grã-
-Bretanha como nos EUA, isto tornou-se aceite. Mas trata-se de um mito
baseado numa interpretação incorrecta da «lei geral da acumulação capita-
lista» de Marx, inscrita no capítulo 25 do primeiro volume. «A indigência»
constitui uma condição da produção capitalista e do desenvolvimento capi-
talista de riqueza. Faz parte das despesas incidentais da produção capitalis-
ta: mas o capital sabe habitualmente como se desfazer delas e as passar para
a classe operária e a pequena burguesia.»^" Neste contexto, porém, ele não
se refere à indigência de todo o proletariado, mas à dos «sedimentos mais
baixos» da sociedade — os desempregados, os miseráveis, os doentes, os
velhos, as viúvas e os órfãos. Pode alguém negar que tal subclasse ainda
existe? Outro pária judeu disse uma vez que «os pobres estarão sempre entre
nós», mas ainda nenhum economista sugeriu que os ensinamentos de Jesus
estavam desacreditados pela sua previsão de miséria perpétua.
O que Marx previu foi que, sob o capitalismo, haveria u m declínio rela-
tivo — e não absoluto — dos salários. Isto é obviamente verdadeiro: poucas
firmas, se houver alguma, com um lucro de 20 por cento, aumentam ime-
diatamente em 20 por cento o salário dos seus empregados. E, assim, por
muitos microndas que o trabalhador possa comprar, a mão-de-obra distan-
cia-se cada vez mais do capital. «Segue-se, por conseguinte, que à medida que
o capital se acumula, a situação do trabalhador, quero seu salário seja elevado ou
baixo, torna-se pior.»" (Os itálicos são do autor.)
Como no caso de Cristo, a definição de pobreza de Marx era tão espiri-
tual quanto económica. Qual é o proveito de um h o m e m ganhar o m u n d o
e perder a alma? Ou, como Marx escreveu em O Capital, os meios através dos
quais o capitalismo aumenta a produtividade,
A última frase, isolada, podia ser dada como exemplo de outra previsão
do empobrecimento absoluto dos trabalhadores, mas apenas u m idiota —
ou um conferencista de temas económicos — manteria esta interpretação
depois de 1er a condenação que a precede.
«Deve-se ter em mente», admite Leszek Kolakowski, um dos mais in-
fluentes críticos modernos do marxismo, «que o empobrecimento material
não constituía uma premissa natural da análise de Marx sobre a desumaniza-
ção do salário laboral ou da sua predição quanto à inevitável ruína do capi-
talismo»^^. Correcto. Mas, a seguir, Kolakowski ignora o seu próprio conselho
e coloca outro naco de queijo na velha ratoeira de Karl Popper. «Como in-
terpretação dos fenómenos económicos», adverte, «a teoria de valores de
Marx não satisfaz os requisitos normais da hipótese científica, em particu-
lar os da falsificação.»^^ Bem, claro que não: nenhum papel tornasol, micros-
cópio electrónico ou programa informático pode detectar a presença de algo
tão intangível como a «alienação» e a «degradação moral».
O CapitaloÃo é realmente uma hipótese cienti'fica, nem sequer um trata-
do económico, embora os fanáticos de ambos os campos tenham insistido
em considerá-lo assim. O próprio autor foi bastante claro quanto às suas
intenções. «No que respeita ao meu trabalho, vou dizer-te a pura das verda-
des», escreveu a Engels a 31 de Julho de 1865. «Ainda tenho de escrever mais
três capítulos para terminar a parte teórica... Mas não consigo enviar nada
até ter tudo à minha frente. Independentemente dos defeitos que possam ter,
a vantagem dos meus escritos é que constituem um todo artístico...» Ou-
tra carta escrita uma semana mais tarde refere-se ao livro como uma «obra
de arte», e cita «considerações artísticas» como motivo do atraso em apre-
sentar o manuscrito.
N o caso de Marx desejar produzir um texto de economia clássica em vez
de uma obra arti'stica, poderia tê-lo feito. E fê-lo realmente: duas palestras
em Junho de 1865, mais tarde publicadas sob o título Valor, Preço eVucro dão
um resumo conciso e lúcido das suas conclusões:
o CÃO PELUDO « 1 ^ 2 6 1
Encontramos uma pista numa das raras analogias que se permitiu fazer em
Valor, Preço e l^ucro para explicar que o lucro resulta em vender artigos ao
preço «real» e não — como se poderia assumir — em acrescentar um valor
adicional. «Isto parece ser um paradoxo e contrário à observação diária», es-
creveu. «Também é um paradoxo a Terra mover-se à volta do Sol e a água
ser formada por dois gases altamente inflamáveis. A verdade científica é sem-
pre paradoxal quando vista através da experiência diária, a qual capta ape-
nas a natureza ilusória das coisas.»
Isto parece um convite para avaliar a sua obra-prima através de padrões
científicos. Mas ouçamo-lo mais de perto: ele está a Mdar com «a natureza ilu-
sória das coisas», assunto que não pode ser limitado a um género como a
economia política, antropologia ou história. Como Marx indica: «A primeira
vista, um artigo parece ser uma coisa muito trivial e facilmente compreendida.
Mas a sua anáuse demonstra que, na verdade, é uma coisa muito bizarra cheia
de subtilezas metafísicas e pontos teológicos.» Admirava o que era objectivo,
a metodologia sem sentimentalismos de Ricardo e Adam Smith: de facto, os
aspectos de O Capitalc^c são mais frequentemente ridicularizados hoje em dia
-— como a teoria laboral do valor — derivavam destes economistas clássicos
e eram a ortodoxia prevalecente da época. N o entanto, sentia que, apesar de
todas as suas realizações, «a ciência burguesa da economia tinha chegado aos
limites para além dos quais não conseguia passar»^^ As medidas empíricas
nunca poderiam quantificar o custo humano da exploração e da alienação.
Marx descobrira no Museu Britânico um banco de dados sobre a práti-
ca capitalista — registos governamentais, gráficos estatísticos, relatórios de
inspectores de fábricas e de funcionários da saúde pública — que ele utili-
zou com o mesmo efeito devastador que Engels em As Condições da Classe
Operária em Inglaterra. Mas a sua outra fonte principal, menos notada, foi a
ficção literária. Ao debater o efeito das máquinas sobre o poder laboral, uti-
Uza números do consenso de 1861, estatística essa para demonstrar que há
mais criados domésticos do que trabalhadores empregados nas indústrias
mecanizadas, como as tecelagens e as siderurgias. («Que resultado notável
este da exploração capitalista das máquinas!») Como podem os capitalistas
negar as suas responsabilidades pelas vidas humanas perdidas ao longo do
progresso tecnológico? Pondo de lado estas estatísticas, Marx cita o discurso
de Bnl Sykes, personagem do livro de Charles Dickens, Oliver Tmst. «Senhores
jurados, não há dúvida de que este caixeiro-viajante foi degolado, explicou
Sykes. Mas a culpa não é minha. A culpada é a faca. Devemos abolir o uso
o CÃO PELUDO ^#263
Isto pode ser comparado à modesta proposta feita por Swift de conven-
cer os pobres a comer os bebés a mais a fim de solucionar o problema da
miséria na Irlanda. (Talvez valha a pena notar que, em 1870, Marx comprou
uma edição das obras completas de Jonathan Swift em 14 volumes, pelo pre-
ço de quatro xelins e seis cêntimos.) Como Edmund Wilson justamente ob-
serva, o propósito das abstracções teóricas de Marx —- a dança dos artigos
de consumo, os fantásticos ziguezagues lógicos — sobretudo irónicos, jun-
tamente com sinistros retratos bem documentados da miséria e sujidade que,
na prática, as leis capitalistas criam. «O significado das fórmulas aparente-
mente impessoais que Marx produz com ar tão científico é, lembra-nos ele
de tempos a tempos assim como não quer a coisa, dinheiro retirado do bolso
do trabalhador, suor espremido do seu corpo e satisfação natural negada à
sua alma», prossegue Wilson. «Ao competir com as autoridades em econo-
mia, Marx escreveu algo como uma paródia.. .»^^
N o final, contudo, até mesmo E d m u n d Wilson perde o fio da intriga:
umas páginas depois de ter elevado Marx ao panteão dos génios satíricos, ao
lado de^wift, protesta contra «a crueza da motivação psicológica subjacente
à visão mundial de Marx», e queixa-se de que a teoria apresentada em O
Capital é «simplesmente, como a dialéctica, uma criação do metafísico que
nunca abdicou perante o economista existente em Marx». Essa queixa nem
sequer tem o mérito de ser original: alguns críticos alemães da primeira edição
acusaram Marx de «sofismo hegeliano», acusação que ele alegremente acei-
tou e no posfácio da segunda edição alemã, publicada em 1873, lembrou-lhes
que tinha criticado o «lado mistificador da dialéctica hegeUana», quando esta
ainda estava na moda, há quase 30 anos. «Mas, quando ainda trabalhava no
primeiro volume de O Capital, os arrogantes, mal-humorados e medíocres
epígonos que, agora, se pavoneiam nos círculos intelectuais alemães trata-
vam Hegel... de "cão m o r t o " . Declarei-me então abertamente discípulo
desse notável pensador e, no capítulo sobre a teoria, namorisquei aqui e ali
com os modos de expressão que lhe eram particulares.»
Estes namoros dialécticos que ofenderam E d m u n d Wilson têm a ver
com a ironia que ele tanto apreciou: ambas as técnicas empregam a realida-
2 6 8 1 ^ KARL MARX
o ELEFANTE VELHACO
Ou, pelo menos, era nisso que os seus discípulos queriam que acreditás-
semos. É extraordinário como ainda existem tantos: em vida, Bakunine pode
ter sido um general sem exército, ou um maometano sem Corão, mas, n o
século XX, atraiu uma legião de admiradores — muitos deles nada anarquistas
nem revolucionários — , que o aclamaram como aquele que tinha previsto
que as ideias marxistas poderiam apenas conduzir •àogulag. O s dois homens
)ustapõem-se consistentemente e sempre para descrédito de Marx. «Ainda
hoje, a luta entre os dois reside no âmago de todos os debates sobre a his-
tória do movimento dos trabalhadores», escreve o especialista alemão de
Marx, professor Fritz Raddatz. «Não há maneira de evadir a resposta... Marx
e Bakunine são iguais a Estaline e Trotsky.»^
Comparando Bakunine e Marx, o historiador britânico, E. H. Carr, fala
do «homem com impulsos generosos e incontroláveis e do h o m e m cujos
sentimentos eram tão perfeitamente sujeitos ao seu intelecto que observa-
dores superficiais não acreditavam que os tivesse... o h o m e m de personali-
dade magnética e o h o m e m cuja frieza intimidava e repelia»^. Carr concede,
contudo, que Bakunine era por vezes indiferente e incoerente, mas mesmo
esses defeitos tornaram-se virtudes quando comparados à disciplina desu-
mana e glaciar da máquina calculadora marxista.
Segundo Isaiah Berlin, «Bakunine diferia de Marx assim como a poesia
difere da prosa»^. A implicação aparente — que Bakunine era um espírito
livre e lírico, e Marx u m tipo prosaico — pouco mais é do que a citação
erudita dita em outras palavras da crua fórmula Trotsky/Estaline: o defen-
sor da liberdade humana contra o impiedoso autoritário. Trata-se de um mito
com suficiente verdade para o manter vivo. Bakunine era, de facto, um in-
divíduo com emoções puras que desprezava o meticuloso racionalismo de
Marx. A sua falta de interesse pelo complexo mecanismo do capital era
compensada pelo desdém de Marx por atitudes clandestinas. Além disso,
contudo, quase tudo o que se diz e escreve sobre esta luta de gigantes é absurdo.
Encontraram-se em Paris em 1844 e, depois, em Bruxelas, pouco depois
da insurreições de 1848, quando Bakunine ainda era mais comunista do que
anarquista. Apesar de quatro anos mais velho do que Marx, reconhecia a eru-
dição superior do jovem («Nessa altura, eu nada sabia de economia políti-
ca»), e adivinhava que os seus temperamentos irreconciliáveis nunca permi-
tiriam «nenhuma intimidade sincera». Nesse Verão, o Nene Rheinische Zeitung
de Marx publicou uns mexericos de Paris, atribuídos a George Sand, que ale-
gavam ser Bakunine um agente secreto do czar: a vontade de Marx em es-
o ELEFANTE VELHACO π^ 273
Tudo muito inspirador. John Stuart Mill enviou as suas felicitações, de-
clarando-se «muito agradado com a alocução. Não há uma única palavra que
não deveria lá estar; nem poderia ter sido escrita com menos palavras».^*' N o
entanto, e embora mantivesse uma neutralidade oficial, Marx não podia
resistir, em privado, a calcular as vantagens e a ruminar sobre o resultado que
mais conviria aos seus objectos.
o ELEFANTE VELHACO g ^ l l l
Já em Fevereiro de 1859, ele tinha dito a Lassalle por carta que uma guerra
entre a França e a Alemanha «teria naturalmente graves consequências; as
quais, a longo termo, seriam certamente revolucionárias. Mas, ao princípio,
haveria de apoiar o bonapartismo em França e fazer recuar o movimento
interno em Inglaterra e na Rússia, despertar de novo paixões mesquinhas
quanto ao problema do nacionalismo na Alemanha e ter, na minha opinião,
um efeito sobretudo contra-revolucionário em todos os aspectos»." Ao lon-
go de 11 anos, este jogo de consequências tinha-se tornado uma obsessão.
«Há quatro noites que não consigo dormir por causa do reumatismo», disse
a Engels, em Agosto de 1870. «Passo o tempo a fantasiar sobre Paris, etc.»'^
Uma dessas fantasias era que ambas as facções se gladiariam, enfraquecendo
tanto Bonaparte como Bismark. Mas, depois, os alemães haveriam de ven-
cer. «Desejo que tal aconteça porque a derrota definitiva de Bonaparte há-
-de provavelmente provocar a revolução em França, enquanto a derrota de-
finitiva da Alemanha prolongaria a actual situação durante uns 20 anos.»"
N e m a mulher nem o seu melhor amigo necessitavam tantas justificações
complicadas por ele tomar um determinado partido. Jenny achava que a
França merecia uma boa sova por ter rido o atrevimento de tentar exportar
a sua «civilização» para o solo sagrado da Alemanha. «Todos os franceses, até
mesmo o insignificante número dos melhores, têm uma molécula chauvinista
a um canto do coração», escreveu a Engels. «E isto tem de lhes ser extirpa-
do.»^'* Engels, que passou a guerra de m o d o lucrativo fazendo análises mi-
litares para a Pali Mali Gazette, também sentia essa mesma fidelidade atávica.
«A minha confiança nas proezas militares alemãs aumenta diariamente»,
entusiasmava-se. «Parece realmente que ganhámos as primeiras batalhas.»*^
Uma vez que Bonaparte fosse esmagado, os seus pacientes cidadãos pode-
riam, finalmente, tomar o poder.
Mas tinham os parisienses os meios, ou os Kderes, para levar a cabo uma
revolução e, simultaneamente, resistir ao exército prussiano? Esta questão,
mais do que qualquer outra, atormentava Marx durante as noites de insónia.
«Não se pode ocultar o facto desta farsa bonapartista, que dura há 20 anos,
ter provocado uma grande desmoralização», escreveu a Engels. «Não se pode
contar com heroísmo revolucionário. O que é que pensas disto?»''' Engels
mal teve tempo de responder a esta pergunta: Bonaparte rendeu-se em Sedan
e u m novo regime — a III República — foi proclamado em Paris.
Se aguardamos à beira do rio, acabamos por ver os cadáveres dos nossos
inimigos a flutuar. 20 anos mais cedo, a nomeação do diminuto Napoleão ti-
278 ^ > » KARL MARX -,
nha levado Marx a escrever Debito de Brumário de IJÍÍS Bonaparte; agora, ele tinha
o prazer de redigir o obituário. A 9 de Setembro, a Internacional distribuiu
uma segunda alocução sobre a guerra que começava com a presumida afir-
mação de que «não nos enganámos quanto à vitalidade do Segundo Impé-
rio». E Marx prosseguia, «a nossa apreensão caso a guerra "perdesse o seu
carácter estritamente defensivo e degenerasse numa guerra contra o povo
francês" também não era incorrecta»". Q u e m tenha presente a primeira
alocução talvez se lembre que ele tinha, realmente, negado essa possibilida-
de e insistira que a heróica classe trabalhadora alemã se anteciparia a isso. Mas
a campanha puramente «defensiva» tinha terminado com a capitulação em
Sedan e, agora que os alemães pediam a anexação de Alsácia e Lorena, ele
rescrevia a história a fim de não passar por uma vergonha.
Não devemos ser demasiado críticos em relação a Marx. O seu primeiro
tributo à contenção alemã tinha sido um triunfo da esperança sobre a expe-
riência, mas com a notável excepção que a sua leitura era espantosamente
correcta. O que é que fazia se a fortuna das armas e a arrogância do sucesso
levava a Prússia a desmembrar a França? N a segunda alocução, ele preveniu
que a Alemanha se tornaria «o confesso instrumento do engrandecimento
da Rússia ou, após um breve interregno, se prepararia para mais uma guer-
ra «defensiva», não uma dessas modernas guerras "localizadas", mas uma
guerra de raças — uma guerra das raças romanas e eslavas combinadas».
Uma carta ao organizador americano da Internacional, Friedrich Adolph
Sorge, era ainda mais presciente. «O que os burros prussianos não vêem é
que a presente guerra conduz... a uma inevitável confrontação entre a Ale-
manha e a Rússia. E essa guerra n.° 2 será a parteira da inevitável revolução
social na Rússia.»^** Marx não viveu para assistir ao drama de 1917, mas não
teria ficado minimamente surpreendido. Por vezes, parecia estar a olhar ainda
para mais longe:
O s que se referem aos ocasionais erros de Marx como prova da sua mio-
pia histórica, talve2 não se importem de nos dizer que outras figuras dessa
época tiveram uma premonição tão precisa da ascensão de Hitler.
A segunda alocução de Marx saudava a nova República Francesa (Vive
la République!), mas não sem apreensões. «Essa república não subverteu o
trono, apenas ocupou o seu lugar quando ficou vazio», fez notar. «Foi pro-
clamada, não como uma conquista social, mas c o m o medida nacional de
defesa.»
O governo provisório era uma instável coligação de orleanistas e repu-
blicanos, bonapartistas e jacobinos que podia vir a tornar-se numa ponta para
a restauração da realeza. N o entanto, os trabalhadores franceses tinham de
cumprir o seu dever como cidadãos e banir toda a ideia de revolução. «Qual-
quer tentativa para derrubar o novo governo na crise actual, quando o ini-
migo está quase a bater às portas de Paris, seria uma loucura desesperada.»
A loucura desesperada era, claro está, o passatempo favorito de Michail
Bakunine que seguia as notícias na sua vivenda suíça em França. A o ouvir
falar de uma insurreição em Lyons após a derrota em Sedan, apressou-se a
lá ir imediatamente, entrou com ar importante na Câmara Municipal e no-
meou-se chefe do «comité de Salvação Nacional». E , a seguir, numa procla-
mação da varanda do edifício, declarou a aboução do Estado — acrescen-
tando [muito libertariamente) que quem discordasse dele seria executado. O
estado sob a forma de um pelotão da Guarda Nacional, penetrou pronta-
mente por uma porta da câmara que, por inadvertência, não se encontrava
guardada e obrigou o Messias de Lyons a fugir para as margens seguras do
lago de Genebra.
A admoestação de Marx para a situação não balançar o barco não teve
mais influência do que as vangloriosas palhaçadas de Bakunine. Adolphe
Thiers, veterano advogado liberal, foi nomeado Presidente da Terceira Re-
pública e dentro de pouco tempo soHcitou a paz com a Prússia em nome do
seu desajeitadamente chamado «Governo de Defesa Nacional». A raiva dos
parisienses perante esta rendição redobrou quando ele anunciou que as repara-
ções seriam financiadas pelo pagamento imediato de todas as contas e rendas
suspensas durante o cerco. A 18 de Março de 1871, uma multidão indigna-
da invadiu as ruas — apoiada pela Guarda Nacional da cidade, que se recusa-
va obedecer à ordem de entregar as armas ao governo. Thiers e os seus adep-
tos fugiram para Versalhes, deixando a capital nas mãos dos seus cidadãos.
2 8 0 % ^ ICARLMARX
Qual a razão de tal demora? N a maior parte dos casos, os seus biógra-
fos atribuem-na à «ambivalencia pessoal de Marx em relação à Comuna»^^.
É verdade que receava que esta falhasse, mas apreensão não é a mesma coisa
que ambivalencia. A principal razão, mais banal e familiar, é que, durante
Abril e Maio, teve bronquite e problemas de fígado, o que o impediu de
participar no Conselho-Geral — quanto mais reunir as provas necessárias
para render uma homenagem de 50 páginas à histórica levée en masse (levan-
tamento em massa) dos Parisienses. «A presente situação causa intenso
sofrimento ao nosso querido Moura», escreveu a filha, Jenny, em meados de
Abril. «É sem dúvida essa a razão principal da sua doença. Muitos dos nos-
sos amigos fazem parte da Comuna.»^-^ U m deles era Charles Longuet, direc-
tor do àiúÁo Journal Officiel, que se mudou para Londres depois da queda da
Comuna e se casou com Jennychen em 1872.
Outro partidário da Comuna, Olivier Lissagaray, tornou-se mais tarde o
noivo secreto de Eleanor Marx — embora o noivado acabasse por ser des-
feito. Paul e Laura Lafargue tinham fugido de Paris pouco antes dos Prus-
sianos cercarem a capital, mas continuavam a fazer campanha em favor da
Comuna de Bordéus.
Doente e cheio de maus pressentimentos, Marx também tinha de lutar
contra o seu obsessivo perfeccionismo: quer em O Capital ou num simples
panfleto, mostrava-se relutante em publicar uma opinião definitiva sobre
qualquer assunto sem reunir primeiro todas a informação necessária. Duran-
te os dias da Comuna, escreveu dúzias de cartas a camaradas que viviam n o
Continente, importünando-os para lhe enviarem documentação e recortes
de jornais. A julgar pelas passagens mais caluniosas da sua há muito aguar-
dada alocução -— a qual foi finalmente publicada sob o título de A. Guerra
Civil em França — , a sua pesquisa também incluiu um estudo aprofundado
das colunas de mexericos. Logo nas primeiras páginas oferece-nos este en-
cantador retrato do ministro dos Negócios Estrangeiros de Thiers: «Jules
Favre, que vive em concubinagem com a mulher de um bêbedo residente em
Argel, arranjou meio de se apoderar, em nome dos filhos resultantes do seu
adultério e através de uma série de ousadas vigarices feitas ao longo de muitos
anos, de uma grande herança que o tornou rico.» O ministro das Finanças,
Ernest Picard, é alcunhado o Joe Miller ào Governo de Defesa Nacional» —
um comediante londrino de musicais. C o m o os conhecimentos de Marx
sobre a cultura popular inglesa eram quase nulos, adivinha-se que foram as
filhas, apaixonadas por teatro, que sugeriram o nome.
282<<¿?t KARLMARX ;
Mas o resto do ataque a Picard é puro Marx, e cada novo tópico desta lista
de acusações é redigido com floreados legalistas. Ficamos a saber que Picard
«é irmão de um certo Arthur Picard, indivíduo expulso da Bolsa de Paris por
vigarice (ver relatório da Prefeitura da PoKcia datado de 31 de Julho de 1867),
e condenado pelo roubo de 300 000 francos efectuado, segundo ele mesmo
confessou, quando era gerente da Société Générale, rua Palestro, 5 (ver re-
latório da Prefeitura da Polícia, 11 de Dezembro de 1868). Arthur Picard foi
nomeado pelo irmão director do jornal, l'ÉlecteurI^ibre...» Os partidários da
Comuna podem não ter tocado nos cofres bancários, mas foi certamente
com muito prazer que revistaram os arquivos da polícia.
Depois de ter introduzido os actores secundários, Marx faz a apresenta-
ção de Thiers em pessoa — o «gnomo monstruoso»:
A seguir, Marx faz um esboço das origens da Comuna. Longe de ser uma
espécie de sublevação contra um Governo legítimo, foi uma tentativa para
salvar a III República da ordem inconstitucional de Thiers, para que a Guarda
Nacional entregasse as armas e deixasse Paris indefeso. Marx acrescenta
ainda orgulhosamente que a insurreição popular de 18 de Março não fora
afectada «pelos actos de violência que caracterizam as revoluções, e sobre-
tudo as contra-revoluções, das "classes superiores"».
E para dar um exemplo do comportamento dessas classes superiores,
menciona o próprio Presidente sem esconder nada aos leitores:
A fim de não sobrecarregar o leitor com todo esta fiaria e violência, Marx
muda de t o m e faz uma pausa para nos falar da lição aprendida c o m a
Comuna. Cita um manifesto de 18 de Março, em que se lia que os proletá-
rios de Paris se tinham tornado «donos do seu próprio destino ao apodera-
rem-se do poder governamental». Que ilusão ingénua, comenta. A classe tra-
balhadora não pode simplesmente «da maquinaria estatal já estabelecida e
utilizá-la para os seus próprios fins»: mais valeria então tentar tocar uma
sonata para piano com um gaita de beiços.
Felizmente, a Comuna entendeu rapidamente isso e livrou-se da polícia
política, substituindo-a por um exército de populares armados, desesta-
bilizando a Igreja, libertando o ensino da influência dos bispos e instituin-
do concursos para todos os funcionários públicos — incluindo os juízes —
para estes serem «responsáveis e revogáveis». A constituição recuperou para
a sociedade todas as forças até então absorvidas pelo Estado, e tal acção
tornou-se imediatamente visível: «As alterações introduzidas em Paris pela
Comuna foram realmente maravilhosas!... Paris deixou de ser o local de
encontro de latifundiários britânicos, foragidos irlandeses, esclavagistas
americanos e gente suspeita. Já não há cadáveres na morgue nem roubos à
noite; pela primeira vez, desde Fevereiro de 1848, as ruas de Paris são segu-
ras e não se vê nenhum polícia.»
Mas esse estado de coisas não durou muito tempo. Como Marx assina-
la, Thiers não podia ter tudo: se a Comuna era obra de um p u n h a d o de
«usurpadores» que mantivera os parisienses como reféns durante dois me-
ses, por que é que, então, os carniceiros de Versalhes tinham tido de assas-
284 « 5 ^ KARI.MARX
Sr. Director,
Li na secção da correspondência de Paris do seu jornal de ontem que,
embora me tivesse instalado em Londres, eu fora preso na Holanda a pe-
dido de Bismark-Favre. Mas talvez isso não passe de mais uma das inume-
ráveis histórias sensacionais sobre a Internacional que, nos últimos dois
meses, a polícia franco-prussiana não se cansa de inventar, a imprensa de
Versalhes de publicar e o resto da imprensa europeia de reproduzir.
Com os meus cumprimentos,
Karl Marx
1, Modena Villas, Maidand Park^^
Uns dias mais tarde, farto de ser seguido a cada passo, Marx estacou de re-
pente, virou-se e lançou um olhar ameaçador ao homem que o perseguia.
Este baixou humildemente o chapéu e desapareceu para sempre.
Se estes espiões soubessem a verdade, teriam poupado muitas solas de
sapato. O enorme e disciplinado exército de revolucionários comandado por
Marx existia apenas na imaginação dos políticos e directores de jornais
excitáveis. Logo após a Comuna ter sido esmaga, a Internacional começou
a desintegrar-se. A secção francesa foi ilegalizada e os seus membros mor-
tos ou enviados em exílio para as colónias da Nova Caledónia; os líderes in-
gleses dos sindicatos juntaram-se ao Partido Liberal de Gladstone e muitas
dasfiliaisamericanas passaram a ser controladas pelos adeptos de duas extra-
vagantes irmãs, Victoria Woodhull e Tennessee Claflin, as quais advogavam
o espiritualismo, a necromancia, o amor livre, a abstinência alcoólica e a lin-
guagem universal. (WoodhuU, que usava os seus indubitáveis encantos para
extrair grandes somas de dinheiro ao milionário Cornelius Vanderbüt, tinha
começado a sua carreira como vendedora de banha da cobra. Beneficiara da
política marxista da porta aberta, a qual estipulava que todos os que aceitas-
sem mais ou menos os objectivos da Associação seriam admitidos; mas ele
acabou por perder a paciência quando ela anunciou a sua intenção de se apre;
sentar às eleições presidenciais americanas como candidata da Associação
Internacional dos Trabalhadores e da Sociedade Nacional de Espiritoalistas.)
Durante a ausência de Marx à beira-mar, vários parisienses refugiados em
Londres foram eleitos para o Conselho-Geral, mas como a maior parte era
proudhonista, as antigas querelas recomeçaram novamente.
E, claro está, ainda havia a ameaça de Michail Bukanine, o qual observava
a Internacional moribunda como uma hiena esfomeada. Andava agora a in-
trigar mais brutalmente que nunca com o seu novo acólito, Sergei Nechayev,
um louco anarco-terrorista russo que se refugiara na Suíça em 1869. Ba-
kunine, não menos fantasista, deixou-se impressionar pela gabarolice de
Nechayev, que tinha organizado uma rede de células revolucionárias por toda
a Rússia, e pelo relato da sua sensacional fuga da fortaleza de Pedro e Paulo
em Sampetersburgo. Embora ambas estas coisas fossem pura ficção, a vio-
lência de Nechayev era bastante autêntica; antes de fugir da Rússia, tinha
assassinado um colega estudante simplesmente porque queria provar que era
capaz de o fazer. Depois de se juntar a Bakunine, publicou uma série de pro-
clamações e artigos incendiários, provenientes ostensivamente da Interna-
cional, a anunciar vingança.
o ELEFANTE VELHACO Ï # * ^ 291
ta em pânico. E outro disse que mais valia então transferir a sede para a Lua.
No entanto, e graças ao veto anarquista, Marx e Engels conseguiram o que
queriam com 26 votos a favor, 23 contra e seis abstenções.
Ao exilar a Internacional para os EUA, Marx condenava-a deliberada-
mente à morte. «A estrela da Comuna já ultrapassou a sua não muito elevada
altitude mediana», comentou o Spectator, em 14 de Setembro. «E, a não ser
na Rússia, nunca a veremos novamente tão alta.»
Então, por que é que ele fez tal coisa? Historiadores marxistas têm tra-
tado a questão como um enigma sem solução, mas não há nenhum misté-
rio: ele estava simplesmente exausto pelo esforço de manter unidas as tribos
que se guerreavam. Um ou dois camaradas já estavam a par do segredo.
«Ando tão fatigado e isso interfere tanto nos meus estudos que, depois de
Setembro, penso afastar-me do "negócio"» (nome de código para o Conse-
Iho-Geral), escreveu a um amigo russo três meses antes do congresso, «é de
uma grande responsabilidade, sobremdo para mim, pois tem, como sabe, ra-
mificações por todo o mundo e eu já não consigo combinar duas coisas tão
diferentes.»'*-' Numa carta ao socialista belga César de Paepe, datada de 28 de
Maio de 1872, parecia ainda mais desmotivado: «Estou ansioso para que o
novo congresso comece. Será o fim da minha escravidão. Quando terminar,
voltarei a ser Uvre e nunca mais aceitarei funções administrativas.. .»'^"^
Marx sabia que, sem a sua presença, o Conselho-Geral se desintegraria,
mas que, antes de expirar, poderia prejudicar seriamente o comunismo. Mais
valia pôr fim ao sofrimento do animal ferido.
Após a decisão de mudar o quartel-general da Internacional para Nova
Iorque, os subsequentes debates do congresso em Haia tornar-se-iam me-
nos importantes. Mas, antes de abandonar o palco, Marx tinha encenado mais
um golpe teatral. Duas semanas antes de se deslocar à Holanda, tinha ob-
tido um documento proveniente de Sampetersburgo que parecia provar que
Michail Bukanine era um maníaco homicida. Ia agora mostrá-lo e desenca-
dear uma fogueira de vaidades final.
No Inverno de 1869, Bakunine, como de costume sem dinheiro, aceitou
300 rublos de um editor chamado Lyubavin para traduzir O Capital çxa russo.
Era difícil pensar em alguém menos inadequado para tal tarefa: além de ser
um preguiçoso incorrigível, era pouco provável que Bakunine estivesse dis-
posto a enaltecer a reputação de Marx. Mas, aparentemente, Lyubavin nada
sabia disso e, passados alguns meses, lembrou-lhe amavelmente que o ma-
nuscrito ainda não fora entregue. Como resposta, recebeu uma raivosa carta
o ELEFANTE VELHACO * ^ 297
a violencia são reservadas aos nossos inimigos.»"^^ Eis o que pode ser dito
quanto à rejeição do «gangsterismo» feita por Bakunine.
Essa outra carta incriminatória, a de Nechayev ao pobre Lyubavin, teve
o efeito desejado quando Marx a mostrou aos delegados em Haia. No últi-
mo dia do congresso, e por uma maioria de 27 votos contra sete, foi acor-
dado que Bakunine deveria ser expulso.
A Internacional caiu em rápido declínio após a sua sede ter sido radicada
em Nova Iorque e dissolveu-se formalmente em 1876. Michail Bakunine
morreu no mesmo ano, e Nechayev, o seu Boy adorado, foi deportado da
Suíça no Outono de 1872 para a Rússia, condenado por homicídio e enviado
para a fortaleza de S. Pedro e Paulo onde, após dez anos de solitária numa
húmida masmorra, morreu com 35 anos. Marx sobreviveu a todos eles.
12
O OURIÇO TOSQUIADO
í Esta derrota fortaleceu a convicção de Marx de que, por debaixo das suas
«peneiras francesas», os socialistas parisienses eram todos uma cambada de
mentirosos e velhacos. Le Moussu foi imediatamente incluído no seu bes-
tiario particular de gente desonesta e classificado de vigarista, «que extorquiu
elevadas somas de dinheiros a mim e a outi-os e que, depois, recorreu a in-
fames calúnias para limpar a sua reputação e se apresentar como uma pes-
soa inocente cuja magnânima alma não fora devidamente apreciada»^. Mas,
muito em breve, a ira de Marx virou-se contra Paul Lafargue, o pateta incom-
petente que o tinha metido neste sarilho. A parte as suas «fraquezas e inca-
pacidades», tanto Lafargue como Longuet eram uns irresponsáveis que re-
cusavam dar ouvidos aos numerosos conselhos e sermões do exasperado
sogro. «Longuet c o m o último proudhonista e Lafargue c o m o o último
bakuninista!», queixou-se a Engels. «Que o diabo os carregue a ambos!»"^
Que franceses lhe tivessem tirado duas filhas podia ser considerado uma
desgraça; mas perder uma terceira às mãos dessa gente era impensável. Pode-
-se portanto imaginar a reacção de Marx quando Eleanor se apaixonou pelo
elegante Hippolyte Prosper Olivier Lissagaray, o qual, com 34 anos, tinha
exactamente o dobro da idade dela. Lissagaray teve a infelicidade de chegar
a Modena Villas quando as guerras gaulesas contra Lafargue e Longuet já ti-
nha começado; em outras circunstâncias, ele até talvez fosse bastante acei-
tável. «Com uma única excepção, todos os livros que até agora apareceram
sobre a Comuna são lixo. Essa excepção à regra-geral, é a obra de Lissagaray»,
disse Jennjchen aos Kugelmanns em 1871, repetindo, aparentemente, a opi-
nião do pai.^
302 4£5^. KARL MARX ^' '
Meu queridíssimo Mouro, por favor não te zangues por eu ter escrito
isto e perdoa-me ser egoísta ao ponto de te causar novas preocupações.
Tua,
Tussy.'
física entre os dois: uma testa baixa e larga por cima de olhos brilhantes e
escuros, e um nariz proeminente. Se desenharmos uma barba numa fotogra-
fia de Eleanor, teremos diante de nós a imagem do jovem Karl Marx. «In-
felizmente, só herdei o nariz do meu pai», costumava ela brincar. «E não o
seu génio.»"
Quando comparava as filhas, Marx reconhecia que «Jenny é a que se
parece mais comigo, mas Tiissy sou eu exactamente». Seguindo o exemplo
dele, Eleanor tentava acalmar os nervos fumando sem parar, hábito bastante
comum entre gente literária, mas raro e chocante para uma menina bem
educada da época vitoriana.
Até mesmo as maleitas de pai e filha se sincronizavam de forma estranha.
As depressões de Tussy manifestavam-se através de dores de cabeça, insónias
e quase todos os outros sintomas (excepto furúnculos). «Nem o papá, nem
os médicos, nem ninguém hão-de jamais compreender uma coisa», queixa-
va-se Eleanor. «O que me afecta são sobretudo preocupações de ordem
mentab> — estranho lapso para um homem que tinha uma vez admitido que
«a origem da minha doença é a mente»^^. Durante a maior parte da década
de 1870, estes semi-invaHdos percorreram as termas da Europa à procura de
tratamento, mas é difícil não chegar à conclusão que eles prejudicavam a
saúde um do outro.
Em Agosto de 1873, quando Tussy tinha repetidos desmaios em Brighton,
Marx escreveu a um camarada em Sampetersburgo a seguinte carta, «Há
meses que sofro imenso e durante algum tempo pensei que o meu estado de
saúde era crítico por causa do excesso de trabalho. A minha cabeça estava
tão gravemente afectada que julguei que iria ter um ataque.. .»^-^ Duas sema-
nas mais tarde, ao tomar uma colher de vinagre de amora na esperança de
melhorar, engasgou-se. «O meu rosto enegreceu, etc. Mais um segundo e eu
teria morrido.»^* Após o regresso de Tussy a Londres, ele começou a pensar na
«séria possibilidade de ter uma apoplexia»". Ao princípio, o médico julgou que
ele talvez tivesse sofrido um ataque cardíaco, mas, depois, chegou à conclu-
são de que se tinha tratado de exaustão nervosa. A 24 de Novembro, e para
alívio de Jenny Marx, pai e filha foram para umas termas em Harrogate.
Ambos desfrutaram as três semanas de repouso e banhos, mas Marx não
poupou o seu torturado cérebro e passou o tempo a 1er Saint-Beuve, autor
que nunca apreciara. «Este homem deve ter-se tornado famoso em França
porque encarna, sob todos os aspectos, a vanitéítancesã... pavoneando-se
em trajes românticos e falando idiomas recentemente cunhados», escreveu
o OURIÇO TOSQUIADO ^^305
a Engels. «Não era o livro ideal para o fazer esquecer aquele outro francês
por quem a filha estava apaixonada. Mas parecia estar bastante alegre, e isso
apesar do facto de ter uma crise de furúnculos ao chegar a Modena Villas e
os jornais publicarem uma série de mexericos a propósito da sua saúde. «Não
dando sinais de vida, eu mesmo permito que a imprensa inglesa noticie a minha
morte de vez em quando», explicou a Kugelmann. «Estou-me nas tintas para
o púbMco e, se por vezes a minha doença é exagerada, isso tem a vantagem
de me poupar toda o tipo de solicitações (teóricas e outras) por parte de
pessoas que não conheço e provenientes dos quatro cantos do mundo.»^^
Ao regressar a Londres, tinha passado um dia em Manchester para ser
examinado por um amigo de Engels, o Dr. Eduard Gumpert, que detectou
«uma certa dilatação do fígado» e lhe recomendou uma temporada na cida-
de termal de Carlsbad, na Boémia. Como isso o obrigava a atravessar a Ale-
manha e arriscar-se a ser preso como elemento subversivo, Marx achou que
não era possível. Mas teve então uma ideia: um refugiado que vivia em In-
glaterra há mais de um ano tinha direito à nacionalidade britânica e usufruía,
por conseguinte, de toda a protecção de Sua Majestade Britânica contra os
guardas da fronteira. Após ter submetido o seu requerimento ao Ministério
do Interior, juntamente com atestados de quatro vizinhos de Hampstead a
testemunhar a sua «idoneidade moral», ele e Eleanor partiram para a Alema-
nha a 15 de Agosto de 1874, julgando que o certificado de naturalização lhe
seria remetido dentro de alguns dias. A 26 de Agosto, contudo, o secretário
do Ministério do Interior escreveu-lhe para o informar que o seu pedido fora
rejeitado. Não foi dado nenhum motivo, mas uma carta confidencial de 17
de Agosto enviada pela Scotland Yard ao Ministério do Interior e actual-
mente no Departamento de Arquivos Públicos, revela o seguinte:
o jovem Heinrich Heine que, ao conhecer Goethe, ficou tão intimidado que
só conseguiu falar das deliciosas ameixas que se encontravam ao longo da
estrada entre Jena e Weimar. Mas Marx não era de modo algum tão distante,
ou antipático, como o velho Goethe, e recebeu Kautsky com um sorriso ami-
gável, perguntando-lhe se era parecido com a mãe, a popular escritora, Minna
Kautsky. Nem por isso, respondeu Kautsky jovialmente sem se aperceber
que Marx, o qual antipatizara de imediato com os seus ruidosos modos
juvenis, felicitava mudamente a Sra. Kautsky pela sorte que tinha tido.
«Independentemente do que Marx possa ter pensado de mim», escreveu
Kautsky muitos anos mais tarde. «A verdade é que nunca me manifestou o
mais pequeno sinal de má vontade.»^''^ Como Marx, em privado, considera-
va Karl Kautsky um «medíocre imbecil», tal tolerância prova que o seu
carácter se tornara mais ameno.
Já não se arreliava com as difamações nem com as faltas de precisão dos
seus adversários. «Se tivesse de contestar tudo o que tem sido dito e escrito
sobre mim», confessou a um entrevistador americano em 1879. «Precisaria
de uma data de secretários.»^^ Uma biografia «tendenciosa» publicada por um
editor de Haarlem foi desdenhosamente ignorada. «Não respondo a pica-
das», explicou ao ser convidado para comentar o Uvro por um jornal holan-
dês. «Na minha juventude, reagia por vezes com violência, mas uma pessoa
torna-se mais sensata com a idade e não desperdiça energia inutilmente.»^''
A idade também lhe conferia eminência; até mesmo os ingleses, que o tinham
ignorado durante 30 anos (quando não o denegriam como assassino), come-
çavam agora a manifestar certa curiosidade e respeito pela sua pessoa. Em
1879, a princesa coroada, Victoria, filha da rainha inglesa e mulher do futu-
ro imperador alemão, Frederico Guilherme, pediu a um velho político libe-
ral que lhe contasse o que sabia sobre esse tal Marx. O membro do Parlamen-
to, Sir Mountstuart Elphinstone Grant Duff, teve de admitir que nada sabia,
mas prometeu que iria convidar o «Doutor Terrorista Vermelho» para almo-
çar e que, depois, a viria informar.
A julgar pelas posteriores cartas de Sir Mountstuart à princesa, Marx
portara-se lindamente durante o almoço de três horas que tivera lugar no
Devonshire Club, em St. James.
«No decorrer da conversa, Karl Marx mencionou várias vezes Sua Al-
teza Imperial e a princesa coroada sempre com o devido respeito. E mes-
m o quando falou de indivíduos eminentes de forma menos respeitosa
nunca manifestou azedume nem má-fé — muitas críticas azedas e corro-
sivas, mas nada que se compare ao tom que Marx emprega normalmente.
Falou como qualquer pessoas respeitável faria de todas as horríveis
coisas atribuídas à Internacional...
o OURIÇO TOSQUIADO 0^311
dio da associação entre Marx e Darwin poderia ter terminado nessa altura.
A data dessa carta é de 13 de Outubro de 1880:
Esta carta foi publicada pela primeira vez em 1931 num jornal soviéti-
co. Sob a Bandeira do Marxismo, o qual formulou a hipótese de a «encomen-
da» ter sido dois capítulos da edição inglesa de O Capitúlele tinham a ver com
a teoria da evolução. É evidente que isso é absurdo, pois o livro só foi tra-
duzido para o inglês em 1886, três anos depois da morte de Marx.
E, a seguir, Isaiah Berlin aumentou ainda mais a confusão, afirmando no
seu influente ensaio sobre Marx, publicado em 1939, que fora a edição origi-
nal alemã que Marx tinha querido dedicar a Darwin, «por quem tinha uma
maior admiração intelectual do que por qualquer outro dos seus contempo-
râneos». Segundo Berlin, «Darwin declinou a honra numa carta deUcada e
prudente, dizendo que, infelizmente, nada sabia de economia, mas desejando
314^^ KARL MARX .. ':
ao autor boa sorte para alcançar o que ele assumia ser o objectivo comum
de ambos — o progresso do conhecimento humano»^'*. Berlin conseguiu,
assim, fundir as duas cartas numa, negligenciando completamente o facto de
O Capital— com a sua dedicatória a Wühelm Wolff — ter aparecido em 1867,
13 anos antes de Marx ter, supostamente, oferecido tal «honra» a Darwin,
Desde a Segunda Guerra Mundial que todos aqueles que escreveram so-
bre Marx (e mmtos sobre Darwin) têm aceitado a lenda da dedicatória recu-
sada, diferindo apenas entre eles na questão de saber de que edição se trata.
«Marx desejava certamente dedicar a segunda edição de O Capitais, Darwin»,
escreveu David McLellan na sua biografia de 1973 — afirmação que ainda
podemos ver na mais recente edição em livro de bolso (1995). Isto não é mais
plausível do que a teoria de Isaiah Berlin: somente depois da morte de Marx
é que o volume II foi composto por Engels a partir de vários manuscritos
e notas. Darwin não pode ter sido solicitado para «1er provas tipográficas»
em 1880, pois tais páginas não existiam. Além disso, a introdução de Engels
ao segundo volume confirma que «o segundo e o terceiro livro de O Capital
eram para ser dedicados, como o Mouro declarara repetidas ve:(es, à mulher.»
Tudo sobre a segunda «carta a Marx» soa a falso. Por que é que Darwin
se apoquentaria com «ataques contra a religião», quando o livro que lhe ti-
nham mandado era sobre economia política? No entanto, nenhum sobro-
lho se ergueu de perplexidade até 1967, ano em que o professor Shlomo
Avineri argumentou na revista Encounter o^ç. as apreensões de Marx quanto
à aplicação política do darwinismo tornou «impensável» a possibilidade do
grande comunista pedir a aprovação do grande evolucionista. Como expli-
car, então, a carta de 1880? «A dedicatória de O Capital-x Darwin foi, claro
está, feita por ironia...», propôs ele de forma pouco convincente.. ?^
O cepticismo de Avineri — se não a conclusão a que chegou — comu-
nicou algo a Margaret Fay, jovem Hcenciada da universidade da Califórnia,
quando esta leu o artigo da Encounter sett anos mais tarde. <A. impressão que
senti nas entranhas levou-me a ir inúmeras vezes e ao acaso à biblioteca de
biologia», escreveu Fay. «Onde vagueei folheando várias biografias de
Darwin e interpretações marxistas da sua teoria da evolução para ver se
haveria, afinal de contas, algum significado poKtico na obra de Darwin que
me tivesse escapado.» Mas em vez disso, e por sorte, ela encontrou um pe-
queno volume intitulado Darwin para Estudantes. Nada tinha de especial,
apenas uma exposição bastante escolar da teoria da evolução. O que lhe cha-
o OURIÇO TOSQUIADO o » ^ 315
do volume de 822 páginas foram abertas. É-se forçado a concluir que ele só
lançou uma vista de olhos ao primeiro ou segundo capítulo antes de enviar os
seus agradecimentos — e nunca mais voltou a pôr-lhe a vista em cima.
«Um inglês ti'pico», teria Marx provavelmente resmungado se soubesse
a verdade. Ao 1er pela primeira vez A Origem das E.ípécies, tinha prevenido
Engels que «uma pessoa tem, claro está, de tolerar o desajeitado estilo inglês
de argumentação». E a reacção incompreensível muda a O Capitai conv&a-
ceu-o de que «o particular dom de cretinice fleumática» era um direito ad-
quirido por todos os ingleses à nascença.
Graças a outra farsa do destino, o mestre da dialéctica tinha sido exila-
do para o país mais filisteu do planeta — uma terra governada por instinto
e empirismo grosseiro, onde a palavra «intelectual» era um insulto mortal.
«Apesar de Marx viver há muito tempo em Inglaterra», o advogado Sir John
MacdonneU escreveu no número de Março de 1875 da ¥ortnightlj Remm «Ele
é aqui quase a sombra de um nome. As pessoas podem fazer-lhe a honra de
abusar dele, mas não o lêem.»-'^ O facto de não ter sido pubHcada nenhuma
edição inglesa de O Capita/ durante a sua vida, parecia a Marx um sintoma,
e não uma causa, da miopia nacional. («Agradecemos-lhe muito a sua car-
ta», escreveu Macmillan & Co. a um amigo de Engels, Carl Schorlemmer,
professor de química orgânica da Universidade de Manchester. «Mas não
acolhemos favoravelmente a proposta de uma tradução de Das Kapital») A
barreira linguística era um obstáculo intransponível para os raros ingleses que
desejavam realmente 1er o livro. Um antigo camarada da Internacional, Peter
Fox, disse que, ao oferecerem-lhe um exemplar, se sentiu como um homem
a quem tinham dado um elefante e não sabia o que fazer com ele. Por entre
os papéis de Marx há várias cartas desesperadas de um trabalhador escocês,
Robert Banner, a pedir ajuda:
não se preocupava muito que o plagiassem». Como tanta gente da sua classe
social, Hyndman tinha a sensibilidade de um rinoceronte anestesiado.
Felizmente, assim que Marx se zangava com u m discípulo inglês, surgia
logo outro — muito embora, desta vez, ele tivesse tomado a precaução de
nunca o conhecer pessoalmente, pois receava ver-se a braços com outra
complacente picareta falante. Ernest Beifort Bax, nascido em 1854, provi-
nha de uma família da classe média de fabricantes de impermeáveis e cris-
tãos devotos, mas a Comuna de Paris tinha-o radicalizado quando ainda an-
dava na escola. E m 1879, a revista mensal de cultura, Modern Thought, iniciou
a publicação de uma longa série de artigos sobre os líderes intelectuais da época,
incluindo pareceres de Schopenhauer, Wagner e, em 1881, Marx. Tendo es-
tudado filosofia hegeliana na Alemanha, Bax era o único socialista inglês da
sua geração a aceitar que a dialéctica era a força motriz interior da vida. Des-
creu O Capital como um livro «que formula o funcionamento de uma dou-
trina em economia comparável, na sua natureza revolucionária e importân-
cia global, ao sistema astronómico de Copérnio ou à lei da gravidade»."*^
Marx ficou todo contente: tinha, finalmente, encontrado um «bife» que
o compreendia. «É a primeira publicação do género imbuída de um verda-
deiro entusiasmo por ideias novas que ousa enfrentar a burguesia britânica»,
escreveu a Friedrich Adolph Sorge, veterano de '48 que vivia nos EUA'^''. Mas
o melhor foi que 2L Modern Thought •àn^on cartazes anunciando o artigo nas
paredes do bairro de West End, em Londres. Quando Marx leu os comen-
tários de Bax à mulher doente, esta melhorou imediatamente.
que quer que seja, excepto atenuar a nossa própria impotência.» N o entan-
to, a criança era, pelo menos, um rapaz. E m b o r a Jenny Marx desejasse uma
neta, «por mim, prefiro que as crianças nascidas neste m o m e n t o da história
sejam do sexo masculino. T ê m diante delas a época mais revolucionária
jamais vivida pelo homem. Ser "velho" e poder apenas prever e não ver é que
é mau».^*^
Tanto ele como a mulher sentiam ter a idade de Matusalém. Karl toma-
va banhos turcos para tratar a perna tolhida pelo reumático e Jenny estava
cada vez mais magra e passava dias seguidos na cama. Iam passear de vez em
quando ou, então, ao teatro, mas Marx sabia que não havia cura. Jenny tinha
u m cancro. «Aqui entre nós, a doença da minha mulher é, infelizmente,
incurável», escreveu em Junho de 1881 ao seu velho amigo, Sorge. «Vou levá-
-la a passar uma temporada à beira-mar, em Eastbourne, dentro de alguns
dias.»^^ Enquanto lá estiveram, ela foi obrigada a andar numa cadeira de rodas
— «coisa que eu, um "p&àtsttepar excellence, teria considerado abaixo da minha
dignidade há uns meses».
Depois de passar duas semanas na costa sul, Jeny}'^ ganhou suficientes
forças para atravessar o canal com Karl, a fim de visitar o novo neto. Mas,
ao chegar a Argenteuil, teve uma crise de diarreia. A anfitriã também não es-
tava lá muito bem. «A casa da Jennychen tem muitas correntes de ar e a asma
dela piorou», escreveu Marx a Engels. «Mas, como sempre, mostra-se herói-
ca.»^^ Foi então que chegou a notícia de Inglaterra de que Tussy fora atacada
por uma doença terrível, mas não especificada, e regressou apressadamen-
te a Londres sozinho para se dar conta do que tinha acontecido. Encontrou
a filha num estado de «abatimento nervoso total» que, actualmente, seria dia-
gnosticado de anorexia. «Há semanas que não come quase nada», escreveu
a Engels. «Donkin [o médico] diz que não há nenhum problema orgânico.
O coração e os pulmões estão bons, e a causa do seu estado deve-se funda-
mentalmente ao facto de o estômago não funcionar por se ter desabituado
à comida (complicação que ela tornou pior porque bebe muito chá, coisa que
ele imediatamente lhe proibiu de tomar) e a uma grave perturbação do sis-
tema nervoso.»^^
Jenny Marx voltou a Londres umas semanas mais tarde, acompanhada
pela infatigável Helene D e m u t h , e caiu logo de cama. E m princípios de
Outubro, Marx convenceu-se de que a vida dela «estava a aproximar-se do
fim»^'^. Ele mesmo estava de cama com bronquite, mas reanimou ao saber
que o Partido Social Democrata alemão tinha ganho 12 lugares Reichstag.
322-^^ KARLÎvIARX
«Se houve um acontecimento exterior que contribuiu para pôr Marx mais ou
menos bom de novo, foram estas eleições», escreveu Engels a Eduard Bern-
stein no fim de Novembro. «Nunca o proletariado se portou de m o d o tão
magnífico... N a Alemanha, após três anos de perseguições sem preceden-
tes e pressões constantes durante os quais qualquer forma de organização
pública e até m e s m o de comunicação era impossível, os nossos rapazes
voltaram à carga, não só com toda a sua antiga força mas realmente mais
fortes do que dantes.»^^
Jenny Marx morreu a 2 de Dezembro de 1881. Durante as últimas três
semanas, ela e o marido nem sequer conseguiram ver-se; a pleurisia tinha
compHcado a bronquite de Marx e ele fora confinado num quarto ao lado
sem poder mexer-se. As últimas palavras dela foram para o chamar e gritar-
-Ihe em inglês: «Karl, estou a perder as forças...» O médico proibiu-o de
assistir ao funeral, o qual teve lugar três dias mais tarde a u m canto de terra
não consagrada do cemitério de Highgate. Entretanto, a consolação de Karl
Marx foi a lembrança do raspanete que Jenny dera a uma enfermeira um dia
antes de morrer, a propósito de uma formalidade negligenciada: «Nós não
somos gente externa dessa! 56
A outra distracção do pesar que ele sentia era o seu próprio estado de
saúde. Tinha de esfregar o peito e o pescoço com tintura de iodo várias vezes
ao dia. «Só existe um único antídoto eficaz para o sofrimento mental: a dor
física», escreveu. «O fim do mundo não é comparável a uma dor de dentes.»
Engels afirmou que Marx tinha, a partir daquele momento, morrido —
observação cruel que continha, contudo, uma terrível verdade. Durante os
últimos dias de vida de Jenny, exausto por insónias e falta de exercício, ele
contraiu a doença que acabaria por matá-lo. Embora o editor alemão tenha
escolhido esta inoportona altura para lhe pedir uma nova edição de O Capi-
tal, Marx não podia pensar em trabalhar. A conselho do médico e acompa-
nhado por Eleanor, passou duas semanas no «cHma mais quente e ar seco»
da üha de Wight — debaixo de tempestade e chuva, além de temperaturas
abaixo de zero. Graças aos caprichos do tempo, o catarro brônquico piorou
e um médico local teve de lhe dar uma máscara de oxigénio para ele poder
passear em Ventnor.
O comportamento de Eleanor, que continuava sem comer nem dormir
como devia ser, oscilava entre um silêncio mal-humorado e crises de «natu-
reza alarmantemente histéricas». As suas ambições de uma carreira teatral
tinham-se agora tornado numa necessidade quase física, e até esta fome ser
o OURIÇO TOSQUIADO *vlj"'323
saciada não conseguia alimentar os seus outros apetites. O dia em que regres-
saram de Ventnor, 16 de Janeiro de 1882, coincidiu com o aniversário de
Eleanor (27 anos), dolorosa lembrança que os seus melhores anos estavam
a ser sacrificados no altar do dever famüiar. Marx sabia que tinha de a libertar.
«Quanto a planos para o ñituro», escreveu a Engels a 12 de Janeiro, <A. minha
primeira consideração é de dispensar Tussy do papel de m e fazer compa-
nhia. .. A rapariga encontra-se sob tal pressão mental que a sua saúde está
a deteriorar-se a olhos vistos. N e m viagens, nem mudanças de cUrna, nem
os médicos podem fazer nada neste caso.»
N o entanto, para Marx, uma mudança de clima era urgentemente neces-
sária: não havia alívio para o seu catarro — «esta maldita doença inglesa» —
a não ser que fugisse do Inverno na Inglaterra. Como não podia entrar em
Itália (um h o m e m tinha recentemente sido preso em Milão apenas porqué
se chamava Marx), decidiu abandonar a Europa pela primeira vez e, a 18 de
Fevereiro, partiu para a Argélia de barco.
Assim começou u m ano de vagabundagem constante: três meses na
Argélia, u m mês em Monte Cario, outros três meses com os Longuet em
Argenteuil, um mês na estância suíça de Vevey. Com cómica consistência,
a sua chegada a estes lugares era acompanhada de chuvas torrenciais e tem-
pestades, mesmo nos sítios onde há pouco o sol brilhava. Voltou a Londres
em Outubro, mas o frio e a humidade obrigaram-no a partir de novo para
Ventnor, onde permaneceu até Janeiro de 1883. N a década de 1840, tinha
andado pelas capitais europeias varrido pelas rajadas da revolução e da
reacção, mas, agora, movido apenas por uma irritação nos brônquios, tor-
nara-se novamente num nómada. A história repetia-se, desta vez como uma
farsa um tanto enfadonha. N a Argélia, raramente se dava ao incómodo de
1er jornais, preferindo visitar os jardins botânicos, conversar com pessoas
hospedadas no mesmo hotel ou simplesmente contemplar o mar. Para que
é que, agora, serviam o materialismo e a dialéctica? Contou uma fábula ára-
be numa carta a Laura que parecia aparentar-se com a sua situação actual:
Eleanor e Helene. Desde que tinha partido de França que o pequeno Johnny
Longuet andava endiabrado («tornou-se traquinas por tédio», deduziu Marx)
e, quando Eleanor voltou a Londres em meados de Agosto, levou-o miúdo
de seis anos com ela, prometendo educá-lo e discipliná-lo durante alguns
meses. A esperança de escapar à escravatura do dever tinha-se gorado: de en-
fermeira do pai passara a governanta do sobrinho em menos de um ano. Mas
esta nova responsabilidade proporcionou grandes alegrias a Eleanor e, den-
tro de pouco tempo, tratava Johnny como se fosse filho dela. O s irmãos,
Edgar e LIarry, foram passar férias com o pai a Calvados no fim de Agosto,
deixando Jennjcòen apenas com o bebé, Marcel. Mas ela continuava fatigada
e com dores constantes. E, finalmente, depois de dar à luz uma menina
(baptizada Jenny, mas mais conhecida por Memé), acabou por confessar o
seu mal numa carta a Eleanor: «Não desejo a ninguém as torturas que sofro
há oito meses; são indescritíveis e, agora ter de dar de mamar ao bebé torna
a minha vida no inferno.»'''^ Insistia para que a irmã nada dissesse ao Mouro.
Mas um Verão passado debaixo do mesmo tecto tinha dado inúmeras indi-
cações que havia algo de grave. D a sua residência de Inverno na ilha Wright,
Marx escreveu regularmente a pedir notícias da «pobre Jennychen» e do bebé.
«Aflige-me imenso, pois receio bem que ela não possa suportar u m fardo
desses», disse a Eleanor.
Marx nada podia fazer para aliviar tal fardo. Passou a maior parte do mês
de D e z e m b r o sem poder sair do seu alojamento, em St. Boniface, 1, por
causa de uma crise de catarro na traqueia — apesar da pleurisia e da bron-
quite se encontrarem, agora, temporariamente controladas. («Isto é bastan-
te encorajador, pois a maior parte dos meus contemporâneos, quer dizer,
gente da mesma idade, estão a esticar o pernil como tordos.»)''^
A 5 de Janeiro de 1883, foi informado por Lafargues que a doença de
Jennychen tinha atingido um ponto crítico e, na manhã seguinte, Marx acor-
dou com um ataque de tosse tão violento que julgou que ia morrer sufocado.
Havia, por acaso, alguma relação entre estes dois acontecimentos? Pergun-
tou a um médico local, um amável jovem originário de Yorkshire chamado
James Williamson, se a angústia mental tinha «influência sobre o fluxo da
mucosidade».''^
Jenny Longuet morreu às cinco da tarde do dia 11 de Janeiro, com 38 anos
de idade e Eleanor partiu para Vantoor assim que soube da notícia.
326 ^ f c I<CARL MARX
«Vivi muitas horas tristes, mas nenhuma tão triste como esta. Senti
que levava ao meu pai a sua sentença de morte. Ao longo de toda a via-
gem, dei voltas à cabeça para encontrar uma maneira de lhe transmitir a
notícia. Mas não houve necessidade de o fazer, porque a expressão do meu
rosto denunciou-me, e o Mouro disse imediatamente, "a no^y^y. Jennychen
morreu". E, a seguir, insistiu logo comigo para que fosse a Paris tratar das
crianças. Queria ficar com ele, mas ele não me deixou. Há meia hora que
tinha chegado a Ventnor e já era obrigado a voltar a Londres e, de lá, para
Paris. Estava a fazer o que o Mouro queria por causa das crianças.
Nada mais direi sobre o meu regresso. Sempre que penso que nesse
momento tenho arrepios. A angústia e o tormento que foi. Mas já chega.
E u voltei e o Mouro regressou a casa para morrer.»""^
CONSEQUÊNCIAS
CONFISSÕES
REGICIDA
Marx Meyer
MECW Karl Marx, Frederick Engels, Collected Works (47 volumes publicados desde 1975
por Progress Publishers, Moscovo, e preparados em colaboração com
International Publishers Co. Inc., Nova Iorque, and Lawrence & Wishart,
Londres).
RME K.eminiscences of Marx and Engels (Foreign Languages Publishing House,
Moscovo, sem data)
KMIR Karl Marx: Interviews and RecoUecüons
1. O MARGINAL
12. De Great Men of the Exile, de Karl Marx e Friedrich Engels, traduzido em The (
Communist Trial (Lawrence & Wishart, Londres, 1971), p.l66
13. Carta de FE a Marie Engels, 29 de Outubro de 1840.
14. Marx-Engels Gesamtausgabe, I i (2), p. 257, traduzido em KarlMarx, de Werner Blumenber
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15. De Erlebtes, de Kari Marx (Boston, Mass., 1874), em KMIR, pp. 5-6
16. Yet Against the Current: TheUfeof KarlHein^ien 1809-80, de Carl Wittke (University of
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17. De Karl Marx: Biographical Memoirs, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Unter-
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18. Rheinische Zeitung, 16 de Outubro de 1842, traduzido em MECIV, Vol. I, p. 220
19. Carta de KM a Arnold Ruge, 30 de Novembro de 1842
20. D e ^ Contribution to the Critique of Political Economy (1859), traduzido em The Portable K
Marx (Penguin Books, Nova Iorque, 1983), p. 158
21. Rheinische Zeitung, 25 de Outubro de 1842, traduzido em MECW, Vol. I, p. 225
22. Carta de KM a Arnold Ruge, 9 de Julho de 1842
23. De Kari Marx ais Mensch, de Wilhelm Bios, Die Glocke v (1919), traduzido em KMIR,
pp. 3-4
24. Carta de KM a Arnold Ruge, 25 de Janeiro de 1843
25. Carta de KM a Arnold Ruge, 25 de Janeiro de 1843
26. Carta de KM a Arnold Ruge, 13 de Março de 1843
27. Carta de Jenny von Westphalen a KM, 10 de Agosto de 1841
28. De RedJenny: A Eife with Karl Marx, de H. F. Peters (Allen & Unwin, Londres, 1986)
29. Carta de Jenny von Westphalen a KM, c. 1839-40
30. Carta de KM a Ludwig Feuerbach, 3 de Outubro de 1843
31. Carta de KM a Ludwig Feuerbach, 11 de Agosto de 1844
32. Carta de KM a FE, 30 de Julho de 1862
33. Karl Marx: Early Writings, traduzido por Rodney Livingstone e Gregor Benton (Pelican
Books, Londres, 1975), pp. 212-41
34. KarlMarx: Early Writings, traduzido por Rodney Livingstone e Gregor Benson (Pelican
Books, Londres, 1975), pp. 243-57
3. O REI CORRUPTO
4. O RATO NO SÓTÃO
5. O PAPÃO ATERRADOR
6. O MEGALOSSAURO
28. Friedrich Engels: His Tife and Thought, de Terrell Carver (Macmillan, Londres e
Basingstoke, 1989)
29. Carta de Terrell Carver, Sunday Times, Londres, 27 de Junho de 1982
30. Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 2 de Agosto de 1851
31. Carta de FE a KM, 20 de Abril de 1852
7. OS LOBOS FAMINTOS
8. O HERÓI A CAVALO
64. De The Socialism of KarlMarx and the Young Hegelians, de John Rae, Contemporary Kepie
vol. XL, Outubro de 1881, p. 585
65. Carta de KM a Collet Dobson Collet, 6 de Setembro de 1871
66. The Times, 2 de Setembro de 1851
67. Ver The "Ked Doctor" Amongst the Virtuosi: Karl Marx and the Society, de D. G. C. Allan,
Journal of the Royal Society of Arts, Vol. 129 (1981), pp. 259-61 e 309-311
68. Carta de Jenny Marx (filha) a FE, 2 de Julho de 1869
69. De Karl Marx: Biographical Memories, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Unter-
mann (Londres, 1901)
70. De The Introduction and CriticallReception of MarxistThought in Britain, 1850-1900, de Kirk
Wilüs, The Historical Journal, 20, 2 (1977), pp. 417-459
71. Carta de KM a FE, 18 de Junho de 1862
72. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 28 de Dezembro de 1862
9. OS BULDOGUES E A HIENA
16. The Age of Capital, E.J. Hobsbawn (Abacus, Londrs, 1977), pp. 134-5
17. Carta de KM FE, 9 de Abril de 1863
18. Marx, de Robert Payne (W H. Allen, Londres, 1968), p. 322
19. The Social and Political Tought of Karl Marx, de Schlomo Avineri (Cambridge University
Press, 1968), p. 63
20. Para uma minuciosa dissecação dos erros de Avineri, ver apêndice em Karl Marx's
. Theorrj of K£volution — Volume II: The Politics of Social Classes, de Hal Draper (Month
Review Press, Nova Iorque, 1978), pp. 635ff
21. De Neue Rheinische Zeitung, Politisch-ökonomische Revue, N.°' 5-6, 1850
22. Carta de KM a FE, 9 de Fevereiro de 1859
23. Carta de KM a FE, 18 de Maio de 1859
24. Carta de KM a FE, 26 de Setembro de 1866
25. Todas as citações das minutas são tiradas de The General Council of the First International
compilação em cinco volumes dos registos do Conselho, publicada por Foreign Lan-
guages Publishing House, Moscovo
26. Carta de KM a FE, 4 de Novembro de 1864
27. Carta de KM a Laura Marx, 20 de Março de 1866
28. Carta de KM a FE, 20 de Junho de 1866
29. Carta de KM a FE, 13 de Março de 1865
30. Carta de FE a Laura Lafargue (nascida Marx), 24 de Junho de 1883
31. Carta de FE a KM, 12 de Abril de 1865
32. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 1865
33. Carta de KM a FE, 1 de Maio de 1865
34. Carta de 1<M a FE, 31 de Julho de 1865
35. Carta de KM a Paul Lafargue, 13 de Agosto de 1866
36. Carta de KM a FE, 11 de Novembro de 1882
37. Carta de KM a Paul Lafargue, 13 de Agosto de 1866
38. Carta de KM a FE, 6 de Março de 1868
39. Ver carta de Laura Lafargue a FE, 6 de Março de 1893, na Correspondência Engels-
-Lafargue, Vol. III, pp. 246-7
40. Carta de Laura Marx a FE, 16 de Outubro de 1893, na Correspondência Engels-
• -Lafargue, Vol. III, p. 304
41. Carta de Jenny Marx a Wilhelm Liebknecht, 26 de Maio de 1872
1. Karl Marx: A Political Biography, de Fritz J. Raddatz, traduzido por Richard Barry,
(Weidenfeld & Nicholson, Londres, 1978), p. 207
2. Karl Marx, de E.H. Carr (J. M. Dent & Sons, Londres, 1934), p. 224
3. Karl Marx: His Ufe and Environment, de Isaiah Berlin (Butterworh, Londres, 1939), p. 79
4. Archives Bakounine, editado por A. Lehning (International Institute for Social History,
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5. Democratic Pan-Slavism, de Friedrich Engels, Neue RJjeinische Zeitung, 15 de Fevereiro de
1849
6. Carta de KM a FE, 12 de Setembro de 1863
7. Carta de I<M a FE, 4 de Novembro de 1864
8. Michael Bakounin, de E. H. Carr (Vintage Books, Nova Iorque, 1961)
9. Discurso «Aos Membros da Associação Internacional dos Trabalhadores da Europa e
dos EUA» publicado por IWMA, Julho de 1870
10. Minutas do ConselhoGeral, 22 de Agosto de 1870
11. Carta de KM a Ferdinand Lassalle, 4 de Fevereiro de 1859
12. Carta de KM a FE, 17 de Agosto de 1870
13. Carta de KM a Paul e Laura Lafargue, 28 de Julho de 1870
14. Carta de Jenny Marx a FE, 10 de Agosto de 1870
15. Carta de FE a KM, 31 de Julho de 1870
16. Cartade KM a FE, 8 de Agosto de 1870
17. Discurso «Aos Membros da Associação Internacional dos Trabalhadores da Europa
e dos EUA», publicado por IWMA, Setembro de 1870
18. Carta de KM a Friedrich Adolph Sorge, 1 de Setembro de 1870
19. Ti)í Tiwé-J, 22 de Março de 1871
20. Carta de KM a Wilhelm Liebknecht, 6 de Abril de 1871
21. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 12 de Abril de 1871
22. Ver, por exemplo, Karl Marx: A Biography, de David McLellan, p. 359
23. Carta de Jenny Marx (filha) aos Kugelmann, 18 de Abril de 1871
24. The Civil War in France (Edward Truelove, Londres, Junho de 1871)
25. «A Internacional Dirigida à Classe Operária», de Joseph Mazzini, Contemporary Revue,
XX (Julho de 1872), 155
26. The Times, 16 de Abril de 1872
27. The Commune of 1871, de EBM, Fraser's Magai^ine, Junho de 1871
^8. The Tablet, 15 de Julho de 1871
29. jr^íí-/«/or, 17 de Junho de 1871
30. «O Proletariado numa Falsa Pista», de W. R. Gt&^, Quarterly Revieiv CXXXII (Janeiro
de 1872), p. 133
3 5 2 * 1 ^ KARL MARX
«Marx e Darwin: Uma História Policial Literária», de Margaret A. Fay, Monthly Review
(Nova Iorque), Vol. 31, N.° 10 (Março de 1980), pp. 40-57; «O Mito da Carta Marx-
-Darwin», de Ralph Colp Jr, History of Political Economy (Duke University, CaroHna do
Norte, Vol. 14, N.° 4 (Inverno de 1982), pp. 461-82
34. De Karl Marx, por Isaiah Berlin (Thornton Butterworth, Londres, 1939) p. 218
35. «De Brincadeira a Dogma: Uma nota de rodapé sobre Marx e Darwin», de Schlomo
Avineri, Encounter, Vol. XXVIII (Março de 1967) pp. 30-32
36. Spectator, 17 de Outubro de 1998
37. «Karl Marx e o Socialismo Alemão», de John Macdonneil, Fortnightly Review, 1 de Março
de 1875
38. Carta de Macmillan & Co. (Londres) ao professor Carl Schorlemmer, 25 de Maio de
1883
39. Carta de Robert Banner a KM, 6 de Dezembro de 1880
40. The Record of an Adventurous Life, de H. M. Hyndman (Macmillan, Londres, 1911)
pp. 271-2
41. V&c The Proud Tower: A Portrait of the World Before the War, 1800-1914, de Barbara Tuch
man (Macmillan, Londres, 1980), p. 360
42. Hyndman, p. 273
43. «As Minhas Recordações de Karl Marx», de Marian Comyn em Nineteen Century and
_4r/f;r (Londres, 1922), pp. 161 ff.
44. Carta de KM Jenny Longuet, 11 de Abril de 1881
45. Ver The Victorian Encounter with Marx: A Study of Ernest Beifort Bax, de John Cowley
(British Academy Press, Londres & Nova Iorque, 1992)
46. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 15 de Dezembro de 1881
47. Carta de FE a Johann Philipp Becker, 17 de Agosto de 1880
48. Citado em EleanorMarx, Vol. I, de Yvonne Kapp (Lawrence & Wishart, Londres, 1972),
pp. 215-16
49. Carta de KM a Nikolai Danielson, 19 de Fevereiro del 881
50. Carta de KM a Jenny Longuet, 29 de Abril de 1881
51. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 20 de Junho de 1881
52. Carta de KM a FE, 9 de Agosto de 1881
53. Carta de KM a FE, 18 de Agosto de 1881
54. Carta de KM a Kari Kautsky, 1 de Outubro de 1881
55. Carta de FE a Eduard Bernstein, 30 de Novembro de 1881
56. Ver carta de KM a Jenny Longuet, 7 de Dezembro de 1881
57. Carta de KM a Laura Lafargue, 13 e 14 de Abril de 1882
58. A mulher era Virginia Bateman, mãe do romancista Compton Mackenzie. As suas
reminiscências podem ser encontradas em My Efe and Times, de Compton Mackenzie
(Londres, 1968), Vol. VII, p. 181
NOTAS FINAIS ^ J 355
propensão para a folia, 20-21, 31-32, 35- O Debito Brumário de Fuis Bonaparte, 15,29,
-37, 40-42, 44, 70-71, 84-85, 221-222 166, 210, 277
protelação, 107-109 Pobreza da Filosofia, 59, 98-100
prudência diplomática, 45-7 Proclamação sobre a Polónia, 232
qualidade para o ensino, 138 'Revelações a Respeito do Julgamento dos Comu-
Questionário Proust, 331-332 nistas da Colónia, 168
talento como contador de histórias 15, 68- trabalhos antigos com título, 26-27
-69, 193 Um Comunicado à Classe Operária, 242-244
técnica de argumentação, 138-139 Valor, Preço e Fuero, 260-61
Introdução 9
1. O Marginal 15
2. O Pequeno Javali Selvagem 35
3. O Rei Corrupto 61
4. O Rato no Sótão 85
5. O Papão Aterrador 105
6. O Megalossauro 133
7. Os Lobos Famintos 157
8. O Herói a Cavalo 187
9. Os Buldogues e a Hiena 225
10. O Cão Peludo 253
11. O Elefante Velhaco 271
12. O Ouriço Tosquiado 299
P.S. 1: Consequências 329
P.S. 2: Confissões 331
P.S. 3: Regicídio 333
Agradecimentos 335
Notas Finais 337
índice Remissivo 357
rancis wheen e um jornalista e escritor
e reconhecido talento.Trabalhou como
freelancer em jornais e revistas, entre os quais
The Statesmanjhe Independente
The Guardian. Foi ainda como locutor na BBC.
Na sua obra constam títulos como a famosa
biografia de Tom Driberg, que esteve nomeada
para o prémio Whitbread. KarlMarxM
considerado pela crítica especializada
o melhor livro do ano de 1999.
ó ' • ; HEMINGWAY
Â.F.Hotchner