Você está na página 1de 30
LEI CRIMINAL E CONTROLO DA CRIMINALIDADE (*) O PROCESSO LEGAL-SOCIAL DE CRIMINALIZACAO E DE DESCRIMINALIZACAO Pelo Doutor Jorge de Figueiredo Dias I Um dos pregos inevitéveis que houve que pagar em Por- tugal por dois anos de revolugio foi o do aumento especta- cular da criminalidade. Este aumento e, sobretudo, as suas exactas proporgdes e incidéncia no sio ainda hoje cientifi- camente demonstriveis, dado o atraso e a insuficiéncia eré- nicos dos nossos servigos estatisticos, bem como a quase com- pleta auséncia de habito de elaboragao de estudos dedicados 4 medig&o da criminalidade e ao seu controlo. Mas pode segu- ramente afirmar-se que a convicgio do aumento, e mesmo do (*) Versio modificada, em Agosto de 1976, de uma ligdo proferida em Abril desse ano ao Curso Complementar de Ciéncias Juridicas da Faculdade de Direito de Coimbra. Esta licio integrase no programa da nova cadeia de Ciencias Criminais, que constitui, a0 que se julga, a primeira experléncia, Ras Faculdades de Direito portuguesas, de uma regéncia colectiva, A direcc&o Pertencew 80 Prof. Doutor Eduardo CORREIA e os sumérios das lighes en. contram-se publicados em edigio offset: Ciéncias Criminais, Coimbra, J. Abrantes, 1976, 70 J. DE FIGUEIREDO DIAS seu car4cter espectacular, corresponde ao sentimento genera- lizado dos cidadaos. Uma tal convicgao parece ter bom fundamento. Seja qual for o conceito de crime de que se parta: um conceito pura- mente legal, como o que serve de base 4 dogmatica juridico- -penal; ou um conceito natural 4 maneira de GAROFALO, valido para todas as condigées de tempo e de espago; ou um conceito puramente sociolégico que, ao gosto dos crimindlo- gos norte-americanos, estenda a nog&o de crime até fazé-la coincidir com a de deviance; ou ainda um conceito crimino- légico que, construindo a nogio na base da lei penal, a alargue e a integre depois pela consideragdo de todos os comporta- mentos que, através de um procedimento analdgico e compa- ratistico, ponham problemas substancialmente idénticos aque- Jes que, de um ponto de vista sociolégico, so suscitados pelo fenémeno da criminalidade em sentido juridico (*). E seja qual for, por outro lado, o critério-base com que se elabore © respectivo processo estatistico: 0 critério policial, que tera em conta todos os crimes cuja noticia chegou ao conhecimento da autoridade respectiva; ou o critério judicidrio, ao qual escapam as chamadas «cifras negras» e para quem sé rele- varao os crimes que cheguem pelo menos a ser acusados; ou c critério criminolégico, que almeja englobar a totalidade de transgress6es normativas, ou comportamentos equivalentes, que tenham sido efectivamente praticados num certo lapso de ()_ Dada a finalidade eminentemente pragmatica que preside a publi- cago deste artigo ndo haverd razio para o sobrecarregar com aparato erudito e bibliogréfico. Atenta porém, por outro lado, a relativa escassez de publicagbes, entre nds, versando temas de criminologia e de politica criminal, n&o renunciaremos a fornecer algumas pistas a0 leitor interessado. Um tratamento bastante documentado do conceito de crime para efeitos criminoldgicos, se bem que jé muito longe de actualizado, pode encon- trarse na nossa lingua em M. PELAEZ, Introducéo ao Estudo da Crimi- nologia, 2.* ed., Coimbra Editora, 1974, pp. 3567; cf. depois, por exemplo, H, MANNHEIM, Comparative Criminology, vol. 1, 1965, Londres, pp. 1 ¢ ss. Neste trabalho seguiremos— tal como seguiram, na esteira ‘do preconi- zado por Eduardo CORREIA, os participantes no Curso de Ciéneias Cri- minais que referimos—um conceito criminoldgico de crime desenhado essencialmente nos termos a que o texto alude em ultimo lugar. LEI CRIMINAL E CONTROLO DA CRIMINALIDADE nm tempo (7) —sejam quais forem aquele conceito e este critério- cbase, 0 aumento sensivel da criminalidade em Portugal nos ultimos tempus parece ser um facto, susceptivel por certo das tais variadas tentativas de explicagéo mas resistente a quais- quer tentativas de contradigao. Aumento, de resto, particularmente sentido pelos cidadaos ra medida em que, numa parte importante, ele ser imputavel a um aumento do crime violento— isto 6, da chamada «cri- minalidade grave» ou «grande criminalidade» —e, assim, daquele crime que & causa principal do justo alarme social perante o seu incremento e do sentimento de medo e de inse- guranga das pessoas (*). Nao visaremos, nas consideragées que se seguem, ensaiar qualquer tentativa de explicagio causal do fenémeno. Procu- raremos, sim, debrucar-nos sobre uma outra vertente do pro- blema, qual é a das medidas de politica criminal a tomar para dominio e controlo do surto de criminalidade. E certo que os dois problemas nfo podem nem devem dissociar-se_ comple- tamente; mas nao é menos exacto que as concretas medidas de politica criminal a tomar —e, o que & muito importante, a testar na sua aplicagéo e nos seus efeitos —sio em larga medida independentes de consideragdes mais ou menos teoré- ©) Sobre este ponto ef., em sintese, a nossa ligko «Método e Inves- tigagéio em Criminologia», in Ciencias Criminais (clt.*), pp. 2224. Para mais amplos desenvolvimentos v. Maria Rosa Crucho de ALMEIDA, «Aiguns Dados Estatfsticos sobre 0 Homicidio em Portugal», separata de Pena’ de Morte, Comunicagdes ao Coléquio Internacional Comemorativo do Centenario de Abolicdio da Pena de Morte em Portugal, Coimbra, 1967, © «Notas Estatis: Hcas sobre Condenados: 1962, 1964 e 1966, separata do’ Boletim da Adm. nistracdo Penitencidria e dos Institutos dé Criminologia, ne 21; e depois M. PELAEZ, (cit., n. 1), pp. 165-178, H. MANNHEIM, (cit, n. 1), pp. 34 ¢ ss, H. GOPPINGER, Kriminologie, Munique, 1971, pp. 183 @ 83. © W. HEINZ, «Entwicklung, Aufgaben und Problem der Kriminalstatistiky, ZS!W 64, 1972, P. 806 e ss. (©) Nesta acepgio ¢ neste sentido cf. N. MORRIS/G, HAWKINS, The Honest Politician’s Guide to Crime Control, Nova Torque, 1970, Pp. 54 e ss, timinalidade e do sentimento de medo e inseguranga dos cidadaos—sentimento que, uma vez instalado, provoca uma degradacéo sensivel da sua qualidade de vida, em especial nos grandes aglomerados Populacionaisy, nm J. DE FIGUEIREDO DIAS ticas sobre a etiologia da criminalidade ou de um especifico eurto de criminalidade. De resto, nao pode ser nossa intengéo tragar, nas poucas paginas que se seguem e mesmo que fosse s6 a tracgo largo, todo um programa de luta contra o crime na sociedade portuguesa de hoje. A nossa intengdo é bem mais modesta e, exactamente, esta: chamar a atengao para o efeito que A prépria lei criminal e 4 sua reforma cabe num programa integrado de controlo da criminalidade. Para introdug’o da problematica que nos propomos tratar bem podemos, porém, servir-nos de um ponto de vista teo- retico muito actual nas discussdes sécio-criminoldégicas: 0 da chamada perspectiva interaccionista ou do labeling approach. Segundo ele (‘), a distingéo entre actos criminosos e nio-cri- nosos nao deve ser procurada nos préprios actos, mas no labéu, no estigma ou no rétulo atribuido pela sociedade a cer- tos actos. Sao os préprios grupos sociais que criam a delin- quéncia ao instituirem regras cuja violagdo se transmuda em delinquéncia, ao aplicarem estas regras a grupos ou catego- rias de pessoas e ao rotularem-nas de outsiders, desviantes ou delinquentes. S6 que estudos empiricos levados a cabo, um pouco por toda a parte, nos ultimos anos, demonstram aquilo de que logo se suspeitaria: das pessoas que cometem actos legalmente definidos como desviantes sé uma pequena parte acaba por ser como tal socialmente estigmatizada. Torna-se por isso importante, néo sé de um ponto de vista cientifico como politico-criminal, saber se o processo de filtragem, de recru- tamento ou de selecgéo da delinquéncia se desenrola em fun- Gao do acaso, ou antes em fungéo de determinadas regras reve- ladoras de uma qualquer legalidade socioldgica. () Mais desenvolvimentos sobre o ponto podem encontrarse na nossa ligho «A Perspectiva Interaccionista e o ‘Labeling Approach’, in Ciencias Criminais (cit.*), pp. 121-142. Uma excelente visio de conjunto das tomadas de posicéo mais importantes desta perspectiva sobre os problemas da delinguéncia pode encontrar-se na colectanea Deviance—an Interaccio- nist Perspective, Londres, 2.* ed., 1973, organizada por Earl RUBINGTON e M. WEINBERG. Uma sintese desta perspectiva ¢ fornecida também por Costa ANDRADE, «A Polfcia e as Insténcias N&éo Formais de Controlo», in Ciencias Criminais (cit.*), p. 208 € ss. LEI CRIMINAL E CONTROLO DA CRIMINALIDADE 13 Ora, precisamente, a perspectiva interaccionista defende que este processo de seleccio decorre de interacgdes_sociais nas quais o papel fundamental é desempenhado pelas chamadas instancias de controlo social, formais e informais. E, por outro lado, o processo de criagdo e de perecimento das normas cri- minais constitui uma etapa fundamental daquele processo so- cial mais amplo de recrutamento ou de selecgao, através do qual a sociedade estigmatiza os delinquentes. Por isso & que © processo legal-social de criminalizagéo e de descriminaliza- ¢4o constitui um comando importante, e mesmo decisivo, de Prevengéo € controlo da delinquéncia e de defesa da socie- dade perante ela. Seja qual for o relevo que caiba a outras instancias, formais e informais, interventoras no processo de recrutamento (as policias, os tribunais, as prisédes, a familia, a escola, os grupos sociais), o primeiro lugar pertence, sem divida, 4 lei criminal: aquele processo, em principio, sera permitido e comandado nos termos estabelecidos por esta lei (°). Eis porque serao os mecanismos do Processo legal-social de criminalizagéo e de descriminalizagéo 0 objecto das nossas consideragées posteriores. O legislador nao é, com efeito, completamente livre nas suas decisdes de criminalizagao e de descriminalizagao, Tais decisdes, seguindo quase sempre muito de perto a evolugio histérica da sociedade para a qual sao tomadas, revelam-se estreitamente condicionadas pelos dados da estrutura social, por substratos directamente politicos, pelos interesses dos gru- Pos sociais e pelas representagdes axiolégicas neles prevalentes em certo momento histérico. U. EISENBERG, por exemplo, nota como muitas investigagdes—v. g. a de J. HALL sobre as relagées entre o crescimento comercial e industrial e a cres- cente criminalizagao de condutas contra o patriménio; ou a de CHAMBLISS sobre a relagio entre necessidades acrescidas do ©) Ct. jé TAFT/ENGLAND, Criminology, Londres, 4: ed., 1964, p. 303 e seguintes. ” J. DE FIGUEIREDO DIAS mercado de trabalho e a criminalizagio da vagabundagem — revelam a saciedade a sensibilidade histérica, sécio-econdmica e politica das decisdes de criminalizagio e de descriminali- zacao (°). Assim se reforgam ideias como a do cardcter fragmenté- rio da tutela penal (’) e a de que, num periodo histérico dila- tado, sé o cerne das incriminagdes permanece (e, mesmo este, s6 relativamente) constante (°). Esta verificagio serviria, alias, para reabrir a discuss&o sobre o que seja em si o crime; mas, repetimos, nao € essa a nossa intengao, limitando-nos neste ponto a acentuar que, para efeito das consideragdes posterio- res, nos interessa um conceito criminolégico — naéo um con- ceito juridico-formal —de crime. Sé notaremos ainda, nesta introdugio dedicada 4 posigaéo do problema, que a historici- dade das incriminagées vale com particular forga para as mo- dernas sociedades industrializadas (sejam elas capitalistas ou socialistas), sociedades em que, por forga da complexidade acrescida das relagées sociais, 0 catélogo dos delitos varia gran- demente (’): s&o, de um lado, as novas situagées sociais que, pondo em risco valores comunitarios fundamentais, recla- mam a intervengéo do direito penal; sao, de outro lado, as cbamadas estruturas informais de controlo—no Ambito da familia, da vizinhanca, das pequenas comunidades — que desabam perante o crescimento e a complexidade sociais, fa- zendo com que ds instancias formais sejam postas novas e acres- @) U. EISENBERG, Einfiihrung in die Probleme der Kriminologie, Munique, 1972, pp. 6365. ©) Cf. 0 nosso «A Reforma do Direito Penal Portugués: Principios e Orientacdes Fundamentais», separata do BFDC, XLVIII, 1972, p. 39 e ss. () Sobre esta ideia pode ler-se o nosso O Problema da Consciéncia da Mlicitude em Direito Penal, Coimbra, Almedina, 1969, p. 372 e ss. () Cf. U, EINSENBERG (cit. n. 6), p. 63; I. ANTILLA, «La Politique Scandinave Actuelle en Matiére de Criminologiex, Revue de Droit Pénal et de Criminologie, vol. 55, 1974-5, p. 698; G. KAISER, «Verbrechenskontrolley, in KAISER/SACK/SCHELLHOSS (Hersg.), Kleines Kriminologisches Wor- terbuch, p. 373; «3° Coldquio Interassociagées, de 7 a 12-5-73. Descrimina- Uzackiov, Boletim da Administragéo Penitencidria e dos Institutos de Cri- minologia, vol. 31, 1973, p. 179. LEI CRIMINAL E CONTROLO DA CRIMINALIDADE 5 cidas tarefas, cuja realizagéo excede notoriamente a sua capa- cidade de resposta. Como pode a lei criminal evoluir, por forma a assumir conscientemente as suas responsabilidades nesta situacaéo? I Face 4 referida complexidade crescente das relagdes da vida moderna inscreveu-se, um pouco por toda a parte, a tendéncia do legislador —tanto mais marcada quanto mais velho se revele o Cédigo Penal do respectivo pais — para pér o apa- rato das sangées criminais ao servigo dos mais diversos fins da politica social (econémica, financeira, fiscal, sanitaria, educativa, ecoldgica, etc.). Assim surge o moderno fenémeno da sobrecriminalizagao, hipercriminalizagéo ou inflagdo incri- munatéria (°). Uma das mais importantes causas deste fenémeno reside na circunstancia — ja de algum modo evidenciada pelas consi- deragies anteriores — de, num mundo de crescente urbaniza- g&o e anonimidade, surgir o direito, com o seu alto grau (ao menos tendencial) de racionalidade e de igualdade, como um aparelho muito relevante de actuago na malha complexa do tecido social ("); ao que acresce uma crenga persistente, ape- sar de muitas vezes desmentida pelos factos, na eficacia geral- -preventiva das penas criminais. Uma outra causa, que a psi- cologia politica nfo deixa de acentuar e a experiéncia de confirmar, reside, como acentuam MORRIS e HAWKINS, em ser por regra muito mais agraddvel aos politicos ceder as sugestées de sobrecriminalizagao, como modo de evidenciarem aos eleitores a sua virtude moral e o seu fervor politico, do ) "40 qual nos vimos referindo com insisténcia hé alguns anos a esta Parte: v. O Problema da Consciéncia da Micitude (cit., n. 8), pp. 111 e s. © 339 € ss.; «A Reforma do Direito Penal Portugués» (cit., n. 7), pp. 10 e ss. 2 39 e ss; Ligdes de Direito Penal (ao 2° ano de 19745), ed. offset, Coim: bra, J. Abrantes, 1975, p. 6. CG. KAISER (cit. n. 9), p. 373, 6 J. DE FIGUEIREDO DIAS que escogitar medidas pragmaticas de politica nao criminal que poderéo facilmente passar aos olhos dos cidadaos des- prevenidos como reveladoras de fraqueza, quando nao de cum- plicidade, perante os maleficios do crime e da delinquéncia (’*). A experiéncia tem demonstrado, porém, que a cedéncia a tentagio da sobrecriminalizagéo acaba por defraudar comple- tamente as esperangas de, por seu intermédio, dominar e con- trolar 0 aumento da criminalidade. Na realidade, um tal pro- cesso — quantas vezes de duvidosa legitimidade constitucional, por insuficiente atengdo prestada ao contetido material de sentido contido no principio «nullum crimen, nulla poena sine lege» ('*) — langa o maior descrédito sobre o direito penal e a fung&o que primariamente lhe incumbe de protecgao dos valo- res fundamentais da comunidade, esquecendo que aquele sé deve intervir como ultima ratio da politica social (**). Tanto mais que a uma tendéncia societéria para a sobre- criminalizagio corresponderd, inevitavelmente, um aumento da criminalidade total, que vai acentuar a situagéo de ultrapas- samento das instancias de controlo formais. Com isto poten- cia-se a fungao estigmatizante——e portanto o cardcter crimi- négeno — das normas penais e passa o processo de selecgio a ser comandado pelo puro acaso, subtraindo-se ainda mais aos esforgos de controlo que sobre ele se queiram exercer. A frente teremos ocasiao de ilustrar, com exemplos retirados da propria experiéncia portuguesa, esta realidade inevitavel. () MORRIS/HAWKINS (cit., n. 3), p. 2. () Isto sobretudo quando se considere, como temos por correcto, que aquele principio impée, além do mais, a conexionagSo pela mesma lei da tipiticagsio do crime e da pena que lhe corresponde: cf. Eduardo COR- REIA, in Actas das Sessdes da Comissdo Revisora do Cédigo Penal, Parte Geral, vol. I, 1965, p. 33 e ss. e «Parecer da Camara Corporativa sobre Alteragdes & Constituigio Polfticay, in Actas da Camara Corporativa, 67.°, 1971, p. 629. Foi este pensamento que ter4 estado na base da redaccéio dada pela Lei 1/71 ao artigo 8°, n° 9, da Constituigio Politica de 1933 e é sem duivida ele que presidiu a0 artigo 29°, no 1, da actual Constituigdo da Repi- (Cf, de novo o nosso «A Reforma do Direito Penal Portugués» (cit. nD, p. 39.

Você também pode gostar