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Apontamentos sobre a fenomenologia da visão nas fotografias de Wanderson Alves

“Todos os homens desejam naturalmente conhecer; o que o mostra é o prazer causado


pelas sensações, dado que fora mesmo da sua utilidade nos agradam por si mesmas e as
sensações visuais mais que todas as outras. Com efeito, não apenas para agir, mas mesmo
quando não nos propomos nenhuma ação, preferimos de certa forma a vista a tudo o resto.
A causa disto é que a vista é, de todos os nossos sentidos, aquele que nos faz adquirir mais
conhecimentos e nos revela uma multidão de diferenças.”
Aristóteles, Metafísica

“A fotografia é literalmente uma emanação do referente.”


Barthes, La chambre claire

“A fotografia é uma arte elegíaca, uma arte crepuscular.”


Susan Sontag, On Photography

Uma mão segura entre o indicador e o polegar a orla do tecido translúcido que cobre o vidro
da janela. Dir-se-ia que afasta a franja de um véu, deixando entrar a luz que dissipará a
penumbra do espaço interior, fazendo emergir os contornos mais nítidos das coisas que
dormem ainda nesse quarto, latentes. Ao descerrar a janela, esse gesto adivinha-se delicado,
como se os dedos apenas aflorassem o tecido e o afastassem com precaução: demasiada
claridade poderá ofuscar o olhar que guia essa mão, esses olhos que querem ver, para fora,
tudo o que essa claridade ilumina e faz aparecer no enquadramento da janela, através da
vidraça.

Esta imagem, que Wanderson Alves coloca entre as primeiras da série recolhida no seu livro
“Na pele, o silêncio”, pode servir-nos como ponto de partida num percurso de observação
desta sua obra fotográfica. Com efeito, ela pode ser vista como uma metáfora: por oposição
ao mero olhar utilitário e distraído que tudo converte em meros objetos ou imagens a
consumir rapidamente, o acto de ver constitui-se sempre num gesto inaugural de
descobrimento de uma presença (de coisas da natureza ou do mundo do homem) que se
instala no espaço aberto pela luz e nos colhe na plenitude do seu aspecto. A visão mede-se
numa espécie de corpo a corpo com a ocultação que paira como uma sombra sobre tudo o
que deixa entrar no seu campo: o olho humano é finito por oposição ao olhar de deus,
condenado à maldição do ponto de vista que ao mesmo tempo revela e oculta aspetos e
aparências do mesmo mundo, das mesmas coisas. De uma certa forma a claridade que
ilumina o mundo (e essa mesma luz que impressiona a retina ou a película fotográfica) não é
primeira, é sempre antecedida e ameaçada pela obscuridade, pela indiferenciação, pelos
simulacros que velam o aparecimento pleno do real e o convertem em aparência fosca,
banal e indistinta.

A ideia de que a realidade se mostra e se esconde por detrás de sucessivas camadas de


encobrimento é também ilustrada numa imagem vizinha, logo no inicio da série: nela se
apresenta uma sobreposição de planos e camadas que impedem a vista, primeiro uma
mancha vertical , translúcida e indistinta à esquerda, depois uma fina película de papel
encurvado que se descola e pede para ser arrancado, uma superfície translúcida e suja
ocultando, por fim, delimitado por uma abertura imprecisa, o espaço de obscuridade que se
entrevê ao fundo e que constitui o limite provisório do que se quer tornar visível.

Na raiz do olhar do fotógrafo e na origem desta série de imagens parece estar justamente o
afinco em desencobrir o real, que é no fundo a vocação do ato de ver mais autêntico: o
fotógrafo “revela” (num duplo sentido) imagens latentes das coisas do mundo, faz aparecer
o que está escondido na banalização da visão quotidiana e tenta no fundo guiar-nos numa
espécie de exercitação da vista através dos mantos mais ou menos densos e opacos que ao
mesmo tempo mostram e encobrem a realidade.

Esse exercício de depuração e ascese da visão empírica “banal”, que permite afastar a ponta
do véu e revelar a realidade que está velada mas aspira a manifestar-se, confronta-nos
imediatamente com a ambivalência e aporias da imagem fotográfica: emanação física direta
do objeto fotografado ou representação de um ponto de vista; mimesis idealmente
transparente de um fragmento de realidade simplesmente “recortada” pela objetiva ou
revelação do que “já lá está”, encoberto pela superficialidade utilitária da experiência
quotidiana; cópia ou expressão; mera extensão, no tempo e no espaço, da objetividade da
percepção ou trabalho subjetivo de comemoração do que (se) foi a partir dum resíduo
escrito pela luz numa película ou num suporte digital.

Para nos fazer ver como viu ele próprio, para que haja uma certa eficácia de revelação que
possa ser partilhada com o observador, o fotógrafo oferece ao nosso olhar imagens sob a
égide de uma espécie de princípio de indecisão ou incerteza, recorre a velaturas,
desfocagens, reflexos ou duplicações do enquadramento, a uma exposição que tende para
uma espécie de grau zero de claridade, meios e procedimentos todos eles destinados a
neutralizar a banalidade descritiva das imagens vistas pela visão empírica e instrumental,
produzindo ao mesmo tempo no olhar do observador uma sensação de perplexidade
interessada, uma vontade de aderir e se demorar no visível que aparece, de se entregar ao
prazer visual espontâneo de ver coisas, seres, objetos, paisagens, algumas figuras humanas
surpreendidos na sua face mais inquietante de estranheza.

A percepção visual quotidiana tende a ser preguiçosa e abreviada, pois na verdade quem
conseguiria sobreviver, orientar-se e agir num mundo que a visão revelasse na infinita
proliferação dos seus diversos aspectos e acontecimentos, sem o socorro de esquemas e
conceitos que ordenam e classificam a realidade? O empobrecimento da visão que reduz
cada ente que nela se manifesta a um elemento de uma série, ou exemplificação rápida de
uma categoria, é indispensável para evitar a loucura e possibilitar uma apropriação
instrumental da realidade. Empobrecimento esse ainda duplicado pelos simulacros de
imagens que circulam incessantes, alimentando a sociedade do espetáculo, reduzindo a
natureza à figura duma paisagem ornamental, e as coisas e seres a ícones mercantis,
simulacros pobremente idealizados em cartazes, postais, ilustrações publicitárias ou ainda
apontamentos visuais privados na agenda de cada um. No excesso de abundância das
imagens produzidas e oferecidas à visão banal tudo se parece e é quase igual, tudo já foi
visto e esquecido.
Desestabilizar a percepção, criar um elemento de surpresa acompanhado de um golpe de
inquietação ou de inexprimível prazer significa assim abalar e transtornar a rapidez com que
a nossa percepção visual habitualmente resolve (em vez de revelar) o que se dá a ver.

A imagem de abertura da série “Na pele, o silêncio” provoca justamente este efeito: logo no
início convida o olhar a instalar-se num percurso lento, na incerteza desorientada que pede,
e ao mesmo tempo impede, o reconhecimento.

Ao deter-se nestas duas (ou serão três) formas que parecem emergir para a presença, no
próprio momento da visão, o olhar é imediatamente demorado pela impossibilidade de
figurar um esquema satisfatório (e expeditivo) que converta estes entes em objetos
disponíveis, vistos e logo esquecidos. De si para si a mente busca socorro num referente
“real” para facilitar a leitura da imagem que lhe é dada pela visão. Esta por seu turno quase
se converte em lente que busca o seu foco e se esforça por apreender o que aqui há de
singular: duas ou três formas, uma delas quase a sombra esbatida de si própria, emergem
levemente encurvadas numa espécie de luminescência translúcida, vibrátil. Buscando
amparo em algum indício que nos encaminhe para um esquema ou um conceito, a intuição
sinestésica da vista e do tacto apreende uma textura que tanto sugere a superfície delicada e
fina de folhas eivadas de nervuras e líquenes como a ligeira rugosidade de um cristal onde a
luz se refrata irregularmente. Estas formas (por convenção e comodidade poderemos passar
a designá-las como folhas) recortam-se contra um fundo esbatido e indistinto sobre o qual
se abate a escuridão.

Pode voltar a ocorrer a pergunta: o que são estas formas? Onde estão? No interior de um
espaço fechado ou fora, ao ar livre? E a que hora do dia ou da noite? Ou pode acontecer um
apaziguamento deste modo de indagação: o olhar deixa que apareça na visão não uma
forma mas o próprio instante de formação de uma presença plena, tão frágil que parece
prefigurar já o seu iminente desvanecimento: oscilação vibrante entre o fundo e a forma,
entre o desenho de um contorno que faz aparecer um ente de uma imensa fragilidade e o
esbatimento que parece já prefigurar o seu desaparecimento. Tudo se passa, na observação
desta imagem, como se os poderes miméticos da fotografia como “pura emanação do
referente” nos afastassem progressivamente de uma ideia de representação da realidade: o
que nos enche de um imenso e inexprimível prazer é a sensação de ver a arte (fotográfica)
agir como natureza, de assistirmos à figuração de um acontecimento natural, de uma
pequena e muito humilde epifania.

A desestabilização da percepção através deste princípio de indecisão e incerteza vai surgindo


sob as mais diversas formas ao longo desta série de imagens, cobrindo um arco que vai
desde a possibilidade de continuar a tentar descrever o que se vê até à quase pura abstração
em que a visão se torna quase sinestésica e figura efeitos de luz como se fossem texturas ou
então, num movimento introspectivo e reflexivo, abandona a sensação pura e busca
equivalências simbólicas e intenções expressivas.

Numa das imagens de cunho mais “narrativo”, a incerteza assume primeiro a forma da
incredulidade: será isto mesmo que eu estou a ver? O que vejo será realmente aquilo que
parece, uma borboleta aprisionada pela aranha na teia quase invisível? A crueldade do que
se dá a ver é neutralizada pela dificuldade da leitura, lenta: o olho focaliza-se na nitidez do
desenho das patas da aranha sobre a presa, emergindo de um fundo indiferenciado, sem
espaço, onde uma barra oblíqua de negro intenso define a linha de força deste instante.
Aqui mais uma vez a fotografia nos assombra com o seu poder quase mágico de fixar,
evocar, prolongar um momento único e irrepetível arrancado à banalidade da série
reiterativa dos fenómenos do mundo natural. A paciência do fotógrafo é recompensada pela
oportunidade de surpreender (e nos mostrar) aquilo que poderíamos designar como o
acontecer do acontecimento, a sua irrupção absolutamente única.

O prazer da livre fruição da imagem pode também ser antecedido por um sentimento de
desorientação e estranheza derivado da confusão propositada das linhas de fuga
convencionais da perspectiva albertiniana, acentuada ainda por vezes por jogos de reflexos
ou por uma inclinação pouco habitual do ponto de vista. Atente-se por exemplo na imagem
do homem invisível refletido numa superfície espelhada e recortado contra uma claraboia
translúcida através da qual se entrevê o plano inclinado de uma fachada de prédio; ou no
reflexo de um vaso com uma planta que parece depositado num plano de água irregular
marcado por outras sombras e misteriosos recortes. Desistindo de uma visão descritiva ou
narrativa, o olhar é absorvido no interesse pela composição quase cubista dos vários planos
e refracções que articulam o espaço. Torna-se assim indiferente compreender se a corda
atada em nós ao longo da parede do poço coberto de vegetação sobe para uma abertura de
luz situada no seu topo ou desce até à superfície da água que no seu fundo a reflete. E ao
olhar para o interior do quarto onde emerge na penumbra um abajur e uma planta em plano
inclinado, ou um ventilador truncado e desfocado suspenso do teto, acabamos por aceitar a
estranheza do ponto de vista e das facetas concretas do real revelado como a réplica de um
acordar do sono para a apreensão incerta do visível.

Há no entanto certas fotografias que, mesmo prestando-se à facilidade descritiva e


narrativa, podem também produzir um efeito de inquietante estranheza, causado pela
instabilidade da percepção do visível: vale a pena demorarmo-nos um pouco na imagem de
rebentação das ondas contra rochedos com uma minúscula figura humana. O que haverá
então nela que nos colhe de espanto? Desde logo a sua violência concentrada, a sua
densidade de matéria: a ondulação do mar evoca a textura anfractuosa de uma enorme
massa de basalto negro e brilhante, o que é liquido parece sólido e as próprias rochas da
praia surgem quase fluidas a figurar o movimento enrolado de uma onda a desfazer-se em
espuma: o olho é quase completamente enganado por esta promiscuidade de texturas e a
visão sente-se desorientada pela falta da linha de horizonte e de perspectiva atmosférica
que imponha ordem e limite aos elementos naturais. Nada respira nesta imagem definida
por uma perspectiva em abismo sobre a minúscula figura humana quase esmagada sobre o
cascalho da praia, não sabemos se ameaçada (morta até?) ou protegida, visível numa negra
claridade quase sem matizes nem gradações. O sentimento de inquietante estranheza surge
aqui deste choque de massas sem espaço nem respiração, da perspectiva em abismo sobre a
pequenez da figura humana que habita esta paisagem como uma citação da queda Ícaro.
Surge também porque a falta de horizonte parece duplicada por uma supressão da
temporalidade: trata-se de uma imagem em que o real não tende para nada,
completamente fechado na espessura de um transe quase irrespirável.

A ambiguidade perceptiva é uma constante também numa série de imagens em que o olhar
é agarrado pelo contraste de matérias e texturas de diferente densidade, solos viscosos de
lama marcados por pegadas que ao secar aprisionam folhas, pinhas e insetos, superfícies
que oscilam entre a dureza da pedra ou a translucidez do vidro, entre a fluidez de planos de
água em espelho ou imaterialidade de uma espécie de éter noturno de onde emergem
formas orgânicas pedindo à vista que repouse em diferentes graus de abstração e à
imaginação, sua companheira, que continue a figurar livremente abstendo-se de nos instar a
conhecer e reconhecer.

A desestabilização da perceção e o princípio de incerteza no reconhecimento do que se vê


não são, porém, de forma alguma, os únicos meios de abalar a visão, de a convidar a romper
com a banalidade da experiência quotidiana, de a fazer aspirar a ver mais e de muitas
formas. Em muitas das imagens desta série parece operar um desejo aparentemente
contraditório de revelar e velar ao mesmo tempo a pluralidade de aspetos sob os quais a
realidade se deixa aparecer: essa aspiração é completada também por uma preferência por
reflexos, sombras desfocadas e duplicações, pelo distanciamento do que é visível através de
diferentes tipos de velatura ou duplo enquadramento (a objetiva do fotógrafo duplicada por
um ponto de abertura no campo da própria imagem), por uma espécie de indeterminação
na austera luminosidade que tudo envolve. Estes elementos presentes em muitas destas
fotografias combinam-se e agem sobre o espectador intimando-o a apreender as presenças
que se formam em imagens sempre provisórias, ameaçadas pelo desvanecimento ou pelo
menos pelo seu obscurecimento no campo da visão.

Se reparamos na forma como as fotografias se seguem na série é difícil não descortinar


nessa sequência uma intenção programática de fazer aparecer a polaridade entre velar e
revelar, entre a materialidade densa do real e a fluidez transitória do reflexo, uma vontade
de fazer aparecer no dia uma luz que parece vinda da noite, e a própria claridade como
tributária da escuridão que sempre a precede e lhe é, num certo sentido, superior. Intenção
também de usar este modo de surpreender as vicissitudes da visibilidade como uma
figuração da precariedade do que aparece em cada instante singular.

Paremos um instante diante destas flores que se inclinam para o seu fim, mais afastadas de
quem as olha pela velatura líquida do vidro cravado de gotas de chuva. Esta imagem dir-se-ia
destinada a reproduzir o movimento na retina do menos para o mais nítido, e de novo até ao
quase deperecimento da forma visível transformada em miragem, fragilíssima, prestes a
extinguir-se para ser apenas resíduo na memória. A velatura aplicada às formas que surgem
nesta imagem provoca assim um duplo efeito: afasta-as e, tornando-as mais difusas, sugere
a dificuldade de o olhar focar e reter o visível, tornando ao mesmo tempo aparente o
carácter efémero de tudo o que aparece e desaparece no campo da visão.

O mesmo, aliás, se poderia dizer do vulto das montanhas ou falésias erguidas sobre o mar,
duplamente veladas pela vidraça, pela liquidez da chuva e por um ar translúcido de
humidade e neblina que lhes apaga o contorno e os cumes. Em que outro momento senão
neste, irrepetível, em que o fotografo acionou o obturador, se voltará a revelar a montanha
como um simples adensamento do ar, entre visível e invisível, velada por uma névoa a que
só escapa o negro poderoso do cascalho da praia, e mais pungente ainda, a silhueta tão
nítida quanto inútil do guarda-sol amarrado? Quando é que voltará a apresentar-se esta
paisagem em que tudo se dissolve em ar pesado de humidade?
Além disso, como explicar a empatia perplexa com que acolhemos a face escondida das
aparências que nos dá o olhar duplamente enquadrado pela objetiva da câmara e pelo vão
aberto da janela? Porque nos intriga mais a parte truncada do que o todo construído pela
visão que tudo envolve, ou que pelo menos tudo mentalmente completa e ordena? E por
que razão nos interessa a aparente banalidade de uma paisagem urbana entrevista por
detrás do duplo encobrimento de um véu translúcido e das gotas de chuva depositadas na
vidraça? Ver através de um filtro dá a ver mais ou melhor do que a visão “imediatamente”
presente a si própria, inconsciente de si, trivialmente espontânea? Ou será que ver o mundo
pela janela de casa nos reconcilia com a sua vastidão e desordem, e esse fragmento do
mundo recortado no seu duplo enquadramento nos parece mais em acerto com a nossa
medida, mais orientado e suscetível de nos encaminhar para uma ideia de totalidade que
justamente nunca poderemos ver, mas apenas imaginar?

Uma outra forma de imediato interesse visual é despertada pela aparência efémera e
reveladora do que se mostra num espelho natural: poças de água abertas para as nuvens do
céu ou para os galhos das árvores, cuja liquidez se poderá em breve sujar e fechar,
restituindo-as à densidade áspera ou lamacenta do solo onde se formaram. Na oval perfeita
(quase um oculus) de um desses reflexos de céu e ramagens entrevêem-se pequenas rugas
de uma aragem que faz vibrar a imagem, e prefigura ao mesmo tempo a possibilidade da sua
dissolução. Mas, noutro exemplo, o efeito de dissolução do reflexo (numa espécie de
desenho aguarelado) vem mais da confusão entre o que é espelhado na superfície e a
textura líquida da própria água e do que ela contém. Em ambos os casos o que faz jubilar o
olhar é a surpresa de assistir a um comportamento da natureza que parece agir com o poder
eficiente da arte, tornando a aparição indireta e enquadrada da coisa refletida mais
eficazmente reveladora do que o seu original.

Nem todos os simulacros ou reflexos são apesar de tudo produzidos pelos acidentes em que
a própria realidade parece entreter-se a jogar com si própria: o fotógrafo é capaz também de
fazer ver a imagem pacífica dos barcos recolhidos no repouso do ancoradouro, antes ou
depois de se terem feito ao mar, mas marcada pelo seu reflexo estilhaçado, tirando assim
evidência à tranquilidade aparente da coisa refletida. A refração no espelho revela a
vacuidade da primeira aparência e fractura o primeiro grau da visão ingénua do cartão-
postal que prometia ao mesmo tempo tranquilidade e evasão.

Outros simulacros podem ser não reflexo, mas fantasma ou sombra. Os vultos que duplicam
e esbatem os contornos do homem, dos carros estacionados e das árvores à beira-mar
arrancam-nos de imediato à “banalidade do referente”: o que passa a ocupar o trabalho da
visão e a obrigá-la a um certo apuramento mental parece ser uma tentativa de figurar as
infinitesimais parcelas percorridas por uma deslocação no espaço: um homem move-se, as
árvores parecem deslocar-se, a realidade aparece-nos como o próprio fluxo das aparências
visíveis surpreendidas em movimento.

Outra das múltiplas formas de apresentar e declinar a relação dinâmica entre revelação e
velamento do real tem como protagonista principal a própria luz: em certas imagens o que
parece interessar o fotógrafo (e despertar a nossa empatia com esse interesse) é o
funcionamento da polaridade entre o exterior e o interior, entre aberturas de claridade
quase cega (de tão pura) e diferentes graus de diferenciação da penumbra. Nessas imagens
o que parece querer figurar-se é a obstinação da luz em derramar-se sobre a densidade
compacta da matéria, fechada na sua interioridade, arrancando-lhe apesar de tudo a
possibilidade de entrever o contorno e o aparecimento de formas em que o olhar se fixa em
reconhecimento: a claridade difusa que entra ao fundo deixa aparecer o interior de uma
ruína, paredes ameaçadas de bolor, mas sobretudo a proliferação de restos dum
emaranhado vegetal, seco, talvez já morto e que ainda assim parece aspirar a uma certa
forma de sobrevivência: essas hastes nuas e desordenadas erguem-se e emergem do
negrume, acabando por se transformar e fundir numa quase teia que vela e racha a abertura
baça duma janela ofuscante de claridade.

Noutro exemplo em que se glosa o mesmo tema, vemos a rigorosa composição do interior
de mais uma ruína: um retângulo horizontal pautado por barras verticais aprisiona a luz,
deixa transparecer um frágil desenho de vida, uma ramagem de delicadíssimo traçado em
arco quase ondulante. Ao desenho rigoroso dessa janela que parece nada iluminar e fechar
o olhar na desolação interior da casa abandonada, responde ao canto esquerdo, ao alto e no
extremo de uma quase diagonal que parte do negro absoluto, um buraco irregular na
inclinação do telhado: daí sim cai uma luz coada pela obscuridade e o olhar pode assim
interessar-se pela superfície irregular do velho estuque manchada de claridade e da sombra
duma trave ou, numa outra imagem subordinada ao mesmo tema, demorar-se nos
filamentos quase impercetíveis da teia de aranha ou na textura quase táctil do interior das
telhas e das traves.

Esta mesma abertura incandescente e cega surge como uma fonte de luz, dir-se-ia ineficaz,
permitindo vislumbrar, a partir do abrigo noturno da caverna, a copa de uma árvore
esmagada de excessiva claridade: é, porém, uma luz que quase nada ilumina e se perde nas
paredes da gruta, no seu aspeto e textura de uma hulha oleosa e brilhante. É na densa
escuridão desta espécie de abrigo que o olhar pode tatear quase cegamente as
anfractuosidades da rocha, observando apenas o cair da luz progressivamente absorvida
pela noite interior da terra. Longe estamos da ideia de uma luz vinda de deus e benfazeja
por provir do Bem, trata-se antes uma luz que ofusca por excesso e só revela quando deixa
na penumbra aquilo que se abstém de iluminar.

A eficácia reveladora mas também ocultante da luz, a polaridade entre o claro e o escuro
aparecem de forma ainda mais aguda quando associadas a uma espécie de indeterminação
na claridade difusa que faz ver, e por vezes apenas entrever, tudo o que aparece e se
mantém no campo da visão : desta vez o que comove o olhar, e literalmente o coloca em
movimento e em tensão é uma espécie de indiferenciação luminosa do dia e da noite,
daquilo a que poderíamos chamar a noturna claridade do dia, apresentada numa ampla
paleta de variações: por vezes a luz do dia é apenas marcada ao de leve por sombreados
escuros no movimento das nuvens ou das plantas, canas ou arvoredo recortados no céu.
Essa mesma sombra pode pairar sobre uma janela de mansarda ou a fachada cega de uma
ruína, apenas como velada ameaça à luminosidade ainda diurna; depois, ao longo de uma
série de gradações, a obscuridade ganha terreno e é dela que emergem misteriosas e
delicadas criaturas vegetais, flores, arbustos, ramagens que parecem cintilar e vibrar no
lusco-fusco de uma noite acendida por uma mais que ténue claridade, de origem misteriosa.
É também nesse adensar de obscuridade que a luz parece tender para o limite da sua
mínima (ou será máxima?) eficácia: o recorte ondulado do arvoredo parece subir da terra
opaca e buscar a penumbra do céu onde alguma luz se esforça ainda por romper; cumes e
cristas quase desfeitos em névoa, copas de arvores batidas pelo vento num desenho preciso
contra o adensamento e dissipação esbatida de nuvens voláteis. Um pouco mais de treva,
um pouco menos de luz e logo que o céu se apagar sobre a terra, o olhar será engolido pela
uniforme presença de nada.

Duas imagens aparecem como ilustrações particularmente tocantes desta humilde eficiência
da luz: na primeira, um enfiamento de casas baixas, de uma inquietante e branca cintilação,
apoiadas numa encosta em socalcos. Só o desdobramento em reflexo atenuado permite
deduzir o espelho líquido de um rio e concentrar a vista na horizontal inclinada que define a
margem. Mas o efeito que domina a imagem é sobretudo uma espécie de escuríssima
claridade de um dia que se tomasse por noite, que quisesse ser noite. É desse negrume fosco
que se destacam o quase nada das copas das árvores e os vincos e sulcos onde a terra se
desnivela em degraus. Face a este espaço quase totalmente fechado e abafado pela
espessura de um ar completamente opaco, só o reflexo na água e a reverberação
incongruente no flanco do monte nos indicam que de algum lugar emana luz.

Na segunda, esta mesma luz na margem da obscuridade parece contrair o espaço onde se
ergue, no véu denso do ar, a monumentalidade compacta da megalópole: dir-se-ia uma
paisagem urbana já deserta e abandonada, quase uma prefiguração do olhar do arqueólogo
só interessado numa descrição que reconstrua mentalmente os restos majestosos envoltos
em penumbra de uma era antiga. A indiferenciação da luz parece neste caso servir para
apresentar uma indeterminação do tempo em que vive, ou já viveu esta cidade.

O aforismo que atribui uma virtude elegíaca e uma tonalidade crepuscular à fotografia
enquanto tal, enquanto especialíssimo modo de expressão, parece aplicar-se com particular
pertinência ao modus operandi de Wanderson Alves. Mas essa forma de resumir a intenção
expressiva que caracteriza grande parte das imagens desta série poderia levar-nos para o
terreno movediço e incerto de um sentimentalismo psicológico. Poderá em contrapartida
ser mais frutífero tentar perceber em quê a atmosfera crepuscular que envolve estas
fotografias intensifica o seu papel revelador, que efeito produzem no olhar do observador
exposto a esta redução luminosa dos fenómenos revelados na imagem.

Ao apresentar-nos esta série de imagens em que coloca em cena o declínio da luz já mordida
pela escuridão, o fotógrafo terá porventura o mesmo propósito já antes assinalado de
impedir uma redução instrumental do visível: não se trata propriamente de evocar e fazer
valer uma preferência estética pela beleza do crepúsculo, o que nos arrastaria
imediatamente para a trivialidade da série infinita das fotografias artísticas ou privadas do
fim do dia e do princípio da noite. O que acontece nestas fotografias é de outra ordem e
poder-se-á tentar, por aproximações sucessivas descrevê-lo em palavras: o fotógrafo sugere
pela ação da luz, a ambivalência com que as presenças se mostram e escondem na visão. Ou
então: obstina-se em mostrar a presença das coisas na visão como se estivessem ao mesmo
tempo a acabar de aparecer e quase a acabar por desaparecer, ao mesmo tempo arrancadas
e devolvidas à noite primeira que tudo absorve e dissolve. Ou ainda: esta luz que resgata as
formas que estão votadas a desaparecer, dá-lhes uma maior intensidade de presença por as
mostrar não como coisas-em-si, na permanência da sua densidade compacta e obtusa, mas
como sujeitos de si no seu próprio aparecer, sob um certo aspecto, como se fossem os
fenómenos naturais, mas também as coisas do mundo do homem, a quererem formar-se
ainda por um instante no campo do nosso olhar, votadas desde logo ao desaparecimento e à
ausência que tudo obscurece.

Não deixa de ser algo paradoxal que nesta série as figuras humanas escapem a esta intenção
de mostrar o real como sujeito do seu próprio aparecimento na finitude de cada uma das
suas faces visíveis. Algumas das mais enigmáticas imagens deste livro são aquelas em que
aparece a figura humana, cuja presença discreta aqui surge como uma espécie de sombra
tutelar e misteriosa. Ao deter-se nestas imagens, a pergunta tácita do observador não é “O
que estarei eu realmente a ver?” mas passa a ser: “O que significa realmente aquilo que
estou certo de estar a ver?”. Em vez de se deixar absorver pelos pormenores do visível, de
se concentrar na materialidade da imagem e de se expor ao seu poder de revelar ex novo a
realidade concreta e as suas epifanias, o olhar da mente é empurrado, de certa forma, para
fora do campo da visão sensorial, procurando equivalências simbólicas, desejando fazer
sentido.

Numa das imagens mais fortes e terríveis desta série aparece uma figura humana que se
desprende e se dissolve ao mesmo tempo num fundo de um negro absolutamente denso e
profundo. A leitura “perceptiva” da imagem não oferece grande dificuldade: o rosto de um
homem provavelmente deitado, coberto por um lenço branco, de uma materialidade quase
táctil, acentuada pelos vincos muito marcados das suas dobras. Por cima do lenço aparece a
largura da testa e a implantação do cabelo que se confunde com o fundo. Por baixo um
colarinho desabotoado que sugere uma certa descontração indumentária. O que nos
sobressalta, primeiro, e depois nos faz ficar mais demoradamente a olhar para esta imagem
não é principalmente nenhum destes pormenores organizados sem dificuldade na nossa
perceção imediata, mas sim a vontade de perceber o seu sentido. Para isso deixamo-nos
ficar a pensar a partir de e para além do que os olhos veem, socorremo-nos da imaginação e
do seu poder de produzir associações simbólicas, numa espécie de diálogo da mente de si
para si: velar a vista, não querer ou não poder ver? A cegueira como pura privação ou
condição de possibilidade da visão interior? Será este um rosto velado de Tirésias habitando
a noite, de onde emerge como vulto? Só poderá verdadeiramente ver quem tiver
experimentado a treva da cegueira. Depois retirar a venda e deixar aparecer a inteira
novidade do visível. Lenço ou venda? Pequena mortalha com que por pudor se costuma
encobrir o rosto dos mortos, privado de individuação. Não ver, não poder ver é uma espécie
de morte. Não ver é também a última graça consentida ao condenado a morrer.

Mais adiante na série, o fotógrafo oferece-nos uma versão mais apaziguadora do tema do
rosto privado de individualidade: reclinada sobre si no sono, esta cabeça apoiada no punho
de uma mão fechada, emerge como se flutuasse no negrume do seu sonho, na obscuridade
de um quarto onde uma luz acende o branco de neve do cabelo pujante confundido na
mancha clara da almofada: feições encobertas que nada mais dizem do que o recolhimento
em si do sono, ou de um homem encontrado consigo em pensamento, perdido do mundo;
profunda piedade que inspira sempre a fragilidade indefesa do sono, dos que acabaram por
ceder e cerrar os olhos, por alhear-se do mundo.

O que estas duas imagens têm em comum é apresentarem-nos estados de uma condição
abstrata de humanidade sem que o olhar, os traços do rosto ou um esboço de situação nos
coloquem face a face com uma pessoa particular, com a intencionalidade de um gesto ou
ação circunstancial. É esta mesma generalidade do humano que surpreendemos no vulto
absorto em pensamentos, quase sonâmbulo que avança numa paisagem urbana desfocada
entre a noite e o dia; no gesto surpreendido em pleno movimento do homem que se levanta
da cama; no homem de costas para nós que se demora a olhar para uma ponte ou no que se
perfila parado de pé em contraluz no ancoradouro deserto, no homem debruçado sobre o
seu próprio reflexo velado e marcado pelas linhas geométricas de planos sobrepostos. Por
oposição às fotografias que captam os seres e a natureza no processo e no momento dir-se-
ia único em que aparecem e se ocultam, se oferecem e se retraem como presenças no
campo da visão, as fotografias com figuras humanas agarram o observador com o poder da
sua intenção expressiva: indicam que a nossa comum humanidade é marcada pela vontade
que querer ver a partir da penumbra do quarto onde se despertou, aludem à cegueira (nem
sempre se pode, quer ou consegue ver) e à morte, ao mergulhar no esquecimento provisório
do sono reparador ou povoado de visões, à vontade de permanecer no recolhimento da
noite, ao desdobramento de si próprio na imagem reflectida e na actividade do pensamento,
ao movimento observado nas passagens ou antecipado nas partidas.

O humano, mais do que os homens particulares, está também presente em várias outras
imagens de uma forma indireta e alusiva: o corpo pressentido que move a mão afastando a
orla da cortina, a ausência do corpo que habitou o quarto onde se veem os restos da noite e
que usou a roupa espalhada em desalinho, as casas desabitadas e as ruínas, os objetos
amontoados sem espaço nem uso na soleira suja de uma porta mas também o abrigo do
interior do quarto mergulhado na penumbra, onde se acorda para a vida.

Não são, no entanto, as breves ou indiretas aparições da figura humana ao longo desta série
de fotografias que as poderão iluminar com uma comunidade de propósito. Uma das
citações mais constantemente repetidas sobre a essência da fotografia, indica a luz e o
tempo como as suas principais matérias-primas. Ora neste caso, o tempo parece não ser
tanto a matéria-prima como o fio condutor que une todos os motivos que o fotógrafo nos
vai apresentando nesta sequência de imagens. Não necessariamente o tempo como unidade
de duração mensurável, mas a temporalidade intrínseca no aparecimento e
desaparecimento das formas do visível, no emergir das presenças que aparecem sempre
marcadas pela precariedade, pela ameaça de desvanecimento ou de obscurecimento, de
morte no campo da visão. As vicissitudes da visibilidade sob a forma de fantasmas, sombras,
reflexos ou duplicações desfocadas de imagem encaminham-nos de forma impercetível, mas
segura, para uma compreensão intuitiva da temporalidade de tudo o que chega à presença,
as aparências do real surgem no momento em que se formam, em fluxo para o que serão e
já não são em cada instante. As imagens que nos oferece este fotógrafo lúcido, inimigo das
ilusões de ótica, são elegíacas e crepusculares porque dão corpo às ameaças que pairam
sobre a visão clara e que têm o nome da cegueira, ocultação, ausência, do esquecimento ou
da morte. Esta indeterminação de uma luz que parece quase proveniente da noite tem um
caracter quase premonitório: a visão humana, ferida de finitude e mortalidade, agarra-se ao
que parece ser mais valioso por estar em risco de se perder, intui através da eficiência
dinâmica desta claridade quase apagada a evanescência de tudo o que se mostra e de novo
se oculta no seu campo, compreende nestas imagens uma figuração simbólica da latência,
eclosão, passagem e deperecimento do que acontece e se forma no mundo e no seu
horizonte ultimo que é o tempo: visão velada, desfocada e fugidia da imobilidade do moinho
sem pás nem velas, sujeito do seu próprio abandono, que já não serve para colher os ventos
mas se obstina em durar como ausência, passado de si próprio, no cimo do monte.

Bruxelas/Lisboa, Julho e Agosto de 2021

Pedro Elston

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