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ISSN: 1983-8379

Janelas da alma: um olhar sobre o gênero policial

Marta Maria Rodriguez


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Nébias

RESUMO: Este artigo visa a analisar duas obras que dialogam com o gênero policial: Janela indiscreta, de
Alfred Hitchcock, e Uma janela em Copacabana, de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Tanto a obra cinematográfica
quanto a literária revelam a vocação metalinguística do gênero através de inúmeras referências intertextuais,
tendo como ponto central o olhar.

Palavras-chave: gênero policial; metalinguagem; olhar.

O fotógrafo, com a arma na mão, sempre age como se


perpetrasse um crime.
(Cartier-Bresson)

Um filme baseado em um conto. Um romance que dialoga com um filme. O filme


Janela indiscreta, de Alfed Hitchcock, é baseado no conto It had to be murder, de Cornell
Woolrich que, devido à fama atingida por aquele, passou a intitular-se como tal. O romance
Uma janela em Copacabana, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, dialoga com o filme de
Hitchcock. O gênero policial retoma a ideia de uma Biblioteca de Babel, composta de textos
que se inter-referenciam. O mais frequente, entretanto, é o diálogo com o próprio gênero,
através de um jogo metalingüístico. No presente artigo, procuramos traçar um paralelo entre
as obras de Garcia-Roza e Hitchcock, sem deixar de mencionar Cornell Woolrich,
procurando entender o gênero policial como um espaço que permite divagações
metalinguísticas e, ainda, um espaço propício à intertextualidade. Para isso, é necessário
que delineamos um breve panorama da literatura policial, da sua origem até os dias atuais.
Em 1841 foi publicado o conto que é considerado a primeira narrativa policial
moderna, The murders in the Rue Morgue, de Edgar Allan Poe, nascendo, assim, o modelo
de detetive moderno: Dupin, uma máquina de pensar, infalível, que através do raciocínio

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Mestranda em Literatura brasileira - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientador: Prof. Dr. Flávio
Martins Carneiro.

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lógico consegue solucionar os mais complicados casos. É importante que compreendemos o


contexto social em que surge esse herói moderno: a sociedade inglesa do século XIX, em
que imperava o pensamento cientificista e a crença na racionalidade do mundo. Havia um
forte sentimento de identificação com os padrões sociais vigentes, o que era ressaltado
através da inteligência e do raciocínio desses personagens, destinados a lutar
desinteressadamente contra o mal.
Com Edgar Allan Poe, portanto, surge a escola policial clássica, o romance de
enigma, que seria representado por outros escritores, como Conan Doyle e Agatha Christie,
com seus memoráveis personagens Sherlock Holmes e Hercule Poirot, verdadeiras
“máquinas de pensar” capazes de , através de uma análise fria e meticulosa dos fatos,
decifrarem os mais complicados enigmas. Dupin e seus seguidores, portanto, podem ser
considerados personificações do herói moderno, representantes de uma época em que havia
uma visão otimista do futuro, pautada no espírito cientificista e nas descobertas.
Na década de 20, em meio à confusão política que se seguiu à Primeira Guerra
Mundial com a quebra financeira, surge uma outra variação do gênero: o romance policial
noir. Em uma fase conturbada como essa, em que cresce o desemprego e o crime se
organiza, torna-se difícil para o leitor aceitar um personagem como Dupin, totalmente fora
da realidade social. Assim, o herói passa a ser mais humanizado; o método da intuição e a
experiência substituem o raciocínio lógico.
Segundo Vera Lúcia Follain (1988) , há a passagem do pensamento para ação, pois
enquanto no romance de enigma o detetive chegava à verdade através do raciocínio, no
romance noir ele se envolve na perseguição dos suspeitos, tentando alcançá-la através da
força e da intuição. Temos como principais representantes dessa escola Dashiell Hammett,
considerado por muitos o iniciador do romance noir, e Raymond Chandler. É importante
ressaltar que, mesmo dentro desse contexto, percebemos uma sociedade que ainda tem seus
valores de lei e ordem bem definidos, o que permite que o detetive ainda possa ser
considerado um herói, pois apesar de algumas vezes atingir a desordem, não deixa de ter
ética e acredita ser capaz de, num confronto individual, combater o crime e a corrupção, em
nome da justiça.

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Apesar de já haver no Brasil manifestações do gênero policial desde o século XIX, o


mesmo somente ganhará força nos anos 1980 através, principalmente, da obra de Rubem
Fonseca. O romance policial brasileiro buscará na escola noir o seu modelo de detetive, um
homem comum, como Sam Spade, de Hammett, que age movido mais pela intuição do que
pela dedução lógica. Segundo Flávio Carneiro, “Spade é a o espelho da crise americana do
final dos anos 20, em que o sonho se transformara em pesadelo e um detetive como Dupin
pareceria completamente despropositado. É essa época, pós-utópica, que vai inspirar a
criação de um detetive mais próximo da dúvida, sem muitos motivos para acreditar num
futuro brilhante.”(2005, p.20).
O termo pós-utópico, criado por Haroldo de Campos e utilizado por Flávio Carneiro,
é relevante para definirmos a ficção brasileira contemporânea, ou seja, a época posterior ao
modernismo, em que deixamos de ter um projeto literário e um adversário a ser combatido.
Segundo Haroldo (1997), o momento utópico é regido pelo “princípio-esperança”, enquanto
o momento pós-utópico, pelo “princípio-realidade”. O que caracteriza os momentos utópicos
é uma “transgressão ruidosa”, ou seja, uma ruptura, uma inovação que não passa
despercebida. Já o momento pós-utópico é caracterizado pela “transgressão silenciosa”, que
a princípio não se faz notar, como é o caso das narrativas policiais que encontramos
atualmente, que são inovadoras não por negarem o passado, mas por fazerem uma releitura
das narrativas policiais clássicas.
É importante ressaltar que a obra de Hitchcock provém de um contexto social bem
diferente deste em que se insere a obra de Garcia-Roza, em um momento bem menos
conturbado do que aquele em que surgiu a escola noir, após a Segunda Guerra Mundial,
quando os Estados Unidos alcançara o status de superpotência mundial, o que permitiria um
detetive mais humanizado, como Jeff, mas que, apesar de utilizar a intuição e a imaginação
no lugar do raciocínio lógico, como ocorre no romance de enigma, ainda é considerado um
herói, pois, no final, consegue solucionar o mistério e restabelecer a ordem. Já a obra de
Garcia-Roza está inserida em um momento pós-utópico, em que não há mais a noção de
ordem e desordem e, portanto, não cabe a figura do herói.

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Podemos entender Uma janela em Copacabana como uma releitura sutil do gênero
policial clássico. E mais, como uma reescritura de Janela Indiscreta que, de alguma forma,
também dialoga com o gênero policial. Temos em ambas as obras a ênfase na imaginação
como tentativa de chegar à verdade, como veremos adiante, o que é característico da
narrativa policial pós-utópica, em oposição à narrativa de enigma, que privilegia a razão, e à
narrativa noir, que privilegia a ação. Ambas são voltadas ao público comum, ou seja, são
consideradas culturas de massa, mas também atendem a um púbico especializado, pois
conjugam a trama da narrativa policial e um certo questionamento, aliando entretenimento e
reflexão. Assim, apesar da aparente divergência social e temporal entre ambas as obras, uma
produção cinematográfica americana de 1954 e uma produção literária brasileira de 2001, as
mesmas têm muitas afinidades, já que a ficção brasileira pós-utópica possui como marca a
reescritura dos clássicos aliada à preocupação em reconquistar o leitor comum. Entretanto,
essa reescritura visa a um diálogo com o passado de forma positiva, sem a negação
modernista, através de um jogo intertextual de soma: ficção a partir de ficção, livro sobre
outro livro, literatura sobre cinema.
Percebemos em Uma janela em Copacabana um espaço de intertextualidade: a
narrativa de Garcia-Roza dialoga com a própria literatura policial, com a psicanálise e com o
cinema, propondo um jogo metalinguístico através das inúmeras referências que levam o
leitor a ocupar também o lugar de detetive. Segundo Samira Chalhub, “metalinguagem é
sempre um processo relacional entre linguagens, tratando-se de literatura, haverá sempre
esse diálogo intertextual.”(1998, p. 52). Já pela capa do livro, uma fotografia em preto e
branco de janelas de um prédio vistas de frente (Figura I), percebemos um apelo ao gênero
policial, indicando um clima de mistério, e a Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock. Há
uma grande semelhança entre esta e o cartaz de divulgação do filme (Figura II), como
podemos observar nas figuras abaixo:

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(Figura I) (Figura II)


Entretanto, a semelhança não se restringe a esse aspecto: em ambas as obras, tanto a
literária quanto a cinematográfica, um suposto crime é “presenciado” pela janela do
apartamento. As janelas, assim como o olhar, passam a ter papel central: “para o fotógrafo, é
o local onde será possível observar os fatos e provar a sua verdade; para Serena, a projeção
de seu medo de se tornar a próxima vítima”. (FREITAS, 2006, p. 122)
Comecemos pela obra literária. A personagem Serena, escolhendo um vestido para ir
a uma festa com o marido, abre a janela para sentir a temperatura externa e depara-se com
uma movimentação no apartamento em frente, do outro lado da rua: uma mulher
gesticulava, andando de um lado para outro, falando com outra pessoa, que parecia ser um
homem de boné. De repente, vê o que parece ser uma bolsa caindo pela janela. Olhando para
a calçada na tentativa de visualizar melhor o objeto arremessado, percebe cair um corpo de
mulher. Assim, Serena acredita ter presenciado um assassinato, apesar da polícia interpretar
o caso como suicídio.
Em Janela indiscreta, o fotógrafo Jeff não vê propriamente o crime, mas acredita
haver várias pistas de que seu vizinho matara a mulher. Jeff está em desvantagem em relação
a Serena, pois não há nenhuma prova de que ocorrera assassinato, já que não há um corpo.
Ambos possuem um relato duvidoso, pois não viram o ato do crime, porém, insistem
enfaticamente neste fato. Tanto Jeff quanto Serena procuram ajuda de um detetive
profissional: Mr. Doyle e Espinosa, respectivamente, que, justamente por encontrarem-se na
situação de detetives profissionais, mostram-se céticos quanto aos relatos, como percebemos
nos trechos transcritos abaixo, o primeiro de Espinosa e o segundo, de Doyle:
Você não viu o homem atirar Rosita pela janela, você não tem certeza quanto a eles estarem
discutindo ou brigando, você não sabe quem jogou a bolsa, você não tem certeza quanto a ter
sido vista pelo assassino...você só tem certeza de ter visto a mulher caindo. E mesmo assim,
não sabe se ela caiu, se ela se atirou ou se foi jogada. (GARCIA-ROZA, 2001, p. 201)

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Você não viu o corpo nem o ato. Como sabe que foi assassinato?

Jeff, apesar de não possuir nenhuma prova, está mais convicto do que Serena de que
houve realmente um assassinato. Apesar de só convencer Mr. Doyle no final do filme,
consegue convencer sua namorada Lisa e a enfermeira Stella, que se tornam uma espécie de
Watson, auxiliando o detetive a desvendar o enigma.
Ambos os relatos baseiam-se na imaginação dos detetives amadores, Jeff e Serena,
que contrasta com o que se espera de um detetive racional, à maneira de Sherlock Holmes. O
detetive profissional de Janela indiscreta reforça o caráter metalingüístico do gênero policial
através de seu nome, Mr. Doyle, uma referência a Connan Doyle, criador do famoso detetive
mencionado acima. Mr. Doyle, ao dizer: “Desperdicei muitos anos seguindo pistas por
intuição” ou ainda quando diz que “intuição feminina vende revistas, na vida real, ainda é
fantasia”, está dialogando com o detetive do romance noir, que privilegia a intuição na
resolução dos crimes. Percebemos também um diálogo com o romance de enigma, em que o
detetive amador desvenda o caso sem sair de casa, como no conto de Edgar Allan Poe,
sobressaindo-se em relação ao detetive profissional. Ou ainda quando Lisa adverte Jeff de
que ele não está atualizado com os romances policiais.
Serena e Jeff têm em comum o gosto pelo voyeurismo, o que marca a questão do
olhar como ponto central de ambas as narrativas. Aquela passa horas imóvel, sentada em
uma cadeira, com a luz apagada, vigiando com um binóculo o apartamento da morta. Este,
confinado em uma cadeira de rodas em função de um acidente, passa o dia vigiando os
vizinhos. Entretanto, a imobilidade de ambos é de natureza diversa: a de Jeff é de ordem
física, porém, a de Serena é de ordem psíquica, o que chega a preocupar seu ausente marido:
Já era noite quando, pelo segundo dia consecutivo, ao chegar em casa Guilherme Rodes
encontrou Serene no quarto de vestir, sentada na cadeira giratória, com a luz apagada,
olhando para o prédio em frente. O que até então pensara ser uma coisa passageira se
transformara em comportamento repetitivo que ocupava quase todo o tempo que ela estava
em casa. Não entendia de psicologia nem de psiquiatria ou coisas desse tipo, mas sabia o que
era um comportamento compulsivo. (GARCIA-ROZA, 2001, p. 203)
Os dois personagens insistem em provar o assassinato das mulheres. Entretanto,
lidam com a incredibilidade dos que estão à sua volta. Lisa, a princípio, também considera

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doentio o voyeurismo de Jeff. Serena chega a pensar que tudo foi fruto de sua imaginação, o
que fica evidente neste diálogo entre ela e Guilherme:
Guilherme esperou a mulher encontrar o lugar onde queria ficar, sentou-se na poltrona ao
lado, próximas o bastante para ele esticar o braço e tocar a mão da esposa. Serena encolheu o
braço como se estivesse levando um choque.
- O que está acontecendo? – perguntou ele.
- Está acontecendo que me sinto como se estivesse ficando louca.
- Por que você diz isso?
- Porque eu mesma já não sei mais em que acreditar. De tanto vocês me fazerem perguntas,
já não sei mais o que de fato aconteceu. (GARCIA-ROZA, 2001, p. 205/206)

Lisa e Serena mostram-se ligadas, de alguma forma, à mulher morta. Quando Stella
sugere que escavem o canteiro para procurar vestígios da mulher, a namorada de Jeff
concorda e exclama: “Quero conhecer Ms. Thorwald!”. Já Serena identifica-se tanto com a
personagem que chega a vê-la como uma espécie de duplo: “Sentia-se ligada a ela não como
duas pessoas distintas podem se sentir ligadas, mas como se fossem duas partes de uma
mesma pessoa”. (GARCIA-ROZA, 2001, p. 113)
O comportamento de Serena leva Espinosa a interrogá-la tendo como base o método
freudiano da livre associação no discurso, o que demonstra uma certa afinidade do detetive
com a prática da psicanálise e permite que façamos uma analogia entre a esta e a prática
detetivesca, já que ambas são o exercício da suspeita:
- Faça um esforço e procure se concentrar na pessoa que estava com ela.
Feche os olhos e descreva a cena.
Serena fechou os olhos, ficou um tempo em silêncio e começou a falar.
- Duas pessoas falando em voz alta. Não. Só uma delas estava falando.
Enquanto falava, andava de um lado para outro.
(...)
- Está bem. Feche os olhos de novo. Sobre esse outro que você diz ser o
assassino: o que você é capaz de me dizer sobre ele?
- A única coisa que consigo dizer é que ele era um pouco mais alto que a
mulher e usava boné. (GARCIA-ROZA, 2001, p. 200-201)

No romance de Garcia-Roza, o detetive profissional também é voltado à imaginação;


seu relato, assim como o de Serena, também não é passível de credibilidade:

Vou resumir a história para você. Nada é definitivo, muitos pontos precisam ser esclarecidos
e as lacunas da história, que são muitas, foram preenchidas pela minha imaginação, o que
torna este relato uma obra de ficção. Minha esperança é que algum dia essa ficção possa ser
substituída pela versão verdadeira. (GARCIA-ROZA, 2001, p. 220)

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Espinosa começa a relatar sua versão para os fatos que, como ele mesmo diz, é uma
obra de ficção. O relato do detetive, portanto, pode ser visto como um jogo metaficcional,
por ser uma “ficção que explicita (...) sua condição de ficção, quebrando assim o contrato de
ilusão entre o autor e o leitor” (KRAUSE), neste caso, entre detetive e leitor. O detetive,
que tem a função de alcançar a verdade, conscientiza-se de que esta não passa de uma
construção discursiva, na maioria das vezes, inatingível: “Toda certeza, como você disse, é
íntima, subjetiva. Certeza não é verdade.”(GARCIA-ROZA, 2001, p. 224) No romance
policial pós-utópico, há uma desconstrução da idéia de verdade que, ou não é solucionada,
ou é posta em dúvida. Em outras palavras, a verdade é substituída pela versão. Assim, é
muito comum que, no final do romance, a trama não seja totalmente elucidada pelo detetive,
proporcionando ao leitor uma participação mais ativa, pois a ele caberá a interpretação final.
O leitor, assim, assume também o lugar de detetive.
Se por um lado o leitor é detetive, por outro, o detetive Espinosa é um leitor, não
apenas no sentido de ler enigmas, o que é inerente a todo detetive, mas no sentido de ler
literatura, o que faz com que o romance de Garcia-Roza, mais uma vez, adquira um caráter
metalinguístico. Leitor de romances policiais, “o que procurava nos livros era boas
narrativas, histórias bem contadas” (p. 19), características facilmente encontradas em
romances policiais. Em sua peculiar estante, “grandes clássicos da literatura compartilhavam
a mesma pilha com a velha Coleção Amarela de romances policiais herdada do pai”.(p. 37)
Empolgado com o fato de ter aberto um sebo a uma quadra da delegacia, Espinosa divaga:
“Achava que ainda não estava preparado para a novidade. Talvez no dia seguinte. Melhor
deixar para sábado, quando teria mais tempo. Além do mais, não estava precisando de mais
leitura no momento. Mal começara o livro do Woolrich herdado pela avó”. (GARCIA-
ROZA, 2001, p. 112)
Assim, para completar esse jogo, Espinosa, durante a investigação dos crimes, estava
lendo o livro de Woolrich, o mesmo Woolrich autor do conto que influenciou Janela
Indiscreta. Entre o conto e o filme há muitas semelhanças, como os nomes do protagonista,
do antagonista e o enredo, que é praticamente o mesmo, entretanto, naquele não há a
presença de duas personagens que dão um toque especial à trama cinematográfica: a

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espirituosa enfermeira Stella e a deslumbrante Lisa. Além disso, no conto, o detetive


profissional chama-se Boyne, o que ressalta a intenção de Hitchcock em fazer uma
referência ao gênero policial substituindo este nome por outro, parecido, porém, como
vimos, cheio de significado na literatura policial: Doyle. No conto de Woolrich percebemos
um conflito do detetive, que deveria privilegiar a razão em detrimento da intuição,
entretanto, declara: “a parte racional da minha mente estivera bem aquém da parte instintiva,
subconsciente. (...) Agora, as duas haviam se igualado”. (2008, p. 22) Temos, portanto, nas
três obras, de Woolrich, Hitchcock e Garcia-Roza, um questionamento acerca das
convenções do gênero, mais propriamente do romance de enigma em que, como já foi
mencionado, o mais importante são os procedimentos técnicos e o raciocínio lógico do
detetive.
Temos um jogo metaficcional também em Janela indiscreta, através da aparição de
Hitchcock no filme, o conhecido “cameo”, em que o diretor surge como personagem,
consertando um relógio na casa de um dos vizinhos de Jeff, o pianista. Ao misturar as
categorias diretor e personagem, ressalta-se o caráter ficcional do filme. Além disso, o filme
começa com as cortinas sendo abertas, como no cinema antigo. É comum que, durante a
exibição de um filme, o espectador confunda-se com o herói, projetando-se nele. Em Janela
indiscreta ocorre o inverso, ou seja, o herói é que se projeta no espectador. A imobilidade e
o voyeurismo do protagonista o tornam um personagem espectador dos outros personagens
que estão em cena e o aproximam do espectador do cinema. Como em um espelho, o
espectador-personagem encontra na tela o personagem-espectador. Ambos colocam-se na
posição de voyeur, pois, como diz Stella, “viramos uma raça de xeretas”. O gênero policial
possui uma tendência, portanto, à metalinguagem, que se apresenta de diversas maneiras,
quer quando trata de outros textos ou gêneros literários, quer quando se volta a si mesmo,
adquirindo um “caráter autoreflexivo”. (GOMES) A metaficção estaria imersa nesse
conceito de metalinguagem, como uma ficção que tem como centro de reflexão a própria
ficção.
Comparar literatura e cinema é justapor palavra e imagem. Ambos são captados pelo
olhar. E ambos, parafraseando Leonardo da Vinci, assim como os olhos, são “espelhos do

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mundo”. Enquanto Uma janela em Copacabana é um romance policial em que o detetive


protagonista é leitor de narrativas policiais, Janela Indiscreta é um filme em que o detetive
protagonista é fotógrafo, ou seja, um produtor de imagens. Hitchcock e Garcia-Roza
reafirmam a vocação intertextual e metalinguística da literatura policial ao realizarem um
jogo não somente com ela, mas também com o cinema e ainda com a psicanálise,
trabalhando com imagens, palavras e, acima de tudo, com o olhar, essa “janela da alma”.

ABSTRACT: This article aims to analyse two works which communicate with the crime novel genre: Rear
Window, by Alfred Hitchcock, and Uma janela em Copacabana, by Luiz Alfredo Garcia-Roza. Both the film
and the literary works reveal the metalinguistic vocation of the genre through numerous intertextual references,
having as a central point the (main character's) sight.

Key-words: crime novel genre; metalanguage; sight.

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