Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO: Este artigo visa a analisar duas obras que dialogam com o gênero policial: Janela indiscreta, de
Alfred Hitchcock, e Uma janela em Copacabana, de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Tanto a obra cinematográfica
quanto a literária revelam a vocação metalinguística do gênero através de inúmeras referências intertextuais,
tendo como ponto central o olhar.
1
Mestranda em Literatura brasileira - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientador: Prof. Dr. Flávio
Martins Carneiro.
1
ISSN: 1983-8379
2
ISSN: 1983-8379
3
ISSN: 1983-8379
Podemos entender Uma janela em Copacabana como uma releitura sutil do gênero
policial clássico. E mais, como uma reescritura de Janela Indiscreta que, de alguma forma,
também dialoga com o gênero policial. Temos em ambas as obras a ênfase na imaginação
como tentativa de chegar à verdade, como veremos adiante, o que é característico da
narrativa policial pós-utópica, em oposição à narrativa de enigma, que privilegia a razão, e à
narrativa noir, que privilegia a ação. Ambas são voltadas ao público comum, ou seja, são
consideradas culturas de massa, mas também atendem a um púbico especializado, pois
conjugam a trama da narrativa policial e um certo questionamento, aliando entretenimento e
reflexão. Assim, apesar da aparente divergência social e temporal entre ambas as obras, uma
produção cinematográfica americana de 1954 e uma produção literária brasileira de 2001, as
mesmas têm muitas afinidades, já que a ficção brasileira pós-utópica possui como marca a
reescritura dos clássicos aliada à preocupação em reconquistar o leitor comum. Entretanto,
essa reescritura visa a um diálogo com o passado de forma positiva, sem a negação
modernista, através de um jogo intertextual de soma: ficção a partir de ficção, livro sobre
outro livro, literatura sobre cinema.
Percebemos em Uma janela em Copacabana um espaço de intertextualidade: a
narrativa de Garcia-Roza dialoga com a própria literatura policial, com a psicanálise e com o
cinema, propondo um jogo metalinguístico através das inúmeras referências que levam o
leitor a ocupar também o lugar de detetive. Segundo Samira Chalhub, “metalinguagem é
sempre um processo relacional entre linguagens, tratando-se de literatura, haverá sempre
esse diálogo intertextual.”(1998, p. 52). Já pela capa do livro, uma fotografia em preto e
branco de janelas de um prédio vistas de frente (Figura I), percebemos um apelo ao gênero
policial, indicando um clima de mistério, e a Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock. Há
uma grande semelhança entre esta e o cartaz de divulgação do filme (Figura II), como
podemos observar nas figuras abaixo:
4
ISSN: 1983-8379
5
ISSN: 1983-8379
Você não viu o corpo nem o ato. Como sabe que foi assassinato?
Jeff, apesar de não possuir nenhuma prova, está mais convicto do que Serena de que
houve realmente um assassinato. Apesar de só convencer Mr. Doyle no final do filme,
consegue convencer sua namorada Lisa e a enfermeira Stella, que se tornam uma espécie de
Watson, auxiliando o detetive a desvendar o enigma.
Ambos os relatos baseiam-se na imaginação dos detetives amadores, Jeff e Serena,
que contrasta com o que se espera de um detetive racional, à maneira de Sherlock Holmes. O
detetive profissional de Janela indiscreta reforça o caráter metalingüístico do gênero policial
através de seu nome, Mr. Doyle, uma referência a Connan Doyle, criador do famoso detetive
mencionado acima. Mr. Doyle, ao dizer: “Desperdicei muitos anos seguindo pistas por
intuição” ou ainda quando diz que “intuição feminina vende revistas, na vida real, ainda é
fantasia”, está dialogando com o detetive do romance noir, que privilegia a intuição na
resolução dos crimes. Percebemos também um diálogo com o romance de enigma, em que o
detetive amador desvenda o caso sem sair de casa, como no conto de Edgar Allan Poe,
sobressaindo-se em relação ao detetive profissional. Ou ainda quando Lisa adverte Jeff de
que ele não está atualizado com os romances policiais.
Serena e Jeff têm em comum o gosto pelo voyeurismo, o que marca a questão do
olhar como ponto central de ambas as narrativas. Aquela passa horas imóvel, sentada em
uma cadeira, com a luz apagada, vigiando com um binóculo o apartamento da morta. Este,
confinado em uma cadeira de rodas em função de um acidente, passa o dia vigiando os
vizinhos. Entretanto, a imobilidade de ambos é de natureza diversa: a de Jeff é de ordem
física, porém, a de Serena é de ordem psíquica, o que chega a preocupar seu ausente marido:
Já era noite quando, pelo segundo dia consecutivo, ao chegar em casa Guilherme Rodes
encontrou Serene no quarto de vestir, sentada na cadeira giratória, com a luz apagada,
olhando para o prédio em frente. O que até então pensara ser uma coisa passageira se
transformara em comportamento repetitivo que ocupava quase todo o tempo que ela estava
em casa. Não entendia de psicologia nem de psiquiatria ou coisas desse tipo, mas sabia o que
era um comportamento compulsivo. (GARCIA-ROZA, 2001, p. 203)
Os dois personagens insistem em provar o assassinato das mulheres. Entretanto,
lidam com a incredibilidade dos que estão à sua volta. Lisa, a princípio, também considera
6
ISSN: 1983-8379
doentio o voyeurismo de Jeff. Serena chega a pensar que tudo foi fruto de sua imaginação, o
que fica evidente neste diálogo entre ela e Guilherme:
Guilherme esperou a mulher encontrar o lugar onde queria ficar, sentou-se na poltrona ao
lado, próximas o bastante para ele esticar o braço e tocar a mão da esposa. Serena encolheu o
braço como se estivesse levando um choque.
- O que está acontecendo? – perguntou ele.
- Está acontecendo que me sinto como se estivesse ficando louca.
- Por que você diz isso?
- Porque eu mesma já não sei mais em que acreditar. De tanto vocês me fazerem perguntas,
já não sei mais o que de fato aconteceu. (GARCIA-ROZA, 2001, p. 205/206)
Lisa e Serena mostram-se ligadas, de alguma forma, à mulher morta. Quando Stella
sugere que escavem o canteiro para procurar vestígios da mulher, a namorada de Jeff
concorda e exclama: “Quero conhecer Ms. Thorwald!”. Já Serena identifica-se tanto com a
personagem que chega a vê-la como uma espécie de duplo: “Sentia-se ligada a ela não como
duas pessoas distintas podem se sentir ligadas, mas como se fossem duas partes de uma
mesma pessoa”. (GARCIA-ROZA, 2001, p. 113)
O comportamento de Serena leva Espinosa a interrogá-la tendo como base o método
freudiano da livre associação no discurso, o que demonstra uma certa afinidade do detetive
com a prática da psicanálise e permite que façamos uma analogia entre a esta e a prática
detetivesca, já que ambas são o exercício da suspeita:
- Faça um esforço e procure se concentrar na pessoa que estava com ela.
Feche os olhos e descreva a cena.
Serena fechou os olhos, ficou um tempo em silêncio e começou a falar.
- Duas pessoas falando em voz alta. Não. Só uma delas estava falando.
Enquanto falava, andava de um lado para outro.
(...)
- Está bem. Feche os olhos de novo. Sobre esse outro que você diz ser o
assassino: o que você é capaz de me dizer sobre ele?
- A única coisa que consigo dizer é que ele era um pouco mais alto que a
mulher e usava boné. (GARCIA-ROZA, 2001, p. 200-201)
Vou resumir a história para você. Nada é definitivo, muitos pontos precisam ser esclarecidos
e as lacunas da história, que são muitas, foram preenchidas pela minha imaginação, o que
torna este relato uma obra de ficção. Minha esperança é que algum dia essa ficção possa ser
substituída pela versão verdadeira. (GARCIA-ROZA, 2001, p. 220)
7
ISSN: 1983-8379
Espinosa começa a relatar sua versão para os fatos que, como ele mesmo diz, é uma
obra de ficção. O relato do detetive, portanto, pode ser visto como um jogo metaficcional,
por ser uma “ficção que explicita (...) sua condição de ficção, quebrando assim o contrato de
ilusão entre o autor e o leitor” (KRAUSE), neste caso, entre detetive e leitor. O detetive,
que tem a função de alcançar a verdade, conscientiza-se de que esta não passa de uma
construção discursiva, na maioria das vezes, inatingível: “Toda certeza, como você disse, é
íntima, subjetiva. Certeza não é verdade.”(GARCIA-ROZA, 2001, p. 224) No romance
policial pós-utópico, há uma desconstrução da idéia de verdade que, ou não é solucionada,
ou é posta em dúvida. Em outras palavras, a verdade é substituída pela versão. Assim, é
muito comum que, no final do romance, a trama não seja totalmente elucidada pelo detetive,
proporcionando ao leitor uma participação mais ativa, pois a ele caberá a interpretação final.
O leitor, assim, assume também o lugar de detetive.
Se por um lado o leitor é detetive, por outro, o detetive Espinosa é um leitor, não
apenas no sentido de ler enigmas, o que é inerente a todo detetive, mas no sentido de ler
literatura, o que faz com que o romance de Garcia-Roza, mais uma vez, adquira um caráter
metalinguístico. Leitor de romances policiais, “o que procurava nos livros era boas
narrativas, histórias bem contadas” (p. 19), características facilmente encontradas em
romances policiais. Em sua peculiar estante, “grandes clássicos da literatura compartilhavam
a mesma pilha com a velha Coleção Amarela de romances policiais herdada do pai”.(p. 37)
Empolgado com o fato de ter aberto um sebo a uma quadra da delegacia, Espinosa divaga:
“Achava que ainda não estava preparado para a novidade. Talvez no dia seguinte. Melhor
deixar para sábado, quando teria mais tempo. Além do mais, não estava precisando de mais
leitura no momento. Mal começara o livro do Woolrich herdado pela avó”. (GARCIA-
ROZA, 2001, p. 112)
Assim, para completar esse jogo, Espinosa, durante a investigação dos crimes, estava
lendo o livro de Woolrich, o mesmo Woolrich autor do conto que influenciou Janela
Indiscreta. Entre o conto e o filme há muitas semelhanças, como os nomes do protagonista,
do antagonista e o enredo, que é praticamente o mesmo, entretanto, naquele não há a
presença de duas personagens que dão um toque especial à trama cinematográfica: a
8
ISSN: 1983-8379
9
ISSN: 1983-8379
ABSTRACT: This article aims to analyse two works which communicate with the crime novel genre: Rear
Window, by Alfred Hitchcock, and Uma janela em Copacabana, by Luiz Alfredo Garcia-Roza. Both the film
and the literary works reveal the metalinguistic vocation of the genre through numerous intertextual references,
having as a central point the (main character's) sight.
Referências bibliográficas
10
ISSN: 1983-8379
11