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Especial
A revolta do homem absurdo
Albert Camus foi um homem de muitas faces: foi jornalista, romancista, dedicou-se ao teatro, foi militante político e polemista. Os sentimentos
que lhe impulsionaram sua obra, agiam frente a um mundo que lhe era estranho, absurdo, mas também fraternal e cheio de sol

POR JORGE LUIS GUTIÉRREZ

"Camus era uma aventura singular de nossa cultura, um movimento cujas fases e cujo termo final tratávamos de compreender. Representava neste século e contra a
história, o herdeiro atual dessa longa fila de moralistas cujas obras constituem talvez o que há de mais original nas letras francesas." Estas palavras de Jean-Paul
Sartre sobre seu amigo Albert Camus, são quiçá as que melhor o descrevem. Pois Camus, nascido na Argélia, em 1913, é um dos pensadores mais profundos e
originais da língua francesa. Um indício disto é que lhe foi outorgado o Prêmio Novel de Literatura, em 1957. O pensamento de Camus envolve alguns dos grandes
temas da Filosofia: o absurdo, o sentido da existência, a revolta e o amor pela vida. "Eu amo a vida, eis a minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto que não tenho
nenhuma imaginação para o que não for vida", estas palavras colocadas por Camus na boca de Jean-Baptiste Clamence, personagem central do livro A Queda, são
uma boa síntese de sua filosofia.

Albert Camus foi um homem de muitas faces: foi jornalista, romancista, dedicou- se ao teatro, militante político e polemista. Famosas são suas polêmicas com Roland
Barthes sobre o livro A Peste, e com Jean-Paul Sartre sobre o livro O Homem Revoltado. Em Camus, sua vida e sua obra entrelaçam-se de uma maneira fecunda e
criativa. São seus sentimentos que impulsionam sua obra, seu sentir frente a um mundo que lhe era estranho, absurdo, mas também fraternal e cheio de sol. Para
Camus, um grande escritor sempre traz consigo seu mundo e sua prédica. E o mundo de Camus é um mundo do absurdo, num primeiro momento, e da revolta num
segundo. Da fraternidade e da solidariedade. Dos mal-entendidos e da miséria. Do sol e dos desertos, especialmente no livro O estrangeiro, onde o personagem
Meursault mata "por causa do sol" frente ao mar e ao deserto. Porém, não são somente as personagens que se sentem como estrangeiros, Camus sentese também
estrangeiro neste mundo, por isso o titulo do livro. Sente-se exilado, atuando sempre num cenário para o qual não estava preparado e não consegue entender. Suas
expectativas são sempre diferentes das que a vida oferece. Então, nasce o sentimento de exílio. Ele afirma: "não existe pátria para quem desespera e, quanto a mim,
sei que o mar me precede e me segue, e minha loucura está sempre pronta. Aqueles que se amam e são separados podem viver sua dor, mas isso não é desespero:
eles sabem que o amor existe. Eis porque sofro, de olhos secos, este exílio. Espero ainda. Um dia chega, enfim."

O estrangeiro, que se passa na Argélia, foi publicado em 1942 e é, possivelmente, o romance mais conhecido de Camus
Ele não é um filósofo preocupado com definições nem com um rigor conceitual. Para ele, a Filosofia sempre é vida e os parâmetros do filosofar são
sempre subjetivos e ancorados na sua vida. Sua filosofia é um pensar sobre a existência, porém não desde seus aspectos teóricos ou conceituais,
mas práticos e existenciais. Assim, constantemente, está referindo-se a ele mesmo. E novamente serão as personagens do livro A queda que
falam: "Nunca me lembrei senão de mim mesmo. Nunca me preocupei com os grandes problemas, eu vivia intensamente e num livre abandono à
felicidade." A subjetividade vai até o próprio conceito de verdade, quando Camus afirma "chamo verdade a tudo o que continua." Assim, Camus é
um filósofo preocupado com os simples, cotidianos e profundos problemas da existência. Especialmente com a felicidade. E quando se refere a ela,
novamente suas personagens expressam-se. Vejamos um exemplo: "então, planando em pensamento por cima de todo este continente que me é
subordinado sem saber, bebendo a luz de absinto que se eleva, ébrio, enfim, de palavras más, sou feliz, sou feliz, estou lhe dizendo, proíbo-o de
não acreditar que sou feliz, que morro de felicidade! Ah, sol, praias, e as ilhas sob o os alísios, juventude cuja lembrança desespera!" Sempre sobre
uma terra onde tudo é "Tarde demais, longe demais".

A obra de Camus é extensa e variada. Analisaremos alguns aspectos dela. Em Camus, a Filosofia e literatura misturam- se criativamente. A
Filosofia vai sendo elaborada mediante os diálogos das personagens, do enredo das obras, nos romances, nas peças de teatro. É a ficção que
caminha com a Filosofia através da obra de Camus. E é através das personagens que vai delineando-se sua filosofia e seu sentimento frente ao
mundo. Vejamos o caso de Janine. Ela é a única mulher protagonista das obras do francês, personagem central do conto A mulher adultera. Ela
enfrenta um problema complexo: seu exílio é seu próprio corpo. Por isso, embora Janine estivesse lá, nada se assemelhava ao que havia
imaginado. Vemos novamente o problema das expectativas, das esperanças, do que imaginamos e o que de fatos são as coisas. Por isso para
Janine nada se passava como previra, nem nada se assemelhava ao que havia esperado. E, novamente, o sentimento que se está vivendo num Para o franco-
mundo estranho, num cenário diferente do que devia ser. Por isso Janine não sabia onde colocar a bolsa, onde se colocar a si própria. Ela sentia argelino Albert
apenas a sua solidão, o frio que a penetrava e um peso maior no lugar do coração. Camus coloca nessa mulher os matizes de sua filosofia, e Camus, o homem
absurdo é aquele
novamente aparecem as palavras "falta" e "espera". Vejamos o texto: "Lá embaixo, mais para o sul, no lugar em que o céu e a terra se uniam numa que, sem o negar,
linha pura, lá embaixo parecia-lhe que, de repente, alguma coisa até aquele dia desconhecia e que, no entanto, sempre lhe fi- zera falta, estava à nada faz pelo
sua espera.". E ainda: "Janine não conseguia se arrancar à contemplação desses fogos à deriva. Girava com eles, e o mesmo caminhar imóvel eterno
unia-a, pouco a pouco, ao seu ser mais profundo, onde o frio e o desejo agora se combatiam. Diante dela, as estrelas caíam uma a uma, depois
extinguiam-se entre as pedras do deserto; a cada vez, Janine abria-se um pouco mais para a noite. Respirava, esquecia o frio, o peso dos seres, a vida demente ou
imobilizada, a longa angústia de viver e morrer. Depois de tantos anos durante os quais, fugindo do medo, correra loucamente sem objetivo, finalmente ela se
detinha. Parecia que encontrara suas raízes, a seiva tornava a subir em seu corpo, que já não temia". Tudo isso tornava Janine uma mulher adúltera: ela se abria
para a noite e deixava a seiva e o frio subir por seu corpo. Ela era adúltera porque respirava esquecida do frio que a penetrava e do peso dos seres. Era adúltera
porque traía sua vida demente e imobilizada e a longa angústia de viver e morrer e entregava- se a uma outra vida, a outros sentimentos, e parecia-lhe que
encontrara finalmente algo que sempre esteve á sua espera e que ela até aquele dia desconhecia, porém sempre lhe fizera falta.

Em 1950, a editora Gallimard publicou a obra Noces e, em 1954, L´éte. Estas obras hoje formam um só livro e foram publicadas com o titulo Noces suivi de
L´été (em português, Núpcias, o verão, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979). Esta é uma obra da juventude de Camus. Nela ainda não aparecem os temas
que surgirão em livros posteriores, como o absurdo e a revolta. Nesta etapa Camus aceita a vida, e a vive, sem entrar na problemática filosófica dela. Há
uma espécie de união com a natureza e, especialmente, com o sol e o mar, um certo otimismo que nasce dessa união. Vejamos um texto de exemplo:
"Caminhamos ao encontro do amor e do desejo. Não buscamos lições, nem a amarga filosofia que se exige da grandeza. Além do sol, dos beijos e dos
perfumes selvagens, tudo o mais nos parece fútil. Quanto a mim, não procuro estar sozinho nesse lugar. Muitas vezes estive aqui com aqueles que amava, e
discernia em seus traços o claro sorriso que neles tomava a face do amor. Deixo a outros a ordem e a medida. Domina-me por completo a grande
libertinagem da natureza e do mar." Nesses cenários de grandeza natural e liberdade humana, Camus afirma que não há vergonha alguma em ser feliz.
Tudo está junto, a glória, a alegria, os encontros, a brisa fresca e o orgulho da condição de homem. Escutemos novamente ao próprio Camus: "Aqui,
compreendo o que se denomina glória: o direito de amar sem medida. Existe apenas um único amor neste mundo. Estreitar um corpo de mulher e também
reter de encontro a si essa alegria estranha que desce do céu para o mar. Daqui a pouco, quando me atirar no meio dos absintos, a fim de que seu perfume
penetre meu corpo, terei consciência, contra todos os preconceitos, de estar realizando uma verdade que é a do sol e que será também a de minha morte.
Em certo sentido, é justamente a minha vida que estou representando aqui, uma vida com sabor de pedra quente, repleta de suspiros do
mar e de cigarras, que agora começam a cantar. A brisa é fresca e o céu, azul. Gosto imensamente desta vida e desejo falar sobre ela com
liberdade: dá-me o orgulho de minha condição de homem."

É então que Camus compreende que há um tempo para viver e um tempo para testemunhar a vida. Essa vida que se expande sobre o
mar, no silêncio enorme do meio-dia. Então Camus diz: "Todo ser belo tem o orgulho natural de sua beleza, e o mundo, hoje, deixa seu
orgulho destilar por todos os poros. Diante dele, por que haveria de negar a alegria de viver, se conheço a maneira de não encerrar tudo
nessa mesma alegria de viver?" E nessa terra os deuses resplandecentes retornam cada dia à sua morte cotidiana. E onde outros deuses
virão, nascendo do coração da terra para serem mais sombrias, suas faces devastadas.

O estrangeiro foi publicado em 1942 e é, possivelmente, o romance mais conhecido de Camus. Começa com a conhecida frase "Hoje,
morreu mamãe, Ou talvez, ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames. Isto
não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem". Nesta obra ele nos apresenta um mundo incoerente. A personagem principal é Meursault e
será ele que terá que viver a dimensão absurda da vida humana, dimensão sempre presente, que acompanha ao homem por toda sua
existência. Aprofunda nesta obra sua visão do absurdo de um modo literário, e narra a experiência absurda de Meursault, através das
muitas situações - absurdas - que ele viverá. O tédio, a repetição de situações, as pequenas coisas, as situações sem sentido, os
pensamentos, são os elementos do cotidiano absurdo. A vida é um eterno sem sentido. Só fica uma espécie de saudade da felicidade,
sendo que o mais freqüente é a indiferença frente ao mundo. Mas nele também estão a natureza, as ruas, os cenários em que vivemos a
experiência do absurdo. "As luzes da rua acenderam-se bruscamente e fizeram empalidecer as primeiras estrelas que subiam na noite.
Senti os olhos se cansarem, de tanto olhar as calçadas, com sua carga de homens e de luzes."

Mas a vida de Meursault, sem sentido, rotineira e medíocre, vê-se bruscamente mudada quando ele assassina um árabe. Ele é levado
para a cadeia e será lá que se desenvolverá a segunda parte do livro. Agora ele terá tempo para pensar. É então que o absurdo fazse mais Cartaz do filme O
evidente. Meursault é condenado à morte. Agora ele sabe que vai morrer. O absurdo da vida torna-se ainda mais evidente. E também o estrangeiro,
tédio, que só poderá ser superado pelas lembranças da vida anterior: "todo o problema, ainda uma vez, estava em matar o tempo. Acabei criado a partir da
obra homônima
por não me entediar mais, a partir do instante em que aprendi a recordar." Assim, as lembranças têm uma força quase que redentora: de Camus,
"compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia, sem dificuldade, passar cem anos numa prisão. Teria estrelado pelo
recordações suficientes para não se entediar." italiano Marcello
Mastroianni

A MORTE FELIZ
"[...] A manhã que despontou estava cheia de pássaros e de ar fresco. O sol subiu rapidamente e de um salto ficou
acima do horizonte. A terra cobriu-se de ouro e de calor. Na manhã, o céu e o mar se salpicavam de luzes azuis e
amarelas, com grandes manchas que saltavam. Um vento leve erguera-se, e pelas janelas um ar com gosto de sal
vinha refrescar as mãos de Mersault. Ao meio-dia o vento cessou, o dia explodiu como um fruto maduro e sobre toda
a extensão do mundo escorreu como um suco morno e sufocante, ao som de um repentino concerto de cigarras. O
mar cobriu-se deste suco dourado como um óleo e devolveu à terra esmagada pelo sol um sopro quente, que a
impregnou, exalando cheiros de absinto, de alecrim e de pedra quente. Da cama, Mersault captou esse choque e
essa oferenda e abriu os olhos sobre o mar imenso e curvo, reluzente, povoado de sorrisos de seus deuses. Deu-se
conta, de repente, de que estava sentado na cama e que o rosto de Lucienne estava bem perto do seu. Lentamente
subia dentro dele, como que desde o ventre, uma pedra que se encaminhava para a garganta. Respirava cada vez
mais rápido, aproveitando as passagens. A coisa continuava a subir. Olhou para Lucienne. Sorriu sem uma
crispação, e também esse sorriso vinha do interior. Recostou-se na cama, sentindo a lenta subida que havia em si.
Olhou para os lábios inchados de Lucienne e, por trás dele, o sorriso da terra. Ele os via com o mesmo olhar e com o
mesmo desejo. "Daqui a um minuto, daqui a um segundo", pensou. A subida terminara. E, pedra entre as pedras, ele
retornou, na alegria de seu coração, à verdade dos mundos imóveis."

Trecho do livro A morte feliz, de Albert Camus, da Editora Record. Este romance não foi publicado em vida. Escrito
entre 1936 e 1938, pode ser considerado uma espécie de preâmbulo de O estrangeiro

Um dos problemas que será apresentado ao personagem pelo capelão da prisão é o de Deus, que pode ser resumido na esperança numa outra vida. Ante a
pergunta do capelão se ele não gostaria de ter uma outra vida, Meursault responde que nunca se muda de vida, pois todas se equivalem e que a sua não lhe
desagradava em absoluto. E quando o capelão lhe pergunta, "não tem, então, nenhuma esperança e consegue viver com o pensamento de que vai morrer
todo por inteiro?", Meursault simplesmente responde sim. O capelão insiste: "não, não consigo acreditar. Tenho certeza de que já lhe ocorreu desejar uma
outra vida". Meursault responde que sim, mas que isso era tão importante quanto desejar ser rico, nadar muito de pressa ou ter uma boca mais bem feita.
Tudo isso era para Meursault da mesma ordem. Quando o capelão quis saber como ele imaginava essa outra vida, Meursault lhe responde gritando: "uma
vida na qual me pudesse lembrar desta vida". Após a saída do capelão, a vida continua na cela, Meursault narra: "Reencontrei a calma, depois que ele
partiu. Estava esgotado. Atirei-me sobre o leito. Acho que dormi, pois acordei com estrelas sobre o rosto. Subia até mim os ruídos do campo. Aromas de
noite de terra e de sol refrescavam-me as têmporas. A paz maravilhosa deste verão adormecido entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no
limite da noite, soaram sirenes. Anunciavam partidas para um mundo que me era para sempre indiferente." Meursault também não se arrepende, pois,
segundo as suas palavras, nunca conseguira se arrepender verdadeiramente de nada.

Assim, prisioneiro, entediado e sabendo que vai morrer, Meursault dedica-se a lembrar. E as lembranças também adquirem as tonalidades do absurdo.
"Assaltaram- me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros
de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie." Porém, nessa situação há algumas certezas. A primeira é que
nunca se é completamente feliz e a segunda que a vida não vale a pena ser vivida. A esperança também deixa de ter sentido, considerando que está
condenado à morte.

Nesse enredo, Marie Cardona, uma antiga datilógrafa do escritório, sua namorada, é uma das lembranças mais freqüentes. Ele tomava banhos de mar com
ela ("Eu estava ainda na água, quando ela já se deitara na bóia, de bruços. Virou-se para mim. Os cabelos caíam-lhe nos olhos e sorria. Quando o sol ficou
forte demais, ela mergulhou e eu a segui. Alcancei-a, passei o braço em volta da sua cintura e nadamos juntos. Ela continuava a rir."), iam ao cinema ("O
filme tinha momentos engraçados e outros realmente idiotas. A sua perna estava encostada na minha. Acariciava-lhe os seios."), ficavam nus na cama
("Desejeia intensamente, porque usava um belo vestido de listras vermelhas e brancas e sandálias de couro. Adivinhavam-se seus seios firmes e o
queimado do sol lhe dava um aspecto de flor").

Uma das cenas do romance onde fica mais claro o que é o sentimento de absurdo frente à vida é quando Marie pergunta a Meursault se quer casar com ela.
Ele responde que tanto fazia, mas que, se ela queria, poderiam se casar. Marie quer saber então se ela a ama. Meursault responde que não a amava, porém
que isso não queria dizer nada. Marie então pergunta que nesse caso, por que casarse com ela. Meursault responde que isso não tinha importância alguma
e que, se ela o desejava, poderiam-se casar, e que era ela quem o estava pedindo, e ele se contentava em dizer que sim. Maria argumenta que o casamento
é uma coisa séria. Meursault responde que não. Maria fica em silêncio olhando para ele, para logo perguntar se o pedido tivesse sido feito por outra mulher,
com a qual tivesse o mesmo relacionamento, ele teria respondido do mesmo modo. Meursault responde que sim. Frente a isso Marie pergunta a si própria se
ama a Meursault. Logo, após outro instante de silêncio, Marie fala para Meursault que ele é uma pessoa estranha e que o amava certamente por isso
mesmo, mas que talvez, um dia, pelos mesmos motivos, ele a decepcionaria. Como Meursault ficou calado, Marie o tomou do braço sorrindo, e lhe diz que
queria casar com ele. Meursault respondeu que sim, desde que ela quisesse.

Mas, voltemos à prisão e Meursault condenado à morte. Na sua cela ele continua narrando o que lhe está acontecendo: "Do fundo do meu futuro, durante
toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua
passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia."

Assim, a vida na prisão revela o tédio e o absurdo, a falta de sentido e a inutilidade da própria vida. Esse sentimento é mais forte quando ele tem que
enfrentar o tribunal que o julgava. Enquanto o advogado argumentava em defesa de Meursault, ele ouvia lá fora a buzina do vendedor de sorvete. Mas é
então que as lembranças chegam. Então tudo se torna confuso e estranho, absurdo, inútil. Frente a isso, Meursault só quer voltar para a sua cela e dormir. E
finaliza dizendo: "Mal ouvi o advogado clamar, para concluir, que os jurados não gostariam certamente de condenar à morte um trabalhador honesto, perdido
por um minuto de desvario; e pedir as circunstâncias atenuantes para um crime cujo remorso eterno, o mais seguro dos castigos, eu já arrastava comigo".

O livro termina evocando a fraternidade do mundo, a natureza e a vida. São as últimas palavras de um condenado à morte e nelas parece estar
condensado todo seu sentimento frente à vida e a saudade de uma vida que logo acabaria definitivamente e ante a qual só podia sentir indiferença.
Escutemos sua última fala: "Também eu me sinto pronto a reviver tudo. Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança,
diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu me abria pela primeira vez à tenra indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo, tão
fraternal, enfim, senti que fora feliz e que ainda o era".

O mito de Sísifo foi publicado em 1942 e é, possivelmente, a obra mais fi- losófica de Camus. Agora ele problematizará filosoficamente a vida e refletirá sobre
ela. Nesta obra o tema do absurdo aparece em toda sua plenitude. E será o conceito fundamental para compreender a existência humana, do homem
comum, que quer ser feliz e se interroga. A lucidez será a atitude essencial deste homem. O livro começa colocando o único problema fundamental e,
verdadeiramente, sério: o suicídio, isto é, julgar se a vida merece ou não ser vivida. Para o filósofo, todos os outros problemas vêm depois, como, por
exemplo, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias. Primeiro é preciso responder àquela pergunta. E acrescenta, com uma
dose de ironia: "nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a
maior tranqüilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol
gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente".

Este é um livro sobre a sensibilidade absurda, não sobre uma filosofia absurda. O absurdo é o ponto de partida. O livro pretende tratar o absurdo como um
mal do espírito, sem nenhuma metafísica e sem nenhuma crença. Mas o que é o homem absurdo? Ele responde: aquele que, sem o negar, nada faz pelo
eterno. Para Camus, a característica do homem absurdo é não acreditar no sentido profundo das coisas. O homem absurdo é aquele que "percorre,
armazena e queima os rostos calorosos ou maravilhados. O tempo caminha com ele. O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo".

Sísifo é lúcido e, embora impotente, conhece a extensão da sua miserável condição. É essa condição que Sísifo pensa durante a sua descida

Na ultima parte do livro Camus fala do antigo mito grego de Sísifo e assim começa: "Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um
rochedo até ao cume de uma montanha, de onde ela caía de novo, em conseqüência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo
mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança". Para Camus, Sísifo é o herói absurdo, pelas suas paixões bem como pelo seu tormento. O tormento
dele é o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Camus nos diz que seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida
valeram-lhe esse suplício indizível em que seu ser se emprega em nada terminar. "Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se
esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o
socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem
humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a fi- nalidade está
atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra
vez à planície." É essa pausa, esse regresso que interessa a Camus, pois "um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra!".

Sísifo sobe e desce infinitamente, sem nenhuma esperança que isso termine (onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de
conseguir o ajudasse?). Camus faz da situação de Sísifo uma analogia com a situação dos milhares de operários
que devem recomeçar seu trabalho cada dia. Mas Sísifo é lúcido e, embora impotente e revoltado, conhece toda a "Toda idéia falsa termina em sangue, mas é,
sempre, o sangue alheio. Por isso, alguns de
extensão da sua miserável condição. É essa condição que Sísifo pensa durante a sua descida, pois, para Camus, nossos fi lósofos sentem-se à vontade para
a clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo também a sua vitória. Camus nos diz dizer o que lhes dá na veneta"
que não há destino que não se transcenda pelo desprezo, e acrescenta: "se a descida se faz assim, em certos
dias, na dor, pode também fazer-se na alegria. Esta palavra não é demais. Ainda imagino Sísifo voltando para o Albert Camus
seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as imagens da terra se apegam demais à lembrança, quando o
chamamento da felicidade se torna demasiado premente, acontece que a tristeza se ergue no coração do homem:
é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo". Camus conclui afirmando que há só um mundo e que a felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra,
são inseparáveis. A formula da felicidade absurda está na afirmação: "acho que tudo está bem".

Camus afirmou que a peste era uma alegoria da invasão nazista à França. Fato que foi contestado duramente por Roland Barthes

Sísifo faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens, e ali é que Sísifo encontra sua silenciosa alegria. Seu destino pertencelhe
e é um destino único e pessoal, pois não há destinos superiores. Isto faz com que Sísifo sinta-se senhor de seus dias. Camus finaliza deixando Sísifo na
montanha: "deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os
rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço
mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É
preciso imaginar Sísifo feliz".

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