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07582018 2107
ARTIGO ARTICLE
implicações para a proteção social e a saúde
Abstract There is inherent tension between the Resumo Existe uma tensão inerente à ideia de
idea of health as a social right and of health as saúde como direito social e de saúde como bem
a private good. From the latter perspective, heal- econômico e individual, na medida em que esta
thcare provision is brought closer to the logic of ultima aproxima a prestação de serviços de saú-
ownership, where access depends on ability to pay. de da lógica proprietária, cujo acesso depende
The prioritization of markets (over governments), da capacidade de pagamento de cada indivíduo
economic incentives (over social or cultural nor- ou família. A preferência por mercados (sobre os
ms), and entrepreneurship (over collective or governos), incentivos econômicos (sobre normas
community action), one of the hallmarks of ne- sociais ou culturais) e empreendedorismo indi-
oliberalism, constitutes a project to dismantle the vidual (sobre a ação coletiva ou comunitária) é
welfare state, defined as a set of policy mechanis- uma característica marcante do neoliberalismo e,
ms designed to meet collective needs. This article por isso mesmo, um projeto de desmonte do estado
examines the above process and its consequences social, definido como um conjunto de dispositivos
for social protection and health by reflecting upon que visam atender às necessidades coletivas. O
two phenomena that threaten the principle of he- objetivo do artigo é examinar esse processo e suas
alth as a social right: neoliberal ideas and policies; implicações para a proteção social e a saúde, me-
and financial capitalism. We argue that the com- diante algumas reflexões sobre dois fenômenos que
mon good must be defended or insulated from the ameaçam a saúde como direito social: as ideias e
negative effects of financial capitalism and from as políticas neoliberais, de um lado, e a financei-
the erosion and fragmentation of public institu- rização da riqueza, de outro. Argumentamos que
tions and social protection systems caused by ne- o bem comum precisa ser defendido ou insulado
oliberalism. tanto da devassa provocada pelo capital financei-
1
Departamento de Key words Capitalism, Commodification, Public ro quanto pela erosão e fragmentação provocada
Medicina Preventiva, policy, Public health pelo neoliberalismo nas instituições públicas e nos
Faculdade de Medicina,
Universidade de São sistemas de proteção social.
Paulo. Av. Dr. Arnaldo 455, Palavras-chave Capitalismo, Mercantilização,
Cerqueira César. 01246- Política publica, Saúde publica
903 São Paulo SP Brasil.
analuizaviana@usp.br
2
Institut de Recherche en
Santé Publique, Université
de Montréal. Montréal
Canadá.
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Viana ALd’A, Silva HP
rente de uma nova visão da política macroeconô- sociedade marcadas pelo enfraquecimento das
mica, voltada para metas de controle da inflação forças políticas defensoras do estado social que
e austeridade fiscal, confronto com as corpora- foi desenvolvido ao longo do século XX. O cres-
ções sindicais, o que cria uma nova arquitetura cimento econômico se reduz e é apropriado pelos
institucional para a gestão do capitalismo e de rentistas – aqueles que vivem das rendas auferi-
sua relação com o social, no plano local e tam- das principalmente nos mercados financeiros, os
bém internacional. grandes fundos de acionistas; a sociedade se torna
As consequências são diretas e fortes junto ao cada vez mais alheia e incapaz de formar coalizões
sistema público de provisão de serviços sociais: de defesa de seus direitos, buscando alternativas
de um lado, pressões para ampliar a cobertura, em fenômenos externos (como a imigração de
dada a persistência do desemprego e da quanti- pessoas e consequente acirramento da competi-
dade de pessoas em situação de vulnerabilidade; ção no mercado de trabalho); a proteção social se
de outro, desindustrialização motivada pela con- reduz ou se destina àqueles que podem pagar pelo
corrência internacional, aumentando as taxas de acesso aos serviços, geralmente trabalhadores do
trabalhadores desempregados ou que trabalham mercado formal; e as implicações para o bem-es-
em condições precárias. Isso tem levado os gover- tar das pessoas são inúmeras, com aumento de
nos a pensar a área social como um problema, em diversas doenças e transtornos mentais.
virtude da pouca renda disponível para financiar
os serviços sociais, seja através da arrecadação de Estado social, neoliberalismo
impostos e contribuições, seja mediante paga- e a financeirização da proteção social
mento direto por parte dos indivíduos.
Dessa forma, não é apenas o movimento de A criação e o desenvolvimento do estado so-
queda na provisão pública de serviços sociais, cial, isto é, de um sistema nacional de provisão
mas sim uma grande imbricação dos sistemas de de serviços sociais de forma desmercantilizada, a
proteção social com a economia, com a reestrutu- partir da criação de fundos sociais constituídos
ração neoliberal do capitalismo, o que distancia a pela arrecadação de impostos e contribuições
proteção social do direito e da oferta pública para sociais, cabendo ao estado oferecer proteção
uma proteção mercantilizada de provisão priva- contra os grandes riscos que ameaçam os indiví-
da e paga pelo cidadão. O resultado final é uma duos nas sociedades contemporâneas (acidentes,
hibridação neoliberal entre o público e o privado, doenças, velhice, morte, desemprego, exclusão
isto é, as fronteiras entre o público e o privado social), ocorreu num momento histórico especi-
são borradas e há um processo de mercadoriza- fico (1945-75), marcado pela conjunção positiva
ção da esfera pública, obrigada a funcionar con- entre crescimento econômico e redução das de-
forme as regras tradicionalmente empregadas no sigualdades sociais16. Nesse período, diversos pa-
setor privado, onde a lógica da competição e do íses adotaram políticas econômicas ativas objeti-
lucro é predominante. vando promover o crescimento econômico, seja
Como atestam diversos estudos e publicações por meio do manejo das políticas monetária, fis-
recentes11-15, as implicações do neoliberalismo cal e cambial, seja mediante a realização de inves-
se distribuem por várias dimensões (Quadro 1), timentos públicos diretos. Ao mesmo tempo, a
com mudanças nas relações estado-mercado- atuação dos sindicatos e a adoção de políticas de
proteção ao trabalho contribuíram para o cres-
expansão do consumo privado de serviços so- sões fundamentais: de um lado, a visão clássica
ciais, por conta de uma oferta em expansão, uma da empresa como uma combinação coerente e
valorização de estilo de vida baseado na concor- integrada de ativos permanentes em busca de
rência e na disputa individual, e, finalmente, uma inovação e crescimento no longo-prazo passou a
defesa de diagnósticos e tratamentos individuais, ser substituída por uma concepção financeira na
corroborado pelo avanço científico e pelo desejo qual a empresa é vista como um portfolio de su-
de individualização. bunidades líquidas que deve ser continuamente
Existe também uma profunda imbricação restruturado para maximizar o valor das ações o
dos complexos corporativos e/ou econômicos tempo todo; de outro, a remuneração dos execu-
da área social (habitação, saúde, infraestrutura, tivos não está mais atrelada ao sucesso da empre-
educação) com o sistema financeiro nacional e sa no longo prazo e sim aos movimentos de curto
global subordinando as decisões de investimen- prazo no mercado de ações, de modo que os inte-
to aos imperativos de valorização financeira dos resses da alta direção passaram a estar alinhados
ativos nos diferentes mercados. No campo da as- com os interesses dos investidores financeiros e
sistência à saúde, as estratégias dos grandes gru- daqueles que detêm a maior parte do capital da
pos se manifestam no movimento crescente de empresa. Dessa forma, a ampliação das escalas e a
fusões e aquisições alavancadas por grandes gru- integração internacional das operações são estra-
pos financeiros em escala global, cujo número de tégias utilizadas para reduzir custos e aumentar
operações passou de 39 (em 1999) para 432 (em a rentabilidade das empresas no curto prazo. A
2013), com valores que oscilam entre 10 e 20 bi- centralização do capital em nível global e a for-
lhões de dólares, segundo os dados apresentados mação de grandes conglomerados internacionais
por Hiratuka et al.5. são o resultado desse processo5.
Embora esse movimento de fusões e aquisi-
ções seja mais visível nos países centrais, onde a Quem são os neoliberais e as implicações
associação entre fundos financeiros e empresas para o indivíduo comum:
de assistência à saúde contribui para a rápida meritocracia neoliberal
concentração e internacionalização dos merca-
dos, o fenômeno também pode ser observado Quem são os neoliberais? Para explicar a his-
nos países em desenvolvimento. No Brasil, por tória da constituição dessa nova forma de organi-
exemplo, cerca de 60 operações de fusões e aqui- zar o mundo temos que voltar ao início dos anos
sições envolvendo empresas que atuam no se- 1980. Num ensaio publicado por Charles Peters21
tor de serviços de saúde ocorreram no período em 1982, o neoliberalismo era tratado como um
2004-13, ainda segundo Hiratuka et al.5. Embo- movimento embrionário que reunia políticos,
ra a grande maioria dessas operações envolvam jornalistas e economistas interessados em fazer
majoritariamente empresas nacionais, a partici- uma leitura crítica dos objetivos e valores asso-
pação de estrangeiros vem se tornando mais co- ciados ao pensamento liberal norte-americano.
mum: duas das maiores empresas brasileiras que Afirmavam eles que as respostas dos liberais tra-
atuam no mercado de planos privados de assis- dicionais agravavam os problemas surgidos nos
tência à saúde – Amil e Intermédica – foram re- anos 1970, tais como: produtividade declinante,
centemente adquiridas por empresas estrangeiras infraestrutura em decomposição, agências públi-
– UnitedHealth e Bain Capital, respectivamente. cas ineficientes e irresponsáveis, forças armadas
Como pode ser visto no Quadro 2, que lista as 20 com armamentos que não funcionam e baixa
maiores empresas do setor de serviços de saúde adesão das classes altas em suas fileiras, prolife-
no Brasil por faturamento, 12 delas são segura- ração de comitês de ação política voltados para o
doras e operadoras de planos de saúde, incluindo atendimento de interesses de grupos individuais,
as 3 maiores. Destaque-se que grande parte des- entre outros. Desse modo, de acordo com Pe-
sas empresas, que realizam intermediação finan- ters, neoliberais são liberais que revisaram suas
ceira, também atuam na provisão de serviços, já ideias anteriormente favoráveis aos sindicados e
que possuem sua própria rede de hospitais e es- ao estado forte (big government) e contrários aos
tabelecimentos de saúde. mercados e às forças armadas, isto é, passaram a
Conforme destacado por estudiosos do tema defender esses últimos em detrimento dos pri-
da financeirizaçao19,20, um novo modelo de ges- meiros.
tão empresarial, mais alinhado com os interesses As preocupações centrais desse grupo pionei-
dos acionistas, passou a predominar nas grandes ro de neoliberais eram a comunidade, a demo-
empresas. Esse novo modelo inclui duas dimen- cracia e a prosperidade, porém sua preocupação
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mais importante era o crescimento econômico. foi adquirindo conotações fortes relacionadas à
O empreendedor individual que corre riscos desregulação, financeirização e globalização. Esse
para criar novos empregos e melhores produtos olhar idealista sobre o mundo deixou de existir no
era considerado o herói do movimento. Políticas comando da política neoliberal e serve hoje para
públicas, segundo Peters, deviam incentivar o in- que defensores dessa política se refugiem nesses
vestimento produtivo. Por outro lado, eram con- valores mais altruístas, típicos do manifesto de
tra: regulações que desencorajam a competição Peter, esquecendo de sua recente trajetória his-
saudável (mas a favor de regulações em questões tórica, como vimos na parte primeira do artigo.
de saúde e segurança); sindicatos que demandam Porém, justamente essa é a visão mais difundida
aumento nos salários sem o correspondente au- do neoliberalismo, quase dominante nos meios
mento de produtividade; remuneração de execu- de comunicação mundial, principalmente em pa-
tivos que incentivam o lucro no curto-prazo ao íses emergentes e constitui uma narrativa de sen-
invés do crescimento no longo-prazo (mas favo- so comum do neoliberalismo que atinge em cheio
rável a dar ações de propriedade da empresa aos camadas significativas da população mundial, so-
trabalhadores); estabilidade de uma burocracia bretudo os segmentos da classe média.
governamental inchada, desleixada e presunçosa No entanto, outros fatores de natureza mais
(mas favorável à meritocracia/desempenho no densa e complexa como fonte de explicação cien-
setor público). Dessa forma, o movimento neo- tífica também foram construídos para analisar
liberal nasceu como um movimento pragmático essa mudança de comportamento do homem co-
e idealista (exemplos: melhorar o sistema educa- mum e como isso impacta a sua saúde de maneira
cional, focalizar os benefícios sociais em quem geral. Alguns autores22 analisam, a partir de certos
realmente precisa, adotar o serviço militar obri- traços comuns aos homens, como foi a constru-
gatório). ção dessa nova maneira de pensar, que engendra-
Como atesta o manifesto de Peter, o signifi- ram modificações importantes nesses últimos 40
cado do neoliberalismo mudou consideravel- anos sobre o indivíduo. Esses autores começam
mente ao longo do tempo à medida que o rotulo pela descrição de um desejo comum aos homens
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Viana ALd’A, Silva HP
Colaboradores
1. Viana ALD, Silva HP, Elias PEM. Economia Política da 14. Schrecker T, Bambra C. How Politics Makes Us Sick:
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