Você está na página 1de 941

A GRANDE EPOPEIA DOS

CELTAS

Primeira época

OS CONQUISTADORES DA
ILHA VERDE

A PUBLICAR:

Segunda época

OS COMPANHEIROS DO
RAMO VERMELHO

Terceira época

0 HERÓIS DOS CEM


COMBATES

Quarta época

Os TRIUNFOS DO REI
ERRANTE

Quinta época

1
OS SENHORES DA BRUMA

INDICE

PREFÁCIO –
Nas fronteiras do real
7 PRELUDIO –
0 homem dos tempos antigos
I - NAS BRUMAS DA
AURORA
II - AS TRIBOS DE DANA
III - LUG Do BRAÇO LONGO
IV - A GRANDE BATALHA DE
MAG-TURED
V - A VINGANÇA DE LUG
VI - Os FILHOS DE MILÉ
VII - 0 ESTRANHO DESTINO
DOS FILHOS DE UR
VIII - AS ATRIBULAÇÕES DO
JOVEM ANGUS
IX - DEMÔNIOS E
MARAVILHAS
X - POR AMOR A FINNABAIR
XI - A TERRA DAS FADAS
..............

2
XII - ETAINE E o REI DAS
SOMBRAS

Deste modo, impelidos para


novos horizontes, Na noite
eterna embalados sem
retorno, não seremos
capazes, no oceano das
idades, De lançar âncora ao
menos por um dia?

LAMARTINE, 0 Lago

A identidade e a
especificidade de uma
civilização, seja ela antiga ou
moderna, só se tomam
reconhecíveis no caso de nela
se encontrar uma tradição
transmitida de geração em
geração e que lhe sirva de
testemunha essencial. Esta

3
tradição agrega a memória de
um povo ou de um grupo de
povos que vivem em
condições equivalentes ou, no
mínimo, semelhantes, e pode
manifestar-se de modos muito
diversos, desde os simples
costumes até especulações
filosóficas muito complexas.
Mas, na história da
humanidade, sempre se
privilegiou a escrita, por esta
ser o meio mais seguro e mais
fiel de conservar a memória do
passado. Assim se explica
que a Grécia seja o país de
Hesíodo, Homero, Ésquilo,
Heródoto e Platão, apesar de
termos aprendido na escola
que a escultura ocupa um
lugar privilegiado na
civilização que, segundo se
diz repetidamente, constitui
um milagre sem o qual nada
teria sido possível.
Assim, no caso dos gregos,

4
não se coloca a questão de a
sua identidade cultural ser
reconhecida, pois eles
deixaram um número
suficiente de obras escritas
para que possam integrar-se
entre os chamados Povos
«civilizados». Mas o que dizer
dos outros povos que, por uma
qualquer razão, não
conheceram a escrita ou
nunca a utilizaram?
Antigamente, devido à crença
ria «mentalidade pré-lógica»,
tão cara à escola sociológica
francesa do início do século
XX, rejeitava-se uma cultura,
que não tivesse escrita, por
ser considerada incerta,
incoerente e Primitiva. Esta
ideologia (palavra que se
aplica, sem dúvida, a essa
crença), foi a concretização de
um sistema construído sobre a
universalidade de uma Razão
única que justificava qualquer

5
ato de colonização, cultural ou
outra, e de missão,
fossem quais fossem as
intenções; ela privou a
humanidade durante muito
tempo de uma importante
parte de si mesma, pois
rejeitava, sem apelo nem
agravo, tudo o que não
pertencesse às normas em
uso num sistema imutável e
incontestável. Não interessa
se tratava de ignorância ou de
desprezo pela diferença, pois
a verdade é que já se
ultrapassou essa fase, Já
ninguém hoje duvida que Os
construtores dos megalíticos,
que viveram do V ao 11
milênio antes da nossa era, e
de quem não se conhece nem
o nome nem a língua, foram
extraordinários artesãos de
uma civilização brilhante que
ocupou uma grande parte da
Europa, tendo nela deixado

6
marcas indeléveis. Em termos
de obras escritas, apesar
disso, nada deles chegou até
nós. Deles ficaram apenas
monumentos, assim como
misteriosos símbolos
gravados na pedra, os quais,
por terem um conteúdo mais
mágico do que escrito,
testemunham sem dúvida não
apenas um sentido de arte
apurado, mas também um
pensamento muito organizado
e quase científico. Acontece
entretanto que o estudo
destes símbolos e da
arquitectura
extraordinariamente complexa
destes monumentos, a análise
e a comparação dos diversos
objetos arqueológicos
contemporâneos, permitem
que se reconstitua a partir de
agora, mesmo que de forma
incompleta e conjuntural, uma
certa tradição característica

7
da civilização dita megalítica.

No que respeita à tradição


celta, está-se perante um caso
muito semelhante. Nunca se
pensou negar a existência dos
celtas que, bem Pelo
contrário, foram considerados
os únicos predecessores dos
Romanos, sido-lhes atribuídos
indiscriminadamente todos os
vestígios que eram anteriores
a estes últimos. Mas é sempre
com um desprezo indisfarçado
que se faz referência aos
povos cujo único defeito
parece ser o de não se terem
deixado seduzir pelos
encantos da escrita. Há uma
realidade incontestável: os
celtas não escreveram nada
antes de serem cristianizados,
ou seja, antes de monges
eruditos e pacientes terem
recolhido em manuscritos
preciosos Os seus

8
testemunhos orais que
estavam em risco de
desaparecer e que foram
salvos do esquecimento.
Deste modo, dispomos de
testemunhos que, apesar de
incompletos e deformados,
nos transmitem os vestígios
da alma dos povos celtas.
Mas, na verdade, quem foram
realmente os celtas?
A verdade obriga a que se
diga que sobre eles muito
pouco se sabe.
0 certo é que não os podemos
considerar um grupo racial ou
étnico delimitado, tão vasto e
impreciso é o seu campo de
ação, e tão confusa e
contraditória é a morfologia
daqueles a quem se chamou
celtas, os quais tanto incluem
morenos troncudos e baixos
como louros altos e de olhos
azuis. Será mais prudente
falar-se deles enquanto um

9
povo que fala a língua céltica.
Também é preciso fazer
algumas distinções. Os
cimbros e os teutões, que
foram exterminados por
Marius e os romanos, eram
sem dúvida de origem
germânica, embora tivessem
nomes celtas: Cimbros é o
combroges gaulês, querendo
dizer «do mesmo país» (e que
deu o galês C-vmri); os
teutões provêm de uma raça
celta de onde saiu o irlandês
tuath, «tribo», e que se
reconhece no nome do deus
gaulês Teutatès (ou Toutatis),
literalmente «pai do povo», e
no termo genérico atual
deutsch, «alemão», o que não
deixa de ser algo paradoxal.
Quanto aos celtas da mesma
época, existe outra
dificuldade: a maior parte
deles já não fala uma língua
céltica, como o comprovam

10
certos bretões armoricanos
(da Alta Bretanha), nove em
cada dez irlandeses, para
além dos gauleses e de outros
povos europeus outrora
classificados como celtas ou
que estiveram sob o domínio
celta. Além disso, os autores
da Antiguidade clássica não
estavam mais elucidados do
que nós a este respeito,
confundindo com facilidade
celtas e germânicos, ou então
fazendo dos primeiros uns
vagos «Hiperbóreos», ou
mesmo «Cimérios» que
viviam num universo sombrio
nas fronteiras de Outro
Mundo. A verdade é que os
celtas, cuja existência não se
pode contextar, constituem
uns povos quase míticos, ou
pelo menos mitológico Esse
fato também se explica
largamente pela propensão
dos celt, para confundirem

11
intimamente o real e o
imaginário e, assim y
começaram a fixar a sua
história, para a inventarem
deliberadamente em função
dos seus mitos fundadores.
0 certo é que os gauleses da
Alésia ficariam muito
surpreendid se lhes
chamassem celtas.
Naturalmente, o termo Keltoi
existia há m to tempo, mas era
grego e fora utilizado pelos
historiadores gregos 1
necessidade de classificação,
Ora, os gauleses já não se
sentiam à v tade ao serem
considerados gauleses, como
o provam as dificulda

12
de Vércingétorix e as
acrobacias oratórias a que
teve de recorrer no seu
discurso de Bibracte (monte
Beuvray), em 52 antes da
nossa era, para tentar
assegurar uma coesão
«patriótica» ou «nacional» na
coligação de povos que
tinham pegado em armas
contra os romanos. Um gaulês
era antes de mais membro
dum «povo», duma «tribo»,
portanto duma tuath, e nada
mais lhe interessava para
além disso. E foi sempre
assim: «Nem os irlandeses,
nem os galeses, nem os
baixo-bretões da Idade Z:

Média se auto-denomin aram


«celtas». Esta denominação
comum, na qual se incluem
actualmente os antigos
escoceses, os irlandeses, os
galeses, os habitantes da

13
Cornualha e os bretões, tem
por base a semelhança das
línguas primitivas faladas por
estes povos e um vago
parentesco étnico.»”’ Esta
constatação continua válida e
mostra bem as dificuldades
que se podem encontrar
quando se tenta definir os
celtas, a sua tradição e a sua
civilização.

Os celtas, segundo os autores


gregos, apareceram na
História por volta do ano 500
antes da nossa era. Isso não
significa que eles não
constituíssem já nessa altura
grupos sociais fortemente
enraizados em certas regiões
da Europa. Neste caso a
arqueologia vem colmatar as
lacunas da História e põe em
evidência o aparecimento de
uma nova forma de civilização
na qual o ferro desertipenha

14
um papel fundamental.
Chamou-se a este período
Primeira Idade do Ferro, ou
Civilização de Hallstatt, nome
de uma estação arqueológica
austríaca. É realmente
verosímil que o domínio
primitivo dos ceitas, dividido
em principados
independentes,
fabulosamente ricos e
requintados como no-lo
provam os móveis funerários
dos tumulí, se estendia ao
norte dos Alpes, entre os
montes da Boémia e o Harz,
prolongando-se até ao sul do
Danúbio. Actualmente existe
um consenso quanto ao facto
de ter sido a partir desta região
que os denominados povos
celtas começaram as suas
migrações, dirigindo-se
sobretudo para ocidente, em
vagas sucessivas, talvez
desde o fini da Idade do

15
Bronze, ou seja, entre 900 e
700 a. C.

1. Dom Lotris Gougaud, Les


Chrétieniés celtiques, Paris,
1911, p. i (prefácio). o autor
vai-se acentuando

acrescenta numa nota na


rnesma página: «0 cepticismo
dos sábios dos bretões cada
vez mais, no que respeita ao
valor do conceito de raça.
Tácito, falando

(insulares), atribuía já uma


grande importância ao
ambiente, à adaptação, ao
meio, em detrimento da ideia
de ruça.» Esta reflexão
perfeitamente lúcida foi feita
no mornento em que o auto-
intitulado «iniciado» Edouard
Schuré, digno discípulo de
Gobineau e precursor de
alguns teóricos de má me

16
va os valores da «raça» celta
moria, preconiza

como sendo de origem


nórdica e ariana.

Deve reter-se deste facto que


os celtas, ou os assim
chamados (há quem lhes
chame proto-celtas), são
principalmente campesinos,
criadores de gado,
agricultores e artesãos. Se
mais tarde os vamos
encontrar junto ao
Atlântico, isso não se deve ao
facto de eles terem procurado
aproximar-se do mar, mas por
terem sido obrigados, por
razões ainda desconhecidas,
a refugiar-se nos confins do
velho mundo.

Crê-se que este nó primitivo


dos celtas resultou de
migrações anteriores de

17
povos indo-europeus. Aqui,
mais uma vez, é necessario
precisar este termo, que só
pode designar agrupamentos
humanos que falavam uma
língua comum - ao menos na
origem - e que possuíam
técnicas e estruturas sociais
idênticas. É esta a única
acepção possível do termo,
com excepção de todas as
outras que incluem uma
noção de raça. Assim que se
instalaram no triângulo
BoémIa-Áustria-Harz, os
celtas primitivos, ou por causa
da superpopulação, ou porque
estavam ameaçados por
outros emigrantes vindos de
leste, ter-se-lam dirigido para
ocidente a fim de descobrirem
novos territórios onde se
pudessem estabelecer. Este
facto nada tem de
extraordinário e é comum a
muitos outros povos ao longo

18
da História, explicando que
todos os celtas, hoje tão bem
enraizados na Europa
ocidental e no extremo do
Ocidente, atravessaram o
Reno antes de se instalarem
nos países cuja História os
reconheceu.

Graças ao estudo da
distribuição das estações
arqueológicas e da sua
datação e tendo em
consideração marcas
toponímicas e raros vestígios
epígráficos, é possível
afirmar-se que o fluxo
migratório dos celtas para a
Europa ocidental ocorreu em
dois períodos bem distintos. 0
primeiro, cronologicamente,
situa-se na chaineira das
Idades do Bronze e do Ferro e
engloba um grupo de povos
que falavam uma língua
céltica ainda próxima do indo-

19
europeu comum, a qual,
através de diversos
arcaísmos, chegou aos
nossos dias encontrando-se
no gaélico da Irlanda, da ilha
de Man e da Escócia. Deu-se
a este ramo o nome de
goidélico ou gaélico, ou então
de celtas com Q pois eles
conservaram, tal como o latim,
o uso do som Q indo-europeu
primitivo (por exemplo,
«cmco» do lati. quinque, diz-
se coic em gaélico). 0 segundo
fluxo migratório ocorreu

1 1 ima depois do
ano 500 a. C., através de
vagas sucessivas, tendo sido
a últi

a dos belgas, no século 1


antes da nossa era. Este ramo
é chamado, com i inclui,
além dos gauleses e dos
belgas, alguma liberdade,

20
britónico, pois ’
aleses, o% os antigos bretões
insulares cujos actuais
descendentes são os 9

habitantes da Cornualha e os
bretões armoricanos. No
plano linguístico, classificam-
se estes povos como celtas
com P, porque os seus
diversos

21
componentes transformaram,
tal como os gregos, o Q
primitivo indo~europeu em
som P, como o mostra o
mesmo exemplo de «cinco»
que se diz pemp em galês e
bretão, e pente em grego.

Foram estes povos, formados


provavelmente por pequenas
tribos independentes umas
das outras, que, no decorrer
do primeiro milénio antes da
nossa era, invadiram a Europa
ocidental, incluindo a planície
do Pó (Gália Cisalpina) e o
noroeste da Península Ibérica.
havendo tam~ bém que referir
as expedições que, durante o
século 11, chegaram a formar
nos Balcãs o reino da
Galateia. Entretanto, na Ásia
Menor, estas migrações
devem ser entendidas nas
suas devidas proporções.

22
Estes famosos celtas, fossem
quem fossem, não eram
numerosos, constituindo
apenas uma elite guerreira,
técnica e intelectual. Ora, os
países onde eles se fixaram
eram habitados por
populações de que nada se
conhece, mas que, com
certeza, não foram
inteiramente aniquiladas pelos
seus dominadores. Bem pelo
contrário, os celtas tinham
necessidade de mão de obra,
ou seja, de escravos. Fizeram
por isso um esforço no sentido
de dominar as populações
autóctones, celtizando-as, ou
seja, ensinando-lhes a língua
e transmitindo-lhes os
costumes, a técnica e a
religião, o druidismo que era
comum ao conjunto dos
grupos ditos celtas. Além
disso, os celtas impuseram-
lhes as suas estruturas sociais

23
indo-europeias, o seu modo
de vida e o seu modo de
pensar. A partir daí o próprio
tempo se encarregou de fazer
a sua obra inelutável de
assimilação, tomando-se os
autóctones os novos celtas ao
mesmo tempo que os
primeiros celtas não deixavam
de ser modificados pelas
populações indígenas. Este
processo de interacção -
extremamente vulgar -
contribuiu para a formação do
que hoje se chama civilização
celta.

Contudo, estas vagas


sucessivas de migrações e de
misturas nunca deixaram de
provocar deslocamentos
internos das populações. Os
primeiros invasores de língua
céltica - chamemos-lhes por
comodidade gaélicos - foram
empurrados ainda mais para

24
ocidente, o que explica a
especificidade da Irlanda,
isolada nos limites extremos
do mundo antigo, e tendo
conservado, mais do que
qualquer outro país de
dominação celta, as tradições
mais arcaicas e reveladoras.
«As descobertas
arqueológicas sugerem que
os celtas chegaram à Irlanda
vindo da Grã-Bretanha,
podendo ser traçada a sua
rota através de Cumberland C
de Wigtownshire até se
chegar ao nordeste do
Ulster».”) É esta a opinião

1 . Myles Dillon, Early Irish


literaiure, 1994, p. XI.

do ceitólogo irlandês Myles


Dillon, que diverge da de um
seu compatriota, O’Rahilly,
que aponta um itinerário
directo dos celtas a partir da

25
Gália. No fundo, as duas teses
não são contraditórias, pois
pode ter havido diversas
migrações como, de resto, os
irlandeses da Idade Média
deferidiam quando
procuravam reconstitu,r as
idades mais recuadas da sua
história. 0 Importante é saber
que os dois ramos, o gaélico e
o brflonico, coexistiram
durante multo tempo até se
diluírem separadamente na
História moderna, depois de
terem tido uma origem
comum.

.Ora, uma árvore não pode


viver se os seus ramos e até a
sua folha mais insignificante
não forem alimentados pela
seiva. A grande aventura dos
celtas sóifoi possível porque
uma mesma seiva animou
desde a origem o ser social
que lhe serviu de ponto de

26
partida. Esta selva pode ser
identificada com o que se
chama a Tradição, ou seja,
com o que é transmitido de
geração em geração para que
cada unia destas possa
conservar o sentido de uma
certa identidade e os meios de
a exprimir através das
sucessivas etapas da história.

Em primeiro lugar, esta


tradição consiste num corpus
de informações herdadas de
um passado sempre
apresentado como se
remontasse à aurora da
humanidade, ao que se
chama a noite dos tempos.
Assim sendo, a questão da
tradição celta obriga-nos a
pensar como pôde ela ser
transmitida se a sua primeira
transcrição data apenas dos
primeiros séculos do
cristianismo, sendo este

27
responsável pelo seu
enquadramento.
Naturalmente, pode-se
lamentar que a falta de escrita
seja responsável por não
haver testemunhos essenciais
para o conhecimento da
antiga cultura celta; mas esta
não-utilização da escrita,
longe de atestar uma qualquer
espécie de incapacidade,
resultou duma escolha
deliberada das elites celtas,
dos chamados druidas, que
eram simultaneamente
sacerdotes, filósofos,
historiadores, poetas e
mágicos. Júlio César foi muito
claro a este respeito: «Os
druidas, diz ele, acreditam que
a religião não lhes permite
escrever a matéria dos seus
ensinamentos ( ...) pois
não querem que a sua
doutrina seja divulgada nem
que, por outro lado, os seus

28
alunos, fiando-se na escrita,
negligenciem a memória». (De
bello gallico, VI, 14). Eis a
razão pela qual os discípulos
dos druidas aprenderam,
durante uma vintena de anos,
milhares de versos que
resumiam, de forma
irmernotécnica, o conjunto da
tradição celta.

A existência de uma tal


tradição oral está largamente
comprovada.
0 grego Estrabão (IV, 4),
afirma que os poetas dos
celtas são «bardos, ou seja,
cantores sagrados». Outro
grego, Diodoro de Sicilia,
transmite

29
detalhes preciosos (V, 29 e
31): «Antes de cada batalha,
eles cantam os feitos dos seus
antepassados e exaltam as
suas próprias virtudes,
enquanto insultam os
adversários Eles
exprimem-se por enigmas (
... ) e usam bastante a
hipérbole.» 0 latino
Pomponius Mela observa que
«estes povos possuem uma
eloquência muito própria»
(111, 2); quanto ao poeta
Lucano, este apostrofa os
poetas gauleses nestes
termos, na Pharsale (1, v, 50
sqq.): «Vós cujos cantos de
glória lembram, ao futuro
longínquo, a memória dos
fortes antepassados
desaparecidos em combate,
bardos, vós dais largas sem
medo à vossa veia fecunda!»
Enfim, se fosse necessário um
reconhecimento quase oficial,

30
poderíamos encontrá-lo no
historiador grego Poliffio,
apesar de tudo, muito
prudente nos factos a que se
refere. Depois de ter pintado
um quadro dos povos
gauleses da Cisalpíria, afirma
convictamente (11, 17) que
«os autores de histórias
dramáticas contam a seu
respeito lendas
maravilhosas».

Foram os conflitos que


opuseram os romanos aos
gauleses da Cisalpina, cerca
do ano 387 antes da nossa
era, que suscitaram mais
comentários a propósito de
uma tradição epica que os
celtas transmitiram de
geração em geração. Quanto
aos acontecimentos referidos
por Tito Lívio, historiador
latino, apesar de natural da
Gália Cisalpíria, estão muito

31
mais próximos da lenda do
que da história e parecem
inspirar-se directamente num
fundo tradicional veiculado
pelos próprios gauleses, fundo
esse que ele conhecia muito
bem. «A história das guerras
gaulesas, diz Henri Hubert é
extremamente singular,
fabulosa e épica.»1’1 E, a este
respeito, Camille Jullian, faz
notar precisamente que «a
derrota dos romanos, diz
claramente Tito Lívio, deveu-
se ao pavor mágico
(miraculum) que lhes inspirou
o grito de guerra dos celtas. As
narrações de Tito Lívio, de
Apio e de Plutarco, cheias de
cor e de pormenor, precisas,
com um extraordinário humor
religioso e muito favoráveis
aos celtas ( ... ),
sempre me pareceram
inspiradas em parte em
alguma epopeia gaulesa».`I

32
Trata-se realmente de uma
epopeia. A definição clássica
do termo, «narrativa poética
de feitos heróicos», não nos
impede de acrescentar que o
gênero se refere sempre a
factos de um passado
longínquo, que na sua maioria
não podem ser confirmados,
mas que fazem parte da
memória colectiva de um povo
ou de qualquer grupo social. A
epopeia gaulesa assinalada
por Camille Jullian e
conservada por Tito Lívio na

1. Henri Hubert, Les Celtes,


Paris, 1932, 11, p.37.

2. Camille Jullian, Histoire de


ta Gaule, Paris, 1920,
reimpresso 1993, 1, p.294.

língua latina não pertence


obviamente à história, sendo

33
antes do âmbito da tradição.
Quererá então isto dizer que a
tradição celta, por estar
inscrita no quadro de uma
civilização que rejeitava a
escrita, só pode ser conhecida
através de outras civilizações?
Assim parece ser, pois a
epopeia gaulesa em questão
só chegou até nós graças aos
documentos escritos -
pretensamente históricos -
que os gregos e os latinos
consagraram às guerras
travadas por Roma contra os
habitantes da Cisalpina e às
expedições celtas nos
BalcãsY1 0 mesmo acontece
com a epopeia bretã (ou seja,
da Bretanha insular) à volta do
fabuloso rei Artur: as supostas
aventuras deste e dos seus
cavaleiros, as peripécias da
conquista do Graal, todas as
matérias que actualmente se
consideram de origem celta,

34
só chegaram ao nosso
conhecimento, com a
excepção de alguns textos
gauleses, graças a versões
redígidas em línguas não
célticas - nomeadamente o
francês (dialecto anglo-
normando), o inglês e o
alemão. Daqui resulta uma
situação no mínimo
paradoxal.”)

Como é óbvio, existem várias


versões de epopeias redigidas
ou transcritas em línguas
célticas, mas são tardias,
remontando ao que se
designa por Alta Idade Média.
A primeira questão que se
coloca é sobre a sua
autenticidade, ou seja, ígnora-
se se elas dão conta duma
realidade cultural celta
incontestável, 0 facto de terem
sido escritas numa conjuntura
cristã, com todos os

35
equívocos e todas as
censuras que isso implica,
pode suscitar algumas
dúvidas e, no mínimo,
legitimar alguma reserva.

Seria útil, entretanto, que se


esclarecesse em definitivo a
noção de autenticidade
associada à tradição. Na
verdade, o que é autêntico na
Tradição senão a própria
tradição? Por quem foi escrita
o Génesis da Bíblia? Com
toda a certeza não a
escreveram os que viveram
nos primeiros tempos da
humanidade, Por quem foram
escritos os Evangelhos? Corri
certeza não os escreveram os
supostos evangelistas. De
resto, a Igreja romana, muito
prudente a este respeito,
utiliza um termo

1. Estudei em pormenor as

36
circunstâncias destas
epopeias meio-históricas,
meio-lendárias, e a sua
difusão em dois capítulos
Rome et Uepopéc celtique,
Delphes el raventure celtique,
do meu livro de síntese sobre
Les Celtes et Ia civilisalion
celtique, Paris, Pay01, 1969.
reimpresso em 1992.

2. Poderiam encontrar-se
pormenores complementares
acerca deste assunto nos
meus estudos sobre 0 rei Artur
e a sociedade célíica, Paris,
Payot, 1976, reimpresso em
1994, e Merlin L’Enchanteur,
Paris, Rctz, 198 1, reimpresso
Albm Michei, 1992. A questão
é iam-

bém abordada em oito


volumes provenientes da
reescrita dos meus romances
da Távola Redonda, 0 Ciclo do

37
Graal, Paris, Pygmalion, 1992-
1995, e é muito comentada na
minha Pequena Enciclopédia
do Graal, Paris, Pymalion,
1997.

38
latino que expressa bem a
ideia que quer transmitir,
secundum Johannen (ou
Marcuni, ou Lucam, ou
Mattheum). A palavra
secundum. nunca quis dizer
«por», C a tradução francesa
oficial, «selon» [segun-

não passa de um substituto de


«segundo a tradição». do, em
português],
1

E, sem querer entrar em


exegeses sábias, é preciso
contextualIzar os supostos
poemas homéricos: Homero
nunca existiu historicamente,
não passando de um nome
emprestado a numerosos
rapsodos (literalmente
«cosedores de cantos»), que
tentavam inserir num plano de
conjunto inúmeras lendas e
narrativas herdadas de uma

39
tradição oral com origem na
noite dos tempos. Ninguém
hoje em dia acredita que A
Il(ada e A Odisseia são obras
do mesmo autor e que este,
Homero Do caso, foi
testemunha dos
acontecimentos que relata.
Estas duas obras não pas sam
de duas versões tardias de
lendas orais que dizem
respeito a deuses e a heróis
da Grécia antiga, e é por isso
mesmo que elas são apaixo
nantes, pois testemunham
irrefutavelmente um passado
que, sem elas, teria
mergulhado nas brumas do
esquecimento.

É por isso preciso ter em


consideração que as
narrativas homéricas não são
mais do que a expressão
duma tradição arca’

40
1 ica expressa numa
língua Já clássica, e colocada
ao dispor de um público que
Já não era contemporâneo do
descrito. 0 mesmo se passa
com as epopeias celtas.
0 facto de elas terem sido
escritas depois de os factos
terem ocorrido (se é que estes
são reais, o que está longe de
ser provado), ou de eles terem
sido posteriormente
manipulados, não significa de
modo nenhum que a tradição
que veiculam Dão seja
autêntica. Com efeito, quando
se falia de epopeia., o
problema da autenticidade
nunca se deveria colocar, pois
ela desemboca
necessariamente num não-
senso: neste domínio, nada é
verdade ou falso e tudo existe
na forma imaginada,
simbólica, codificada,
testemunhando a realidade

41
profunda de uma civilização.

«Se se tiver em conta as


datas, a saga irlandesa é a
que nos dá o tipo mais antigo
da epopeia celta.»(” Esta
afirmação de Georges Dottin
não pode ser refutada, pois
foram os manuscritos
irlandeses, escritos em língua
gaélica, que nos transmitiram
a maioria das narrativas
epicas cujo estudo interno
prova claramente a sua
antiguidade, nomeadamente
em relação às que foram
reunidas nos manuscritos do
País de Gales. E sabe-se,
graças a este mesmo estudo
interno dos textos, que foi a
partir

1. Georges Dottin, Les


Liitératlíres celiique,, Paris,
1923, p. 52

42
do século VII da nossa era que
os monges irlandeses
começaram o seu paciente
trabalho de passar para a
escrita a tradição oral gaélica
que naquela época ainda era
a deles.

Como é óbvio, estes Primeiros


manuscritos desapareceram,
devido à acção do tempo,
como aconteceu também com
os manuscritos que remontam
à Antiguidade e à Alta Idade
Média. Não é de crer que os
manuscritos conservados nos
nossos dias com tanto
cuidado - e com

r_ i imtanto zelo! - nas


bibliotecas e nos arquivos
sejam os orio, nais. São s’
plesmente cópias de
manuscritos mais antigos cujo
conteúdo se pre~ tendeu
conservar por este

43
à escrita uma Ilusão de
permenciiodàdmeuiNtoemant
oess Idiveraosi,mnpermenosa
ter vindo dar s pergaminhos ou
os papéis velino estão imunes
à degradação. Quando os
monges

as grandes epope as do
passado, irlandeses passaram
para a escrita c, 1

rtos de que haveria quem mais


tarde continuaria 0 seu
trabaestavam ce is
1

lho. Não espanta por . so que


os documentos de que se
dispõe actualmente, e aos
quais as técnicas científicas
modernas asseguram uma
maior longevidade, não s am
de modo algum anteriores ao
século X. Quanto aos riscos

44
que e e

asdsaapstcçóãpoia,
sdcotrmapnsoprtoasmiÇ,ãqou
,er sejam de erro e de ou
tenham a ver com
simplifi.cação como de
istem. o propno conteúdo, que
é o mais importante, é óbvio
que eles exi

ir Existem três manuscritos


principais no que respeita à
epopeia’ landesa - ou seja, por
corisequência, a mais antiga
epopeia celta: o Livre de Ia
Vache Brune (Leabhar na
hUidré), assim chamado por
causa da sua encadernação e
que, tendo sido escrito antes
de 1106 no célebre recinto
monástico de Clonmacnoise,
está actualmente guardado na
Royal Irish Academy de
Dublin; o Livre de Leinster
(Leabhar Laigen), anterior a

45
1160, que se encontra no
Triníty College de Dublin; e por
fim o manuscrito dito
RawIinson B 502, também do
século XII, guardado na
BodIeian, Library de Oxford.
os três possuem o que existe
de mais antigo e importante na
tradição gaélica. Contudo, a
Irlanda continuou a recorrer
aos manuscritos não apenas
durante a Idade Média, mas
também no decurso do que se
chama Tempos Modernos,
isto sobretudo com o objectivo
de divulgar as obras em
gaélico, que tinham estado
proibidas ou, no mínimo,
escondidas pelo ocupante
inglês. 0 nosso conhecimento
da epopeia irlandesa pode ser
assim enriquecido graças a
um grande número de outros
preciosos manuscritos.
Mencionemos

46
Z:I ulo
XV (Trinity
Collenomeadamente o Livre
jaune de Lecan, do séc

ge), o Livre de BaIlymOte,


também do século XV, (Royal
Irish Acade-

47
my), o Livre de Lismore, do
mesmo século, actualmente
na posse de particulares, sem
esquecer o Livre de Fermoy,
do século X1V, mais
especializado nos textos
religiosos cristãos. Outros,
menos importantes, revelam-
nos verdadeiras pérolas raras.
Ao todo são uma centena,
estando a maior parte deles
guardada na Royal Iristi
Academy. Só nos podemos
maravilhar quando
comparamos esta abundância
com a pobreza dos raros
manuscritos galeses e à
inexistêncía dos manuscritos
bretões anteriores ao século
XVI. Se não fosse a Irlanda,
nada conheceríamos da
antiga epopeia dos Celtas.

0 que contêm estes


manuscritos de valor
inestimável? A resposta é

48
simples: «Colecções muito
variadas de narrativas em
prosa e em verso, tanto
sagradas como profanas
versando lendas, história e a
hagiografia, poesia bárdica e
lírica, tratados médicos e
jurídicos, tudo em gaélico
antigo, médio ou moderno,
sem ter que haver a
preocupação da classificação.
»(’) 0 que é admirável é a
mistura, numa mesma
narrativa, da prosa com a
poesia. «Os trechos em prosa,
cuja extensão depende dos
manuscritos, parece que
foram a princípio simples
esboços sobre os quaís o
ímprovisador podia criar à sua
vontade; à medida que os
poemas Iam desaparecendo,
esses trechos iam tomando o
seu lugar.» (2) Estes esboços
são bem demonstrativos de
urna época em que a escrita

49
estava proibida pelos druidas,
transmitindo-se a tradição
oralmente por meio de versos
que os aprendizes estudavam
ao longo de vinte anos,
podendo enriquecer as suas
narrativas quando o
Julgassem útil. Além disso, na
maior parte das vezes, os
trechos em verso das
narrativas épicas estão
repletos de arcaismos que em
alguns casos as torna
incompreensíveis embora
estes últimos comprovem a
sua antiguidade. Considera-se
que todas estas narrativas são
reactuallzações de contos
tradicionais que remontam ao
fundo dos tempos. 0
fenómeno é muito particular
na Irlanda, pois, no País de
Gales poucos trechos em
verso subsistiram nas
narrativas em prosa e, na
Bretanha armoricana, apenas

50
algumas canções dramáticas,
os gwerziou, sobreviveram à
turbulência da história e
lembram de algum modo as
grandes epopeias que deviam
ser cantadas pelos bardos de
outros tempos.

Estas grandes epopeias


encontram-se nos
manuscritos irlandeses, mas,
Da maior parte das vezes, na
forma de fragmentos, de
episódios

1 . Georges Dottin, Les


Liltératures celtiques.
2. Ibidem.

que podem ser auto-sufi


cientes embora só se tornem
realmente compreensiveis
quando se ligam uns aos
outros, Certas epopeias que
têm como personagem
principal um herõí bem

51
conhecido apresentam-se
nunia forma elaborada e
completa: é o que acontece
com a célebre Razzia des
Boeufs de CuaIngé,
verdadeiro monumento
literário que muitas vezes é
comparado à Il(ada e que está
centrada no temível guerreiro
Câchulaínn. Este é também o
herói de muitas outras
histórias episódicas, o que
acontece igualmente com a
maioria dos actores, sejam
«deuses», «demónios»,
humanos ou seres mágicos.
DiT-se-ia que as personagens
das epopeias eram sobretudo
símbolos pré-existentes a
todas as narrativas
organizadas, esforçando-se
por lhes revelar a sua
significação profunda ao
emprestarem-lhes aventuras
pretensamente históricas.
Esta tendência, que parece

52
fundamental em todos os
celtas, contradiz formalmente
a tese de Evhérnère, segundo
a qual os deuses não passam
de humanos divinizados. Com
efeito, sobretudo nas
narrativas que se podem
classificar como mitológicas,
os deuses aparecem
nitidamente inseridos na
história, devido a esta não
estar assente em nenhum
acontecimento real. Aqui se
encontra outra característica
dos celtas: quando ignoram a
história do seu passado ou a
esqueceram, inventam-na.
Pode mesmo chegar-se mais
longe. quando eles não estão
satisfeitos com a hi stória
vivida, negam-na e criam
outra, mais de acordo com a
sua mentalidade. Nos celtas, é
extremamente evidente a
predon-únâncía do mito sobre
a realidade quotidiana.

53
Mas o que atrás foi dito não
deve ser classificado de
acordo com os padrões
habituais. As epopeias
irlandesas apresentam uma
desordem s mi ológicas
reapaque faz lembrar uma
bruma artística. As
personagen it

recem constantemente nas


narrativas de natureza
histórica, e encontram~ -se
certos pormenores realistas
em contos cuj a beleza se
centra no sobrenatural, pois
na mentalidade celta,
irlandesa ou outra, não
existem fronteiras entre o
mundo visível e o invisível. 0
sobrenatural, como o próprio
nome indica, não é mais do
que o natural visto um pouco
mais de cima para que se
possam observar as

54
realidades escondidas.
Neste caso, o real, que serve
de base a qualquer narrativa
verosímil, aparece como
transcendido, como um
autêntico surreal, um mundo
do pensamento interior, à
imagem do universo do sidh,
ou seja, do Outro Mundo, que,
segundo a crença irlandesa,
se encontra no interior de
grandes túmulos megalíticos
onde vivem deuses e heróis.
Estes túmulos abrem-se
durante a festa de Samain
(noite de Toussaint), o que
permite a interco-

55
municação entre os dois
mundos. 0 que há de mais
Datural? Não há maravilhoso
na epopeia celta, apenas há
fantástico. Com efeito, é o real
que, passando por sucessivas
metamorfoses, se torna
fantástico.

Comportamentos estranhos,
cenários surrealIstas,
desordem do conteúdo e da
forina, são algumas
características da epopeia
primitiva dos celtas, em
particular da que os gaélicos
da Irlanda quiseram transmitir
a posteridade. Esta desordem
não pode deixar de
surpreender quem vive ainda
à sombra - e ao abrigo - da
tranquilizante lógica
aristotélica bascada no
verdadeiro e no falso. Mas os
celtas nunca conheceram
Aristóteles nem quiseram

56
alguma vez obedecer aos
seus apelos ao senso comum,
tendo preferido permanecer
na dialéctica pré-socrátca
anterior ao milagre grego, e
defender, como o fez
Héraclito, que «os mesmos
caminhos que fazem subir
fazem também descer». Não é
um paradoxo mas uma pura
verdade lógica demonstrar
que qualquer juízo humano
depende do seu sistema de
referência, por outras
palavras, da polaridade da
acção, tudo dependendo do
que se entende por «alto» e
por «baIxo». Além disso, os
latinos, apesar de
considerados lógicos,
empregavam o mesmo termo,
altus, para classificar a altura
e a profundidade, o que
parece ter caído no
esquecimento. Quanto à
desordem surpreendente da

57
epopeia celta, esta não passa
de uma aparência
enganadora: os poetas e os
contadores irlandeses sabiam
muito bem o que estavam a
fazer, pois alguns deles
reconstituíram o plano de
conjunto a partir de contos
mitológicos desordenados ou
em forma de fragmentos,
procedendo assim do mesmo
modo que um Chrétien de
Troyes e outros autores
franceses da Idade Média
que, através de contos
arturianos aparentemente
desprovidos de continuidade,
escreveram e prolongaram a
grande epopeia do Graal e da
Távola Redonda. Com efeito,
as epopeias irlandesas
formam um ciclo
perfeitamente coerente que,
não sendo sempre de fácil
discernimento, aparece no
entanto como um esquema de

58
um extraordinário rigor.

Deste modo, foi redigido antes


do ano 1168 o célebre Livro
das Conquistas (Leabhar
Gabala), que é uma espécie
de compilação de contos
mitológicos ligados aos
sucessivos povoamentos da
Irlanda, desde as origens até
ao advento do cristianismo.
Sabe-se actualmente que na
origem desse livro está a
escrita em prosa de um cicio
de poemas pretensamente
históricos atribuídos a um
certo Gilla Caemain, que
morreu em
1097 e cuja obra está hoje
perdida. Mas, tal como se
encontra, representando o
meio intelectual do século XII
e tendo a preocupação de
provar uma identidade gaélica
face à invasão anglo-Dorrn
anda, esta obra é de um

59
valor imenso pois permite que
se tenha uma ideia mais
aproximada do encadeamento
das diversas narrativas cujo
objectivo era refazer a história
da Irlanda de modo a
acentuar~lhe a
especificidade e o valor.
Assim se explica que
apareçam diversas
referências bíblicas, sentindo
os irlandeses a necessidade
de se agarrarem a uma filiação
honrada e quase divi-

ido com os romanos na fábula


de Eneida, filho de na, como
tinha acontec 1

Vénus, e como ocorreu


também na mesma epoca
com os bretões insulares que,
pela pena de Geoffroy de
Morrinouth, afirmaram que o
seu antepassado epónimo

60
Brutus era um descendente de
Eneida, e por isso de essência
troiana e divina. Como é
evidente tomavam-se os
desejos por realidades, ao
mesmo tempo que se
conciliava a tradição druídica
pagã com a tradição judaico-
cristã passando pelo Egipto e
pela Grécia. 0 mesmo
acontecerá alguns séculos
mais tarde com a História da
Irlanda de Geoffroy Keating
que, escrita cerca de 1640 e
retomada em diversos
manuscritos, só foi impressa
em 1723 através de uma
tradução inglesa. Tanto o
Livro das Conquistas como a
História da Irlanda estão
repletos de testemunhos da
antiga epopeia celta, que
desafia o tempo e o espaço.

Sendo verdade que estes


manuscritos não apresentam

61
a realidade histórica, não
deixa de o ser também que
contêm numerosos elementos
filosóficos e metafisicos,
assim como reflexões
sociológicas, que os
antropólogos modernos não
desdenhariam. Assim, a
enumeração e as
características dos diversos
povos que ocuparam a Ilha
Verde - Ou seja, a Irlanda -
desde o dilúvio são muito
esclarecedoras. os primeiros
invasores, a tribo de
Partholon, são de um tipo que
se pode classificar como
vegetativo, preocupando-se
unicamente em sobreviver,
abrigar-se e procriar, imagem
esta que corresponde, numa
perspectiva simbólica, ao que
existe de mais primário na
civilização, Os segundos
invasores são membros da
tribo de Nemed: ora, o nome

62
nemed significa «sagrado», o
que indica desde logo,
claramente, uma reflexão
metafisica ou religiosa numa
sociedade que até então só
tinha preocupações materiais.
Os terceiros invasores são os
Fir Bolg: também neste caso o
nome é significativo, pois fir
quer dizer «homens» (vide o
latim vir) e bolg tem uma raiz
indo-europela que também
deu em latim.fulgur,
«trovão».”’ Como é óbvio, os
Fir Bolg são sobretudo
ferreiros, mestres do fogo e
inventores de técni-

1. Para este nome


propuseram-se significados
extravagantes, em particular
«homens-sacos», o que não
quer dizer abSOILItaniente
nada. 0 mesmo aconteceu
com o povo dos Belgas,
também considerados como

63
«homens-sacos».

64
cas artesanais novas,
destinadas à guerra ou a
trabalhos agrícolas.

Os quartos invasores da
Irlanda são os famosos
Tuatha Dê Danann, as «Tribos
da deusa Dana», deusa-mãe
cujo nome está associado a
numerosos termos vizinhos do
Médio Oriente, em particular
Tana:it, ou também Anáta,
assim como a rios como o Don
e o Dantibio (Tanaüs).
Segundo a tradição, essas
tribos vieram «das ilhas do
norte do mundo», tendo
introduzido na Irlanda a
ciência, a magia e o druidismo.
Elas são por isso detentoras
de uma sociedade fortemente
hierarquizada à maneira indo-
europeia, baseada em
princípios mais ou menos
teocráticos e onde predomina
uma organização sacerdotal.

65
Além disso, os heróis dos
Tuatha Dê Danann são as
antigas divindades do
druidismo celta triunfante.

Os quintos conquistadores da
lha Verde são chamados, nas
narrativas, «Os filhos de
Milé», ou os «milesianos»,
surgindo do Oriente e
passando por Espanha.
Correspondem precisamente
aos Gaélicos e representam a
sociedade irlandesa
tradicional, tal como a
descobriram os primeiros
missionários cristãos, e tal
como ela era ainda quando da
chegada dos
Anglo~Normandos de
Henrique 11 Plantageneta,
apesar de uma cristianização
que tentara substituir os
druidas pelos padres, os
abades e os bispos junto dos
chefes dos clãs e das tribos.

66
Esta invasão dos milesianos
corresponde ao nascimento
duma sociedade baseada no
equilíbrio entre as duas forças
que a compõem, a política (os
gaélicos) e a religiosa (os
druidas, portanto os Tuatha
Dê Danann). Esse equilíbrio
deriva de, após o triunfo dos
Filhos de Milé sobre os
Tuatha, estes não se terem
deixado eliminar e, segundo
um acordo solene, terem
ficado na posse dos ttimulos e
das ilhas maravilhosas que
rodeiam - miticamente - a
Irlanda, enquanto os gaéllcos
ocuparam a superfície da ilha.
Graças à Incontornável
colaboração entre o druida e o
rei, absolutamente
indispensável para que
qualquer grupo possa
subsistir, a estrutura da
sociedade celta é um
verdadeiro modelo de

67
harmonia entre o mundo
visível e o invisível.

Além disso, a sociedade


descrita na epopeia é
compósita: por muito que os
Tuattia sejam tanto criaturas
feéricas(” como divinas,
misturam-se com os seres
humanos intervindo nos seus
assuntos. Acontece também
que os elementos originários
da tribo de Nemed e dos Fir
Bolg estão sempre presentes.
E toda esta gente se vê
constantemente confrontada
com um misterioso povo, o
dos Fomore, seres gigantes
que,

N. T.: Féeriques no original; o


mundo feérico é o mundo das
fadas (fèes), o mundo mágico.

habitando em ilhas
longínquas, têm numerosos

68
pontos em comum com os
ciclopes da tradição helénica e
os gigantes da mitologia
germano-escandinava. Tal
como eles, provocam
frequentes distúrbios e
atacam sempre que há uma
vaga de conquistadores da
Ilha Verde, simbolizando,
como é evidente, as forças
obscuras do inconsciente, os
poderes da destruição e do
caos que devem ser
constantemente combatidas
para assegurar não apenas o
equilíbrio mas também a
sobrevivência de uma
sociedade dita civilizada.

Com efeito, os confrontos são


constantes. Nada é definitivo,
e o retomar dos problemas
gerais processa-se ao ritmo
das estações e dos dias.
Durante largos períodos de
adormecimento, a tensao vai-

69
se acumulando, cresce.
exacerba-se e acaba por se
manifestar, ocorrendo então
as guerras, as aventuras
expedicionárias, os
acontecimentos imprevistos.
Ora, estas crises não são fruto
do acaso nas narrativas
epicas, podendo constatar~se
que elas coincidem sempre
com uma data essencial do
calendário celta, o que
demonstra que de certo modo
se trata de rituais realizados
segundo um plano bem
determinado e com um
significado profundo. As
invasões, por exemplo,
encontram-se sempre datadas
à volta do P de Maio, e as
guerras, no decurso das quais
morre um rei, ocorrem à volta
do 1’ de Novembro. 0 conjunto
obedece a um esquema
superior que os múltiplos
autores das narrativas epicas

70
conheciam perfeitamente, o
que faz supor que o corpus da
epopeia celta da Irlanda
exprimia a tradição mais
antiga e mais específica dos
povos celtas originais que
sobreviveram a todas as
migraçoes e a todas as
vicissitudes.”’

Sabe-se com efeito que o


calendário dos celtas estava
ordenado segundo um eixo
fundamental que Ia da festa de
Samain (I’ de Novem-

Segundo tudo leva a crer, a


epopeia irlandesa, que
conservou unia grande parte
de arcaísmos, testemunha,
mais do que qualquer outra
tradição europeia, a existência
de uma epopeia primitiva indo-
europeia, ou indo-ariana, pois
a comparação que se pode
fazer com as narrativas dos

71
ossetes, povos do norte do
Cáucaso que descendem dos
citas e dos sarmatas, é
particularmente
esclarecedora: em arribas as
tradições se encontram,
apesar de estarem muito
distantes no tempo e no
espaço, os mesmos episódios
e as mesmas personagens,
embora evidentemente com
outros nomes. Podem ler-se a
este propósito, dispersos em
várias revistas, diversos
artigos de Joêl Grisward, e
sobretudo duas obras de
Geoges Dumézil, Romans de
Scythie e d’alentour, Paris,
Payot, 1978, e Le Livre des
Héros, Paris, Gallimard, 1965-
1989, contendo esta última
traduções completas de
narrativas ossetas que
apresentam extraordinárias
semelhanças com as
narrativas irlandesas. É por

72
isso verosímil a existência
desta epopeia primitiva, o que
justifica a procura de um
esquema narrativo original.

73
bro) à da Beltaine (10 de
Maio)”’, ou seja, guiava-se em
função da entrada e saída do
Inverno. A datação das
invasões no fim do Inverno e
no começo da estação estival
corresponde portanto a uma
realidade simbólica, tratando-
se de um novo princípio, de
um novo nascimento, de um
novo ciclo. Quanto à morte de
um rei no início do Inverno,
não há aqui senão a
constatação de um certo
adormecimento, de uma
interrupção das actividades da
função real, guerreira e
pastoral, sendo esta última
particularmente importante no
caso da Irlanda, pois a Ilha
Verde foi sempre e continua a
ser o país por excelência da
criação de gado, o que explica
que a estrutura social dos
gaélicos estivesse
profundamente dependente

74
da criação de gado, a única
verdadeira riqueza destes
povos ainda marcados pelo
nomadismo e cujas fronteiras
jamais ultrapassavam os
territórios do rei, ou, dito de
outro modo, a sua
prosperidade dependia de
poderem contar com a
protecção do rei na sua
actividade pastoril. Este é um
dado muito importante a ter
conta se se quer
compreender, na sua
expressão irlandesa, o sentido
profundo da epopeia celta.

Há por conseguinte nesta


grande quantidade de
narrativas aparentemente
independentes uma coerência
que deixa supor um conjunto
de situações regidas pelos
costumes e as crenças dos
antigos celtas. Uma
comparação se impõe desde

75
logo, mesmo que pareça
paradoxal: as diversas
narrativas recolhidas nos
manuscritos irlandeses
formam uma verdadeira saga
(termo que costuma estar
reservado às homóIogas
escandinavas), análoga à que
Hortoré de BaIzac tentou fazer
ao compor os múltiplos
episódios autónomos da
Comédia Humana. Com
efeito, nestes últimos
encontra-se de tudo um
pouco: fragmentos da vida
quotidiana, lutas intermináveis
pelo poder, a voracidade de
tubarões de dentes afiados, o
sacrifício de inocentes,
histórias de amor de partir
corações, assassínios,
barbáries, proezas heróicas,
delírios poéticos ou proféticos,
e ainda muitos outros
elementos que são comuns à
antiga epopeia celta, assim

76
como ao gemo romanesco
muitas vezes inspirado pelas
vozes do invisível.

É um facto inegável que a


saga romanesca de BaIzac se
alimenta inconscientemente
de mitos existentes na
sociedade da primeira metade

1. Sendo um facto que o ano


celta possuía doze meses
lunares, mais um mês
intercalar para alcançar o ciclo
solar, e que cada mês
começava com a lua cheia, as
festas de Samain e de
Beltaine não calhavam em
datas fixas: será mais correcto
dizer «na lua cheia mais
próxima do 1’ de Novembro ou
do 1’ de Maio».

do século XIX. As
personagens que
encontramos na Comédia

77
Humana e que vão
aparecendo, aparentemente
em desordem, nos diversos
trechos narrativos, são
absolutamente indispensáveis
para a coerência do plano de
conjunto que foi idealizado
pelo seu autor. Todas elas
representam arquétipos, e
facilmente poderíamos
identificá-los com certos
heróis, não só da epopeia
celta da Irlanda mas também
da epopeia humana em geral.
0 ingénuo mas poderoso
Rastignac tem o seu
correspondente irlandês em
Lug do Braço Longo e no seu
prolongamento humanizado
Cúchulainn; o tímido
Rubempré encontra-se na
tocante personagem de
Dermot (Diarmaid), e a pobre
Esther Gobseck na de
Déirdré, tão exaltada por John
Millington Syngee é a imagem

78
perfeita da Irlanda oprimida e
martirizada. Quanto a Vautrin,
ser proteiforme, é o Thersite
grego, o Lõki germano-
escandinavo e o Bricriu
irlandês, ou seja, uma das
imagens fundadoras do Diabo
medieval, o próprio símbolo do
Tentador que, para melhor
semear a discórdia, se
mascara com as feições
benevolentes do deus Ogina
da palavra dourada, ou então
com as feições dum estranho
Côroi mac Dacré que muda de
forma e de aspecto sempre
que quer enganar um rival.
Honoré de BaIzac não
conhecia rigorosamente nada
das lendas irlandesas, mas o
gênio de um artista de
qualquer época traduz-se em
encontrar através da sua
criação própria os grandes
mitos fundadores da
humanidade, os mitos

79
impereciveis que moldam a
estrutura de um pensamento
humano e que se manifestam
através de imagens e de
símbolos que remontam à
noite dos tempos. Além do seu
exemplo, outros poderiam ser
aqui referidos.

Passando adiante, refira-se


que do conjunto de episódios
preciosamente recolhidos
pelos transcritores irlandeses,
saíram várias personagens
com características bem
vincadas, com um profundo
valor simbólico, e com o seu
lugar na sociedade irlandesa e
na estrutura mental dos celtas.
0 mínimo que se pode dizer é
que elas são «cheias de cor»
e inesquecíveis, tão forte é o
poder de evocação que
exercem sobre o imaginário.
Apeteceria chamar-lhes
«divinas», se este epíteto

80
tivesse um verdadeiro
significado no espírito dos
contadores: na verdade tudo
leva a crer que os druidas
professavam a existência de
um deus único, incomunicável
e inominável, ao qual por
vezes era dada uma
aparencia humana para que
pudesse ser inteligível. Com
efeito, as personagens
«divinas» que deambulam
pelas epopeias celtas não
passam de funções divinas
materializadas, concretizadas
e encarnadas por seres que,
apesar de terem
características perfeitamente
humanas, são dotadas de

81
poderes sobrenaturais ou
mágicos, trata~se de homens
e mulheres que, por natureza
ou graças a uma paciente
iniciação, atingiram um grau
muito elevado de sabedoria e
de poder assimilando funções
divinas de que são agentes e
donos.

Quer isto dizer que essas


personagens diferem
profundamente dos «actores»
da epopeia grega, deuses ou
semi-deuses, que,
classificados a título definitivo
como imortais, se sobrepõem
à acção humana, domínando-
a, ou mesmo contrariando-a
sempre que ela desafia os
limites impostos pelo Destino.
Os deuses gregos são polícias
e censores encarregados de
manter a ordem numa
sociedade ideal onde cada
pessoa tem um lugar

82
definitivo. Os pretensos
deuses celtas são treinadores
que mostram ao conjunto dos
seres humanos como se
trarisfonua um mundo que
ainda mal saiu do caos e se o
leva a um estado de perfeição.
Esta atitude metafisica
encontra-se nos mais
pequenos pormenores da
epopeia e, graças a eles,
respira-se uma esperança e
uma serenidade que fazem
com que cada pessoa
encontre o caminho para o
pedaço de infinito que lhe
coube.

Acontece na verdade que os


heróis, em algumas peripécias
em que se enredam, estão
constantemente nas fronteiras
do real e prontos a
crivolverem-se com um além,
sendo a atmosfera
esseiicialmeDte sagrada,

83
embora permeada aqui e ali
por alguns elementos
realistas. É absolutamente
verosímil que estas narrativas,
independentemente da forma
em que chegaram até Dós,
sejam a expressão narrativa,
de algum modo romanesca,
de antigos rituais religiosos,
de velhos dramas litúrgicos
que entretanto se perderam e
nos quais cada personagem
era um sacerdote, um druida e
portanto um deus, ou então
aspirava a sê-lo; os actos são
às vezes orações mais
eficazes que as palavras,
sobretudo quando estas são
pronunciadas de tal maneira
que mal se compreende o seu
sentido. A regra absoluta é por
isso a superação pois, na
perspectiva celta que
encontramos nos textos, Deus
não é, mas transforma -se,
participando todos o seres

84
nesta transformação.

Estes seres comportam por


isso diversas facetas, não
sendo bons nem maus: eles
serão. Os seus nomes pouco
importam, pois trocam-se
entre si; também pouco
importam as suas acções
aparentemente vis, pois
pertencem à sua massa bruta.
Eles serão heróis com o seu
lugar na subtil e complexa
liturgia que decorre no mundo
desde que apareceu o
primeiro ser vivo. 0 jogo
começa.

Assim se encontram as
personagens na abertura da
cena, ou melhor, nos
primeiros degraus do
santuário. Na tragédia antiga
era o coro

que, apresentando os heróis,

85
abria o ritual. Neste caso, uma
testemunha vem contar o que
viu, pois qualquer narrativa
histórica deve ser Justificada
por uma tradição autêntica ou
tida como tal. Aqui a
testemunha é uni homem
estranho, Tuân mac Cairill,
acerca do qual se diz ter vivido
várias vidas desde a época do
dilúvio tomando diversas
aparencias. Em narrativas
análogas, substitui-o um certo
Fintan, filho de Boclira e
descendente de Noé. Pouco
importa: era necessaria uma
testemunha fidedigna e
encontrou-se uma. Além
disso, como estas histórias
foram redigidas na era cristã,
impunha-se a caução da nova
religião: esta caução encarna
no monge São Firmen a quem
Tuân vai contar o que sabe ou,
noutra versão, no célebre
santo Colum-Cill (Colomba).

86
Além disso, mais tarde,
quando se tratou de
transcrever a grande epopeia
dos Fiana à volta de Finn e de
Oisin (Ossían), foi o próprio
São Patrícío, o grande
evangelizador da Irlanda, que
veio a evocar a grande sombra
do herói Caílté, um dos
companheiros de Finn, para
lhe contar as aventuras de que
ele foi ao mesmo tempo
testemunha e actor. Acontece,
porém, que Cailté tem uma
dimensão humana normal e
viveu apenas uma vida. Uan
mac Cairill tem um aspecto
mais mágico, roçando as
fronteiras do sobrenatural,
fazendo lembrar o bardo galês
Taliesin que, ao nascer uma
segunda vez, adquiriu um
conhecimento supremo, e
lembrando também Merlim, o
Encantador, da lenda
arturiana, filho de um diabo,

87
mestre da magia e da profecia,
que, segundo os próprios
textos, confia ao eremita
Blaise a missão de passar
para a escrita as aventuras do
Santo Graal, de forma a
chegarem à posteridade.

Este procedimento permite


recuar no tempo e tirar da
sombra grandes figuras que
vão cumprir o ritual,
«recuperando-se» os
antepassados míticos, como
Partholon, o primeiro invasor
de uma Irlanda
completamente deserta a
seguir ao dilúvio, como
Nemed, o primeiro
sacralizador da terra da Ilha
Verde, ou como os invasores
sucessivos, até ao famoso
Tuhatha Dê Danann, que são
verdadeiramente heróis
civilizadores e os pilares da
sociedade celta teórica, Na

88
verdade, estas figuras míticas
estão organizadas e
hierarquizadas segundo o
modelo sociocultural índo-
europeu, servindo de fio
condutor a tudo o que foi
edificado na Irlanda e
desejando conservar, apesar
da ocupação anglo-normanda,
a memória dos velhos
gaélicos, depositários de toda
uma tradição de sabedoria e
de concepção do mundo.

É assim que surge a figura


hierática de Nuada, rei das
tribos da deusa Dana, ponto
de equilíbrio desta sociedade
ideal, e que num certo

89
sentido se poderia comparar
ao Zeus grego e ao Júpiter
romano. Nuada evoca
também o Tyrr germano-
escandinavo (e a personagem
pseudo-histórica latina Mucius
Scaevola), pois perde um
braço durante uma batalha.
Na tradição germano-
escandinava (como na
tradição latina), a «mutilação»
deriva de um juramento
simulado pronunciado com
plena consciência para
proteger o mundo divino, mas
na tradição celta trata-se
antes de uma ferida heróica. 0
problema, no caso dos celtas,
consiste em que a integridade
física do rei anda a par da sua
integridade moral: um rei
doente ou mutilado não pode
reinar, pois se o fizesse o seu
próprio reino estaria doente ou
mutilado, devido a ambos
constituírem uma unidade.

90
Contudo, como entre os celtas
as fronteiras do real não são
claras, há sempre uma
maneira de inverter uma
situação catastrófica,
bastando um braço de prata
para que Nuada readquira a
plenitude das suas funções
reais. Assim, ele poderá
nominalmente levar à vitória
as tribos da deusa Dana
contra as forças obscuras - e
obscuran.tístas -
representadas pelos Fomore,
os demónios de um olho único
e maléfico que têm por chefe o
gigante Balor, o trovejador.

Entretanto, a sociedade
representada pelos Tuatha Dê
Danam está constituída de
forina a reflectir a sociedade
humana, agrupando, por
vezes de forma elitista e
aristocrática, um certo número
de indivíduos que tanto

91
representam arquétipos de
funções sociais, como são de
alguma forma especialistas
duma arte (podendo esta
palavra significar também
técnica). 0 rei Nuada acaba
por ser o eixo de um
mecanismo complexo que só
pode funcionar se cada peça
estiver no seu lugar. Um rei
que não esteja acompanhado
de guerreiros, de artesãos, de
«sábios», de sacerdotes, de
mágicos e de poetas, não
possui nenhuma
relevância.’Que seria do
fabuloso rei Artur sem os seus
cavaleiros e sem o seu
adivinho? 0 mesmo acontece
com Nuada. À sua volta
encontramos personagens
como Ogrua, o mestre da
palavra - aquele Ogrulos que o
filósofo grego c pti-

é co Luciano de Samosata

92
descreveu com correntes que,
saindo da língua, chegavam
às orelhas dos humanos - o
artífice do bronze Credne, o
ferreiro Goibniu, o médico
Diancecht e muitos outros
artistas que participam numa
espécie de conferência onde
cada um tem voto na matéria.
De entre eles destaca-se a
grande figura de Dagda, cujo
nome significa literalmente
«bom deus», e que tem como
apelido Ollathair, isto é, «pai
de todos».

Este apelido é precisamente o


epíteto de Odin-Wotan,
Affiadir, mas Dagda, ao que
parece, apenas tem em
comum com o deus germano-
escandinavo uma certa
ambiguidade do carácter. Do
mesmo modo que

Odin-Wotan é o deus dos

93
contratos e não pára de troçar
deles, Dagda, enquanto «bom
deus», possui uma moca
muito estranha que mata com
uma das suas extremidades e
ressuscita com a outra. Não
será ele o equivalente do deus
gaulês Sucellos, que estava
sempre armado com um
martelo e cujo nome significa
«aquele que bate»? Ou tratar-
se-á de Teutates, ou Toutatis,
o «pai do povo»? Seja como
for, à medida que, com os
séculos, ele se foi
«folclorizando», transformou-
se no Gargantua da tradição
francesa, que Rabelais tão
bem soube recuperar e
revalorizar. Trata-se com
efeito de um gigante dotado de
uma potência sexual fora do
comum e de um apetite voraz.
Além disso, possui um
caldeirão maravilhoso, um dos
arquétipos do Graal, no qual

94
verte um alimento inesgotável.
Mas ele é também um artista
no sentido que actualmente se
dá à palavra, pois consegue
extrair da sua harpa sons que
fazem chorar e mesmo
morrer, que provocam alegria
e riso, ou que adormecem
quem quer que os ouça.

E, como Dagda é o «pai de


todos», possui diversos filhos,
com quem tem um
relacionamento de contornos
muito pouco claros. Da sua
irmã - ou filha - Boann,
epónimo do rio Boyne, ele
tem, após manobras
perfeitamente delatórias, um
filho que se chamará Oengus
(Angus) e cujo apelido será
Mac Oc, ou seja, «jovem
filho». Oengus é uma das
personagens mais célebres da
tradição gaélica e uma das
que mais se enraizou na

95
memória popular. Rei feérico,
ele é o senhor do cairn(”
megalítico mais famoso do
mundo, o de Newgrange (em
gaélico, Sidh-na-Brug ou
Brug-na-Boyne), que serviu de
inspiração às grandes lendas
da tradição épica irlandesa. E
se Oengus tem uma essência
divina, não deixa por isso de
se vir misturar com os
humanos, intrometendo-se
nos seus jogos, nos seus
assuntos e nas suas batalhas.
Alguns contos populares
descrevem-no como estando
sempre escondido no meio do
arvoredo, pronto a intervir no
caso de a ordem do mundo ser
alterada. Este «jovem filho» é,
em suma, uma espécie de
consciência universal, sempre
latente no espírito humano e
capaz de se manifestar tanto
para operar grandes milagres
como para infligir os piores

96
castigos.

Todos estes extraordinários


membros das tribos da deusa
Dana formam uma espécie de
sociedade ideal onde
predominam as estruturas
ceitas. Cada um deles é «rei»
nos seus domínios, «reina»
sobre um

I. N. T.: Montículo de forma


redonda, feito de pedras e de
terra; túmulo celta ou pré-
históri-

co. As antas ou dólmenes


estavam normalmente
inscridas num cairn. Estes
montículos ou outeiros
artificiais tão são designados
por tumulus.

97
palácio maravilhoso, ou sobre
um outeiro megalítico; entre
eles existem laços que tanto
podem ser de aliança pura e
simples, como familiares ou
meramente contratuais. Após
a batalha de Tailtiu e a partilha
da Irlanda com os milesianos,
foi Dagda que, na hierarquia,
ocupou o lugar cimeiro, como
se fosse o rei supremo
possuidor de uma autoridade
moral incontestável e de
poderes para exercer a
justiça. Esta proeminência
encontramo-la também na
personagem de ManaDann,
filho de Lir, epónimo da Ilha de
Man: este reina sobre a
misteriosa «Terra da
promessa», que também se
chama Tir-na-nOg ou «País
da Eterna Juventude», que é
na verdade uma espécie de
paraíso situado algures em
ilhas longínquas, a ocidente,

98
evidentemente, ilhas
estranhas com uma
vegetação maravilhosa e com
grandes espaços conhecidos
pelo nome de Mag Mell ou
«Planície das Fadas».
Acontece entretanto que estes
domínios estão situados sob
um lago, e às vezes mesmo
sob o mar: o Outro Mundo,
para os celtas, está sempre
muito próximo do mundo dos
vivos, que nele podem
penetrar. No que respeita às
«boas gentes», termo popular
que se refere aos seres
feéricos, deambulam pelo
mundo humano sem
quaisquer problemas,
possuindo o dom da
invisibilidade e podendo
assumir um aspecto humano
sempre que o desejem;
podem também tomar a forma
de aves, o que acontece
sobretudo quando se trata de

99
mulheres.

Entre todas estas


personagens, Dagda, Mider,
Oengus, Mananann e muitos
outras, há uma que é muito
particular e que escapa a
qualquer hierarquia: Lug, ao
qual estão associados dois
epítetos, Lanifada, isto é,
«braço longo», e
Samildanach, «artesão
múltiplo». Lug constitui a
figura da divindade celta mais
difundida, não apenas na
Irlanda mas em todo o
continente europeu, devendo-
se a ele o nome de várias
cidades, como Lyon, Laon,
Loudun, Leyde e Leipzig, que
derivam da antiga designação
lugudunum, «fortaleza de
Lug». É a ele que se refere
Júlio César, nos seus
Comentários, quando
menciona um Mercúrio

100
gaulês, fazendo notar que se
trata do deus mais venerado
de toda a Gália. A sua origem
é dupla: ele pertence ao ramo
dos Tuatha Dê Danann pelo
lado do pai, e ao dos Fomore
pelo lado materno, o que faz
com que só ele seja capaz, na
segunda batalha de Mag-
Tured (Moytura), de enfrentar
o avô, Balor, de olho malévolo,
e de o matar. Além disso, sem
que ocupe nenhum lugar na
hierarquia, ele é o organizador
por excelência e o artesão da
vitória final nesta batalha. Isto
deve-se ao facto de ele ser um
deus para além de todas as
funções, reunindo o conjunto
das qualidades que se
encontram nos outros deuses;
ele é na verdade o «Múltiplo

artesão», tal como o será mais


tarde, na lenda arturiana,
Lancelote do Lago, que e a

101
sua imagem heroicizada e
tomada romanesca.(”

Na epopeia celta encontram-


se personagens femininas que
nada ficam a dever aos
homens. Segundo a tradição,
a Irlanda era habitada, antes
do dilúvio, por uma mulher
primordial de nome Cessair; e
a própria Irlanda se tornou
uma entidade divina ou
feérica, Bariba, a qual,
segundo algumas versões da
lenda, teria sobrevivido ao
dilúvio, assegurando assim a
perenidade da terra situada
nos confins do real. Foi
também uma mulher, a filha do
deus-médico Dianceclit, que,
graças à sua ciência e magia,
devolveu o poder real ao
Nuada vencido, fabricando-lhe
um braço de prata tão eficaz e
vivo como o seu braço de
carne, e fazendo-lhe um

102
«implante» graças a uma
extraordinaria «operaçao»
cirúrgica. Acontece com efeito
que, na perspectiva celta, as
mulheres são dotadas de
poderes ignorados pelos
homens. A mulher é sempre a
imagem simbólica da
Soberania, pois encarna o
conjunto da comunidade da
qual o rei - acessoriamente o
niarido - é a trave mestra
teórica, um pouco como
acontece no jogo de xadrez
em que a rainha é a peça de
maior mobilidade, mas onde o
rei é uma peça fundamental
sem a qual se perde a partida.
Nas narrativas epicas
aparecem também mulheres
mágicas, e frequentemente
feiticeiras, como Funinach,
primeira esposa de Mider,
inimiga jurada da bela Etame,
e mais tarde mulheres-
guerreiras iniciadoras dos

103
jovens e temíveis sacerdotisas
especialistas em manipular os
sortilégios. Estas mulheres
nunca deixam de viver em
plenitude, arcando com as
consequências dos seus
actos. Por muito conscientes
que estejam do seu poder, não
esquecem que podem morrer
de amor, estando sujeitas às
circunstâncias que lhes
alimentou a paixão voraz e
ilimitada e aos caprichos 1do
fado, ou seja, à força de um
Destino desconhecido mas
imanente. E preciso não
esquecer que a origem da
história trágica de amor de
Tristão e Isolda, tão célebre no
mundo ocidental e chegando a
ser considerada o símbolo do
amor humano, está
claramente inscrita na epopeia
celta da Irlanda.

A característica mais saliente

104
destas heroínas femininas
epicas e apresentarem
múltiplas aparências,
múltiplos rostos, múltiplos
semblantes, geralmente três,
tendo em consideração o
número simbólico sagrado dos
Celtas, o qual tanto se
apresenta com a forma de
tríade

1 . A este propósito, ver J.


Markale, Lancelot et la
Chevalerie arthurienne, Paris,
Imago, 1985.

105
como de triskell, a tripla espiral
que, girando à volta de um
ponto central, simboliza por
excelência o universo em
expansão. As heroínas
aparecem por isso com
inúmeras aparencias e
nomes, em diferentes épocas
e em encamaçoes sucessivas.
Refira-se em primeiro lugar a
tripla Brigit, que se diz filha de
Dagda (a não ser que ela não
seja sua irmã), e que vem a
ser nem mais nem menos que
a Minerva gaulesa de quem
fala César, deusa das
técnicas, das ciências e das
artes, que os cristãos
recuperaram com o vocábulo
«santa» Brígida atribuindo-lhe
a fundação do célebre
mosteiro de Kildare, antigo
lugar de extrema importância
do culto druídico. Ora, esta
Brigit é também, com o nome
de Boann, a mãe de Oengus,

106
o Mac Oc que concebeu e deu
à luz durante o espaço
temporal da noite de Samain,
ou seja, simbolicamente,
durante a abolição do tempo,
a eternidade. Brigit encama a
vida eterna, e o seu nome,
derivado de Bo Vinda, «vaca
branca», mostra bem até que
ponto se encontra associada a
um alimento inesgotável, o
leite, elemento indispensável
aos povos exclusivamente
nómadas e pastores, como
era o caso dos celtas. A
simbologia do seu nome dará
os seus frutos, e Boann toma-
se o rio Boyne (grafia
moderna) que fecunda com as
suas águas doces um vale
verdejante ao redor do qual se
situam os grandes outeiros
feéricos, que são domínio dos
deuses. E se o nome Brigit
(que significa «poderosa»,
«alta», «luminosa») é

107
extremamente significativo,
Boann, representando a
riqueza avaliada em cabeças
de gado entre os celtas,
constitui a alma duma
sociedade onde predominam
claramente as tendências
ginecocráticas.

0 terceiro rosto de Brigit-


Boann, o de Morrígane
(genítívo de Morrigu), filha de
Ernirias, uma das
personagens mais marcantes
das tribos da deusa Dana, é
de difícil apreensão devido
aos seus contornos pouco
claros. 0 que nela melhor se
evidencia, em particular na
narrativa da batalha de mag-
Tured, é o facto de se tratar de
uma divindade guerreira
temível para os seus inimigos
durante os conflitos enquanto
exortava os guerreiros a
combaterem com

108
encamiçamento. 0 furor
guerreiro de que ela dá provas
abundantemente desdobra-se
num furor sexual desabrido
que a transforma senão numa
divindade do amor, ao menos
numa espécie de deusa do
erotismo. A fúria guerreira e a
sexual andam assim a par, e
nos prolongamentos da
epopeia celta encontram-se
numerosas mulheres
guerreiras que têm poderes
mágicos e são especialistas
na arte militar, ao mesmo
tempo que são iniciadoras dos
futuros heróis, como é o caso,
por exemplo, de CGchulainn
ou de Finn mae Cool.

o nome de Morrigane
(Morrigu) que significa
«grande rainha», evoca o da
«fada» Morgana das novelas
arturianas e do ciclo do Graal,
tratando-se, em qualquer dos

109
casos, do mesmo arquétipo,
ao mesmo tempo guerreiro,
sexual e mágico. A Morrigane
da epopeia irlandesa toma
muitas vezes o aspecto duma
gralha, chamando-se então
Bobdh. A analogia com
Morgana é evidente, pois ela e
as suas companheiras da Ilha
de Avalon possuem
precisamente o mesmo dom
de se metamorfosearem.
Além disso, é de crer que a
mulher feérica que leva um
ramo de macieira de Emain ao
herói Bran, filho de Fébal,
antes de o levar a empreender
uma estranha navegação,
seja a própria Morrigane,
embora o seu nome não seja
pronunciado neste episódio.
Porque não havia de reinar a
«grande rainha» nesta terra
bem aventurada de frutos
maduros durante todo o ano e
onde não existem a doença, a

110
velhice e a morte? Seja como
for, a ilha misteriosa de Emam
Ablach é o equivalente, quer
linguístico quer mitológico, da
ilha de Avalon, a fabulosa
Insula Pornorum para a qual
convergem todos os
fantasmas da humanidade
sofredora.

Morrigane é bem o tipo de


mulher celta vista pelos
autores das epopeias
mitológicas; e, muitas vezes,
vamos encontrar este tipo nas
personagens femininas que,
na fronteira entre o humano e
o feérico, possuem dons mais
ou menos sobrenaturais e o
poderoso geis, ou seja, o
poder do encantamento
mágico que tem o valor de
obrigação absoluta para
aquele ou aquela que dela é
objecto. 0 belo Dermot, filho
de O’Duibhné, um dos

111
companheiros de Finn mac
Cool, conhecerá bem esse
fenômeno, pois subjuga o geis
da bela Grairiné (Grania),
perdidamente apaixonada por
ele. Os filtros do amor pouco
podem fazer face ao
encantamento mágico e
religioso que faz intervir o
mundo invisível e faz
depender os actos humanos
das divindades invisíveis. A
jovem Etaine, profundamente
amada pelo sombrio deus
Mider (que tem numerosos
pontos em comum com
Méléagant de Chrétien de
Troyes), não escapa também
ao geís lançado pela sua rival
Furimach, e nada neste
mundo a consegue poupar ao
longo período de turbulências
e depois de metamorfoses
que a afectarão
profundamente. Apesar disso
a aventura de Etaine e de

112
Mider é uma história de amor
«normal», na mais bela
tradição romântica. Na
epopeia celta, no entanto, o
amor não é um sentimento
isolado, fazendo parte das
grandes mutações que se
operam no universo, tudo se
dirige, por entre as diversas
peripecias psicológícas, para
uma dimensão cósmica à qual
ninguém consegue escapar. 0
que é posto em relevo é muito
menos a natureza fatal da pai-

113
xão amorosa do que a sua
necessidade metafíslca.
Acima de tudo, procura
transmitir~se a ideia de que, a
existir um deus. ele só pode
ser o amor, pois este constrói
o mundo, e a mulher, que é
iniciadora por essência, é
capaz de dar, com o seu amor,
um segundo nascimento, o
nascimento na eternidade,
àquele que escolheu amar.

Existe muito a ideia, formada


ao longo dos tempos, de que a
epopeia não deixa nenhum
espaço para a vida afectiva,
para o estudo do
comportamento psicológico
dos heróis, cuja descrição
permanece demasíadas
vezes ao nível do exterior,
estereotipada segundo as
normas do gênero.
Naturalmente, as
personagens das epopeias

114
são arquétipos carregados de
significação simbólica, mas
não deixam por isso de ser
dotadas de reacções
humanas e por isso de vida
interior. Naturalmente, há um
aumento do que se chama
qualidades, aumento que é
indíspensável para se pôr em
destaque as acções fora do
comum. E verdade que existe
também uma simplificação
destinada a inserir as
personagens e as acções num
determinado quadro acessível
a um público que não
compreende a profundidade e
as subtilezas da psicologia,
Apesar disso, não se deve
esquecer que os heróis são
humanos, mesmo quando são
apresentados como sobre-
hinnanos. E tanto nas
narrativas épicas da antiga
Irlanda como nas da antiga
Bretanha, são seres humanos

115
que descrevem outros seres
humanos que, ao
atravessarem a vida, tanto
passam por situações de
incerteza, de angústia e de
grande sofrimento como, por
outro lado, também são
capazes de viver grandes
alegrias e de desfrutar de
momentos de grande
felicidade. 0 amor de Mider por
c

Etam comove-nos porque se


trata de um amor que qualquer
homem pode ter por uma
mulher. 0 furor guerreiro com
que Lug vinga a morte do pai,
não poupando os
descendentes do seu
assassino, é bem demons~
trativo do sofrimento que lhe
provoca a injustiça de que o
seu pai foi vítima. A estranha
paixão de Oengus pela mulher
que entrevê através da

116
neblina e o encantamento de
Bran, filho de Fébal, quando
ouve a voz da rainha das
fadas louvar-lhe os encantos
da ilha bem aventurada, são
sentimentos perfeitamente
humanos que qualquer
pessoa poderia sentir,

É nessa universalidade dos


sentimentos que se encontra a
extraordinária riqueza destas
epopeias fragmentárias
dispersas nos varios
manuscritos da Idade Média,
cujas linhas directrizes são
agora fáceis de reconstituir.
Para além de nos fazerem
reflectir, num plano metafisico,
sobre o mundo e sobre as
relações entre o visível e o
invisível, essas epopeias
testemunham uma
sensibilidade que em nada é
inferior àquela

117
1 que o romantismo pretendeu
inventar. Estas diversas
narrativas que nos chegam do
passado têm um valor que vai
muito para além de serem um
testemunho de um mundo
imerso em sombras, pois
nelas palpita a beleza de
histórias que devem ser
transmitidas de geração em
geração com a plena certeza
de que nelas o belo, a
bondade e o salutar andam de
mãos dadas. A árvore do
conhecimento não poderá
apontar as suas ramagens
frondosas para o céu se as
suas raízes não estiverem
ricamente alimentadas pelas
sombras que deambulam pela
terra, como é o caso das dos
fantasmas que esperam
desesperadamente pelo
momento de encamarem. E só
a poesia pode permitir que se
cumpra esta subtil operação

118
alquímica.

Para que o objectivo se


realize, toma~se necessário
que se viaje para as estranhas
fronteiras do real, aí onde o
sonho e a realidade formam
duas vertentes duma mesma
e única montanha.

Poul Fetan, 1997

119
ADVERT E NCIA

A narrativa que se segue não


é uma tradução nem uma
adaptação de textos originais,
ainda menos uma ficção
romanesca inspirada por
temas épicos. Trata-se da
reescrita da grande epopeia
dos celtas tal como épossível
reconstitu-la com o auxilio de
múltiplas histórias contidas
nos manuscritos irlandeses da
Idade Média, histórias que
aparecem como sendo as
mais antigas conservadas da
tradição celta. Esta reescrita
obedece a dois imperativos:
contar com a máxima
simplicidade possível, numa
linguagem acessível ao maior
número de pessoas, e
respeitar integralmente o
esquema dramático original. E
esse o motivo por que se fará,
em cada episódio, uma

120
referência precisa ao texto
que lhe serviu de base. As
obras do passado pertencem
ao património da humanidade,
mas torna-se necessário às
vezes relembrá-las a um
Público novo. Era já essa a
tarefa dos transcritores da
Idade Média, que aqui volta a
ser proposta.

121
Naquele tempo, o abade
Finnen”’, na companhia de
seis dos seus discípulos,
percorria a terra da Irlanda
para ai pregar o Evangelho e
baptizar aqueles que ainda
não tinham recebido o
baptismo. Um dia acercou-se
ele de uma fortaleza que se
erguia numa margem, ao
fundo de uma baía, numa
região muito isolada do
UIster.l’1 Como ele e os seus
companheiros estavam
cansados devido à longa
viagem, pediram ao chefe da
fortaleza que os acolhesse.
Mas este respondeu que de
modo algum daria
acolhimento a vagabundos
que incitavam os homens da
Irlanda a abandonarem os
seus antigos costumes.

Perante esta resposta, Finnen


ficou furioso e, avançando

122
para a porta da fortaleza,
gritou: «Já que é assim, já que
te referes aos nossos antigos
costumes, eu vou lançar uma
maldição sobre o dono deste
edifício, assim como sobre
todos os que nele habitam e
toda a população deste país!
Por Deus Todo-poderoso,
enquanto não me for feita
justiça,

1 . Firmen, ou Fíman (às vezes


conhecido por «São Finian, o
Leproso», é um dos
inumeráveis «santos»
irlandeses que, sem serem
reconhecidos por Roma, são
geralmente considerados os
Primeiros evangelizadores da
ilha Verde. Firmen passa por
ter fundado o mosteiro de

Mag Bile no Ulster e o de


Innisfalien na ilha do grande
lago de Killarney, no Kerry,

123
estando este último a ilustrar
os seus Anais, de valor
inestimável para a história da
alta Idade Média.

2. Trata-se da baía de
Sheephaven, no condado de
Donegal. No lugar da antiga
fortaleza, encontram-se ainda
vestígios do castelo de Doe,
construído no sCCulo XVI pela
família dos Mae Sweeney.

124
nada farei para evitar que a
desgraça se abata sobre este
país! Nem eu nem os meus
companheiros comeremos
qualquer alimento enquanto
não for satisfeito o nosso
pedido de hospitalidade. Se
morremos, a culpa será de
quem nos recusou alojamento
e de todos aqueles que o
seguiram na sua detestável
atitude. A vergonha abater-se-
á sobre todos e terão de expiar
as culpas, estendendo-se o
castigo pelos descendentes
até à nona geração. É esse o
costume deste pais e eu juro
que o farei cumprir até às
últimas consequências!1’1

Após ter pronunciado estas


palavras, Finnen voltou para
perto dos seus companheiros
e os sete encaminharam-se
para o prado existente em
frente à fortaleza. Era um

125
sábado de noite. Os homens
ficaram deitados sobre a erva
durante a noite e uma boa
parte da manhã seguinte até
que assomou sobre as suas
cabeças um sujeito de
compleição imponente, de
cabelos brancos e barba
abundante, que, depois de os
ter observado, se dirigiu a
Finnen e se ajoelhou diante
dele. «Saúdo-te, homem de
Deus! » disse ele. «Permite-
me que faça frente ao desafio
que lançaste às gentes deste
país e que, desse modo, não
se possa dizer que o costume
da hospitalidade foi traído,
recaindo a culpa sobre cada
um de nós. Eu não moro
longe, e pedi aos meus
criados que acendessem o
lume para cozer os alimentos
no meu caldeirão. Vem,
homem de Deus; tu e os teus
companheiros terão uma

126
acolhimento digno daquele
que vos envia a pregar a sua
mensagem aos povos desta
ilha.» Finnert ergueu-se e
cumprimentou o velho.
«Quem és tu que me chamas
homem de Deus? És tu
também um homem de Deus
ou vens aqui só para me
provocar em nome do
Inimigo? - Eu recebi o
baptismo em nome do Senhor,
o Deus Todo-poderoso, e foi
Patrício que derramou sobre a
minha cabeça a água da vida
eterna», respondeu o velho.
«Peço-te que renuncies à
maldição que lançaste às
gentes deste país e que
venhas a minha casa
descansar e procurar
conforto». «Mas quem és
tu?», insistiu Finnen. «Um
homem dos tempos antigos.
Já há muito tempo que vim a
este mundo, e é por vontade

127
de Deus que cheguei ao dia de
hoje para estar diante de ti.
Acho que isto te deve bastar.
Acompanha-me a minha
casa.»

«Por Deus Todo-poderoso! »,


exclamou Finnen, «nem eu
nem os

1. Trata-se do famosojejum
legal, praticado
frequentemente pelos celtas e
que consistia, para o
queixoso, em jejuar diante da
parte adversária, revelando
solenemente os motivos do
conflito. Se o que faz jejum
morre, a responsabilidade
recai sobre aquele que não
reparou os seus erros e que,
por isso, é excluído da
comunidade. Encontra-se aqui
o mesmo princípio da greve da
fome.

128
ineus companheiros te
acompanharemos se não nos
disseres quem és.» «Nesse
caso ouve bem o que te digo.
Nunca ninguém tinha
desembarcado nesta ilha
antes do dilúvio. Conta-se no
entanto que, quarenta dias
antes de as águas subirem,
três mulheres aqui estiveram,
tendo o nome de Banba,
FothIa e Eriu”), e diz-se
também que elas
sobreviveram à inundação.
Mas o que é certo é que esta
ilha peri-naneceu deserta
trezentos e doze anos depois
do dilúvio. Só nessa altura é
que aqui chegou Partholon,
filho de Sera, acompanhado
de vinte e quatro homens e
das suas respectivas
mulheres. E eu próprio estava
entre esses vinte e quatro
homens.

129
«Partholon e o seu clã
estabeleceram-se assim na
Irlanda e aqui viveram muito
tempo. A terra era bela e fértil,
com grandes prados onde os
gados podiam pastar. E o país
agradava-lhes, porque nele
podiam (2)

prosperar tranquilamente e
sem o receio de animais
venenosos. Mas um dia, entre
dois Domingos, uma epidemia
abateu-se sobre a ilha e
morreram todos os seus
habitantes. Entretanto, como
nunca se ouviu falar de um
desastre que não tivesse
deixado ficar ao menos um
único sobrevivente para o
contar, fiquei eu, a única
testemunha dos dias antigos.

«Eu senti-me extremamente


só e passei a deambular de
colina em colina e de falésia

130
em falésia evitando os lobos
que percorriam as planícies e
as florestas. Errei assim ao
acaso durante trinta e dois
anos sem encontrar vivalma.
Por fim a velhice abateu-se
sobre mim e os membros
começaram a pesar-me,
ficando eu fraco e
desamparado. Já não
conseguia subir as colinas e a
certa altura, já não me
conseguindo mexer, refugiei-
me numa gruta à espera da
morte.

«Lembro-me como se fosse


hoje. Eu estava à entrada da
gruta, meio deitado, quando vi
chegar Nemed, filho de
Agnoman, seguido por vários
homens e mulheres. Vi-os
tomarem posse da ilha e,
quando chegaram à entrada
da gruta, não me quis mostrar.
Eu tinha deixado crescer os

131
cabelos, as minhas unhas
estavam enormes, estava
todo grisalho, decrépito e nu,
tolhido pela miséria e pelo
sofrimento. Certa vez, depois
de uma noite de sono, ao
acordar numa manhã de sol,
apercebi-me de que tomara a
forma de um veado, facto com
que

I- São os três nomes


tradicionais (e mitológicos) da
Irlanda personificada. 0 último
tornou-se o nome gaélico
oficial da República da Irlanda,
Eriu no nominativo e Erin no
genitivo.

2. Não há serpentes na
Irlanda. Este fenómeno deriva
do facto geológico de a ilha se
ter separado do continente
europeu e das Ilhas Britânicas
antes da chegada dos animais
dos países temperados e

132
quentes ao norte, no período
pós-glaciar. Mas segundo
uma lenda tradicional
irlandesa, São Patrício em
pessoa terá caçado serpentes
na ilha lançando-lhes uma
maldição.

133
o meu espírito se alegrou pois
eu voltava a ser jovem.

«Revestido da minha forma


animal, passei a tomar conta
dos gados da Irlanda, vendo
passar a meu lado grupos de
veados arruivados que
corriam através de planícies e
vales, e através de montanhas
até chegarem aos estuários
dos rios. Foi essa a minha vida
no tempo de Nemed. Os do
seu clã tomaram-se
numerosos e chegaram a
formar quatro mil e trinta
casais. Mas as gentes de
Nemed tiveram de combater
gigantes que vinham das ilhas
imersas em nevoeiro e
aqueles que não se exilaram
foram sucumbindo
sucessivamente. Assim fiquei
só, nesta ilha, a tomar conta
do numeroso gado, e tendo de
me refugiar do vento que vinha

134
do largo e da chuva que me
encharcava e me obrigava
muitas vezes a esconder~me
debaixo dos carvalhos da
floresta.

«E mais uma vez fiquei velho,


com os membros
entorpecidos. Eu sabia no
entanto que o meu destino
ainda não se cumprira, pois
faltava-me voltar ao UIster já
que fora nessa região que eu
mudara de aspecto. Resolvi
por isso refugiar-me numa
gruta, não longe daqui, e ficar
à espera do que poderia
acontecer de seguida. Foi
nessa altura que assisti ao
desembarque nesta terra da
Irlanda daqueles a quem se
chama os Homens-Trovão.
Eles eram muito numerosos e
ocuparam esta terra depois de
terem feito frente aos gigantes
das ilhas que queriam impedi-

135
los de aqui viver em paz.
Assisti a terríveis
perseguiçoes nos vales e ao
longo dos estuários, assim
como a combates mortais e a
caçadas ao homem na
floresta. Mas, por fim, os
Homens-Trovão acabaram
por dominar este país. Em
dada altura estava eu à
entrada da minha caverna,
lembro-me disso como se
fosse hoje, e o meu corpo
voltou a mudar de aspecto,
passando a ter a forma de um
javali. Consigo mesmo
lembrar-me que entoei uma
canção inspirado pela
maravilha que comigo
ocorrera:

«Hoje, sou um javali,

Sou um reijorte e vitorioso.

0 meu canto e as minhas

136
Palavras eram agradáveis,
outrora, nas assembleias,

encantando os jovens e belas


mulheres.

0 meu carro de combate era


belo e majestoso, a minha vo:
emitia sons graves e doces,

eu era hábil nos combates,


tinha um rosto encantador

Mas, hoje, sou wnjavali


negro... »

«Ora, os Homens-Trovão
foram vencidos por outras
gentes que desembarcaram
nesta terra na noite anterior às
calendas de Maio. Eu vi essas
gentes Incendiarem os navios
nas margens e penetrarem
nos vales; e vi-as combaterem
os Homens-Trovão nas
planícies. Pertenciam às tribos

137
da deusa Dana cuja origem,
segundo se diz, é
desconhecida. Mas é provável
que eles viessem do céu, pois
tinham uma inteligência rara e
os seus conhecimentos
ultrapassavam largamente os
dos outros povos do universo.

«Mais uma vez fiquei velho,


apoderando-se de mim a
tristeza e a melancolia. Eu já
não era capaz de fazer o que
fizera antes. Não me queria
misturar com os outros e
habitava em cavernas
sombrias e em covas que
existiam entre os grandes
rochedos. Eu fugia de tudo o
que mexia, fossem homens ou
animais. Lembro-me agora
perfeitamente de que me
deitei ao comprido no chão e
de que passaram à minha
frente as formas que já
possuíra até então, o que fez

138
com que a minha tristeza
aumentasse. Jejuei então
durante três dias, ao fim dos
quais senti que já não tinha
forças. Mas, sem disso me
aperceber, tornei-me um
pássaro, uma grande águia do
mar. Fiquei de novo alegre,
por perceber que poderia
percorrer incansavelmente os
céus desta ilha voando
mesmo rente às nuvens. Foi
assim que levantei voo e que
pude testemunhar tudo o que
se passava na Irlanda. E eu
cantarolava estes versos:

«Águia do mar hoje,

jáfui noutros tempos umjavali.

Vivi antes entre varas de


porcos selvagens, e eis-me
agora entre bandos de
pássaros ... »

139
«Que história estranha me
contas! », disse Finnen. «E
como é possível que agora
sejas um homem como
qualquer outro?» - «Os
desígnios de Deus são
insondáveis», respondeu o
velho, «pois o futuro a Ele
pertence. Fica contudo a
saber que foi na forma de
animais que conse~ gui
sobreviver a todos os povos
que invadiram esta ilha.
Também assisti à chegada
dos Filhos de Milé e à sua luta
contra as tribos da deusa
Dana. Nessa altura tinha eu a
forma de pássaro e estava no
buraco de uma árvore, junto
ao rio.»

«Estive adormecido durante


nove dias, ao fim dos quais
acordei com o aspecto de um
salmão. Atirei-me então à
água e comecei a nadar.

140
Sentia-me bem, com muita
energia, e saltei de rocha em
rocha em di-

141
recção à nascente. Graças à
minha habilidade, escapei
durante muito tempo a
variados perigos, às redes de
pesca dos pescadores, às
garras das aves de rapina que
tentavam agarrar-me, aos
dardos que os caçadores me
atiravam, às lontras que me
perseguiam através da
corrente.

«Mas, um dia, lembro-me


muito bem, fui apanhado por
um pescador, que me
ofereceu como presente à
mulher de CarilI, o rei deste
país. 0 cozinheiro meteu-me
numa grelha, para me cozer
num fogo de ramos secos. A
mulher do rei, ao passar perto,
ficou cheia de vontade de
comer-me e devorou-me,
passando eu a habitar no seu
estômago. Lembro-me como
se fosse hoje, do tempo em

142
que estive no estômago da
mulher de Carifi. Lembro-me
também de ter nascido outra
vez sob uma forma humana,
graças à mulher de Carifi.
Comecei então a falar como
os homens falam, e fui capaz
de revelar tudo o que se tinha
passado na Irlanda desde a
época do dilúvio. E foi depois
do meu novo nascimento que
me chamaram Tuân, filho de
Carlll.»

«Muito bem», disse Finnen.


«Agora podemos seguir-te até
à tua casa, já que nos
ofereces hospitalidade para
nos compensares da má
conduta e da perversidade
dos habitantes deste país.»

Tuân, filho de CarilI, conduziu


então Finnen e os seus
discípulos à sua casa que se
erguia sobre uma colina de

143
onde se avistava o estuário.
Era uma casa real, cercada
por um muro e por uma
paliçada, e guardada por
alguns guerreiros armados.
Tuân fez entrar os seus
hóspedes, mas quando quis
dar-lhes de comer na sala dos
festins, Finnen disse-lhe:

«Hoje é Domingo e ainda não


prestámos homenagem ao
Senhor. Não comeremos nem
beberemos absolutamente
nada enquanto não tivermos
cumprido o nosso dever.»
«Não há problema»,
respondeu Tuân, «há aqui um
local para oração. Vem com os
teus companheiros e
cumpram o vosso dever.»

Quando Firmen e os seus


companheiros acabaram de
celebrar o ofício de Domingo,
seguiram Tuân até à sala de

144
festins. Tuân pedira aos seus
criados para cozerem os
alimentos num grande
caldeirão, no fogo que se
encontrava ateado a meio da
sala. A volta havia juncos e
palha fresca. Finnen, os seus
companheiros e Tuân, filho de
CarilI, sentaram-se ao redor
do fogo.

«Tomai e saciai-vos», disse


Tuân. «Por Deus Todo-
poderoso! », gritou Finnen,
«Nós não comemos nenhum
alimento nem tomamos
nenhuma bebida enquanto tu
não começares a contar-nos o
que aconteceu nesta ilha a
seguir ao dilúvio. Sê um bom
anfitrião e diz-nos o que

sabes, para que possamos


apreciar a tua generosidade
ao mesmo tempo Ilharemos
contigo o que tu 1

145
que part sabes
acerca da história do mundo.»
«Com todo o prazer»,
respondeu Tuân.

0 anfitriao começou então a


narrar as cinco invasões que a
Irlanda sofrera desde os
tempos distantes do dilúvio. E,
enquanto os seus hóspedes
comiam e bebiam, o homem
dos tempos antigos falava. Os
discípulos de Firmen ouviam o
que ele dizia. Foram estes
que, mais tarde, contaram
tudo o que ouviram aos seus
proprios discípulos, os quais
transmitiram a mensagem a
novos discípulos e assim por
diante. E é assim que, graças
a Tuân, filho de CarilI, e
também ao abade Firmen, nós
conhecemos a grande
epopeia dos celtas.(’)

146
1Segundo a narrativa do
Rawlinson B. 512, publicada
com tradução inglesa de Kuno
Nleyer, The Voyage of Bran,
Londres, 1987. Outra versão,
a do Leabhar na hUidré, foi
traduzida Para francês por
Ch.-J. Guyonvarc’h, Textos
mitológicos irlandeses,
Rennes, 1980.

147
C a p í t LI 1 0

epois de terem sido expulsos


do Jardim do Éden, Adão e a
sua companheira Havali, ou
seja, Eva, erraram por muito
tempo pela terra em busca de
um lugar que os pudesse
proteger do calor ardente e do
frio cortante. Com eles
levavam uma pedra verde
caída do céu”’ e um ramo da
Árvore da Vida. Assim que
encontraram um lugar
propício, aí construíram uma
cabana com pedras e pedaços
de argila, e Havah cravou no
solo o ramo da Árvore da Vida.
Passaram a viver na cabana,
criaram gado, cultivaram trigo,
plantaram vinhas. E tiveram
uma numerosa descendência
que se espalhou por toda a
terra, chegando às regiões
mais longínquas e às margens
do grande oceano que rodeia

148
o mundo.

Ora, entre os filhos dos filhos


de Adão e da sua
companheira Havali,
contavam-se diversas filhas. E
estas filhas ocuparam as
planícies e os vales da terra e
chegaram às margens do
grande oceano. Ora, estas
filhas eram muito belas, e os
filhos de Deus que, descendo
da profundeza dos céus,
vinham contemplar a terra,
observaram-nas e ficaram
seduzidos por elas.
Aproximaram-se então e
uniram-se a elas, fazendo com
que, em breve, das filhas de
Adão nascessem crianças de
grande estatura. Estes
gigantes, por seu turno,
uniram-se a outras filhas de
Adão e engendraraM novos
gigantes. E, assim
sucessivamente, sucederam-

149
se diversas gerações de
gigantes que se espalharam
por toda a terra.

I- Isto faz lembrar a esmeralda


de Lucifer que se transformará
no Santo Graal numa versão
gnóstica da lenda.

150
Nessa altura, Deus
compreendeu que o mal
provocado por Adão ia
arruinar toda a sua criação.
Triste com esse facto e
arrependido por ter dado vida
a Adão e à sua companheira
Havali, resolveu então acabar
com as criaturas que o
ultrajavam, poupando a vida
apenas a um homem com
quem simpatizava: Noé, um
homem justo que venerava o
Eterno. Deus preveniu-o de
que iria fazer chover sobre a
terra durante quarenta dias e
quarenta noites para destruir o
que havia de mal na criação. E
ordenou-lhe que construísse
uma arca, que nela
embarcasse um casal de cada
espécie animal que habitava
na terra, nos ares e nos
oceanos, e que depois nela se
refugiasse com toda a sua
família, pois graças a ele

151
sobreviveria o que havia de
melhor na criação.

Então, Noé construiu um


barco e reuniu tudo o que
deveria ficar a salvo da cólera
de Deus. Os Livros dizem que
Noé tinha três filhos, Sem,
Cham e Japliet. Mas os Livros
não dizem que ele tinha um
quarto filho, de nome Bith, e
que este filho tinha uma filha
chamada Cessair. Ora, esta
Cessair, quando foi avisada
de que as águas iriam inundar
a superfície da terra e engolir
tudo o que fosse vivo, à
excepção do que estivesse
dentro da Arca, tentou
escapar ao Destino pelos seus
próprios meios. Segundo ela
pensava, devia haver no
mundo um lugar onde nenhum
homem tivesse chegado e que
por isso deveria desconhecer
qualquer tipo de crime ou de

152
mal; além disso, esse lugar,
que deveria ser poupado pelo
Dilúvio, jamais deveria ter sido
habitado por serpentes ou por
monstros. A pensar nesse
país, chamou os druidas e
perguntou-lhes onde ele se
poderia encontrar. Os
druidas111 reflectiram
longamente, e disseram-lhe
que só um país poderia ser
poupado, a Irlanda, pois esta
ilha estava situada no lado
ocidental do mundo, para
norte, do mesmo modo que o
Jardim do Éden estava
situado a oriente, e para sul.

«Com efeito, acrescentaram


eles, estas duas regiões têm
muitas semelhanças tanto no
que respeita à sua natureza
como à sua situação sobre a
superfície da terra. Assim
como o Paraiso não pode dar
abrigo a animais perigosos, é

153
do conhecimento geral que a
ilha da Irlanda não tem
serpentes, nem dragões, nem
leões, nem sapos, nem ratos,
nem

escorpiões, nem quaisquer


outros animais capazes de
fazer o mal, se exceptuarmos
o lobo. À Irlanda chama-se ilha
do Ocidente. Mais tarde, os
Gregos chamar-lhe-ão
Hyberocl’) e os Romanos, que
dominarão o inundo,
charnar~lhe-ão Occasimi.(21
A Irlanda está próxima da Ilha
da Bretanha mas, no que
respeita à sua dimensão, é
mais estreita, sendo no
entanto mais fértil.
Estende~se desde o norte de
África, fica na vizinhança da
Ibéria e do oceano Cantábrico,
e é este o motivo por que lhe
chamarão um dia Hibérnia.
Mas também lhe chamarão

154
Scotia porque será povoada
pela nação dos escotosl’1.»
«É então para ai que temos de
ir», disse Cessair após ouvir
aquelas palavras.

Ela mandou construir navios e


preveniu os que lhe eram
próximos de que iriam partir
por mar na direcção do sol
poente. Era uma terça-feira
quando ela deixou a ilha
Meroe, que ficava ao largo do
Nilo. Demorou-se sete anos
em escalas no Egipto e levou
oito dias a navegar no mar
Cáspio. Depois, levou mais
vinte dias para ir do mar
Cáspio ao mar Negro.(”
Permaneceu um dia na Ásia
Menor, entre a Síria e o mar
Tirreno, depois partiu com a
intenção de se dirigir aos
Alpes, durando vinte dias a
sua navegação. Aí chegada, o
trajecto entre os Alpes e a

155
Espanha levou-lhe dezoito
dias. Foi a partir daí que ela
partiu por mar em direcção à
Irlanda, onde só chegou
passados nove dias,
desembarcando na ilha num
dia de Sábado.

Cessair e as suas gentes


chegaram à Irlanda quarenta
dias antes do Dilúvio. Mas,
dos três navios que tinham
partido, dois naufragaram,
tendo sobrevivido apenas
Cessair e os que seguiam no
mesmo navio que ela, a saber,
cinquenta donzelas e três
homens. Eram estes Bith, filho
de Noé, Ladra, o piloto, que,
segundo se diz, foi o primeiro
homem a morrer na Irlanda,
dizendo alguns que morreu de
excesso de

1 .Pode surpreender
encontrar-se a presença de

156
«druidas» numa época pré-
diluviana, mas o termo, típico
de uma sociedade celta,
designa antes de mais uma
classe sacerdotal. Forarti os
celtas que compuseram o
transmitiram esta gigantesca
epopeia dos antigos dias, e
fizeram-no com os meios de
que dispunham, de acordo
com os critérios socioculturais
que eram os seus, mesmo
sendo tardia a redacção desta
epopeia (século X1 ou XII) que
procura deliberadamente aliar
a história mítica da Irlanda à
tradição bíblica.

I. Nome fantasioso que e


provavelmente uma forma
corrompida do grego
uperokhê, «saída extrema»,
subentendendo- se para
ocidente. Os redactores do
Leabhar Gabala (que aqui
seguimos) queriam por força

157
chegar ao termo tradicional
Ibernia, para designar a
Irlanda (tendo ainda como
justificação a quase
homofonia Iberia-Ibernia que
justifica a passagem
- imaginária - dos sucessivos
invasores da Irlanda pela
Península Ibérica).

2. Literalmente «queda»,
subentendendo- se do sol, ao
«poente» (Occidentem).

3. [Scots no original - N. T.]


Nome genérico dos gaélicos,
que depois o transmitiram aos
escoceses.
4. A rota é obviamente
fantasiosa, tanto do ponto de
vista espacial como
cronológico, mas a Passagem
pela Península Ibérica
aparece como uma
necessidade mitológica,
representando esta

158
Península, como aliás a
Escócia, uma espécie de
Outro Mundo que pode estar
em toda a parte e em lado
nenhum. Há também uma
certa ambiguidade entro os
Alpes e o antigo nome da
Escócia, Alba, e entre o nome
dos escotos e o dos citas.

159
mulheres e outros que foi
vítima de um remo que lhe
atravessou o corpo, e Fintan,
filho de Boclira, o qual,
segundo uma certa versão,
não terá morrido e vive ainda
entre os povos naturais da
Irlanda. 0 certo e que Cessair,
as suas cinquenta donzelas e
os três homens,
desembarcaram nesta ilha
quarenta dias antes do
Dilúvio, ou seja, mil seiscentos
e cinquenta e seis anos depois
do princípio do mundo.

Assim que desembarcaram no


solo da Irlanda, disse-lhes
Cessair: «Chegámos a um
país que não sofrerá a fúria
das águas, pois encontra-se
na extremidade do mundo.
Estabeleçamo-nos no cume
das montanhas e
construamos casas para nos
abrigarmos. Contudo é meu

160
desejo que, daqui em diante,
vocês me chamem diferentes
nomes consoante o que eu
fizer. Durante o dia, quando o
sol brilhar, eu chamar-me-ei
Banha. Quando cair a noite,
serei FothIa. E quando estiver
a dormir, quero que me
chamem Eriu.»

Assim foi. Foram construídas


casas no cume das
montanhas e a floresta
começou a ser desbravada.
Mas uma doença alastrou, e
ao fim de uma semana
estavam todos mortos, à
excepção de Cessair que
permaneceu adormecida.
Entretanto, as águas do céu
abateram-se sobre a terra,
caindo incessantemente
durante quarenta dias e
quarenta noites. Cobriram as
montanhas mais altas, e
mataram tudo o que era vivo.

161
Só ficou à superfície das
águas a Arca em que Noé e os
seus tinham embarcado, com
um casal de cada espécie
animal. Mas o que os Livros
não dizem é que a Irlanda não
foi coberta pelo Dilúvio. A ilha
estava desabitada, tendo
sobrevivido a mulher que
dormia e se chamava Eriu. Os
Livros também não dizem que,
na vastidão do oceano, no
meio do nevoeiro, algumas
ilhas também não foram
submersas pelas águas. Ora,
nestas ilhas viviam gigantes
que foram poupados pelo
Dilúvio. Foram eles que
depois foram chamados
Fomore, os quais nunca
deixaram em paz os povos
que se vieram a estabelecer
na Irlanda.

Entretanto, logo que as águas


deixaram de cobrir a terra e

162
esta secou, Noé e todos os
seus saíram da Arca e
procuraram lugares onde se
estabelecer. Noé tinha
consigo três filhos na Arca, os
quais ocuparam as três
regiões da terra, a Europa, a
África e a Ásia. Sem, filho de
Noé, instalou-se no que
actualmente é a Ásia, tendo
saído dele vinte e quatro
raças. Cham foi para África,
descendendo dele quinze
raças. Quanto a Japliet, o
terceiro filho de Noé,
apoderou-se da Europa e do
norte da
1

Asia, sendo o patriarca de


quinze raças.

E pois de Japhet, filho de Noé,


que descendem, no nordeste
do mun-

163
do, os citas, os armén’Os e Os
Povos da Ásia Menor, assim
como todos os povos que
ocupam, a norte e a oeste do
mundo, a Europa e as ilhas
que ela tern em frente, no
grande oceano. Japliet teve
oito filhos, e o oitavo chamava-
se Magog. Este teve dois
filhos que se chamavam Baath
e
1bath. Foi deste último, a
saber Ibath, que descenderam
os reis que governaram
Roma. Baath teve um filho a
quem chamou Fenius Farsaid:
dele descendem os citas, dos
quais provêm os gaéllcos.”’
Mas foi de Magog, filho de
Japliet, que saíram os povos
que se vieram a estabelecer
na Irlanda antes dos gaélicos,
a saber, a tribo de Partholon,
filho de Sera, e a tribo de
Nemed, filho de Agnoman,
assim como todos os da tribo

164
de Neined que, após terem
sido expulsos da Irlanda, aí
regressaram mais tarde.

Depois do Dilúvio, a ilha da


Irlanda permaneceu deserta
durante um período de
trezentos e doze anos. Foi
então que aí chegou
Partholon, filho de Sera, que
vinha de um país chamado
Mygdonie, ou seja, Pequena
Grécia. Partholon fora
obrigado a deixar a sua Pátria
porque cometera um crime:
matara o pai e a mae para
permitir que o seu irmão
reinasse, mas, ao fazê-lo,
provocara grandes desgraças,
sendo assassinados nove núI
homens numa semana, o que
forçou Partholon a fugir o mais
depressa possível na
companhia de dez pessoas,
entre as quais os seus três
filhos e quatro mulheres. Ele

165
deambulou durante um mês
na Adalácia, depois levou
nove dias para Ir da Adalácia
ao país dos Goths. Voltou a
partir deste país e viajou
durante um mês até chegar a
Espanha, demorando mais
nove dias até atingir as costas
da Irlanda. Estava-se numa
terça-feira, o décimo sétimo
dia da lua, nas calendas de
Maio.”’

«Esta terra sem dúvida é a


que mais nos iiiteressa», disse
Partholon. «As árvores aqui
são belas e verdejantes, e a
caça deve ser abundante.
Procuremos um lugar onde
nos possamos estabelecer.»

Deram a volta à ilha e


decidiram fixar-se no lugar
que lhes pareceu mais fértil.
Conta-se que é aquele que
hoje se chama Mag InIs, a

166
Planície da Ilha. Naquela
altura não havia fazendas,
nem casas, nem campos
cultivados à disposição dos
homens, que só podiam
sobreviver colhendo

1. Estas genealogias são


i~inárias. Entretanto, a
comunidade de origem ceito-
cita parece certa. Georges
Durnézil pos em evidência as
analogias entre as narrativas
mitológicas dos gaélicos da
Irlanda e as dos nartes, os
descendentes actuais dos
antigos citas e sarmatas. Por
outro lado, existe um evidente
parentesco entre a arte celta
de la Tène e a arte dos
steppes, de influência cita,
como o mostra o célebre
«Caldeirão de Gundestrup»,
que, conservado no museu de
Aarhus, na Dinamarca, ilustra
perfeitamente a mitologia dos

167
celtas.

2. Ou seja, durante a grande


festa celta da Beltame.

168
rp””

frutos selvagens ou então


caçando e pescando no
estuário dos rios.

As casas foram construídas


na Planície da Ilha. Quando
Partholon partia para a pesca
ou para a caça, deixava a
mulher, Elgnat, filha de
Lochtach, a tomar conta da
casa. E pedia ao seu criado
Topa para proteger EIgnat,
para que ela não fosse
atacada pelos lobos. Na
verdade, havia lobos na
Irlanda, embora não houvesse
na ilha outros animais
perigosos. Tão pouco havia
abelhas, pois elas aí não
podiam viver. Era tal a
incompatibilidade entre as
abelhas e a Irlanda que, se
alguém espalhasse areia ou
cascalho da Irlanda num

169
qualquer lugar da terra onde
houvesse colmeias, as
abelhas abandonavam-nas
imediatamente.

Entretanto, sempre que


Partholon se ausentava,
EIgnat deitava um olhar
ardente, cheio de desejo, ao
criado. E quanto mais o
olhava, mais desejava tê-lo
nos seus braços. Um dia, não
podendo aguentar mais,
convidou-o para o seu leito. 0
criado recusou
termiDarnemente e disse que
jamais trairia a confiança do
seu senhor.

1 «Es um grande covarde»,


disse a mulher. «Tens medo
de que Partholon te mate se
souber que te deitaste
comigo!» «Eu não tenho
medo, senhora, mas não
quero trair o meu senhor.»

170
No dia seguinte, Elgnat voltou
a provocar Topa, e ele voltou
a recusar deitar-se com ela.
«Já percebi», disse a mulher,
«Tu não és viril, e por isso não
queres deitar-te comigo.
Devias ter vergonha!»

Ao ouvir este insulto, o criado


não encontrou outra solução
senão ir provar à mulher de
Partholon, na sua cama, que
era viril. Findo o acto, o
homem e a mulher tiveram
sede e beberam pelo
recipiente que Partholon tinha
preparado para quando
chegasse.

Ao fim da tarde, quando voltou


da caça, Partholon teve sede
e bebeu pelo recipiente que
tinha preparado. Mas, ao levá-
lo à boca, sentiu o gosto da
boca de Elgnat e de Topa, e

171
compreendeu o que se tinha
passado. Não se contendo de
fúria, matou o pequeno cão da
sua mulher, Saímer, tendo
sido esta a primeira crise de
ciúmes da história da Irlanda.

«Parece impossível», disse


ElgDat indignada, «tu acabas
de cometer uma grande
injustiça, belo Partholon, pois
este cãozinho não te tinha
feito mal nenhum». «Eu sei»,
respondeu Partholon, «mas
eu precisava de descarregar a
cólera devido à afronta que tu
me infligiste. Desde que Eva
cometeu o pecado da maçã,
por causa do qual a raça
humana foi condenada à
escravidão e foi expulsa do
Jardim do Éden, jamais houve
neste mundo um crime tão
grande e tão hediondo como
aquele que vós acabais de
praticar, tu e o meu criado.»

172
«Bom Partholon», disse a
mulher, «quando o desejo é
muito, é dífícil resistir à
tentação. Olha à tua volta: as
vacas parecem-te calmas e
tranquilas quando pastam no
prado, mas assim que
aparece o touro ficam cheias
de desejo. E as ovelhas,
quando querem saciar o
instinto, não hesitam em
seguir o primeiro carneiro que
lhes apareça à frente.
Experimenta pôr um copo de
leite à frente de um gatinho:
verás como ele não resiste ao
desejo de tomar o leite».

Desenrolou-se pouco tempo


depois a primeira batalha da
Irlanda. os Fomore, que
vinham em barcos do país do
nevoeiro, vieram atacar
Partholon e os que moravam
com ele. Eram gigantes com

173
forma huniana, monstros que
tinham uma força descomunal
apesar de terem apenas uma
perna e um braço.
Comandados pelo seu chefe
que se chamava Cichol da
perna curva, combateram
Partholon e os seus filhos. A
batalha durou uma semana
inteira, mas nela ninguém
morreu, pois tratava-se de
uma batalha mágica.
Entretanto, Cichol da perna
curva feriu Partholon num
braço, ferida de que este
nunca se recompos.

Quando Partholon chegara à


Irlanda, esta ilha só possuía
três lagos e nove rios. Mas
durante o tempo em que ele e
os seus descendentes
habitaram no país, sete novos
lagos irromperam da terra. E
foi quatro anos depois da
irrupção do sétimo, que se

174
chama Lough Cuan, que
Partholon morreu na velha
planície de Elta Edair. Esta
planície foi assim chamada
porque nenhum braço,
nenhum ramo, dela alguma
vez saiu. E Partholon morreu
por causa de um veneno que
lhe penetrou no corpo através
do ferimento que lhe fora
infligido por Cichol da perna
curva, na batalha contra os
Fomore. Tinham-se passado
trinta anos desde que
Partholon chegara à Irlanda, e
o princípio do mundo tinha
sido há dois mil seiscentos e
vinte e oito anos.

Depois da morte de Partholon,


a ilha foi dividida pelos seus
filhos, tendo sido esta a
primeira partilha da Irlanda. 0
país permaneceu assim
enquanto nele viveram os
descendentes de Partholon,

175
ou seja, durante quinhentos e
vinte anos. Mas abateu-se
sobre eles uma doença nas
calendas de Maio, na
segunda-feira da festa da
Beltame. Esta peste fez
sucumbir nove mil homens até
à segunda-feira seguinte, e
ainda mais cinco mil homens e
quatro mil mulheres após essa
segunda-feira. Morreram
todos, à excepção de um
único homem, Tuân, que era
filho de Sdam, filho de Sera,
filho do irmão do pai de
Partholon. Deus permitíu-lhe
que sobrevivesse, assumindo
as mais diversas aparencias,
desde o tempo de Partholon
até aos tempos de Colum-Cill
e de Finnen. Foi

176
ele que revelou aos gaélicos o
conhecimento da história, as
conquistas que tiveram lugar
na Irlanda, as batalhas
provocadas pelos Fomore,
desde a chegada de Cessair a
esta ilha até à época de São
Finnen, o Leproso. Foi com
esta intenção que Deus o
manteve vivo até ao tempo
dos santos, até ao tempo em
que o chamaram Tuân, filho
de Caffil.

A Ilha Verde permaneceu


deserta durante trinta anos.
Então desembarcou nela
Nemed, filho de Agnoman,
que vinha do país dos citas de
onde partira com quarenta
navios. Navegaram ao acaso
durante um ano e meio no mar
Cáspio, mas só um navio
conseguiu chegar à Irlanda,
com Nerned e os seus quatro
filhos, que chefiavam as

177
hostes. Estabeleceram-se
num lugar fértil e aí
construíram duas fortalezas
reais, tendo sido depois
atacados pelos Fomore contra
os quais travaram uma
batalha onde no decurso da
qual foram assassinados os
dois chefes dos Fomore.

Nemed desbravou doze


planícies nesta ilha e nelas fez
prosperar a criação de gado.
Assim que morreu um dos
seus filhos, que se chamava
Annind, enterraram-no numa
das planícies. Mas, ao ser
cavada a terra para se fazer a
sepultura, jorrou um lago que
inundou todo o país. Em
consequência disso, três
outros lagos surgiram na terra.
Nemed não demorou a
sucumbir a uma doença que
vitimou também dois mil dos
seus.

178
Quando os Fomore souberam
que Nemed, filho de
Agnoman, tinha morrido,
aparelharam as suas frotas e
foram combater os filhos de
Nemed. Os chefes dos
Fomore eram nessa altura
More, filho de Déla, e Conan,
filho de Fébar. Este último
construíra uma grande torre
numa pequena ilha, a meio do
mar, e era aí que se reuniam
os navios dos Fomore. Esta
torre chamava-se Torre de
Conan, mas também se lhe
chamava Tormis, ou seja,
Torre da Ilha. E como os
Fomore eram mais numerosos
que os filhos de Nemed,
venceram-nos em combate e
impuseram pesados encargos
aos homens da Irlanda: estes
deviam entregar-lhes
anualmente dois terços do
trigo e do leite que eram

179
produzidos na ilha e dar-lhes
como escravos dois terços
dos recém-nascidos.

Furiosos e sentindo-se
ultrajados, os homens da
Irlanda não sabiam como
haviam de suportar o peso de
tais encargos. Reuniram-se
por isso em segredo e
decidiram atacar os Fomore
de surpresa. Na costa havia
três mil homens, mas outros
três mil embarcaram sob a
chefia do filho de Nemed,
Fergus da face vermelha. Não
tardaram a chegar a Torinis e,
após uma batalha
encarniçada, acabaram por
tomar de assalto a torre, onde
o próprio Fergus da face
vermelha matou Conan.
Depois, voltaram para a
Irlanda para comemorar a
vitória.

180
More, filho de Dela, ficou
furioso quando lhe
anunciaram o desastre da
Torre de Conan e resolveu
vingar-se dos homens da
Irlanda que tinham vencido os
Fomore e agora recusavam
pagar-lhes os tributos.

1 1

Reunindo sessenta nav os,


aproximou-se então das
costas da Irlanda. os filhos de
Nemed, por seu lado, voltaram
a reunir as suas hostes e
fizeram-se ao mar para irem
ao encontro dos Fomore.
Travou-se então urna batalha
encarniçada e sangrenta, e
uma tempestade afundou os
navios dos homens da Irlanda,
escapando apenas um, que
tinha a bordo trinta homens,
entre os quais Semeon, filho
de Sdarn, ele próprio filho de

181
Nemed, Bethach, filho do
adivinho larbonel, igualmente
filho de Nemed, com o seu
filho Ibath, assim como Fergus
da face vermelha, que era o
filho mais jovem de Nemed.1’1

Os sobreviventes
reconquistaram a Irlanda e
foram encontrar-se com
Fintan, filho de Boclira, que
vivia na encosta de uma
montanha. Fintan tinha a
reputação de ser um sábio e
um vidente, e dizia-se que
estava perfeitamente a par do
nascimento do mundo e do
seu futuro. Quando os filhos
de Nemed foram ao seu
encontro, Fintam disse-lhes:

«Sede bem vindos, homens


poderosos e corajosos sobre
quem se derramou o
Espírito.”’ 0 que vos traz à
minha presença? É a guerra

182
que aqui vos traz ou o facto de
não saberdes qual o rumo a
dar à vossa vida?» «0 que nos
traz aqui, sábio e prudente
Fintan, é a decisão que temos
de tomar por causa dos
Fomore. Eles oprimem-nos
desde que nos mataram um
grande número de bravos
guerreiros, e obrigam-nos a
pagar-lhes um pesa-

1. Esta primeira parte do


capítulo foi redigida de acordo
com o Leabhar Gabala, o
«Livro das Conquistas»,
narrativa que data muito
possivelmente do século XI,
publicado, comentado e
traduzido por R.A.S.
Macalister, Lebor Gabaia
Erenti, the Book qf the Taking
of Ireland, 5 Vol., Dublin, 1938-
1956. Tradução francesa
parcial no Ch.-J. Guyon-
varc’h, Textes mytholOgiques

183
iriandais, Rermes, 1980. Este
«Livro das Conquistas» é uma
compilação de inforMações
muito antigas apresentadas às
vezes de forma anacrónica,
com lacunas, incoerências e
contradições flagrantes. É
muito difícil reconstituir o fio
condutor desta epopeia
mitológica que diz respeito
não só à Irlanda como a todo
o mundo ceita, sem que se
recorTa a todas as outras
fontes irlandesas, e sem que
se restitua à narrativa
propriamente dita uma certa
coerência cronológica, o que
não significa de modo algum
que a coerência tenha de ter
uma natureza histórica ou
científica. A reconstituição
será assim meramente
conjectural.

2. É Preciso não esquecer que


Nemed significa «sagrado»

184
em gaélico. É uma palavra que
Provém duma raiz indo-
europeia que deu em latim
nemus, «bosque sagrado»,
em gaélico Moderno niamh,
em gaulês nef e em bretão
neni, designando estes três
termos o «céu» de um ponto
de vista religioso, e daí o
antigo nome nemeton,
«santuário», «clareira
sagrada», «Proje,çã,
simbólica do céu sobre a
teiTa», que se reconhece no
nome actual de Néant-sur-yvel
(Morbihan) e da floresta de
Nevet, perto de Locronan
(Finisterra).

185
do tributo que não
conseguimos aguentar por
muito mais tempo.» «0 melhor
conselho que vos posso dar,
brilhantes filhos de Nemed, é
o seguinte: deveis pôr um fim
ao vosso sofrimento e à
opressão dos Fomore. Por
isso deixal esta ilha e ide
instalar-vos noutro lugar deste
vasto mundo.»

«É esse o conselho que nos


dás, Fintan?», perguntaram os
filhos de Nemed. «Devemos
deixar este país que é
nosso’?» «Na verdade»,
retomou Fintan, «é o único
conselho que vos posso dar.
Mas há outra coisa que vos
tenho de dizer: não deveis ir
todos na mesma direcção ou
por um único caminho, pois é
bem sabido que um grande
ajuntamento de homens é
susceptível de provocar

186
conflitos. E impossível que se
junte uma multidão sem que
daí não resulte uma querela
por uma razão ou outra. Além
disso, sempre que há um
agrupamento de homens
armados com lanças e dardos,
logo se pensa que o que eles
querem é fazer guerra. Jamais
a paz é possível, na verdade,
enquanto sobre a terra houver
povos que se sentem
invadidos por outros que
chegam depois. Parti por isso,
filhos de Nemed, deixai esta
ilha e espalhai-vos pelo
mundo.»

«Mas para onde havemos de


ir, sábio Fintan, filho de
Bochra? Diz-nos para que
possamos partir de imediato.»
«Vós sois, com certeza, muito
numerosos», respondeu
Fintan. Por isso dividi-vos em
três grupos. Um deles que

187
parta para o norte, o outro
para oriente e o terceiro que
siga a direcção oposta ao
curso do sol, mas para sul,
para os lados onde há mais
calor.»

Assim falou Fintan, o Sábio,


filho de Boctira, aos filhos de
Nemed, que dele se
despediram. Mas, antes de
partirem, disse-lhes ele ainda:
«Ide pois, filhos de Nemed,
deixai este país que já não
podeis habitar. Fugi desta ilha
onde sois tão cruelmente
oprimidos e escravizados.
Não fiqueis aqui por mais
tempo e recusai-vos a pagar
aos Fomore uns encargos tão
pesados. Mas eu garanto-vos
que os vossos filhos e os
vossos netos regressarão a
este país de que vós fugis e
eles tomá-lo-ão pela força e
com todo o direito. Pois,

188
aconteça o que acontecer, vós
sereis sempre os filhos desta
ilha e dela sereis para sempre
os senhores.»

Combinaram então a maneira


como se haveriam de dividir
em três agrupamentos.
Bethach, filho de larbonel, o
adivinho que era filho de
Nemed, não quis deixar a
Irlanda. Permaneceu nela
durante algum tempo, vindo a
sucumbir a uma doença que
assolou o país. Entretanto, as
suas dez mulheres
sobreviveram-lhe vinte e três
anos. Quanto ao seu filho
Ibath, deixou a ilha na
companhia do seu próprio filho
Baath, e ambos se dirigiram
para as ilhas do norte do
mundo. Os seus descen-

dentes são aqueles a quem


hoje se chama tribos da deusa

189
Dana. Fergus da face
vermelha, que era o filho mais
novo de Nemed, fez-

-se ao mar e foi para leste com


o seu próprio filho que se
chamava Bretão, o Príncipe.
Desembarcaram na grande
’lha que fica próxima da
Irlanda e aí se estabeleceram.
Os seus descendentes, a
quem se chamam bretões, por
causa do nome de Bretão, o
Príncipe, dominaram a ilha até
à chegada de dois novos
chefes saxoes que ocuparam
as suas terras, empurrando-os
para a costa e obrigando um
grande número deles a
exilarem-se no outro lado do
mar, na península a que se
chama Armórica e à qual
depois deram o seu nome.

Quanto a Semeon, filho de


Sdarn, filho de Nemed, partiu

190
para sul à conquista dos
países onde o sol é mais
quente. Uma tempestade
desviou-o da rota, e fê-lo
chegar ao mar Tirreno. Aí foi
surpreendido por outra
tempestade, que o empurrou
pelo meio das Ilhas até às
costas da Trácia. Aqui o solo
era seco e estéril, nada nele
se podendo cultivar. Apesar
disso, Semeon e os seus
companheiros
estabeleceram~ se naquela
região inóspita e construíram
as suas casas com terra seca.
Graças a conversações com
as gentes daquele país, que
não lhes quiseram fazer
frente, concluíram um tratado
de paz. Ao clã de Semeon
foram atribuídas as
propriedades e as terras que
ficavam junto ao mar e em
fronteiras distantes, em
regiões muito frias, em

191
montanhas escarpadas e em
vertentes de colinas expostas
ao vento norte. Foram-lhes
também concedidas ravinas
profundas e cumes
inabitáveis, em regiões
inóspitas cujo solo jamais
tinha conhecido colheitas de
qualquer tipo. Mas, não
querendo desperdiçar a
oportunidade que lhes tinha
sido concedida, as gentes do
clã de Semeon fizeram
grandes sacos com panos e
com as peles de animais e
transportaram grandes
quantidades de terra arável
através dos rochedos nus e
áridos que lhes tinha cabido
em sorte no tratado de paz.
Entregaram~se ao trabalho
com tanto afinco e com tanta
devoção que daí a pouco
tempo aquelas terras estéreis
se tinham transformado em
planícies aprazíveis e férteis

192
onde se cultivava o trigo, a
vinha prosperava e o gado
pastava em esplêndidas
pastagens. Desse modo, não
se arrependeram de ter
deixado a Irlanda e de assim
se terem furtado aos Pesados
tributos que lhes eram
impostos pelos Fomore.

Entretanto, quando os chefes


e os guerreiros daquele país
viram a obra realizada pelos
recém-chegados, ficaram
maravilhados e ao mes-
1110 tempo cheios de inveja
de um tal sucesso. Sempre
que Iam visitar as terras do clã
de Semeon, ficavam
admirados com os campos
culti-

193
vados e com os prados que
regurgitavam de ovelhas e de
carneiros. Convenceram-se
então de que aquele país lhes
pertencia e que deviam
conquistar aquelas terras tão
férteis aos estrangeiros que
nenhum direito tinham sobre
elas. Foram então falar com as
gentes de Semeon e
propuseram-lhes, em troca do
que lhes tinham dado, outras
terras, ainda mais para norte,
em regiões inóspitas e frias,
em terras duras e cheias de
pedras, de solos infestados de
serpentes venenosas. E, para
evitarem entrar em guerra, as
gentes de Semeon aceitaram
o que lhes era pedido e
deixaram as terras que tinham
tornado férteis.

Mudando-se mais para norte e


sem jamais perderem o
ânimo, as gentes de Semeon

194
trataram tão bem as novas
terras que as transforrnaram
em campos ricos e férteis, em
tudo idênticos àqueles que
tinham deixado. E, havendo
comida em abundância, as
gentes do clã de Semeon
multiplicaram-se e
aumentaram de número até
chegarem aos milhares. Mas,
vendo os estrangeiros
tornarem-se tão numerosos,
tão ricos e poderosos, os
chefes do país intimaram-nos
a entregar-lhes todos os anos
metade das suas colheitas e
metade dos gados que
pastavam nos prados.

Nessa altura as gentes do clã


de Semeon reuniram-se em
conselho. Os seus chefes
eram os cinco filhos de Dela,
descendente de Nemed,
chamando-se Slaingé o mais
velho.

195
«De nada nos serviu fugir da
Irlanda para escapar à tirania
e aos tributos dos Fomore...
Encontramo-nos agora num
país estrangeiro, expulsos de
terras incultas que tornámos
férteis, e estamos sujeitos à
mesma tirania e aos mesmos
tributos. Chegou o momento
de nos revoltarmos contra a
injustiça, pois assim não
podemos continuar» «Tens
razão», disse o seu irmão
Rudraige. «Não podemos
continuar sem reagir e sem
fazer valer os direitos do
nosso traballio.» «Os donos
deste país jamais nos darão
razão», afirmou por seu lado
Slainge. «Só nos resta voltar
para o mar, levando todas as
riquezas que pudermos, e
regressar à terra da Irlanda,
pois essa é a terra dos nossos
antepassados e temos o

196
direito de a habitar.»

Assim que o conselho


terminou, todos estavam de
acordo quanto ao que havia a
fazer. Construíram barcos
com os grandes sacos que
lhes tinham servido para
transportar a terra arável
através dos rochedos
inóspitos, e é esse o motivo
pelo qual eles foram
chamados Fir Bolg1`,

ou seja, os Homens dos


sacos.”’ Contudo, há quem
diga que o nome deriva do
facto de eles saberem
domesticar o trovão e
utilizarem o fogo para
fundirem o metal e fabricarem
as armas e os instrumentos
usados para o cultivo da terra.
Segundo se pensa, eles
roubaram também navios às
gentes do país e juntaram-nos

197
todos no porto onde tinham
desembarcado quando da sua
chegada.

«Chegou a hora de
partirmos», disse então
Slainge, que era o mais velho
do grupo e aquele que era
considerado mais sábio pelos
irmãos. «Lembrem-se que
temos sido muito prejudicados
pelos habitantes deste país.
Temos por isso de nos vingar,
sem esquecer que cada um
dos nossos homens vale por
cem dos deles.»

Carregaram então para os


navios todas as mercadorias e
toda a comida que
encontraram, matando todos
aqueles que os queriam
impedir de o fazer, e depois
arrasaram a região
circundante e atearam-lhe
fogo. Em seguida acumularam

198
o produto do saque nos navios
de proa negra que tinham
construído com os seus sacos
e, por fim, levantaram âncora
e desfraldaram as velas.

Conta-se que os Fir Bolg, ao


deixarem a costa da Grécia,
possuíam uma frota de mil
cento e trinta navios. Na sexta-
feira seguinte,
encontravam~se no mar
Tirreno e, ao fim de um ano e
três dias, chegaram a
Espanha.

Pediram então aos seus


druidas e aos seus adivinhos
para os instruírem e os
informarem acerca dos ventos
com que teriam de contar na
sua viagem à vela através do
grande oceano. Deixaram
Espanha com um vento de
sudoeste e navegaram
sempre a direito durante treze

199
dias até avistarem as costas
da Irlanda. Mas ergueu-se
então uma tempestade
repentina e violenta que fez
com que a frota se dividisse
em três grupos. 0 primeiro a
desembarcar foi o filho mais
velho de Déla, Slaingé, no
lugar que se veio a chamar
Inber Slaingé. Estava-se num
Sábado, no Primeiro dia do
mês de Agosto.”’

1. Muito corrente, esta


terminologia popular não
resiste à análise. Apesar de
uma certa analogia, a palavra
bolg deriva de uma raiz indo-
europeia que deu em
latirrifúlgur, «raio», raiz

que se encontra no nome dos


belgas e no da espada mágica
de Nuada, Caladbolg, que se
transformou em Caledfwlch
em galês e Excalibur em

200
francês e em inglês, sendo a
célebre espada do rei Artur,
literalmente, «raio duro».
Entretanto é preciso lembrar
que esta história dos sacos
servirem para construir barcos
se apoia numa certa
realidade: a barca irlandesa
típica é com efeito o curragh
(coracle em inglês), sendo a
armação de madeira revestida
de peles e de panos
alcatroados.

Data simbólica: é a festa


céltica de Lugnasad
(«assembleia de Lug»), no
decurso da qual Sc celebra 0
casamento sagrado do rei
com a terra que lhe foi
confiada.

201
Os outros desembarcaram em
diferentes pontos do país.
Como não havia contactos
entre os diferentes grupos,
foram enviados mensageiros
por toda a Irlanda com a
missão de pedir aos Homens-
Trovão para se juntarem todos
no mesmo lugar, na fortaleza
dos Reis que se encontra em
Tara.”’ Os mensageiros
percorreram a ilha em todos
os sentidos e cumpriram a sua
missão, de tal modo que daí a
pouco tempo todos se
reuniram no lugar combinado.

«Agradeçamos aos deuses


por nos terem guiado com
sucesso até este país que é o
dos nossos antepassados»,
disseram eles. «Agora
devemos partilhar a Irlanda de
tal modo que ninguém seja
prejudicado. Chamemos o
sábio Fintan, filho de Boclira, e

202
ele nos dirá como havemos de
partilhar esta ilha de forina
justa.»

Fintan, filho de Boclira, veio à


assembleia de Tara. Após ter
ouvido os Fir Bolg, dividiu a
Irlanda em cinco partes”’ que
foram confiadas a cada um
dos filhos de Déla. Todos
ficaram satisfeitos com a
sentença pronunciada pelo
sábio Fintan, e
estabeleceram- se nas terras
que lhes foram atribuídas.

Foi assim que os Fir Bolg, os


Homem-Trovão, chegados de
tão longe, ocuparam as terras
da Irlanda. E dominaram esta
ilha durante trezentos anos .
3)

1. Santuário pré-histórico,
depois celta, situado não
longe do vale de Boyne, no

203
condado de Meath. É o centro
simbólico da Irlanda, uma
espécie de Omphalos, que foi
respeitado e que se continua a
considerar como sagrado.

2. Em gaélico, «província» diz-


se «coiced», literalmente
quinto. Na verdade, nunca
houve mais do que quatro
províncias, o UIster,
Cormaugiu, o Munster e o
Leinster, sendo a quinta
sobretudo moral: trata-se do
famoso reino de Meafla
(Mide), literalmente «meio», à
volta de Tara, sede do alto-rei
(ard-ri) da Irlanda.

3. Segundo a narrativa
conhecida com o título A
primeira batalha de Mag-
Tured, contido no manuscrito
H.2.17 do TrinitY College de
Dublin, publicado por J. Fraser
na revista Eriu, Tomo VIII,

204
Dublin, 1915. Tradução
francesa quase integral de Ch.
-I Guyon-varc’h, Textes
my1hologiques irlandais,
Rermes, 1980.

t o

filli de Nemed, que haviam


partido por mar sob o s 1 os

comando de Ibath, filho de


Bethach, rumaram ao norte.
Navegaram ao acaso, durante
muito tempo, até que
desembarcaram num pais que
se diz ser a Beócia. Aí foram
muito bem recebidos pelos
naturais, e, segundo consta,
foi aí que eles se iniciaram nas
artes, nas técnicas, na magia
e no druidismo. Tomaram-se
especialistas em todas as
artes do paganismo ao ponto
de superarem, em pouco
tempo, os seus mestres. Foi

205
então que começaram a ser
chamados Tribos de Dana,
defendendo certos
historiadores que eles assim
foram designados por causa
de três homens muito
versados na ciência druídica,
os três Deuses de Dana, que
eram filhos da mesma mulher-
chefe que se chamava Dana.
E como eles tinham tantos
poderes como os deuses, as
gentes do seu clã quiseram
partilhar o seu nome e o seu
poder.

Entretanto, um belo dia, uma


grande frota vinda da Síria
veio atacar os habitantes da
Beócia. Travaram-se batalhas
intermináveis, com os homens
da Beócia que tinham sido
mortos na véspera a voltarem
na manhã seguinte para
enfrentarem os seus inimigos.
Na origem desta maravilhosa

206
ressurreição estava a magia
que permitia aos homens de
Dana inserir demónios nos
corpos que tinham perdido a
vida. Deste modo, as gentes
da Síria tinham de lutar todos
os dias contra os mesmos
adversários, o que lhes
provocava um grande espanto
e um enorme transtorno.
Foram Por isso consultar os
seus próprios druidas, que os
aconselharam a estar
vigilantes no campo de
batalha assim que a noite
caísse: nessa altura deveriam
trespassar com um ramo de
freixo os cadáveres que os
enfren-

207
tassem. Se fossem demónios
a reanimar os corpos, estes
cairiam logo e corromper-se-
iam rapidamente. As gentes
da Síría seguiram este
conselho, e massacraram um
grandenúmero de defensores
da Boécia.

Quando as tribos de Dana


viram que os primeiros iam
triunfar sobre os segundos e
se arriscavam a ser
perseguidas em seguida, os
seus chefes reuniram-se e
decidiram que era necessário
deixar o país o mais depressa
possível. Aparelharam os
navios, fizeram-se ao alto mar
navegando à vela, e, como os
ventos eram favoráveis,
chegaram às ilhas do Norte do
Mundo. Aí foram muito bem
recebidos, por serem muito
conhecedores e muito hábeis
nas artes mágicas, e deram-

208
lhes quatro cidades para que
pudessem ensinar os jovens
do país. Estas quatro cidades
eram Falias, Gorias, Murias e
Findias.1’1

Nestas Ilhas do Norte do


mundo, as tribos de Dana
multiplicaram-se e tomaram-
se tão célebres que se falava
delas por todo o lado. Naquele
tempo, o rei das tribos de
Dana chamava-se Nuada e
tinha a seu lado diversos
chefes que o aconselhavam
com sapiencia: entre eles
encontrava-se Ogina, o
campeão possuidor de uma
força terrível, Credné, o
artíficie do bronze, que
cinzelava belos ornamentos,
Goibniu, o ferreiro, que
fabricava armas e
instrumentos aratórios,
Dianceclit, o hábil médico,
Mananann, filho de Lir,

209
especialista em arte de
navegação, Morrigane, filha
de Emnias, grande
conhecedora de cantos
guerreiros, e sobretudo
Eochaid Ollathair, mais
conhecido por Dagda, ou seja,
o bom deus, que percebia
melhor do que ninguém de
assuntos de magia e de
druidismo. E, em cada uma
das quatro cidades em que
eles se tinham estabelecido,
um druida ensinava os jovens
e contava as proezas que
outrora tinham sido
protagonizadas pelos filhos de
Nemed, na terra da Irlanda e
no mundo inteiro.

Um dia, uma certa Eri, uma


das mulheres mais nobres das
tribos de Dana, estava em
casa a observar a terra e o
mar. 0 mar estava calmo e
uniforme como uma tábua de

210
madeira bem polida. Ora,
estando a contemplar a
paisagem, Eri ficou muito
admirada ao ver um navio
brilhante como prata a
navegar diante dos seus
olhos. 0 navio pareceu-lhe de
grandes dimensões, mas ela
não conseguia dístinguir~lhe a
forma. Entretanto, como a
corrente o aproximou de terra,
ela pôde examiná-lo melhor.

Notou então que havia um


homem a bordo, um homem
que lhe

1. Segundo A História da
Irlanda, (Foras Feasa ar
Eirinn), composta no sécuio
xvii por Geoffroy Keating e
editada por David Comyn
(Londres, 1902).

pareceu extremamente belo.


Uma cabeleira de ouro caía-

211
lhe sobre os ombros, e um
manto com faixas de tecido
dourado revestia a túnica, que
estava ricamente adornada
com bordados de ouro. Sobre
o peito, resplandecia um
broche de ouro onde estavam
incrustadas pedras preciosas.
0 homem trazia dardos de
prata com hastes de bronze
polido, cinco colares de ouro à
volta do pescoço, assim como
uma espada cujo punho de
ouro estava adornado com
círculos de prata e com
ornamentos em ouro.
Maravilhada, a mulher saiu de
casa e aproximou-se da beira-
mar.

0 homem desceu do barco,


pôs os pés em terra e,
apercebendo-se de Eri, disse-
lhe: «Mulher, será esta a
melhor altura para me unir a
ti?» «Estou surpresa com o

212
que vêem os meus olhos»,
respondeu ela.

«Pois bem», disse o homem,


«não percamos tempo. Peço-
te que venhas.» Sem demora,
eles estenderam-se no chão
e, quando terminaram, a
mulher começou a chorar.
«Porque choras?», perguntou
ele. «Eu tenho para isso duas
boas razoes», respondeu ela.
«Vou-me separar de ti e fico
desgostosa por isso. Os
homens mais belos das tribos
de Dana desejaram-me sem
sucesso, e agora que tu me
possuíste, o meu coraçao
pertencer-te-á até ao meu
último suspiro.» «Não quero
que fiques a sofrer por minha
causa», disse-lhe o homem.

Tirando o anel de ouro que


tinha no dedo do meio, ele
enflou-o na mão da mulher e

213
recomendou-lhe que jamais o
desse ou vendesse, cedendo-
o apenas a quem tivesse um
dedo a que o anel se
adaptasse.

«Fica certo de que jamais me


separarei dele», respondeu a
mulher. «Mas tenho muita
pena de não saber quem aqui
veio encontrar-se comigo.»
«Revelar-te-ei a minha
identidade», disse o homem.
«Aquele que veio encontrar-se
contigo é Elattia, filho de
Indech, que é um dos chefes
de Fomore. Nós vivemos em
ilhas envoltas em nevoeiro e,
se me quiseres encontrar, só
terás de mostrar este anel a
quem se cruzar no teu
caminho. Posso dizer-te
também que da nossa relação
terás um filho, que se chamará
Eochaid Bress, ou seja,
Eochaid, o Belo. Fica a saber

214
que tudo o que se vê de belo
na Irlanda e nas ilhas do norte
do mundo, sejam os prados
onde pastam os gados, os
campos onde se cultiva o trigo,
as fortalezas edificadas em
altos cumes, a cerveja que se
bebe nas assembleias, as
velas que iluminam as salas
de banquetes, as mulheres
cujo encanto entontece os
homens, os cavalos que
puxam os carros de combate,
tudo isso não terá uma beleza
comparável à do teu filho. E
correrá de boca em boca: «Eis
o belo Bress.»1’)

215
Depois, o homem dos Fomore
pediu licença para se retirar.
Regressou para o seu navio
prateado e desapareceu no
mar alto de onde tinha saído.
Eri, por seu lado, voltou para
sua casa. Não tardou a
perceber que estava grávida e
dela nasceu Eochaid Bress,
tal como tinha predito Elatlia
dos Fomore. Oito dias depois
do parto, o rapaz parecia ter
quinze dias e continuou a
crescer mais rapidamente que
as crianças da sua idade, de
tal modo que, com sete anos,
tinha a estatura de um rapaz
de catorze anos. Assim era
Bress, filho de Elatha dos (2)

Fomore e de Eri das tribos de


Dana.

Quando as tribos de Dana


tiveram conhecimento dos
seus feitos, os seus chefes

216
reuniram-se e foram
aconselhados a concluir um
tratado de amizade com os
Fomore. Enviaram então
embaixadores à presença dos
Fomore, e selou-se assim
uma aliança entre eles. Foi
assim que Cian, filho de
Dianceclit, desposou Ethné,
filha de Balor, o campeão dos
Fomore. Da sua união nasceu
Lug do Braço Longo, que mais
tarde se tornou o herói de
todos os homens que se
reclamavam das tribos de
Dana. Mas Lug não foi criado
pela mãe pois, logo que as
tribos de Dana chegaram à
Irlanda, ele foi confiado a uma
mulher dos Fir Bolg que se
chamava Tailtiu, a qual foi a
sua ama de leite, e de quem
ele perpetuou a memória
graças aos jogos fúnebres
realizados no mesmo lugar
onde ela foi enterrada, ou seja,

217
em Tailtiu, nome dado mais
tarde a este sítio.’1

1 .Em todas as narratívas


deste gênero, as etimologias
são necessariamente
metafóricas. Com efeito,
«Bress» significa literalmente
«sopro violento», «golpe
guerreiro», podendo designar,
por extensão, «herói».
Entretanto, na perspectiva
épica, um herói só pode ser
«belo» - afortiori, se se
imagina que Bress será
investido da função real à qual
está associada a noção de
beleza, deve-se mostrar, por
consequência, indigno de a
assumir plenamente.

2. Segundo a narrativa da
«Segunda batalha de Mag-
Tured», contida no manuscrito
Harleian
5280, editada e traduzida por

218
W. Stokes na «Revista
Céltica», XIII. Tradução
francesa de Henri d’Arbois de
Jubainville, na «Epopée
celtique en Irlande», Paris,
tomo V do «Curso de
Literatura céltica», Paris,
1892. Tradução francesa
parcial de Georges Dottin na
«Epopée irlandaise», nova
edição, Paris, 1980. Tradução
francesa quase integral em
Ch.- J. Guyonvarch’h, «Textes
mythologiques irlandais»,
Rennes, 1980. Para
reconstituir deforma coerente
o fio condutor desta epopeia
dos antigos celtas, é
impossível seguir a ordem
cronológica aparente de
múltiplas narrativas. Assim, é
preciso recorrer às vezes a
certos textos de diferentes
épocas e de assuntos
diversos, regressando-se
depois a textos anteriores ou

219
tidos como tal.

Houve um tempo em que as


gentes das tribos de Dana
eram tão nurnerosas que
viveram com dificuldades nas
quatro cidades onde
1

residiam. Nuada, que era o


seu chefe, reumu-as à sua
volta e, após longas
discussões, tomaram a
resolução de partir por mar e
de voltar à Irlanda que era o
país dos seus antepassados.
Aparelharam cerca de
trezentos barcos e
prepararam-se para uma
longa viagem. Levaram
consigo objectos
maravilhosos, com os quais
pensavam poder dominar os
outros povos da terra. Da vila
de Falias levaram a Pedra de
Fail, que foi depois colocada

220
sobre a colina de Tara, tendo
havido quem lhe chamasse
Pedra do Destino: o seu grito
indicava o nome de cada rei
que devia governar a Irlanda.”’
De Gorias foi levada a lança
que mais tarde pertenceu a
Lug, e a que também se
chamava Lança de Assal: era

1. Tailtiu é hoje Teitown, no


condado de Meath, lugar onde
decorrem comemorações
folclóricas - e pagãs - em
honra de Lug, no início do mês
de Agosto, o que corresponde
à festa de Lugnasad. Nas
antigas narrativas, Tailtiu é
referida como «filha de Mag
Mor (=grande planície), rei de
Espanha», e esposa de
Eochaid, o último rei dos Fir
Bolg. 0 nome Tailtiu refere-se
a uma raiz talamh (do latim
teIlus), que significa «terra».
Todas estas narrativas

221
mitológicas insistem na união
indispensável entre deus, ou o
rei, e a terra, em particular a
terra da Irlanda. 0 nome da
mãe de Bress, Eri, é uma
variante de Eriu, uma das
denominações da mulher
primordial Cessair, que se
tomou o nome oficial da
Irlanda, Do mesmo modo, o
nome da mãe de Lug, Ethné,
encontra-se com inúmeras
variantes, como Etaine, a
heroína de outra narrativa,
que é a não menos célebre
Boann (a Boyne), mãe do
herói Angus, ou ainda a tripla
Brigit, aliás Dana, deusa dos
Começos. Esta última tem
origens muito remotas, pois
encontramo-la no Médio
Oriente (Anaitis, Anu, etc,), na
índia (Anna Pourna), em
Roma (Anna Parerma), no
nome dos rios Don e Dantibio
(Tanaüs) ou no de certos

222
povos gregos (os Danaoi),
assim como no da célebre
<santa» Ana dos Bretões. NO
folclore irlandês, dá o nome a
dois cumes do Kerry, «The
Paps of Anu», também
chamados os «mamilos de
Anna». Na mitologia galesa,
tornou-se Dôn, a mãe de uma
série de deuses análogos às
personagens das tribos de
Dana. A complexidade das
narrativas irlandesas, onde os
nomes mudam
constantemente, não deve
fazer esquecer que, na maior
Parte das vezes, se trata de
uma entidade inapreensível e
que, como tal, assume
diversos aspectos e nomes.
Naturalmente, isso aumenta a
dificuldade de compreensão
das narrativas mitológicas
mas, assim que se simplifica a
nomenclatura, as
personagens ganham

223
destaque e voltam a adquirir
todo o seu valor simbólico.
Além disso, é preciso ter em
conta que os irlandeses
sempre tentaram explicar o
nome dos lugares através de
factos mitológicos ou
maravilhosos, sendo capazes
para isso de recorrer a
etimologias metafóricas ou a
homofonias flagrantes.

2. A Pedra de Fail, que se


encontra em Tara, servia para
a entronização do alto-rei da
Irlanda. Outros textos contam
que, quando da eleição deste,
os candidatos deviam tocar na
pedra: se ela «gritasse», era
porque os deuses tinham
escolhido o mais apto para
governar a Ilha Verde. Na sua
História da Irlanda, Geoffroy
Keating conta que, depois da
conquista da Fscócia pelos
escotos, ou seja, os

224
irlandeses, a Pedra de Fail foi
emprestada para a
entronização do primeiro rei
gaélico da Escócia, tendo
ficado depois na posse da
abadia de Scone.

225
impossível vencer quem quer
que a brandisse.,” De Findías
foi levada a espada de Nuada,
a que também se chamava
Caladbolg, ou seja, «Raio
Violento»: a ela ninguém
escapava, tal era o seu ímpeto
furioso quando saía da bainha
.(21 De Murias foi
transportado o caldo irão de
Dagda, que continha um
alimento inesgotável, e
ninguém que elele se servisse
deixava de ficar saciado.”’

As tribos de Dana partiram


então das Ilhas do nor-te do
mundo e navegaram para a
Irlanda. Ao cabo de três dias,
três noites e três anos, na
segunda-feira da semana do
início do mês de Maio”’,
estavam diante da costa de
Muga no UIster. Há quem
defenda que as gentes de
Dana, que eram da raça de

226
larbonel, o Adivinho,
chegaram nas asas de nuvens
sombrias e não em barcos ou
navios. 0 mais certo, no
entanto, é que, ao
desembarcarem, elas
incendiaram os seus navios
para que não caissem na
tentação de voltar ou de
quererem fugir se algum
perigo as ameaçasse. As
grandes nuvens de fumaça
que, a certa altura,
obscureceram os céus da
Irlanda, fizeram crer que elas
teriam sido trazidas por um
nevoeiro mágico. Mas a
verdade é que a fumaça
ocultou a chegada das tribos
de Dana, que se foram
refugiar no país de Corcu
Belgatan, que é agora
Cormernara, na província de
Coiinaught.1’1

Naquele tempo, o rei da

227
Irlanda era Eochaid, filho de
Erc, da raça dos Fir Bolg. Ora,
na mesma noite em que as
tribos de Dana
desembarcaram, ele teve uma
visão durante o sono.
Levantou-se incomodado e
mandou chamar o seu druida
que se chamava Cesard. Logo
que este

Foi esta pedra, posteriormente


conhecida pelo nome de
«Pedra de Scone», que o rei
de Inglaterra Eduardo 1 fez
transportar para a sua própria
coroação e q Lle se encontra
actualmente no trono que
serve para a entronização dos
soberanos ingleses em
westminster. Em vão os
escoceses reclamam a sua
restituição desde há séculos.
Não ’se pode deixar de
estabelecer uma relação entre
esta maravilhosa Pedra de

228
Fail e o misterioso «Assento
Perigoso» da Távola
Redonda, assento reservado
àquele que levasse a born
termo a aventura da conquista
do Graal, portanto ao «Reí do
Graal».

1. Noutro texto, é referido que


o poder desta lança era tal
que, para a acalmar, era
preciso mergulhar a sua ponta
num caldeirão cheio de
sangue humano. Não deixa de
ser interessante compará-la
com a «Lança que sangra»
apresentada no decurso do
célebre cortejo do Graal.

2. Ela é o protótipo de
CaledfivIch, por-tanto
Excalibur, a célebre espada
cheia de poder que só pode
ser confiada ao rei Artur.

3. Sem dúvida, trata-se de um

229
dos protótipos do «santo»
Graal cristão cuja aparição
diante dos cavaleiros da
Távola Redonda lhes fornece
o alimento e a bebida que
desejam.

4. Isto é, durante a festa


céltica de Beltaine, festa
essencialmente sacerdotal
que assinala 0 fim do Inverno
e o início da estação do Verão.

5. Síntese entre o Livro das


Conquistas, a narrativa da
Primeira batalha de Mag-
Tured e a narrativa da
Segunda batalha de Mag-
Tured, primeira versão.

chegou à sua presença, o rei


disse-lhe que um sonho que
tivera durante a noite o tinha
deixado cheio de angústia e
de perplexidade.

230
«Que haveis visto vós, ó rei da
Irlanda?», perguntou Cesard.
«Na verdade», respondeu
Eochaid, «vi grandes bandos
de pássaros negros surgireiri
das profundezas do mar e
virem na minha direcção. Num
abrir e fechar de olhos, eles
chegaram a terra e
misturaram-se connosco,
trazendo a confusão e a
hostilidade aos homens da
Irlanda. Então, um dos nossos
desembainhou a espada e
cortou uma asa ao passaro
que, de entre todos, me
parecia o mais nobre. Agora, ó
diruida, levanta-te e usa a tua
ciência e a tua magia para nos
dizeres que significado tem
este sonho.»

Cesard ergueu-se diante do


rei da Irlanda e, graças ao
conhecimento que tinha das
coisas ocultas, falou nestes

231
termos: «Não tenho notícias
agradáveis a dar-te a ti e a
todos os homens desta ilha:
vêm ao nosso encontro por
mar guerreiros nobres e
corajosos que nenhuma força
consegue deter. Com eles
vêm a morte e a destruição,
pois são gentes hábeis nas
artes da magia e do
encantamento. Eles lançarão
sobre vós nuvens druídicas
que vos alucinarão e, em cada
combate que travardes com
eles, serels a parte mais fraca.
Fica pois a saber, rei da
Irlanda, que chegou a hora de
os Homens-Trovão deixarem
de ser os donos desta ilha.»

Ao ouvirem aquelas palavras


do druida Cesard, os Fir Bolg
enviaram espiões para
vigiarem as gentes que
chegavam por mar. Cumprida
a missão, os espiões

232
informaram que o grupo dos
recém-chegados era
constituída por gente tão bela
que Jamais no mundo se vira
igual, e que, além de muito
bela, possuía armas muito
poderosas e ape-

Ji

trechos bélicos temíveis,


tendo para mais, dotes
extraordinarios para a música
e um comportamento
exemplar. Segundo os
espiões, jamais se vira gente
tão temível, pois todos os
guerreiros pareciam ter uma
ciên-

1 cia apurada das artes e das


técnicas do druidismo e da
magia.

Os Fir Bolg reuniram-se em


conselho no palácio real de

233
Tara, «É terrível que não
saibamos de onde vem essa
gente e o que pretende de
nós. Enviemos Sreng, filho de
Sengann, ao encontro dos
recém-chegados, pois trata-se
de um homem rude e de alta
estatura que conhece
Inuitobem as artes e as
ciências. Ele irá perguntar aos
forasteiros quem são e o que
pretendem.»

Streng, filho de Sengann,


levantou-se e aprontou-se
para a partida, Oquípando-se
com o poderoso escudo
vermelho-acastanhado, as
duas lanças de madeira muito
espessa, a espada que
cintilava, o capacete Com
quatro chifres e a pesada
moca de ferro. Assim
equipado, dos-

234
pediu-se da assembleia real e
dirigiu-se para o sítio onde se
tinham entrincheirado as
gentes das tribos de Dana, no
território de Coimaught.

As gentes de Dana vieram


recebê-lo na planície, e
ficaram muito admiradas com
a sua estatura e com o seu
péssimo aspecto. «Olhai: um
homem vem ao nosso
encontro», disseram elas. «Só
pode ser um mensageiro que
nos vem perguntar quem
somos e o que desejamos.
Mas nós desconhecemos de
que raça ele é, talvez seja da
raça dos Fomoi-e.» Dirigindo-
se a Bress, filho de Elattia,
disse-lhe: «Val recebê-lo,
pois, embora sejas de sangue
real, tens um pai que é um
Fomore, e por isso poderás
com certeza compreendê-lo e
dizer-nos em seguida quem

235
ele é.»

Bress, filho de Elattia, pegou


no escudo, na espada e nas
duas grandes lanças, deixou o
campo das tribos de Dana e
avançou para a planície ao
encontro de Sreng, filho de
Sengann. Aproximaram-se um
do outro até o intervalo que os
separava ser suficiente para
que pudessem comunicar
entre si. Ficaram a olhar um
para o outro com atenção e
curiosidade, admirando-se
ambos com o armamento e o
equipamento do que estava
em frente. Achando estranhas
as duas grandes lanças de
Bress, Sreng cravou o escudo
na terra de modo a proteger o
corpo e o rosto. Bress fez o
mesmo com o seu escudo e
saudou Sreng. Este
correspondeu à saudação e
ambos compreenderam que

236
falavam a mesma língua e que
por isso tinham antepassados
comuns. «Fico satisfeito por
ouvir palavras tão gentis como
as tuas», disse Bress. «Já
percebi que os teus
antepassados são da raça de
Nemed, que o céu lhe seja
leve.» «Eu também fico
satisfeito por constatar que
somos da mesma raça e do
mesmo sangue», respondeu
Sreng. «Fica no entanto a
saber que nós somos homens
muito poderosos e que jamais
recuámos diante de qualquer
inimigo, por muito poderoso
que ele fosse.» «0 mesmo
acontece connosco»,
respondeu Bress. «Fica a
saber que nada nos detém e
que nunca ninguém levou a
melhor sobre nós.» «Não
duvido», disse Sreng, «que o
teu povo é corajoso. Se os
nossos exércitos se chegarem

237
a enfrentar, haverá muitas
mortes em ambos os lados,
por muitas artes mágicas que
sejam usadas para evitar o
derramamento de sangue.»

Ficaram a olhar-se por um


momento, e depois Bress
disse: «Afasta o escudo da
frente do teu corpo e do teu
rosto para que eu possa fazer
uma descrição do teu aspecto
às tribos de Dana.» «Assim
farei», respondeu Sreng. «0
meu corpo e o meu rosto
estavam escondidos por eu
desconfiar das lanças
aguçadas que ambos
trazemos connosco».

Sreng afastou o escudo


deixando-o cair no chão.
Bress fez o mes~

mo, e encaram-se um ao outro


longaniente. «Mostra-me as

238
tuas armas», pediu Bress.
«Fá-lo-ei de boa vontade»,
respondeu Sreng, atirando
para o chão as suas lanças.
Bress deixou cair também as
suas. «Pelo que vejo»,
exclamou Bress, «são armas
de pontas largas, pesadas e
fortes, poderosas e cortantes!
Pobre daquele que por elas for
ferido, pois não conseguirá
sobreviver! Como lhes
chamas?» » «São lanças de
batalha», disse Sreng. «Com
elas não há inimigo que nos
faça frente, pois provocam
ferimentos e danos i
rreparaveis nos adversários
abrindo o caminho à vitória.»
«Acredito bem que sim», disse
Bress. «Mas as minhas armas
não são menos eficazes, vais
ver. Com elas, posso espalhar
a morte e a destruição entre
aqueles que quiser atingir,
envenenando-lhes o sangue e

239
fazendo-os desaparecer da
superfície da terra.»

Calaram-se por um bom


tempo e continuaram a
observar se. «Pois sendo
assim», retomou Bress, «e
para evitar que os nossos
parentes tenham a tentação
de se destruir, o melhor será
que estabeleçamos um
tratado de aliança e de
amizade.» «De boa vontade»,
respondeu Sreng. Bress, filho
de Elattia, das tribos de Dana,
e Sreng, filho de Sengann, da
tribo dos Fir Bolg, juraram
então aliança e amizade.

«Onde estavas na noite


passada?», perguntou Bress.
«Estava na for~ taleza real de
Tara», respondeu Sreng. «É lá
que estão os nobres e os
guerreiros dos Fir Bolg, à volta
do rei supremo da Irlanda,

240
Eochald, filho de Erc. E tu, de
onde vens?» «Eu desci
daquela montanha», disse
Bress, «onde estão as tribos
de Dana e o seu rei supremo,
Nuada, filho de Eclitach. As
tribos de Dana vieram das
ilhas do norte do mundo num
manto de nevoeiro e
chegaram à Irlanda graças a
uma tempestade
descricadeada pelos druidas.
É sua pretensão vir habitar
nesta ’lha, e por isso seria
justo que os Fir Bolg lhes
dessem metade dela, para
que pudéssemos viver em
paz.» «Tenho de voltar para
Tara», respondeu Sreng, «e
de transmitir as tuas palavras
ao rei supremo da Irlanda. Até
se chegar a Tara o caminho é
longo, portanto tenho mesmo
de partIr.» «Val», disse Bress,
«mas antes toma uma das
lanças que eu trouxe comigo.

241
Os Fir Bolg saberão assim que
tipo de armas possuem as
tribos de Daria.»

Sreng apoderou-se da arma


que lhe estendeu Bress, e por
seu lado, deu-lhe uma das que
tinha trazido. «DIz aos Fu-
Bolg», disse Bress, «que só se
derem metade da ilha ao meu
povo poderão evitar a guerra
de que sairão derrotados pela
certa.» «Transmitir-lhes-ei o
teu recado», respondeu
Sreng.

Nessa altura separaram-se,


depois de mais uma vez terem
prometi-

242
do amizade entre si, e cada
um seguiu o seu caminho.
Quando Sreng chegou a Tara,
fizeram-lhe perguntas sobre
as gentes com quem se tinha
ido encontrar.

«São grandes guerreiros»,


respondeu Sreng. «São viris e
hábeis, e têm heróis cruéis e
experientes em combate.
Usam escudos largos e
sólidos, e lanças com pontas
afiadas e fustes de madeira
muito sólida. As lâminas das
suas espadas são flamejantes
e ameaçadoras. É melhor que
selemos com eles a paz e que
lhes cedamos metade da
Irlanda, pois será muito difícil
vencê-los.»

Os Homens-Trovão reuniram-
se à volta do rei Eochaid e
estiveram a analisar durante
muito tempo a proposta de

243
Sreng. «Nós não daremos
metade da Irlanda aos
estrangeiros», disseram por
fim, «pois se o fizéssemos
eles a seguir apoderar-se-iam
de toda a ilha e escravizar-
nos-Iam, a nós, aos nossos
filhos e aos nossos
descendentes.»

Bress, por seu lado, voltou


para o campo das tribos de
Dana. Perguntaram-lhe como
era o homem que tinha ido ao
seu encontro na planície, e
como eram as suas armas.
Mostrando a lança que lhe
dera Sreng, ele respondeu: «É
um homem rude, poderoso, e
vi-o na posse de armas muito
poderosas. É grande e
corajoso, e nada o atemoriza.
Duvido muito que o seu povo
nos ceda sem luta metade da
Irlanda.» «Devemos então
preparar-nos para uma dura

244
batalha», disseram as gentes
das tribos de Dana.
Fabriquemos lanças e
espadas e construamos
fortalezas onde nos possamos
refugiar em caso de
necessidade.»

As três magas das tribos de


Dana, Bobdh, Macha e
Morrigane, foram enviadas a
Tara, chegando pouco tempo
depois ao monte dos Reféns.
Daí elas lançaram enxurradas
de magia druídica, nuvens
densas de nevoeiro e
violentas chuvas de fogo, com
gotas de sangue, que caíram
na cabeça dos guerreiros.
Assim, durante três dias e três
noites, os Fir Bolg não
conseguiram ter um segundo
de tranquilidade e de paz,
ficando cheios de angústia.

«Os nossos druidas são

245
incapazes de nos proteger da
magia das tribos de Dana»,
lamentaram-se eles por fim.
«Nós proteger-vos-emos»,
responderam os druidas dos
Fir Bolg.

E fizeram então
encantamentos à volta da
colina de Tara e detiveram a
magia das tribos de Dana.
Nessa altura, os Fir Bolg
reuniram-se em conselho e
decidiram preparar-se para o
combate. Reuniram as suas
hostes num lugar
determinado, com todos os
seus chefes, todos os seus
nobres e todos os seus reis, e
aquele lugar passou a ser
chama-

do Planície de Lia.

Quando viram os Fir Bolg


reunidos, as gentes das tribos

246
de Dana reuniram todas as
suas hostes e, dirigindo-se
para a planície, tomaram aí
posição. Três dos seus
druidas foram enviados ao
encontro dos Honiens-TrovãO
para lhes propor a partilha da
Irlanda em nome da sua
origem comum, visto que os
Fir Bolg e as gentes das tribos
de Dana eram todos
descendentes de Nemed.

os três druidas não tardaram a


chegar à tenda de Eochaid,
filho de Ere, rei supremo da
Irlanda. Foram-lhes oferecidos
tesouros e presentes e
perguntaram-lhes o que
pretendiam. Eles disseram
que tinham vindo propor ao rei
supremo a partilha da Irlanda.
Os Fir Bolg responderam-lhes
que Jamais aceitariam fazer
uma tal partilha e que jamais
dariam nietade da ilha a quem

247
se apresentava daquele
modo.

«Pois bem», disseram os três


diruidas de Dana, «Ficai então
a saber que tereis de vos
haver connosco em combate.
Quando quereis iniciar a
batalha?» «PrecIsamos de um
tempo», responderam os Fir
Bolg. «Temos de preparar as
nossas lanças e as nossas
espadas, e temos de fabricar
escudos fortes para nos
defendermos.»

Os três druidas voltaram para


perto das gentes de Dana e
anunciaram-lhes que os Fir
Bolg não estavam na
disposição de dar metade da
Irlanda, compreendendo
então as gentes de Dana que
teriam de travar lutas
sangrentas, pois as tribos
adversárias eram tão bravas e

248
corajosas como elas. A
batalha na Planície de Lia foi
marcada para quinze dias e
um mês depois do início do
Verão, ao meio do dia. As
hostes puseram-se em
marcha aos primeiros ralos de
sol, e ficaram frente a frente
exibindo escudos
ornamentados com pinturas,
lanças majestosas e reais,
dardos e espadas flamejantes.
Fatach, o poeta dos Fir Bolg,
destacou-se dos demais para
exteriorizar a fúria que sentia
cantando as glórias dos seus
antepassados. Tendo posto
um pilar de pedra no meio da
planície, apoiou-se nele,
enquanto Cairpré, o poeta das
tribos de Dana, enterrou o seu
propno pilar na outra
extremidade da planície e
apoiou-se nele para cantar a
coragem dos guerreiros do
seu povo. Foi a partir daqui

249
que a Planície de Lia passou a
ser chamada Mag-Tured, ou
seja, «Planície dos Pilares»Y1

0 combate começou então,


violento e Implacável,
sucedendo-se

Actualmente, «Moytura»,
planície situada entre o lago
Arrow e o lago Kcy, na
fronteira dos condados de
Sligo e de Roscommon, não
longe da cidade de Boyle.

250
golpes mortais entre os
guerreiros que ficaram com os
escudos partidos, as lanças
tortas e as espadas
despedaçadas. 0 clamor
tomou-se medonho, e o furor
posto na luta pelos
guerreiros, na vasta planície,
parecia aumentar de momento
para momento. Ao fim do
dia, contudo os homens das
tribos de Daria, vencidos,
tiveram de começar a recuar.
Em vez de os perseguirem ao
longo do campo de batalha,

de’
os Fir Bolg ixaram-se ficar no
seu próprio te

1Teno e cada um dos


Combatentes levou à
presença de Eochaid, filho de
Ere, re

,i supremo de toda a Irlanda,

251
uma pedra da Planície e a
cabeça cortada de um inimigo,
com que fizeram um enorme
montículo.

Quanto aos homens das tribos


de Dana, ergueram pilares

em honra das suas gentes


mortas em combate. 0
médico, que se chamava
Dianeccht, fez o que pôde
para tratar dos feridos. Por se

,u lado,

os médicos de Fir Bolg, tendo


consigo ervas curativas,
esmagaram-nas e
dispersaram-nas tão bern nas
águas duma fonte que estas
se tomaram verdes e
espessas. E todos os homens
feridos que mergulhavam na
fonte recuperavam logo a
saúde e ficavam curados,

252
prontos para voltarem para o
combate.

Na manhã seguinte, Eochaid,


filho de Ere, rei supreino dos
Fir Bolg, foi-se lavar àquela
fonte. Ora, estando ele só,
entretido a fazer abluções, viu
Por cima de si três homens
belos mas terríveis que,
protc91(los por escudos, o
ameaçavam. «Deixem-me ao
menos ir buscar as minhas
armas», disse o rei Eochaid,
<”Pois não é justo que venhaís
ameaçar um homem só e
desarmado.»

Mas os três hornens


recusaram o seu pedido e
quiseram enfrentã-lo
1090 ali, sem que ele tivesse
tempo para se armar.
Apareceu então Sreng, filho
de Sengann, um homem
grande e forte, de compleição

253
temível, que se interpôs entre
eles. «Não admito que um dia
se diga», exclamou ele, «q.ue
o meu rei indefeso foi atacado
por três jovens presunÇOsOs.
É comigo que deveis lutar e
não com el,!»

Os três atacaram-no e
sucumbiram imediatamente
aos golpes furiosOs que ele
lhes infligiu. Com a luta já
terminada, apareceram os
Homen,s-Trovão. Viram OS
três homens caídos por terra,
e o rei contou-lhes como
Sreng lutara em seu lugar.
Então, pegaram em pedras
com que encobriram Os três
corpos de modo a formar um
caim, que desde então passou
aser chamado TumUlus de
Champion. Depois disso, o rei
seguiu-os, e Prosseguiram os
combates contra os homens
das tribos de Dana.

254
Ora, eram tão densas as
hostes ali concentradas que,
Por todo o
1 ado,

faiscavam cores
resplandecentes como as do
nascer e as do pôr-

os campeões dos dois


campos, sobre os quais incidia
o sol do-s0I-
tinham um aspecto aterrador,
indescriinuito fogoso e
resplandecente,

ções; ao mestível, agitando as


suas espadas nos ares em
todas as direc

nio terflpO, enterravam as


suas lanças no corpo dos
adversários e deles faziam
jorrar rios de sangue que se
derramavam pela erva verde

255
da planície, Defendendo-se
atrás de filas serradas, os
homens das tribos de

, furioso, brandindo as armas


enDana lançaram um ataque
impetuoso e

contra os Fir Bolg. Formaram


uma

venenadas,
linha de batalha impe-
1 netrável e sangrenta,
escondendo-se atrás dos seus
escudos coriáceos

ados de vermelho e pintados


com as cores mais varíadas,
reque, bord das as investidas.
Os guerreiros mais jovens
i

sistiam a to
estavam na liflancos das
hosnba da frente, pois os mais

256
velhos foram colocados nos

tes para ajudarem e


aconselharem os que
combatiam com tanta valentia.
os poetas, os adivinhos e os
sábios colocaram-se ao lado
dos pilares que erigira , e
puseram em práti a toda a
magia para tentarem
encFanar

rfl 1c
Z1

os seus inimigos com feitiços


e encantamentos. As fúrias,
os monstros e os feiticeiros
berravam tão alto e com tanta
fúria que as suas vozes
ecoavam pelos rochedos e
pelas cascatas, chegando às
cavernas mais profundas da
terra. E a própria terra tremia
ao ouvir os gritos horríveIs
que, naquele dia, se soltaram

257
por toda a planícíe de Mag-
Tured.

Eocha’d, filho de Ere, o rei


supremo dos Fir Bolg e de
toda a Irlanda, enleontrava-se
mesmo no coração da
batalha, assim como Nuada, o
rei de todas as tribos de Dana.
Ambos distribuíam socos
violentíssimos à esquerda e à
direita, socos que fustigavam
os corpos, despedaÇavam os
escudos e as lanças, e
cortavam as cabeças, mais
parecendo lenhadores a
derrubarem à machadada as
árvores da floresta. Os heróis
andavam de um lado e do
outro e, no meio da confusão,
lançavam murros impetuosos
a tudo o que estivesse ao seu
alcance, enquanto iam
brandindo as lanças cortantes
e faiscantes.

258
Estavam também presentes
três mulheres, as três magas
das tribos de Dana, Bobdh,
Macha e Morrigane, a filha de
Ernmas.”) No meio do tumulto,
elas lançavam feitiços para
ajudar os seus e imprecaçoes
para

I- Ernnias significa
«estranho». Na realidade, as
três magas são três aspectos
da mesma per-
50”agem: Bobdh é a Gralha,
Macha, a Amazona, o
Morrigane a Grande Rainha.
Esta triPlicação encontra-se
na tradição britónica, em
particular na lenda arturianu
em que a fada Morgane
aparece às vezes com a forma
da Amazona Rhiannon e às
vezes com a forma de uma
gralha, pois possui o poder de
se metamorfoscar.

259
enfraquecer os adversários.
As espadas embatiam nas
extremidades dos escudos
redondos, e lâminas
incandescentes provocavam
poças de sangue que
chapinhavam debaixo dos pés
dos homens. Bress, filho de
Elatha, veio combater contra
os Fir Bolg. Cento e cinquenta
guerreiros sucumbiram às
suas mãos, tendo ele aplicado
nove golpes no escudo do rei
Eochaid enquanto este lhe
infligia nove ferimentos.
Sreng, filho de Sengann, veio
combater as tribos de Dana.
Morreram às suas mãos cento
e cinquenta guerreiros, tendo
ele aplicado nove golpes no
escudo do rei Nuada que, por
seu lado, lhe infligiu nove
ferimentos.

A certa altura, os homens das


tribos de Dana começaram a

260
repelir os Homens-Trovão,
enquanto na planície se iam
acumulando os cadáveres. As
hostes tremiam como a água
de um caldeirão que
transborda por todos os lados,
ou como um rio cujas águas
engrossam quando um
exército abre caminho por
entre elas para os seus
guerreiros poderem passar. E,
como os próprios reis queriam
combater, foi-lhes dado um
grande espaço. Os guerreiros
afastaram-se e os servos,
atemorizados com aquele
espectáculo, puseram-se em
fuga. A terra foi calcada pelos
heróis e com o ardor da luta
endureceram as turfas sob os
seus pés. Sreng e Nuada
infligiram-se mutuamente
trinta ferimentos, e o primeiro
infligiu um golpe terrível ao rei
das tribos de Dana
atravessando com a espada a

261
borda do seu escudo e indo
cortar-lhe o braço direito até
ao ombro. Nessa altura,
Nuada lançou um grito
tremendo de dor.

Ao ouvi-lo, Dagda dirigiu-se


para ele e tentou protegê-lo
dos inimigos que o cercavam.
Depois aconselhou-se com os
companheiros, e mandaram
chamar cinquenta heróis para
proteger o rei, encontrando-se
entre eles o médico
Diancecht. Nuada foi levado
para fora do campo de
batalha, e tiraram-lhe o braço
para o colocarem num círculo
de pedras. E o sangue de
Nuada escorreu sobre as
pedras.

Entretanto, apesar de Nuada


se ter retirado, o combate
continuou aceso. Bress, o filho
de Elattia, queria vingar o seu

262
rei. PrecipitOu-se para o lugar
de onde Eochald dirigia a
batalha, exortando os heróis e
dando ânimo aos campeões.
Bress atacou-o furiosamente e
ambos, escudo contra escudo,
feriram-se nas partes do corpo
a descoberto, enquanto os
restantes combatentes se
mantinham no meio de um
cenário caótico, enraivecidos
e tendo de suportar o peso das
suas armaduras e dos seus
corpos.

Assim que os campeões de


Dana vieram em seu socorro,
tendo à cabeça Dagda, Ogina,
Bobdh Derg, filho de Dagda,
Cian, filho de

1)iancecht, assim como


Goibniu, o ferreiro, os Fir Bolg
foram obrigados a deixar o
terreno. Quando chegaram a
um outeiro que dominava a

263
planície de Tured, Eochaid,
filho de Erc, o rei supremo dos
Fir Bolg da
1 - -se 1 1

rlanda, sentiu muito fraco.


Pediu então a Sreng, filho de
Sengann, para lhe vir falar-
«Prossegui o combate, fazei
com que todos os nossos
guerreiros continuem a
combater com bravura e
tenacidade, até que eu
encontre água que possa
beber e com que possa lavar a
cara», disse Eochaid, «pois
tenho a garganta seca e estou
a morrer de sede.» «Nós
somos pouco numerosos,
agora», respondeu Sreng,
«mas asseguro-vos que o
combate prosseguirá,
aconteça o que acontecer.»

Sreng reuniu uma centena de


homens e preparou-se para

264
enfrentar as gentes das tribos
de Dana. Mas, assim que os
druidas daquelas souberam
que o rei da Irlanda estava
morto de sede, lançaram um
feitiço de forma a esconder
das suas vistas os nos e os
regatos da Irlanda. E ele, por
muito que procurasse o país à
procura de uma fonte onde
matar a sede, não encontrou
nada. Ora, estando ele a ser
perseguido pelos guerreiros
das tribos de Dana,
aproximou-se de uma
margem, num lugar que hoje
se chama o Areal de Eochaid.
Aí foi atacado por três
guerreiros, mas defendeu-se
energicamente, apesar da
sede que o atonnentava, e
matou-os aos três. Tendo
recebido diversos ferimentos e
estando enfraquecido por
todos os golpes que sofrera,
ele próprio também acabou

265
por sucumbir. E ali mesmo foi
enterrado, naquele mesmo
areal, debaixo de um
montículo que os Fir Bolg
fizeram com pedras para ali
levadas.

Naquela noite, devido ao


cansaço e às grandes perdas
que sofreram, os Homens-
Trovão estavam consternados
e completamente
desanimados. Censuravam-
se por não terem lutado com
suficiente ardor e deram
sepultura às suas gentes, aos
pais, aos amigos e aos
familiares. Para os nobres
foram feitos montículos,
erigiram-se pilares em
memória dos herois, e os
restantes combatentes foram
enterrados em campas.
Depois disso, Sreng, filho de
Sengann, convocou a
assembleia dos Fir Bolg para

266
se aconselhar e decidir o que
fazer. Disse aos Fir Bolg que
só tinham duas possibilidades:
ou deixavam a Irlanda para
sempre e partiarn para outro
país, ou aceitavam partilhar a
ilha entre si e as tribos de
Dana. «A não ser assim»,
acrescentou ele, «teremos de
combater até à última gota de
sangue. E ficai a saber que,
com os poucos homens que
nos restam, não nos será fácil
alcançar a vitória.»

Os Firbolg decidiram não


abandonar a Irlanda e
combater as tribos de Dana
até ao último homem em
condições de pegar em
armas.

267
Então, voltaram a pegar nos
grandes escudos quadrados,
nas lanças envenenadas, nas
espadas cortantes de metal
azul, e partiram ao encontro
das tribos de Dana, sabendo
que no combate terrível e
desesperado que se
avizinhava o mais certo era
encontrarem a morte. Uma
vez chegados ao lugar onde
se encontravam as tribos de
Dana, Sreng, filho de
Sengann, desafiou Nuada
para o combate como
vingança pela luta que ambos
já tinham travado. Nuada,
como se não tivesse ficado
sem braço, enfrentou-o cheio
de coragem. Com a mão
esquerda agarrou nas armas e
avançou para Sreng, dizendo-
lhe: «Se o que desejas é uma
luta como deve ser, amarra o
braço direito, pois eu perdi o
meu, e assim estaremos em

268
igualdade de condições. Se
queres que a luta seja justa, é
isso o que deves fazer.»
«Nada a isso me obriga»,
retorquiu Sreng.
1 1

«Nós estávamos em
igualdade de condições na
primeira luta que travámos, e
esta é a continuação dessa
primeira luta. É verdade que
eu te cortei um braço, mas os
teus guerreiros mataram o
meu rei, Eochaid, filho de Erc,
e eu tenho sangue real. Cabe-
me a mim vingar a morte do rei
supremo da Irlanda, vencendo
o rei das tribos de Dana.»
Nessa altura interveio Bress,
filho de Elatha:

«Sreng, valoroso guerreiro,


lembra-te que nós fizemos um
juramento de paz e de
amizade. Eu também tenho

269
sangue real e poderia
combater no lugar do meu rei.
Mas como estamos unidos por
este j uramento de amizade,
não podemos voltar a
encontrar-nos frente a frente.
Paremos com isto e façamos a
paz.» «Farei como dizes, e
respeitarei desse modo o
juramento feito perante ti, ó
valoroso Bress». respondeu
Sreng. «Espero as tuas
propostas.»

i Bress foi-se reunir com os


chefes das tribos de Dana e
analisou a situação com eles.
«Que perdas sofremos?»,
perguntou Nuada. «Nobre
Nuada», respondeu Dagda,
«juro-te que perdemos muitos
guerreiros e muitos campeões
nesta batalha. Uma grande
parte de nós, muitos dos
nossos irmãos e dos nossos
filhos, morreram às mãos dos

270
Fir Bolg, e são tão grandes as
nossas baixas que tão pouco
podemos saber quantas
foram. Nós pedimos aos Fir
Bolg para partilharem a
Irlanda connosco porque
temos origem no mesmo clã, o
do glorioso Nemed que é uni
nosso antepassado. Era uma
questão de justiça, e nós
tínhamos o mesmo direito que
eles de habitar este país. Eles
não nos quiseram deixar 0
lugar que por herança nos
pertencia, e tivemos de o
conquistar pelas armas,
pagando um alto preço com o
sangue dos nossos heróis e
dos nossos guerreiros. Penso
que chegou o momento de
celebrar um acor-

do com os Firbolg, pois eles já


não estão em condições de
lutar comiosco e seria cometer
uma injustiça matá-los até ao

271
último hoiiiern». «E a voz da
sabedoria que fala pela tua
boca, ó Dagda», disse Nuada.
«E, apesar da dor que me
provoca a minha enfermidade,
apesar da raiva que sinto,
prefiro que se firme a paz
entre nós e os Homens-
Trovão. Que Bress vá ao
encontro de Sreng, filho de
Sengann, e que lhe proponha
o fim das hostilidades e a
escolha, pela sua parte, de
uma província da Irlanda para
habitar com as gentes do seu
povo.»

Bress foi falar com Sreng e


transmitiu-lhe a proposta dos
chefes das tribos de Dana.
Sreng escolheu a província de
Connaught. Então juraram paz
e amizade, para eles e os seus
descendentes. E Sreng, filho
de Sengann, reuniu-se com os
Fir Bolg que tinham escapado

272
1 1 ao
massacre de Mag-Tured, e
partiu para Connaught, de que
tomou posse.”’ Quanto aos
homens das tribos de Dana,
reuniram-se mais uma vez

para decidir o que haviam de


fazer na Irlanda, tendo-se
tornado donos de quase todas
as terras da Ilha Verde.
Chegaram a acordo
unanimemente que era
preciso fixarem-se nas
planícies e nos vales tirando
proveito do solo cultivando o
trigo e fazendo a criação de
gado nos grandes prados
situados junto aos rios.
Quanto a Nuada, o rei
supremo das tribos de Dana, o
médico Diancecht, com a
ajuda do artesão Credné, fez-
lhe um braço de prata dotado
de todos os movimentos da

273
mão em cada dedo e em cada
articulação. E Miach, filho de
Dlancecht, enxertou-lhe o
braço, articulação a
articulação, nervo a nervo e
vela a veia, por três vezes,
ficando ele curado ao fim de
nove dias. Entretanto,
I)lancecht ficou despeitado
com aquela cura e, furioso,
brandindo a espada sobre a
cabeça do filho, provocou-lhe
um golpe profundo no
pescoço. 0 rapaz, contudo,
curou-se pondo em prática a
sua arte. Então, Diancecht
voltou a feri-lo e chegou ao
osso. 0 rapaz mais uma vez
curou-se voltando a usar a sua
arte. Ainda mais furioso,
Diancecht feriu-o uma terceira
vez na cabeça e atingiu-lhe o
cérebro, tendo sido assi

1 im que

274
A tradição popular local de
Connaught, sobretudo no
condado de GaIway, conserva
a marca da lembrança dos Fir
Bolg. Deste modo, os
habitantes das ilhas de Aran
são considerados os
descendentes dos Homens-
Trovão, e as fortalezas pré-
históricas que se encontram
nas três ilhas de inismore,
Inisman e Inislicer, passam
por ser obras destes
longínquos antepassados, na
verdade mais míticos que
reais, mas capazes de vencer
as barreiras do tempo graças
ao poder do imaginário,

275
Miach morreu às mãos do
próprio pai. E este disse que
ninguém dali em diante o
poderia devolver à vida.

Depois, Diancecht dirigiu-se


aos homens das tribos de
Dana: «Mesmo no caso de
Nuada se apresentar diante
de vós com um braço, ficai a
saber todos que este é de
prata. Por esse motivo ele
passará a ser chamado Nuada
do Braço de Prata. Sabei
também que qualquer rei que
perde uma parte do corpo se
toma incapaz de reinar, pois a
integridade do rei é o que
garante a integridade do
reino.”) Devemos por isso
escolher entre nós qual é o
mais digno de ser nosso rei,
pois Nuada do Braço de Prata,
por muito mérito que tenha, já
não é digno de exercer uma tal
função.»

276
Os chefes das tribos de Dana
reuniram-se em conselho.
«Diancecht tem razão», disse
Nuada. «Eu ja não posso ser o
vosso rei, pois
lamentavelmente perdi o meu
braço. Escolhei pois entre vós
aquele que vos parecer mais
digno de ser o vosso rei.»

Então, após acesa discussão,


acabaram por escolher Bress,
filho de Elattia, pois ele tinha
sangue real, sendo filho de um
principe dos Fomore. E assim
Bress tomou-se rei da Irlanda
durante sete anos, após a
batalha de Mag-Tured em que
as tribos de Dana combateram
e venceram os Fir Bolg.1’1

1. Definição da realeza de tipo


celta: um rei só é capaz de
governar o seu reino se tiver o
«POder do dom», ou, dito de

277
outro modo, o poder de
distribuir as riquezas de
acordo com os méritos de
cada um. Mesmo com uma
prótese, Nuada é um rei
amputado, e não se pode

servir do braço direito para


cumprir simbolicamente a sua
missão, que é «distribuir». Na
lenda arturiana encontra-se
precisamente o mesmo
conceito, quando o rei Artur
perde devido à doença - o
poder de dar. Isto também
acontece no caso do Rei
Pescador que, vítima de um
ferimento mágico, não é capaz
de assumir em plenitude a
função de Rei do Graal. Desse
modo o seu reino torna-se
estéril e assim permanecerá
enquanto ele não se curar ou
enquanto um jovem rei, de
uma incontestável integridade
física, como Perceval, não lhe

278
suceder no trono. Costuma
dizer-se que um reino se
estende até ao alcance do
olhar do rei, o que faz supor da
parte deste uma perfeição
física indissociável da
perfeição moral.

2. Segundo a narrativa da
«Primeira batalha de Mag-
Tured», com alguns
pormenores extraídos (10
«Livro das Conquistas» e da
narrativa da «Segunda
batalha de Mag-Tured»,
primeira versão.

tL1

o saberem que Bress, filho de


Elatha, se tomara rei das
tribos de Dana, os Fomore
ficaram muito satisfeitos, pois
viam nele um dos seus e, por

279
seu intermédio, tudo fariam
para impor aos habitantes da
Irlanda encargos tão pesados
como aos seus antepassados
noutros tempos. Assim,
enviaram mensageiros a
Bress para lhe lembrar que, se
a sua mãe era originária das
tribos de Dana, já o seu pai era
Elatha, um dos grandes
chefes dos Fomore, gigantes
que habitavam em ilhas no
meio do nevoeiro.

Desse modo, os Fomore


fizeram recair pesados
encargos sobre as tribos de
Dana. Os homens da Irlanda
deviam-lhes pagar um
imposto sobre o trigo, um
Imposto sobre o leite e a
manteiga, e um imposto por
cada pedra que servisse para
construir uma casa. Além
disso, deviam pagar uma onça
em ouro por pessoa, homem

280
ou mulher, adulto ou criança,
ou arriscavam-se a que lhes
cortassem impiedosamente o
nariz. Para cúmulo, o rei
Bress, desde que soubera que
podia contar com os Fomore,
abusava em benefício próprio
das suas prerrogativas.
Atribuiu terras a si mesmo, e
obrigou os nobres das tribos
de Dana a executarem
trabalhos muito duros em seu
proveito. Assim, Ogma, o
campeão”’, devia levar
diariamente um feixe de lenha
para a lareira da casa de
Bress; I- Ognia é o deus
Oginios que o filósofo grego
Luciano de Samosata, no seu
tratado sobre He-

rá”es, apresenta com os


traços de um «Hércules» já
idoso cujas correntes saídas
da língua chegavam às
orelhas dos humanos. 0 nome

281
Oginios-Ogina não é celta
mas grego, e evoca a «estrad^
o <caminho», tratando-se de
qualquer modo de uma
divindade da comunicaçk
Segundo a tradição irlandesa,
terá inventado o «ogham», ou
seja, a escrita ogântica vertical
que se encontra nas colunas
de pedra da alta Idade Média
na Irlanda e no oeste da Gr
Bretanha. Obviamente, há
pontos em comum entre o
nome Ogina e o de Ogliam,

282
e Dagda, que já lhe havia
construído a casa, foi obrigado
a construir-lhe fortalezas, Com
o passar do tempo, cada vez
mais os nobres das tribos de
Dana viam com maus olhos os
impostos que lhes eram
infligidos pelos Fomore, assim
como as injustiças que eram
praticadas pelo seu próprio rei
Bress, filho de Elatha.

Certo dia, um cego de nome


Cridenbel foi .encontrar-se
com Dagda na sua casa real.
Era um preguiçoso, um
parasita, mas costumava dizer
sátiras e toda a gente o
receava.’1 Ora, Cridenbel
pensava que a parte de
comida que lhe cabia era
muito inferior à de Dagda.

«0 Dagda!», exclamou ele em


alta voz, «por tua honra, quero
que uma terça parte

283
substancial da tua ração de
comida me seja dada!» Foi
assim que, a partir de então,
Dagda passou a dar uma
grande parte da sua comida
ao sátiro. Apesar disso, a
ração daquele era abundante,
sendo cada bocado de comida
do tamanho de um grande
porco. E como Dagda, apesar
de privado de um terço da sua
ração, continuava a fazer os
seus trabalhos muito duros, ia
ficando cada vez mais fraco.

Um dia, estando a cavar uma


fossa, o seu filho Bobdh Derg
veio vê-lo e ficou espantado
ao vê-lo tão magro e sem
forças. «Que se passa
contigo, ó Dagda?»,
perguntou Bobdh Derg.
«Porque é que estás com tão
mau aspecto?» «Ora»,
respondeu Dagda,
«Crideribel, o sátiro, exige de

284
n-úm que lhe dê todas as
noites uma terça parte
substancial da minha ração».
«Vou-te dar um conselho»,
disse Bobdh Derg. Tirou a
bolsa da túnica e, pegando em
três peças de ouro, pô-las na
mão de Dagda. «Ouve bem o
que te digo», continuou ele.
«Vais meter estas três peças
de ouro em três bocados de
comida que lhe deres, tendo a
preocupação de que sejam os
mais belos e mais apetitosos.
Cridenbel engoli-los-ã
vorazmente, com as peças de
ouro dentro, de tal modo que o
ouro, ao entrar-lhe no corpo, o
fará morrer. Irão então dizer a
Bress que o sátiro morreu por
lhe teres dado uma erva
envenenada. 0 rei, furioso,
dará ordens para que tu sejas
castigado com a morte, mas tu
defender-te-ás. Dirás que
Cridenbel te pediu os três

285
melhores bocados da tua
comida e que, para o
satisfazeres, lhe deste três
peças de ouro, ou seja, os três
melhores bocados.
acrescentarás que foi por ter
engolido o ouro que Cridenbel
morreu.»

n
1. Membro da classe
sacerdotal druídica, o sátiro
desempenha um papel muito
partícula, as

sociedades de tipo celta:


quando ele lança uma
«sátira», ou seja, um feitiço
mágico, c011tra alguém,
aquela adquire um carácter
incontornável e o seu
destinatário não lhe pode
fugir, pois se o fizer arrisca-se
a perder a honra, a saúde e a
própria vida.

286
Dagda pôs em prática o
conselho de Bobdh Derg.
Naquela mesma noite, meteu
as três peças de ouro nos três
melhores bocados da sua
comida e deu-os a Cridenbel.
0 sátiro devorou vorazmente
os três bocados e de manhã
foi encontrado morto. Então,
as gentes da casa foram dizer
ao rei que o sátiro tinha
morrido porque Dagda lhe
dera a comer urna erva
envenenada. Bress chamou
Dagda à sua presença e
censurou~ -lhe
veementemente a sua
malvadez, ameaçando-o com
a morte no caso de se vir a
saber que ele era culpado.
«Eu não sou culpado»,
respondeu Dagda. «Crideribel
pediu-me as três melhores
partes que me cabiam, e o que
eu tinha de melhor eram as
três peças de ouro. Dei-as por

287
isso a Cridenbel, e não tenho
culpa de ele ter morrido pelo
facto de o seu corpo não ter
suportado o ouro.» «Se assim
é», disse o rei, «mandarei abrir
o corpo de Cridenbel para ver
se existe ouro lá dentro. Se
não houver, tu morres, e se
houver, ser-te-á poupada a
vida.»

Abriram a barriga ao sátiro e


encontraram três peças de
ouro no estômago, o que
serviu para desculpar Dagda,
que não tardou a recuperar
força e energias, pois já não
tinha de dar uma parte
substancial da sua comida. 0
perdão dado a Dagda não
impediu no entanto que este e
todos os chefes das tribos de
Dana se continuassem a
queixar das injustiças de
Bress. Queixavam-se
amargamente que ele não os

288
deixava dar uso às facas e que
nunca lhes oferecia festins
onde corressem a cerveja e o
hidromel. Nunca havia
grandes festas em que os
poetas, os músicos e todos os
tipos de artistas se exibissem
para gáudio de toda a gente.
Também não se assistia
nunca a grandes competições
onde os campeões pudessem
mostrar as suas habilidades. E
todos se interrogavam como
se havia de ultrapassar esta
situação constrangedora.”)

Nuada, pela sua parte,


lamentava-se por ter perdido a
coroa e o poder real devido à
falta do braço, apesar de um
braço de prata lhe ter sido
enxertado, permitindo-lhe
mover as articulações com
uma extrema suavidade e
destreza. Vivia em Tara, com
a maior parte das tribos de

289
Dana, e
0 Porteiro que lhe vigiava a
entrada da fortaleza só tinha
um olho.

Um dia, andando o porteiro no


prado em frente da fortaleza,
viu ao Pé das muralhas dois
jovens belos e de estatura
nobre. Um era homem o ’
outro mulher, tendo-o ambos
cumprimentado após se
aproximarem dele. Ele
correspondeu ao cumprimento
e perguntou-lhes o que os
trazia à fortaleza real de Tara.
«Nós somos dois bons
médicos», respondeSegundo
a narrativa da «Segunda
batalha de Mag-Tured»,
primeira versão.

290
ram eles, o filho e a filha de
Dianceclit. Ele chamava-se
Oirmiach e ela Airmed. «Se
são tão bons médicos», disse
o porteiro, «têm de n---10
provar. Não vêem que sou
zarolho? Pois bem, fazei com
que eu tenha um olho no lugar
daquele que me falta.» «E
para já», disse o jovem, «Eu
vou imediatamente pôr um
olho de gato no lugar do olho
que te falta». «Ficarei muito
satisfeito com isso»,
respondeu o porteiro, «e
elogiarei os teus méritos em
todas as assembleias desta
ilha.»

Com efeito, este jovem, que se


chamava Oirmiach, e a jovem,
que se chamava Airmed,
meteram o olho do gato no
lugar do que estava em falta
no porteiro. Mas, mais tarde, o
porteiro só ficou meio

291
satisfeito, pois quando queria
dormir ou descansar, o olho
abria-se ao mais pequeno
chiar de um rato, ao mais leve
bater de asas de um pássaro,
ou mesmo ao mais ligeiro
sopro de vento nos ramos das
árvores. Pelo contrário,
quando tinha necessidade de
observar um grupo de
guerreiros ou uma assembleia
de nobres à volta do caldeirão,
o olho fechava-se-lhe e ficava
com vontade de dormir e de
repousar.

Maravilhado, entretanto, com


a arte dos dois jovens, entrou
no palácio e foi falar com
Nuada do Braço de Prata.
Comunicou-lhe que havia dois
bons médicos à porta e que
eles tinham acabado de lhe
pôr um olho no lugar daquele
que lhe faltava. Nuada
mandou então que eles

292
entrassem.

Quando os jovens entraram


na grande sala onde estava
Nuada do Braço de Prata,
ouviram uma espécie de
gemido de lamento e de dor.
«0 que há aqui?», perguntou
Oirmiach. «Pareceu-me ouvir
o gemido de um guerreiro que
padece de um mal terrível.»
«Na verdade, é um grito de dor
e de desespero», disse
Airmed. «Vejamos se não se
trata de um suspiro de um
guerreiro que sofre por um
escaravelho lhe estar a roer o
braço sem que ele disso se dê
conta.»

Estenderam Nuada do Braço


de Prata numa liteira e
examinaram-no com atenção.
Airmed acabou por lhe tirar o
braço de prata, e de dentro
dele saiu um escaravelho que

293
se pôs a correr por toda a
fortaleza. Os homens da casa
real vieram então ver o que se
passava e mataram o bicho.

«0 braço de prata estava bem


articulado», disse Oirmiach,
«mas não serve ao rei Nuada.
Se encontrássemos um braço
com igual comprimento e
largura, metê-lo-íamos no
lugar desse.»

Os nobres das tribos de Dana


que se encontravam ao redor
de Nuada ordenaram então
aos criados que procurassem
entre eles uni braço
adequado. Os criados
observaram os braços de
todos aqueles que ali se
encontravam e pediram aos
dois jovens para darem um
parecer.

Mas estes, fazendo uma

294
ronda por braços sucessivos,
não encontravam nenhurn
que conviesse. Referindo-se
ao braço de Moffian, o chefe
POrqueiro das tribos de Dana,
os criados perguntaram aos
médicos: «Este braço serve-
vos?» «Esse parece-nos com
efeito o mais conveniente»,
responderam eles. Era
necessário ainda que o
homem aceitasse de boa
vontade dar o seu braço ao rei
Nuada. «Fá-lo~ei com todo o
gosto», disse o porqueiro,
«desde que isso nos ajude a
livrarmo-nos da opressão dos
Fomore e das injustiças de
Bress.» Oirmiach disse então
à sua irina: «0 que preferes?
Enxertar o braço nos ombros
do rei Ou ir procurar ervas
para permitir que ele se
adapte à natureza da sua
carne?» «Prefiro enxertar o
braço», respondeu Airmed.

295
E, enquanto Oirmiach foi
procurar ervas, Airmed
pacientemente meteu mãos à
obra. Com todo o cuidado,
enxertou o braço do porqueiro
no ombro do rei e, assim que
o Irmão voltou com as ervas,
ela aplicou-as com tantas
cautelas que o braço se
ajustou perfeitamente a
Nuada. Qualquer pessoa que
desconhecesse que ele
perdera um braço em combate
não poderia suspeitar que
aquele braço não era o seu.
Mas, apesar disso, não se
deixou de se lhe chamar rei
Nuada do Braço de Prata.”’

Entrementes, os nobres das


tribos de Dana puseram-se a
debater quem havia de ser o
rei da Irlanda. Alguns
observaram que, tendo-lhe
sido restituídas uma mão e um

296
braço, Nuada poderia reinar
de novo sobre o seu povo.
Mas outros alvitraram que,
tendo sido atribuído poder real
a Bress, filho de Elaffia, este
não lhe poderia ser retirado
sem seu consentimento. Ora,
era sabido de todos que Bress
se apegara ao poder e que
não o abandonaria sob
nenhum pretexto. «Eu sei o
que há a fazer», disse então
Dagda. «Peçamos a Cairpré,
que é poeta e sátiro, para ir a
casa de Bress e para lhe fazer
provocações pondo a nu as
suas fraquezas e a sua
sovinice.»

Cairpré, filho de Etaine, que


era o poeta das tribos de
Dana, deslocou-se então à
casa real que Dagda
construíra para Bress.
Apresentou-se e pediu
hospedagem, que lhe foi dada

297
de boa vontade. Mas Cairpré
achou a casa de Bress
sombria, muito pequena e
desconfortável. Nela

I- Segundo a narrativa do
«Sort des enfants de Tuirenn»
(Oidhech Chloinne Tuireann),
contida em diversos
manuscritos do século XVIII,
publicada e traduzida por
O’Curry em 1863, por P-W.
Joyce em 1874 (old Celtic
Romances) e por Richard J.
O’Duffy em Dublin em 1901.

TraduÇão francesa
fragmentária em R. Chauviré,
Contes ossianiques, Paris,
1947. TraduÇão francesa
integral em Ch.-J.
Guyonvarc’h, Textes
mythologiques irlandais,
Rennes, 1980.

298
não havia lareira para se
poderem aquecer, nem leito
para dormir, nem comida em
quantidade suficiente para
matar a fome. Trouxeram-lhe
três pequenos pães, que
estavam secos e duros. Além
disso, em vez de cerveia e de
hidromel, deram-lhe água.
Comeu os pequenos pães,
bebeu a água, mas dormiu tão
mal na casa real de Bress que
acordou na manhã seguinte
de muito mau humor. Saiu de
casa, atravessou o pátio e ia
pronunciando as seguintes
palavras: «Que horrível é a
casa de Bress, filho de Elatha,
pois nela a comida não é
servida em pratos de ouro, o
leite de vaca não é
generosamente distribuído, a
cerv ’a deliciosa não corre a
rodos, e os poetas, os
contadores de histórias e os
músicos nela não têm lugar!

299
Que rei é este que não sabe
distribuir as suas riquezas?
Daqui em diante, enquanto
Bress, filho de Elattia, for o rei
supremo, não haverá
colheitas, as vacas não darão
leite, não se fará cerveja, riem
se fará a distribuição de
pedras preciosas e de ouro na
terra da Irlanda.»

E, pronunciadas aquelas
palavras, Cairpré deixou a
fortaleza. Bress ouviu a
maldição lançada por Cairpré
e, muito assustado, foi a Tara
encontrar-se com os nobres
das tribos de Dana na casa
real.

«Porque é que me obrigaram


a ouvir a sátira de Cairpré?»,
perguntou ele. «Um rei deve
estar imune a qualquer
maldição, seja de que tipo
for.» «A razão é que tu não te

300
comportas como um rei»,
respondeu Dagda. Para além
de não seres generoso
connosco, fizeste de nos
escravos e obrigas-nos a
pagar elevados impostos em
benefício dos Fomore. «A
verdade», acrescentou Cian,
filho de Diancecht, «é que nós
nunca deveríamos ter firmado
uma aliança com os Fomore.
Eles só nos deixaram
conquistar esta ilha aos Fir
Bolg para poderem depois
dominar-nos e tirarem
dividendos da nossa vitória, e
tu nada fizeste para evitar que
eles nos prejudiquem.» «Nós
fizemos de ti rei», retomou
Dagda, «porque, o nosso rei
tinha perdido um braço em
combate. Tu tinhas dois
braços, mas eles de nada nos
valeram pois não serviram
para criar riqueza e prospe
’dade.» «0 que é que eu podia

301
ter fc’to», perguntou Bress.
«Eu digori 1
.

-vos qual é a minha opinião»,


disse Dagda, «Agora que o
braço que faltava foi restituído
a Nuada, ele deve ser o nosso
rei. Pedimos-te que abdiques
do trono, pois, devido à sátira
que sobre ti foi lançada, o teu
reino está condenado a não
dar frutos: faltarão as ervas
nos prados para

se-ão os animais pastarem, as


vacas não darão leite, os
campos tornar-

estéreis. Se insistires em ser


rei, nada de bom poderemos
esperar para o nosso reino.»
«Nesse caso abdicarei do
trono», disse Bress.
«Concedei-me algumas
garantias, e reconhecerei

302
Nuada como nosso rei.»

os nobres das tribos deram


algumas garantias a Bress,
tilho de Elatha, prometendo-
lhe que seria sempre bem
vindo à casa real e que
1

jarriais deixaria de ser


convidado para os festins.
Então, ele pediu um prazo de
sete dias, que lhe foi dado,
deixando depois a casa real
de Tara. Mas o pedido de um
prazo deveu-se a um desejo
de vingança, tendo

ele ficado furioso por ter sido


privado do trono que lhe dava
o poder de reinar sobre a
Irlanda. Foi encontrar-se com
a mãe, Eri, e perguntou-lhe
corno é que havia de
encontrar o pai, Elatha, filho
do rei dos Fomore.

303
«Vem comigo, que não terás
dificuldade em achá-lo»,
dIsse-lhe a mãe. Ela
encaminhou~se para a praia e
mandou aparelhar barcos
para navegarem para o país
dos Fomore. Depois, tirando o
anel de ouro que lhe tinha sido
dado por Elattia quando viera
ao seu encontro, estendeu-o
para Bress. Bress pô-lo no
dedo do meio, ao qual ele se
adaptou per~ feitamente. Até
àquela altura, Eri Únha-o
guardado religiosamente, não
o tendo vendido ou dado a
nenhum homem. Apesar
disso, muitos guerreiros
tinham tentado enfiá-lo no
dedo, sem êxito, pois aquele
anel não se adaptava a
nenhum dedo dos guerreiros.

Mãe e filho partiram então


para o país dos Fomore,

304
situado numa ilha envolta em
nevoeiro. Desembarcaram e
avistaram uma grande
planície onde havia varias
assembléias. Dirigiram-se
para aquela que lhes pareceu
mais bela, e as pessoas que aí
se encontravam perguntaram-
lhes por novidades,
respondendo eles que tinham
vindo da Irlarida.
Perguntaram-lhes então se
tinham cães, pois naquele
tempo era costume, sempre
que pessoas de fora
chegavam a uma assembléia,
realizarem-se competições e
Jogos. «Sim, temos»,
respondeu Bress, «e temos
todo o gosto em que eles
participem em ,

1 jogos com os vossos.»


Soltaram então os cães, e
estes fizeram corridas contra
os dos Foinore, destacando-

305
se graças à sua imensa
velocidade. Perguntaram
critão aos recém~chegados se
tinham cavalos e se permitiam
que eles Competissem com os
dos Fomore «Temos»,
respondeu Bress, «e é para
1168 uma grande prazer que
compitam com os vossos.»

E os cavalos das tribos de


Dana foram mais rápidos do
que os dos FOIriore.
Perguntaram então aos
recém-chegados se tinham
trazido com eles alguém perito
em desembainhar a espada.
Mas os companheiros de Br
1 rapi-

(’ss, apesar de muito se


esforçarem, não conseguiram
ser mais ’ i dos que os
Fomore. Então Bress tentou a
sua sorte, mas assim que pôs
a mão na espada o pai

306
reconheceu o anel de ouro
que tinha na mão e
PergurItou-lhe quem era ele. A
mãe respondeu por ele,
dizendo a Elatha

307
que Bress era um dos seus
filhos, e em seguida contou-
lhe toda a história desde que o
guerreiro estrangeiro se fora
encontrar com ela.

0 pai compreendeu que o filho


estava ali devido a uma
situação grave, e perguntou-
lhe: «0 que é que te fez deixar
o país de que és rei?» «0
motivo é simplesmente a
injustiça e a arrogância com
que tratei os meus súbditos.
Eu privei-os dos seus bens e
dos seus alimentos, fazendo-
os passar por uma terrível
humilhação e por uma
situação extremamente
injusta.» «Isso é mau», disse o
pai. «Teria sido preferível que
o teu reino fosse prospero,
pois um reino rico faz do seu
rei um homem rico. Além
disso, é muito mau ter de ouvir
maldições.» «Revoltados

308
comigo» continuou Bress, «os
meus súbditos enviaram ao
meu encontro um poeta que
lançou um feitiço sobre o reino
que durará enquanto eu for
rei.» «Estás a dar-me
pessimas notícias», disse o
pai, «pois se o teu povo ficar
na penúria, não poderá pagar-
nos os impostos que lhes
impusemos. E porque é que
vieste até aqui, tendo deixado
a longínqua Irlanda?» «Vim
pedir campeões para me
ajudarem», respondeu Bress,
«pois é minha pretensão
reconquistar o país pela
força.» «Se em tempo de paz
não conquistaste o teu país,
não será pela força que
conseguirás conquistá-lo.
Temos de ter uma conversa.»

Então, ele levou Bress à


presença do pai, Indech, rei
dos Fomore.

309
0 rei convocou os nobres e os
campeões entre os quais se
destacava Balor, filho de Net,
que tinha um olho maléfico.
Estudaram a situação e
concluíram que, a menos que
o trono da Irlanda fosse
devolvido a Bress, filho de
Elattia, eles perderiam todos
os privilégios que lhes
advinham de tributarem
impostos às tribos de Dana.
Os Fomore reuniram por isso
uma multidão de homens de
todas as ilhas e decidiram
partir para a Irlanda. Aí
chegados, os cobradores de
impostos reclamariain o tributo
devido e, se os homens de
Dana se recusassem a pagar,
iniciar-se-ia uma guerra contra
eles. E foi assim que a Irlanda
viu aproximar-se um exército
poderosíssimo e temível,
como jamais se vira.

310
Entretanto, os nobres e os
campeões das tribos de Dana
tinham-se reunido à volta do
seu rei Nuada do Braço de
Prata, no palácio real de Tara.
Sabendo que Bress os trairia e
que iria pedir auxilio aos
Fomore, tinham decidido
preparar-se para combater
aqueles inimigos cruéis C
impiedosos. A reunião
decorria na casa real,
enquanto o porteiro se
mantinha vigilante no exterior
da fortaleza.”’

Ora, ao perscrutar o horizonte,


ele viu um exército que,
avançando pela planície,
vinha direito para a fortaleza.
Um jovem destacava-se à

frente do exército, parecendo


exercer um ascendente sobre
os seus companheiros. 0 rosto
brilhava-lhe como a luz do sol,

311
e as suas feições muito
amplas resplandeciam como
ouro. Vinha montado num
cavalo cuja crina era tão bela
como as ondas do mar e que
avançava tão rapidamente
conio a nortada fria e cortante
da Primavera. Envergava uma
armadura cintilante e na
cabeça tinha um capacete
belo e sumptuoso que
brilhava, estando ornado com
uma rica pedra preciosa atrás
e outras duas à frente. Trazia
também uma espada
maravilhosa, que matava
quem quer que por ela fosse
ferido, e que tomava fraco
como uma mulher em trabalho
de parto quem quer que a
visse reluzir no ardor da luta.”,

Destacando-se dos
companheiros de armas, o
jovem avançou para o
porteiro. «Quem és tu?»,

312
perguntou-lhe este.
«Chamam-me Lug do Braço
Longo. Sou filho de Cian, filho
de Diancecht, e de EtImé, filha
de Balor das ilhas que ficam
para lá do nevoeiro. Fui criado
por Tailtiu, filha de Maginor,
dos Fir Bolg.»

«Muito bem», disse o porteiro,


«e que desejas tu, filho de
Cian?» «Quero dirigir-me à
assembleia dos nobres e dos
campeões das tribos de
Dana», respondeu Lug. «Isso
era bom», disse o porteiro,
«mas fica a saber que
ninguém é admitido na
assembleia da casa real de
Tara se não possuir o dom de
uma arte, seja ela qual for. 0
que é que tu sabes fazer?»
«Muitas coisas... Sei construir
vigas para o tecto das casas e
edificar paliçadas ao redor das
fortalezas.» «Não duvido da

313
tua arte, mas nós já temos um
carpinteiro. Chama~se
Luchté, é filho de Luachaid, e
serve-nos perfeitamente
sempre que queremos edificar
entrincheiramentos ou
construir vigas no tecto das
casas.» «Eu também sou
capaz de forjar relhas do
arado e armas com pontas
bem afiadas», replicou Lug.
«Sei bater o metal quando ele
sai da forja e talhar os objectos
à minha maneira.» «Não
duvido das tuas
capacidades», retorquiu o
Porteiro, «mas já temos um
ferreiro que se chama
Goibmu, que é inigualável nas
artes do metal.» «Eu também
sou um campeão imbatível no
campo de batalha», disse Lug.
«Pois que isso te faça bom
proveito! », exclamou o
porteiro, «mas nós já temos
um campeão que se chama

314
Ogiria. Sozinho ele é capaz de
vencer em combate uma
centena

l’ Segundo a narrativa de A
segunda batalha de Mag-
Tured, primeira versão.

2, Trata-se de Lug do Braço


Longo, o Artesão-Múltiplo.
Esta descrição muito «solar» e
feérica da Personagem foi
tirada da narrativa Sort des
enfants de Tuirenn.

315
de homens armados.» «Eu
também sou tocador de
harpa», insistiu Lug, «e sei
provocar alegria, tristeza e
sortolência.» «Quanto a isso»,
objectou o porteiro, «ternos
também quem nos satisfaz.
Craffine e o nosso tocador de
harpa e, além disso, o nosso
protector Dagda possui uma
harpa mágica com a qual é
capaz de provocar todos os
estados de espírito. A harpa
sai por ela própria da parede a
que está encostada e,
espontaneamente, vem parar
às mãos de Dagda. Como vês,
não precisamos de ti nesta
assembleia real.» «Além disso
sou poeta e contador de
histórias», disse Lug.
«Conheço as histórias de
tempos passados, e sou
capaz de as contar a quem
quer que peça para as ouvir.
Sou a memória viva das tribos

316
de Dana e de todos os povos
do mundo.» «Nós já temos um
poeta, Cairpré, filho de Etame.
Ele conhece tudo o que
aconteceu no mundo desde a
sua criação, e tem o dom de
contar os

1
1

acontecimentos. Se queres
que te diga, não sei o que
poderias fazer por Z:I

nós.» «Mas também sou


feiticeiro», insistiu Lug.
«Conheço os feitiços que são
necessários para congelar as
fontes, impedindo a água de
fluir, e para evitar que os
homens ouçam o tumulto do
combate. Conheço os
sortilégios que desencadeiam
as tempestades e que fazem
com que as brumas avancem

317
para os inimigos.» «Também
nesse particular», replicou o
porteiro, «nós estamos melhor
servidos do que qualquer
outro povo. Temos entre nós
diversos sábios e feiticeiros
que conseguem dominar o
vento, a chuva, o mar e a terra.
Temos também três magas,
Bobdh, Macha e Morrigane,
que são as filhas de Errimas.
As três têm o dom de lançar
feitiços durante os combates e
de fazer com que caia chuva
de sangue sobre os inimigos.»
«Está bem ... », insistiu Lug,
«mas eu sou médico e possuo
a arte de sarar as feridas
sofridas em combate.» «Tu de
nada nos servirias»,
respondeu o porteiro, «pois
temos o mais dotado médico
do mundo. Chama-se
Diancecht, e tanto o seu filho
como a sua filha são capazes
de fazer prodígios.» «Sou

318
também copeiro real», disse
Lug. «Num festim sou capaz
de distribuir a cerveja e o
hidromel por todos os
assistentes e de acordo com a
categoria e o valor de cada
pessoa.» «Nós não
precisamos de ti para nada»,
ripostou 0 porteiro, «pois entre
nós existe um copeiro real que
não tem ninguéti, igual no
mundo. Ele serve a cerveja e
o hidromel com sabedoria, e
sem melindrar seja quem for.
Podes ver, portanto, que há
entre nós homens de arte e de
ciência, homens e mulheres
que conhecem todos os
segredos do mundo.» «Pois
bem! », disse Lug, «vai falar
com o teu rei e pergunta-lhe se
conhece alguém que reuna
numa só pessoa todas as qua-

lidades que eu acabo de te


enunciar. Se a sua resposta

319
for afirmativa, eu renuncio a
entrar na casa real de Tara.»

Então 0 porteiro entrou na


fortaleza e dirigiu-se à casa
onde à volta do rei Nuada do
Braço de Prata estava reunida
a assembleia de nobres e de
campeões das tribos de Dana.
«Rei supremo», disse ele, «já
fora, à entrada da fortaleza,
está um jovem guerreiro que
diz chaniar-se Lug, filho de
Cian, e que se diz perito em
todas as artes que se praticam
nesta casa. Nunca vi nada
parecido: é um homem que
sabe fazer tudo e que é um
Artesão-Múltlplo.’)

Então, Nuada pediu ao


porteiro para ir buscar o
iogo de xadrez de Tara e para
fazer uma partida com o jovem
guerreiro. 0 porteiro disputou
um jogo de xadrez com Lug, e

320
este ganhou a partida. Sem
perda de tempo, o porteiro foi
informar Nuada e os chefes
das tribos de Da’do.

na sobre o ocorri

«Fá-lo pois entrar na casa


real», disse Nuada, «pois
i amais ouvi falar em alguém
que seja capaz de tantos
prodígios.»

0 porteiro foi então chamar


Lug e fê-lo entrar na fortaleza,
elicami~ nhando-o depois
para a casa onde estava
reunida a assembleia. Aí
chegado, Lug tomou lugar no
assento reservado aos
sábios”), pois, como era
evidente, ele era a pessoa
mais sábia que alguma vez
estivera na presença dos
nobres e dos campeões das
tribos de Dana.

321
Entrementes, Ogina foi buscar
a grande pedra que se
encontrava no exterior da
casa, e que só podia ser
levantada com o esforço de
vinte e quatro homens;
arrastando-a através da casa,
depositou-a aos pés de Lug,
sendo lançado um desafio a
este. Ora, o jovem guerreiro,
sem pronunciar uma palavra,
ergueu~se, agarrou a pedra, e
com um único movimento
levantou-a na vertical,
fazendo-a depois retomar o
lugar onde estivera.

«0 jovem guerreiro que toque


harpa!», disse então Dagda.
«Precisamos de música para
ficarmos em boa forma.»

Lug segurou a harpa de


Dagda que estava encostada
à parede e,

322
1. Em gaélico, «Samildanach,
um dos numerosos epítetos
de Lug. Esta personagem
divina, cornum ao conjunto do
mundo celta, está com efeito
«para além das funções», ou
seja, reúne em si todas as
funções atribuídas à divindade
única que parece ter sido a
dos celtas. Trata-se do
«Mercúrio» gaulês de que fala
César nos seus comentários,
deus que, segundo o
Procônsul, era o mais
venerado e aquele a quem
foram consagrados mais
simulacrum,
2. OU, dito por outras
palavras, pilares de madeira
ou de pedra.

Trata-se de um protótipo do
célebre «Assento Perigoso»,
que, na Távola Redonda, está
reservado apenas a

323
predestinados.

324
dirigindo-se à assembleia,
tocou com tal perfeição uma
música sonolenta que todos
dormiram um dia inteiro,
desde aquela hora até mesma
hora do dia seguinte. Depois
tocou uma música que fazia
rir, e todos ficaram alegres e
bem dispostos durante muito
tempo. Por fim, tocou uma
música triste, e todos
mergulharam numa profunda
angústia durante a noite e até
à mesma hora do dia seguinte,
lamentando-se e
choramingando.

Quando Nuada do Braço de


Prata chegou à conclusão de
que o jovem guerreiro possuía
poderes que ninguém mais
tinha, ponderou um momento
e pensou que talvez Lug
pudesse libertá-los do jugo
dos Fomore que oprimia as
tribos de Dana. Consultou os

325
nobres destas tribos e, a seu
conselho, levantou-se do seu
assento e pediu ao jovem
guerreiro para nele se sentar.
Lug do Braço Longo sentou-se
então no assento real, embora
não fosse rei, e Nuada ficou de
pé diante dele treze dias e
treze noites. Depois disso, o
rei foi encontrar-se com
Dagda e Ogiria para lhes dizer
em segredo que era
aconselhável confiar a Lug,
filho de Cian, a chefia da
guerra que iam travar contra
os Fomore. Ogina e Dagda
aprovaram a ideia e foram da
opinião de que Lug deveria ter
a última palavra sobre o modo
como o combate devia ser
travado. Foram então reunir-
se com ele para o
consultarem.

Após reflectir durante alguns


instantes, Lug perguntou ao

326
ferreiro Goilmiu que contributo
ele lhes poderia dar. «Não te
preocupes», respondeu
Goibrtiu. «Podem os homens
da Irlanda estar em guerra
durante sete anos, e por cada
ferro do dardo que saia da
haste, ou por cada espada que
se parta, eu substituirei a peça
em falta. Qualquer ponta de
armamento que saia da minha
for a será de tal modo eficaz
que o corpo em i

que penetrar perderá todo o


vigor. Nem o ferreiro dos
Fomore será capaz de tal
artifício. Pela minha parte,
estou pronto para a batalha, e
darei todo o apoio a todos os
que estiverem em apuros.» «E
tu, Diancecht», retomou Lug,
«que podes fazer por nós?»
«Não te preocupes: saberei
cuidar de todos os feridos e de
os recuperar para as batalhas

327
seguintes, a menos que os
matem ou lhes cortem as
goelas.» «E tu, Credné»,
perguntou Lug ao artíficie do
bronze, «que grande
contributo nos poderás dar na
batalha?» «Não te preocupes:
fornecerei rebites de dardos,
punhos de espadas, bocetes e
guarnições de escudos.» «E
tu?», dirigiu-se Lug ao
carpinteiro, «que grande
contributo nos poderás dar,
frente aos Fomore?» «Não te
preocupes: fornecerei a todos
os escudos e as lanças de
madeira de que precisarem, e
substituirei instantaneamente
as armas que ficarem
danificadas no ardor do
combate.» «E tu,

Ogiria?», interrogou então Lug


o campeão, «o que farás na
batalha contra os Fornore?»
«Não te preocupes: fazendo

328
recuar o rei dos Fomore e três
novenas dos seus guerreiros,
farei com que os homens da
Irlanda fiquem desde logo com
um terço da vitória ganha.
Nenhum inimigo conseguirá
resistir aos golpes que eu
infligir.» «E tu, Morrigane»
dirigiu-se Lug à maga, «que
grande contributo será o teu
nesta batalha?» «Não te
preocupes: tudo o que eu
quiser alcançarei, graças ao
poder dos ineus feitiços. A
minha arte aterrorizará de tal
modo os Fomore que a planta
dos seus pés ficará branca, e
os seus campeões morTerão
uns a seguir aos outros devido
à retenção da urina. Quanto
aos outros guerreiros, fá-los-ei
ter tanta sede que ficarão
enfraquecidos, e farei com
que todas as fontes fujam
deles de modo a não poderem
matar a sede. E enfeitiçarei as

329
árvores, as pedras e as
elevações de terra de tal modo
que, confundindo-as com
contingentes de homens
armados,(” os inimigos nelas
se perderão cheios de terror e
de pânico. «E tu, Cairpré, tu
que nos encantas os ouvidos
com os teus cantos
melodiosos», interrogou Lug o
poeta, «que surpresa
agradável nos reservas nesta
batalha?» «Não te preocupes:
frente às hostes dos Fomore
cantarei a glória dos nossos
pais, os filhos de Nemed.
Depois enfeitiçá-los-ei e
lançar-lhes-ei o glam dicin”1
mais poderoso que alguma
vez existiu na Irlanda. Desse
modo a honra dos Fomore
cairá por terra e eles não
resistirão à investida dos
nossos, o que, podes crer,
Lug, filho de Cian, sem dúvida
se deverá à magia da minha

330
arte».

Então, Lug do Braço Longo


virou-se para os diruidas que
se encontravam na
assembleia e perguntou-lhes:
«E vós, druidas das tribos de

1. 0 tema das «árvores que


combatem» encontra-se em
toda a tradição celta,
inclusivamente na recolha
feita por Tito Lívio na sua
História Roinana, embora ele
a apresente sob uma forma
racionalizada. Ver J. Markale,
Le Druidisme, nova edição,
Paris, Payot, 1994 (capítulo
sobre «o visco e o ritual
vegetal»).

2. 0 glam dicin é a maldição


suprema utilizada pelos
druidas. É um feitiço mágico
acessível a todos os membros
da classe sacerdotal, e

331
portanto também aos poetas e
a fortiori aos druidas
propriamente ditos, adivinhos
e mágicos de toda a espécie,
assim como aos heróis ou
heroínas que mais se
destacam. Tem algo de
comum com o não menos
poderoso geis, às vezes
traduzido incorrectamente por
tabou, e que é uma obrigação
mágica - e social itriposta a um
indivíduo. Aquele que, por um
motivo qualquer, recuse um
geis é rejeitado pela
comunidade; mas aquele que
seja atingido por um glam dicin
não tem outra saída senão
sofrer passivamente o feitiço.
Parece que, após a
cristianização da Irlanda - ao
menos a crer na tradição
hagiográfica - um certo
número de padres e de
monges praticaram uma forma
atenuada do glam dicin contra

332
não cristãos ou contra
indivíduos culPados de um
grande mal, em geral de
natureza religiosa.

333
Dana, que proezas fareis
durante a batalha?» «Não te
preocupes: desencadearemos
tantas tempestades e tantas
chuvas de fogo sobre os
Fomore que eles nem serão
capazes de levantar a cabeça
e sucumbirão às mãos dos
vigorosos guerreiros que
investirão contra eles. E se
isso não for suficiente,
faremos desaparecer as
fontes, os rios e os lagos da
Irlanda para que os Fomore
não possam saciar a sede que
lhes secará as gargantas
durante a batalha. Essas são
as proezas que faremos, ó
sábio Lug do Braço Longo,
filho de Cian.» «E tu,
Craftiné», continuou LuzeD,
dirigindo-se ao harpista, «que
feito porás em prática nesta
batalha?» «Não te preocupes:
tocarei músicas e melodias
tão doces aos nossos

334
guerreiros que eles
mergulharão num repousante
sono até à manhã seguinte.
Depois disso, irei combater e
matarei o maior número de
inimigos possível.» «E tu,
Bobdh Derg, filho do valente
Dagda». prosseguiu Lug,
«que podemos esperar de ti?»
«Não te preocupes: ire’
combater e logo na minha
primeira investida farei com
que caiam a meus pés, vítimas
dos meus golpes, mais de
uma centena de guerreiros
Fomore. E não deixarei de os
perseguir para os eliminar e
para Os matar até ao último
dos seus homens.» «E tu,
Dagda, o mais sábio de nós
todos», continuou Lug, «que
proezas nos reservas durante
a batalha contra os Fomore?»
«Não te preocupes: tomarei a
dianteira dos homens da
Irlanda e serei o primeiro a

335
avançar contra os guerreiros
que nos vêm fazer frente.
Bater-me-ei contra eles com
tal vigor que arrasarei, corri
sortilégios e com armas, todos
aqueles que tentarem resistir.
Os ossos dos meus
adversários transformar- se-
ão em migalhas de tanto eu
lhes bater com a minha
moca1`, e as migalhas serão
dispersas parecendo saraiva
pisada pelo casco dos cavalos
depois de uma tempestade.
No auge da batalha, mesmo
se estiver cheio de chagas e
de feridas, eu não vos
1 1

faltarei com a minha


assistência e a minha
protecção.» «E tu. Marianann,
filho de Uir. senhor das ilhas
distantes», perguntou Lug,
«que grande C,

336
feito realizarás na luta contra
os Foniore?» «Não te
preocupes: agitarei

1. A moca de Dagda é célebre


na tradição irlandesa. Outro
texto explica que, ao bater
noutro homem com uma ponta
da moca, Da-da matava-o, e
se lhe batesse com a outra
ponta da Z

moca, ressuscitava-o. Isto


tinha que ver com a
ambiguidade deste «Bom
Deus», como ele se chamava.
Parece que Dagda poderá ser
identificado com o «Deus do
Maço» frequentemente
representado na estatuária
galo-romana e que, com o
epíteto frequente de Sucellos,
ou seja, «Soco Duro», é
provavelmente um outro
aspecto do Taranis gaulês,
que personifica o trovão. A

337
imagem de Dagdu com a
moca é muito frequente no
misterios0 «Homem
Selvagern», rústico a quem
obedeciam os animais
selvagens e que se encontra
em diversos contos populares,
assim como em romances do
ciclo arturiano.

tão habilmente o meu manto


entre os Fomore e os nossos
herois que os ForrIore nem se
lembrarão da razão que os
levou até à planície.»01

por fim, Lug virou~se para


Nuada do Braço de Prata. «E
tu, Nuada», dirigiu-se-lhe ele,
«rei supremo da Irlanda, que
proeza irás protagonizar na
batalha contra os Fomore?»
«Não te preocupes»,
respondeu Nuada. «Na
qualidade de vosso rei estarei
entre vós, mas não

338
combaterei. Estarei no entanto
em condições de dar de comer
a todos os guerreiros que
estarão sob a tua chefia, e não
deixarei que a fome ou a sede
se instalem entre eles
enquanto durar a batalha.»

Foi assim que. lia casa real de


Tara, no meio de uma
assemblela de nobres e de
chefes das tribos de Dana,
Lug do Braço Longo, filho de
Cian, falou com todos eles na
intenção de preparar a grande
batalha que tinha de ser
travada para acabar com a
escravidão imposta pelos
Fomore. E o discurso que ele
fez perante todos foi de tal
modo convincente, que o seu
espírito mais parecia o de um
rei ou de um príncipe. Passou-
se isto uma semana antes da
festa de Samain. (2)

339
Findo isto, Lug separou-se
daqueles nobres e chefes das
tribos de Dana e marcaram um
encontro para a véspera de
Samain. Mas, antes de deixar
a assembleia, Lug, pediu a
Dagda para que estivessem
atentos a chegada dos
Fomore, que deveria ser
retardada o mais possível de
modo a que o combate
pudesse ser preparado com
todas as cautelas. E Dagda
prometeu a Lug satisfazer o
seu pedido, pois ele era o
protector das tribos de Daria e
devia, acontecesse o que
acontecesse, velar pela
protecção do seu povo.(”

1. 0 manto mágico de
Mananann também é célebre
na tradição celta: é um objecto
mágico que faz com que se
esqueçam alguns dos
acontecimentos mais

340
recentes. A personagem de
Mananann, pouco
referenciada nas narrativas
que dizem respeito ao
estabelecimento das tribos
de Dana na Irlanda, anha
destaque depois da partilha da
ilha entre as tribos de Dana e
os filhos de Milé, ou seja, os
GaéIs [Gaélicos em português
- N. T.], pois ele tornar-se-á o
rei supremo do «povo
feérico», dito de outro modo,
as gentes das tribos de Dana
que residem nos «sidhs», os
grandes Tumulms
megalíticos.

2. A grande festa ceita do


início de Novembro. Note-se
que todas as batalhas épicas
se travam sempre por ocasião
das festas celtas, mormente a
«Beltaiiie», no início de Maio
(chegada das tribos de Dana),
ou a «Lugnasad», no princípio

341
de Agosto. Significa isto que
as batalhas grandiosas são
sobretudo simbólicas e
referem-se a rituais religiosos
muito anti-
90s, assinalados pela
mudança de tendências ou
pela substituição de
soberanos.

3. Segundo a narrativa de A
segunda batalha de Mag-
Tured, primeira versão, com
alguns Pormenores retirados
da versão posterior. Esta,
diferente da primeira,
encontra-se no matruscrito 24
P 9 da Academia Real
Irlandesa de Dublin e foi
publicada por Brian O’Cuiv em
Dublin, em 1945. A única
tradução actualmente
existente é a francesa, de Ch.-
J. Guyonvare’h, Textes
mythologiques irlandais,
Rennes, 1980.

342
C a p í t LI 1 0 1 V

agda mandara construir uma


casa no norte, no vale de Etin.
E como ele combinara
encontrar-se aí com uma
mulher, não se demorou em
Tara, partindo apressado para
norte de forma a estar em
casa no dia e à hora que havia
combinado.

Perto de casa, à entrada do


vale, corriam dois ribeiros, um
para oeste, na direcção de
Connaught, e o outro para
norte, em direcção ao UIster.
À chegada, Dagda viu a
mulher a lavar-se, banhando
delicadamente o pé direito no
ribeiro que corria para
Connaught e o pé esquerdo no
que corria para o Ulster. Esta
mulher era nem mais nem
menos do que Morrigane, filha
de Eminas, a maga das tribos

343
de Dana.

Ora, ao observar o espanto de


Dagda por vê-Ia lavar os pés
em dois ribeiros diferentes, ela
disse: «Não te admires. Assim
eu envio os meus sortilégios
para Connaught e para o
UIster, pois será na
confluência destas duas
províncias que se travará a
batalha contra os Fomore.»
«Podes vir falar comigo por
um momento?» perguntou
Dagda. «Não é altura para
Isso», disse MorrIgane.
«Parece-me que temos outra
coisa a fazer, como ficou
combinado.» «Está bem»,
disse Dagda, «Mas foi a teu
pedido que marquei o
encontro aqui. Porque é que
temos sempre de nos
encontrar em segredo, às
escondidas de todos, sem o
conhecimento dos homens

344
das tribos de Dana?» «Tu
sabes perfeitamente que eles
”0 suportariam saber que
estou em tua companhia. Se o
soubessem, teriam um ciúme
mortal que se abateria sobre
ti.» «No entanto», disse
]1agda, «eu não sou o único
homem que tem a honra de se
poder encontrar cOntigo.» «É
verdade, Dagda, mas
ninguém o deve saber. Pois,
aos

345
olhos dos homens das tribos
de Dana, eu sou livre, e todos
esperam ser desejados por
mim. Haveria muitos corações
destroçados e inconso, láveis
se os meus encontros fossem
conhecidos.»

Saindo então do ribeiro que


corria para o Ulster, Morrigane
avançou para Dagda. Trazia
consigo um vestido vermelho
cor de sangue, C nove tranças
saiam da sua cabeleira.
«Desata os meus cabelos»,
disse ela. Dagda pegou nas
tranças, desatou-as uma a
uma, e a cabeleira de
Morrigane, que era negra
como as penas do corvo, caiu
sobre os ombros e escorreu
ao longo do corpo até roçar ao
de leve na cintura.
Estendendo-se na relva,
chamou-o: «Agora vem.»

346
Dadga deitou-se a seu lado e
ela apertou-o contra as suas
coxas. Aquele lugar onde eles
se uniram chama-se agora
Leito do Casal. Terminado o
acto, Dagda levantou-se e
disse: «Vou deixar-te, pois
tenho a missão de identificar o
lugar onde estão
estabelecidos os Fomore,
devendo depois retardá-los o
mais possivel para que as
tribos de Dana se possam
preparar para a batalha.» «Eu
posso ajudar-te», disse
Morrigane. «Estás a ver o
bando de pássaros negros
que voam por cima das
nossas cabeças? Eles vêm de
leste, e se voam na direcção
do sol poente, é porque um
terrível exército os assusta.
Não é difícil perceber de onde
eles vêm, tão desnorteados:
vêm da planície de Scene,
Junto ao Woral. Foi aí que os

347
Fomore desembarcaram em
massa e é aí que estão as
suas hostes.» «Nesse caso,
vou à planície de Scene»,
disse Dagda. «Observarei os
seus movimentos e verei o
que posso fazer para lhes
retardar a expedição. E tu, o
que vais agora fazer?» «Em
primeiro lugar, vou esperar por
um momento propício»,
respondeu Morrigane, «depois
intrometer-me-ei entre os
Fomore e pedirei para ver o
rei. Deixar-me-ão passar
porque sou uma mulher bela e
atraente, e entrarei na tenda
do rei Indech. Quando ele
quiser saciar os seus desejos
cornigo, farei com que o seu
coraçao se Parta e os seus
rins se diluam em sangue.
Nessa altura, irei mostrar os
restos do rei às tribos de Dana
e, tomando conhecimento de
que os Fomoré perde~ ram o

348
rei, elas partirão para a
batalha com uma coragem
acrescida.»(1)

Nisto, Dagda separou-se de


Morrigane e dirigiu-se
directamentepara a planície
de Scene. Chegado aí, ficou a
observar demoradamente

1. Morrigane, filha de Étrange


(Ernmas), é uma personagem
extremamente misteriosa. É a
imagem arcaizante de uma
deusa da guerra, da
sexualidade e da magia,
estando estes três domínios
indubitavelmente associados
à tradição celta em que os
guerreiros recebeu, du ma
mulher a iniciação sexual,
mágica e guerreira (por
exemplo, Perceval, com as
feiticeiras de Kaerloyw no ciclo
do Graal). Mas Morrigane
apresenta aqui o seu aspecto

349
mais ter-

a actividade dos Fomore, e


depois decidiu ir ao encontro
dos guardas pedindo-lhes
para falar aos Fomore sobre
as convençoes que deveriam
ser respeitadas na batalha.

Conduziram-no então à
presença de Indech, rei dos
Fomore que o recebeu com
deferência, pois sabia que
Dagda era um sábio entre os
honiens de Dana. Falaram
sobre o lugar onde deveria
decorrer a batalha e do dia em
que ela se deveria iniciar.
Depois, o rei, querendo tratar
o hóspede com todas as
honras, ordenou aos criados e
aos cozinheiros que lhe
dessem de comer.

Os Fomore começaram por


lhe dar a beber grandes

350
quantidades de cerveja e de
hidromel, podendo ele saciar-
se à sua vontade. Depois
prepararam-lhe uma papa de
farinha pois sabiam que era
um alimento da sua
preferência, mas ao fazê-lo,
tinham em mente troçar dele e
pôr a nu a sua gulodice. Para
o satisfazerem encheram
então o caldeirão do rei que
era muito grande, cabendo
nele cinco homens fortes, com
leite fresco, farinha e banha,
em idênticas proporções. E
como isso não era suficiente,
deitaram para dentro do
caldeirão cabras, carneiros e
porcos que cozeram com a
papa de farinha. Depois, como
era impossível comer de uma
vez toda a comida do
caldeirão escaldante, fizeram
uma cova no solo e deitaram
para lá tudo o que ele
continha.11

351
Quando Dagda viu a refeição
que lhe tinham preparado,
começou por se queixar
dizendo que não estava
habituado a ser servido
de forma tão rude e altiva. Mas
o rei dos Fomore foi ter com
ele e ameaçou-o de morte se
não comesse tudo o que
estava na fossa. Segundo ele,
desse modo Dagda não se iria
queixar de que os Fomore não
sabiam tratar bem os seus
hóspedes.

rífieO, fazendo lembrar


claramente a Judite bíblica, e
sobretudo Kali, a Negra, da
tradição indiana, deusa da
vida e da morte, que muitas
veze 1s é representada como
a castradora por excelência.
Além disso, impõe-se uma
comparação muito óbvia entre
ela e a fada Morgana das

352
narrativas arturianas, mesmo
tendo ela perdido alguma da
sua rudeza primitiva e tendo-
se tornado uma espécie de
símbolo sexual.

I. Por trás de uma farsa de


mau gosto, o episódio tem por
base uma certa realidade.
Achados arqueológico .1
. antropológicas provaram
que os homens da Idade do s
e experiencias

]Bronze e depois do Ferro


possuíam uma espécie de
cozinha ao ar livre. Cavava-se
uma fossa que se cobria com
tábuas ou pedras secas e na
qual, depois de ela ter sido
enchida com água, se
mergulhava a caça envolvida
em palha e temperada com
aromas e alho selvagem.
Depois j .untavam-se pedras
aquecidas numa fogueira de

353
modo a cozer os aliMernos a
uma temperatura moderada,
prática que a todos os níveis
está em conformidade com a
dietética moderna.

354
Percebendo que não poderia
recusar, Dagda pegou na
colher, que era de tal maneira
grande que um homem e uma
mulher se poderiam deitar ao
fundo dela. E cada colherada
que ele tirava da fossa
obrigava-o a devorar meio-
porco, um pernil de ovelha ou
de cabra.”’

«Que saborosa deve ser a


carne, se o cheiro não me
engana ... », disse Dagda. E
pôs-se a comer deliciando-se
com as papas de farinha e a
carne. Os Fomore
observavam-no cheios de
curiosidade, e troçavam do
modo como ele devorava o
conteúdo da sua colher.
Quando repararam que ele
rapava o fundo, por não estar
ainda satisfeito com tudo o
que havia dentro da fossa,
ficaram embasbacados, pois

355
nunca tinham visto ninguém
com tanta gula.

Entretanto, Dagda sentia-se


entorpecido, estando a sua
barriga tão curva como o
maior caldeirão que alguma
vez existira na casa do rei.
Deitou-se no chão e não
tardou a adormecer, enquanto
os Fomore à sua volta não
paravam de se rir e de se
divertir à sua custa. Diziam
eles: «Se todos os heróis das
tribos de Dana são como este,
como é que nos havemos de
espantar que eles não nos
queiram dar o trigo e o gado
que, na qualidade de
vassalos, nos devem?» E
acrescentavam: «Pelo que
estamos a ver, será para nós
uma brincadeira vencê-los
pelas armas!» Por fim Dagda
acordou, não sabendo onde
estava. Ao ver que os Fomore

356
troçavam dele, ficou furioso.
Estava tão entorpecido que
preferiu não dar troco à
zombaria deles. Depois de se
despedir, começou a
caminhar para a assembleia
de Tara para contar o que vira
e a experiencia por que
passara.

Mas a barriga estava tão


grande que lhe era difícil
caminhar, tendo de parar
várias vezes. Estava com um
aspecto deplorável, pois a
saliência das nádegas
aparecia à mostra por baixo da
túnica, e o seu membro viril,
que era comprido, estava
perfeitamente escancarado.
Arrancara um ramo duma
árvore e servia-se dele como
se fosse uma bengala, inas
era tanta a força com que se
apoiava nele que ia deixando
atrás de si uni

357
1.

risco profundo que daria para


traçar a fronteira de uma
provincia.

1. Aqui transparece o aspecto


gargantuesco de Dagda. É um
gigante que carrega uma
rnoca, sexualmente insaciável
e incrivelmente glutão.
Representa o poder de
absorção atribuído à
divindade, traço de
personalidade que se
encontra bem evidente nos
Gargantua e nos Pantagruel,
os quais, antes de serem os
heróis de Rabelais, eram
personagens divinas tornadas
folclóricas. Gargantua vem a
ser o gigante Gwrgwnt das
antigas lendas ceitas,
significando o seu nome «da
perna curva». Quanto a

358
Pantagruel, é uma espécie de
demónio medieval que enche
de sede os seus inimigos
atirando-lhes sal. 0 Dagda
irlandês é uni dos aspectos
que toma esta personagem
saída da mais remota
mitologia.

Quando estava a chegar a um


vale, viu uma jovem a lavar-se
num ribeiro. Como ela era
muito bela, com tranças na
cabeça e formas muito
atraentes, encheu-se de
desejo por ela. Disso se
apercebendo, a rapariga não o
rejeitou, e deitaram-se na
erva, perto do ribeiro. Apesar
disso, Dagda estava tão
pesado que não conseguiu
unir-se à jovem, que se ergueu
e fez troça dele.

Furioso e com ímpetos


violentos, Dagda quis bater na

359
insolente, rnas ela furtou~se e
começou a correr. Dagda
levantou-se com dificuldade e,
percebendo que não poderia
apanhá-la, lançou-lhe pedras,
mas não a atingiu. Então,
enfurecido, jurou vingar-se
massacrando todos os
Fomore que apanhasse pela
frente na batalha, pois eram
eles os culpados pela sua
vergonhosa situação. A
seguir, retomou a marcha em
direcção a casa real de Tara.

Enquanto isto acontecia, os


Fomore, depois de terem
preparado as lanças, as
espadas e os escudos,
reuniram-se à volta do rei,
Indech, cheios de coragem e
de determinação, prontos para
avançarem sobre a planície de
Tured onde tinham combinado
com Dagda travar a batalha.
«Os homens da Irlanda são

360
uns convencidos, por se
atreverem a querer combater
contra nós», disse Indech.
«Tenho a impressão que eles
ficarão reduzidos a migalhas e
que os seus ossos serao
poeira no dia a seguir à
batalha.» «Rei supremo»,
interveio então Bress, filho de
Elatha, «seria bom que
fizéssemos uma última
tentativa para evitar a
confrontação.» «És
cobarde?», gritou Indech.
«Tens medo de medir forças
com os guerreiros das tribos
de Dana?» «Claro que não, rei
supremo», respondeu Bress.
«Se falo assim, é no interesse
de todos. Pelo que me toca,
estarei a vosso lado no
combate e, aconteça o que
acontecer, portar-me-ei como
um rei. Mas se exterminarmos
os homens da Irlanda, esta
ilha ficará deserta e não

361
havera mais ninguém para
cultivar os camPos e para criar
o gado. Que ganharíamos
com isso? As vossas
,i

proprias terras são ilhas no


meio do nevoeiro, e é de todo
o interesse para vos manter os
homens da Irlanda sob o
vosso domínio para que eles
criem riqueza e comida em
abundância. Seria de todo o
interesse para vós que Os
homens da Irlanda, temendo o
vosso poder, permitissem que
eu Voltasse a sentar-me no
trono, pois assim eu poderia
dar-vos o que vos Pertence.»
«Penso que tens razão»,
disse Indech. «Mandemos
uma vin~ tcna de homens à
Irlanda para lhes pedir que
paguem o que nos devem e
que reconheçam Bress como
rei supremo. Se eles

362
aceitarem estas nossas
últimas propostas, se nos
pagarem o tributo, abster-nos-
emos de os

363
combater e voltaremos para
as nossas ilhas. Mas se eles
recusarem, terão de travar um
combate mortal e de
desaparecer desta terra da
qual passaremos a ser os
únicos senhores.»

0 rei dos Fomore deu ordens


para que uma vintena dos
seus homens mais corajosos
e cruéis se preparassem para
partir para Tara com o fim de
reclamar o tributo devido aos
Fomore e de obrigar os
homens de Dana a
reconhecerem Bress, filho de
Elatha, como rei supremo. os
emissários agruparam-se sem
perda de tempo e puseram~se
a caminho, chegando a Tara
pouco tempo depois.”’

Ao ver aquele grupo


impertinente e de mau
aspecto aproximar-se das

364
muralhas da fortaleza, o
porteiro, aterrado, perguntou o
que desejava. Assim que lhe
foi dada uma resposta foi,
apressado, ter com Nuada e
informou-o das pretensões
dos Fomore, que exigiam a
sua parte das colheitas, de
gado e de objectos preciosos,
assim como a devolução da
coroa a Bress, filho de Elattia.

Furioso, Nuada deu um salto e


exclamou: «Vai-lhes dizer que
os filhos de Dana nunca mais
voltarão a pagar tributos aos
Fomore, e
1

Bress, filho de Elatha, nunca


mais será o rei supremo da
Irlanda.» Acrescentou: «Nós
combateremos no dia
combinado na planície de
Tured, e eliminaremos todos
os Fomore, pois eles Dão têm

365
nenhuns direitos sobre esta
terra e nós queremos libertar-
nos da escravidão que nos é
imposta por estrangeiros.
Manda-os voltar para perto
dos seus, e diz-lhes para se
prepararem para sofrerem
uma derrota vergonhosa que
lhes trará toda a infelicidade
do mundo!»

0 porteiro transmitiu a
mensagem, e os Fomore, sem
insistirem, regressaram para
junto das hostes do rei Indech.
Entrementes, apareceu Lug,
filho de Cian. Informado do
que acabara de acontecer e,
tomando conhecimento das
exigências do adversário,
ficou negro de raiva.
«Como?», gritou ele. «Vocês
sofreram durante largos anos
a opressão dos Fomore, que
vos impuseram a escravatura,
e deixaram partir sãos e

366
salvos os mais cruéis e
perversos deles?» «Não
tínhamos alternativa»,
respondeu Nuada. «Eles
vieram na qualidade de
mensageiros e era difi~ cil
impedi-los de voltar para junto
dos seus.» «Mas como me
enfurecem os vossos
escrúpulos!», rugiu Lug.
«Deviam tê-los tomado como
reféns ou tê-los massacrado
para que não pudessem
combater-vos na batalha que
se avizinha. Eu vou persegui-
los e fá-los-ei pagar um preço

1. Segundo a narrativa da
Segunda batalha de Mag-
TÚred, primeira versão.

bem alto pela audácia e pelas


suas pretensões!» «Não faças
isso!», interveio então Cian,
filho de Dianceclit. «Não te
compete a ti, meu filho Lug,

367
perseguir esses malfeitores. 0
teu lugar é aqui, entre os
chefes das tribos de Dana,
que se preparam para travar a
batalha mais violenta que
alguma vez se viu. Serei eu a
ir atrás desse bando
execrável!»

E, antes de alguém poder


reagir, Cian saltou para cima
de um cavalo e este começou
a galopar a toda a velocidade
no encalço dos Fomore. Dois
dos seus irmãos, chamados
Cti e Ceithenn, decidiram
acompanhá-lo para o
ajudarem, mas não
conseguiram apanhá~lo e
dirigiram-se para sul ao passo
que ele fora para norte.
Quanto aos Fom ore,
tinhani um grande avanço e
Cian, desesperado por chegar
perto deles, ia-se consolando
a pensar que, ao menos, os

368
teria pela frente na batalha a
travar na planície de Tured,
podendo aí vingar-se deles.
Arreplou então caminho com a
intenção de entrar em Tara.

Atravessou a planície de
Murthemné e logo viu três
jovens armados a virem ao
seu encontro. Reconheceu
neles, imediatamente, os três
filhos de Tuirenn, que se
chamavam Brian, lucharba

e luchar.

Ora, havia Já muito tempo que


os membros da família de
Diancecht e os da família de
Tuirenti se detestavam,
chegando mesmo a odiar-se
mortalmente. Eram sem conta
as batalhas em que se tinham
confrontado, e onde quer que
se encontrassem, alguns
deles tombavam por terra,

369
embora todos eles fizessem
parte das tribos de Dana e
descendessem de Nemed.
Mas era mais forte a
incompatibilidade entre eles, e
os três filhos de Tuirenn
tinham todos herdado um ódio
feroz pelos membros da
família de Diancecht.

Ora, os filhos de Tuirenn,


tendo visto e reconhecido
Cian na planície de
Murthemné, logo disseram
entre si que tinham ali uma
oportunidade há muito
sonhada para se livrarem de
um filho de Diancecht, já que
ele estava só e indefeso em
frente a três jovens corajosos
e determinados. Também
disseram entre si que, se Cian
perdesse a vida naquela
aventura, fariam recair a
responsabilidade sobre os
Fomore. E decidiram então

370
atacá-lo sem piedade.

Cian compreendera muito


bem as suas intenções e,
percebendo que corria perigo
de vida, murmurou para si
mesmo: «Se os meus dois
irIlIãos estivessem aqui, nós
lutaríamos rijamente e não
teríamos dificuldade em
desembaraçar-nos destes
três. Mas eu não os tenho
comigo, estou só, por isso o
melhor que tenho a fazer é
fugir. Eles que esperem e
iltinca mais me poem os olhos
em cima.» Ao ver-se depois
cercado por

371
uma vara de porcos, não
hesitou e bateu em si mesmo
com uma varinha druídica,
adquirindo então o aspecto de
um porco e começando a
esgaravatar no chão como
faziam os outros porcos. «Que
estranho», disse Brian, filho
de Tuirenn, aos in-nãos.
«Vocês não viram, como eu,
um dos filhos de Diancecht a
atravessar a planície?»
«Vimos, na verdade»,
responderam eles, «e
reconhecemo-lo. E impossível
que tenha desaparecido sem
motivo. Desde que vejo
planícies e vales aprendi a
saber distinguir o que existe
do que não existe. Estou bem
em crer que sei como ele
desapareceu: bateu em si
mesmo com uma varinha
druídica de ouro e
transformou-se num porco,
misturando-se com os desta

372
vara- E, neste mesmo
momento, nas nossas barbas,
ele prepara-se para fugir com
os seus semelhantes.»
«Estamos com pouca sorte»,
disseram os dois irmãos,
«pois esta vara pertence a
uma das tribos de Dana e não
podemos matar todos os
porcos, já que seríamos
censurados por isso. Além
disso, mesmo que o
fizéssemos, é certo que o
porco druídico nos
escaparia.» «Tu não és muito
inteligente», respondeu Brian,
«e vejo que de nada te serviu
a lição que recebemos nas
ilhas do norte do Mundo. Tu
nem sequer és capaz de
distinguir um animal druídico
de um animal natural.»

Quando acabou de pronunciar


estas palavras, Brian bateu
nos seus irmãos com uma

373
varinha mágica e druídica que
trazia sempre consigo, e deu-
lhes a forma de dois cães
muito magros, ágeis e rápidos
que, soltando latidos fortes, se
precipitaram sobre a vara e a
dispersaram. Depois,
investiram sobre um dos
porcos, precisamente aquele
em que se transformara Cian,
e este refugiou-se junto de
uma mata de aveleiras,
esperando não ser visto; mas,
por efeito de artes mágicas,
Brian, adivinhando a sua
intenção, brandiu a sua lança
e bateu-lhe no peito com ela.

«Porque me bateste desta


maneira, sabendo quem eu
era e que estava indefeso?»,
perguntou o porco. «Eis uma
voz humana! », gritou Brian.
«Não me enganei e 1os
meus dois cães druídicos não
derfloraram a reconhecer-te.»

374
«E verdade», admitiu o porco,
«eu era UIII homem antes de
adquirir esta forma. Sou Cian,
filho de Dianceclit. Poupa-me
a vida, suplico-te, e serei teu
criado, ficando ao teu serviço
na batalha contra os Fomore.»
«Juro por todos os espíritos do
ar», gritou Brian, «que se a tua
alma voltasse sete vezes para
o teu corpo, eu a caçaria sete
vezes!» «Então», disse Cian,
«faz-me um favor»«Como
queiras», disse Brian. «Deixa
que eu volte a ter a forma liti-
1

mana». «A vontade», disse


Brian, filho de Tuirenn, «pois
muitas vczes custa~me mais
matar um porco do que um
homem.»

Cian adquiriu então a sua


forma natural. «Enganei-te»,
disse ele, «pois se me tivesses

375
matado na forma de um porco,
o meu filho apenas poderia
reclamar o preço de um porco.
Mas, ja que me queres matar
na minha forma natural, terás
de o recompensar com o
preço de um homern, o que te
ficará multo caro devido à
minha categoria, as minhas
acções e aos meus méritos. E
serão as armas com que me
matardes que servirão de
testemunho da minha morte
ao meu filho.»(’) «Não serás
então morto com as nossas
espadas», disse Brian, «mas
com pedras que apanharemos
do chão.»

E, dito isto, os três irmãos


começaram a fiagelã-lo com
pedras que arreinessavam
violentamente, sem piedade e
compaixão, fazendo do
corpo do herói uma massa
informe e repelente. Cavaram

376
depois uma fossa e
enterraram-no. Mas a terra
não aceitou este assassínio e
atirou o corpo para a
superfície. Os filhos de
Tuirenn enterraram-no uma
segunda vez, mas a terra
voltou a rejeitá-lo. E eles,
enterrando-o seis vezes de
seguida, seis vezes de
seguida a terra o rejeitou. Só à
sétima vez, enfim, o corpo
ficou encerrado dentro da
terra. Então, os filhos de
Tuirenn deixaram a planície
de Murthemné e dirigiram-se
para a planície

(2) onde estava planeado


travar-se a grande batalha
contra os Fomore.

Entretanto, as tribos de Dana


tinham escolhido o seu campo
sobre uma colina que
dominava a planície e de onde

377
se podia vigiar os moviinentos
e os gestos dos Fomore. E
todos os dias havia lutas entre
eles, nãO Participando nelas
nem reis nem nobres, mas
apenas guerreiros muito rijos
e temerários. Os Fomore
estavam espantados com o
infortúnio que sobre eles se
abatera. As suas armas,
fossem dardos ou espadas,
deterioraram-se sem motivo
aparente, e os seus guerreiros
morriam sem que voltassem
no dia seguinte. Em
contrapartida, era o contrário o
que acontecia com as gentes
das tribos de Dana: as suas
armas, quando porventura
sofriam danos, logo
apareciam intactas e refeitas
no dia seguinte, tão poderosas
e mortíferas como antes. 0
grande artífice que tornava
aquilo possível era o ferreiro
Goibilu, que não parava de

378
fabricar espadas, lanças e
dardos, bastando-lhe dar três
pancadas para

Em diversas narrativas
mitológicas ou épicas, as
armas podem falar e fornecer
dados sobre asPcctos que
envolveram o seu uso. Não se
trata de uma ingenuidade,
sabendo-se que a e ’

minologia moderna aplica o


princípio segundo o qual a
arma do crime pode fornecer
2. Pistas e Permitir encontrar o
assassino.

Segundo a narrativa de Sort


(le,y,fils de Tuirenn.

379
fazer o seu serviço. 0
carpinteiro Luclité forjava
hastes também con, três
pancadas, sendo a terceira
para as polir e as inserir no
encaixe da lança ou do dardo.
Quando as armas eram
postas ao lado da forja, ele
lançava os anéis nas hastes, e
já não era necessário ajustá-
las. Quanto ao artífice do
bronze Credné, também
fabricava pregos com apenas
três pancadas, sem ter depois
necessidade de os ajustar. E
os guerreiros que tinham sido
feridos ou mortos em combate
voltavam no dia seguinte para
o seu posto, o que se devia a
Diancecht que, com o seu filho
Oirmiach e a sua filha Airmed,
lançara um feitiço na Fonte da
Saúde. Nesta fonte se
banhavam os homens, mortos
ou feridos, ficando com a
saúde restabelecida logo que

380
dela saíam. Esta fonte chama-
se Lusmag, ou seja, Planície
das Ervas, pois Diancecht a
ela deitou urna haste de cada
erva que crescia na Irlanda.
Há quem sustente, no entanto,
que estas plantas, trezentas e
sessenta e cinco ao todo, são
as que cresceram no túmulo
de Miach, filho de Dianceclit,
assassinado pelo pai devido a
ciúmes, por ter enxertado tão
perfeitamente o braço de prata
do rei Nuada. Airmed, a filha
de Dianceclit, tinha posto
estas ervas no seu manto e
tinha-as lançado na Fonte da
Saúde. Mas Dianceclit,
sempre movido por ciúmes,
tinha misturado tão bem estas
ervas que so ele conhecia a
virtude particular de cada
uma.

Compreendendo por fim o que


se estava a passar, os Fomore

381
encarregaram um dos seus de
ir ver a disposição das hostes
das tribos de Dana e de tentar
descobrir como eles eram
capazes de fazer tantos
prodígios. Coube a Ruadan,
filho de Bress e de Brig, filha
de Dagda, e que, por
consequência pertencia mais
ao clã de Dana do que ao dos
Fomore, ir espiar o campo
adverso. No regresso, ele
contou aos Fomore as
proezas que vira serem feitas
pelo ferreiro, pelo carpinteiro,
pelo artífice do bronze e pelos
médicos reunidos à volta da
fonte, e conflarani-lhe então a
missão de ir matar o ferreiro.

Ruadan pediu a Goibniu um


dardo, ao artífice do bronze
pregos e uma haste ao
carpinteiro, sendo satisfeito o
seu pedido. E, logo que se viu
na posse do dardo, Ruadan

382
voltou-se e atingiu Goibniu
com a arma, ferindo-o
gravemente. Goibniu arrancou
a arina da carne e, voltando-se
para Ruadan, furou-o dum
lado ao outro, entregando este
último a alma ao pai que
estava em frente, no exército
dos Fomore. Brig veio então
chorar o filho, dando primeiro
um grito e lamentando-se
depois. Crê-se que foi nesta
altura que, pela primeira vez,
se ouviram choros e
lamentações lia Irlanda.
Goibniu, por seu lado, foi
mergulhar na Fonte das Ervas
e, reCu-

perando rapidamente,
reapossou-se da forja e
retomou o trabalho.

nt e os Fomore, encontrava-se
um jovem guerreiro chamado
Er 1.

383
octriallach, que era um dos
filhos do rei Indech. 0 jovem
aconselhou os Fomore a
pegarem numa pedra e a
atirarem-na à Fonte das
Ervas, situada a norte do lago
e a oeste da planície de Tured.
Os Fomore dirigirani-se para
ai, um apos outro, e cada um
atirou uma pedra para a fonte
que ficou assim cheia, de tal
forma que não era possível
mergulhar nela. E desde
então, neste lugar, ergue-se
um outeiro a que se chama
Tumulus de Octriallach.

Quando chegou a hora da


grande batalha, os chefes
reuniram~se de Utn. lado e do
outro. Os Fomore saíram do
seu campo e forrnaram
batalhões ínvulneráveis e
indestrutíveis. Fosse um chefe
ou um simples guerreiro,

384
todos envergavam uma
armadura, e tinham um
capacete na cabeça, urna
lança aguçada na mão direita,
uma espada bem afiada à
cintura, e um escudo largo e
sólido aos ombros. Atacar os
Fomore, naquele dia, na
planície de Tured, era como
bater com a cabeça contra
uma rocha, por a rnão num
ninho de vespas, ou ficar
exposto a um fogo ardente.

Os chefes das tribos de Dana


ergueram-se e prepararam-se
para o confronto. Mas, como
Lug do Braço Longo deixara a
casa real, Nuada do Braço de
Prata disse aos que ali
estavam: «Não é conveniente
deixarinos o nobre Lug do
Braço Longo, filho de Cian, ir
combater correndo assim o
risco de ser ferido. Penso que
deveríamos impedi-lo de se

385
envolver na carnifícina.»
«Tens razão», concordou
Ogina, «mas todos nós
sabemos que ele nos poderá
conduzir à vitória. Que nos
poderá acontecer, se ele não
estiver connosco?» «Nada
receemos quanto a isso»,
respondeu Nuada, «os nossos
heróis não têm receio algum
quando estão diante das
armas dos inimigos, e se’ que
eles saberão resistir à fúria
desta raça cruel dos Fomore,
mesmo se Lug não estiver
presente Para nos dar o
exemplo e nos guiar. Seria
mais conveniente que ele fi~
casse resguardado, pois ele é
o nosso estratega e o nosso
mestre cheio de sabedoria.»III
«Mas», disseram os nobres
das tribos de Dana, «Lug
Iluirica aceitará ficar
resguardado.» «Eu vou
revelar-vos um plano»,

386
continuou Nuada do Braço de
Prata, «antes de começarmos
a comba-

Na Primeira versão da
«segunda batalha de Mag-
Tured», não é dada uma
explicação nem urna
justificação para o facto de
Lug ficar resguardado. Em
contrapartida, na segunda
ver~ são, Nuada propõe que
ele fique resguardado por uma
questão de ciúme e por querer
reclaInar só para si a vitória
final.

387
ter, devemos organizar um
grande festim com muita
cerveja fresca , deliciosa para
os campeões. Faremos este
festim em homenagem a Lug
e com ele presente. Ele, cheio
de alegria, beberá em excesso
até ficar bêbedo. E nós, logo
que o vejamos inconsciente,
atá-lo-emos e amarrá-lo-emos
firmemente com correntes de
metal azul aos grandes pilares
plantados na terra que
sustentam a tenda dos festins.
Desse modo, a batalha
decorrerá sem a sua
presença, e não correrá risco
de vida.» «0 teu plano é
sensato e inteligente»,
disseram os chefes das tribos
de Dana, «e concordamos em
pô-lo em prática.»

Assim fizeram. Preparam a


tenda dos festins e reuniram-
se à volta de Lug e de Nuada.

388
Lug bebeu tanta cerveja
espumante e curativa que não
demorou a ficar ébrio e alegre.
Os assistentes tocaram
depois harpa e gaitas de foles,
assim como outros
instrumentos, embalando o
real guerreiro com o excesso
de bebida e com a suave
melodia. Depois, Craftiné
pegou na sua harpa e,
dedilhando as suas nove
cordas, tocou até o jovem
guerreiro ficar em repouso
absoluto, profundamente
adormecido. Então, os nobres
das tribos de Dana
apressaram-se a acorrentar o
herói. Amarraram-no com
firmeza aos pilares bem
presos à terra, sem que ele
disso se pudesse aperceber.
As hostes puseram-se logo
em seguida em andamento,
prontas para combaterem pelo
rei supremo da Irlanda, Nuada

389
do Braço de Prata, tendo
ficado apenas Craftiné, o
harpista, para vigiar Lug do
Braço Longo.

Há muito tempo que decorria o


combate, e era grande o
tumulto quando Lug
despertou. «0 que se passa,
meu amigo Craftlné?»,
perguntou ele. «Como é que
eu estou amarrado a estes
pilares e ouço gritos da
batalha que se desenrola fora
da tenda?» «Não sei»,
respondeu Craffiné. «Com
efeito, também ouço os gritos
dos Fomore e os feitiços de
Morrigane que sobre eles
lança, os sortilégios de que só
ela tem o segredo. E, tal como
tu, ouço Goibinu que bate com
a forja, mas não sei o que se
passa do lado de fora desta
tenda.» «Mentes!», replicou
Lug do Braço Longo. «Tu

390
sabes muito bem que é o
barulho de uma batalha o que
ouvimos. Peço-te, Crafliné,
que me desamarres os laços,
para que eu possa ir à frente
de batalha guiar os nossos
homens à vitória.» «Eu não
tenho a força nem a coragem
suficientes para desatar os
laços, ó Lug», respondeu
Craffiné, «pois foram mãos de
heróis e a força de guerreiros
que te amarraram aos
pilares.»

Então, Lug sacudiu o corpo


com uma tal força e energia
que derrubou os pesados
pilares que estavam presos ao
chão, e em seguida, ape~

nas com Os seus braços


robustos, ergueu as correntes
pesadas e azuis.
1)epois, sem grandes
dificuldades, conseguiu

391
desembaraçar-se delas e
precipitou-se para a porta,
começando a correr para o
lugar onde se defrontavam os
exércitos. 0 alando provocado
pela sua corrida foi tal que não
houve combatente que não
ficasse a vê-lo aproximar-se
com uma mistura de medo e
de espanto. A sua aparência
era tão impressionante que
ambos os exércitos deram um
passo atrás. Então, Lug foi
juntar-se às tribos de Dana e
deteve~se diante de Nuada do
Braço de Prata. «Tu
cometeste um erro terrível, ó
herói real!», gritou ele.
«Pensavas travar a batalha e
libertar a Irlanda sem que eu
pudesse ter uma palavra a
dizer? Foi uma imprudência
terdes iniciado esta batalha
sem terdes tempo para a
preparar. Regressai pois ao
acampamento e esperai pelo

392
sinal que eu vos enviar no
momento que achar mais
apropriado para eliminar a
raça dos Fomore e libertar a
terra da Irlanda dos seus
opressores.»

Então, os chefes e os
guerreiros das tribos de Dana
voltaram ao acampamento,
passando-se a noite sem que
houvesse mais qualquer
escaramuça entre os
guerreiros dos Fomore e os
das tribos de Dana.
Entretanto, Morrigane, filha de
Ertimas, chegara ao campo
dos Fomore e entrara na tenda
de Indech, o seu rei supremo.
E ao sair, nas mãos
manchadas de sangue, trazia
os rins do rei, que exibiu
altivamente aos Fomore para
lhes mostrar que já não tinham
chefe. E, sem perda de tempo,
entrou no acampamento das

393
tribos de Dana.

Na manhã seguinte, Lug do


Braço Longo fez sair os
guerreiros para o campo e
encheu~os de coragem. Disse
aos homens que deveriam
lutar com coragem e que mais
valia morrer do que continuar
a viver debaixo da
escravatura, tendo de pagar
pesados tributos como até ali
tinha acontecido. Depois,
diante de todos os chefes,
nobres e guerreiros, Lug
fechou um olho e, de pé sobre
uma perna, entoou um canto
enquanto circulava por entre
os guerreiros das tribos de
Dana.”’

Os guerreiros de ambos os
lados lançaram um imenso
clamor ao partirem para o
combate. Encontraram-se no
meio da planície de Tured,

394
liunia luta de corpo a corpo, e
um grande número de homens
bravos e ------

I. Trata-se de um canto
mágico - e druídico -
acompanhado de «eircum-
ambulação», de acordo com
um ritual muito antigo. 0 facto
de fechar um olho e de se
aguentar apenas sobre um pé
lembra também uma espécie
de ritual xamânico de êxtase
guerreiro que se encontra no
tema indo-europeu do deus
zarolho (Odhin-wotan, que
deu um dos seus olhos Para
desfrutar da «dupla visão») e
do rei coxo guardião dos
segredos do Outro Mundo (o
Rei Pescador do ciclo do
Graal).

395
generosos logo caíram no
campo de batalha. A
carnificina foi enorn,,, dando
lugar, mais tarde, a imensas
sepulturas neste lugar.
Sentimentos como a vergonha
e o sentido da honra ali se
misturaram à pior ferocidade
que se possa imaginar.
Correram abundantes rios de
sangue na pele branca dos
belos guerreiros que, cortados
pelas espadas, lutavam
encarniçadamente, aplicando
golpes implacáveis com as
suas lanças muito afiladas. 0
fragor da luta foi desmedido,
atirando-se os guerreiros uns
contra os outros com um
grande alarido de lanças e de
espadas. Por todo o lado
ecoava um grande estrondo: o
grito dos guerreiros respondia
ao ruído dos escudos que
embatiam uns nos outros, as
espadas silvavam nos ares

396
indo ao encontro de carne
humana, o estalo das
armaduras misturava-se com
o ruído dos dardos. No choque
brutal dos corpos os membros
superiores misturavam-se
com os inferiores num cenário
infernal. Os heróis caíam uns
a seguir aos outros, e o chão
estava escorregadio sob os
seus pés devido ao sangue
derramado. As cabeças
batiam umas nas outras,
provocando o estalido dos
ossos do crânio e espalhando
os miolos na erva
ensanguentada. E o rio
transportava cadáveres que,
levados pela corrente para os
lagos, aí se amontoavam.

No meio daquela massa


humana, Lug do Braço Longo
semeava a morte e a
destruição. Envergava um
equipamento maravilhoso,

397
desconhecido, que sem
dúvida provinha do País da
Promessa. Tinha uma camisa
de linho, bordada com um fio
de ouro sobre pele branca, e a
túnica, ampla e confortável,
possuía diversas cores. 0 seu
avental muito largo e belo
estava revestido de ouro fino e
possuía franjas, colchetes,
com bordados em prata, tendo
um cinto tão bem guarnecido
que nem a espada mais afiada
do mundo o poderia
trespassar. Lug envergava
também uma armadura em
ouro espesso, com belas
maçãs onde estavam
incrustadas pedras preciosas,
e para se proteger trazia um
largo escudo de madeira
vermelha revestida a ouro.
Nas mãos segurava a espada,
muito longa e fina, escura e
muito cortante; brandia a
lança que tinha ferro

398
envenenado, uma lança larga,
temível, de cinco pontas, da
qual ninguém conseguia
escapar. Mas, sobretudo, ele
trazia consigo a sua moca
usada em batalhas, de ferro
muito sólido, e a sua funda
que lhe permitia arremessar
poderosas bolas de ferro que
nunca falhavam o alvo.

Era de todo este aparato


bélico que se fazia
acompanhar o poderoso
protector do país, o valoroso
Lug do Braço Longo, sempre
pronto a fazer frente a quem
quer que se intrometesse no
seu caminho e a inspirar os
guerreiros das tribos de Dana
com o seu exemplo de homem
forte e

108 C--e-ICI-

poderoso, que nunca vacilava

399
perante os inimigos. Nele se
misturavam a fúria do leão
enraivecido, o bramido das
vagas do mar no momento das
grandes tempestades, e o
ronco do oceano de espumas
azuis e verdes quando se
abatem sobre a areia. E os
guerreiros de Dana seguiam-
no no seu ímpeto feroz, capaz
de fazer estremecer o mundo.

Daí a pouco, Lug do Braço


Longo encontrou-se diante de
Balor, campeão dos Fomore
que era o pai de Ethné, ela
própria mãe de Lug. Balor era
poderoso e temível, e nunca
ninguém o tinha vencido.
Tinha uni olho maléfico, que
só se abria durante os
combates. Nessa altura quatro
homens eram obrigados a
erguer a pálpebra com um
croque bem delicado. Aqueles
que fossem atingidos pelo

400
olhar deste olho não lhe
podiam resistir, ficando
paralisados pelo medo. 0
sortilégio deste olho devia-se
a um feitiço que Balor
recebera quando ainda era
jovem. Os druidas do seu pai
tinham posto a ferver um
caldeirão onde deitaram ervas
magicas o feitiços, e ele, ao
abrir uma janela, recebera no
olho o vapor envenenado que
se libertava do caldeirão. A
partir de então passou a ser
chamado simplesmente Balor
do olho maléfico.

Quando ficou diante de Balor,


Lug do Braço Longo pediu-lhe
para mandar suspender a
batalha, para que a vida dos
Fomore fosse poupada e eles
pudessem voltar sãos e salvos
para as suas ilhas rodeadas
de nevoeiro. Acrescentou que
não era por medo que falava

401
assim, mas para pôr cobro a
uma batalha que já fizera um
grande número de mortos e de
feridos. Balor virou-se então
para aqueles que o rodeavam,
dizendo: «Companheiros,
levantai-me a pálpebra, para
que eu possa ver o palrador
que se dirige a mim com tanta
impertinência.»

Ergueram-lhe a pálpebra, e
Balor começou a contorcer-se
à volta de Lug para o provocar.
Um arrepio de medo percorreu
o filho de Cian quando viu a
sombria cavidade injectada de
sangue negro que, muito
aberta, observava as tribos de
Dana. Mas, prudentemente,
Lug evitou olhar para o olho de
Balor e chamou Goibniu,
pedindo-lhe para lhe trazer
uma pedra de funda terrível,
arrasadora, maravilhosa, que
conseguisse atingir o olho de

402
Balor e eliminá~lo.

Goibniu imediatamente pediu


ajuda aos seus filhos
adoptivos que se Puseram em
movimento e o secundaram à
volta da forja. Ao pedido do
tutor, os filhos ergueram-se de
imediato e puseram mãos à
obra, cheios de vontade e de
determinação. Acenderam o
fogo da forja e fizeralii a mais
terrível e mortífera bala para
funda que alguma vez se viu.
Ao sair da forja, a bala era tão
pesada e escaldava tanto que
nem con-

403
seguiram pegar nela, sendo
necessário o próprio Goibrim
para a transportar até à
presença de Lug do Braço
Longo.

Ora, naquele momento era


grande o desespero de Lug,
pois não havia guerreiro que
não tivesse sido ferido pelo
olho maléfico de Balor, um
olho que soprava ventos
violentos como os de uma
tempestade e de onde saíam
chuvadas cheias de veneno.
Ainda por cima, o calor que
emanava da bala da funda, os
fumos, os vapores que a
rodeavam, os feixes de
faíscas que a cravejavam,
queimando a pele, impediam
quern quer que fosse, mesmo
os mais bravos, de se
aproximarem do lugar onde
Lug do Braço Longo se
encontrava diante do seu avô

404
Balor, o campeão invencível
dos Fomore.

Contudo, Lug, com extrema


destreza e rapidez, segurou a
bala de ferro ardente e,
tendo~a colocado na funda,
fê-la rodar à volta da sua
cabeça e arremessou-a com
toda a força na direcção de
Balor. Apesar da distância que
os separava, o tiro foi tão
certeiro que o projéctil
atravessou a pele muito dura
de Balor e lhe esvaziou
completamente a órbita do

mpeão olho perverso. Os


Fomore, que assistiam à
terrível luta do seu ca
contra Lug do Braço Longo,
viram o olho maléfico que,
depois de ter atravessado o
crânio de Balor, foi cair junto
deles, matando logo ali três
novenas de homens.

405
Ertitretanto, aproveitando a
confusão Balor fugiu.

Então interveio Morrigane,


filha de Ernmas, mostrando
aos guerreiros das tribos de
Dana os despojos que
arrancara de Indech, rei dos
Fomore. Contou-lhes a proeza
que acabara de fazer e
encorajou-os a combater os
Inimigos até à sua destruição
total. Então, e sem perda de
tempo, os heróis das tribos de
Dana lançaram um assalto
furioso aos Fomore onde
pereceram, além de Elatha,
filho de Indech, diversos
campeões vindos das ilhas
imersas em nevoeiro.

Logo depois, Bress, filho de


Elatha, saiu das fileiras dos
Fomore e pôs-se diante de
Lug, com a intenção de vingar
o pai. Começarain a combater

406
furiosamente, e Bress,
batendo em Lug com o seu
escudo, provocou-lhe três
ferimentos, mas Lug não
deixou de responder e corfi o
rebordo do seu infligiu~lhe
golpes tão violentos que Bress
estava efn grandes apuros
quando os Fomore vieram em
seu socorro. Dando três gritos
poderosos contra Lug, eles
fizeram chover sobre ele um
feixe de lanças e de dardos,
mas ele evitou-os e fê-los cair
por terra, pisando-os depois
até os transformar em
bocados de ferro contorcido.
Mas esta manobra de
diversão permitira que Bress
escapasse sem ser ferido e
depois se confundisse com os
seus, não conseguindo Lug
encontrá-lo,

Entretanto, os homens das


tribos de Daria investiram de

407
novo contra os Forriore e não
tardaram a encostá~los à
parede. Desnorteados,
aqueles ficaram
desorganizados e,
abandonando a planície de
Tured, dirígiram-se para o mar
com a esperança de
reembarcar e de fugir o mais
depressa possível da ilha da
Irlanda. No meio deles, Balor
tentava recompor-se da grave
ferÀda que lhe fora inflígida
por Lug do Braço Longo.

Lug, entretanto, não desistiu


de perseguir ferozmente
Balor, massacrando sem dó
nem piedade todos aqueles
que, em fuga, se
atravessavam a sua frente.
Acabou por apanhar
Balorjunto à costa e aí lançou-
lhe um grito de desafio. Balor,
voltando-se, tentou defender-
se, mas Lug, com 0 seu dardo,

408
perfurou-lhe o peito de lado a
lado. «Lembra-te que sou o
teu avô», gritou Balor para
Lug, «e que a tua mãe é Ethné
do rosto doce». «Eu também
sou filho de Clan, filho de
Diancecht, e pertenço às
tribos de Dana!», replicou Lug.
«Por favor, não me
humilhes!», implorou Balor.
«As tuas palavras nada
valem!», respondeu-lhe Lug.
«Já não te estás a humilhar
quando me pedes para te
poupar a vída?» «Eu não te
peço que me poupes a vida»,
replicou Balor, «peço-te
apenas que me deixes
satisfazer um desejo.» «0 que
desejas, então?» «Pois bem,
é o seguinte: se me derrotares
e me matares, quando me
cortares a cabeça”’, peço-te
que a coloques sobre a tua
propria cabeça. Desse modo,
o meu valor guerreiro e as

409
minhas virtudes andarão
contigo(2) , não havendo
entre os meus descendentes
quem eu estime tanto como a
ti te estimo!» «Segulrel o teu
conselho, mas de acordo com
a minha consciência»,
respondeu Lug.

Cheios de fúria, aproximaram-


se um do outro e começaram
a lutar com violência,
ferlndo~se mutuamente com
as espadas e os dardos que
flamejavam diante deles, até
que Balor, sem forças, acabou
por ceder, cortando-lhe Lug a
cabeça.

A seguir, Lug afastou-se,


levando consigo o despojo
envolto em cabelos, e foi
depositá-lo no fuste de um
pilar de pedra que existia nas

I. No contexto mágico inerente

410
a esta época mitológica, já
aqui foi referido, pode
ressuscitar-se s mortos, mas
na condição de a coluna
vertebral e o cérebro não
estarem afectados nem
cortados. isto explica o facto
de ser usual cortar a cabeça
do inimigo, mesmo morto,
Para impedir que ele
ressuscite.

2. Referência ao curioso
«ritual das cabeças cortadas»,
abundantemente
testemunhado pela
arqueologia galo-romana, e de
que dão testemunho
numerosos autores da
Antiguidade clássica: trata-se
de se ficar de posse das
qualidades de um herói,
inimigo ou amigo. 0 tema
encontra-se em diversas
narrativas irlandesas, em
particular nas do ciclo do

411
Ulster,

412
proximidades. Mas a cabeça
esteve aí Pouco tempo, pois
estava tão quente que fez com
que a pedra rachasse e se
dividisse em quatro

tos antes de cair por terra.


Então, Lug colocou~a num
ramo fragmen a e voltou
Par

ramente», disse ele, «o


conselho qa Perto do corpo de
Balor. «Sincebifurcado de
aveleir ue me deste
não era muito amigável. Se eu
o tivesse seguido, a minha
cabeça teria sofrido ainda
mais do que o pilar de pedra.»
E, sem perda de tempo, ele
voltou a partir, levando
consigo a cabeça de Balor.

Entre os Fomore, que iam


sendo massacrados, apenas
subsistiam os que adquiriram

413
a forma de pedras e de pilares
na planície, mas poetas, ixou
de avançar em sua direcção e
de os ameaçar, mesmo
tenLug não dei
ão a forma humana e Lug do
eles mudado de aparência.
Eles tOmarani ”t o
exacto de prometeu que lhes
faria um favor se lhe
revelassem o númer

«Eu não sei o número de


escravos e de plebeus perdas
entre os Fomorc- mas se, que
entre os senhores, nobres
campeões, que caíram em
combate,
cinco ”I e Sesos filhos de reis
e os grandes reis dos Fomore,
morreram mpanhavam Os
senta e três. Quanto aos
plebeus e aos escravos que
aco

c, nobres e os chefes, pois

414
todos os chefes traziam as
suas gentes, só POSSO
revelar o número daqueles
que vi tombarem com Os
meus próprios olhos,

. Quanto aos outros, aqueles


que ou seja, três mil
seiscentos e vinte e sete

ter visto só poderão ser


enumerados quando se
souber pereceram sem Os
céu os grãos de areia na praia,
as gotas o número de estrelas
que há no

de orvalho nos campos, ou os


relâmpagos na tempestade.»

Quando Lug do Braço Longo


deixou os poetas e voltou para
perto das tribos de Dana, viu
num relance Bress, filho de
Elatha, atentaresconder-se
atrás de um rochedo. Avanço”

415
logo para ele e ameaçou-O

1» gritou. «Foi por tua culpa


que sofrecom a espada.
«Maldito sejas’ , z
travar esta saflmos a opressão
dos Fomore e que fomos
obrigados a
igrenta batalha!» «É melhor
que não me mates e que me
poupes a v da!», exclamou
Bress. «A sérog», respondeu
Lug. «0 que se ganharia

ida?» «Se a vida me for


poupada, eu farei com que as
em poupar-te a v
undância». «Vou consultaT
vacas da Irlanda tenham
sempre leite em ab

os meus sábios para saber


qual é a opinião deles»,
respondeu Lug. 01 Lug
foi à presença de Maffiné para
saber a sua opinião e repeti -

416
lhe o que ouvira da boca de
Bress a respeito das vacas da
Irlanda. X1,’

o», u Lug. «Nã

vemos poupar-lhe a vida por


essc MOtiv02», Pergunto
a é, «Pois um
poder sobre as vacas d
respondeu MailIn , ele
não tem nenh dar.»
Lug vOlIrlanda nem sobre a
quantidade de leite que elas
possam

tou depois ao encontro de


Bress, e dIsse-lhe: «Não há
motivo para te poupar a vida,
pois tu não tens nenhum poder
sobre as vacas e sobre a sua
produtividade.» Bress lançou
um feitiÇO e Lug perguntou-
lhe critão: «Há algum outro
motivo que Possa justificar
que a tua vida seja poupada?»

417
«Sim, evidentemente», disse
Bress. «Se me pouparem a
vida, haverá sempre ria
Irlanda uma colheita por
estação.»

Lug foi de novo consultar


MailIné. «Devemos poupar a
vida a Bress», perguntou ele,
«se assegurar aos homens da
Irlanda uma colheíta por
estação?» «Não», respondeu
Maffiné, «pois a realidade é
bem diferente: nós temos a
Primavera para lavrar e
semear, o início do Verão para
que o trigo se fortaleça e
amadureça, o começo do
Outono para a colheita e o
Inverno para comer. Não faz
nenhum sentido essa ideia de
uma colheita por estação.»

Lug foi de novo falar corri


Bress, «Tu não serás
poupado», disse-lhe ele, «pois

418
já temos o que nos propões.»
«Isso não é bem assím»,
retorquiu Bress, «e se me
deixardes viver, eu diT-vos-ei
como se lavra, semeia e faz a
colheita, que são três coisas
que vos ignorais.» «Se tu mas
revelares», disse Lug,
«poupo-te a vida». «Pois
bem», disse Bress,
1

«E preciso lavrar à terça-feira,


lançar a semente à terra à
terça-feira e fazer a colheita à
terça~feira.»

E por causa desta artimanha é


que Bress, filho de Elatha,
salvou a vida a seguir à
batalha da planície de Tured.

A seguir, Lug foi juntar-se a


Dagda e a Ogiria, o homem
forte, que encontrara a espada
do rei dos Fomore. Naquela

419
altura ele tirava-a da baínha e
limpava-a. Então, a espada
contou o que vira e
testemunhara Pois, naquele
tempo, as espadas tinham o
costume, assim que eram
desembaiDhadas, de revelar
as proezas que tinham feito ou
que tinham testemunhado. E
assim que se explica que haja
hoje sortilégios nas espadas.
É preciso ter em consideração
que naquele tempo os
demónios falavam por meio
das armas, sendo essa a
razão por que era frequente os
homens adorarem as armas.

Lug, Dagda e Ogrua ergueram


pilares aos heróis que tinham
caído en1 conibate e
gravaram neles inscrições.
Depois Morrigane, a maga,
’veio juntar-se a eles. «0 que
vês?», perguntou-lhe Dagda.
«Neste moMento veio a vitória

420
e o triunfo», respondeu ela,
«mas também vejo que
0 teMPO futuro traz muitas
desgraças. 0 mundo deixará
de me interessar, Pois os
Verões não terão flores, as
vacas não darão leite, as
mulheresnãO terão pudor, os
homens não terão coragem,
as árvores não darão

421
frutos e os mares não terão
peixes. Nada será como
dantes: os velhos prestarão
juramentos falsos, os homens
atraiçoar-se-ão uns aos
outros, os filhos roubarão os
pais... É esse o mundo de
amanhã, mas hoje as tribos de
Dana podem cantar vitória.»

E Morrigane, filha de Errimas,


foi por toda a Irlanda para
anunciar que as tribos de
Dana tinham vencido os
Fomore das ilhas do nevoeiro
na grande batalha da planície
de Tured.1’1

1. Segundo a narrativa A
Segunda Batalha de Mag-
Tured, primeira versão, com
pormenores retirados da
segunda versão,
nomeadamente o episódio em
que Lug se esconde e aquelc
em que Lug e Balor se

422
confrontam.

Capítu1oV

epois da vitória das tribos de


Dana sobre os Fomore na
planície que passou a chamar-
se Mag-Tured, Lug do Braço
Longo encontrou dois irmãos
do seu pai, Cu e Ceithenn,
ambos filhos de Dianceclit, e
perguntou-lhes se tinham visto
Cian na batalha. «Não, não o
vimos», responderam eles.
«Fornos no seu encalço
seguindo o rasto dos Fomore
que tinham vindo a Tara exigir
o pagamento do tributo, mas
não chegámos a encontrá-lo,
pois rumámos a sul ao passo
que ele se dirigiu para norte.
Por isso, não voltámos a vê-
lo.» «Os Fomore tê-lo-ão
matado?», perguntou Lug.
«Pensamos que não»,
responderam Cu e Ceithenn,

423
«Pois os Fomore dirigiram-se
para sul, e não é provável que
se tenham encontrado.»
«Vamos procurá-lo», disse
Lug do Braço Longo.

Cavalgaram os três até ao


lugar onde os seus caminhos
devem ter divergido e,
apontando bem para norte,
acabaram por se encontrar na
planície de Murthemné.
«Estou convencido de que o
meu pai já não está vivo»,
disse Lug, «e juro que nunca
mais como e bebo nada
enquanto não souber de que
modo ele morreu.»

Ora, estando eles a chegar a


um outeiro que se erguia no
meio da Planície, a terra pÔs-
se a falar. Disse ela a Lug que
naquele mesmo lugar, Cian,
apanhado pelos filhos de
Tuirenn, tinha adquirido a

424
aparência de um porco. Disse
também que ele tinha morrIdo
às mãos deles depois de ter
retomado a forma natural e
que se encontrava enterrado
debaixo do outeiro.

Então, Lug e os dois irmãos de


Cian puseram-se a cavar
debaixo do outeiro.
Descobriram o corpo e viram
os inúmeros ferimentos que
lhe ti-

425
nham provocado a morte. «Ele
foi morto de forma desleal»,
disse Lug. «Esses ferimentos
devem-se a pedras
arremessadas pelos filhos de
Tuiremi, que mataram o meu
querido pai de forma covarde
e aborninável.»

Curvando-se, Lug beijou duas


vezes o corpo do pai, depois
endireitou-se com um ar cheio
de nobreza, e disse aos
companheiros: «Tenho o
coração destroçado pelo que
aconteceu ao meu pai. Custa-
me muito não o ter podido
ajudar quando estava refém
dos filhos de Tuirenn, mas juro
que tudo farei para que estes
malditos assassinos paguem
muito caro a perversidade que
cometeram contra um dos
seus, um herói das tribos de
Dana.»

426
Lug entoou então um canto
fúnebre sobre o corpo do pai

e depois, escavando a terra


com as unhas, recolocou
aquele debaixo daquele
tumulus. Em seguida erigliu
um pilar no qual foi gravada
uma inscrição que tinha o
nome de Cian em ogham e
que explicava o modo
traiçoeiro como ele fora morto
pelos filhos de Tuirenn. Por
fim, continuou Lug: «Juro que
o crime abominável aqui
cometido não ficará impune,
embora ainda tenhamos de
atravessar um longo período
de grande infelicidade. Por
muito tempo a Irlanda
continuará a ser dilacerada
por lutas fratricidas, não
havendo paz para ninguém.
No que me toca, sinto-me
profundamente consternado
pela morte que os filhos de

427
Tuirenn deram a meu pai, o
valoroso filho de Diaricech1.»

E logo em seguida Lug


despediu-se dos dois irmãos
de Cian: «Ide c

juntar-vos àqueles que


rejubilarri com a vitória das
tribos de Dana, mas peço-vos
que não reveleís a ninguém o
que aqui se passou enquanto
eu próprio o não fizer.»

Alguns dias mais tarde, Nuada


do Braço de Prata, rei
supremo da Irlanda, convocou
o conjunto das tribos de Dana
para se reunirem na fortaleza
de Tara. Quando chegou, Lug
do Braço Longo sentou-se Z2,

cheio de nobreza e com uma


auréola de honra ao pé de
Nuada, cri’ frente de todos os
chefes e de todos os nobres

428
que ali se encontravam.
Olhando em volta, viu os
irmãos de Tuireim. Os três
eram famosos pelo seu valor e
beleza, pela sua agilidade e
destreza. Todos eles tinham
ajudado à vitória sobre os
Fomore, e eram muito
considerados por todos. Lug a
certa altura pediu a palavra,
que lhe foi concedida,
concentrando-se nele todas
as atenções.

«Que assunto quereis tratar, ó


filhos de Dana?», perguntou
ele, «Escolhe tu o assunto»,
responderam eles. «Pois
bem», começou LU9, «vou
colocar-vos uma questão: que
vingança cada um de vós
gostaria

que fosse aplicada sobre


quem fosse culpado de ter
matado o vosso pai?»

429
Pronunciadas estas palavras
fez-se um silêncio e foi o rei da
Irlan-

da o prímeiro a falar: «A
alguém que tivesse matado o
meu pai eu não infligiria uma
morte de um único dia, mas
uma pena muito mais dura
ortar. Se tivesse poder para
isso, todos os dias eu
arrancar-lhe-ia de sup
ir a meus pes.»

ni rnernbro até o ver ca


1

Todos os nobres das tribos de


Dana foram da mesma
opinião, tanto os filhos de
Tuirenn como os outros.
«Constato», disse Lug, «que
todos são da mesma opinião,
inclusive aqueles que
mataram o meu pai. Portanto
exijo que me paguem um

430
desagravo pelo sucedido, já
que todos os homens das
tribos de Dana pertencem ao
mesmo clã e descendem do
mesmo antepassado. Se eles
me derem uma satisfação,
não violarei o direito que
obriga o rei da Irlanda
aproteger todos os seus
hóspedes. Mas não respondo
pelos meus actos se eles
recusarem dar uma satisfação
pelo assassínio que
cometeram, e nesse caso não
permitirei que abandonem a
casa real de Tara sem se
terem havido comigo.» «Se
tivesse sido eu a matar o teu
pai», disse o rei da Irlanda,
«vería com muito bons olhos
que .a a pacyar-te.»

aceításseis o desagravo que


eu me comprometeri
Z=1

431
Os filhos de Tuirenn puseram-
se então de lado a falar entre
si. «E a nós que se refere
Lug», disseram luchar e
lucharba. «Pelos vistos, ele
procurou saber do pai o veio a
saber como cían foi morto na
planície de Murthemné.
«Reccio bem», respondeu
Brian, «que ele esteja à

ue nós façamos Lima


confissão na presença de
todos os nobres espera q
- eitará da das tribos de
Dana, e, uma vez que isso
aconteça, não ac

nossa parte o desagravo.»


«Se ele pedir uma confissão»,
disseram dois deles, «nós fá-
la~ernos, mas pensamos que
te cabe a ti fazê~la em voz
alta, pois és o mais velho.»

Então, Brian, filho de Tuirenn,

432
ergueu-se e, diante de todos
os nobres e chefes das tribos
de Daria, interpelou Lug
nestes termos: «E a nós que tu
acusas, ó Lug, filho de Cian.
Quando falas de assassínio e
de desagravo, é a nós que te
referes, pois pensas que nós
OS três atacámos o filho de
Diancccht. Não
confessaremos nada, mas
também não fugiremos às
responsabilidades e estamos
prontos a compensar-te pela
morte de Cian como se nós
próprios tivéssemos cometido
o crime.» «Assim sendo»,
disse Lug, «vou então dizer-
vos a compensação que me
devereis dar» «Diz-nos lá qual
é essa compensação, ó LUg.»
«E a seguinte», Prosseguiu
Lug, «Peço-vos três maçãs,
uma pele de porco, uma lança,
dois cavalos e um carro, sete
porcos, um pequeno cão, um

433
espeto de

434
assar e três brados num
monte. É esse o pagamento
que vos exijo pela morte do
meu pai. Se ele vos parece
excessivo, torná-lo-ei mais
leve, mas se vos parece ao
vosso alcance, parti de
imediato em sua demanda.»
«Na verdade», respondeu
Brian, filho de Tuirenn, «nós
não o achamos muito pesado,
o que me faz pensar que
poderás estar a preparar uma
traição contra nós. Ele seria
mais pesado, com efeito, se
exigisse de nós trezentas mil
maças, a mesma quantidade
de peles de porco, cem
lanças, cem cavalos e cem
carros, cem suínos, cem cães,
cem espetos de assar, e cem
brados num monte.» «Nesse
caso», continuou Lug,
«mantenho o preço que
tendes a pagar. Dar-vos-ei a
garantia dos chefes das tribos

435
de Dana, nada mais vos
pedirei e não vos trairei. Exijo-
vos, no entanto, que me dêem
a mesma garantia.»

Os três filhos de Tuirenn


juraram então que pagariam o
que lhes era pedido, e deram
como garantia Nuada, rei
supremo da Irlanda, assim
como Bobdh Derg, filho de
Dagda, e alguns dos chefes
que ali se encontravam.
«Sendo assim», disse Lug, «e
tendo eu as vossas garantias,
dar-vos-ei agora a conhecer o
que me deveis trazer.» «Nós
íamos interrogar-te a esse
respeito», disseram os filhos
de Tuirenn. «Pois então ouvi
com atenção», disse Lug, «as
três maçãs que vos peço são
as três maçãs do Jardim das
Hespérides, que se encontra a
leste do mundo. Só essas
maçãs me poderão satisfazer,

436
pois são as melhores e as
mais belas de toda a terra.
Têm a cor do ouro bem polido,
e a cabeça de uma criança de
um mês não é maior do que
cada uma delas. Sabem a mel
quando as comemos, e não
deixam amargor nem acidez
na boca. Além disso, não
diminuem de tamanho quando
as comemos, mesmo que o
façamos todos os dias. Aquele
que conseguir colher uma
destas maçãs terá conseguido
cometer a maior proeza do
mundo, pois a maçã
pertencer-lhe-á para sempre.
E eu sei que, segundo uma
profecia desse longínquo país,
serão três jovens corajosos e
arrojados idos do oeste da
Europa que delas se
apoderarão pela força.»

«A pele de porco que vos


peço», continuou Lug, «é a

437
pele de porco que pertence a
Tuis, rei da Grécia. Esta pele é
curativa e cura todos os
feridos e todos os doentes que
por ela sejam revestidos, por
muito grave que seja o seu
estado, e desde que tenham
ainda um sopro de vida. Este
porco tinha uma excepcional
virtude: se o fizessem
atravessar um rio, a água
deste transformava-se em
vinho durante nove dias.
Qualquer ferida que ela
tocasse cicatrizava, mas, a
crer nos druidas da Grécia, só
a sua pele, e não ele, possuía
esta virtude. Morto o porco e
esfolada a

pele, esta foi conservada


desde então. Estou certo de
que não vos será fácil
apoderar-vos dela, pois está
vigiada e muito bem
guardada. E sabeis que lança

438
vos exijo?» «Não o sabemos»,
responderam os filhos de
Tuirenn. «Tu é que tens de no-
lo dizer.» «Pois bem»,
prosseguiu Lug, «é a lança
envenenada de Pisear, rei dos
Persas. Trata-se de uma arma
mágica que é capaz de
cometer as proezas mais
extraordinárias do inundo. E
de tal modo escaldante que,
em tempo de paz, a sua
cabeça fica continuamente
mergulhada num caldeirão de
água fria. A não ser assim, a
povoação onde se encontra
arderia e ficaria destruída.
Com efeito, ser-vos-á muito
difícil apoderar-vos dela.
Agora, sabeis quais são os
dois cavalos e o carro que
desejo receber de vós?»

«Não o sabemos, pois cabe-te


a ti dizer-nos». «Pois bem, são
os dois cavalos maravilhosos

439
de Cobar, o rei da Sicilia.
Tanto a terra como o mar lhes
servem para cavalgar, e é
frequente vê-los a galopar
sobre as ondas. Não há
cavalos mais rápidos e
resistentes do que eles.
Também não há nenhum
carro tão sólido e tão belo
como aquele a que eles
andam atrelados. Além disso,
quanto mais se matam estes
cavalos, mais eles renascem,
e cada vez mais belos e mais
sãos do que antes, desde que,
pelos menos, se juntem todos
os seus ossos. É minha
convicção que não vos será
fácil obtê-los, pois estão
guardados com todo o
cuidado nas cavalariças do
rei.

«Agora», continuou Lug,


«Sabeis quais são os sete
porcos que vos Peço? São os

440
porcos que estão na posse de
Easal, rei das Colunas de
Ouro. Eles têm a
particularidade única de, ao
serem mortos de noite, serem
encontrados vivos de manhã.
E quem comer um pedaço
deles, nunca fica doente nem
com má saúde.»

«0 pequeno cão que vos peço


chama-se Failinis, e pertence
ao rei loraidh. Tem a
particularidade de todos os
animais que o observam não
Poderem continuar de pé e
terem de se deitar no chão. Tal
como aos Porcos de Easal,
ser-vos-á muito difícil ficar de
posse dele. 0 espeto de assar
que vos peço é um dos que
servem às mulheres de
Fianchair para preparar a
comida. Mas é quase
impossível conseguir ficar em
poder dele, tal é o cuidado que

441
as mulheres tem para não o
perderem. Quanto aos três
brados no monte que vos
peço, são os brados no monte
de Miodchain, nos países do
norte. Ora, tanto Miodcham
como as suas ’danças
proíbem quem quer que seja
de dar brados naquele monte.
Foi na casa dele que o meu
pai fez a sua aprendizagem, e
se eu tiver a fraqueza de vos
perdoar o vosso crime, é certo
que Miodchain não vos
perdoa-

442
rã. E essa pois a
compensação que vos exijo
pela morte de meu pai.» Os
filhos de Tuirenn
permaneceram em silêncio,
enchendo-se de an-

gústia. Abandonaram a
assembleia e foram falar com
o pai para lhe contar o que se
passara, e para o pôr a par da
compensação exigida por Lug
do Braço Longo pelo
assassínio de Cian, filho de
Diancecht. «Trazeis-Me más
notícias», disse Tuirenn. «lreis
passar por grande perigos se
partirdes em busca do que vos
pede Lug. Mas não tendes
outra alternativa, e e preciso
reconhecer que ele tem razão,
pois haveis cometido o pior
crime que se pode cometer.
Mas previno-vos: vós não
conseguireIs alcançar tudo
isso sem os poderes

443
maravilhosos de Mananann
ou do próprio Lug. Aconselho-
vos pois o seguinte: pedi
emprestado o cavalo de
Mananann, que actualmente
está ao serviço de Lug. Lug
não vo-lo poderá emprestar e
recusará o vosso pedido, pois
o cavalo não lhe pertence.
Então pedir-lhe-eis a barca
que Mananann também lhe
emprestou, e como ele não
poderá recusar um segundo
pedido de empréstimo, terá de
vo-la em~ prestar. E ficai a
saber que a barca vos será
mais útil do que o cavalo.»

Os filhos de Tuirenn foram


então encontrar-se com Lug
do Braço Longo, saudaram-no
e disseram que não poderiam
compensá-lo se ele próprio os
não ajudasse. E suplicaram-
lhe então que lhes
emprestasse o cavalo de

444
Mananann.

«É impossível», respondeu
ele, «o cavalo não me
pertence.» «Então», disse
Brian, fillho de Tuircim,
«empresta-nos a barca de
Mananann.» «Desta vez não
posso recusar o vosso pedido.
Levem-na», disse Lug. «E
onde está ela?» «Em Brug-na-
Boylle.»(’I

Quando ficaram de posse da


barca, os filhos de Tuirenn
foram despedir-se do pai, que
ficou triste e desolado ao vê-
los partir, pois sabia que a
empresa estava condenada
ao fracasso, mesmo com a
barca de Mananann. Etimé,
filha de Tuirenn, acompanhou
os irmãos ao porto e, aí,
entoou para eles um canto
lamuriento em que deplorava
que os filhos de Tuirenn

445
tivessem cometido um tal
crime contra o pai de Lug e por
isso fossem condenados a
errar pelo mundo em busca de
coisas impossíveis de obter.

Os três irmãos embarcaram e


alcançaram o alto mar. «Que
rota vamos tomar?»,
perguntaram os dois irmãos
mais novos. «VaMOs procura
das maçãs», respondeu Brian,
«pois foi o primeiro pedido que
nos foi feito.»

1. 0 tumulus megalítico de
Newgraiige, ao cimo do vale
de Boyne, no condado de
meath.

Apontaram então a barca de


Mananann na direcção do
Jardim das Ilespérides, e a
barca seguiu a sua rota na
crista das ondas, cruzando o
oceano. Como cortou

446
caminho, daí a pouco chegou
a um porto, na costa das
Hespérides.

Assim que chegaram, Brian


perguntou aos irmãos: «Como
é que nos havernos de
aproximar do Jardim das
Hespérides? Suponho que há
uns campeões e uns
guerreiros annados que não
estarão na disposição de nos
deixarem lá entrar, estando
acompanhados do próprio rei.
Não nos devemos esquecer,
apesar disso, do nosso próprio
valor, e de que os venceremos
em caso de termos de lutar
contra eles, embora com
grandes custos e correndo o
risco de perdermos a vida.»
Proponho-vos pois que
assaltemos este jardim sob a
forma de falcões fortes e
rápidos. Os guardas só
dispõem de armas ligeiras e,

447
quando as usarem contra nós
só teremos de usar da máxima
prudência e de estar atentos.
E, assim que os nossos
inimigos estiverem
desarmados, lançar-nos-emos
sobre as macieiras,
apoderando-se 1cada um de
Dós de uma maçã. Quanto a
mim, se puder, apoderar-me-
ei de duas, trazendo uma nas
garras e a outra no bico.»

luchar e lucharba aprovaram


este plano. Então, Brian bateu
neles e em si mesmo com uma
varinha mágica e diruídica e,
tomando os três a forma de
belos falcões rápidos e
possantes, voaram ao
encontro do Jardim. Os
guardas viram-nos e, depois
de terem gritado, mas em vão,
para tentarem detê-los,
dispararam sobre eles uma
chuvada espessa de armas

448
que tinham veneno na ponta.
Os filhos de Tuirenn estavam
tão atentos que evitaram
todas as setas e, seguindo o
plano de Brian, foi-lhes fácil
lançarem-se sobre as
macieiras depois de os
guardas terem gasto todas as
suas munições. Logo depois
levantaram voo, sãos e
salvos, e dirigiram-se para a
barca de Mananann.

A notícia daquela grande


proeza logo se espalhou pela
cidade e por todo o país. Ora,
o rei das Hespérides tinha três
filhas extremamente
conhecedoras e hábeis nas
artes mágicas. Adquirindo a
forma de três grifOs, elas
perseguiram os falcões até ao
mar, lançando-lhes raios de
fogo llluito ardentes.
«Estamos numa situação
multo delicada», disse Brian,

449
«e se não descobrirmos um
truque, seremos calcinados
- mas já sei o que temos que
fazer.»

Batendo com a varinha


mágica e druídica nos
irmãos e nele Próprio
metamorfosearam~se
imediatamente em cisnes
brancos que IlUM salto
chegaram ao mar, de tal forma
que os grifos, sobrevoando-
os, nem repararam neles.
Então, os filhos de Tuir, im
subiram para a

450
barca e retomaram o aspecto
humano.

Depois disso, decidiram partir


para a Grécia para se
apoderarem, a bem ou pela
força, da pele de porco. A
barca de Mananann conduziu-
os velozmente até à
vizinhança do palácio real.
«Que forma tOmaremos
quando nos apresentarmos na
corte do rei?», perguntaram os
irmãos mais novos ao mais
velho. «Na nossa própria
forma», respondeu Brian,
«mas far-nos-emos passar por
poetas e artistas da Irlanda,
para que sejamos recebidos
com todas as honrarias.»

Os três irmãos pentearam os


cabelos à maneira de poetas e
foram bater à grande porta da
cidade. 0 porteiro perguntou-
lhes quem eram e o que

451
queriam. «Sornos artistas da
Irlanda», responderam eles,
«e vimos a esta cidade recitar
um poema ao rei.»

0 porteiro foi avisar o rei. «Eles


que entrem», respondeu o
soberano, «pois e para nos
uma honra receber artistas
estrangeiros.»

0 rei deu ordens, também,


para que a corte fosse
preparada com toda a
magnificência, para que, ao
regressarem ao seu pais, os
artistas da Irlanda pudessem
transmitir a sua admiração
pelos méritos e a opulência do
rei da Grécia e dos nobres que
o rodeavam. Os filhos de
Tuirenn foram então
conduzidos até um grande
salão decorado com belas
tapeçarias bordadas.
Serviram-lhes bebidas e

452
estavam maravilhados, pois
jamais tinham visto uma casa
tão esplendorosa e nunca
tinham sidos recebidos com
tanta pompa em nenhum outro
lugar.

Pouco depois, os poetas do rei


ergueram-se para
declamarem os seus poemas
aos forasteiros. Quando
acabaram, Brian pediu aos
irmãos para fazerem o
mesmo, mas estes recusaram
com o pretexto de que só
sabiam combater. Por esse
motivo, Brian avançou sozinho
ficando diante do rei e da
assembleia. Fez-se um
grande silêncio em sua honra,
e ele cantou um poema que
terminava com este verso:

«A pele de um porco, riqueza


sem igual, é a riqueza que eu
peço. »

453
«0 teu poema é muito bom»,
disse-lhe então o rei, «mas o
que significa esta alusão à
pele de porco? Eu elogiar~te-
ia o poema de boa vofltade se
não fosse essa alusão, pois é
uma grande impertinência
pedir-rile essa pele. Fica a
saber que, por nada deste
mundo, a dana aos poetas e
aos artistas, ou sequer aos
nobres e aos príncipes, a não
ser que fosse obrigado a isso.
Mas, para te recompensar,
fica certo de que consinto em

te oferecer uma quantidade de


ouro que vale três vezes a
pele de porco bein esticada.
«Que sejas recompensado
pela tua generosidade, ó rei»,
respondeu Brian. «Mas
previno-te: sou de tal modo
desconfiado que só aceitarei o
ouro que me ofereces se ele

454
for pesado e
convenientemente niedido à
minha frente, pois não
acredito em ninguém.»

0 rei deu ordens aos seus


servos e aos seus intendentes
para que levassem Brian e os
irmãos à casa do tesouro onde
seria pesado e medido o ouro.
Mas, quando estavam a
chegar àquela casa, Brian
apoderou-se da pele com um
movimento rápido da mão
esquerda e dobrou-a
cuidadosamente com a
intenção de a levar; em
seguida, desembainhando a
espada, golpeou com tal
violência o homem que o
acompanhava, que o rachou
ao meio. Depois, apertando a
pele contra si, abriu carm~ nho
por entre os criados e os
intendentes, vindo juntar-se a
ele os seus dois irmãos. 0 rei

455
e os seus guerreiros
precipitaram-se sobre eles,
mas, após um violento e
sangrento combate, o rei
morreu às mãos do proprio
Brian, enquanto os dois
irmãos massacraram vários
adversários à sua volta, de tal
modo que ninguém conseguiu
evitar que eles saíssem da
cidade e regressassem à
barca de Mananann.

Puseram-se no alto mar em


pouco tempo e só pararam de
navegar quando chegaram às
costas da Pérsia. Aí, Brian e
os seus irmãos voltaram a
adquirir a aparência de poetas
vindos da Irlanda, e foi nessa
qualidade que eles foram
apresentados na casa do rei.
Este recebeu-os muito bem e
pediu-lhes para cantarem.
Brian improvisou então um
canto em que se fazia

456
referência, de propósito, à
lança de Pisear, rei dos
Persas.

«0 teu poema é muito bom»,


disse o rei, quando Brian
acabou de cantar, «mas não
percebo porque é que nele
mencionas a lança, ó poeta da
Irlanda.» «Eu explico-te,
nesse caso», respondeu
Brian, «é porque quero como
recompensa a lança
maravilhosa que está em
Vosso poder.» «É muito pouco
delicado, o teu pedido», disse
o rei. «E tens muita sorte por
eu não te matar
imediatamente diante dos
nobres e dos príncipes deste
país! »

Ouvindo estas palavras, Brian


lembrou-se que tinha
apanhado duas maçãs no
Jardim das Hespérides.

457
Pegou numa e arremessou-a
contra o rei com tanta
violência que ela lhe
atravessou o cérebro. Depois,
desembainhou a espada e
começou a massacrar todos
aqueles que estavam ao seu
alcance, fazendo os seus
irmãos o mesmo. Descobriram
então a lança, com uma ponta
mergulhada no caldeirão Para
evitar que a casa ficasse em
brasa. Apoderaram-se dela,
assim

458
como do caldeirão, e
regressaram à pressa para a
barca.

Depois voltaram para o alto


mar e não tardaram a avistar
em frente a fortaleza do rei da
Sicília. Brian disse aos irmãos
que se apresentariam sob a
forma de três mercenários da
Irlanda que vinham com a
intenção de se pÔr ao serviço
do rei. Assim, sem terem
necessidade de combater,
saberiam, ao fim de algum
tempo, em que lugar estavam
guardados os cavalos e o
carro que costumavam ser
usados nos combates. E,
entrementes, foram-se
aproximando da elevação de
terra atrás da qual se erguia a
vila.

0 rei, os príncipes e os nobres


da sua casa formaram um

459
cortejo muito bem organizado
para irem ao seu encontro. Os
filhos de Tuirenn prestaram
homenagem ao rei da Sicília,
e este perguntou-lhes quem
eram, de onde vinham e o que
pretendiam. «Nós somos
mercenários da Irlanda»,
respondeu Brian, «e
ganhamos a vida ao serviço
de todos os reis da teiTa.»
«Quereis ficar ao meu
serviço?», perguntou o rei.
«Sim, é esse o nosso desejo.»

Fizeram um contrato e
firmaram uma aliança com o
rei da Sicília. Mas, ao fim de
quinze dias e um mês na
fortaleza, ainda não tinham
conseguido obter nenhuma
informação sobre os dois
cavalos e o carro. «Este
contrato de nada nos está a
servir, pois não fizemos
nenhuns avanços até agora»,

460
disse Brian. «Que pensas
então que devemos fazer?»,
perguntaram-lhe os irmãos.
«Ouçam bem o que vos digo»,
disse Brian. «Peguemos nas
nossas armas e no nosso traje
de viagem, e vamos
comunicar ao rei que
deixaremos de estar ao seu
serviço se não nos mostrar a
sua parelha de cavalos.»

Os irmãos aprovaram, e os
três, depois de se arrumarem,
apresentaram-se perante o rei
da Sicília. Este perguntou-lhes
por que motivo estavam em
traje de viagem. «A razão é
simples, ó rei», disse Brian.
«Nós somos mercenários da
Irlanda, mas não nos basta
servir os reis da terra quando
há guerras e conflitos.
Também somos seus
confidentes e seus
conselheiros, especialmente

461
quando eles possuem
tesouros preciosos. Ora,
desde que aqui estamos,
temos sido tratados de uma
forma bem displicente.
Sabemos que tu tens os dois
melhores cavalos e o melhor
carro do mundo, mas evitaste
falar-nos deles e mostrar-no-
los. É esse o motivo que nos
faz querer partlr.» «Fazeis mal
em querer partir»l, respondeu
o rei, «pois, de todos os
mercenários que tenho ao
meu serviço, sois vós quem
mais eu estimo. FIcai a saber
que., se logo no primeiro dia
mo tivésseis pedido, eu ter-
vos-la mostra-

do os cavalos e o carro. Mas


ja que reprovais a minha
atitude, vou imedíatamente
satisfazer o vosso pedido.»

0 rei ordenou aos seus criados

462
que fossem buscar os dois
cavalos e os atrelassem ao
carro, e a ordem foi cumprida
num abrir e fechar de olhos.
Briari ficou então a ver os
cavalos com toda a atenção,
em seguida deteve o carro,
agarrou o cocheiro e,
arremessando-o contra um
rochedo próximo, esmagou-
lhe o crânio. Depois, saltando
ele proprio para dentro do
carro, aplicou um golpe tão
violento ao rei que o deixou
prostrado e inanimado.
Seguiu-se uma luta rija e
impiedosa que envolveu os
guardas do rei, as gentes da
cidade e os tres irmãos, que
deixaram atrás de si um banho
de sangue antes de voltarem
para a barca de Mananann
com os dois cavalos e o carro.

Dali se deslocaram
velozmente para o país de

463
Easal com a intenção de se
apoderarem dos porcos
maravilhosos que lhes era
exigido por Lug do Braço
Longo. Ora, o rei Easal estava
ao par das proezas feitas
pelos filhos de Tuirenn, e
também ele veio em pessoa
recebê-los quando se
aproximaram da sua fortaleza.
«Porque vindes a este país?»,
perguntou-lhes ele. «Por
causa de uma Injustiça que
cometernos», respondeu
Brian, «e porque temos de
pagar um desagravo, faltando-
nos agora levar os teus
porcos. Se no-los deres de
livre vontade, partiremos
pacificamente e muito gratos
pela grandeza da tua acção.
Mas se te recusares a no-los
dares, não deixaremos por
Isso de os levar, custe o que
Custar, após lutas sangrentas
em que muitos dos teus

464
perderão a vida.» «Seria uma
péssima ideia entrarmos em
luta por causa dos porcos»,
disse o rei. «Vou-me
aconselhar.»

0 rei foi então consultar os


sábios e os adivinhos. Todos
foram da Opinião de que era
preferível dar os porcos aos
filhos de Tuirenn do que
resistir aos seus ímpetos
furiosos, vindo dizer-lhes o rei
que permitiria que eles
levassem os seus porcos. Os
filhos de Tuirenn ficaram
encantados, pois era a
primeira vez que lhes era dada
uma parte da compensaçao
sem que tivessem de lutar por
ela, expondo-se assim a
riscos. 0 rei levou-os à noite a
sua propria residência,
fazendo com que eles fossem
tratados com toda a
deferência e fossem

465
satisfeitos todos seus dese’
1

Jos, providenciando para eles


todas as comodidades e
dando-lhes de comer e de
beber.

Na manhã seguinte, os porcos


foram levados a sua presença,
e disse o rei: «Aqui está o que
procuráveis com tanto
empenho. A partir de agora
estes Porcos são vossos. Que
caminho ides agora tomar?
Que mais deveis

466
adquirir para completardes as
cláusulas do desagravo?»
«Falta-nos ir ao país de
loraidh», respondeu Brian, «e
trazer de lá o cão que pertence
ao rei. É um cão diante do qual
se deitam todos os animais
selvagens.» «Posso pedir-vos
um favor?», perguntou o rei
Easal. «Certamente, e nós
satisfazê-lo-emos de boa
vontade, Pois estamos-te
muito reconhecidos,»
1 rmnh

«Pois bem», disse o rei Easal.


«Acontece que a i a filha
desposou 0 rei de loraidh, que
por isso é meu genro. Aceitai
que vos acompanhe, e eu farei
com que fiqueis de posse do
cão sem precisardes de lutaj»

Os filhos de Tuirenn
agradeceram ao rei Easal e
partiram com ele para o país

467
de loraldh. 0 país estava bem
defendido, pois já era do
conhecimento geral que os
filhos de Tuirenn tinham
massacrado muita i

gente nos paises por onde


tinham passado. Assim,
encontravam-se por todo o
lado diversos homens
armados prontos para se
baterem contra quaisquer
estrangeiros que, sem motivo,
por ali aparecessem.

0 rei Easal identificou-se e


entrou pacificamente naquela
terra, depois foi ao lugar onde
estava o seu genro, o rei de
loraidh, e contou-lhe as
viagens e as aventuras dos
filhos de Tuirenn. «Por que
motivo os trouxeste ao meu
país?», perguntou o genro.
«Para te pedir o cão que te
Pertence», respondeu o rei

468
Easal. «Por todos os deuses
do céu!», indignou-se o rei de
loraidh, «não seria justo que
eu reconhecesse a três
guerreiros o direito de se
apoderarem do meu cão sem
antes lhes ter dado luta.»
«Não deves proceder com
tanta intolerância», retomou o
rei Easal. «A tua atitude irá
trazer-te muito sofrimento e
infelicidade.»

Apesar das advertências do


sogro, 0 rei de loraidh recusou
voltar atrás na sua decisão. 0
rei Easal voltou então para
perto dos filhos de Tuinenn e
contou-lhes o que se passara.
«Sendo assim», disse Briati,
«seremos obrigados a lutar.»

Os guerreiros de loraidh
avançaram sobre os filhos de
Tuirenn e estes foram cada
um para seu lado, aplicando

469
cada um deles golpes
ViOlentos a todos os que
apareciam à sua frente. Diante
de Brian abriu-sc uma clareira,
tal era a violência com que ele
esmurrava os adversários, e
estes punham-se em fuga
mas ele perseguia-os e
massacrava-os sen, piedade.
Os dois irmãos eram também
impiedosos, um de cada lado,
e lutavam heroicamente
provocando um banho de
sangue. Lutou-sc corpo a
corpo, durante várias horas, e
não cessavam os murros, Os
901-

o rei de loraidb pes furiosos e


implacáveis. Por fim, Brían
dominou

mas, em vez de lhe aplicar um


golpe fatal, amarrou-o e
exibiu-o preso perante as suas
hostes, antes de o levar à

470
presença do rei Easal. «Aqlll

Easal!», gritou ele. «E ’uro-te,


pela minha honra e ,stá o teu
genro, rei

pelo valor das minhas armas,


que me teria sido mais fácil
matá-lo do que traze-lo assim
amarrado à tua Presença, Se
lhe poupei a vida, foi eni
atenção a ti e pela
consideração que me
mereces. Toma este homem e
faz dele o que te aprouver.»

1
0 rei Easal ordenou que o
combate terminasse- e
libertou o genro na condição
de que ele daria o cão aos
filhos de Tuírenn, condição
que ele aceitou. Depois,
chegou-se a uma paz
baseada numa amizade
infalível. Então, os filhos de

471
Tuírenn despedIram-se do rei
Easal e do rei de loraidh, e
muito felizes, voltaram com o
cão paira a barca de
Mananann.

Ora, enquanto isto acontecia,


Lug do Braço Longo, que
possuía o dom de saber o que
se passava muito longe,
tomou conhecimento dos
feitos extraordinários dos
filhos de Tuirenn. Desse
modo, ficou a saber que eles
tinham sido bem sucedidos
em todas as provas que ele
lhes tinha imposto, ficando por
isso muito amargurado.
Recitou então um sortilégio no
vento e lançou um feitiço
druídico tão poderoso aos
filhos de TuireDn que eles se
esqueceram de que deviam
ainda duas partes da
compensação a Lug. E este
fez com que eles tivessem um

472
desejo incontido de voltar a
ver o mais depressa possível
a Irlanda.

Assim, a barca de Mananann


levou-os a Brug-na-Boyne.
Quando desembarcaram,
informaram-se sobre a
asdsemPbrlaetiaasdeaesntcri
obnotrsadveaDnuanmaa.
Disseram-lhes que o rei
Nuada do Braço

reunião na fortaleza de Tara e,


sem perda de tempo,
deslocaram-se para aí com
tudo o que tinham conseguido
obter para pagar a
compensação. Deram-lhes as
boas vindas e o rei perguntou-
lhes se tinham obtido o que
era reclamado por Lug do
Braço Longo. «Temos tudo»,
respondeu Brian, «e estamos
prontos para lhe apresentar o
que pediu.»

473
Mas Lug não estava ali, pois
soubera do regresso dos filhos
de Tuireim à Irlanda e queria
que a vingança fosse
completa. Foram por isso
enviados mensageiros por
toda a ilha, e estes acabaram
por encontrá-lo, vindo ele para
a assembleia dos chefes e dos
nobres das tribos de Dana.

Quando ele chegou à


pequena saliência de terra em
frente à casa real de Tara, os
filhos de Tuirenn
apresentaram-lhe o que ele
lhes exigia. Depois de ver com
todo o cuidado as maçãs de
ouro, a pele de Porco, a lança,
os cavalos e o carro, os sete
porcos e o pequeno cãO, Lug
exclamou: «Espero que os
chefes das tribos de Dana vos
S””’arn de fiadores pois, se
assim não fosse, eu matar-

474
vos-ia aqui imCdiatamente por
não terem cumprido as vossas
promessas.» «0

475
que dizes?», perguntaram os
filhos de Tuirenn.

Lug do Braço Longo mediu-os


de alto a baixo com um ar de
desprezo e disse com uma voz
forte, de modo a que o
ouvissem todos aqueles que
estavam presentes na
assembleia: «Onde estão pois
o espeto de assar e os três
brados que vos pedi? Parece-
me bem que não estão
incluídos entre o que me
trouxestes ... »

Ao ouvirem aquelas palavras,


os filhos de Tuircim ficaram
aterrorizados e lembraram-se
de repente que tinham perdido
a memória. Deixaram Tara e
dingiram-se a casa do pai em
Dun Edair”>. Contaram-lhe as
suas aventuras e o modo
como Lug do Braço Longo os
tratara diante da assembleia,

476
ficando Tuirenn muito
entristecido e angustiado.
Passaram juntos aquela noite
e de manhã dirigiram-se para
o porto, mas já não podiam
embarcar na barca de
Mananann, pois tinham-na
entregue a Lug. Ethné, a irmã
deles, estava em sua
companhia, acompanhando-
os quando estavam em terra.
E, quando chegou a hora do
embarque, entoou um canto
de lamento que lamentava a
má sorte dos filhos de Tuirenn.

Depois de terem ouvido o


canto da irmã, os filhos de
Tuiremi içaram as velas do
barco e partiram para o alto
mar. 0 espeto de assar objecto
da sua demanda estava na
ilha de Fianchair, mas nenhum
deles conhecia a localização
desta ilha, e o barco em que
agora viajavam não podia

477
levá-los por si mesmo ao
destino que eles queriam
alcançar. A única coisa que
eles sabiam era que aquela
ilha estava sob o mar.

Navegaram ao acaso durante


um quarto do ano, fazendo
perguntas a todos os que com
eles se cruzavam, e acabaram
por descobrir que a ilha de
Fianchair estava a pouca
distância da embarcação.
Fazendo esta avançar sobre a
crista das ondas, tentaram
achar o caminho que levava à
ilha e, passadas algumas
semanas, souberam que ela
estava mesmo debaixo deles,
bastando-lhes mergulhar para
a alcançarem. «Eu vou
sozinho», disse Brian aos
irmãos, «pois na qualidade de
mais velho sou responsável
por vocês.»

478
Deixaram-no então ir, e ele
entrou na cidade que se erguia
debaixo do mar. Aí estava um
grupo de mulheres a coser e a
bordar, podendo ele
aperceber-se, entre os
numerosos objectos que elas
tinham à volta, de um espeto
de assar. Então, sem fazer
barulho, Brian aproximou-Se
dos espetos, agarrou num e
dirigiu-se para uma porta, mas
de repente todas as mulheres
presentes começaram a rir.
«Que acção corajosa

1. Ou seja, na colina de
Howth, na extremidade
nordeste da baía de Dublin.

acabas de realizar!», disse por


fim uma delas a Brian. «Fica a
saber que, se tivesses vindo
com os teus irmãos, nenhuma
de nós permitiria que
levassem o espeto. Muito pelo

479
contrário, precipitando-nos
sobre vós, arrancar-vos-íamos
os olhos e castrar~vos-íamos.
Mas, como vieste só, sem
defesa e como não nos
agrediste, não nos opomos a
que leves o espeto.
Admiramos a tua bravura, e
por isso te deixamos partir.»

Brian agradeceu-lhes e
despediu-se delas. Depois,
deixou a cidade e foi ter com
os irmãos a bordo do barco,
ficando eles satisfeitos por o
verem voltar são e salvo.
Içaram as velas e voltaram
para o alto mar em direcção ao
norte, dirigindo-se para o
monte de Miodchain, o antigo
mestre de Cian, filho de
Dianceclit. Nesse monte
deveriam dar três brados,
levando-os aos três para Lug,
filho de Cian.

480
Demoraram vários meses até
chegarem à ilha onde se
erguia o monte de Miodchain.
Quando aí chegaram,
Miodchain viu-os e velo ao seu
encontro, pois cabia-lhe a
tarefa de impedir que alguém
desse três brados naquele
monte. Ao vê-]o, Brian não
hesitou em atacá-lo, e lutaram
durante muito tempo. Por fim,
Miodchain caiu morto, mas
deixou três filhos que, por seu
lado, vieram lutar contra os
três filhos de Tuirenn. Depois
de uma luta violenta e
impiedosa, os filhos de
Miodchain golpearam os
corpos dos filhos de Tuirenn
com as suas lanças, mas
estes, sem se deixarem
atemorizar e desafiando a
propria morte, atravessaram
de lado a lado os filhos de
Miodchain com as suas
armas, fazendo-os cair sem

481
vida por terra. Então, os três
filhos de Tuirenn deram três
brados nos montes e, apesar
de terem sofrido graves
ferimentos, voltaram para o
barco e desfraldaram as velas.
«Não podemos morrer antes
de chegarmos à Irlanda»,
disse Brian aos irmãos, «pois
temos de pagar a Lug do
Braço Longo a compensação
que nos pediu.»

Navegaram, assim, durante


várias semanas até avistarem
a Irlanda, e atracaram o barco
diante da fortaleza de Bem
Adair. Tuirenn veio recebê-los
à costa, e, vendo-os num triste
estado, ficou desolado e
desesperado. «Pai», disse
debilmente Brian, «estão aqui
connosco o espeto de assar e
os três brados que demos no
monte de Miodchain.
Trouxentos o que Lug nos

482
pediu para o recompensar
pelo assassínio do pai. Leva-
lhe o que trouxemos e ped e -
1 he emprestada a pele de
porco do rei da Grécia, para
que possamos sai,ii- os
ferimentos e salvar a vida. Vai
depressa, porque estamos
esgotado,, mas não
queríamos morrer sem Voltar
a ver a Irlanda e sem pagar o
preço do que nos era exigido.»

Tuireim partiu imediatamente


à procura de Lug do Braço
Longo e

483
encontrou-o em Tara, no meio
de uma assembleia dos
nobres e dos chefes das tribos
de Dana. Deu-lhe o espeto e
os três brados dados no monte
de Miodchain e, diante de toda
a assembleia, pediu-lhe
emprestada a pele de porco
do rei da Grécia para salvar a
vida dos três filhos. «Isso não
está estipulado no acordo que
fizemos», respondeu Lug,
«Fico muito satisfeito por os
teus filhos terem cumprido a
sua obrigação e por terem
pago a compensação que me
deviam pelo assassínio do
meu pai, mas não me
interessa nada o que lhes
possa acontecer. De modo
nenhum te emprestarei a pele
de porco do rei da Grécia.»

Então, Tuirenn voltou para o


lugar onde deixara os filhos,
que estavam deitados, quase

484
sem forças, a bordo do barco,
e anunciou-lhes a resposta de
Lug. «Leve-me à presença de
Lug, ó meu pai», disse Brian,
«e eu suplicar-lhe-ei que me
ceda a pele de porco que faz
sarar todas as feridas e cura
todas as doenças.»

Tuirenn levou-o então a Tara.


Quando chegou à casa real,
disse Brian a Lug do Braço
Longo: «Nós cometemos um
crime contra o teu pai, e tu
exigiste de nós uma
compensação que foi
satisfeita. Deixa por isso que
curemos as nossas feridas.»
«Isso não faz parte do nosso
acordo», disse Lug com
firmeza. «Vós cumpristes a
obrigação, tendes salvo a
vossa honra, mas nada mais
posso fazer por vós. E nada
me obriga a salvar a vida dos
assassinos do meu pai,»

485
Após ouvir a resposta de Lug,
Brian pediu ao pai para o levar
de volta para o barco onde os
irmãos jaziam, e, subindo para
bordo, foi deitar-se ao lado
deles. E logo os três irmãos
perderam a vida, deles se
libertando a alma. Tuirenn
crigiu um pilar para os filhos e
aí gravou os nomes deles em
ogham. E Ettiné, filha de
Tuirenn, entoou um cântico
fúnebre pelos seus três
irmãos.

Assim se vingou Lug do Braço


Longo dos filhos de Tuirenn,
fazendo-os pagar pelo
assassínio que perpetraram
contra a pessoa do seu pai,
Cian, filho de Dianceclit.1’1

1. Segundo a narrativa de
Destino dosfilhos de Tuirenn.

486
Cal) ítt, J(,> VI

m tempos muito distantes,


havia um rei muito poderoso
que exercia a sua autoridade
sobre um país a que hoje se
chama Céltica. E este rei tinha
uma filha a quem dera o nome
de CeItmé. Esta sua filha era
tão bem dotada fisicamente
que nenhuma outra mulher se
lhe corriparava, e a sua beleza
fazia Com que tivesse varios
pretendentes. Contudo, o seu
aspecto e a admiração que
despertava tinham-na tomado
tão orgulhosa que rejeitava
todos aqueles que se lhe
declaravam, julgando-os
indignos da sua categoria e do
seu encanto,

Naquele tempo, o grande


Héracles acabara de enfrentar
o terrível gigante Geryon, que
tinha três cabeças e três

487
corpos. Depois de uma luta
impiedosa, ele matara o
monstro e levara consigo a
sua manada de vitelas. Foi
então que ele deixou a Eriteia,
levando consigo as vitelas, e
errou
10119amente através da
Céltica, em busca de um lugar
onde pudesse construir uma
cidade. Chegou por fim a casa
do pai de Celtiné, que o
recebeu, lhe deu belas
pastagens e o convidou a
estabelecer-se no seu reino.

. Ora, logo que viu Héracles, a


bela Celtiné apaixonou-se por
ele, POIs, segundo pensava,
um homem com aquele porte
e uma presença tão distinta
tinha por força de lhe estar
destinado. Por infelicidade,
11éracles não parecia prestar-
lhe atenção, estando muito
ocupado com as suas vitelas.

488
Imaginou então uma
artimanha e, uma noite,
escondeu
08 animais numa caverna cuja
entrada só ela conhecia.

Héracles ficou consternado


quando soube do
desaparecimento da sua ’n~a,
e jurou a si mesmo que a havia
de encontrar o mais depressa
possível. Ele calcorreou então
os vales mais escondidos e
secretos, sem

489
encontrar a mais pequena
pista sobre o seu paradeiro;
pelo caminho ia interrogando
as pessoas que encontrava,
sem nunca receber uma
resposta que lhe pudesse
indicar o caminho certo a
tomar. Então, a bela Celtirjé
veio ao seu encontro. «Eu sei
onde estão as tuas vitelas»,
disse ela, «Mas se quiseres
saber onde elas estão, terás
de aceitar as minhas
condições.»

Héracles acedeu, e ela guiou-


o até â caverna onde se
encontravarn as vitelas. Louco
de alegria, Héracles levou-as
para um belo prado mas,
chegada a noite, tinha de se
sujeitar às condições impostas
pela jovern, que se traduziam
em se unir a ela. E como ele
começava a deixar-se seduzir
pelos seus encantos, não teve

490
dificuldade em aceitar unir-se
a ela.

Da ligação entre ambos


nasceu um filho a quem
chamaram Celtos, em
homenagem à mãe. Este filho
não tinha igual entre as gentes
do país pois era de uma
coragem e de uma robustez
invulgares. Chegado à idade
adulta e tendo herdado o reino
dos seus antepassados,
conquistou uma grande parte
dos territórios vizinhos e
destacou-se graças a
inúmeros actos heróicos. E,
como forma vincar bem o seu
poder, deu o seu nome aos
povos que ficaram sob o seu
domínio, estendendo-se
depois este nome a todos os
países dos celtas.

Os seus descendentes
reinaram num clima de paz e

491
de prosperidade, construindo
vastas fortalezas para se
defenderem de eventuais
invasões. Bravos e
generosos, os soberanos
fizeram-se rodear de artistas e
de poetas. Um dos soberanos,
chamado Luern, fazia os
possiveis para receber
benesses do seu povo, e
quando passava de carro
pelos campos, atirava ouro e
prata para a multidão de
homens e mulheres que o
seguiam ou que se chegavam
à berma dos caminhos para o
ver passar. Em certas alturas,
ele ordenava que para um
certo recinto preparado para o
efeito se encaminhassem
grandes quantidades de
bebidas preciosas e de
provisões, de tal modo que,
durante vários dias, se podia
entrar livremente no recinto e
ficar regalado com os

492
acepipes que eram servidos
ininterruptamente a quem
quer que chegasse.

Um dia - tendo sido a data


marcada com grande
antecipação - 0 rei Luern
ofereceu um grande festim a
todos os poetas e músicos do
país. A festa foi de arromba e
durou várias horas. Os
convivas começavam a pedir
licença para se retirarem
quando chegou um poeta, que
se atrasara bastante. Vendo
que a festa estava no fim, o
poeta apareceu diante de
Luern e entoou um canto em
que prestava homenagem à
magnificência do rei, ao
mesmo tempo que lamentava
que o atraso o tivesse privado
de uma grande alegria. 0 rei,
divertido e encantado com Os
seus versos, pediu uma bolsa
de ouro a um dos seus criados

493
e atirou-a aos pés do poeta
que corria atrás do seu carro.
0 poeta apanhou a bolsa, mas
continuou a correr enquanto
entoava outro canto, dizendo
que o rasto deixado na terra
pelo carro do rei eram raios
que faziam prenunciar uma
grande quantidade de ouro e
de benefícios para os homens.

Entretanto, à medida que


cresciam as riquezas, a
população ia aumentando, até
que chegou o dia em que as
colheitas já não eram
suficientes para garantir a
alimentação de todos,
tornando-se por isso difícil
governar tanta gente. Assim, o
rei Ambigat, sucessor de
Luern, que se sentia
envelhecer e que queria aliviar
o reino do excesso de
população, chamou à sua
presença dois filhos da sua

494
irmã, Bellovèse e Ségovèse,
Jovens corajosos e
empreendedores. Anunciou-
lhes a sua intenção de os
enviar para novas terras e
pediu-lhes, com este
propósito, para determinarem
o número de homens que
queriam levar com eles,
devendo evitar-se qualquer
revolta entre as populações
com as quais iriam entrar em
contato.

Bellovèse e Ségovèse
escolheram então os homens
que os deveriam acompanhar;
depois foram convocados os
druidas, os sábios, os
adivinhos, e perguntaram-lhes
qual seria o melhor destino a
dar a estes dois grupos. Os
druidas, os sábios e os
adivinhos, depois de se
reunirem, disseram:
«Segundo pensamos,

495
impõem-se duas direções,
uma para a floresta herciniana
e a outra para Itália. Isto deve-
se a que as regiões mais
férteis da Germânia se
encontram perto da floresta
herciniana, numa região a que
os antigos chamavam Orcinia.
Quanto à Itália, o seu clima e
os seus vales muito férteis
permitem cultivar a vinha, o
que será uma fonte de grande
riqueza. «Muito bem», disse o
rei Ambigat, «mas falta-me
saber qual dos meus
sobrinhos vai para oriente e
qual vai para sul.» Tiraram à
sorte, sendo atribuída a Itália a
SégOvèses e a floresta
herciniana a Bellovèse.

Bellovèse partiu então com


um grande número de
homens, cavaleiros e
soldados de infantaria, com
carros de combate e pesadas

496
carroças para transportarem
os víveres e os despojos. No
entanto, como não
encontraram na floresta
herciniana o que esperavam,
os druidas do grupo
preconizaram que se seguisse
para sul, seguindo a mesma
rota dos pássaros que voavam
Ilaquela direcção e passavam
para além de altas
montanhas. Foi assim que
este grupo de celtas, que a si
mesmos se chamavam
gauleses, gente brava,
te`nível e audaciosa,
consegulu subi

ir ao cume vertiginoso dos


Alpes e chegar a lugares tão
frios que se diria serem
inacessiveis.

497
Na etapa seguinte, aquele
grupo chegou à llírIa, cujos
habitantes levavam uma vida
de ócio e passavam o tempo
sentados à mesa em festins
intermináveis. Os gauleses,
procurando uma maneira de
se desembaraçarem deles
com um mínimo de custos,
decidiram então tirar partido
da sua intemperança: cada
um deles devia convidar um
Iliriano para a sua tenda, e
sentando-o a uma mesa muito
bem fornecida de comes e
bebes misturaria entre a
comida uma certa erva que
desarranja os intestinos. E,
graças a este estratagema, os
gauleses tornaram-se donos
do país, sendo vários os
ilirianos que sucumbiram em
estado de fraqueza, enquanto
outros se atiravam para os rios
devido a não aguentarem a
incontinência infernal dos

498
intestinos.

Mas há também quem


defenda que os ilirianos
pereceram por terem sido
víturias da vingança do deus
Apolo, o qual terão ofendido
com a sua gula e a sua
indolência. Antes de
começarem os combates
contra os gauleses, sofreram
calamidades naturais,
tempestades e chuvas
diluvianas. E aqueles que
conseguiram escapar às
inundações e à traição dos
gauleses,
1

encontraram depois outros


tormentos, pois a terra
produziu uma enorme
quantidade de rãs, cuja
putrefacção e estado de
decomposição deterioraram
as águas do país, Pior ainda,

499
devido aos miasmas que
saiam da terra, o ar tornou-se
tão infecto que apareceu uma
peste de tal modo mortífera
que todos foram obrigados a
abandonar o país. E os
gauleses não quiseram
continuar por muito tempo
nesta região maldita.

A primeira expedição dos


gauleses foi comandada por
Cambaulès. Tendo penetrado
até à Trácia, os gauleses no
entanto não ousaram atacar
os povos que existiam para
além desse território. A
expedição seguinte, realizada
por aqueles que tinham
seguido Catnbaulès, foi
composta por um exército
poderoso de soldados de
infantaria e de cavaleiros que
se dividiram em três corpos, o
primeiro confiado a
Cerethrios, o segundo a Breno

500
e Cichorios, o terceiro a
Bolgios. Este últirflO partiu
imediatamente para fazer
guerra aos macedónios.

Os gauleses possuíam um
equipamento bélico que
enchia de espailto os povos
por cujas terras passavam. Na
verdade, como armas
defensivas eles usavam
escudos que lhes desciam da
cabeça até aos pés, ornando-
os cada um a seu gosto. Como
estes escudos serviam não só
para defesa como também
para ornamento, alguns
soldados tinham gravado
neles figuras de bronze em
alto relevo trabalhados com
muito requinte. Os capacetes
de bronze possuíam partes
salientes que davam um
aspectO fantástico àqueles
que os usavam. Alguns destes
capacetes tinham chifr,-’S

501
134 C__C__IIC

e outros possuíam efigies com


pássaros e animais de todas
espécies em relevo, Além
disso, os guerreiros sopravam
trombetas bárbaras que,
graças a um truque de fabrico,
provocavam um ronco
descomunal que auinentava
ainda mais o grande tumulto
existente no decurso das
batalhas.

Estes povos tinham uma tal


reputação e exibiam um -
aparato tão grande que
chegou a haver reis que, sem
serem atacados,
simplesmente ao ouvirem o
seu nome, lhes compraram a
paz a preço de ouro. Só
Ptojorneu, rei da Macedónia,
não mostrou me-do ao saber
que eles se aproximavam.

502
Revoltado com os seus crimes
atrozes e com os seus
parricídios, atreveu-se a
marchar ao encontro deles
com um punhado de
guerreiros desorganizados,
como se pudesse fazer frente
a um tão poderoso exército.
Os gauleses, cujo rei era
Bolglos, enviaram
inensageiros a Ptolomeu para
saber da 1sua disposição e
para lhe perguntar se queria
comprar a paz, e este último
vangloriou-se perante os seus
por ter levado os gauleses a
pedir a paz. E levou a
presunção ao ponto de
afirmar, diante dos emissarios,
que não poderia haver paz se
os gauleses não
1

depusessem as armas e não


entregassem os seus chefes,
pois só confiava neles se

503
estivessem desarmados,

Quando os mensageiros
voltaram para o seu campo e
contaram o que se tinha
passado, os gauleses
puseram-se a rir e
exclamaram cheios de
desprezo que o rei da
Macedónía não tardaria a
saber se era por medo ou por
piedade que lhe tinha sido
oferecida a paz. E a
determiiterem au

nação dos gauleses para


comb, mentou
consideravelmente. Alguns
dias mais tarde, os dois
exércitos enfreritaram-se, e os
macedónios foram
destroçados. Ptolomeu, que
sofreu graves ferimentos, foi
fOft0 Prisioneiro, depois
puseram a cabeça dele na
ponta de uma lança e

504
exibiram-na à volta do campo
de batalha para convencer os
macedónios de que não
tinham salvação possível.

Quando voltou da perseguição


feita aos fugitivos, Bolgios
juntou ()s Prisioneiros e, entre
eles, escolheu os mais fortes e
válidos para selem imolados,
manifestando desse modo o
seu agradecimento pela vitória
aos deuses. Foram poucos os
macedónios que escaparam,
tendo sido quase todos mortos
ou capturados. Quando na
Macedónia se soube deste
desastre, os habitantes
concentraram-se Das cidades
e fecharam as suas entradas.
A consternação era geral, mas
um dos principais chefes, que
se chamava Sóstenes, decidiu
reagir e resistir aos invasores.
Juntou uma grande parte dos
Jovens e, cheio de

505
entusiasmo e de
determinação, ellegou a deter
o avanço dos gauleses que,
muito entretidos a celebrar

506
entusiasticamente o tritirifo,
tinham perdido o espírito
ofensivo. Entrementes, o outro
chefe gaulês, que se chamava
Breno, dirigira-

-se para a Grécia, que


tencionava Ocupar. Quando
soube que as hostes
comandadas por Bolgios
tinham vencido os
Macedónios mas tinham
parado de avançar, ficou
indignado por eles
negligenciarem de forma tão
inglória um despojo valioso
que continha todos os
tesouros do Oriente. Juntou
então quinze mil cavaleiros e
cento e cinquenta mil
soldados de infantaria que,
cheios de determinação,
invadiram a Macedónia.
Enquanto saqueavam os
campos, Sóstenes veio atacá-
los com as suas hostes, mas

507
estas eram pouco numerosas
e a maior parte dos jovens que
as compunham receavam a
ferocidade e a reputação dos
gauleses. Assim, estes
últimos, resolutos e
confiantes, facilmente os
fizerem dispersar por todo o
país. Os macedóníos voltaram
então a fechar-se no interior
das muralhas das suas
cidades, e Breno pôde a partir
daí entreter-se a saquear à
sua vontade as regiões
vizinhas.

Entretanto, o saque
acumulado parecia bastar aos
gauleses, cuja satisfação lhes
refreou o ímpeto, facto que
desagradou a Breno. 0
objectivo deste era ir muito
mais longe e descobrir um
país onde ele e os seus
pudessem prosperar e viver
num clima de tranquilidade.

508
Por isso, não descansou
enquanto não convenceu as
suas gentes a pegarem em
armas contra os gregos. Para
as convencer fez discursos
muito eloquentes em que
mostrava de um lado a Grécia
derrotada e sem forças, e do
outro a sua audácia que era
responsável pela opulência
das cidades, a riqueza dos
templos e grandes quantias de
ouro e de dinheiro.

Para convencer os gauleses a


seguirem-no, Breno fez
desfilar perante as
assembleias do povo
prisioneiros gregos de cabeça
rapada que ele escolhera
entre os mais enfezados e os
mais macilentos e que eram
seguidos pelos seus homens
mais corpulentos e robustos -
desse modo podia dizer que
guerreiros tão possantes nada

509
tinham a recear de inimigos
tão frágeis e indefesos.

Assim, Breno conseguiu


formar um extraordinário
exército de cento e cinquenta
mil soldados de infantaria e de
dois mil e quatrocentos
cavaleiros. Cada senhor
possuía dois lacaios que
seguiam atrás dele: se perdia
um cavalo, um dos lacaios
dava-lhe o seu e, se ele
morria, um deles substituía-o
no combate. E, se morressem
dois, havia um terceírO para
prosseguir a luta. Os gauleses
chamaram a esta espécie de
milícia trimarkesia, termo
derivado da palavra marka
que, na língua celta da~ quele
tempo, significava cavalo.
Com este equipamento, Breno
CO-

filandou, muito seguro de si, o

510
seu exército até à Grécia.

Breno era extremamente


audaz o experiente, sendo
mesmo perito eni. artimanhas
e, em expedientes de todo o
gênero para enganar o
adversário. Uma DOlte, em
vez de se deixar intimidar pela
destruição das pontes do rio
Sperchios, teve a ideia
brilhante de enviar dez mil
hornens para a foz do rio.
Queria ele que os seus
homens atravessassem para
a outra margem sem os
Gregos saberem. Naquele
lugar, com efeito, o rio não
tinha uma corrente tão forte, e
prolongava-se para o interior
dos campos, formando aí um
verdadeiro pântano. Ora,
entre estes dez mil homens,
uns sabiam nadar
perfeitamente, e outros tinham
unia estatura imponente,

511
tendo Breno apenas o
problema da escolha, pois os
celtas tinham uma compleição
sem igual entre todos os
outros povos. Foi assim que,
naquela noite, uma parte do
destacamento conseguiu
atravessar o rio a nado,
enquanto a outra pai-te o
atravessou sem perder o pe, o
que não estava ao alcance de
pessoas mais pequenas.

Entretanto, Breno dera ordens


aos habitantes das
redondezas do golfo Maliaque
para construírem uma ponte
no rio Sperchios, e aqueles
tinham-se apressado a fazê-
lo, incitados pelo medo que
tinham daqueles guerreiros
armados que os obrigavam a
trabalhar dia e noite. Quando
a ponte ficou concluída, os
gatileses atravessaram o rio e
avançaram para Heraclea,

512
pilhando todas as habitações
que encontravam e matando
todos os homens que se lhes
atravessavam no caminho,
deixando os seus corpos
espalhados pelos campos.
Mas o mais importante para
Breno não era conquistar
Heraclea. Para ele o
objecÚVO principal era
expulsar a guarnição das
muralhas que protegiam a
cidade, pois se isso não fosse
conseguido, não conseguiria
alcançar a passagem das
Termópilas.

Após violentos combates,


Breno conseguiu pôr a
guarnição em fuga. Passando
sem problemas as muralhas
de Heraclea, continuou a
marcha Para as Termópilas e
resolveu atacar os gregos que
estavam preparados Para lhe
oferecer resistência. 0

513
confronto ficou marcado, por
sua vontade, para o dia
seguinte, ao nascer do sol. Os
gregos avançaram para o
Combate muito bem
organizados e em silêncio
absoluto. Cansados pela
longa viagem, os gauleses
não estavam na sua melhor
forma nem estavam bem
armados, bem pelo contrário.
Tendo apenas escudos em
seu Poder viram-se na
contingência de se atirarem ao
inimigo como uma fOrça bruta,
parecendo feras ferozes a
atirarem-se as suas presas.

Apesar de duramente
atingidos por machados e por
espadas cor-

514
tantes, nem por isso se
rendiam e não perdiam o ,ir
ameaçador e obstinado que
lhes era característico.
Lutaram encarniçadamente,
até ficarem completamente
sem forças e não houve entre
eles quem não fizesse das
tripas coração e não retirasse
dos golpes moi-tais infligidos
pelos gregos as forças
necessárías para lhes
responder da mesma moeda,
provocando várias mortes
entre eles.

Entretanto, os atenienses
cercaram-nos tão bem pelos
flancos que os invasores não
conseguiram sair dos
desfiladeiros onde se tinham
reunido, ficando numa
situação muito delicada. Ao
verem que a situação era
desesperada, os seus chefes
deram ordens para recuar,

515
mas a fuga foi tão precipitada
que numerosos guerreiros,
caindo uns sobre os outros,
morreram esmagados. Outros
dos fugitivos meteram-se
pelos pântanos que naquele
lugar eram vizinhos do mar, e
os gauleses na debandada
perderam tantos homens
como na batalha.

Mas Breno nem assim


desistiu. Passados sete dias,
novas hostes gaulesas
puseram-se em marcha para
desta vez tentarem passar o
monte Oeta, Breno pretendia
que elas seguissem por um
pequeno atalho que levava a
Trachine, cidade que Daquela
época estava em ruínas mas
sob a .qual existia um templo
devotado a Palas, que os
habitantes da região tinham
enriquecido com numerosas
oferendas. 0 objectivo dos

516
gauleses consistia em,
seguindo através daquele
atalho escondido, chegar ao
cimo da montanha e
aproveitar para saquear o
templo.

0 objectivo, no entanto, não


era fácil de alcançar, pois os
Etólios guardavam as
passagens e sem que nada o
fizesse prever surpreenderam
os gualeses, destroçando-os.
Estes entraram em panico e
uma grande parte deles quis
pôr-se em fuga, sendo Breno
o único a não perder a
coragem. Pensou ele que, se
conseguisse obrigar os Etólios
a voltarem para trás, o
caminho ficaria aberto para
chegar ao desejado objectivo.
Assim, formou um
destacamento de quarenta mil
homens a

517
é e de oitocentos cavaleiros,
entreo ando o comando a um
chefe muito

p L

corajoso chamado Milé e ao


seu lugar-tenente Orestorios.
Ordenou-lhes que
atravessassem o rio
Sperchios e a Tessába, e que
fossem pôr o país dos Etólios
a ferro e fogo.

Foram estas tropas que


devastaram a cidade de
Callion e aí perpetraram um
massacre pavoroso. Os sexos
viris foram todos mutilados,
Os velhos foram passados
pelo fio da espada, as crianças
de tenra idade arrancadas ao
seio das mães e decapitadas;
e àquelas que pareciam
rnelhor amamentadas os
gauleses bebiam-lhes o

518
sangue e saciavam-se com

a sua carne,”’ As mulheres e


as jovens que tinham o senso
da honra entregaram-se
voluntariamente à morte para
evitarem a fúria dos
vencedores, Outras,
obrigadas a sentir na pele
todas as indignidades que se
possam imaginar, foram
depois alvo de chacota por
parte dos seus carrascos, que
eram completamente
insensíveis à piedade e ao
amor.

Quando os Etólios que


defendiam as Termópllas
souberam o que se passava
no seu país, partiram
imediatamente em socorro
dos seus compatriotas e
deixaram que os gauleses
ficassem livres para fazerem o
que muito bem lhes apetecia.

519
Passando as Térinópilas
podia alcançar-se o cume do
monte OEta por dois atalhos
distintos: um, muito estreito e
difícil, levava ao cimo de
Trachine; o outro, mais
acessível à passagem de um
exército, atravessava as terras
de Emanes. Breno escolheu
este último para a sua
expedição,

Os gregos não demoraram a


saber que os gauleses
seguiam este caminho,
conduzidos pelos habitantes
de Heracica e pelos Eníanes.
Breno deixara o seu lugar-
tenente Kikorios no
acampamento e,
acompanhado de quarenta mil
homens, seguia os guias.

Quis o acaso que, naquele dia,


um nevoeiro espesso cobrísse

520
o monte OEta de tal forma que
nem se conseguia ver o sol.
Por isso os Fócios que
estavam na região só se
aperceberam do inimigo
quando este lhes infligiu o
primeiro ataque. Gerou-se
então uma enorme confusão,
com as vidas a correrem um
grande perigo, e enquanto uns
procuravam
desesperadamente tapar a
passagem aos gauleses,
outros tentavam fazer
manobras de diversão, mas,
no fim, cercados por todos os
lados, abandonaram as suas
posições e espalharam-se em
todas as direcções, deixando
o adversário dono do terreno,

Breno não perdeu tempo.


Ordenou que se marchasse
imediatamente sobre Delfos,
dizendo repetidamente para
aqueles que o acom~

521
panhavam que era uma tarefa
dos deuses fazer tesouros
para os oferecerem aos
humanos. Um dia, aliás,
estando no interior de um
temPIO, nem sequer deu
atenção às oferendas em ouro
e prata que aí estavam
depositadas, apoderando-se
simplesmente das imagens de
Pedra e de madeira, o que
provocou uma enorme rísota:
como era possível que os
Gregos pudessem dar às
divindades formas humanas
que

Estes Pormenores de fonte


grega são extractos de
Pausânias (X,22), o qual, é
preciso notar, ”’ é mu’t0 tiável
historicamente, pois a
narrativa que ele faz do ataque
a Delfos pelos gauleses (ver
mais adiante) é uma colagem
integral da que Heródoto

522
consagrou à pilhagCm do
santuário pelos persas,

523
eram fabricadas com
materiais perecíveis?

Sem esperar que Kikorios se


lhe juntasse, Breno,
acompanhado de Milé,
precipitou-se então para o
santuário de Delfos. Sabendo
da notícia, todas as cidades da
Fócida enviaram auxílio:
Anfísia deu quatrocentos
homens de infantaria; os
Etólios, apesar de já terem
alguma experiência, apenas
forneceram um pequeno
número de guerreiros; e as
outras cidades enviaram para
Delfos o número máximo de
guerreiros que conseguiram
reunir para tentarem evitar a
pilhagem que Breno pretendia
levar a cabo.

Breno hesitou ao ver o


santuário: deveria ordenar o
ataque imediatamente ou,

524
pelo contrário, deveria
conceder aos seus homens
uma noite de descanso, já que
estavam esgotados pela
viagem? Dois dos chefes
gauleses que se lhe tinham
juntado na expectativa de um
saque

1 inimigo muito
proveitoso queriam que se
atacasse imediatamente o

que, recolhido na defensiva,


dava sinais de fraqueza. Mas
os guerreiros gauleses, fartos
de privações e maravilhados
por este país repleto de
alimentos e de vinhos, tinham
posto de lado os seus
estandartes e estavam
eufóricos pelo sucesso
alcançado e por terem
encontrado urna inesperada
abundância. Espalhados
pelos campos, os gauleses

525
colhiam os mais diversos
frutos e saciavam o estômago
e os sentidos com o que havia
para comer e beber.

Breno esforçou-se por


reagrupá-los e por lhes fazer
ver o magnífico saque que se
lhes oferecia. improvisou
discursos inflam ,ados,
exaltando o ouro maciço das
estátuas, os carros que se
distinguiam ao longe, e
garantia a pés juntos que o
valor destes objectos
ultrapassava tudo o que se
poderia imaginar. Excitados
pela sua eloquência e
embriagados pelas orgias a
que se tinham entregue, os
gauleses acabaran, por
aceitar partir para o combate.

Pressentindo o perigo
iminente, os habitantes de
Delfos perguntaram ao deus

526
se era necessário retirar dos
templos 01, tesouros que ai se
encontravam, e se era preciso
mandar as mulheres e as
crianças para cidades
vizinhas, melhor fortificadas,
onde pudessem estar em
segurança. Pela voz da Pítia,
o deus ordenou que as
oferendas e os ornamentos
dos santuários ficassem nos
seus lugares, pois ele mesmo,
cOm as Virgens Brancas suas
companheiras, se
encarregaria de as ter sob a
sua guarda. No templo do
deus encontravam-se, com
efeito, duas capelas bem
antigas, uma consagrada a
Palas Pronaos e a outra a
Artémis, e estas duas deusas,
de acordo com o oráculo,
secundavam Apolo.

A fúria dos deuses não tardou


a manifestar-se contra os

527
gauleses. para começar, o
terreno ocupado pelas suas
tropas sofreu um abalo que
durou uma grande parte do
dia. A seguir, ribombaram
trovões, acompanhados de
clarões contínuos que
aterrorizaram os assaltantes e
impedirarin que eles ouvissem
as ordens dadas pelos seus
chefes. Os raios, que
frequentemente caíam sobre
eles, não se limitavam a matar
aqueles que atingiam mas
igualmente reduziam a cinzas
os que estavam perto deles,
assim como as suas armas.
Para completar o quadro, no
céu apareceram heróis de
tempos antigos que
costumavam devolver a
coragem aos Gregos e lhes
mostrava como combater os
inimigos. Mesmo os
sacerdotes do santuário se
envolveram na batalha e se

528
colocaram na frente de
combate, gritando que deus
os tinha vindo defender e que
tinha sido visto a atravessar as
espessas nuvens que
envolviam as montanhas.

Parecia que todo o universo


estava em fúria. Os gauleses,
depois de terem passado por
tantos reveses e por tantas
angústias durante o dia da
batalha, tiveram uma noite
ainda mais negra, pois a
enorme quantidade de neve
que caiu tornou o frio ainda
mais insuportável. E os
gauleses chegaram mesmo a
acreditar que as Virgens
Brancas das profecias se
tinham virado contra eles, de
tal modo eram fustigados por
rabanadas de vento e por
borrascas de neve.

Depois, como se todos os

529
elementos tivessem cumprido
o seu papel, soltaram-se do
monte Parnaso grandes
pedras, ou antes revoadas de
rochas inteiras que, caindo
sobre eles, esmagaram não
um ou dois de cada vez mas
trinta e quarenta. E o sol só se
ergueu quando os gregos, que
se tinham refugiado na cidade,
a deixaram, enquanto os
Fócios, por seu lado, desciam
das montanhas geladas. Só
os guardas de Breno e os
homens de elite, muito
robustos e rijos, resistiram ao
ataque, embora estivessem
enregelados e exaustos. Ao
verem o seu chefe
gravemente ferido e numa
situação desesperada, estes
últimos não hesitaram em
cobrir-lhe o corpo e em
transportá-lo, atitude esta que
provocou uma debandada
geral.

530
Na fuga, foram surpreendidos
pela noite e acamparam,
passando c

então por momentos de


pânico, palavra esta que
designa medo, crendo-se que
eles estavam a ser inspirados
pelo deus Pá em pessoa. 0
pavor da noite fê-los passar
por um falso alarme, quando
um grupo de guer`-irOs
pensou ouvir um galope que
se aproximava e que os
vinham atacar por trás. 0
medo logo contagiou os
outros, e todos empunharam
as respectivas armas,
dividiram-se em diversos
grupos e guerrearam-se

531
entre si, plenamente
convencidos de que
enfrentavam os Gregos.

0 pâníco criado foi de tal


ordem que, tendo eles
esquecido a sua própria
língua, acreditavam que as
palavras que ouviam eram dos
gre-

1 1 1

gos. Acresce que, no meio da


escuridão, não conseguiam
distinguir nem reconhecer a
forma dos seus escudos,
apesar de serem muito
diferentes dos dos seus
inimigos. Assim, todos eles de
uma forma ou de outra
passaram a noite enganados
e foram poucos os que
conseguiram voltar para o
campo de Heraclea quando a
luz do dia irrompeu.

532
Breno perdeu muitos milhares
de homens naquela aventura,
tendo sido ele mesmo ferido
por três vezes. Sabendo que
não tinha muito tempo de vida,
chamou ao seu leito de morte
os seus principais lugares-
tenentes e pediu-lhes que
acabassem com ele, assim
como com todos os feridos,
que incendiassem todas as
carroças, alcançassem um
porto e voltassem o mais
depressa possível para o país
de origem, Ordenou também
que o comando do que restava
das tropas fosse entregue a
Kikorios e a Milé, e depois de
se embriagar apunhalou-se a
si próprio, assim perdendo a
vida o chefe desta expedição
que se aventurou pelas
montanhas e pelos vales da
Grécia.

533
Por ordem de Kíkorios, ele foi
sepultado e tirou-se a vida aos
feridos, assim como a todos
aqueles que, em grande
número, tinham adoecido
devido ao frio e à fome.
Depois, de comum acordo
com Milé, Kikorios reuniu os
homens que pertenciam ao
seu clã e dirigiu-se corn eles
para o mar, tendo ainda de
travar várias batalhas para
abrir carninho e chegar aos
barcos. Uma vez embarcados,
ele e os seus deixaram-se
conduzir pelo vento, e
chegaram às costas da Ásia. E
são eles que, desde então,
são chamados Gálatas.1’I

No que respeita a Milé e aos


seus companheiros, estes
tomarain outra direcção e,
depois de várias atribulações,
chegaram a um porto e
decidiram deixar o país.

534
Depois de terem trocado uma
parte do saque por barcos,
fizeram-se ao mar e chegaram
às costas de Creta. Contudo,
ficaram aí pouco tempo, pois
não foram bem recebidos
pelos habitantes do país.
Então, embarcaram de novo e
navegaram até ao Egipto,
onde morreu Milé, tendo-se
tornado o seu filho Bréogan 0

1, Toda a primeira parte deste


capítulo foi redigida de acordo
com episódios que se
enc011tram dispersos por
obras de escritores gregos e
latinos da Antiguidade:
Apamea (XX1,1), Tito-Lívio (V,
34), Justino, que faz o resumo
do Gaulês Trogue-Pompeu
(XX1V, 4,5,6,8), Ateneu
(X,60), Ãpio (1vrica), Diodoro
de Sicilia (V, 31 e Fragmentos
XX11 e

535
Pólio (VII, 35), Cícero (De
Divinatione) e sobrctudo,
Pausânias (X, 19, 20, 21, 22,
23).

chefe do clã a que mais tarde


se chamou Filhos de Milé.

Mas, não lhes interessando o


país do Egipto, decidiram
todos partir. Andaram então
ao acaso pelo mar Ti

rreflO, e acabaram por


desembarcar na Sicília, mas
não Permaneceram aí mu’

’to tempo Pois os seus druidas


e os seus adivinhos
tinham~lhes dito para
navegarem o mais possível
para oeste, para os países
onde o sol se põe sobre as
vagas do oceano. Voltaram
Por isso para o mar, com
diversos navios, e acabaram

536
por chegar à costa de
Espanha. E foi aí que morreu
Bréogan, filho de Milé ` que
deixou oito filhos, os quais
foram Os chefes dos Filhos de
Milé que quiseram dar a estes
um país digno do seu valor.

0 filho mais velho de Bréogan


dava pelo nome de Ith. Mais
do que os irmãos, estava
decidido a descobrir os países
maravilhosos cujas virtudes o
irmão Amorgen, que era
poeta, tanto enaltecia nas
suas visões proféticas. Um
dia, com muito esforço ele
subiu ao e I

ume de uma montanha. 0


tempo estava muito claro,
Permitindo que se estendesse
o olhar até muito longe, e ele
olhou ria direcção dO Poente.
Vislumbrou então uma terra
verdejante que tinha uma

537
aparência sedutora. Desceu à
pressa a montanha e foi contar
aos irmãos o que vira. Mas
Brégu, filho de Bréogan,
troçou dele, dizendo que a
terra que vira não podia ser
senão uma nuvem suspensa
no céu. Mesmo assim, Ith
insistiu levo -os a todos ao
cimo da Montanha de
e u

, onde avistara a terra


maravilhosa. «Tinhas razão»,
disseram Os filhos de
Bréogan, «trata-se de uma
terra onde Poderemos levar
uma bela vida a criar animais
e a viver da agricultura-
Vamos Pois preparar a partida
de Modo a alcançá-la por
mar.»

Durante várias semanas, Os


filhos de Milé construíram
navios e

538
09uiparam_flOs, preparando-
os para se poderem abastecer
de provisões e de água doce.
Quando terminaram os
Preparativos, levantairam
âncora e partiram à vela. E os
ventos empurraram-nos a
toda a velocidade pelo meio
do oceano que cerca o mundo,
ameaçando levar
08.barcos para o fundo e
lançar os seus tripulantes nos
abismos onde rcinam as
trevas da noite.

Os Filhos de Milé já
navegavam há vários dias
quando foram envolVidos por
uma bruma. Como o vento
caíra, andaram muito tempo à
deri’a Sobre as ondas. Mas,
de súbito, viram para lá da
bruma uma luz débil que
Parecia brilhar a Partir do
vazio. Todos tentaram
perceber que luz seria aquela

539
e começaram a desesperar
acreditando estar no fim do
mundo, quando vislumbraram
a silhuetade uma O’Te DO
meio do mar. e

nlâram então na sua direcção


com todas as suas forças e
chegaram ao

540
pé de uma torre imensa que,
muito direita rio mar, ia
abraçar o céu. pi. caram
estupefactos quando viram
que a torre era de vidro e que,
no seu interior, subiam e
desciam homens que
pareciam não lhes dar
atenção.

Os filhos de Milé gritaram o


mais alto que puderam para
chamar a atenção dos
desconhecidos. Estes
olharam-nos, mostraram-se
indiferentes à sua presença, e
não disseram nada. Então, os
filhos de Milé perguntaram-
lhes quem eram e que torre
era aquela, mas no outro ]ado
da muralha de vidro os outros,
sem pronunciarem uma
palavra, continuaram
entretidos com o que estavam
a fazer, como se nada tivesse
acontecido. A luz

541
desapareceu então, e a bruma
encerrou-os numa estranha
obscuridade que os encheu de
angústia.”’

Entretanto, a bruma não


tardou a dissipar-se, tão
depressa como se formara.
Eles encontravam-se bem no
alto mar, e o sol começou a
declinar para o horizonte.
Mas, por muito que eles
olhassem em volta, Dão viam
nenhum vestígio da torre de
vidro e dos seus misteriosos
habitantes. Então,
recomeçaram a navegação
seguindo a direcção do norte,

Aportaram na Irlanda na praia


que confina com a planície
que hoje se chama Mag Ilha,
em memória de Ith, o primeiro
dos filhos de Milé a
desembarcar naquele lugar. 0
segundo a desembarcar ali foi

542
o seu irmão Amorgen do
joelho branco, o poeta, que, ao
pousar o seu pé eni terra,
entoou o canto seguinte:

«Mar tão piscoso e brilhante,


terra fértil, bosques em vales,
com bandos imensos de
pássaros, mar rude com
vagas brancas, estuários
profundos

com centenas de salmões,


írrupção de peixes,

mar de peixes infinitos, rios


abundantes em água,
terrafértil e verdejante ... »

Os filhos de Milé tinham


chegado em trinta e seis
navios. Qualido todos tinham
desembarcado, vieram
pessoas falar-lhes e
aperceberaal-

543
144

1. 0 episódio da Torre de Vidro


encontra-se apenas na
Ilistoría Brittonum, narrativa
ein latim de Nenníus, e que
data do século X.

_se cora espanto, de parte a


parte, que falavam a mesma
língua, ou seja, o gaélico,
passando então a tratar-se
afavelmente. Os Filhos de
Mílé quiseram saber o nome
da ilha e a identidade dos seus
habitantes. <Vós estaís na ilha
de Elga», responderam os
outros, «e nós pertenceaios às
tribos de Dana. Actualmente
temos três reis, Mac Cuill, Mac
Cecht e Mac Greine, filho de
Cermat, filho de Dagda, e os
seu s três reinos são
Banba, FothIa e Eriu.»”’

Depois de combinarem o que

544
haviam de fazer, os Filhos de
Milé decidiram enviar um dos
seus a presença dos reis das
tribos de Dana para lhes
perguntar se se podiam
estabelecer numa parte da
ilha para a cultivarem e aí
fazerem a criação de gado. E
como tinha sido Ith a coaduzi-
los até ali, foi-lhe confiada
aquela missão, partindo ele
imediataalente com uma
quinzena de homens.

Naquele dia, os chefes das


tribos de Dana estavam
reurildos em Tara, na casa
real, para resolverem o
conflito que opunha Mac Cuill
aos seus dois irmãos, Mac
Cecht e Mac Greine. Estes
dois últimos acusavam Mac
Cuill de ter ficado com a maior
parte dos tesouros de
Fiachma, filho de Delbaeth,
que morrera pouco antes.

545
Quando Ith chegou a Tara, o
porteiro fê-lo entrar na casa
real, e os reis deram-lhe as
boas vindas expondo-lhe
depois os motivos daquela
disputa.

«Seria conveniente que


houvesse um clima de
amizade», disse Ith, «pois
nenhum país pode ser feliz e
próspero se não houver
coacórdía e fraternidade entre
aqueles que o governam, A
vossa ilha é boa e verdejante,
com pastagens aprazíveís; o
trigo, o peixe, os cereais são
aqui abundantes. 0 calor e o
frio não são excessivos e nada
vos falta. Deixai-vos pois de
quezílias e partilhai
equitativamente os tesouros
que vos fazem guerrear uns
contra os outros. Pela t’

minha parte, só vos peço uma

546
coisa: que permitis que nos
estabeleçamos numa das
vossas regiões. Podeis ficar
certo de que a trataremos
bem, cultivando-a e criando
animais, ficando-vos muito
gratos por todo o bem que nos
fizerdes.» «Tens razão»,
disseram os reis, «quando nos
dizes que é muito triste
andarmos em disputas por
causa de tesouros que não
são dignos disso. Quanto a ti,
volta para perto dos teus

l- E11COntram-se aqui os três


Domes da Mulher Primordial,
a que estava adormecida
durante

0 dilúvio e que simboliza a


Irlanda. Os três reis possuem
nomes reveladores: Mac Cuill
significa literalmente «filho de
aveleira» (sendo a aveleira
uma árvore mágica e

547
druidica), Mac Ceclu, «filho do
arado» e Mac Greine «filho do
sol».

145

548
e diz-lhes que em breve
concluiremos um tratado entre
nós.»

Ith disse-lhes adeus e,


satisfeito por ter cumprido a
sua missão, voltou para o
lugar onde os filhos de Milé
tinham desembarcado.
Entretanto, os chefes das
tribos de Dana começaram a
conspirar nas

suas costas. Diziam que ele


era filho de um dos reis do
mundo, e que viera espiá-los
com o objectivo de se
apoderar de toda a ilha, sendo
necessário impedir que
aquelas gentes se
instalassem naquelas terras
que as tribos de Dana tinham
conquistado mercê do seu
valor, da sua bravura e da sua
tenacidade. Combinaram
então matar Ith e puseram-se

549
em sua perseguição, ferindo-o
gravemente. Ith conseguiu
ainda chegar à presença dos
filhos de Milé e teve tempo
para lhes contar o que se
passara, mas morreu logo de
seguida. Muito consternados,
os seus irmãos e os outros
filhos de Mílé fizeram-lhe uma
sepultura junto da qual
erigiram um marco funerário.
«Não permitiremos que este
crime fique impune», disse
Eber Donn, o irmão mais velho
de Ith. «Vamos imediatamente
pedir aos reis das três tribos
de Dana que seja feita
justiça.»

Puseram-se então a caminho


tomando a direcção de Tara.
Pelo caminho encontraram
Bariba, uma das três rainhas.
Ao vê-los aproximarem-se, ela
disse-lhes: «Se viestes a esta
ilha com o propósito de vos

550
apoderardes dela, ficai a
saber que as estrelas não vos
estão favoráveis.» «E por
necessidade que aqui
estamos», respondeu
Amorgen, o poeta. «Mas com
que direito te permites
pronunciar palavras tão
nefastas? «Fazei-me um
favor», disse Bariba. «Qual?»,
perguntou Amorgen.
«Gostava que o meu nome
fosse dado a esta ilha» «E
como te chamas, e de que
raça és tu?», perguntou
Amorgen. «Chamam-me
Banba», respondeu ela, «e
sou da raça de Adão. Sou
mais velha que Noé. Durante
o dilúvio estava no cume da
montanha, e as vagas do
oceano não me atingiram» Os
druidas dos Filhos de Milé
lançaram então um
encantamento, e Bariba
afastou-se sem que eles lhe

551
fizessem o favor.

Mais adiante, encontraram


FothIa, a segunda das três
rainhas. Ela dirigiu-se-lhes
nos mesmos termos de
Bariba, e eles
desembaraçaram~se dela
voltando a lançar
encantamentos. Depois,
pondo-se de novo a ca~
minho, encontraram a terceira
rainha, esposa de Mac
Greme, que dava pelo nome
de Eriu. «ó guerreiros»,
exclamou ela ao vê-los, «sede
beir. vindos a esta ilha. Há
muito que os nossos profetas
anunciaram a vossa vinda.
Esta ilha será vossa para todo
o sempre e não haverá terra
tão magnífica no mundo
inteiro. Nenhuma raça será
tão numerosa como a vossa.»
«A profecia é boa», disse
Amorgen do joelho branco.

552
«Gostava

que se desse o meu nome a


esta ilha», respondeu ela.
«Pois bem», disse Arnorgen,
«então que o teu nome seja o
seu principal nome.»

E ern seguida chegaram a


Tara. Eber Donn e os irmãos
foram recebidos pelos três
reis, e protestaram com
veemência contra o crime que
fora cometido contra Ith, pois
este levara-lhes uma
mensagem de paz e não
possuía quaisquer propósitos
agressivos ou mal
intencionados.

Os reis estiveram muito tempo


a ponderar e depois deten-
ninaram o seguinte: os filhos
de Milé deveriam voltar para
os seus barcos e levantar
âncora, e se num prazo de três

553
dias conseguissem aportar de
novo, toda a ilha passaria a
pertencer-lhes. Se, pelo
contrário, ao fim de três dias,
os Filhos de Milé não
conseguissem aportar, a ilha
continuaria na posse exclusiva
das tribos de Dana. Pensavam
os três reis que os Filhos de
Milé nunca mais voltariam,
pois os druidas lançariam
tantos encantamentos contra
eles que os impeliriam muito
para longe de terra. «Nós
vamos pensar», disse Eber
Donn. «Que pensa Amorgen
desta proposta?» «Parece-me
razoável», respondeu
Amorgen. «Até que distância
iremos?», perguntou Eber
Donn. «Iremos para além de
nove vagas.»

Os Filhos de Milé deixaram


então a fortaleza de Tara e
dirigiram~se para sul até ao

554
porto de Seria, na foz do rio
Felle, onde tinham ficado os
seus barcos. Embarcaram
neles, levantaram âncora e
navegaram para além da nona
vaga. Os druidas das tribos de
Dana e todos os poetas
lançaram-lhes então
encantamentos, de tal modo
que os ventos em~ purraram
os navios para muito longe da
Irlanda, enchendo de angústia
os seus tripulantes por se
acharem no alto mar.

«E um vento druídico que nos


empurra para tão longe»,
disse Eber Donn. «Vejam se o
vento sopra debaixo dos
mastros.» Olharam com
atenção e viram que o vento aí
não soprava. «Paciência»,
disse Erech, um dos filhos de
Milé que pilotava o barco de
Eber Donn; «só temos de
pedir a Amorgen para se opor

555
a este vento druídico.» Erech
era filho adoptivo de Amorgen
e chamou-o. «É uma
vergonha para todos os
nossos homens de arte»,
disse Eber Donn, «termos de
suportar durante tanto tempo
a afronta que nos é infligida
pelos druidas da Irlanda.
«Não», respondeu Amorgen,
«não é uma vergonha, mas os
nOssos homens nada podem
fazer enquanto tu mesmo
nada fizeres contra a magia
das tribos de Daria.»

Eber Donn desembainhou a


espada e apontou-a para o
céu. «Por deus!», exclamou
ele, «eu juro que trespassarei
com o fio da minha espada
todos aqueles que vivem
nesta ilha.» 0 vento mudou de

556
direcção e empurrou então os
barcos dos Filhos de Milé para
a costa onde aportaram pouco
depois. «Repara», disse
Amorgen, «que o nosso poder
druídico vale mais do que o
das tribos de Dana. Voltámos
à Irlanda antes dos três dias
que nos tinham aprazado e
temos agora o direito de nos
apoderarmos de toda a ilha.»

Pegaram nas armas e em


todos os seus apetrechos e
puseram-se a caminho de
Tara. Entretanto, os chefes
das tribos de Dana já sabiam
do seu regresso à Irlanda,
tendo-se reunido à pressa ria
casa real de Tara, Estavam aí
os três reis, Mac Cuill, Mac
Cecht e Mac Grein, assim
corno Mananann, filho de Lir,
Goibmu, o ferreiro, Díancecht,
o médico, Lug do Braço
Longo, filho de Cian, Dagda, a

557
quem também chamavam Z

Eochaid Ollathaír, e Bobdh


Derg, filho de Dagda.
Estudaram aprofun~
dadamente a situação, mas
não conseguiram encontrar
nenhuma forma para evitar o
conflito que fatalmente os iria
opor aos Filhos de Milé.
«Temos de partilhar o país
com eles», disse Dagda. «É
ímpossível», responderam os
três reis. «Temos de os
expulsar desta terra, pois nós
somos os únicos donos desta
ílha.» «Nós fizémos um
acordo com eles», disse Lug,
«e devemos respeitá-lo.
Segundo esse acordo, se eles
conseguissem aportar a esta
ilha antes dos três dias
combinados, tornar-se-iam os
donos da Irlanda.
Respeitemos pois os nossos
compromissos e retiremo-nos

558
para os nossos domínios
feéricos. Aí seremos sempre
nós a mandar, aconteça o que
acontecer, e eles não
conseguirao aproximar-se de
nós sem que o saibamos.»
«Além disso», acrescentou
Mananann, «temos o poder de
nos tornarmos invisiveis, e
poderemos por isso errar pelo
mundo sem que alguém possa
suspeitar da nossa presença.»

Mas os três reis das tribos de


Dana mostraram-se
ínamovíveis e exigiram dos
seus companheiros que se
envolvessem numa luta sem
quartel contra os Filhos de
Mílé que diziam descender de
uma mesma linhagem que
eles, a linhagem dos filhos de
Nemed. Deste modo
propuserani que se formasse
um exército e que este se
opusesse com vigor, tanto

559
pelo poder mágico como pelo
das arinas, às pretensões dos
Filhos de Milé de ocuparem
toda a Irlanda. Por fim, todos
aceitaram, uns com melhor
vontade do que outros,
enfrentar os invasores e evitar
que eles se apoderassem da
Ilha Verde. 0 destino assim
determinaria o que viesse a
acontecer, e todos juraram
que se confoririariam com o
resultado do conflito.

As tribos de Dana reunirani


todos os homens disponíveis,
que não eram muitos, e
confiavam sobretudo no poder
mágico dos seus druidas que
lhes prometiam a vitória sem a
perda de vidas humanas. As
tropas

reagruparam-se longe de
Tara, num lugar que se
chamava Tailtiu em honra da

560
ama de leite de Lug do Braço
Longo, e onde este mandara
que ela fosse enterrada. Aí em
honra dela Lug do Braço Lon
go’

g realizava- se jogos e, festas


que se desenrolavam dez dias
antes do início do mês de
Agosto e dez dias depois, e
chamavam-se esses jogos e
festas Lugnasad, ou seja,
«Assembleia de Lug», nome
que passou a designar o mês
de Agosto.

Foi pois em Tailtiu que se


enfrentaram as tribos de Dana
e os Filhos de Milé. Como o
exército dos primeiros era
pouco numeroso, os seus
druídas lançaram
encantamentos e incitaram as
tropas a oporeiri-se aos
invasores, Mas os druidas e os
poetas dos Filhos de Milé

561
1

não demoraram a perceber


que os seus inimigos
recorriam à magia, e por isso
lançaram também eles
encantamentos. Desse modo,
daí a pouco tempo todos viram
que os belos exércitos das
tribos de Daria se tinham
transformado em arbustos e
em torrões de turfa, o que não
impediu que os três reis Mac
CuilI, Mac Cecht e Mac Greine
sucumbissern às mãos dos
Filhos de Milé.

Privadas dos seus chefes, as


gentes das tribos de Dana
foram aconselhar-se com
Morrigane, que lhes disse que
era altura de celebrarem a
paz, pois a magia dos Filhos
de Milé era muito superior à
deles. Deste modo Dagda e o
seu filho Bobdh Derg, na

562
companhia de Mananann,
filho de Lir, foram
encontrar~se com os Filhos de
Milé para lhes proporem uma
forma de partilharem a Irlanda.
Começaram por se sentar em
frente a uma fogueira,
partilharam os alimentos que
tinham sido passados pelo
lume, depois beberam cerveja
e hídromel, sendo por fim
celebrado um acordo.

Eber Donri e os seus Irmãos


fizeram prevalecer a Ideia de
que as tribos de Dana eram
culpadas de um crime contra
Ith, filho de Bréogan, que era
rei, e, naquelas condições,
deveriam pagar uma grande
compensação, naquele caso a
Irlanda inteira. Mas as tribos
de Daria de modo algum
queriam abandonar esta ilha
que noutros tempos tinham
conquistado e por isso

563
chamaram o sábio Fintan, filho
de Bochra, que falou a uns e a
outros e demonstrou que era
preferível celebrar a paz do
que continuar com guerras até
ao fim dos tempos. Fíntan e
Amorgen prepararam então os
termos de um tratado cujo
juramento deveria ser feito em
nome dos deuses protectores:
os Filhos de Milé ocupar-se-
iam da superfície da Ilha
Verde, encarregando-se do
cultivo da terra e da criaÇão
de animais, enquanto as tribos
de Daria se retirariam para o
mundo dos tumulus e para
pequenas ilhas que existem
ao largo da Irlanda.

564
Deste modo, cada tribo estaria
no seu domínio, o que não
impediria que houvesse
contacto entre os membros de
uma e outra. Nomeadamente
foi determinado que as gentes
das tribos de Dana poderiam,
se fosse esse o seu desejo,
deixar o mundo invisível e vir
fazer companhia aos Filhos de
Milé, podendo por sua vez os
Filhos de Milé visitar o domínio
das tribos de Dana todos os
anos, enquanto durasse a
festa de Samain,

0 tratado foi celebrado sob


juramento e solenemente por
ambas as partes. Deste modo
as tribos de Dana retiraram-se
para o domínio obscuro dos
trimulus e para as ilhas que
rodeiam a Irlanda, enquanto
as tribos dos Filhos de Milé se
espalharam por todo o país,
construindo aí fortalezas,

565
cultivando a terra e cuidando
de belas pastagens para os
animais que tinham levado
consigo. Terminou assim a
batalha de Tailtiu, com grande
satisfação de ambas as
partes, e começou então na
Irlanda o reinado dos Filhos de
Milé, aqueles a quem hoje se
chama gaélicos.11)

1. Segundo o Livro das


Conquistas.

l iÍ1 epois da batalha de


Tailtiu e a partilha da Irlanda
entre as tribos de Dana e dos
Filhos de Milé, ambas se
organizaram de acordo com
os seus costumes antigos e as
suas leis ancestrais. Os Filhos
de Milé confiaram o poder real
a dois dos filhos de Bréogan,
Eber Donn, o mais velho, e
Eremon, o mais novo. Eber
ficou com o sul da Ilha Verde,

566
cabendo a Eremon a
soberania do norte. Mas os
dois irmãos não se
entenderam e daí a pouco
travaram uma batalha
sangrenta. Eber Donn foi
morto, e Eremon tornou-se o
rei supremo de toda a Irlanda,
organi~ zando grandes festas
na casa real que se situava no
interior da grande fortaleza de
Tara.

As trbos de Dana, por seu


lado, e de acordo com o que
ficara acordado com os Filhos
de Milé, tinham-se refugiado
nos domínios féericos,
debaixo dos ttimultis, em
cavernas profundas no interior
da terra, em palácios que
construíram no fundo de
lagos, assim como nas ilhas
que rodeavam a Irlanda. E
como os seus três reis haviam
perecido na batalha de Tailtíu,

567
reuniram-se um dia para
designar aquele que reinaria
entre elas.

Tiveram de escolher entre os


seus diversos heróis, tais
como Mananann, filho de Lir,
ou o grande Dagda, ou o
ferreiro Goibniu, ou Mider de
Bri Leith, irmão de Dagda, ou
ainda Bobdh Derg, filho de
Dagda. Quanto a Lug, filho de
Cian, este decidira jamais
voltar a ser rei, Preferindo
manter~se completamente
livre para fazer o que muito
bem lhe aprouvesse.

Ora, depois de acesas


discussões, as gentes de
Daria decidiram dar
0 Poder real a Bobdh Derg,
filho de Dagda, tendo em
conta tanto a sua

568
nobreza como a sua
sabedoria herdada do pai.
Este facto provocou o
despeito de Lir, que reinava no
tumul Já
que ele esp

ws de Fímiachaid,
Crava ver atribuída a coroa ao
seu próprio filho, Mananann.(”
Contrariado, ele abandonou
por isso a assembleia das
tribos de Dana sem se
despedir de ninguém e sem
pronunciar uma palavra. A sua
atitude chocou de tal modo os
chefes que, depois de terem
confirmado solenemente
Bobdh Derg, todos pensaram
numa maneira de o castigar
pelo seu desdém e pela sua
descortesia.

Alguns chefes chegaram


mesmo a propor que se
deveria perseguilo até sua

569
casa, incendiar a sua fortaleza
e matá-lo com uma lança e
uma espada como se ele
fosse um criminoso. E não era
realmente um criminoso, por
ter recusado inclinar-se
perante o rei que tinha sido
designado pelas tribos de
Dana como sendo o melhor
para as conduzir? «Não posso
acatar a vossa proposta»,
respondeu Bobdh Derg, «Uir é
um guerreiro corajoso, sempre
pronto a lutar até às últimas
consequências por uma causa
que lhe tenha sido confiada, e
o facto de não se inclinar
perante mim não impede que
eu seja o rei das tribos de
Dana.»

Assim falou Bobdh Derg e,


para provar a sua estima e
deferência por Uir, elegeu
Mananann, filho de Uir, para
seu principal conselheiro.

570
Mananann aconselhou-o
então sobre a melhor maneira
de distribuir as tríbos de Dana
pelo território da Irlanda, de
acordo com a partilha
combinada com os Filhos de
Milé. Segundo ele, era preciso
dispersar as tribos pelos
tumultis e fixá-las também nas
colinas e nas planícies mais
distantes e

Uir é urna personagem


emblemática. Traduz-se
muitas vezes o seu nome por
«mar» ou «vagas», mas esta
etii-nologia é pouco certa pois
a trIanda pagã não tem um
deus marinho (aliás, só tem
um deus lavrador). Lir, por
viver ern ilhas distantes, não
tem de ser por isso o deu- da
navegação marítima. Além do
mais, os gaêlicos parecem ter
horror ao mar e rião têm
interesse pelo que se passa

571
no oceano, com a excepção
de quando o designam por
país do Outro Mundo. Os
gaélicos estão muito mais
ligados às fontes e aos rios,
portanto às águas doces,
como o parece revelar o nome
de Nechtan (derivado do latim
Nepturiu,), outra denominação
de Elernar, irmão de Dagda,
proprietário de Brug-na-
Boyiie, ou seja, Newgrange.
Uir tem, como correspondente
em galês LIvr (o rei Lear de
Shakespeare), pai dos heróis
Brân Vendigeit «<Corvo
Bendito»), Branwen («Corvo
Brarico») e Manawyddan,
correspondente britónico
exacto do gaélico Mananann,
ele próprio epónimo da ilha de
MaD. Esta tiltíma personagem
aparecia muitas vezes nas
narrativas irlandesas como
SCIldO originária de ilhas
distantes, ou seja, da Terra da

572
Promessa, espécie de paraíso
ceita, às vezes chamado
Emain Ablach, nome no qual
se encontra o termo que
designa as macieiras, o que
remete para a ilha de Avalon
da lenda arturiaria. Às vezes
Mananann chega a ser
apresentado a cavalgar um
fogoso corcel no meio do mar,
o que naturalmente poderia
leva£ a associá-lo a Lima
divindade marinha. Na
tradição galesa, Manawyddan,
contudo, não teIn nenhuma
ligação particular com o mar e
não tem nada de navegador.

isoladas. Em seguida, Bobdh


Derg distribuiu os chefes e os
nob 1 seus
domínios. Depois Mananann,
que era um hábil mágico
res pe os

e um perito en, ciências

573
druídícas, conferiu a todos o
dom da invísibílidade, o
Festim de Goibniu e os porcos
de Mananann: graças ao dom
da invisíbilidade, só eles se
podiam ver uns aos outros; o
Festim de Goibniu evitava que
senússem o avançar da idade;
quanto aos porcos de
Mananann, estes
asseguravam-lhes comida
eternamente pois, mortos ao
entardecer e comidos durante
a noite, voltavam a estar vivos
na manhã seguinte.

Além disso, Bobdh Derg


ensinou aos chefes e aos
nobres das tribos de Dana
como fazer as suas
residências feéricas e como
construir as suas fortalezas de
modo a parecerem as da Terra
da Promessa, às vezes
chamada Emain Ablach, e que
está perdida algures no meio

574
do vasto oceano. Deste modo
os chefes das tribos de Dana,
em sinal de gratidão,
convidaram Bobdh Derg a
visitar as suas residências
assim que elas estivessem
prontas, e a assistir ao festim
que realizariam para celebrar
a Festa do Tempo, altura que
era escolhida para prestar
homenagens e tributos.(,)

E assim foi. Entretanto, Uir foi


vítima de uma grande
desgraça: a sua mulher, mãe
de Mananann, morreu ao fim
de uma doença que durou três
anos. Este infortúnio custou-
lhe muito, pois devotava à
falecida mulher um amor
profundo e sincero, chorando
amargamente a sua morte. A
notícia espalhou-se por toda a
Irlanda e chegou à residência
de Bobilli Derg na altura em
que este estava reunido com

575
os chefes das tribos de Dana.
«Se Lir aceitar a minha
amizade», disse Bobdh Derg,
«eu poderei atenuar-lhe o
sofrimento provocado pela
morte de quem ele amava.
Tenho aqui, na minha casa,
três jovens muito graciosas,
de óptima aparência e
famosas em toda a Irlanda,
Aeb, Aifé e Ailvé, todas filhas
de Aílil], rei de Arann. Elas
estão sob a minha guarda e
prot-c40, pois foram-me
entregues na condição de eu
ser o seu pai adop-

Que pensais disso? Se eu lhe


propusesse uma delas para
esposa, o nosso diferendo
ficaria resolvido...»

Os chefes e os nobres das


tribos de Dana acharam a
ideia excelente.

576
Os dois Parágrafos dedicados
à distribuição das tribos de
Dana e aos dons mágicos que
’h” são atribuídos têm origem
em Altranth Tige da Medar (o
alimento da casa dos dois
’OPOs), narrativa contida no
Livro de Fermoy, manuscrito
do século XV publicado com
tradução inglesa por Lilian
Duncan em Eriu, vol. X1,
Dublin, 1932. Tradução
francesa de Ch--J.
Guyonvare-h em Textos
mitológicos irlandeses,
Rermes, 1980.

577
Foram então enviados a Uir
mensageiros da parte de
Bobdh Derg para lhe
perguntarem se gostaria de
firmar um acordo de amizade
com o rei recebendo dele para
esposa uma das suas filhas
adoptivas. Lir ficou eincantado
com a oferta que lhe foi feita e
pôs-se a caminho, no dia
seguIIIte partindo da sua casa
da Colina Branca, com
cinquenta carros muito belos,
em direcção ao Lago Derg
onde Bobdh fixara a sua
residência e construíra a sua
fortaleza. Aí chegado, foi
muito bem recebido i

e viu-se rodeado das mais


lisonjeiras atenções.

As três filhas de Ailill, rei de


Arann, estavam sentadas no
mesmo assento que a rainha,
mulher de Bobdh e sua mãe

578
adoptiva que nutria por elas
um imenso amor- «Lir», disse
Bobdh Derg, «estão aqui as
filhas do rei Arann. Podes
escolher a que riials te
agradar.» «Não me é fácil
fazer uma escolha»,
respondeu Lir, «pois todas
elas são muito bel as e de
grande nobreza. De qualquer
modo, penso que seria
conveniente escolher a mais
velha.» «Assim sendo», disse
Bobdh Derg, «a mais velha é
Aeb, que será por isso tua
esposa, se for esse 0 teu
desejo.» «E esse o meu
desejo», afirmou Uir.

Desposou então Aeb naquela


noite, e ficou a viver na casa
de Bobdh Derg durante quinze
dias. Depois levou a mulher
para a sua fortaleza, não sem
antes ter prometido a todos os
chefes das tribos de Dana que

579
os convidaria para a grande
festa das núpcias. Ach deu-lhe
dois fi-

1 lhos, uma rapariga


e um rapaz, que se chdmaram
Finula. ou seja, Espá dua
Branca, e Aedh, ou seja, Fogo.
Ao fim de um certo tempo, ela
voltou a engravidar e, desta
vez, deu à luz dois filhos que
se chamarani Conn e Fiachra.
Aeb, contudo, morreu no
parto, facto que voltou a
mergulhar Uir numa grande
amargura e tristeza.

A notícia desta triste


ocorrência não demorou a
chegar a casa de Bobdh Derg,
e todos os que aí se
encontravam deram três oritos
para laZn

mentar a perda da filha


adoptiva. Mas, quando

580
acabaram de a chorar, Bobdh
Derg disse: «0 amor que
tínhamos pela nossa filha e a
amizade que nos liga àquele a
quem a entregámos como
esposa fazem com que nos
sintamos muito consternados
pela sua perda. Mas a
amizade por Uir roan-

rmã da defunta.» ter-se-á


como dantes, pois dar-lhe-ei
outra mulher, Alfé, i

Quando soube desta oferta,


Lir veio buscar a segunda
jovem aO lago Derg, casou
com ela imediatamente e
levou-a com ele para a casa
da Colina Branca. Aifé
estimava profundamente e
tratava muito bem Os quatro
filhos da sua irmã mas, na
verdade, ninguém no mundo
poderia deixar de o fazer, tão
cheios de graça eles eram. 0

581
próprio Bobdh Def9

rfluitas vezes ia a casa de Lir


para os ver, e levava-os para
passarem uns tempos com
ele, pois achava muito
agradável a sua companhia.

Naquele tempo, as tribos de


Dana celebravam a Festa do
Tempo debaixo dos outeiros e
das colinas feéricas, cabendo
a cada um dos chefes
convidar, altemadamente, os
outros para a sua residência,
Ora, chegou a vez de Uir
receber na Colina Branca os
chefes e os nobres das tribos
de Dana, que foram chegando
e ficando encantados com a
beleza e

ileza dos filhos de Lir, que a


todos enchiam de alegria e de
coma gent,

582
prazimento. Era costume
deles dor iiirem no mesmo
quarto do pai e, quando Lir se
levantava, de manhã, ’a
sempre deitar-se por alguns
moinentos ao lado deles.

Mas este comportamento de


Uir teve como consequência
fazer com que Aifé ficasse
extremamente enciumada
com os filhos da sua irmã, ao
ponto de os ciúmes se
transformarem em despeito e
em ódio. Então,

um ano Aifé adoeceu e fez-se


passar por vítima de uma
febre que daudrooeucer e lhe
inteiro, decidindo então livrar-
se daqueles que a faziam

provocavam clumes. Assim,


um dia ela aparelhou o seu
carro, convidou as quatro
crianças para a

583
acompanharem à casa de
Bobdh Nerg, e quando elas se
sentaram a seu lado Aifé fez
com que os cavalos se
dirigissem para o lago Derg.
Mas Finula estava
contrariada, pois suspeitava
que Alfé lhes queria fazer mal,
tendo-lhes um ódio de morte,
e um sonho tinha-lhe mesmo
revelado que a irmã da mãe
projectava vingar-se daqueles
que lhe provocavam
insuportáveis ciúmes.

Ora, Aifé fez o carro parar num


vale e ordenou aos criados:
«Matai os filhos de Lir, pois
eles roubaram-me o amor do
seu pai, e eu dar-vos-ei como
recompensa tudo o que
houver de melhor neste
mundo.» «Não podemos
obedecer-te», responderam
os criados, «poís estas
crianças são dignas de todo o

584
respeito e amor. Um dia,
rainha, pagarás por essa tua
intenção tão perversa.»

Então, como os criados se


recusavam terminantemente a
fazer mal aos filhos de Uir, Aifé
empunhou uma espada e quis
ela mesma praticar
0 crime, faltando-lhe no
entanto a coragem no
derradeiro momento e dando
por isso ordens para que a
viagem prosseguisse. Quando
chegaram ao pé do Lago
Darvra, ela mandou as
crianças tomarem banho no
lago. Mas, ainda eles não
tinham mergulhado nas águas
e, batendo-lhes com uma
varinha mágica e druídica, ela
transformou-os em qua~ trO
cisnes graciosos e brancos.
«Parti agora, filhos do rei»,
disse-lhes ela. «Parti e erral
pelo vasto mundo. Haveis sido

585
condenados a uma ter-

586
rível aventura e todos aqueles
que vos amam sofrerão por
isso. Doravante será entre os
pássaros que se ouvirão os
vossos gritos e os vossos
lamentos.» «Bruxa!»,
exclamou Finula. «Tu tocaste
em nós sem te termos feito
mal, mas podes ter a certeza
de que pagaras muito caro
pela tua maldade e pela tua
desfaçatez, e no fim nada te
poderá valer! Díz-nos só por
quanto tempo teremos de
suportar o feitiço de que
somos vítimas.» «Se quereis
saber, di-lo-ei, mas isso só
servirá para aumentar a vossa
mágoa e a vossa angústia»,
respondeu Alfé. «Conforme. é
meu desejo, o vosso feitiço
durará enquanto a Mulher do
Sul não tiver encontrado o
Homem do Norte. E já que não
resistis à curiosidade, sabei
que nenhum amigo nem

587
nenhum poder vos poderá
livrar da forma em que vos
transformei enquanto vós não
tiverdes vivido trezentos anos
no Lago Darvra, trezentos
anos no Mar de Moyle, entre a
Irlanda e a Escócia, e
trezentos anos na angra de
Doninann. Apesar da vossa
aparêncía, mantereis a vossa
linguagem e cantareis a
música doce dos palácios
feéricos, que é de tal modo
límpída e suave que
adormece todos aqueles que
a ouvem. Ficareís pois
novecentos anos a terde
suportar na superfície das
águas o vento glacial e o sol
escaldante. E essa a minha
vingança, filhos de Li^r, por
me terdes privado do amor do
vosso pai.»

Voltando a subir para o carro,


ela ordenou que se

588
prosseguisse a viagem.
Assim, ela continuou o
percurso até à casa de Bobdh
Derg onde foi muito bem
recebida pelos chefes e pelos
nobres das tribos de Dana,
admírando-se no entanto
Bobdh, filho de Dagda, por ela
não ter trazido as crianças. «A
razão é simples», disse ela.
«Uir já não te ama e não te
quer confiar os seus filhos,
com medo de que não tomes
beni conta deles, na sua
ausência.» «Isso surpreende-
me», disse Bobdb Derg, «pois
sei que Lir tem a máxima
confiança em mim e me
confiaria com toda a boa
vontade os seus filhos que
amo tão profundamente como
se fossem os meus próprios
filhos.»

Mas ele pensou com os seus


botões que a mulher o estava

589
a enganar e por isso
apressou-se a enviar
mensageiros para a casa de
Uir, na Colina Branca. Ao ver
estes chegarem, Lir
perguntou-lhes o que os
levava ali,

«E por causa das crianças»,


responderam eles. «Como?»,
admirou-se Uir. «Elas não
foram para a casa de Bobdh
Derg na companhia de Aifé?»
«Não», responderam os
mensageiros. «E diz Aifé que
tu é que não quiseste que elas
fossem para a casa do filho de
Dagda, com medo de que ele
não tomasse conta delas.»

Ao ouvir aquelas palavras. Lir


ficou muito perturbado, pois
pensou

jogo que Aífé devia ter feito


algum mal aos seus filhos.

590
Assim, logo lia manhã
seguinte, aparelhou o carro e
tomou a direcção que levava
ao Lago Darvra. Quando
estava a chegar às
proximidades do lago, os
quatro cisnes aperceberam-se
dos cavalos e do carro, e disse
Finula para os seus irmãos:
«Que seja bem vindo este
grupo que se aproxima do
lago, pois os homens que dele
fazem parte são nobres e
poderosos. Nas suas feições
há muita tristeza e mágoa, e
sem dúvida estão aqui por
andarem à nossa procura.
Aproximemo-nos da margem,
pois aqueles que se acercam
de nós SãO Por Certo Lir e as
gentes da sua casa.»

Lir, entretanto, fez parar o


carro e aproximou-se da beira
do lago. Viu os cisnes virem ao
seu encontro e, espantado por

591
eles terem uma voz humana,
perguntou-lhes a razão de um
tal mistério. «Eu vou-te
contar», disse Finula. «Os
quatro cisnes que vês são os
teus próprios filhos, e foi a tua
mulher, irmã da nossa mae,
que, toda enciumada, nos
metamorfoscou para que nos
perdêssemos,» «Há uma
forma de vos fazer voltar à
forma normal?» «Não há.
Ninguém pode fazer nada por
nos, ao menos enquanto não
tivermos passado pela prova
do tempo, que deverá manter-
nos nesta situação durante
novecentos anos. Vê bem a
nossa triste sorte.»

Ao ouvir estas palavras, Lir e


as suas gentes Soltaram três
grandes gritos de dor e de
lamento. «Quel-eis vir
connosco para a nossa terra»,
Perguntou ele, «já que

592
conservais a linguagem, a
razão e a memória?» «0
sortilégio que se abateu sobre
nós», respondeu Finula, «não
nos perrnite que vivamos com
qualquer outro ser humano e
por isso deveremos
Permanecer Destas águas.
Mas resta-nos a nossa
linguagem, e podemos entoar
músicas suaves, iguais às que
se ouvem nos palácios
feéricos. Se Passardes a noite
perto do lago, adormecereis
embalados pela suave
RIelodia dos nossos caiitos.»

Ur e aqueles que o
acompanhavam,
interromperam então a sua
Viagem e acomodaram-se
naquele lugar para passar a
noite. Apuraram os Ouvidos
ao canto dos cisnes, e as
horas passaram por eles com
uma extTema doçura. Mas, na

593
manhã seguinte, Lir anunciou
aos cisnes que tinha de partir,
mas que jainais os
esqueceria. Depois,
prosseguiu o seu clininho até
ao Palácio de Bobdh Derg.

Foi aí acolhido com todas as


honras e com toda a
benevolência, inas 0 filho de
Dagda censurou-o por não ter
levado os filhos com ele, «()ra
essa!», respondeu Lir, «Por
certo não seria eu a recusar-
me a traZer os meus filhos a
tua casa, bem Pelo contrário.
Foi Aifé, a tua filh2

594
adoptiva, irmã da mãe deles,
que lançou sobre eles um
sortilégio, fazendo com que se
transformassem em cisnes
brancos no Lago Darvra, o que
pode ser comprovado por
todas as gentes da Irlanda.
Agora eles são cisnes embora
mantenham a razão, o
espírito, a voz e a linguagem
que encontramos nos seres
humanos.» iva
e, manPerante esta notícia,
Bobdh Derg ficou possesso de
rai

dando chamar Aifé, censurou-


a veementemente pela má
acção que praticara. «A tua
maldade terá um preço muito
alto», disse-lhe ele, «e Por
teres mudado a aparência dos
filhos de Lir, espero que sejas
tu mesma vítima de um
,sortilégio semelhante. Diz-me
qual é a Pior das formas em

595
que gostarias de ser
transformada! » «A pior de
todas, segundo penso», disse
ela, «seria a de um demónio
do ar.» «Pois bem», exclamou
Boddh Derg, «nesse caso é
essa a forma que tomarás!»

Ele tocou-lhe logo de seguida


com a sua varinha mágica e
druídica, e Aifé transformou-
se de repente num espírito
maligno do ar. Então misturou-
se com o sopro do vento, e
permanece com esta forma
até à consumação dos
séculos, como castigo pelo
crime perpetrado na pessoa
dos filhos de Uir.

Quanto a Bobdh Derg e aos


nobres das tribos de Dana,
voltaram ao Lago Darvra e aí
se instalaram para ouvirem o
canto dos cisnes. E os Filhos
de Milé, que tinham reparado

596
na beleza destes cantos,
costumavam também
deslocar-se para ali vindos de
todos os cantos da Irlanda. Na
verdade, na Ilha Verde, nunca
houve música que se pudesse
comparar à dos quatro cisnes.
E os cisnes contavam também
histórias e entretinham-se a
conversar todos os dias com
os homens e as mulheres que
tinham conhecido no passado,
quer tivessem sido os seus
antigos mestres ou os seus
antigos parceiros de jogo, E,
todas as noites, eles
entoavam a música suave do
país feérico, de tal modo que,
por muitas mágoas e tristezas
que alguém tivesse,
adormecia cheio de paz e de
bonomia. Ao ouvir-se o canto
dos quatro cisnes, a felicidade
era plena.

As tribos de Dana e dos Filhos

597
de Milé reuniram-se nas
rnargells do Lago Darvra
durante trezentos longos
anos. Ao fim desse tempo,
disse Finula aos seus irmãos:
«Sabeis que já se cumpriu o
tempo que deveríamos passar
aqui? Amanhã deveremos
partir.»

Ao ouvirem aquelas palavras,


os filhos de Uir ficaram cheios
de Pcna, pois a possibilidade
de falarem com os seus
conhecidos, familiares o
amigos, permitia~lhes
suportar a sua sina sem terem
um grande sofrimento. Além
disso, sabiam que estavam
condenados a ir para regiócs

muito inóspitas, fustigadas por


ventos cortantes que vêm do
norte. Na inanhã seguinte, os
três irmãos e a irmã vieram
pela última vez falar aos seus

598
dois pais, a saber Lir, o pai
natural, e Bobdh Derg, o pai
adoptivo. Disseram-lhes
adeus, e Fmula entoou um
canto de t i

rIsteza em que lamentava ter


de partir para paragens
desconhecidas e afastadas
das que amava. Quando
Finula acabou de cantar, os
quatro cisnes levantaram
voo

e, batendo as asas vivas e


velozes, confundiram-s’e com
o céu e tomaram a direcção do
Mar de Moyle, situado entre a
Irlanda e a Escócia. Ao
desaparecerem nas alturas,
deixaram com uni nó na
garganta quem as via partir, e
data desse dia a ProibiÇão na
Irlanda de matar cisnes.

0 Mar de Moyle era um lugar

599
1u01PItO e terrível para nele
se viver. Quando os filhos de
Lir viram a vasta costa
aparecer diante deles,
senfiram a humídade e o frio
colar-se-lhes ao corpo e
ficaram cheios de inedo e de
angústía. Todas as provações
que já tinham passado
pareciarn-lhes uma
brincadeira quando
comparadas com as que
previam. Certa vez, estando a
ser fusÚgados por uma
grande tempestade, disse
Finula aos irmãos: «A noite
que se aproxima será terrível
e vem lá uma tempestade tão
forte e violenta que corremos
o risco de nos separarmos uns
dos outros. Devemos Por isso
marcar um lugar de encontro
para o caso de o vento e a
tormenta nos dispersarem.»

DecIdiram então encontrar-se

600
na Ilha das Focas, pois todos
conheciam a sua localização.
Ao aproximar-se a meia-noite,
o vento redobrou de violência,
aumentou o rumor das vagas,
os 1

clarões da trovoada
incendiaram os céus, e o
furacao que então se abateu
sobre o céu e os mares fOi de
tal ordem que os filhos de Lir
se dispersaram pelo vasto
oceano sem que pudessem
saber do paradeiro de uns e
outros. por fim a tor~ Menta
acalmou e a terra e o céu
encheram-se de bonança,
achando-se -Finula sozinha
no Mar de Moyje. Então, ao
ver que os seus irmãos tinham
desaparecido, entoou um
canto de lamento e de
desespero.

Depois, Sem perda de tempo,

601
dirigiu-se para a Ilha das
Focas e Passou aí toda a
noite. Ao nascer do sol,
quando perscrutou o
horiZonte, viu aproximar-se
com dificuldade o irmão Conn,

caída
com a cabeça e a penugem
desalinhada, Ela acolheu-o
muito bem e deu-lhe o rfláximo
de conforto que pÔde. Pouco
depois, veio também, em
péssir00 estado, Fíachra,
que., meio encharcado, tremia
de frio e sofria ter-
1velrnente. Finula protegeu-o
com a sua asa e murmurou:
«Ficaríamos ll’u’tO contentes
se Aedh viesse ao nosso
encontro ... »

Pouco depois, lá apareceu


Aedh, de cabeça erguida e as
penas

602
secas, pois encontrara uma
gruta para se abrigar. Finula
recebeu-O muito bem e, para
reconfortar os três, colocou
Aedh debaixo do peito, Conn
debaixo da asa branca e
Fiachra debaixo da asa
esquerda, aconchegando-os a
todos debaixo da sua
penugem que a todos
aqueceu.

«Ah, meus irmãos! »,


exclamou ela, «Foi terrível a
noite que passámos, mas
esperam-nos outras ainda
mais cruéis!»

E, com efeito, eles tiveram de


permanecer durante muito
tempo no Mar de Moyle,
resistindo ao frio e às
privações, e sendo visitados
muitas vezes pela neve.
Jamais eles tinham passado
tão mal! Choraram e gemeram

603
lamentando a triste sina,
fustigados pelo frio da noite,
pela neve muito espessa e
pelo vento glacial que lhes
cortava a pele e lhes chegava
aos ossos! Depois de terem
penado nesta situação
durante um ano inteiro,
abateu-se sobre eles uma
noite ainda pior: estavam
então na Ilha das Focas, a
água gelava à sua volta e,
como estavam sobre as
rochas, as suas patas, as
asas, as penas começaram a
enregelar, colando-se de tal
modo à pedra que nem
conseguiam fazer um
movimento. Após fazerem um
grande esforço para se
libertarem, finalmente
conseguiram-no, mas
deixaram sobre a rocha a pele
das patas, muitas penas e a
extremidade das asas. «Ah,
filhos de Uir», disse Finula, «é

604
muito triste a situação em que
nos encontramos, pois a água
salgada provoca-nos uma dor
intensa ao tocar-nos, e apesar
disso estamos condenados a
não deixar o mar: além disso,
corremos o risco de morrer se
o sal penetrar através das
feridas que temos por todo o
corpo.»

Voltaram para a corrente


marítima de Moyle com o sal a
provocar-lhes dores intensas,
estando condenados a penar
naquela situação aflitiva. E
permaneceram junto à costa,
sofrendo atrozmente até ao
dia eni que se acharam
completamente curados, com
as penas saradas e as feridas
cicatrizadas. Já recuperados,
começaram então logo de
manhã a voar até às costas da
Irlanda e da Escócia mas,
todas as noites, antes dO pôr-

605
do-sol, tinham de voltar ao Mar
de Moyle.

Um dia, quando sobrevoavam


as costas da Irlanda,
chegaram à foz do Boyne e
viram aí um grupo de
cavaleiros de belo porte,
ricamente vestidos de branco,
que montavam cavalos muito
ágeis e rápidos. «Sabeis
quem são estes cavaleiros,
filhos de Uir?», perguntou
Finula. «É bem possível que
sejam Filhos de Milé ou
membros das tribos de Dana.»

Aproximaram-se da margem
do rio para identificarem os
belos cavaleiros que, ao
aperceberem-se deles,
também se aproximaram Par
estabelecer conversação.
Estavam entre eles dois filhos
de Bobdh Derg,

606
Aedb do espírito ágil e Fergus
o Sábio, e com eles havia
também dois nobres das tribos
de Dana. Tinham deixado a
casa de Bodh Derg para irem
à de Lir onde iria ser celebrada
a Festa da Idade. Os cisnes
identificaram-se então como
sendo os filhos de Uir e os
nobres das tribos de Dana,
muito satisfeitos Por encontrá-
los, deram-lhes as boas
vindas e quiseram saber da
sua sorte. Depois, Finula quis
saber notícias de Lir, de
Bobdh Derg e de todos os
chefes do povo feérico.

«Estão todos bem de saúde e


mantêm as suas qualidades,
como quando vós estáveis
entre nós», responderam-
lhes. «Vivem nos mesmos
lugares e amanhã reúnem-se
no palácio do vosso pai, na
Colina Branca. Aí se celebrará

607
a Festa da Idade num clima de
grande alegria e felicidade,
apesar de se ]amentar a vossa
ausencia, pois ninguém sabia
em que e que vós vos havícis
tomado desde a vossa partida
do Lago Darvra». «Ah, oxalá
tenhais melhor sorte do que
nós»,, disse Finula. «Desde
então e até hoje passámos por
terríveis e inimagínáveis
provações, e sofremos
intermináveis tormentos no
fluxo e no refluxo das marés.»

E logo a seguir ela entoou este


canto:

«Paira uma grande alegria no


palácio de Lir Aí bebe-se
cerveja e hidromel,

Contudo, fria é a noite quando


descansam os quatrofilhos do
rei.

608
De nada nos valem os nossos
tectos Pois só as penas nos
cobrem o corpo.

Noutros tempos, os nossos


vestuários eram de púrpura,
bebíamos o doce hidromel;

mas hoje o que temos para


beber e comer e a arei.a e a
salgada onda do mar Tivemos
outrora leitos bem macios

feitos de penas de pássaros;

mas hoje os nossos leitos são


rochas nuas que as vagas não
conseguem atingir., »

Entoado este canto, os


pássaros despediram-se dos
cavaleiros e desapareceram
nos confins do céu, Os nobres
das tribos de Dana puseram-
se em marcha na direcção do
palácio de Lir, na Colina

609
Branca, e cOlItaram a todos as
provações por que tinham
passado os cisnes e coMO era
triste a sua sina. «Nada
podemos fazer por eles»,
disseram os

610
chefes e os nobres, «mas
ficamos contentes por saber
que ainda estão vivos e temos
a certeza de que serão salvos
no fim dos tempos.»

Os filhos de Lir, por seu lado,


voltaram para o lugar onde
viviam no Mar de Moyle, onde
ficaram tanto tempo quanto
aquele que já aí tinham
passado. Mas, um dia, Finula
avisou os irmãos que
precisavam de partir. «É
chegada a hora em que
deveremos deixar este lugar
maldito e partir para a angra
de Dorimann. Mas esperam-
nos outras provações, pois aí
não teremos nenhum lugar
para aterrar nem nenhum
abrigo contra as tempestades.
Partamos a pesar disso nas
asas do vento gelado, pois
temos de cumprir a nossa
triste sina.»

611
Deixaram o Mar de Moyle e,
chegados à angra de
Dorrinann, viveram uma vida
cheia de desgraças e de
tormentas. Certa vez, tendo o
mar gelado à volta deles,
imobilizou-os completamente.
Perante o lamento dos três
irmãos, Finula consolou-os o
melhor que pôde, lembrando-
lhes que seriam salvos
quando chegasse o tempo da
sua libertação. Viveram na
angra de Dormiann durante os
trezentos anos que lhes
tinham sido aprazados,
dizendo Finula por fim:
«Chegou a hora da partida.
Dirijamo-nos agora para o
palácio da Colina Branca,
onde vive o nosso pai com as
suas gentes.»

Os irmãos ficaram todos


contentes e os quatro

612
levantaram voo, parecendo
que o ar tinha ficado mais
suave e mais leve. Assim, daí
pouco tempo eles chegaram à
Colina Branca e nela
pousaram, mas ficaram muito
espantados e cheios de
angústia ao verem que
aqueles lugares estavam
completamente desertos. Só
se viam aí outeiros verdes e
pedras dispersas forradas
com urtigas. Os quatro então
chegaram-se uns aos outros e
todos eles deram três gritos de
dor e de lamento. Depois,
Finula entoou este canto:

«Oh que tristew! Tudo está


deserto! Nem um tecto, nem
um lar!

0 meu coração enche-se de


amargura ao ver no que se
tornou este lugar Nem um cão,
nem uma matilha,

613
nem uma mulher, nem uma
sombra, nunca tinhamos visto
este lugar assim quando Lr o
nosso pai, nele reinava.

Já não há taças nem bebidas


inebriantes na sala iluminada,

nem.jovens cheios de alegria

nas salas defestas, durante


osfestins. Quando penso nos
outros tempos

o meu Coração pesa-me, e e


com uma grande -

magoa que veio este lugar


deserto e abandonado esta
noite. »

Entretanto, Os filhos de Lir


passaram aquela noite no
lugar onde se erguera o
palácio do pai e onde eles

614
tinham crescido. E aí
entoaram a doce música do
povo feérico. Ao amanhecer,
levantaram voo, ergue~ ram-
se nos céus e viajaram para a
ilha de Clare. Quando lá
chegaram todos os pássaros
do país se reuniram à sua
volta, passando a chamar-se
Lago dos Pássaros aquele
lago onde se encontravam.

Ora, aquele era o tIMPO em


que o bem-aventurado
Patrício tinha levado a fé de
Cristo para a Irlanda e o seu
discípulo, que se chamava
Mohévog, se tinha
estabelecido na ilha de Clare
onde construíra um eremitério.
Ao fim da primeira noite que
passaram nesta ilha, os filhos
de Lir ouviram o som dum s’

mo que soava perto dali.


Ficaram muito espantados e

615
cheios de medo, Pois jamais
tinham ouvido um som como
aquele. Ouviram o som do
sino enquanto ele durou e em
seguida puseram-se a entoar
em surdina a doce música dos
palácios feéricos.

Ao ouvir aqueles tons suaves,


Mohévog, encantado com a
tristeza daquele canto, pediu a
Deus que lhe mostrasse quem
era capaz de entoar aquela
música tão bela que ele jamais
ouvira antes. E, lia noite
seguinte, teve um sonho que
lhe revelou que os cantores
eram os filhos de Lir. Na
manhã seguinte, deslocou-se
ao Lago dos Pássaros e,
vendo Os quatro cisnes na
superfície das águas,
aproximou-se da margem
para ficar perto deles. «SOIs
os filhos de Lir?», perguntou
ele. «SOrnos», resPonderam

616
eles. «Deus seja louvado»,
disse Mohévog, «Pois o amor
que tenho Por vós é que me
trouxe até esta ilha, que
escolhi em vez de todas as
Outras. Agora, filhos de Lir,
vinde a terra e confiai em m’

’Ofrimento acabou e ficareis


debaixo da minha
protecção.»lm* 0 vosso Eles
obedeceram-lhe, e Mohévog
levou os para o

Senipre que Moliévog


celebrava missa, eles
estavam prese seu eremitério.
tro ficavam sentados em
segurança e ao abrigo do frio
e drites. E os quaMob -

as tempestades. evog inandou


um hábil ferre-

tes C iro fazer


umas correntes de prata

617
brilhanmeteu umas entre
Aedh C Finula, e outras entre
Conn e Fiachra. E os qllatro
entoaram admiráveis cantos
que lhe encheram o coração
de alegria.

Naquele tempo, o rei de


Connaught era Lergnenn, filho
de Col-

618
mann, e a rainha era Déoch,
filha de Fingliinti. Eram o
Homem do Norte e a Mulher
do Sul de que Aifé falara
quando lançara o seu
sortilégio sobre os filhos de Lir,
tendo previsto que eles se
encontrariam. Ora, ao ouvir
falar nos cisnes, a mulher ficou
ansiosa por possuí-los. Pediu
a Lergnenn para ir buscá-los,
e o rei respondeu-lhe que iria
pedir a Moliévog para lhe
confiar os pássaros. Enviou
então mensageiros ao
encontro de Moliévog, mas
estes voltaram com a notícia
de que o santo eremita se
recusava a separar deles.

Então, a rainha Déoch ficou


furiosa, de cabeça perdida, e
jurou que não passaria nem
mais uma noite com o rei se
ele não lhe trouxesse
imediatamente à sua

619
presença os pássaros que
tanto dese ava. LergnenD foi
por isso pessoalmente falar
com Moliévog e perguntou-lhe
se era verdade que tinha
recusado dar os cisnes.

«É absolutamente verdade»,
respondeu Moliévo-

0 rei Lergnenn ficou


enraivecido. Entrou na capela
onde estavam os cisnes e
pegou neles, junto ao altar,
preparando-se para os levar à
rainha com dois em cada mão.
Mas mal ele tinha posto a mão
neles, caiu-lhes a penugem e,
em vez de cisnes, apareceram
diante dele três velhos magros
e enrugados e uma velha
decrépita, todos eles
descamados e sem pinga de
sangue. E Lergnenn ficou de
tal modo horrorizado com
aquele espectáculo que se

620
pôs em fuga. Então, disse
Finula a Moliévog: «Santo
homem, é altura de nos
baptizares, pois não vamos
ficar muito tempo neste
mundo. Quando morrermos,
cava a nossa sepultura e põe
Conn no meu flanco direito e
Fiactira no meu flanco
esquerdo. Quanto a Aedh,
põe-no diante de mim, entre
os meus dois braços.
Apressa-te, pois o nosso
tempo está a chegar ao fim.»

Moliévog sem demoras


baptizou os quatro filhos de
Uir, e eles morreram daí a
pouco tempo. Então, Mohévog
enterrou-os de acordo com as
instruções que Finula lhe dera.
Erigiu um pilar de pedra na
sepultura e gravou nele os
seus nomes em ogham.
Depois, entoou umas orações
para que os infelizes filhos de

621
Uir conquistassem finalmente
a paz eterna.”’

1. Segundo a narrativa
Oidheadh Clainne Lír (o
destino trágico dos filhos de
Ulr), contida em diversos
manuscritos do fim da Idade
Média. Resumo
pormenorizado por MY1e’
Dillon em Early Irish Literature,
Dublin, 1994. Tradução
francesa de Roger Chauviré
011, Contes ossianiques,
Paris, 1949.

u1oV111

1 - >. >

1 1 1 1 1 ?7:

, 1 0 tempo em que Bobdh


Derg reinava sobre as tribos
de Dana, os .principais chefes
do povo feérico visitavam-se

622
frequentemente entre si,
encontrando-se
nomeadamente para
celebrarem em conjunto a
Festa da Idade. Entre os
chefes havia um que era mais
famoso do que todos os
outros, Eochaid Ollathair, pai
do rei e mais conhecido pelo
nome de Dagda. Este chefe
era respeitado por todos, pois
era capaz de fazer grandes
prodígios como desencadear
tempestades ou apaziguá-Ias.
Além disso, Dagda era
também capaz de proteger as
colheitas, e fazia com que os
gados tivessem sempre
pastagens muito ricas, vindo-
lhe daí o nome Dagda, que
significa «deus bom». E as
gentes das tribos de Dana,
quando precisavam de um
conselho, nunca deixavam de
o consultar acerca dos
acontecimentos do futuro, pois

623
ele aliava as qua~ lidades de
adivinho às de mago.

Um dia, Elcinar deu um grande


festim na sua residência de
Brug-naBoyne e Dagda não
pôde deixar de estar presente,
pois Elcinar era seu irMão, e
seria uma grande desonra,
perante as tribos de Dana, se
não prestasse homenagem a
quem lhe era tão próximo e
possuía, sem dúvida, o mais
belo palácio de toda a
Irlanda.,” 0 festim durou três
dias e três noites.

Ora, Elcinar tinha uma mulher


que se chamava Boann, e a
beleza desta era tal que, ao
vê-Ia, Dagda ficou obcecado
com a ideia de a possuir. Por
isso, ficou à espreita do
momento propício para a
encontrar

624
1

I. Lembremo-nos que se trata


do cairi7 megalítico de
Newgrange, no condado de
Meath, não longe de Slane, no
cimo do vale de Boyne.

625
sem ninguém ver e, quando a
ocasião surgiu, declarou-se-
lhe sem vergonha nem
reservas. «Eu unIr-me-ei a ti
de boa vontade», respondeu
Boann, «mas receio o que
possa fazer Elciriar, pois ele é
um mágico hábil e vingar-se-á
de mim sem dó nem
compaixão.» «É verdade que
ele é um mágico hábil», disse
Dagda, «mas eu sou mais
hábil do que ele, e sei como o
manter longe de tudo o que
nos diz respeito. Confia em
mim, mulher, e nada reccies.»

Naquela mesma noite, Dagda


pediu a Elciriar para levar uma
mensagem da sua parte a
Bress, filho de Elattia, que
vivia na Planície da Ilha. Na
manhã seguinte, Elciriar
deixou assim o palácio de
Brug para levar a cabo a sua
missão. Mas, tendo-se ele

626
afastado um pouco, Dagda
lançou-lhe grandes
encantamentos para que ele
estivesse ausente durante um
ano. Dagda fez com que ele se
perdesse tia escuridão da
noite e andasse ao acaso por
um longo período de tempo,
pensando apesar disso que a
sua viagem só durara um dia e
uma noite, o que o poupou às
agruras da fome e da sede.

Então, Dagda foi encontrar-se


com Boann, e uniram-se com
grande prazer de ambos. Foi
tão profícuo o resultado da
união que daí a nove meses
Boann deu à luz o rapaz mais
belo e mais perfeito do mundo.
«Que nome lhe vamos dar?»,
perguntou Dagda.
«Chamernos-lhe Angus,
1

ou seja, Escolha Unica»,

627
respondeu Boann, «pois ele é
o fruto da minha união contigo,
tendo sido esta a única
escolha da minha vida.»

0 filho de Boann e de Dagda


foi assim chamado Angus,
mas ern seguida passou a ser
chamado com mais frequência
Mac Oc, ou seja, «jovem
rapaz», pois era o filho mais
recente de Dagda e possuía
todas as qualidades do pai,
além de ter a beleza da mãe.
Quando Elcmar voltou da
viagem, o parto de Boann já
ocorrera há muito tempo, mas,
longe de imaginar o que se
passara, ele continuou
convencido de que apenas
estivera um dia e uma noite
ausente da sua casa de Brug-
na-Boyne.

Antes do regresso de Elciriar,


entretanto, Dagda enviara o

628
filho para ser educado na casa
de Mider, no outeiro de Bri
Leith. A escolha recaíra sobre
Mider porque nele Dagda
depositava toda a confiança e
sabia qu e ele daria ao
rapaz a melhor educação
possível entre os rapazes
niais nobres de toda a Irlanda.
Deste modo Angus, durante
muitos anos, foi entregue aos
cuidados de Mider, em Bri
Leith. Mider tinha um grande
campo de jogos em frente da
sua residência de Bri Leith, e
albergava nesta cento e
cinquenta rapazes e cento e
cinquenta raparigas que
tinharil sido confiados aos
seus cuidados pelos chefes
das tribos de Dana e pCIOS

chefes dos Fir Bolg que


habitavam ainda na Irlanda.
Angus era o grande canipeão,
pois tinha uma força e uma

629
habilidade Inigualávels, e
MIder tratava-o com tanto
afecto como se ele fosse seu
filho.

Ora, um dia, Angus entrou em


conflito com Triath, filho de
Fébal, do clã dos Fir Bolg e um
dos chefes dos Jogos
realizados por aqueles que
estavam a ser educados no
outeiro de Bri Teith. Triath era
também uni dos filhos
adoptivos de Mider, que tinha
por ele multa consideração.
Triath acabara de criticar
Angus por ter ajuizado mal
sobre o vencedor duma
partida, e o jovem enfurecera-
se. «Só me faltava ter de levar
lições do filho de um servo!»,
gritou ele.

Acontece que Angus pensava


que Mider era seu pai e que
iria herdar dele a posse de Bri

630
Leith, mal podendo suspeitar
do seu parentesco com
Dagda. Mas, ao ser injuriado,
Triath sobres saltara- se e
retorquira: «E a mim só me
faltava ter de suportar que me
levante a voz um mercenário
que nem conhece o pai nem a
mãe!»

Ao ouvir aquelas palavras,


Angus ficou espantado e
estonteado, e foi logo ter com
Mider, pois queria saber se
correspondiam à verdade as
palavras de Triath.

«Que se passa’?», perguntou-


lhe Mider ao vê-lo chegar com
um ar sombrio e com os olhos
marejados de lágrimas.
«Estou muito ofendido com
Triath, o filho de Fébal»,
respondeu Angus. «Ele atirou-
me à cara que não tenho pai
nem mãe. » «Isso é falso»,

631
disse Mider. «É verdade que
eu não sou teu pai, embora te
tenha criado com um amor de
pai, mas Posso assegurar~te
que tens um pai e uma mãe.»
«Então», disse Angus,
«PeÇo-te que me digas quem
é a minha mãe e onde poderei
encontrar o meu pai.» «A tua
mãe é Boann, a mulher de
Elcirtar de Brug-na-Boyne, e o
teu pai não é Elcrnar mas
Eochaid Ollathair, mais
conhecido pelo nome de
Dagda. Foi ele que me
incumbiu de te educar, às
escondidas de Elciriar, para
que este não ficasse ofendido
por teres nascido na sua
ausência. É esta a verdade,
meu rapaz, e não quero que
me censures por te não ter
revelado mais cedo as tuas
origens. Era preciso antes de
mais proteger a tua mae, pois
se Elcinar tivesse tido

632
conhecimento do que se
Passou, ter-se-ia vingado
iiela.» «Muito bem», disse
Angus, «fico-te grato por me
revelares que não sou um
rapaz sem pai e sem mãe.
Agora, VOU-te pedir que me
leves a casa do meu pai, para
que ele me reconheça e assim
eu deixe de estar sujeito aos
insultos dos Fir Bolg.»

Mider partiu então com o filho


adoptivo ao encontro de
Dagda. Quando chegaram a
Uisnech de Meath, no centro
da Irlanda, onde naque-

633
Ia época vivia Dagda,
encontraram-no a meio de
uma assembleia dos chefes e
dos nobres das tribos de
Dana. Mider chamou-o e
pediu-lhe Para se retirar por
um pouco para conversar com
o jovem que o acompanhava.
Dagda deixou a assembleia o
foi logo ter com eles. «Pois
bem, que deseja este jovem
guerreiro que nunca aqui tinha
v,ndo?» «É seu desejo ser
reconhecido pelo pai»,
respondeu Mider, «e que lhe
sejam dadas terras, pois não é
justo que o teu filho nada
tenha tendo tu vastos
domínios em toda a Irlanda.»
«Concordo contigo, e fico
muito satisfeito por poder dar
as boas vindas a um filho»,
disse Dagda, «Acontece no
entanto que não tenho
nenhuma terra livre nos meus
domínios para poder

634
satisfazer o seu desejo.» «Tu
não podes no entanto recusar
terras ao teu filho», insistiu
Mider. «Eu sei», disse Dagda,
«preciso apenas de um tempo
para encontrar uma solução, e
depois o seu desejo será
satisfeito.»1’1

Dagda foi aconselhar-se com


Mananann, filho de Lir, e,
depois de ter exposto o caso,
ponderaram os dois sobre o
procedimento a tomar. «Eu
dar-lhe-el de boa vontade o
domínio de Brug-na~Boyne»,
ex-

plicou Dagda, «mas como


havemos de consegui-lo de
Elcinar? Ele nunca o quererá
dar ... » «Talvez se consiga
alguma coisa...», respondeu
Mananann. «Ouve bem o que
te digo sobre o que temos a
fazer: Elciriar convidou os

635
chefes e os nobres das tribos
de Dana para a celebração da
Festa da Idade na casa de Br-
ug-na-Boyne, na véspera do
próximo samain. Faz com que
o teu filho te acompanhe e eu
pela minha parte farei com que
lhe seja atribuído o domínio de
Brug, com o proprio
consentimento de Elcinar, e
sem que alguém possa opor-
se,»

Deste modo, Mananann,


Dagda e Angus partiram
juntos para as margens do
Boyne, que tinham a erva seca
coberta de orvalho. Forani aí
recebidos com todas as
honrarias, e na sala do festim
havia palha e rosas frescas
para que eles pudessem
dispor de todo o conforto. A
sala era bela e sumptuosa: o
chão era de bronze, de uma
porta à outra, placas de

636
bronze branco ornamentavam
as paredes, e havia animais
de todos os géneros
finamente esculpidos a
decorarem os leitos. Elernar
dera ordens aos seus criados
para irem aos lugares mais
remotos da Irlanda pescar e
caçar pássaros e outros
animais, em honra dos
visitantes. Os chefes das
tribos de Dana sentaram-se
para o festim, COn,

1. Segundo a narrativa
Tocinarch Etaíne (La Courtíse
d’Etaine), contida no Livre
Jaune de Ucan, editado e
traduzido em inglês por 0.
Bergin e R.I. Best, em Eriu,
vol. Xil, Dublin, 1938.
Tradução francesa de Ch-J.
Guyonvarch, em Textos
mitológicos irlandeses,
Rennes, 1980*

637
13obdli Derg ao meio,
Mananann à direita e Dagda à
esquerda. Mais afastados,
encontravam-se Mider e
Angus, com Elemar e Goibnlu.

Os convivas sentiam-se
felizes e estavam de bom
humor, pois eram
obsequiados com os melhores
manjares e as melhores
bebidas que se possa
imaginar. Vieram músicos
recordar-lhes Outros tempos,
e reeitaram-se poemas em
que se exaltavam grandes
proezas das tribos de Dana
quando tinham guerreado
contra os Fir Bolg e os
Fomore. Depois, todos se
foram divertir no prado em
frente à fortaleza e, nessa
altura, Manannan chamou
Angus à parte para que
pudessem falar sem serem
ouvidos. «Esta casa é muito

638
bela, ó Angus», disse
Mananann, «C nunca vi
nenhuma tão bela na Terra da
Promessa. Que bem situada
ela está, num lugar tão
aprazível, nas margens do
Boyiie, e na fronteira das cinco
províncias! Se estivesse no
teu lugar, Angus, não ficaria
descansado enquanto esta
residência não fosse minha, e
lançaria encantamentos sobre
Elcinar para o intimar a deIxá-
la imediatamente de forma a
poder ficar na sua posse.
Estamos na véspera de
Samain e como sabes,
durante a noite de Samain, o
tempo deixa de existir. Bastar-
te-á por isso pedir a Elemar
que te deixe ser senhor de
Brug durante uma noite e um
dia: ele estará tão entretido
com a bebida que nem se
aperceberá de que, no
decurso da festa do Samain,

639
uma noite e um dia equivalem
a uma etem’dade.» «Porque
me dás esse conselho?»,
Perguntou Angus. «Eu
explico-te o motivo»,
respondeu Mananann. «Como
o teu pai quer que adquiras
terras, encarregou-me de te
instruir sobre o que há a
fazer.» «Nesse caso», disse
Angus, «seguirei o teu
conselho.» «Jura então sobre
o teu escudo púrpura e sobre
a tua espada que agirás
rigorosamente de acordo com
o que te direi.» Angus prestou
o juramento que Mananann
exigia dele. «Muito bern»,
continuou Mananann, «fica a
saber que Elemar não é o
dono legí~ timo desta
residência e que o território de
Brug não deverá continuar na
sua posse. Quando voltarmos
para a sala para nos
regalarmos com as bebidas do

640
festim irás ter com Elcinar e,
desembainhando a tua
espada, arfleaçá-lo-ás de
morte, mas nada lhe farás,
desde que ele prometa
satisfazer a tua vontade que
se traduzirá em ficares senhor
de Brug por um dia e uma
noite. Ele não poderá recusar
e, assim que se tiver esgotado
o tenIPO, ele pedir-te-á para
voltar a ser o senhor de Brug,
e tu dirás simPlesmente que o
tempo no mundo se mede por
dias e noites, e que ele nada
mais tem aqui a fazer, pois
deu Brug por uma
eternidade.»

Voltaram todos para a sala do


festim, e Angus seguiu à risca
o conselho de Mananann.
Elcinar deixou-o ser senhor de
Brug por uma noite e

641
um dia. Mas, consumado
aquele tempo, quando
reivindicou a devolução do
seu domínio, Angus
lançou~lhe um encantamento
mágico e ordenou-lhe que
abandonasse Brug o mais
depressa possível. E, ao ouvir
aquela ordem, Elcinar
compreendeu que não tinha
alternativa senão partir.

’u assim da sua casa com


todas as

Elcinar sal
suas gentes, tanto homens
como mulheres. Ninguém que
se encontrasse na assembleia
poderia evitar aquela situação,
nem poderia protestar contra a
injustiça, pois o encantamento
era tão poderoso que a todos
afectava por igual, sendo
impossível fugir~lhe. Mas,
assim que à noite se viu no

642
prado cheio de humidade,
Elemar lamentou-se perante a
mulher e todos os que o
rodeavam: «Que desgraça se
abateu sobre vós, que
pertenceis à minha família e
ao meu clã. É muito triste que
tenhais de deixar Boyne e
Brug, e sentireis uma grande
mágoa e um grande
sofrimento quando estiverdes
muito longe daqui, exilados
em países desconhecidos.
Como é evidente, foi
Mananann quem
maldosamente ensinou Angus
a agir daquela forma. Ali,
estou tão consternado e tenho
o coração tão partido que nem
me importo se tiver de
morrer!”,

Entretanto, antes de deixar


aqueles lugares, Elcmar
chamou Dagda para perto de
si e perguntou-lhe: «ó Dadga,

643
tu que és o mais sábio de
todos nós, que pensas da
acção perversa de que fui
vítima?» «Penso que a acção
não foi perversa mas justa»,
respondeu Dagda. «Daqui
para a frente é a este jovem
guerreiro que a terra pertence.
Ele apanhou-te de surpresa,
num dia de paz e de amizade,
e permitiste que ele fosse
senhor dos teus domínios
porque te atemorizaste
perante ele. Mas vou dar~te
uma compensação: conceder-
te-ei uma terra que não te será
menos proveitosa que a de
Brug.» «Que terra é?»,
perguntou Elcmar. «Vou-te
dizer: trata-se de Cletech, e
dos três vales ficam em volta.
Fica a pouca distância daqui.
Os jovens do teu clã poderão
vir distrair-se na terra de Brug
todos os dias, e tu poderás
consumir os frutos da Boyne

644
como antes.» «É bom que seja
assim», disse Elcmar.

Ele partiu em seguida para a


colina de Cletech e mandou
construir aí uma fortaleza.
Angus, o Mac Oc, por seu
lado, permaneceu na
residência de Brug-na-Boyne
.(2)

1. Síntese entre La courtise


d’Etaine e La nourriture de Ia
maison des deux gobelets. a

l primeira narrativa, é Dagda


quem concebe o truque
destinado a espoliar Elcmar;
na segullda, em que Angus é
o filho adoptivo do próprio
Elemar, é Mananann.

2. Segundo a narrativa La
Courtise XEtaine.

Angus dispôs da sua nova

645
residência como muito bem
entendeu. 0 intendente de
Elemar não tinha seguido
aquele, e veio apresentar-se
ao seu novo senhor, com a
mulher e o filho. Angus disse-
lhe que manteria todas as
suas funções, e que ficaria sob
a sua protecção. E, desde
então, o intendente foi-lhe
devotado, fazendo os possi i

iveis para que no palácio de


Brug tudo corresse pelo
melhor.

Ora, uma noite dormia Angus


serenamente, e teve de súbito
uma visão surpreendente. Em
sonhos viu uma rapariga que
vinha ao seu encontro e se
punha à sua cabeceira. Era
sem qualquer dúvida a mais
belajovem que alguma vez
existira em toda a Irlanda.
Angus quis agarrá-la com os

646
braços para a trazer para a
cama, mas ela, com um salto,
afastou-se até se confundir
com a escuridão.

Angus levantou-se e
interrogou os criados, mas
nenhum deles vira a beldade,
e ninguém lhe soube dizer
para onde ela fora. Ele voltou
a deitar-se mas ja não
conseguiu adormecer, tantas
vezes o visitava a imagem
graciosa da jovem. E assim
ele permaneceu até de
manhã, altura em que se
encontrava muito
enfraquecido e triste. A forma
que entrevira de noite, sem
que lhe pudesse tocar ou falar,
pô-lo doente e a partir daí
perdeu a vontade de comer.
Entretanto, na noite seguinte,
a exaustão fê-lo cair num sono
profundo, e voltou a vê-Ia,
tendo ela nas mãos, desta

647
vez, o mais belo címbalo que
alguma vez vira. Ela tocou-lhe
música, e depois desapareceu
da mesma maneira como
aparecera. Angus ficou
acordado o resto da noite e, de
manhã, não quis comer. E
todas as noites aconteceu o
mesmo: a jovem aproximava-
se do seu leito quando
adormecia, mas logo lhe fugia
ou lhe tocava uma música que
o adormecia rapidamente.

Isto durou um ano inteiro,


fazendo com que Angus
ficasse cada vez niais fraco. E,
como ele não confidenciava a
ninguém os motivos da sua
doença, todos à sua volta
estavam muito preocupados.
Vieram vários médicos da
Irlanda, mas nenhum soube
identificar a doença nem
recei~ tar os medicamentos
apropriados para o curar.

648
Então, chamaram Fingen, o
melhor médico do Ulster que
conseguia fazer um
diagnóstico certeiro de
qualquer doença
simplesmente olhando para o
doente, e que, ao ver fumo a
sair de uma casa, ficava logo
a saber quantos doentes havia
lá dentro. Graças a esses seus
dotes o tinham chamado à
residência da Brug.

Ora, depois de ter examinado


Mac 0c com toda a atenção,
não conseguiu apesar disso
identificar a doença de que ele
padecia. Então,

649
Angus pediu que o deixassem
ficar a sós com Fingen, e
contou-lhe 0 que se tinha
passado, insistindo muito na
beleza da jovem que o vinha
visitar todas as noites.

«0 teu sofrimento é realmente


atroz, pois amas
profundamente uma mulher
que está sempre ausente»,
disse Fingen. «É ela que me
põe doente», disse Angus.
«Adoeceste gravemente»,
continuou Fingen, «porque
não quiseste partilhar o teu
segredo.» «Eu não o podia
fazer, pois quem iria acreditar
que uma jovem de rara beleza,
extremamente distinta, me
vem visitar com um címbalo
todas as noites e me toca
música maravilhosa, sendo
por isso que fiquei doente? E
haverá cura para uma tal
doença?» «Acredito que se

650
encontrará uma solução»,
respondeu Fingen. «É óbvio
que esta jovem vem ter
contigo porque te ama
profundamente. Porque a não
vais procurar? Envia
mensageiros a Boann, tua
mãe, e pede-lhe para te vir
falar.»

Partiram então ao encontro de


Boann, que estava na casa de
Cletech, e ela foi informada de
que o seu filho estava doente.
Ela apressou-se e foi a Brug-
na-Boyne, onde foi recebida
por Fingen. «Eu estou a tentar
curar Z--

o teu filho», disse este, «pois


ele padece de uma grave
doença.»

Fingen explicou-lhe o que


provocava o enfraquecimento
de Mac Oc, que estava a

651
morrer por ter visto em noites
sucessivas uma jovem de
grande beleza que lhe tocava
música. «Eu penso»,
continuou Fingeri, «que num
caso destes só a mãe pode
fazer alguma coisa por ele. Se
amas o teu filho, dá uma volta
por esta ilha para saber se
existe alguma jovem com a
aparência que nos é descrita
por Angus. A única maneira de
o curar é encontrar a jovem e
levá-la à sua cabeceira.»

Boann prometeu a Fingen que


partiria sem demora a procura
da beldade por toda a Irlanda,
mas foi em vão que ela
percorreu as várias
províncias, durante um ano,
perguntando por ela a todas
as pessoas que encontrava:
nem as gentes das tribos de
Dana nem as dos Filhos de
Milé lhe souberam indicar a

652
existência de alguém que se
parecesse com a jovem
referida por Mac Oc. Voltou
por isso para Brug-na-Boyne
inulto desiludida e, mais uma
vez, foi falar com Fingen.
«Não encontrei ninguém»,
disse ela, «e estou muito
preocupada com o que pode
acontecer ao meu filho. Que
podemos fazer agora?»
«Bem», disse Fingen, «já que
nem a própria mãe conseguiu
descobrir um remédio para o
seL, mal, deve mandar-se
procurar Dagda para que fale
ao seu filho, Pois deve ser
agora o pai a tentar encontrar
uma cura para ele.»

Foram então enviados


mensageiros a Dagda. Este
deu-lhes as boas

vindas e perguntou-lhes que


bons ventos os levavam ali.

653
«Ora!», exclamaram eles, «o
teu filho Angus está muito
doente

e Boann, a sua mãe, pediu


que o vás visitar!»

Então Dagda apressou-se a


tomar o caminho de Brug~na-
Boyne, e Boann deu-lhe as
boas vindas quando o viu vir
ao seu encontro. «Deves
aconselhar o teu filho», dlsse-
lhe ela, «pols está tão fraco e
tão incapacitado para se
mexer que nem sabemos
como lhe havemos de salvar a
vida! Peço-te que o ajudes,
pois está profundamente
apaixonado por urna jovem
que o vem visitar todas as
noites, mas que desaparece
assi

1 im

654
que ele acorda. Percorri a
Irlanda de um canto ao outro,
durante um ano, mas todos os
meus esforços foram em vão.
Que podemos fazer por ele,
sábio Dagda, que conselho
lhe podemos dar?» «De nada
valeria eu falar», disse Dagda,
«pois não posso fazer mais do
que tu.» «E verdade», disse
Boann, «mas tu és o mais
sábio e o mais solicitado dos
chefes das tribos de Dana.
Manda consultar Bobdh Derg,
o teu filho mais velho, pois ele
é o nosso rei supremo. Ele
deve saber melhor do
1

que ninguem como se há-de


ajudar Mac Oc.»

Dagda enviou então


mensageiros para o Outeiro0)
de Femen onde nessa altura
vivia Bobdh Derg, e este

655
acolheu-os com muito boa
vontade. «Sede bem vindos à
minha residência, caros
servos de meu pai Dagda»,
disse-lhes ele. «Que motivo
vos traz aqui?» «0 estado
preocupante de Angus, filho
de Dagda», responderam
eles. «Há dois anos que
ele está doente por ter visto
uma jovem durante o sono, e
a visão fê-lo perder a saúde.
Ora, nós não sabemos onde
se encontra, na Irlanda, a
Jovem beldade que ele ama
profundamente e que todas as
noites lhe vem cantar músicas
muito suaves. Por isso te
convocamos, ó rei, da parte de
Dagda, para que mandes
procurar em toda a ’lha essa
jOvem de beleza lnigualável.»
«Ide dizer a Dagda, meu pai»,
respondeu Bobdh Derg, «que
a mandarei procurar, mas que
preciso do prazo de um

656
ano para tentar encontrá-la.»

Ao fim de um ano, os mesmos


mensageiros voltaram a
apresentar-se na casa de
Bobdh Derg, no Outeiro de
Femen. «Vasculhei por toda a
Irlanda», disse-lhes o rei, «e
começava a desesperar
quando encontrei, no lago Bel
Dracon, a jovem que
procurais. Ide levar a notícia a
Dagda,

1* 7èrtre nO original, palavra


francesa que tanto significa
outeiro como tunitilus
megalítico, Ou seja, um
outeiro artificial cobrindo um
dólmen. Segundo estas
tradições de povos celtas
Corno os irlandeses os povos
feéricos vivem nestes tumuius
ou cairns. (N. T.)

657
e dizei-lhe que estou pronto
para levar Angus a esse lago
para poder reconhecer aquela
que viu durante o sono.»

Sem perda de tempo, os


mensageiros regressaram à
residência de Dagda. «Temos
boas notícias», disseram eles,
«a jovem foi encontrada! E
Bobdh Derg manda dizer que
está pronto para receber
Angus e para o levar ao pé
dela para que a possa ver e
reconhecer.»

Angus deslocou-se então de


carro até ao Outeiro de
Femen, onde um grande
festim lhe foi oferecido em jeito
de boas vindas. Ao fim de três
dias e três noites de
festividades, Bobdh Derg
disse por fim: «Chegou o
momento de irmos ao lago Bel
Dracon. Deves ver a jovem

658
para saberes se é a que te
aparece em sonhos.»

Partiram então para o lago Bel


Dracon e, entre as colinas,
viram um espectáculo
impressionante, pois liavia aí
cento e cinquenta jovens,
todas elas de uma beleza
inigualável, divertindo-se nas
margens do lago, rindo,
cantando e folgando
exuberantemente. Formavam
pares tendo a ligá-las uma
corrente de prata, exibiam
colares de prata, à volta da
cintura tinham correntes de
ouro, e os seus cabelos eram
de uma beleza estonteante.”’
Apesar de se parecerem umas
com as outras, de entre elas
destacava-se à primeira vista
uma que era mais alta alguns
centímetros. «Olha aquela
ali», disse Bodh Derg a Mac
Oc. «Não é a que te visitou em

659
sonhos e te veio tocar música
muito suave?» «Sim, é ela»,
respondeu Angus,
«reconheço-a bem. Vou falar-
lhe ... » «Isso não é possível»,
respondeu Bobdh Derg, «pois
ela não depende da minha
autoridade e ninguém se pode
aproximar destas jovens.
Nada mais posso fazer por ti e
não lhe podes falar, muito
menos a podes levar
contígo.5>

«Que hei-de então fazer?»,


perguntou Angus. «Eu estava
doente por poder vê-Ia só à
noite, e por ela me fugir
quando a queria agarrar, e
agora que a vejo em pleno dia,
não posso aproximar-me
dela? A minha tristeza é agora
muito maior.» «Ouve-me»,
disse Bobdh Derg. «Vou dar-
te um conselho: esta rapariga
é Caer Ibormaith, e o seu pai é

660
Ethal Aribual do Outeiro de
Uaman, na província de
Connaught. A única maneira
de te aproximares dela e de a
conquistares é falares co,11 o
pai dela. Mas ele só admitirá
dar-te a filha se for forçado a
isso ou se estiver debaixo do
efeito de algum
encantamento.»

Angus e as suas gentes


deslocaram-se então à
residência de Dagda,

1. Descrição clássica das


jovens do povo feérico que,
como se verá mais adiante,
Podem metamorfoscar-se em
cisnes: voam sempre aos
pares e estão sempre ligadas
por correntes.

indo Bobdh Derg com eles.


Boann encontrava-se lá, na
companhia de

661
1

Dagda, e Angus contou-lhes o


que vira, descreveu-lhes a
rapariga, cuja beleza elogiou,
referiu a figura tão distinta que
ela tinha, e lamentou que
fosse tão inacessível e tão
difícil de conqulstar. «Quem é
ela afiiial?», perguntou Dagda.
i e o avô dela. Bobdh Derg
respondeu-lhe, referindo
também o paí

«Pelos deuses!», respondeu


Dagda, «com muita pena
minha, nada posso fazer por ti,
meu filho, pois esta rapariga
não está sob o meu domínio.
Ninguém conseguirá
conqulstá-la sem o
consentimento de seu pai, e
eu sei que ele só a cederá pela
força ou se estiver debaixo do
efeito de encantamentos.»
«Era convertiente», disse

662
Bobdh Derg a Dagda, «que tu
em pessoa fosses a casa de
Ailill e Maevel11, pois é na sua
provincia que se encontra a
rapariga. Se tu lhes pedires
ajuda, talvez eles possam
fazer alguma coisa por ti.»

Sem demora, Dagda partiu


então para a província de
Connaught, com uma escolta
de pelo menos sessenta
carros e na companhia do seu
filho Angus. 0 rei e a rainha
deram-lhes as boas vindas, e
passaram uma semana inteira
a festejar por entre comidas e
bebidas com que os
presenteavam.

«Porque haveis vindo?»,


perguntaram por fim Aílill e
Maeve. «Vou explicar-vos»,
respondeu Dagda. «Encontra-
se nesta província uma
rapariga por quem o meu filho

663
se apaixonou, mas com a qual
não se Pode relacionar nem
pode conquistá-la, o que lhe
provoca uma profunda tristeza
e mágoa. Vim a vossa
presença para vos perguntar
de que modo se poderá
chegar perto desta rapariga e
conquistá-la.» «Quem é ela?»,
perguntou Ailifi. «Caer
Ibormaith, a filha de Ethal
Anbual.» «Ora!», exclamou
Aílifi, «nós não temos nenhum
poder sobre ela, mas mesmo
assim tudo faremos para que
o teu filho a conquiste.»

«Nesse caso», disse Dagda,


«convém que chames o teu
pai para que Possamos falar
com ele.» «Assim farei»,
prometeu Ailifi.

-- 0 intendente de Ailill partiu


imediatamente para o Outeiro
de Ailill e Maeve são

664
personagens de relevo na
epopeia celta da Irlanda, e
desempenham um Papel
importante em todos os ciclos,
escapando a qualquer
cronologia. A rainha Maeve ri,
particular é Imito
característica, sendo a síntese
entre uma provável rainha
histórica de Conn,,ght e uma
antiga deusa ceita. 0 seu
nome (Mebdh) significa
«embriaguez» mas também
«meio» o que indicia uma
posição intermédia entre o
mundo humano e o Outro
Mundo, divino Ou feérico. Affill
e Macve residem na fortaleza
real de Cruachan (actual
Crogh an, no condado de
Roscommon); e na pequena
montanha de Knoeknarea,
perto de ”90, existe um «cairn»
megalítico que tem o nome de
«Túmulo da rainha Maeve».

665
Uaman e, assim que se
encontrou na presença de
Ethal Aribual, disse-lhe:
«Venho da parte do rei Ailill e
da rainha Maeve pedir para
que os vás visitar pois
pretendem falar-te.» «Não
irei», respondeu Ethal, «pois
sei muito bem o que eles
pretendem. Fica pois a saber
que jamais darei a minha filha
ao filho de Dagda.»

0 intendente voltou para a


fortaleza de Ailill e de Maeve
e contou-lhes palavra por
palavra o que lhe dissera Ethal
Aribual. «Que
ímpertínente!», exclamou
Aillil, «juro que a bem ou a mal
o traremos até nós, nem que
tenhamos de humilhar os seus
guerreiros!»

. Ailill juntou então um grupo


de homens armados que se

666
pôs a caminho com a escolta
de Dagda, Chegaram ao
Outeiro de Uaman e, após
terem lutado contra as gentes
de Ethal Aribual, penetraram
no outeiro e saquearam-no,
com tal proveito que no
regresso levavam consigo
sessenta cabeças de
guerreiros e Ethal Aribual
como prisioneiro.

Quando chegaram pouco


depois à fortaleza de
Cruachan, Ailill disse a Ethal:
«Dá a tua filha ao filho de
Dagda.» «Não o farei»,
respondeu Ethal Aribual.
«Para mais, mesmo que o
quisesse não o poderia fazê-
lo, pois o poder que a domina
é muito mais forte do que o
que eu tenho sobre ela.» «Que
poder é então esse que a
domina?», perguntou Ailill.
«Acontece muito

667
simplesmente que ela está
sob o efeito de um sortilégio.
Durante um ano inteiro, ela
tem a forma de um pássaro e
no ano seguinte retoma a
forma humana, e ninguém
consegue mudar essa
situação.» «Muito bem», disse
Ailill, «e em que ano ela tem a
forma de pássaro?» «Eu não
devo traí-la», respondeu
Ethal.

Então, Ailill ergueu-se e,


desembainhando a espada,
brandiu-a sobre a cabeça de
Ethal Aribual. «Eu arranco-te a
cabeça se não falares!», gritou
ele. «Estou a ver que não me
resta alternativa senão falar»,
suspirou Ethal, «pois estais
decidido a matar-me. Sabei
então que na próxima festa de
Samain ela estará com uma
forma de pássaro rio lago Bel
Dracon, tendo na sua

668
companhia um maravilhoso
grupo de cisnes. Todos
estarão à superfície das
águas, e será possível falar-
lhes a partir da margem, E111
contrapartida, quem quiser
aproximar-se deles, não
poderá ter a forma humana.»
«Está bem», interveio Dagda,
«já sei o que hei-de fazer.»

Foi então firmada a paz entre


Ailill, Dagda e Ethal, sendo
este último posto em
liberdade. Depois, Dagda e o
filho voltaram para Brug-na-
Boyne. Mac Oc estava agora
muito feliz, pois sabia que
Polico faltava para conquistar
a donzela por quem se
apaixonara e CUP ausência o
martirizava.

Na noite anterior à festa de


Samain, ele dirigiu-se então
para as inargens do lago Bel

669
Dracon, sendo acompanhado
pelo pai. Aproximou-se da
água e viu um maravilhoso
grupo de pássaros brancos
que cruzavam serenamente o
lago e que estavam ligados
entre si por correntes de prata,
tendo a coroá-los arcos de
ouro. Angus, com a forma
humana, chamou a rapariga
pelo seu nome e um pássaro
veio ao seu encontro. «Quem
me charna?», perguntou ela.
«E Angus, filho de Dagda,
quem te chama. PcÇo-te,
Caer, que venhas comigo,
pois o meu amor por ti é tão
grande que não conseguiria
viver nem mais um minuto se
não viesses comigo para a
minha residência.» «Eu não
posso seguir alguém que
possui a forma humana»,
respondeu o pássaro, e
afastou-se.

670
Então, Dagda tocou no filho
com uma varinha mágica e
druídíca, e Mac Oc tomou
imediatamente a forma de UM
cisne majestoso. «Bela Caer»,
gritou Angus, «podes agora vir
comigo?» «POsso, com
certeza, mas na condição de
me dares a tua palavra de
honra que me deixas voltar
amanhã para o lago,» «Eu
Prometo», respondeu Angus,
antes de se abraçar a ela.

Naquela noite, eles dormiram


juntos na forma de cisnes e,
na manhã seguinte, deram
várias voltas ao lago e uniram-
se fisi amente varias ve
1c

zes. Depois ergueram-se no


ceu, sempre na forma de
pássaros brancos, e viajaram
para Brug-na-Boyne. Aí, em
terra firme, Caer retoInou a

671
forma humana: nunca fora tão
bela, e Angus estava no auge
da felicidade. Puseram-se os
dois a cantar a música suave
dos palácios feéricos, e todos
aqueles que ouviam aquela
música ficavam a dormir
durante três dias e três noites.
E a rapariga ficou a partir de
então a viver com Angus no
palácio de Brug-na-Boyne.

Desde então uma grande


amizade passou a ligar Affill e
Maeve, rei
0 rainha de Connaught, a
Angus, o Mac Oc, último filho
de Dagda. E as gentes das
tribos de Dana, assim como os
Filhos de Milé, ficaram todos
muito felizes, de tal modo que
os seus poetas, inspirados por
esta história, nunca mais
deixaram de compor belas
músicas e de escrever
I)arrativas que partem os

672
corações mais sensíveis.(I

’-Segundo a narrativa Awj,,


oenguso (0 sonho de Angus),
contida no manuscrito
EgertOn 1782 do Museu
Britânico, editado com
tradução inglesa por Edward
Muiler na Revue celtique, vol.
III, Paris, 1876-1878.
Tradução francesa de Ch.-J.
Guyonvarch’h em Te””
’1i101,ógí- irlandeses,
Renries, 198o.

673
Capí1u1o1X

erta vez, os homens de


Connaught estavam reunidos
junto ao Lago dos Pássaros,
na planície de Aé, tendo sido
preparado para eles um
grande festim que durou toda
a noite. Ao romper da alva,
eles levantaram-se e foram
passear pelas margens do
lago, vendo de súbito um
homem írromper através da
bruma: cobria-o um manto de
púrpura com cinco dobras, e
na mão segurava dois dardos
de cinco pontas, tendo ao
ombro um escudo de bossa de
ouro; à cintura trazia uma
espada de punho de ouro, e
uma bela cabeleira dourada
vinha pousar-lhe suavemente
sobre os ombros.

«Vêem o homem que se


aproxima?», perguntou

674
Loégairé, filho de Crimthann,
um dos mais belos e nobres
guerreiros de Connaught.
«Julgo que devemos saudá-lo
e recebê-lo bem, pois ele tem
um porte nobre e não revela
nenhuma hostilidade contra
nós.»

Quando o guerreiro
desconhecido chegou ao pé
das gentes de Connaught,
estas saudaram-no e deram-
lhe as boas vindas.
«Agradeço-vos a recepção
calorosa», disse o
desconhecido. «0 que te traz
aqui?», perguntou-lhe
Loégairé. «A esperança de
que me possais ajudar» «De
onde vens e quem és?»,
voltou Loégairé a perguntar.
«Sou das tribos de Dana»,
respondeu ele, «e chamo-me
Fiaclina, filho de Rété. Sou um
chefe respeitado entre os

675
meus.» «Se é ajuda o que
pretendes de nós», disse
Loégairé, «nós dar-ta-emos
de boa vontade se tios
disseres o que pretendes.» «0
motivo que aqui me traz é o
seguinte: a minha mulher foi-
me raptada por Eochaid, filho
de Sâl, que a IIVOU para a sua
fortaleza. Inconformado, eu fui
atrás do raptor, que

676
morreu às minhas mãos.
Entretanto, a minha mulher
refugiou~se em casa de um
filho do seu irmão, GolI, filho
de GoIb, cuja fortaleza se
encontra no centro da Planície
Agradável, e ele não ma quer
devolver. já o combati em sete
batalhas, mas em todas elas
fui derrotado e não conseguiu
reaver a minha mulher. Hoje,
travaremos uma batalha
contra GolI, mas são poucas
as nossas possibilidades de a
vencer se não tivermos ajuda.
Por isso vos venho pedir
auxílio, homens de
Connaught, e estou disposto a
recompensar qualquer um de
vós que se junte a mim e
venha combater ao lado dos
meus homens.»

Ditas estas palavras, o


estranho deu meia volta e
desapareceu na bruma,

677
ficando os homens de
Connaught a contemplá-lo
enquanto deixava os limites
da terra firme e entrava
lentamente nas águas do lago
com as quais se confundiu.

«Seria para nós uma


vergonha se não ajudássemos
este homem!», exclamou
Loégairé.

Cinquenta guerreiros
dirigiram-se então para o lugar
onde tinham visto Fiachria
desaparecer e, entrando nas
águas e descendo até à
profuni
iante

deza do lago, foram ’untar-se


a ele dispostos a ajudá-lo. Ao
verem di deles uma fortaleza
e, no prado, dois exércitos
frente a frente, puseram-se ao
lado de FiacIma, filho de Rété,

678
que estava na fileira da frente.

«Agora que aqui chegámos»,


disse Loégairé, «preparemo-
nos para fazer frente ao chefe
dos cinquenta guerreiros que
estão diante de nós.» «Aqui
estou», disse GolI, filho de
GoIb, «e aceito o desafio que
nie lançais! Lutemos pois, se é
esse o vosso desejo!»

E começou logo ali uma


violenta batalha, ao fim da
qual Loégairé e os cinquenta
homens que o
acompanhavam foram os
claros vericedores, deixando
caídos sobre o campo de
batalha Goll e os seus
cinquenta guerreiros. Depois,
avançaram e saquearam tudo
o que encolitraram pela frente.
«Onde se encontra a tua
mulher?», perguntou Loégairé
a Fiachna. «Na fortaleza, no

679
meio da Planície Agradável»,
respondeu Fíachna, «mas tem
a protegê-la um
poderosíssimo conti11gente
de homens armados.» «Flca
então aqui», disse Loé-airé,
«enquanto eu lá vou com os
meus cinquenta homens.»
ZI

Foram então à fortaleza da


Planície Agradável e viram 0
grupo numeroso de homens
que a guardava. Não se
deixando intimidar, investiram
contra ele e, combatendo com
valentia, abriram uma
passagem que dava para o
interior da fortaleza. À entrada
desta Loégairé gritou: «Nada
vos pode valer! Os vossos
chefes já foram mortos, e GolI,
fil,10

180 C-1le--c-

680
de GoIb, morreu. Estamos na
disposição de lutar até vos
termos morto a todos, Libertai
pois a mulher que tendes
como refém e em troca
pousaremos as armas e
poupar-vos-emos a vida.»

Aqueles que estavam no


interior da fortaleza pediram
um tempo para responder, e
Loégairé acedeu ao seu
pedido. Re itiraram-se
para ponderar e, pouco
depois, a mulher saiu da
fortaleza a entoar um canto de
lamento pelo facto de terem
morrido tantos guerreiros por
sua causa. Loégalré pegou-
lhe pela mão e conduzm-a até
Fiachria que, muito contente
com o sucesso daquela
aventura, convidou Loéagairé
e os seus cinquenta homens
para um festim na sua resi
dêncla. «Não sei como te

681
manifestar a minha gratidão»,
disse Fiachria a Loegairé,
«mas vou fazer-te uma
proposta: fica comigo neste
país e governemo-lo em
conjunto, tu e eu. Tenho uma
filha que se chama Der GreIne
e, se ela te agradar, poderás
desposá~la.»

Mandaram chamar a rapariga,


cuja beleza e belo porte muito
agradaram a Loégairé.
FiacIma deu então a mão de
Der Greine a Loégairé is
passaram a

e os do’ noite juntos.


Por seu lado, os cinquenta
guerreiros que tinham
acompanhado Loégairé
tiveram cada um a sua
mulher, sendo escolhidas as
mais nobres jovens do país. E
todos ali permaneceram um
ano inteiro.

682
«Nós gostávamos de ter
notícias do nosso país», disse
então Loégairé a FiacIma.
«Permiti que partamos.» «Se
é esse o vosso desejO, não
vos contrariarei», respondeu
Fiachria. «Mas devo advert

1 1
ir-vos de unia coisa: ’de de
cavalo para o
vossopépsaíesm,
mtearsaa»ssim que aí
chegardes, de modo algum
deveis pousar os

Eles foram então às


cavalariças de Fia ,cIma
onde escolheram cavalos
robustos e ágeis, deixaram a
ifortaleza, atravessaram
bosques e pla-

1.

683
metes, e pouco depois
encontravam-se nas margens
do Lago dos Pássaros. Ora,
precisamente naquele dia os
homens de Connaught
estavam leunidos num festim,
e Crimthann, pai de Loégairé,
encontrava-se entre eles,
Todos se lamentavam então
de não terem notícias dos
homens que tinham partido no
ano anterior.

Assim, quando viram Loegaire


e os seus cinquenta guerreiros
a dirigirem-se na sua direcção,

surgindo das profundezas do


lago, ficaram todos contentes
e foram recebê-los para lhes
dar as boas vindas. «Não se
aproximem!», exclamou
Loégairé. «Viemos aqui para
nos desPedirmos de vós.»
Trocaram então diversas
informações sobre o ocor~

684
rido no ano em que tinham
estado separados. «Não nos
deixes», pediu

685
Crimthann, «pois no reino de
Connaught tu podes ter tudo o
que desejas: ouro, prata,
pastagens férteis para o gado,
cavalos rápidos e as mais
nobres mulheres de toda a
ilha.»

Mas nem Loégarré nem


nenhum dos seus cinquenta
companheiros quis ficar a
viver no reino de Connaught, e
depois de se despedirem dos
familiares e dos amigos,
voltaram para as águas do
lago. Pouco depois, entraram
na fortaleza onde Loégairé
partilhava o poder com
Fiachna.11)

Este poder, entretanto, só era


exercido sobre as tribos de
Dana que viviam no
Connaught, pois Ailill e Maeve
eram por seu lado rei e rainha
dos Filhos de Mité. Segundo

686
fora estipulado a seguir à
batalha de Tailtíu, estes
últimos povoavam o território
da Irlanda enquanto as tribos
de Dana se estabeleceriam
nos outeiros, sob as colinas e
debaixo das águas dos lagos,
não podendo as suas gentes
ser vistas pelos Filhos de Milé
senão quando o desejassem,
pois tinham o dom da
invisibilidade. Vivendo de
acordo com o que tinha sido
combinado entre eles, os dois
povos mantinham excelentes
relações e respeitavam-se
mutuamente.

Ora, nesta época em que


partilhava com Loégairé a
soberania sobre as tribos de
Dana que viviam em
Connaught, Fiactina tinha um
hábil porqueiro chamado
Rucht e este Rucht tinha uma
relação de amizade com o

687
porqueiro das tribos de Dana
que residiam no Munster, o
qual, de nome Friuch, não lhe
ficava atrás em habilidade e
reputação, Assim, sempre que
faltavam bolotas em Munster,
Rucht convidava Friuch a
levar a sua vara de porcos a
Connaught e, por seu lado,
quando faltavam bolotas em
Connaught, Friuch convidava
Rucht para a apanha de bolota
em Munster.

Além desta entreajuda, os


dois homens também
costumavam encontrar-se de
tempos a tempos para
fazerem jogos mágicos e de
prestídigitação. Ambos eram
de uma habilidade inigualável,
e as tribos de Dana
procuravam saber qual deles
era o melhor. Mas, como não
havia vencedor nem vencido
nos torneios que realizavam,

688
sendo de igual valor os dois
concorrentes, as gentes de
Dana ficaram impacientes e
acabaram por lhes impor
provas susceptíveis de
desequilibrar a balança a favor
de um ou de outro. «Já que
sois tão fortes», disseram-lhes
uin dia, «fazei pois com que os
vossos porcos fiquem um ano
sem conICI’-

Segundo uma narrativa


contida num manuscrito do
século XV, publicado com
traduÇãO inglesa por Saint
O’Grady, Silva Gadelica,
Dublin, 1892. Tradução
francesa de GeorgOS Dottin
na EI)opeia Irlandesa, nova
ed. Paris, 1980.

Veremos então qual das duas


varas é a mais resistente.»

Rucht e Friuch lançaram

689
encantamentos sobre os
porcos que tinham ao seu
cuidado e, ao fim de um ano,
ambas as varas tinham não só
sofrido por causa da falta de
comida como os porcos de
Munster tinham emagrecido
tanto como os de Connaught.
«Pelo mal que fizestes
passar os porcos», disseram-
lhes, «ina’s vale que deixais
de cuidar deles!» E a ambos
foi retirada a actividade de
porqueiro.

Além de ficarem estupefactos


e consternados, Rucht e
Friuch não conseguiram
resolver o seu problema de
saber qual deles era o mais
hábil. Decidiram então mudar
de forma durante um ano e
rivalizar durante este período
para saber qual deles venceria
melhor as dificuldades. E, de
comum acordo, tomaram a

690
forma de corvo.

Ao longo do ano, sobrevoaram


a Irlanda e enfrentaram
diversas dificuldades. Mas,
por muitas lutas violentas que
fizessem entre si, não havia
maneira de qualquer um deles
ganhar vantagem ao outro. No
dia primeiro do ano seguinte,
compareceram perante a
assembleia de Munster, tendo
voltado a adquirir a forma
humana assim que pousaram
no chão.

Foram recebidos com boas


vindas e perguntaram-lhes o
que tinham feito durante o ano
sob a forma de pássaros. «Na
verdade», disseram eles,
«não tendes motivo algum
para estardes satisfeitos e
para nos desejardes as boas
vindas. Obrigaste-nos a tentar
demonstrar qual de nós é o

691
mais hábil, mas não se chegou
a nenhuma conclusão.
Devemos lembrar-vos que,
por causa das provas que nos
impusestes, haverá muitas
mortes e a Irlanda terá muitas
razões para se lamentar,»

Quiseram logo saber se eles


se estavam a referir a uma
guerra em particular, obtendo
como resposta: «Não o
podemos dizer, mas o certo é
que todos os povos desta ilha,
sejam as tribos de Dana ou os
Filhos de.Milé, serão vítimas
do que está para acontecer.
Ninguém conseguira evitar um
grande sofrimento e duras
penas e o sangue dos homens
correrá nos rios e nos lagos.
Agora, para satisfazer a vossa
exigência e para ficarmos a
saber qual de nós é o mais
hábil, iremos mudar de fon-ria
durante mais um ano inteiro.»

692
E imediatamente, deixando a
assembleia, foi cada um para
seu lado. Um dirigiu-se para o
Shamion, onde mergulhou
transformando-se ’lurfl Peixe
enorme. 0 outro partiu para o
Suir(’) onde mergulhou e, por

1, Rio do Munster.

693
seu lado, também transformou
num enorme peixe. Depois,
ambos, através dos nos, dos
lagos e do mar, nadaram ao
encontro um do outro.
Passaram metade do ano no
Sharmon e a segunda parte no
Suir, e procuraram não se ferir
nem se cansar enquanto se
perseguiam mutuamente.

Um dia, estando os homens


de Connaught reunidos numa
assembleia nas margens do
Lago dos Pássaros, assistiram
a um espectáculo
extraordinário: dois peixes
enormes lutavam nas aguas
com uma extrema violência,
de tal modo que faíscas saíam
das suas escamas que mais
pareciam espadas num
combate cruel. E as faíscas,
muito vivas e incandescentes,
chegavam até às nuvens.

694
Ao fim de lutarem sem
piedade diante dos homens de
Connaught durante algum
tempo, os dois peixes saíram
do lago e, sobre a margem,
readquiriram a forma humana,
sendo reconhecidos como os
dois porqueiros. Fiachria foi
então até perto deles e deu-
lhes as boas vindas. «Não nos
deveis dar as boas vindas»,
responderam eles, «pois de
nada valem as nossas lutas,
que, como pudestes ver, são
terrivelmente violentas.
Continuamos sem saber qual
de nós é o melhor e
tomaremos agora uma nova
forma para pormos à prova a
nossa habilidade.»

Após terem ficado à conversa


durante algum tempo,
despediram-se de Fiachria e
dos homens de Connaught e
partiram cada um para seu

695
lado. Tornaram-se então dois
campeões famosos pela sua
força e resistência. Um era o
campeão de Ochall, que era o
rei do Outeiro de Femen, em
Munster, e o outro o campeão
de Fergria, que era o rei do
Outeiro de Nento-sob-as-
águas, em Connaught. Todas
as campanhas levadas a cabo
pelas gentes de Ochall,
ficavam a cargo do seu
campeão e o mesmo
acontecia em relação às
campanhas realizadas pelas
gentes de Fergria em Nento-
sob-as-águas. A fama dos
dois campeões espalhou-se
rapidamente pela Ilha Verde,
sem que alguém soubesse de
onde eles tinham vindo.

Entrementes, Ochall decidiu


deslocar-se com as suas
gentes à assembleia que os
homens de Connaught

696
estavam a realizar junto ao
lago Raich, 0 cortejo de Ochall
era notável: nele seguiam sete
vezes vinte carros e sete
vezes vinte cavaleiros, e os
cavalos, de uma única cor, ti~
nham riscas prateadas sobre
o corpo. Várias mulheres
desmaiarant ao ver aquele
cortejo, pois nunca na vida
tinham visto um espectáculo
tão esplendoroso. Quando
chegaram, os homens de
Ochall deixaram Os carros e
os cavalos no prado, sem
ninguém a vigiá-los.

Os homens de Connaught
vieram ao seu encontro e
deram-lhes as boas vindas,
perguntando-lhes depois qual
era o motivo da visita. «Nós

viemos», respondeu OchalI,


e- realizar provas convosco
«fazer jogos 1

697
para vermos quem é mais
forte de entre nós.» «Assí”m
seja», resporideram os
homens de Connaught.

D urante todo o dia se fizeram


jogos no prado e ao anoitecer
juntaram-se todos num festim
que durou até meio da noite.
Mas, no dia seguinte, Ochall
disse aos homens de
Connaught: «Estamos mui

’to satisfeitos, mas agora eu


quero que um de vós lute
contra o meu campeão, que se
chama Rinn.» «Manda vir o
teu campeão.»

Ochall chamou Rinn, e este


POstou-se diante dos homens
de Connaught que, ao vê-]o,
ficaram de tal modo
assustados que não ousaram
desafiá-lo, convencendo-se

698
antecipadamente que iriam
ser derrotados.

Ora, naquele mesmo


momento, todos viram um
cortejo que se aproximava,
vindo do norte. Nele havia três
vezes vinte cavalos atrelados
a carros e tres vezes vinte
homens que montavam
cavalos negros, parecendo
que cavalgavam sobre o mar.
Estavam todos mal vestidos e
mal armados, e os cavalos
que montavam, magros e
sujos, pareciam arrastar-se
penosamente. Perante aquele
cenário tão miserável,
puseram-se todos a rir,
embora 0 cortejo tenha sido
depois muito bem recebido e
tenha sido Perguntado
àqueles que 0 compunham o
que dese

javam. «Eu sou Fergria, do

699
Outeiro de Nento-sob-as-
águas», respondeu
orgulhosamente o chefe do
cortejo. «Vim aqui com as
minhas gentes Para competir
cOrivosco. Entre os meus
companheiros, tenho um
campeão tão poderoso que
duvido que alguém deseje
enfrentá-lo.» «pols bem»,
responderam os homens de
Connaught, «outro grupo
antecipou-se ao teu, o de
OchalI, do Outeiro de Femen,
e trouxe um campeão de tal
forma temível que ninguém se
atreve a enfrentá-lo.»
«Façamos com que lutem um
contra o outro», disse Fergita.

Ao ver o campeão recém-


chegado, que se chamava
Faebal, a assembleia ficou
aterrorizada, e desmaiaram
vinte homens de medo e de
eOMOÇão. Nenhum dos

700
homens de Connaught teria
aceite o desafio, mas Rinn, o
campeão de Ochali, ergueu-
se imponente e muito seguro
de si e foi ao encontro de
Faebal

«Eu lutarei contra o teu


campeão!», exclamou ele na
direcção de Fergria.

E, com efeito, atiraram-se um


ao outro com uma incrível
ferocidade, durando o
combate três dias e três no’

que os ites.
Tão violenta foi a luta
ferimentos provocados em
ambos não paravam de
aumentar, ficando os corpos
todos ensanguentados e
cheios de nódoas negras. Por

701
fim tomou-se a decisão de os
separar, por se recear que
pudessem morrer de
exaustão. Mas, após um breve
repouso, mudaram de aspecto
e metamorfoscaram-se em
hediondos demónios da rio
te, e depois arremessaram-se
um contra o outro dando urros
medonhos. E a luta que se
seguiu durou três dias e três
noites sem que jamais um ga-

parados, e readnhasse
vantagem ao Outro. Mais uma
vez foram se

quiriram a forma habitual, ou


seja, a do-, dois porqueiros
Rucht e Fruich. «vejam até
onde nos levou a vossa
loucura», disseram então.
«Quisestes que lutássemos
para pôr à prova a nossa
valentia, e foi nisto que deu o
desafio que nos lançastes.

702
Porque quereis saber qual de
nós é o melhor, atraístes
grandes males e penas para
nós os dois, o que acarretará
grandes males para esta ilha
no futuro.» «Que quereis .
og», perguntaram-lhes então.
«Aconte

dizer com iss .


ce que no futuro uma guerra
terrível e sangrenta se abaterá
sobre esta ilha, e isto por
causa da nossa rivalidade.
Como resultado dela muita dor
e iniseria se espalharão pelos
guerreiros desta ilha, sejam
eles das tribos de Dana ou dos
Filhos de Milé. Melhor teria
sido por isso se não tivésseis
incentivado a disputa entre
nós doís.» «Nesse caso»,
disseram os homens de
Connaught, «o melhor será
ficari-nos por aqui e
considerafinos que tendes

703
gual valor. Porque não pomos
um fim às disputas
declarando-vos a ambos
vencedores?» «Já é
demasiado tarde»,

mais deixaremos de nos bater


um contra o responderam
eles, «e ja 1

stes vós que qulsestes que


assini fosse.» outro, mas fo

Os dois deixaram a
assembleia e desapareceram
sem se saber exactamente
que rumo tomavam,
transformando-se em
minhocas e mergulhando nas
águas. Um deles foi para a
fonte de Uaran Garan, em
Cormaught, e dizia chamar-se
Tumue a quem o interpelava.
0 outro foi para o ribeiro do
Glass Gruin, em Cualngé no
UIster, e dizia chamar-se

704
Crunniuc-

Um dia, o chefe da província


do Uister chamado Maga, filho
de Daré, velo banhar-se no
Glass Gruind e viu, sobre uma
pedra, uITI pequeno animal
colorido que parecia uma
minhoca. 0 animal chamou
Maga pelo seu nome, e ele,
cheio de medo, quis sair dali
imediatamente. «Não te vás»,
disse o animal. «Tens todo o
interesse em ficara conversar
comigo, pois poderei dar-te
alguma informação preciosa-’

antado. «A felicidade está ao


te0 «0 quê-?», perguntou
Maga, muito esP
s nestas alcance, Maga, filho
de Daré. Existe um barco
cheio de tesouro

terras, e ele está à tua espera


no lugar em que o curso de

705
água se lança

no mar. Se não acreditas em


mim, vai ver com os teus
próprios olhos.» Então Maga
foi ao longo do rio até ao
estuário, e aí viu um barco

que tinha naufragado. Como


não viu ninguém a bordo,
entrou para dentro dele e
descobriu que estava cheio de
jóias, de taças de ouro, e
de urna grande quantidade de
pedras preciosas. Depois de
ter ordscunaadeoasàas, suas
oentes para recolherem o
tesouro e para o levarem para

in Maga voltou rio acima ao


encontro do lugar onde vira o
pequeno animal. «Pois bem»,
disse aquele, «acreditas agora
ria minha palavra>»
«Acredito», respondeu Maga.
«Mas quem és tu, que tens um

706
aspecto tão esquisito e que
me revelas coisas
escondidas?» «Já ouviste
falar de Rucht e de Friuch, os
porquelros de Connaught e de
Munster?» «Já, e sei que a
disputa entre eles nunca
acabará pois são os dois
igualmente

«Eu sou um dos


porqueihabilidosos. Mas que
relação têm contigo’.’»

ros, embora hoje tenha esta


forma e seja conhecido por
Crurinitic. Vou agora dizer-te
outra coisa, Maga, filho de
Daré: amanhã uma das tuas
vacas virá beber água ao rio e,
ao fazê-lo, erigolir-me-á.
Então ela engravidará e dará à
luz um vitelo de belo porte e de
cor negra que se chamará o
Moreno de CuaIngé, Fica
também a saber que

707
amanhã, na fonte do
Connaught, uma outra
minhoca, parecida comigo,
também será engolida por
uma das vacas que pertencem
ao reino Maeve. Também esta
ficará grávida e dará à luz um
vitelo que, graças aos seus
mag-

ia níficos cornos, se chamará


o Belo Cornudo de Aé. Virá
por fim do di

em que dois touro


terrível. Os do’

s provocarao uma guerra


is touros acabarão por se
enfrentar nessa guerra, e
nenhum sobreviverá a ela.
Assim concluirão as nossas
provas no futuro, Maga, filho
de Daré, e isto é tudo o que te
posso dizer.»

708
Então, o pequeno verme muito
colorido desapareceu na
profundeza das águas do
Glass Gruind, deixando muito
pensativo e melancólico
Maga, filho de Daré.

No mesmo momento, e
naquele mesmo dia, a rainha
Maeve foi-se refrescar à
nascente de Uaran Garan no
Connaught. Nas mãos levava
um vaso de bronze branco,
para lhe a facilitar as abluções.
Mergulhou então o vaso na
nascente e um pequeno
animal que lhe pareceu uma
minhoca ficou preso dentro do
recipiente. Ela ficou a
examiná-lo durante algum
tempo, pois tinha uma foi-ma
estranha e era multicolor, Ora,
de súbito, o animal pôs-se a
falar: «Rainha, tu és poderosa
e respeitada, mas um dia
faltar-te-á qualquer coisa e tu

709
entrarás numa guerra terrível
para conseguires obter aquilo
que te faltar.» «Que queres tu
dizer com isso,

710
verme tão pequeno e
insigníficante?», perguntou a
rainha, cheia de surpresa. «Na
verdade, ao invés de ser um
verme insignificante, sou
capaz de tomar todas as
formas que quero. Mas o
destino está feito de tal modo
que jamais encontrarei a paz
enquanto for vivo. Queres
saber quais foram as formas
que tomei desde que os
homens da Irlanda me
enfeitiçaram?» «Fala,
pequeno verme. e diz-me o
que sabes.»

m era, a razão

Ele contou-lhe então que


~ da disputa com o seu amigo,
as metamorfoses por que
ambos tinham passado e

as lutas intermináveis que


tinham travado sem nunca se

711
conseguirem livrar delas.
«Mas», disse Maeve, «quando
é que tu e o teu camarada con-

seguirão descansar?» «0
desfecho 1à está próximo, e
tu terás nele uma palavra a
dizer, ó Maeve. Fica a saber
que, amanhã, uma das tuas
vacas virá matar a sede a esta
nascente e, ao beber água,
engolir-me-á. Ela ficará
grávida e dará à luz um jovem
touro dotado de uns cornos
tão magníficos que se
chamará o Belo Cornudo de
Aé. E fica também a saber que
no Ulster, no Glass Gruind, se
encontra neste momento uma
minhoca em tudo semelhante
a mim. Amanhã ela será
engolida por uma das vacas
de Maga, filho de Daré, que
parirá um touro negro que se
chamará o Moreno de
Cualngé. E tu, rainha Maeve,

712
desejarás esse touro, porque
ele será tão soberbo e
poderoso como o Belo
Cornudo de Aé. E nenhum
touro da Irlanda se atreverá a
mugir depois de o Moreno de
Cualgné e o Belo Cornudo de
Aé o terem feito.»

Depois de pronunciar estas


palavras, o pequeno verme de
múltiplas cores saltou para
fora do vaso e desapareceu
nas profundezas da nascente.
E a rainha Maeve voltou muito
pensativa para a fortaleza de
Cruachan.`I

Ao anoitecer daquele mesmo


dia, Ailill e Maeve
encontravam-se em casa, no
interior da fortaleza, com
todos os seus parentes, a
cozerem a comida no
caldeirão. E tendo o rei e os
seus guerreiros feito na

713
véspera dois prisioneiros,
disse ele: «Aquele que for
capaz de ir pôr o rebento de
um vime à volta do pé de um
dos cativos terá uma
recompensa à sua escolha.»

1 Segundo a narrativa Os dois


porqueiros, contida no Livre
Leinster e no manuscrito
Egerton 1782, editado por
Windisla, «Irishe Texte», vol.
111. Tradução francesa de
Arbois de Jubainville em Les
druides e les Dietix à,forme
Xanimaux. Outra tradução
francesa de Ch.-J.
Guyonvarc’h em Textes
rnythologiques irlandais,
Rermes, 1980. Esta narrativa
serve, como muitas outras, de
prólogo à célebre epopeia de
La R=ia de CuaIngé, que põe
à bulha os homens do 1JIster
com os outros homens da
Irlanda por causa da posse do

714
Moreno de CuaIngé.

Escura como breu estava


aquela noite. Todos os
homens quiseram vencer o
desafio, mas todos logo
voltaram sem terem
conseguido pôr o rebento de
vime à volta do pé do cativo,
na casa das torturas, pois
tinham muito medo dos
fantasmas que rodeavam a
fortaleza. Então o jovem Néra
ergueu-se e disse: «Pois bem,
irei eu, e vencerei o desafio
que nos lanças.» «Se assim
for», disse Allill, «terás a
minha espada de punho de
ouro.»

Néra envergou então uma


sólida armadura e dirigiu-se
para a casa onde estavam os
prisioneiros. A armadura,
contudo, calu-lhe três vezes,
dizendo-lhe um dos

715
prisioneiros: «Tens de por um
prego na armadura, ou jamais
ela deixará de cair no chão.»
Néra pôs então um prego na
1 1

armadura e conseguiu segurá-


la. «Es corajoso», disse o
cativo. «Sem dúvida»,
respondeu Néra, «e isso
permitir-me-á obter como
prêmio a espada de punho de
ouro do rei A’1’11.» «Ouve»,
disse ainda o cativo, «já que
és tão coraJoso, põe-me às
costas para que eu possa ir
beber água contigo. Eu estava
cheio de sede quando para
aqui me trouxeram.» «Sobe
para as minhas costas»,
respondeu Néra. «Mas onde é
que te hei-de levar’)» «A casa
mais próxima.»

Ao aproximarem-se da casa
mais próxima, viram-na de

716
súbito ser cercada por uma
corrente de fogo. «Não há
nada de bom para nós nesta
casa», disse o cativo, «pois
onde existe fogo falta a
discrição. Vamos à outra que
está mais perto de nós.»

Mas quando chegaram ao pé


da casa mais próxima, viram-
na ser cercada por um lago.
«Não vamos a essa casa»,
disse o cativo. «A banheira
que nela existe só deve servir
para tomar banho, para se
refrescar o corpo ou para se
lavar a louça depois de uma
noite de sono. Vamos a
outra.»

Entraram então noutra e o


cativo afirmou que aí havia
com que saciar a sede,
pousando-o Néra no chão.
Naquele lugar havia, com
efeito, banheiras para se

717
refrescar o corpo e para se
tomar banho, mas não havia
torneiras. No meio da sala
encontrava-se também uma
cuba com lixívia. Depois de ter
bebido um gole de cada um
dos recipientes para a água, o
cativo soprou a última gota
sobre os habitantes da casa,
que morreram todos, Depois
disso, Néra levou o prisioneiro
para a casa das torturas.

Mas Néra viu então um


cenário surpreendente: no
lugar da fortaleza, estava a
colina queimada à sua frente
e, entre um montão d cabeças
metidas em estacas,
reconheceu as cabeças de
Ailill, de Maeve de todos os
seus famili

i lares.

Entretanto, como uma

718
multidão de guerreiros se
confundia com a sonibra, ele
seguiu-os até penetrar no
interior do outeiro. Uma vez aí

189 C_1C?_1

719
chegados, todos aqueles
homens foram mostrar ao rei
as cabeças que levavam
consigo. Néra, por seu lado,
deixou-se ficar prudentemente
para trás, ocultando-se. «0
que é que fizestes ao homem
que vos acompanhava?»,
perguntou-lhes o rei. «Não lhe
fizemos nada, pois não estava
com os outros», eles. «Trazei-
o à minha presença para que
lhe possa falar.» Trouxeram
Néra à presença do rei, que
lhe perguntou: «Como vieste
até aqui?» «Não o sei»,
respondeu Néra. «Eu segui os
guerreiros que assaltaram e
incendiaram a fortaleza.»
«Está bem», disse o rei,
acrescentando: «Vai àquela
casa onde te espera uma
mulher. Diz-lhe que eu é que
te mandei ao seu encontro e
traz-me todos os dias um feixe
de lenha.»

720
E assim foi. A mulher deu-lhe
as boas vindas, e ele dormiu
com ela naquela noite. E todos
os dias, desde então, ele
levava um feixe de lenha à
casa do rei. Mas todos os dias
ele via um cego que,
carregando às costas um
coxo, saía da casa do rei e se
dirigia para um muro em frente
da casa. «É aqui?»,
perguntava o cego. «É sim»,
respondia o coxo, «Agora
vamo-nos embora.»

Muito espantado com aquela


estranha cena, Néra acabou
por perguntar à mulher o que
sabia ela àquele respeito. «0
coxo e o cego vão observar a
coroa que se encontra
escondida no muro»,
respondeu ela. «A coroa é um
diadema de ouro que o rei põe
durante as festas, pois é

721
mágica e dá poder a quem a
ostenta. Esconderam-na no
muro para que ninguém, a não
ser o rei, lhe possa tocar.»
«Mas porque e que aqueles
dois vão juntos assegurar-se
de que a coroa está sempre
lá?», perguntou Néra. «A
explicação é simples: como
um é cego e não vê nada, e o
outro é coxo e não consegue
andar, o rei fica certo de que a
coroa não será furtada.»
«Uma coisa ainda me intriga»,
continuou Néra. «Gostava de
saber o que se passou no dia
em que entrei no outeiro. Pude
observar que a fortaleza de
Cruachan tinha sido destruída
e incendiada, e que as gentes
do teu povo mataram Ailill e
Maeve, assim como todos os
que lhe são próximos.» «Isso
não é exacto», respondeu a
mulher. «Foi um exército de
sombras que foi à fortaleza.

722
Mas o que viste acabará por
acontecer se não puseres os
teus de sobreaviso.» «Mas
como?» «Le~ vanta-te e vai
ter com eles. Eles estão
sempre de volta do caldeirão,
cujo conteúdo ainda não foi
comido. Diz-lhes para se
manterem em guarda, na
próxima noite de Samain, pois
os homens do outeiro deverão
atacar nessa altura a fortaleza
de Cruachan e todos os que aí
se encontrarem. 0 que viste
ainda não aconteceu.
Aconselha também

Ailill e Maeve a virem atacar o


outeiro na véspera de Samain,
pois há muito tempo foi
profetizado que este outeiro
seria destruído por Ailill e
Maeve, os quais se
apoderariam da coroa do rei
Bnun. Esta coroa conceder-
lhes-á a supremacia sobre

723
todos os outros povos da
Irlanda.» «1\4as eles
pensarão que estou a inventar
histórias se lhes disser que
vim a este outeiro», disse
Néra. «Leva contigo frutos de
verão», disse a mulher. «Fica
também a saber que estou
grávida de ti e que darei à
luz um rapaz. Quando o teu
povo vier destruir o outeiro,
envia-me uma mensagem a
avisar-me, para que eu possa
refugiar-me num abrigo, com o
teu gado. E tu próprio poderás
vir aqui sempre que quiseres.
Agora parte, vai ter com os
teus.»

Depois de colher áleas~rosas,


alho selvagem e morangos,
Néra dirigiu-se para a
fortaleza, tendo a impressão
de que permanecera três dias
no outeiro. Ora, ao chegar a
casa encontrou aí Ailiii e

724
Maeve, assim como os seus
familiares, à volta do
caldeirão. «Cumpriste, o que
te pedi?», perguntou Ailill.
«Cumpri», respondeu Néra,
«mas vivi aventuras muito
estranhas. Fui a um belo país
onde havia grandes tesouros,
pedras preciosas, ricos
ornamentos, comidas muito
saborosas e bebidas
inebriantes. Mas os habitantes
desse pais na proxima noite
de Samain vêm matar-vos e
incendiar a fortaleza, a não ser
que vós mesmos ides na
véspera destruir o outeiro.»
«Nesse caso», disse Ailill,
«nós iremos já sem falta
atacá-los antes que eles nos
venham atacar. Ainda bem
que fizeste esta viagem, ó
Néra. Como recompensa pelo
que fizeste ganharás a espada
de punho de ouro.»

725
Três dias antes do Samain,
Ailill avisou Néra de que ele
deveria ir então proteger a
mulher e os seus bens. Néra
voltou então ao outeiro, e a
mulher deu-lhe as boas
vindas. «Vai agora a casa do
rei», disse-lhe ela, «pois eu fui
lá todos os dias levar um feixe
de lenha em teu lugar, fingindo
que estavas doente. E segura
nos braços o teu filho.»

Néra tomou o filho nos braços,


e depois foi levar um feixe de
lenha à casa do rei, como se
nada tivesse acontecido. Ailill
e Maeve reuniram os homens
de Connaught e foram atacar
o outeiro. Depois de o
destruírem, levaram consigo
todas as riquezas que nele
existiam. E foi assim que Ailill
e Maeve obtiveram a coroa de
Briun que lhes conferiu a
supremacia sobre todos os

726
outros povos da Irlanda.

Néra, por seu lado, voltou para


o outeiro com a sua mulher, o
filho e’ 0 gado, ficando aí a
viver desde então.”)

Naquela mesma altura, em


Munster, reinava um rei
chamado

727
ois filhos, Rib e Ecca. Tendo
tido o desgosto de Failbé que
tinha d 1 1 1

perder a mulher, Failbé


desposara uma Jovem de
grande beleza que se
chamava EbIlu. Ora, esta
EbIlu andava a deitar o olho
ao filho mais novo, Ecca, por
quem estava loucamente
apaixonada. Ela enchia-o de
atenções e manifestava por
ele tanto interesse que o rapaz
acabou por perceber que
aquela afeição, longe de ser a
que uma mãe tem por um filho,
era antes filha do desejo.

Ecca passou então evitar


encontrar-se com Ebliu, pois
não queria provocar qualquer
transtorno ao pai. Multas
vezes ia a caça com os jovens
da sua idade e chegava o mais
tarde possível à casa real,

728
mas isso de nada lhe valia,
pois Ebliu fazia-lhe esperas e
arranjava sempre maneira de
lhe dar a entender o quanto
estava apaixonada por ele.
Assim, tornou-se inevitável
que Ecca se tenha deixado
seduzir por Ebliu e se tenha
deitado no seu leito de amor,

Durante algum tempo a


relação passou despercebida
a toda a gente. Mas, um dia,
entrando o rei Failbé de
surpresa no quarto, viu a
mulher e o filho juntos na
cama. Foi tão grande a sua
mágoa e a sua dor que pensou
matar os dois logo ali, mas
acabou por se acalmar e
ordenou-lhes que
abandonassem Munster
imediatamente.

Deste modo Ecca, filho de


Failbé, deixou o país do pai na

729
companhia de Ebliu, com toda
a criadagem que o servia. E o
seu irmão mais velho, Rib, que
não se dava bem com o rei
Failbé, foi atrás dele.

0 grupo de exilados dirigiu-se


para norte, esperando
encontrar aí um lugar
aprazível para se estabelecer.
Mas os druidas que os
aconipanhavam disseram-
lhes que não era conveniente
que os dois irmãos ficassem a
morar na mesma residência.

Decidiram por isso separar-se


e, enquanto Ecca continuou o
seu caminho para norte, Rib e
as suas gentes dirigiram-se
para leste. Depois de muito
errarem, descobriram um belo
lugar na planície de Arbthenn.
«Eis o lugar que nos
interessa», disse Rib aos seus
companheiros. «Esta bela

730
planície rica e verdejante será
excelente para a criação de
gado, terá sempre alimento
em abundância. E nós
poderemos saciar a sede à
nossa vontade nesta fonte que
brota do solo em direcção ao
ceu.»

1. Segundo a narrativa Echira


Nerai (as Aventuras de Néra),
conservada no manuscrito
Egerton 1782, e publicada por
Thurneysen em Die Irische
Helden Und Konigssage.
Versão francesa de i, Markale
em Les Cahiers d’Histoire el
de Folklore, vol. VI, Análise e
resumo em J. Markale, A
Epopeia celta da Irlanda, nova
ed., Paris, 1993.

Estabeleceram- se então na
planíci

ie de Arbthenn, decididos a

731
residir aí para sempre. Mas,
naquela mesma noite, quando
iam buscar água à fonte, esta
transbordou bruscamente e
inundou-os a todos. E foi a
partir de então que passou a
haver um lago no meio da
planície de Arbthenn.

Por seu lado, Ecca, Ebliu e


todas as suas gentes
continuaram a dirígir-se para
norte, mas não encontraram
nenhum lugar onde se
estabelecer. Andaram assim
durante vários dias, parando
apenas algumas horas à noite
para descansarem os
membros fatigados e cuidar
dos cavalos esgotados por
puxarem carros muito
pesados, Chegados por fim ao
vale da Boyne, encontraram-
se num prado que ficava na
vertente de uma colina onde
se situava o outeiro de Brug,

732
que tinha um brilho muito
incandescente ao pôr~do-sol.

«Estamos muito cansados e


Ja não conseguimos andar»,
disse Ecca. «Fiquemos aqui,
pois este lugar é fresco e
apirazível, e poderemos
montar as nossas tendas no
sopé da colina, abrigados do
vento.»

Começaram a instalar-se mas,


no alto do outeiro, Angus, filho
de Dagda, tinha estado a vê-
los e ficara furioso por os
intrusos estarem a instalar-se
nos seus domínios sem
sequer se terem dado ao
trabalho de lhe pedir
autorização. Assim, deixando
a sua casa, ele veio ao
encontro de Ecca que, após
lhe ter censurado a sua
indelicadeza, intimou-o a partir
imediatamente com as suas

733
gentes, pois não estava
disposto a per~ mitir que
estragassem aqueles pastos
puros que cobriam a encosta.
Feita a intimação, voltou para
Brug.

Como caía a noite, Ecca


decidiu adiar a partida,
preferindo esperar pela
manhã para retomar a viagem.
Montaram as tendas
rapidamente e, como todos
estavam fatigados, dormiram
profundamente.

Ainda estavam mergulhados


no sono quando Angus
apareceu no meio deles, mais
furioso do que nunca. Lançou
um encantamento sobre Os
cavalos de Ecca e de Ebliu, e
todos os cavalos morreram
imediataInente. «Procedeste
muito mal, ó filho de Dagda»,
disse-lhe Ecca. «Nós fião

734
tencionávamos prejudicar-te e
estávamos apenas a
descansar até de Inanhã, Pois
todos nós estamos exaustos.»
«Eu não vos dei permissão
para que ficásseis», gritou
mac Oc. «Sois vós os
culpados por eu ter lançado
um encantamento sobre os
vossos cavalos para os matar.
Se terides algo a lamentar, é a
vossa presunção.» «Tu
procedes mal ao nos
repreenderes tão vilmente!»,
replicou Ecca com veemência.
«Além de não respeitares os
deveres de hospitalidade,
privaste-nos dos nossos
cavalos. Quem é que agora
nos puxara os carros com tudo
o que têm den-

735
tro?» «Vós mesmos puxarei,,
os carros!», respondeu Angus.

Então eles começaram a


arrumar as tendas e quando
tudo ficou pronto, puseram-se
corajosamente a puxar os
carros. Mas como o terreno
não era plano, tiveram uma
grande dificuldade para os
fazer avançar, Angus
observava-os a partir da sua
casa, com um ar irónico, e
disposto a dar-lhes outra
reprimenda se não deixassem
a sua terra. Mas depois,
vendo-os fazer um esforço tão
desmedido, teve pena deles,
desceu a colina e foi ao seu
encontro. «Esperai!», gritou
ele. «Vou dar-vos um cavalo
para vos compensar dos que
matei. É um cavalo forte e
poderoso que vos permitirá
puxar todos os carros ao
mesmo tempo.»

736
Angus foi a Brug e voltou de lá
com uma magnífico cavalo
cínzento, de pêlos brilhantes,
a crina prateada e as patas
robustas e ágeis. Trazia o belo
animal arreios de prata
guarnecidos com fivelas em
ouro onde estavam
incrustadas pedras preciosas
de todas as cores. «Cedo-te
este cavalo sem pedir nada
em troca», disse ele a Ecca,
«mas devo prevenir-te de uma
coisa. Este cavalo não
pertence a nenhuma raça que
tu conheças e terás de ter o
cuidado de o não deixar nunca
parar, seja dia ou noite. Não o
deixes nunca descansar pois,
se o fizeres, isso causará uma
grande catástrofe, a qual te
será fatal a ti e aos teus.»

Os exilados, sem perda de


tempo, retomaram a viagem C

737
Viram maravilhados que o
cavalo, na verdade, puxava
sozinho todos os carros sem
fazer um grande esforço.
Entraram no Ulster e daí a
pouco avistaram uma planície
muito verdejante rodeada de
colinas, a planície de Neagh.
«Eis um belo lugar para nos
estabelecermos», disse Ecca.
«Aqui existe erva em grande
abundância para criarmos o
nosso gado, e o terreno é tão
plano que não teremos
dificuldade em construir aqui
as nossas casas.»

Descarregaram os carros
mas, absorvidos pela tarefa,
esqueceram-se de vigiar o
cavalo. No momento em que
este parou uma fonte jorrou
então do solo, lançando para o
ar jactos de água que se
projectavam torrencialmente
nos céus. Ecca lembrou-se

738
então da advertência de
Angus e, muito perturbado
com o fenómeno que
provocara, mandou construir
sem demora, com pedras de
grandes dimensões, uma casa
à volta da fonte com uma porta
que vedava o caminho às
águas torrenciais. Deste
modo, a água deixou de correr
e de inundar os terrenos
vízinhos, e Ecca decidiu
edificar a sua própria casa
perto da fonte para melhor a
vigiar.

Todos puseram mãos à obra


e, Ecca encarregou uma
criada da sua confiança de
vigiar a fonte, ordenando-lhe
que tivesse sempre a porta Z:I

rigorosamente fechada,
excepto quando as gentes da
fortaleza fossem buscar água
à fonte.”’

739
Construiu-se assim uma
cidade ao redor da fortaleza
de Ecca e este, com as suas
gentes, dedicaram-se à
criação de gado que ia pastar
ria erva abundante da planície
onde também se cultivava o
trigo. Ebliu deu a Ecca duas
filhas que se chamaram Ariu e
Libane. Numerosos chefes do
UIster vieram visitar Ecca e
prestaram-lhe homenagem,
tendo ele tanto sucesso que
ficou soberano de metade da
província. E todos elogiavam
as excelentes qualidades de
Ecca, filho de Failbé.

Quando chegou à idade de


casar, Ariu desposou um
poeta de nome Curnan, que
cheio de boa vontade
percorria o país de lés a lés
recitando ou cantando
profecias que pareciam

740
desprovidas de qualquer
sentido: por esse motivo lhe
chamaram Curnan, o Simples.
Curnan repetia
constantemente que um dia
um lago surgiria por causa da
fonte, sendo por isso urgente
fazer barcos. «Veio esta
planície cheia de morte e
destruição», dizia ele. «Veio
jactos de água a saírem da
terra, jactos impetuosos e
torrenciais. Veio o nosso chefe
e todos os seus hóspedes
engolidos pela fúria das
águas, Também vejo Ariu, a
minha amada, levada pelas
vagas. Oh!, nem sequer a
posso salvar. Todos morrerão
nesta planície, à excepção de
Libane e de eu proprio. Que
triste destino... E vejo Libane a
leste e a oeste: ela nadará
muito, muito tempo no vasto
oceano, passando perto de
costas misteriosas e de ilhotas

741
obscuras, e perto de grutas
profundas imersas nas J

aguas. W, esta cidade


desaparecerá, e só eu ficarei
para chorar os que partiram ...
!» Era este o lamento que
Cuman o Simples
constantemente entoava
àqueles com que se cruzava,
mas ninguem o queria ouvir e
todos lhe voltavam as costas
quando o viam aproximar-se.

Ora, um dia, a mulher que


estava encarregue de vigiar a
fonte esqueceu-se de fechar a
porta. Logo a água saiu da
casa de pedra e invadiu a
planície, formando um grande
lago que se chama Lough

I- Outra versão da mesma


narrativa atribui a aventura
não a Ecca mas ao seu irmão
Rib. É Mider, o pai adoptivo de

742
Angus, que lhe dá o cavalo, e
lhe faz a mesma advertência.
Mas o cavalo põe-se a urinar
tão abundantemente que Rib
se vê obrigado a fechá-lo
numa casa. Trinta anos mais
tarde a urina transborda e
inunda todo o país. (Revue
celtique, tomo xv, segundo o
manuscrito de Rermes dos
Dindsenchas, série de notas
mitológicas sobre os lugares
da Irlanda).

743
Neagli. Ecca, filho de FalIbé,
EbIlu, toda a família e todas as
suas gentes foram vítimas das
águas furiosas, salvando-se
apenas a sua filha Libane e o
seu genro Curnan o Simples.”

Mesmo tendo sido arrastada


pelas vagas, Libane
conseguiu sobreviver e
desceu com o seu cão às
profundezas do lago onde
viveu um ano inteiro, numa
gruta. Mas, ao fim de um ano,
ela cansou-se de estar presa e
exprimiu o desejo de ser um
salmão para poder nadar nas
águas profundas dos
estuários e poder percorrer
com os seus semelhantes o
mar claro e verde. Com efeito,
mal ela exprimira o seu
desejo, este fora satisfeito,
embora o seu rosto e os seus
seios tenham mantido o
aspecto dos duma donzela.

744
(2)

Libane errou assim durante


trezentos anos por todos os
lagos e todos os rios da
Irlanda, e percorreu o mar
profundo e encapelado junto à
costa. Multas vezes ela
voltava ao lago Neagh e, aí,
entoava um lamento em
memória de seu pai Ecca e de
toda a sua família. Depois,
voltava a partir pelos estuários
e continuava as suas longas
incursões por toda a Irlanda.

Ora, certo dia, estando ela


num rio de águas pouco
profundas, foi pescada pelo
santo homem Congal que,
professando a fé de Cristo,
vivia num eremitério. Congal
ficou surpreendido e
maravilhado ao ver aquele ser
estranho e belo, e Líbane
contou-lhe os acontecimentos

745
que

1 .Reconhecer-se-á nesta
história o tema da célebre
lenda bretã da Cidade de Is,
engolida pelas vagas do mar
por culpa da princesa Dahud
que deu as chaves das
represas que protegiam a
cidade. No País de Gales
encontra-se esta tradição no
caso da baía de Cardigan,
estando na origem da
catástrofe o esquecimento de
uma mulher encarregue de
vigiar uin poço, que não
fechou uma porta, deixando
assim que ele transbordasse.
Pode tambérn mencionar-se a
tradição respeitante ao país
de Lyonesse, engolido pelo
mar ao largo de Penzance no
Cornwall. Este tema da cidade
engolida pelas águas parece
constante na lenda celta. Ver
J. Markale, Os Celtas e a

746
civilização céltica, Paris,
Payot, 1994 (cap. consagrado
ao Mito céltico das origens) e,
sobretudo A mulher celta,
Paris, Payot, 1992 (cap.
consagrado à «Princesa
engolida»).

2. Este ser meio-mulher meio-


peixe não é uma sereia,
apesar da opinião corrente: na
origem, uma sereia é, com
efeito, um monstro feminino
com barbatanas que, vivendo
em baixios, seduz os
navegadores para os levar
para o fundo. Pelo contrário
Libane é o perfeito rnodelo de
um tipo melusino (ainda que
Melusina tenha uma cauda de
serpente e não de peixe). É
preciso ter em conta que este
tema foi explorado muitas
vezes pelos escultores
irlandeses da Idade Média:
testemunham esse facto as

747
representações muito
misteriosas, incOrrectamente
chamadas «sercias», que se
podem encontrar no exterior
da catedral anglicaria de
GaIway, e sobretudo a
representação surpreendente
que se encontra num
contraforte, no interior da
magnífica igreja romana de
Clonfert (condado de GaIway),
a qual está alétu disso
colocada sob o orago de São
Brandão, o Navegador.

testemunhara. Quando
Congal lhe perguntou se
queria receber o baptismo, ela
aceitou humildemente e pediu
a Deus para a acolher na paz
eterna. Então ele baptizou-a e
no mesmo instante morreu
Libane, filha de Ecca, que veio
a ser Muirgen, a «Filha do
Mar»Y1

748
Segundo a narrativa A
inundação do lago Neagh,
contida no Leabhar na h Uidré,
manuscrito do fim do século
XI, editado com tradução
inglesa por 1. 0’ Beirne-Crowe
em Ki1kenny Archaeological
Journal, Kilkenny, 1870. Outra
tradução inglesa de P. W,
Jiyce em Old Celtíc romances,
Dublin, 1879.

749
aquele tempo havia um jovem
herói chamado Fraech, que
era o homem mais belo de
toda a Irlanda e Bretanha.
Tinha por pai Idach de
Connaught e por mãe Befinn,
irmã de Boann, das tribos de
Dana. 13efinn oferecera-lhe
dez vacas feéricas, brancas e
com orelhas vermelhas, e que
produziam leite em grande
abundância. Na casa onde
vivia encontravam-se
cinquenta filhos de reis, todos
da mesma idade, com a
mesma estatura e o mesmo
aspecto que ele, e
encontravam-se também três
harpistas muito talentosos. A
fortuna de Fraech era imensa,
e a sua reputação estendia-se
muito para além do
Connaught.

Acontece que Finnabair, filha


de Ailill e de Maeve, que

750
reinavam então naquela
província, de tanto ouvir falar
nas excelentes qualidades de
Fraech, se apaixonou por ele
sem nunca o ter visto. Tendo
chegado aos ouvidos de
Fraech as pretensões da
jovem em relação à sua
pessoa, ele decidiu então ir
conhecê-la. A este respeito
falou com as suas gentes, que
lhe deram todo o apoio.
«Mas», acrescentaram elas,
«antes de ires para casa de
Ailill e de Maeve, vai falar com
a irmã da tua mãe e pede-lhe
para te dar presentes
feéricos.»

Fraech foi então à residência


desta última, que se chamava
BoaDn e o recebeu com
benevolência, dando-lhe o
que ele lhe pediu: cinquenta
capas, azuis como as costas
de um escaravelho, que

751
estavam ornadas com
broches vermelhos, cinquenta
túnicas brancas com adornos
de aniinais em ouro e prata,
cinquenta broquéis de prata
com orlas vermelhas
salientes, pedras preciosas
que brilhavam à noite como
raios de sol, e cinquenta
espadas de punho de ouro. Da
casa de Boann, ele trouxe
tam-

752
bém cinquenta cavalos que
tinham como pendentes do
pescoço sinetas de ouro, e
exibiam caparazões de
púrpura, arreios de ouro e de
prata decorados com figuras
de animais e munidos de
cinquenta chi

CI 1
icotes em latão branco que
tinham na ponta colchetes de
ouro; trouxe ainda sete cães
de caça equipados com
correntes prateadas, sete
tocadores de trompa de
cabelos longos dourados,
vestidos com túnicas
multicolores
1 1

e com mantos brilhantes, e


seguiam o grupo três druidas
coroados com díademas de
prata revestidos a ouro.

753
Quando se aproximavam de
Cruachan onde residiam Ailill
e Maeve, a’sentinela que
estava na torre da fortaleza
viu-os desembocar na planície
e foi anunciar ao rei e à rainha,
aos gritos: «Vem ao nosso
encontro uma companhia
como nunca se viu desde que
reinais sobre Connaught. Juro
pelo deus protector da minha
tribo que jamais se viu
companhia tão brilhante e rica:
vêm com tal ligeireza e com tal
aparato que nunca vi nada
igual! Quanto aos
malabarismos e às
habilidades que exibe o jovem
que se encontra no meio da
companhia, ultrapassam tudo
o que se possa imaginar: ele
atira o dardo para a frente e,
antes que a arma atinja o solo,
sete cães com correntes de
prata seguram-na em pleno
ar.»

754
Ao ouvirem tão grande elogio,
as gentes que se encontravam
na fortaleza de Cruachan
precipitaram-se para as
muralhas para poderem ver o
grupo que se aproximava, e foi
tal a pressa e a sofreguidão
que várias pessoas ficaram
esmagadas, tendo morrido
dezasseis. Depois, o
espectáculo que todos viram
foi impressionante: os
membros do grupo deixaram
os cavalos soltos pelo prado e
libertaram os caes que,
começando a correr
velozmente, num instante, às
vistas das muralhas de
Cruachan, caçaram sete
gamos e sete raposas.
Depois, os cães partiram para
um pântano e trouxeram de lá
sete lontras que depositarafil à
porta das muralhas. Então, os
membros do grupo sentaram-

755
se na erva fresca e ficaram à
espera.

Foram da parte de Ailill e de


Maeve perguntar-lhes quem
eram e de onde vinham, e
responderam que Fraech, filho
de Idach, desejava visitá-los.
Disso foram então avisados o
rei e a rainha, dizendo Aílill:
«Sejam bem vindos, com todo
o vosso séquito!»

Fizeram-nos entrar e foi-lhes


dada uma casa para
repousarerfl. Nela
encontraram, da lareira ao
muro1`, sete leitos dourados
com uni frontão de bronze e
divisórias de teixo vermelho à
volta dos quaís corriam cintas
de bronze. Sete cintas de
cobre partiam tambéli, do
caldeirão até ao tecto da casa.
Esta, feita de abeto, era
coberta conI

756
ripas e tinha dezasseis janelas
com caixilhos em cobre.

Um caixilho de prata, e a
seguir um frontão, uniam as
travessas da casa e
cercavam-na de uma porta à
outra.

Após dependurarem as armas


nas paredes da casa, Fraech
e os seus companheiros
começaram a reti
iosas das suas írar pedras
preci

arcas. E quando Ailill e Maeve


vieram cumprimentá-los e dar-
lhes as boas vindas, falaram
de diversos assuntos durante
bastante tempo, dizendo-lhes
depois a rainha: «É meu
desejo jogar xadrez com este
jovem.» «Pois bem, se o
desejas, que se faça a tua

757
vontade», concordou o rei,
«mas entretanto seria bom
que se fosse preparando uma
refeição para os nossos
hóspedes.»

Trouxeram uinjogo de xadrez.


0 tabuleiro era esplêndido,
todo em bronze branco, com
os cantos em ouro, e as peças
eram de ouro e de prata.
Maeve começou a jogar com
Fraech e, enquanto decorria a
par~ tída, as gentes da casa
coziam os alimentos. «Diz
agora aos teus harpistas para
nos tocarem qualquer coisa»,
disse Ailill a Fraech, e este
ordenou aos harpistas:
«Começai a tocar.»

As harpas estavam guardadas


em sacos de pele de lontra,
debruados a couro escarlate
com ouro e prata incrustados.
As harpas eram de ouro, de

758
prata e de bronze branco
tendo em relevo as figuras de
pássaros e de cães. Quando
se tocava nas cordas, as
figuras corriam às voltas ao
redor dos homens. Os
harpistas começaram a
beliscar as cordas, e
provocaram um tal sofrimento
e uma tristeza tão grande que
morreram doze homens da
casa de Ailill e de Maeve.

Estes músicos, excelentes


melodistas, eram irmãos, e
chamavam-se Lamuriento,
Risonho e Adorrnecedor.
Eram assim chamados de
acordo com as diferentes
melodias que tocara a harpa
de Dagda em honra deles.
Com efeito, aquela, quando do
nascimento deles, tinha
provocado tristeza quando
das primeiras dores da mae,
provocara sor~ risos e regozijo

759
com o parto dos dois primeiros
filhos, mas induzira ao sono
quando do nascimento do
terceiro, pois o trabalho de
parto foi rtluito penoso e a mãe
adormeceu. Quando esta
acordou, quis comemorar o
que sentira durante os seus
partos.

Quanto a Maeve e a Fraech,


jogaram xadrez durante três
dias e três Iloites, sem sequer
darem pela escuridão, pois
das pedras preciosas

L A lareira tem fratIcêsfoyc r -


N. T.1 encontra-se no centro
da sala, saindo o fumo por
uma abertura feita no tecto.

760
desprendia-se uma luz muito
suave. Por fim, Fraech
levantou-se. «Basta», disse
ele, «que já ganhei esta
partida, seja qual for a joga-

da que fizeres a seguir. E não


fiques aborrecida se te pedir
para deixarmos de jogar.»
«Desde que te encontras
nesta casa», respondeu
Maeve, «nunca os dias me
pareceram tão compridos!»
«Não admira», replicou
Fraech, «estamos a jogar há
três dias e três noites! »

Maeve ergueu-se,
envergonhada por ter deixado
os jovens sem comer, mas
disseram-lhe que eles tinham
sido servidos com grande
fartura. Então, ela pediu que
lhes dessem ainda mais
comidas e bebidas, para que
se saciassem. Depois, Aíli11 e

761
ela chamaram Fraech à parte
e perguntaram-lhe qual era o
motivo que o 1tinha levado a
Cruachan. «Eu queria visitar-
vos», respondeu Fraech. «E
uma grande honra para nós»,
disse Ailill, «e estamos muito
felizes por te conhecermos.
Fica a saber que gostamos
muito de te ter aqui
connosco.» «Nesse caso
ficarei convosco uma
semana», disse Fraech.

Assim, durante uma semana


ele ficou alojado na fortaleza
de Cruachan. os seus
companheiros iam caçar todos
os dias e traziam caça em
abundância, vindo visItá-los
as gentes de Connauglit. Mas
Fraech estava muito
aborrecido por não ter
encontrado FIrmabair, pois
viajara por causa dela,
estranhando que Ailill e Maeve

762
não lha tivessem apresentado.

Ora, uma manhã, Fraech


levantara-se logo aos
primeiros raios de sol e,
quando foi ao pátio lavar-se na
fonte, viu Finnabair tomar a
mesma direcção na
companhia de uma criada.
Imediatamente ele tomou-lhe
as mãos e disse-lhe: «Vem
falar comigo, pois se aqui me
encontro é por tua causa.»
«Eu sei», respondeu ela, «e
ficaria muito feliz na tua
companhia, mas isso não é
possível. 0 meu pai e a minha
mãe pediram-me que me
escondesse de tI» «Aceitas
fugir comigo?», perguntou
Fraech. «Isso seria uma
atitude insensata, pois sou
filha de um rei e de uma
rainha. Quero no entanto que
saibas que Isso não significa
desprezo por ti, pois a tua

763
riqueza e a tua reputação são
suficientes para que a minha
família consentisse em
obteres a minha mão. Além
disso, era contigo que eu
preferia ficar, pois amo-te
desde que comecei a ouvir
falar de ti. Toma este anel, que
servirá para nos manter
unidos. A minha mãe deu-me
para o guardar, e se perguntar
porque não o trago comigo
direi que o perdi.»

Separaram-se logo em
seguida, mas Ailill e Maeve
foram prevenidos de que a sua
filha se encontrara com
Fraech. «Receio muitO»,
disse o rei, «que a nossa filha
fuja com esse jovem.»
«Poderíamos dar-

-lhe a nossa filha com todas as


honras na condição de ele
aceitar dar um bom dote e se

764
se comprometer a
acompanhar-nos quando
tivermos de fazer uma
expedição guerreira.»
Naquele mesmo momento,
Fraech entrou em casa. «A
vossa conversa é secreta’?»,
perguntou ele. «Se o fosse,
não poderias nela participar»,
respondeu Allifi.
«Gostaríamos que nos
dissesses o que desejas.»
«Nesse caso, serei lesto a
dizer-vos o que dese-jo»,
disse Fraech, que perguntou
em seguida: «Quereis dar-me
a mão da vossa filha’ .>»

Ailill e Maeve entreolharam-se


muito sérios.

«Nós dar-te-ernos a sua


mão», afirmou Ailill, «desde
que aceites dar-nos o dote que
te pedir.» «0 que desejas
então?» «Três vintenas de

765
cavalos de cor acinzentada,
com freios em ouro e prata,
doze vacas leiteiras com
capacidade para darem leite,
cada uma delas, a cinquenta
pessoas, e tendo cada uma
delas um veado branco com
orelhas encarnadas. Peço-te
também que jures que nos
acompanharás sempre que de
ti necessitarmos numa
expedição guerreira. Caso
aceites as nossas condições,
a nossa filha será tua.» «Pela
minha espada e pelas minhas
arrnas!», exclamou Fraech,
«nem mesmo a Maeve de
Cruachan eu darei um tal
dote!» E, irado, deixou-os e
abandonou a casa.

Ailill e Maeve retomaram a


conversa. «A situação
agravou-se», disse Ailill, «pois
agora ele é capaz de levar a
nossa filha à força, o que nos

766
encherá de vergonha e de
desonra perante os reis e os
nobres da Irlanda. A meu ver,
mais vale que acabemos com
ele antes que nos deixe ficar
mal.» «Isso não seriajusto»,
disse Maeve, «pois ele é
nosso hóspede, e temos o
dever de lhe prestar
assistência e de o proteger.
Matá-lo só serviria para nos
desonrar.» «Eu agirei de tal
forma», disse Ailili, «que
evitarei que a desonra caia
sobre nós.»

Os dois imediatamente saíram


da fortaleza e viram os cães
na caça. Estava-se a meio da
tarde e os caçadores dirigiam-
se para o lago para se
refrescarem, seguIndo-os Affill
e Maeve. «Disseram-me»,
disse Ailill a Fraech, «que és
um nadador excelente.
Mergulha no lago para que

767
possamos admirar o teu
talento.» «Como é o lago?»,
perguntou Fraech. «E igual
aos outros», respondeu Ailifi.
«Não tem nenhuns perigos e
nele é frequente tomarem~se
banhos.»

deixando o cinto na margem.


Fraech despiu-se e mergulhou
nas águas

Ailill aproximou-se, baixou-se,


pegou no cinto, abriu a bolsa
que estava dele pendente,
onde descobriu o anel de
Finnabair, e reconhecendo-o
imediatamente, atirou-o com
um gesto brusco para um
lugar distante do lago.

768
Entretanto, Fraech, sem
nunca deixar de nadar,
estivera sempre, a observar
aquela cena. Seguiu o anel
com os olhos e viu um salmão
saltar para fora da água e
engoli-lo, Sem perder tempo,
precipitou-Se para o peixe,
agarrou nele, transportou-o
para terra e pô-lo num lugar
escondido da margem, no
meio dum canavial. Depois,
quando se preparava para sair
do lago, gritou-lhe AiIiII: «Um
instante! Vês aquela sorveira,
naquele lado do lago? Acho
muito bonitas as suas bagas.
Antes de vires ter connosco,
vai lá e traz-me um ramo.»

Fraech nadou até ao outro


lado do lago, chegou perto da
sorveira, arrancou-lhe um
ramo, e transportando-a sobre
um ombro, nadou de volta ao
encontro do rei. Enquanto isto

769
acontecia, Finnabair
aproximara-se do lago e
estivera a apreciar os
movimentos muito belos e
ágeis de Fraech a nadar:
nunca ela vira um corpo tão
branco, com uma cabeleira
preta tão harmoniosa, e um
rosto tão delicado, com os
olhos azuis e os lábios bem
vermelhos. 0 coração
acelerou-se-lhe e pôs-se a
sonhar.

Entretanto, Fraech aproximou-


se da margem e arremessou o
ramo da sorveira aos pés de
Ailifi. «Estas bagas são
magníficas!», gritou ele.
«Nunca eu vi bagas iguais a
estas. Peço-te, Fraech, que
nos vás buscar outro ramo.»

Fraech deu meia volta e


começou a atravessar o lago.
Mas, quando chegou a meio,

770
sentiu que, vindo do fundo, um
monstro o estava a atacar.
«Atirem-me a espada!»,
bramiu ele, «Estou a ser
atacado por um monstro!»

Mas, com medo de Ailill e de


Maeve, ninguém se atreveu a
atirar-lhe uma arma. Então,
Finnabair despiu-se num abrir
e fechar de olhos a atirou-se
às águas com a espada de
Fraech. Ao ver a filha ter
aquela atitude, Ailill disparou
contra ela um dardo de cinco
pontas. 0 dardo atravessou as
duas tranças da rapariga, mas
Fraech agarrou-o com a mão
direita e voltou-o contra Ailill
com uma tal precisão que a
seta atravessou o vestido
púrpura do rei. Finnabair
estendeu então a espada para
Fraech, que exclamou: «ó
Finnabair, tu és mesmo a
branca aparição”’ que me vem

771
salvar!»

De posse da espada, Fraech


cortou logo a cabeça do
monstro e arremessou-a para
a margem. Estava no entanto
exausto, com o corpo branco
cheio de feridas, ordenando
Ailill que o transportassem
para a fortaleza.

1. É este o sentido do nome


gaéíico Finnabair, o
equivalente estrito do galês
Gwenhw’f’af, ou seja,
Guenievre, a esposa do rei
Artur.

«Curem-no!», gritou ele, «e


preparem-lhe um banho para
que possa lavar as feridas.
Dêem-lhe também um caldo
para que se possa recompor.»
Disse depois para Maeve: «Eu
não deveria ter procedido
daquela maneira, pois o rapaz

772
não tem culpa nenhuma e,
além disso, ele demonstrou
multa coragem. Estou
arrependido de ter procedido
tão mal. Quanto à nossa filha,
traiu-nos levando-lhe a
espada. Os seus lábios calar-
se-ão antes de amanhã à
noite, pois já não é possível
tolerar tanta audácia e
presunção.»

Entraram depois na fortaleza.


Fraech estava a tomar banho,
havendo mulheres à sua volta
a esfregarem-no e a lavarem-
lhe a cabeça. Deram-lhe a
beber um caldo, depois
retiraram-no da banheira e
deitaram-Do numa boa cama.

Naquele mesmo instante,


ouviu-se um grande lamento
que se espalhou por toda a
Cruachan, e viu-se de seguida
no prado três cinquentenas de

773
mulheres vestidas com
túnicas de purpura, com a
cabeça coberta com toucados
e trazendo nos pulsos
braceletes de prata. Logo
alguém foi mandado
perguntar-lhes por que se
lamentavam daquela maneira
e quem eram. «Nós
lamentamo-nos por causa de
Fraech, o filho de Idacha e de
Befinn de quem é o filho
favorito, e o jovem mais
amado de todas as tribos de
Dana.»

Fraech, que ouvira o lamento,


pediu para o deixarem ir ao
encontro daquelas mulheres.
«Reconheço entre os
lamentos o da minha mãe e
das mulheres de Boan», disse
ele. Transportaram-no então
para o prado, no exterior da
fortaleza, e logo que o viram,
as mulheres rodearam-no e

774
levaram-no, desaparecendo
na bruma que repentinamente
se levantara e que cobria
Cruachan.

Mas, no dia seguinte, quando


a tarde ia a meio, viram Fraech
voltar na companhia das
cinquenta mulheres. Estava
curado de todas as feridas e já
vencera a fatiga. As mulheres
que o acompanhavam eram
todas da mesma idade, da
mesma estatura, igualmente
belas, e tinham um aspecto
feérico, não sendo possível
distinguir umas das Outras.
Pouco faltou para que as
pessoas morressem
esmagadas, tal foi a
precipitação quando quiseram
contemplá-las de perto. Elas
deixaram Fraech à porta do
pátio principal e, depois de se
despedirem dele, regressaram
pelo mesmo caminho por

775
onde tinham vindo. Mas como,
ao afastarem-se, elas
continuaram a entoar o
lamento com um sentimento
profundo, todas as pessoas
que se encontravam naquele
momento ’10 Pátio ficaram
loucas. E é desta história que
provém o «Lamento das

776
dos os músicos da Irlanda.”’

Fadas», inuitO cOnhecill’ de to


aeve,elevanFraech entrou
imediatamente na casa. de
Ailill e de M

tou-se toda a assembleia para


o acolher e para lhe dar as
boas vindas, parecendo que
ele vinha de outro rnundo.”’ 0
rei ”- a rainha também se
levantaram e exprimiram o
seu arrependimento, pedindo-
lhe desculpas pelo que lhe
tinham feito. Ele, por seu lado,
saudou-os e fez as pazes com
eles, começando-se depois os
festejos. grupo e
disseEntretanto, Fraech
mandou chamar um joveM do
seu

-lhe: «Vai à margem do lago, a


um lugar onde eu estive no
meio de um canavial e onde

777
deixei um salmão, Leva-o a
Finnabair e pede-lhe para o
preparar e para o cozer bem.
Diz-lhe também que o anel se
encontra no interior do peixe.
Creio que ele nos poderá ser
muito útil esta noite.»

Ailill e Maeve, comprazendo-


se com a música e a bebida,
não tardaram a ficar
embriagados. Então, o rei
pediu ao seu intendente par
.a lhe trazer as suas jóias, que
foram, expostas à sua frente.
.«Que maravilha!»,
exclamaram os convidados.
«Nunca vimos uma riqueza
igual!» Ailill ordenou então:
«Mandem vir Finnabair!»
ouro, Finnabair

Pouco depois, exibind .o


um vestido debruado a
disseapresentou-se perante o
pai e toda a assembleia.

778
«Minha flha»,

-lhe o rei, «onde está o anel


que a tua mãe te deu rio ano
passado para o guardares?
Ainda o tens? Se o tiveres,
traz-mo para que todos
possam admirar a sua
beleza.» «Não sei onde ele
está», respondeu Finnabiar.
«Nesse caso», replicou AiIIII,
«vai procurá-lo. Se o não
encontrares, juro-te que te
faço a alma sair do corpo!»
«Isso não é justo!»,
PrOtestaram os presentes.
«Tens aqui riquezas
suficientes para que nem dês
pela falta do anel.» «Estou
disposto a dar à tua filha
objectos Preciosos como
esse», interveio Fraech, «pois
ela salvou-me a vida, e estou-
lhe muito grato por isso.»
«Não insistas», disse Ailifl. «
Se ela não trouxer o anel que

779
lhe peço, nenhumajóia que lhe
dês a poderá salvaf-» «Assim

ou procurá-lo.» «Não1», gritou


AiliII. 1F-u sendo», disse
Finnabair, «v

1. Este Lamento das Fd,, é,


com efeito, um dos mais
antigos cantos tradicionais e
mantétn-se enraizado entre
todas as classes do povo
irlandês. ou seja, ao sidh, o
outro mundo

2, É este o caso: Fraech foi


levado ao «pas das Fadas,>,
vas que se referein, a outeiros
mpgalíticos. Nas outras narrati
ida que se supõe existir sob os
achan está constrAilifl e a
Maeve, tudo leva a pensar que
a sua fortaleza de Cru e de
ond, a qualquer sobre um
coim, no qual é Possível
ern`rat ` certas ocasiões,

780
momento pode surgir o povo
feérico para se misturar com
os humanos.

sei muito bem que se deixares


esta sala, desapareces da
minha vista para sempre. Se
pensas que escapas assim
tão facilmente, enganas-te.
Mas permito que mandes
alguém procurá-lo em teu
lugar.»

Finnabair incumbiu então a


sua criada daquela tarefa. «Eu
juro pelo deus protector da
minha tfibo», disse Finnabaír,
«que se o anel for encon~
trado, não ficarei nem mais um
minuto em teu poder, e que
farei a partir de então o que
muito bem entenderl» «Se se
encontrar o anel», exclamou
Ailifi, «serás livre até de te
encontrares com o rapaz das

781
cavalariças.»

Naquele momento, a criada


entrou com um prato nas
mãos. No prato todos viram
um salmão bem temperado e
cozido, condimentado com
mel e especiarias, estando o
anel de ouro sobre o salmão.
Ailill e Maeve olharam-no
muito espantados, e depois
olharam para Fraech, que
levou a mão ao cinto.
«Parece-me», disse ele, «que
quando mergulhei no lago, a
teu pedido, deixei o cinto na
margem. No cinto havia uma
bolsa pendente e dentro dela
estava este anel. Se
realmente tens ainda uma
réstia de decência, Ailill, diz-
nos o que fizeste ao anel.» 0
rei defendeu-se o melhor que
pôde, muito embaraçado:

«Este anel pertencia-me e dei-

782
o a Finnabair, mas soube que
ela to tinha dado. Foi por isso
que, quando mergulhaste no
lago, o tirei da tua bolsa e o
atirei à água. 0 que me
espanta é vê1o aqui. Por tua
honra, ó Fraech, explica-nos
este prodígío,» «É muito
simples ... », respondeu
Fraech. «Ao dar-me este anel,
a tua =, filha ficou
comprometida comigo, o que
te deixou incomodado.
Enquanto nadava, vi-te pegar
nele e atirá-lo à água, e vi
depois o salmão engoli-lo.
Nessa altura agarrei o salmão
e escondi-o na margem, de
forma dissimulada. Ainda há
pouco, antes do festim,
mandei buscá-lo para o dar à
tua filha e foi ela que, ao
mandar cozer o salmão,
descobriu o anel. Assim se
explica que ele esteja agora
perante ti.»

783
Aílill, terrivelmente perturbado,
olhou para Maeve que se
mantinha calada, e depois
fixou o olhar em Fraech sem
ser capaz de falar. «Rei Ailill»,
continuou Fraech, «todos os
que estão aqui presentes
ouviram as palavras que
pronunciaste ainda há pouco.
Tu disseste que, se o anel
fosse encontrado, ela poderia
partir, nem que fosse com o
moço das cavalariças,
segundo as tuas próprias
palavras.» «Tu sabes muito
bem», exclamou Finnabair,
«que só a ti trago no coração!»
«Pelos vistos», suspirou Ailill,
«tenho mesmo de te dar a
minha filha. Exigir-te-ei no
entanto uma única coisa: que
jures acompanhar-nos em
todas as expedições
guerreiras em que
necessitemos da tua

784
ajuda.»1’1

Fraech ficou assim na


fortaleza de Cruachan e
dormiu com a don-

785
zela. Na manhã seguinte,
despediu-se do rei e da rainha
de Connaught e, com todas as
suas gentes e Finnabair,
regressou para a sua
residência.

Pouco tempo depois, a pedido


de Ailill e de Maeve, ele veio
ajudá-los numa expedição
guerreira. Mas, logo que
regressou, soube que lhe
tinham roubado as vacas e
que a sua mulher
desaparecera. Foi a mae que
lhe velo anunciar: «A tua
ausência não foi nada feliz,
pois provocar-te-
1

-a um grande sofrimento.
Roubaram as tuas vacas e
levaram Finnabaír. Três das
tuas vacas estão na Escócia
do norte, no território dos
Pictos. E as outras, assim

786
como a tua mulher, estão nas
montanhas dos Alpes.(’) «Eu
vou à procura dela!»,
exclamou Fraech. «Não vás!»,
disse a mãe, «pois se o fizeres
a tua vida correrá um grande
perigo. Eu dar-te-ei outras
vacas.» «Mas, e Firinabair?»
«Na Irlanda há mulheres tão
belas e nobres como ela e eu
própria me encarregarei de te
arranjar uma que te
convenha.» «Não me
interessa o que dizes», disse
Fraech, «pois de qualquer
modo partirei em busca de
Finnabair e das minhas
vacas.»

Deixou então a mãe e,


acompanhado de três
novenas de homens, de um
falcão e de um cão puxado
pela trela, pôs-se a caminho e
chegou à província do UIster,
onde encontrou Conall

787
Cemach(11 com quem fez
amizade. Disse-lhe este,
acompanhando-o na sua
demanda: «A tua missão está
condenada ao fracasso, pois
prevejo que terás de passar
por muitos tormentos e por
muito sofrimento.»
«Acompanhar-me-ás, seja
qual for o perigo?», perguntou
Fraech. «Nunca recusei ajuda
a um amigo», respondeu
Conall. «Acompanhar-te-ei
para onde quer que vás.»

Juntos atravessaram então o


mar e o norte da ilha da
Bretanha, entraram no mar de
Wight, erraram muito tempo
na Gália e por fim avistaram as
montanhas dos Alpes.
Quando aí chegaram, viram
uma rapariga que pastava
carneiros.

«Vamos falar-lhe», disse

788
ConalI, «enquanto as nossas
gentes esperam aqui por nós.
Sem dúvida, ela poderá
prestar-nos informações sobre

1. Como nas narrativas dos


Dois Porqueiros e das
Aventuras de Néra, esta
Cortesã de Finnabair constitui
um dos numerosos prólogos
da célebre epopeia da Razzia
des Boenfs de Cualngé. Nesta
Fraech participará e morrerá
às mãos do herói Couhoulinn.

2. As narrativas irlandesas
incluem sempre um jogo de
palavras entre os Alpes , o
nome Alba, que designa Grã-
Bretanha.

3. Este Conall Cernach é uma


das principais personagens do
ciclo épico do UIster.
Cornpanheiro de armas do
herói Couhoulinn, será

789
também um dos protagonistas
da Razzia des Boeufs de
Cualngé. Numerosas
narrativas mostram-no a
intervir nas circunstâncias
mais diversas.

este país.» Foram então falar


a rapariga que, ao saber que
eles vinham da Irlanda,
começou a chorar. «Porque
choras?», perguntou Fraech.
«A minha mãe veio da Irlanda,
tal como vos», respondeu ela,
«mas podeis ter a certeza de
que não está cá de sua livre
vontade. Estais num país
horroroso e terrível, povoado
por jovens guerreiros cruéis e
traiçoeiros que andam por
todo o lado a roubar tesouros,
vacas e mulheres.» «Qual fo,
a

1 última coisa que


roubaram?», perguntou

790
ConaIl. «Eles roubaram a
mulher e as vacas de Fraech,
filho de Idach, de Connauhgt,
na Irlanda. A mulher encontra-
se na fortaleza que existe lá
em cima, e as vacas vão agora
pastar para a encosta da
montanha.» «0 que e que nos
aconselhas?», perguntou
Fraech. «Penso que devereis
ir-vos encontrar com aquela
mulher que está a levar as
vacas a pastar. Dizei-lhe por
que estais aqui e ela, que veio
da Irlanda, saberá aconselhar-
vos melhor do que eu.»

Apressando-se, Fraech e
Conall foram então ao
encontro da mulher que
tomava conta das vacas na
encosta da montanha. Ela
deu-lhes as boas vindas e
perguntou-lhes de onde
vinham: «Nós vimos da
Irlanda», respondeu Fraech,

791
«e queremos resgatar a
mulher que está na fortaleza,
assim como as vacas que nos
foram furtadas. Sabes como
havemos de entrar naquele
lugar?»

Ouvindo aquelas palavras, a


mulher deu três gritos de
lamento. «Ah», exclamou em
seguida, «é o infortúnio que
vos traz a este país. A
fortaleza está guardada por
uma serpente monstruosa que
só deixa entrar quem
conhece. Aos estranhos ela
devora sem piedade, jamais
tendo escapado alguém com
vida. Mas quem sois vós
afinal, tão temerários ao ponto
de acreditardes que podeis
entrar na fortaleza?» «Este é
Fraech, filho de Idach, de
Connaught, e eu sou Conall
Cernach, companheiro do
Ramo Vennelho(”, no Ulster.

792
Finnabair, filha de Affil e de
Maeve, é a Prisioneira que
está na fortaleza, e as vacas
dadas a Fraech pela sua mãe,
Befinn, das tribos de Dana,
estão no meio dessas que
guardas.»

Ao ouvir aquelas palavras, a


mulher não se conteve e,
pondo os braços à volta do
pescoço de Fraech,
manifestou uma enorme
alegria. «Que se passa?»,
perguntou Conal], muito
surpreendido com aquele
comportamento, «Eu vou
explicar-vos», respondeu ela.
«Se estou tão feliz, é porque
está próxima a hora em que a
fortaleza será destruída.

I. Espécie de fraternidade
guerreira do Ulster que,
agrupada ao redor do rei
Conor (Conchobar mae

793
Nessa,) fazia as suas reuniões
numa casa chamada «Ramo
Vermelho», onde estavam
expostos os troféus
conquistados nas batalhas.

794
Com efeito, circula pelo país
uma profecia que diz que tu
deverás pôr um teimo aos
nossos infortúnios. Segundo
essa profecia, bastar-te-á
apertar o cinto à volta da
cabeça da serpente para que
esta adormeça
imediatamente.» «Isso é
mesmo verdade?», admirou-
se Conall. «Nesse caso, não
percamos tempo.» «Esperai»,
disse a mulher, «pois os
guerreiros que guardam a
fortaleza são tão perigosos
como a serpente. E melhor
esperar pela noite. Vou para
minha casa mas, esta noite,
não mungirei as vacas, e farei
de conta que as vitelas
precisam de mamar toda a
noite. Deixarei a porta
entreaberta, pois sou sempre
eu que a fecho todos os dias
antes de cair a noite. Vós
entrareis assim na fortaleza

795
assim que os guardas
estiverem a dormir e em
seguida fareis o que muito
bem entenderdes.»

Esperaram então que a noite


caísse e foram para a porta da
fortaleza. A serpente, com um
pulo medonho, atirou-se a
eles, mas Conall teve tempo
de lhe apertar a cabeça com o
cinto, adormecerido-a. Então
avançaram, mataram os
guardas, libertaram Finnabair
e fugiram levando as jóias
mais preciosas que
encontraram na fortaleza,
Atearam um grande fogo cuja
luz se propagou por toda a
montanha, e partiram apos
reunirem as vacas de Fraech.
Em seguida, não demoraram
a chegar a um porto e partiram
por mar com Finnabair e as
vacas que 13efirin dera a seu
filho.

796
No entanto, faltavam três e por
esse motivo se dirigiram para
o território dos pietos do norte,
na Escócia. Após passarem
por graDdes dificuldades,
conseguiram encontrar o lugar
onde se encontravam as
vacas, apoderaram-se delas e
saquearam a fortaleza do que
as roubara. Feito isso,
dirigiram-se para a costa e
navegaram até às costas da
Irlanda, onde aportaram num
lugar chamado Bennchur.

Nessa altura, após terem


renovado o seu juramento de
amizade, Fracch e Conall
Cernach separaram-se.
CoDall voltou para a sua
fortaleza, e Fraech, na
companhia de Finnabair,
atravessou a ilha com o seu
gado e dirigiu-se para sua
casa onde ja ninguem o

797
esperava.”’

Segundo a narrativa intitulada


Tain bô Fraich (Raz ia des
boeuft de Fraech) e contida no

manuscrito XL, guardado na


Biblioteca dos advogados de
Edimburgo, e que data do
séculO XVI, editado com
tradução inglesa de A. - 0.
Anderscr) na Revue celtique,
tomo XX1V (1903). Tradução
francesa de Georges Dottin,
em LÉpopée irlandaise, Paris,
1980.

C a p í t ti oX1

L”, ’- 1

-4 - . um belo dia do início do


Verão, Bran, filho de Fébal,
andava a passear sozinho
pelos campos que se
estendiam em frente da sua

798
fortaleza. Estava um dia de sol
e soprava uma ligeira brisa.
De súbito, Bran ouviu uma
música vinda de trás de si.
Voltou-se para saber quem
estava a tocar mas, assim que
se voltou, a mesma música
continuou a ouvir-se nas suas
costas. Isto durou al um
tempo, até que,
9

embalado pela extrema


melodia e harmonia daquela
música, ele deitou-se na relva
e adormeceu,

Quando despertou, Bran viu


perto de si um ramo duma
macieira com flores brancas
que não se distinguia
facilmente de outros ramos, e
levou-o para a fortaleza.
Quando os Filhos de Milé
chegaram à sala onde se ia
realizar o festim, uma mulher

799
apareceu vestida com um traje
muito leve. Avançando para
Bran, ela começou a cantar:

«Eis um ramo da macieira de


Emain”1 que te trago,
semelhante aos outros. Ele
tem ramos menores de prata
branca e sobrancelhas de
cristal conifiores. Ela vem
duma ilha longinqua

ao redor da qual brilham os


cavalos marinhos viajando na
espuma das ondas.

1, Trata-se de um dos nomes


gaélicos da Terra das Fadas,
que corresponde à ilha de
Avalon da lenda arturiana,

800
Quatro colunas suportam esta
ilha, são quatro colunas de
bronze

que brilham ao longo dos


séculos no mundo, num lugar
onde brotam numerosas
flores.

É uma terra de bondade e de


beleza

onde abundam os cristais e as


pedras preciosas.
0 mar arremessa a vaga
contra a terra

e nela deposita os cabelos de


cristal da sua crina. Aqui não
se conhece a dor nem a
perfidia:

nem mágoa, nem desgosto,


nem morte, nem doença,
nem,fraqueza,

801
pois vive-se sob o signo de
Emain, Beleza de uma terra
maravilhosa Onde tudo é
maravilhoso

e onde a bruma não tem igual


... »

Assim que terminou o canto, a


desconhecida afastou-se, e
ninguém soube para onde ela
foi. Mas levava com ela o ramo
da macieira, que por si mesmo
saltara das mãos de Bran para
as dela sem que ele o
conseguisse evitar, Bran ficou
muito impressionado pelo que
acontecera, e ocorriam-lhe ao
espírito, sem cessar, as
palavras que ela cantara,
Ficou toda a noite sem
conseguir dormir, e de manhã,
muito cedo, foi ter com um
druida que tinha fama de ser
muito sábio e que residia no
país de Corcomroe,111

802
0 druida chamava-se Nuca.
Bran perguntou-lhe qual era o
significado do canto que
ouvira e da presença da
mulher misteriosa na grande
casa da sua fortaleza. «Não é
difícil de perceber»,
respondeu o druida. «Esta
mulher veio de Emain, ou seja,
da Ilha das Macieiras. E, ao
apresentar-te um ramo de
macieira de Emain, estava a
convídar-te para te ires
encontrar com ela nesse
lugar.» «A sério?», admirou-
se o filho de Fébal. «E onde se
situa esta ilha de que me
falas?» «A ilha situa-se
algures no vasto oceano, para
os lados onde o sol mergulha
nas ondas. Não se conhece a
sua exacta localização e
ninguém lá consegue ir sem a
ajuda de um guia.» «Nesse
caso, que hei-de fazer?»,

803
insistiu Bran.

«Queres mesmo ir ter com a


mulher à Ilha de Emain?»
«Não quero o’utra coisa»,
respondeu Bran, «poís desde
que me visitou que não
consigo pregar o olho a pensar
que nunca mais a vejo.»

0 druida pôs-se a meditar


longamente, e depois indicou
a Bran o dia em que poderia
começar a construir um barco,
especificando mesmo o
número de homens que o
deveriam acompanhar a saber
dezasseis, nem inais um, ou
de contrário ele poderia sofrer
graves reveses. Por fim
índicou~lhe o dia mais
conveniente para partir e o
porto de onde deveria sair,

Bran regressou então a casa


e, no dia marcado pelo druida

804
Nuca, ordenou que se
começasse a construir um
barco com três cascos. Feito o
barco, seleccionou os
familiares que o poderiam
acompanhar na arrojada
viagem. Entre eles,
encontrava-se um certo
German, de quem Bran
gostava tanto como se fosse
seu irmão, assim como
Nechtân111, filho de ColIbran,
que era um grande
conhecedor da arte de
navegar, Reunindo o grupo
que o iria acompanhar, Bran
levou-o ao porto de
Cloghan12) para aí se
fazerem os últimos
preparativos para a viagem.

Embarcaram no dia marcado


pelo druida Nuca, e ainda mal
tinham içado as velas e
começado a afastar-se da
costa, quando os três irmãos

805
de Bran chegaram à praia e
daí começaram a gritar muito
alto para que os fossem
buscar. «Voltai para casa! »,
gritou-lhes Bran, «pois não
posso levar a bordo mais
homens do que os previstos!»
«Nesse caso», responderam
eles, «vamos atirar-nos à
água, seguiremos no teu
encalço, e podes ter a certeza
de que acabaremos por nos
afogar se não nos aceitares a
bordo! » (3)

E, no mesmo instante, eles


atiraram-se à água e nadaram
para o largo, Vendo que
estavam decididos a cumprir a
ameaça, Brari deu ordens
para que se desse meia volta
e, com medo que se
afogassem, permitiu que
subissem para bordo.

Nesse dia, remaram até ao

806
anoitecer, pois o vento não era
suficiente para fazer avançar a
embarcação. Quando a noite
caía avistaram duas pequenas
ilhas rochosas totalmente
desprovidas de vegetação e
com

1. No condado de Clare, no
seio dum vale verdejante e
solitário que domina o maciço
calcáriO desértico de Burren.
Foi em Corcomroe que foi
construída, no século XIII, a
mais ocidental das abadias
cistercienses. A toda a volta
subsistem diversos vestígios
megalíticos e célticos.

L Nechtân é o nome gaélico


derivado do latim Neptuntis, o
que indica claramente a
classificação marítima da
personagem.

2. No condado de Kerry, ao

807
fundo da Baía Brandão, cujo
nome evoca a figura de São
Brandão, o Navegudor,
fundador histórico do mosteiro
de Clonfert, tendo sido
inserido nesse nome o mito
pré-crisião de Bran.

3. Trata-se claramente de um
encantamento mágico: se os
três irmãos de Bran
morressem afogados, a
responsabilidade recairia
sobre Bran que perderia a sua
honra.

808
duas fortalezas em cima.
Ouviram uma algazarra vinda
de lá, que era provocada por
pessoas que falavam alto e
que se vangloriavam de ter
praticado actos heróicos.
«Nós podemos aportar e
perguntar-lhes se conhecem a
direcção da Ilha das
Macieiras», disse Diuran, o
Poeta. «Tens razão»,
respondeu Bran. «Vamos
falar-lhes, pois devem saber
coisas que nós ignoramos.»

Mas, enquanto pronunciavam


aquelas palavras, um vento
fortíssimo abateu-se sobre o
barco e deixou-o
dest,,overnado sobre as
ondas. Depois de terem
andado ao sabor do vento e
das ondas durante toda a
noite, já não viram pela manhã
nem a ilha nem terra firme,
ignorando completamente

809
onde se encontravam.

«Tudo isto é por vossa culpa»,


disse Bran aos irmãos. «Vós
subistes para o barco
contrariando as
determinações do druida Nuca
que me avisou que eu poderia
sofrer graves reveses no caso
de ter mais de dezasseis
homens a bordo. Agora só nos
resta deixar o barco à deriva e
ver para onde ele nos leva.»

Os irmãos, sentIndo-se
culpados, não responderam, e
os outros companheiros de
Bran, cheios de angústia,
mantiveram-se também em
silêncio. Andaram assim ao
sabor das correntes durante
três dias e três noites, sem
verem terra. Ao fim do quarto
dia, ouviram um ruído
proveniente de nordeste. «É o
ruído de ondas a baterem na

810
costa», disse Bran. «Dirijamo-
nos para lá, pois estou certo
de que aí descobriremos
alguma coisa.»

Não demoraram multo até


avistarem terra. Quando
estavam a tirar à sorte quem
iria a terra, um enorme
enxame de formigas, cada
uma delas do tamanho dum
potro, surgiu na praia e
avançou para o mar. Era muito
visível que estas formigas
gigantes pretendiam alcançar
o barco e devorar a tripulação.
Bran ordenou aos seus
homens que remassem com
todas as forças e conseguiram
então ficar fora do alcance das
formigas, passando
novamente três dias e três
noites à deriva no Mar sem
saberem onde se
encontravam.

811
Ora, -na manhã do quarto dia,
avistaram à luz do sol uma ilha
alta e grande, com terrenos
suspensos nas alturas, Havia
fileiras de árvores em cada um
dos terrenos e, nos ramos,
estavam dependurados
pássaros. Bran e os seus
companheiros aconselharam-
se sobre o que havia a fazer,
mas não chegaram a
nenhuma conclusão. Então
Bran decidiu ir a terra sozinho
não tendo aí nenhum
percalço. Caçou dois
pássaros e levou-os para o
barco, proporcionando a toda
a tripulação uma excelente
refeição. Logo depois
voltaram para o mar.

A meio do dia, avistaram outra


Ilha que lhes pareceu grande
e arenosa. Quando se
preparavam para aí acostar,
viram um monstro que parecia

812
um cavalo, mas que linha as
patas de um cão, o pêlo todo
eriçado e unhas pontiagudas.
Era visível que 0 monstro esta
B,aramnuoitrodeci30onutente,
preparando-se para saltar
sobre eles e os devorar.

que se navegasse para o largo


o mais depressa possível,
mas quando o monstro
percebeu que estavam a fugir
dele, correu pela areia e
comeÇou a arremessar
calhaus contra o barco. E
apressando-se o mais que
podiam, os navegadore.

s conseguiram escapar-lhe.

Pouco tempo depois


avistaram outra ilhaursatia,
mo
uPitoçeptal,anauisOaaccoam
sodesignou German para ir
explorá~la, mas Di

813
panhá-lo, dizendo que o risco
era menor se fossem dois.
Assim que desembarcaram,
caminharam com muita
atenção e foram dar a um
grande prado onde
observaram enormes pegadas
no terreno que pareciam ter
sido deixadas pelos cascos de
cavalos. Havia também,
espalhadas 0,11 pouco por
toda a parte, grandes cascas
de noz. E como também havia
casas eni ruínas, chamaram
os seus companheiros para
virem ver com os seus
próprios olhos o que eles
estavam a ver. Este
espectáculo, no entanto,
assustOu-os, Pois não
conseguiram compreender o
que poderia ter provocado
aquelas pegadas e aquelas
ruínas, de tal modo que
apressaram-se a voltar para o

814
barco.

Quando já se tinham afastado


da costa, avistaram uma
multidão de cavalos, de um
tamanho enorme, que se
dirigiam para o mar, montados
por uma raça de homens
magros e negros que os
incitavam com altos gritos. Os
navegadores não duvidaram
de que havia ali unia
conspiração de demónios e de
fantasmas e afastaram-se a
toda a velocidade daquele
lugar maldito.

Chegaram depois 9 outra ilha


que tinha na costa uma casa
com um grande pórtico nas
traseiras. Havia também uma
porta que dava directamente
para o mar, com uma batente
de pedra com uma abertura
por c

815
onde as vagas lançaram uni
salmão. Desembarcaram
então e entraram na casa.
Esta estava deserta, mas nos
seus quatro cantos havia
quatro leitos, comida e um
recipiente de vidro que
continha uma bebida
aparentemente inebriante.
Eles comeram e beberam o
que encontraram, e depois
voltaram para bordo sem
terem visto vivalma.

Voltaram a navegar ao acaso


por muíto tempo e
começavam a sentir sede e
fome quando descobriram
outra ilha que tinha uma
grande falésia que caía a
pique sobre o mar e que
estava coberta, no cimo, por

816
uma densa floresta. Bran
desembarcou na ilha e,
embrenhando-se na floresta,
arrancou um ramo de urna
árvore. 0 ramo esteve nas
suas mãos durante três dias e
três noites, enquanto o barco
dava voltas à ilha, e ao quarto
dia apareceram três maçãs na
ponta do ramo. Todos
partilharam entre si as maças
e saciaram-se delas.

Também passaram na
proximidade de uma pequena
ilha, baixa e muito bela de se
ver, onde avistaram grandes
animais parecidos com
cavalos. Cada animal mordia
o flanco de outro arrancarido-
lhe um pedaço de carne com
pele, de tal modo que rios de
sangue carmesim escorriarri
das feridas e derramavam-se
sobre o chão. Os navegadores
afastaram-se a toda a

817
velocidade, sentindo-se cada
vez mais fracos e
desamparados pois não
tinham nada para comer.

Ora, no momento de maior


aflição, avistaram uma nova
ilha onde se destacavam
numerosas árvores cobertas
de frutos, mormente grandes
maçãs de cor dourada. Havia
pequenos animais vennelhos
que se poderiam tomar por
porcos selvagens debaixo das
árvores, às quais, batendo-
lhes com as patas, faziam cair
as maçãs. Depois, comiam-
nas com uma imensa
satisfação. Enquanto isso,
diversos pássaros banhavam-
se nas ondas perto da ilha e
quando, ao anoitecer, os
animais vermelhos se
retiraram para as suas
cavernas, eles voaram para as
arvores e começaram a

818
debicar os frutos. «Parece que
estamos com sorte», disse
Bran. «Se estes animais
vermelhos e estes pássaros
comem com tanto prazer os
frutos das árvores, isso
significa que também nós
poderemos comer esses
frutos. Vamos pois abastecer-
nos a terra.»

Desembarcaram na praia e
estranharam que o solo fosse
tão quente debaixo dos pés.
Na verdade, aquele calor
tornou-se tão insuportável que
tiveram de regressar à pressa
ao barco; apesar disso, ainda
tiveram tempo de levar corri
eles uma grande quantidade
de maçãs que lhes permitiram
ter alimento para vários dias.

Quando a comida começou de


novo a faltar e eles mal
podiam respirar devido ao

819
mau cheiro do mar, acostaram
numa ilha estreita na qual se
erguia uma fortaleza rodeada
duma muralha muito branca,
corno se tivesse sido
construída com cal ou com giz,
e tão alta que quase chegava
à nuvens. Como havia uma
porta aberta na muralha, eles
atravessaram-na e viram
grandes casas também
brancas. Entrararri na que
lhes parecia maior e
encontraram-na sem
ninguém, apenas com um
gato que saltava sobre uns
pilares que existiam nos
quatro cantos da sala. Ao ver
os recém-chegados, o gato
não pareceri minimamente

assustado, pois continuou a


saltar como se não estivesse
ali ninguem. Aos olhos dos
recém-chegados, entretanto,
apresentaram-se outras

820
coisas. Havia três filas de
objectos numa das paredes da
casa, indo de uma porta à
outra: uma de broches
dourados e prateados
pregados à parede por
alfinetes; a outra de cordões
de ouro, tendo cada um a
dimensão de um círculo de
cobre; e a última, por fim, de
grandes espadas, com Pedras
preciosas incrustadas nos
punhos de ouro. Avançando
pela sala, eles viram no meio,
no fogão, carne assada,
toucinho cozido, e grandes
taças cheias até cima de uma
bebida de cheiro agradável.
«Isto é para nós?», perguntou
Bran, voltando-se para o gato.

0 gato olhou-o por um


instante, e depois continuou
entretido a saltar de um pilar
para outro. Bran percebeu

821
então que aquela refeição
tinha sido preparada a pensar
neles e comeram e beberam
até se fartarem, adormecendo
depois nuns leitos que ali se
encontravam. Na manhã
seguinte, quando acordaram,
deitaram as bebidas em bilhas
e juntaram os restos de
comida para os levarem com
eles. Mas, quando estavam de
partida, disse um dos irmãos
de Bran: «Eu gostava de levar
um destes colares.» «Não
faças isso», disse Bran, «pois
desconfio que esta casa está
a ser vigiada. Estes objectos
foram postos aqui para
despertarem a nossa cobiça.»

Mas, às escondidas, o irmão


apoderou-se dum colar e, no
mesmo instante, o gato, que
tinha estado tranquilamente a
saltar de um pilar para outro,
atirou-se a ele como uma

822
flecha implacável e o infeliz
ficou de tal modo em brasa
que se transformou num
montão de cinzas, 0 gato
voltou então para junto de um
dos pilares e Bran tentou
acalmá-lo com palavras muito
suaves, ao mesmo tempo que
pos o colar no seu lugar. Os
navegadores voltaram depois
para o barco, muito
entristecidos por terem
perdido um companheiro.

Andaram de novo três dias


inteiros no mar e por fim
avistaram uma ilha que estava
dividida em duas partes iguais
por uma paliçada. Num lado
pastava um rebanho de
cabras brancas, e do outro um
rebanho de cabras negras,
enquanto um homem muito
robusto andava de um lado
para o outro a separar os
animais. Quando ele agarrava

823
uma cabra branca e a atirava
por cima da paliçada, o animal
tomava-se negro ao tocar no
solo, e se o fazia a uma cabra
negra, esta tornava-se
branca.”’

Ao verem aquele espectáculo,


Bran e os seus companheiros
assustaram-se. «Devemos
desconfiar daquele sortilégio»,
disse Bran. «Vamos fazer uma
experiência: deitemos
qualquer coisa negra no

824
lado das cabras brancas para
ver o que acontece.»

Pegaram então num ramo


cuja superfície estava
enegrecida e atiraram-no para
a parte da ilha onde se
encontravam as cabras
brancas, ficando o ramo
branco instantaneamente.
Arremessarain depois um
outro ramo que era branco
para o lado das cabras negras,
e o ramo tornou-se negro. «Na
verdade», disse Bran, «esta
experiência é elucidatíva.
Devemos deixar este lugar tão
estranho, ou arriscamo-nos a
ter alguma má experiência.»

Pouco tempo depois,


avistaram outra ilha na qual
estavam reunidas grandes
multidões de homens e de
mulheres. Tanto eles como
elas eram inteiramente

825
negros, quer fisicamente quer
no vestuário que envergavam.
Tinham fitas igualmente
negras amarradas à volta da
cabeça e não paravam de se
lamentar. «Um de nós deve ir
ter com eles e perguntar-lhes
porque se lamentam daquela
maneira. E devemos
aproveitar para lhes perguntar
qual a rota a tomar para a ilha
que desejamos alcançar.»

0 acaso designou o segundo


irmão de Bran para
desempenhar aquela missão.
Ele foi a terra e diriggiu-se
para as gentes de negro, mas
assim que chegou perto delas,
corneçou também a lamentar-
se. Bran mandou então dois
homens buscá-lo, mas estes,
ao invés de o reconhecerem
entre os outros, puseraffl-se
igualmente a chorar e a
lamentar-se. Bran disse então:

826
«Que vão lá quatro homens
com correntes e que os
tragam à força. Para terem
êxito não deverão olhar para a
terra, e deverão cobrir o nariz
e a boca para evitarem
respirar os miasmas da ilha e
apenas verem aqueles que
vão buscar!»

Diuran, Nechtân, German e o


terceiro irmão de Bran foram a
terra e, com infinitas,
precauções, acorrentaram os
dois homens que tinham ido
buscar o primeiro. Mas não
conseguiram descobrir este,
de tal modo ele já se
confundira com os outros.
Quando perguntaram aos dois
resgatados o que tinham visto,
eles responderam que não se
lembravam de nada. E,

1 Encontra-se uni episódio


semelhante na narrativa

827
galesa de Peredur. Vde 3.
Markale, Le (ycle du Graal,
sexta época: Perceval o
Galês. A mudança de cor
significa a passagem de um
mundo para outro, e a
paliçada simboliza a fronteira
entre o mundo humano dos
Filhos de Milé e o mundo,
completamente feérico, das
tribos de Dana. Já , ten,
hamado muitas vezes a este
episódio o «Van das Almas»,
tendo-se corno referência o
texto galês en, que

so, é preciso ter em conta as


cabras mudam de cor ao
atravessarem um estuário.
Neste ca. a
região que Bran e os seus
companheiros se encontram
nos I imites do mundo
humano, num ambígua em
que se manifestam
personagens ou

828
acontecimentos
extraordinários, não estando
eles ainda prontos para
atravessar a fronteira. Assim
s, explica o facto de andarem
nluitO tempo perdidos no mar
antes de encontrarem a Ilha
das Fadas.

cheios de mágoa por terem


perdido o segundo irmão de
Bran, os navegadores
deixaram a toda a pressa as
costas da ilha das
lamentações.

Não tardaram a avistar outra


ilha de muito pequenas
dimensões, onde existia uma
fortaleza, com uma porta
aparentemente de bronze,
não se podendo entrar nela
senao por uma ponte de vidro.
Bran e os seus companheiros
desembarcaram e dirigiram-se
para a fortaleza, muito

829
decididos a falar com os que
nela deviam habitar. Mas,
assim que puseram os pes na
ponte de vidro, caíram todos
para trás, sendo incapazes de
se manter de pé na superfície
muito escorregadia.”

Estavam naquela situação


embaraçosa quando viram
uma mulher sair da fortaleza
com um balde na mão.
Levantando uma placa de
vidro, ela encheu o balde
numa fonte que jorrava água
debaixo da ponte. Depois,
parecendo que nem tinha
reparado na presença de Bran
e dos seus companheiros,
voltou para trás e entrou na
fortaleza. «Que alguém venha
falar a Bran, filho de Fébal!»,
gritou em voz muito alta
Diuran, o Poeta. A mulher, que
acabara de entrar, reabriu a
porta e olhou para fora. «É

830
mesmo Bran, filho de Fébal?»,
perguntou ela com um tom
ironico antes de voltar a
desaparecer no interior da
fortaleza.

Rastejando, Bran e os seus


companheiros chegaram à
porta de bronze e começaram
a bater nela com as espadas e
os escudos na esperança de
que a viessem abrir. Mas o
bronze transformou o barulho
que faziam numa música
muito suave que os fez dormir
até de manhã.

Quando acordaram, viram a


mesma mulher sair da
fortaleza com o balde na mão.
Ela fez o mesmo que no dia
anterior, indo encher o balde à
fonte que existia debaixo da
ponte. Nechtân não se
conseguiu conter: «Que
alguém venha falar a Bran,

831
filho de Fébal!», gritou ele.

A mulher pareceu não ter


ouvido nada mas, ao fechar a
porta, voltou-se e disse
simplesmente: «Bran, filho de
Fébal, parece-me muito belo.»
E desapareceu no interior,
voltando então Bran e os seus
compa-

nheiros a bater à porta de


bronze com as suas armas.
Mas ao fazerem-

I. É lógico que este episódio


pode muito bem conter uma
alusão a uma qualquer terra
áretica e, nesse caso, a ponte
está coberta por um leito de
gelo. Mas estamos no domínio
do mito, onde a lógica nada
conta. Com efeito, corno na
lenda arturiana, esta ponte de
vidro é uma fronteira entre os
dois mundos, sendo

832
semelhante à célebre «Ponte
da Espada» que Lancelot tem
de atravessar para libertar a
rainha Guenievre da fortaleza
de Gorre, ou seja, de Vidro,
onde a mantém prisioneira
Méléagant, uma espécie de
divindade dos infernos.
Note-se que, no episódio aqui
apresentado. Bran e os seus
companheiros não chegarão
nunca a entrar na fortaleza,
sinal evidente de que ela não
é a «Emain Ablach» onde
devem ir. Vide J. Markale, Le
Çycle du Graal, terceira
época: Lancelot du Lac.

833
_”lIF,

-no, provocaram música e


esta prostrou-os até à manhã
seguinte. Estiveram assim
durante três dias e três noites,
sem comer nem

beber. Na manhã do quarto


dia, a mulher dirigiu-se a eles.
Era muito bela, e trazia um
manto branco, um colar de
ouro à volta do pescoço, e um
diadema de prata sobre os
cabelos negros. Calçava
sandálias de prata branca que
realçavam a delicadeza dos
seus pés, e no manto tinha
pregado um broche prateado
guarnecido com ouro. E o
manto, batido ao de leve pela
brisa matinal, deixava ver uma
camisa de seda muito fina
sobre a pele branca. «Sê bem
vindo, Bran, filho de Fébal»,
disse ela.

834
Em seguida, ela pronunciou o
nome de cada um dos
companheiros de Bran. «Hã
muito tempo», disse ela, «que
sabíamos que vós viríeis.
Mas, nobre Bran, não fiques
ofendido por não poderes
entrar nesta fortaleza.»

Guiou-os até uma grande


casa que se encontrava na
costa, sobranceira ao mar, e
ela própria trouxe o barco
deles para a areia. Ao
entrarem na casa, eles viram
um leito para Bran e outro para
três das suas gentes. Logo a
seguir, a mulher deixou-os e
voltou para a fortaleza.

«Então», perguntou Diuran a


Bran, «esta mulher não é a
que viste na tua residência e a
que procuramos há tanto
tempo?» «Não, não é», disse

835
Bran, «e esta ilha não é aquela
de que andamos em
demanda. Não há aqui
macieiras, e nada nela se
parece com a descriçao que
me foi feita pela mulher antes
de reaver o ramo da macieira
de Emain.» «É pena», disse
Nechtân, «pois esta mulher é
muito bela e ganharias muito
em ter uma esposa da sua
beleza.»

Dito isto, ela voltou, trazendo-


lhes um cesto que tinha dentro
o que parecia queijo ou leite
coalhado. Distribuiu o
alimento por todos, e todos se
regalaram com ele. Em
seguida, encher o balde na
fonte debaixo da ponte de
vidro e deu o seu conteúdo a
Bran. Depois foi encher o
balde a pensar nos outros e,
quando viu que estavam todos
saciados, deixou-os e voltou

836
para a fortaleza.

«Realmente», disse Nechtâm


a Bran, «esta mulher seria
uma esposa digna de ti.»
«Não foi ela que me velo
trazer o ramo de Emain»,
respondeu Bran.

Na ausência de Bran,
entretanto, os seus
companheiros não deixavam
de trocar impressões.
Começavam a ficar fatigados
de tantas viagens infrutíferas
e, não sabendo como
regressar à Irlanda, não lhes
parecia má ideia ficarem
algum tempo naquela ilha
onde eram tratados com
tantas atenções.

«E se pedíssemos a esta
mulher para dormir com
Bran?», perguntou então
Nechtân. «Sim», concordou

837
Diuran, «mas como havemos
de propor-lhe isso sem a
ofender?»

A mulher voltou na manhã se

guinte, trazendo comida no


cesto e bebida no balde.
Diuran disse-lhe: «És capaz
de provar que gostas de Bran
dormindo com ele? Porque
não passas aqui esta noite,
para que isso aconteça?»
«Como é que podeís fazer
uma tal proposta a esta
mulher?», gritou Bran furioso.
«Eu seria incapaz de fazer
uma tal proposta! Nós só
queremos saber, ó mulher,
que direcção devemos tomar
para chegarmos a Emaín
Ablach, a Terra das Fadas,
onde me espera aquela que
me foi levar um ramo de
macieira.»

838
A mulher começou a sorrir, e
disse: «Amanhã terás uma
resposta para a tua questão.»

Naquela noite, Bran e os seus


companheiros adormeceram
profundamente na casa. Mas,
ao acordarem, repararam que
estavam no barco, no meio do
mar. Nunca mais eles viram a
ilha misteriosa, nem a
fortaleza, nem a ponte de
vidro, nem a casa onde, junto
à costa, tinham dormido, nem
a mulher que lhes tinha
servido comidas e bebidas
deliciosas.

Sentiram-se terrivelmente
deprimidos e de nada valeu
Bran tentar cOnsolá-los
dizendo-lhes que aquelas
aventuras eram etapas
necessárias para poderem
chegar a Emain: por muito que
ele se esforçasse, uma

839
profunda tristeza e um
sentimento de desamparo
acompanhava-os enquanto o
barco andava ao sabor das
ondas. De súbito, avistaram
uma ilha de onde Provinham
ruídos estranhos,
semelhantes aos que fazem
os ferreiros quando batem
com a bigorna dos seus
martelos. Aproximaram-se e
viram, com efeito, quatro
ferreiros que ali trabalhavam.
Estavam perto da costa,
quando ouviram um dizer:
«Estão ao vosso alcance?»
«Estão», respondeu outro.
«Mas que gentes são
aquelas?» «São uns garotos»,
disse um terceiro. «E num
pequeno barco», acrescentou
um quarto.

Ouvindo aquela troca de


palavras, Bran ficou muito
inquieto. «Fujamos daqui»,

840
disse ele, «mas sem fazer o
barco dar meia volta.
Rememos para trás de modo
que eles não se apercebam da
nossa fuga.»

Remaram então em sentido


inverso. 0 primeiro homem
que falara na oficina
perguntou aos outros: «Já
chegaram ao porto?» «Não»,
respondeu o segundo. «Eles
estão imóveis e não
avançam.» Pouco depois, o
primeiro ferreiro retomou a
palavra: «Que estão eles
agora a fazer?» «Penso»,
disse o segundo, «que estão a
preparar-se para fugir, Pois
estão mais longe do porto do
que estavam ainda há pouco.»

1)1)1

841
Então os ferreiros
precipitaram-se para a costa,
segurando nas mãos enormes
massas de ferro vermelho e
arremessaram-nas em
direcção ao barco. As massas
não os atingiram mas o mar a
toda a volta começou a ferver
enquanto os remadores
faziam uni esforço

do para se porem longe dali.

De repente, num instante eles


começarani a navegar num
mar que parecia de vidro
esverdeado. As águas eram
tão límpidas que os
navegadores podiam ver as
pedras no fundo. Mas não se
via nenhum animal, nenhum
peixe, nenhum monstro
debaixo do barco, nem se via
nada entre os rochedos a não
ser cascalho e areia de cor
verde. Navegaram assim

842
durante muito tempo,
maravilhados com a beleza e
a transparencia esplendorosa
da água.

Mas logo depois ela


transformou-se numa espécie
de nuvem leve e sem
consistência, e eles chegarani
a pensar que o barco se iria
afundar. Olhando por sobre as
águas viram um belo país
verdejante e o tecto de
fortalezas. Avistaram também
um animal monstruoso nos
ramos de uma árvore e gado
bovino em campos existentes
à volta. Um homem amado
com uma espada e um
escudo, quando se apercebeu
do grande animal no ramo da
árvore, começou a correr
desenfreadamente. 0
monstro, entaO, estendeu o
pescoço para fora das
folhagens, aproximou o

843
focinho do maior boi da
manada, e atirando-se a ele
devorou-o num instante. Nisto
todos os outros bois da
manada se puseram a fugir
numa correria louca. Perante
aquele espectáculo, Bran e os
companheiros ficaram
apavorados, ainda mais
porque o barco não poderia
deslocar-se muito depressa
naquelas águas. Mas,
ultrapassados os momentos
de angústia, conseguiram
deixar aquelas perigosas
paragens e viram-se num mar
normal, apesar da água
parecer parada. Por muito que
tentassem remar com todo o
vigor, durante várias horas o
barco não avançou. Por fim,
le-vantOu-se 0 vento, a vela
enfunou-se, e voltaram a
deslizar sobre as ondas.

Acostaram daí a pouco a uma

844
ilha coberta de árvores que
pareciam salgueiros ou
aveleiras, com frutos
maravilhosos e grandes
bagas. Sacudiram alguns
ramos e depois tiraram à sorte
para ver quem provaria os
frutos, sendo escolhido B ran.
Este esmagou algumas bagas
numa taça e bebeu o sumo,
caindo então num sono
profundo que durou até ao
outro dia àquela mesma hora.
Entretanto, os seus
companheiros mostravam-se
preocupados, sem saberem
se ele estava vivo ou morto,
pois uma espuma vermelha
apareceu-lhe na comissura
dos lábios. Ele, no entanto,
acordou fresco e bem
disposto, e disse-lhes:
«Podeis tomar o sumo, Pois é
excelente.»

Juntaram então todos os

845
frutos que puderam para levar
para bordo, certos de que com
eles poderiam obter um sumo
agradável e inebriante,

Estavam os navegadores para


partir quando viram uma
grande nuvem vir na sua
direcção. Mas logo
eles,repararam que se tratava
de um grande pássaro e,
aterrorizados com a ideia de
que ele ia aprisioná-los com as
suas garras monstruosas,
puseram-se a correr em busca
de abrigo, atravessando um
bosque até se encontrarem
no centro da ilha. Havia aí um
peque-no lago na extremidade
do qual pousou o pássaro, que
tinha no bico um ramo tão
colossal como um carvalho,
mas de uma especie
desconhecida. 0 ramo possuía
diversos galhos muito
grandes dos quais pendiam,

846
como se fossem frutos,
cachos de uma espécie de
bag «os amarelos, que mal se
viam através das folhas, por
serem estas muito frescas e
abundantes,

1 Bran e os companheiros
ficaram corri os olhos fixos no
pássaro, a ver o que ele iria
fazer. Mas ele não se mexia e,
vendo melhor, repararam que
tinha a plumagem em péssimo
estado, podre e comida pelos
bichos. Um dos homens
aproximou-se com cuidado do
pássaro, e este permaneceu
imóvel; depois voltou para
perto dos companheiros e
todos se preparavam para
partir quando apareceram por
cima deles duas grandes
águias, que por sua vez se
puseram perto do pássaro
enorme. Depois de urna leve
pausa para repousarem, as

847
águias puseram-se a dar
bicadas na sua plumagem,
como que para o aliviar dos
parasitas que o infestavam.

Assim estiveram as duas


águias até meio do dia. Em
seguida, Z=I

começaram a comer as bagas


do ramo, antes de novamente
se porem a dar bicadas na
plumagem decrépita do
vizinho, arrancando-lhe as
penas em pior estado. Por fim
colheram os frutos,
esmagaram-nos contra
pedras e atiraram-nos ao lago,
fazendo com que a água
criasse espuma e ficasse toda
amarela. Então o grande
pássaro ergueu-se e,
dirigindo-se para o lago, foi-se
banhar, ao mesmo tempo que
as duas águias levantaram
voo e desapareceram do

848
mesmo modo misterioso como
tinham aparecido no céu.

Passado um instante, o
grande pássaro saiu do lago e,
depois de se sacudir
vigorosamente, ficou imóvel
na margem como se quisesse
dormir. Cada vez mais
intrigados com o seu
comportamento, Bran e os
companheiros Dão se
atreviam a aproximar-se dele,
limitando-se a observá-lo
através do ramo das árvores.
E por fim o grande pássaro lá
se moveu, agitando as asas e
levantando voo, num instante,
tão veloz e imponente

849
como quando chegara, e
desapareceu na mesma
direcção de onde viera.
«Parece evidente», disse
Diuran, o Poeta, «que ele velo
aqui restau-

rar forças. Vamo-nos também


banhar no lago para
recuperarmos as energias.»
«Tens de ter cuidado», gritou
Bran, «poís pode ser perigoso
,à que o pássaro contaminou
as águas e quem nele se

o banho no lago, jfectado!»


«Se ele se banhou, também
eu o posso banhar pode ficar
in tornar banhO.»

fazer!», replicou Diuran,


acrescentando: «Vou

Tendo dito aquelas palavras,


despiu-se e mergulhou nas
águas onde ficou durante

850
algum tempo, dando depois
duas ou três braçadas para
chegar à margem. E, naquele
dia, os olhos brilharam-lhe
como nunca, os dentes jamais
tinham sido tão sãos, e
nenhum mal parecia ser capaz
de o atormentar. Apesar disso,
nenhum dos seus
companheiros quis seguir o
seu exemplo, e voltaram todos
para o barco, contentando-se
em levar para bordo as bagas
vermelhas colhidas no
bosque.

Na manhã do dia seguinte,


estando a navegar
calmamente, viram com
grande espanto um homem a
guiar um carro puxado por
dois cavalos por cima das
ondas. o desconhecido dirigiu-
se para o barco e entabulou
conversa com Bran.
ssim corno todos os teus

851
«Sê bem vindo, Bran, filho de
Fébal, a espantou-se
Bran. «E companheiros.»
«Como é que me conheces?»,

quem és tu?» «Sou


Manananng filho de Uir, das
tribos de Dana, e vim ao teu
encontro para te anunciar que
em breve alcançarás o
objectivo que persegues».
«Mas», admirou-se Bran,
«que prodígio é esse que te
permite galopar os teus
cavalos sobre o mar?» «As
coisas nem sempre são o que
parecem», respondeu
Manartann- «Tu achas
maravilhoso que o teu barco
seja capaz de navegar sobre
as águas mas, a meus olhos,
o que tu chamas mar é uma
planície florida sobre a qual se
desloca o meu carro puxado
por dois bons cavalos. 0 que te

852
parece um mar claro, ó Bran,
filho de Fébal, é para mim uma
aprazível planície corri flores
encantadoras. Enquanto tu
vês vagas à tua volta, eu,
nesta planície imensa e
maravilhosa, vejo gado a
pastar tranquilamente na erva

c, eja Verão ou Inverno.


Os verde e macia que está
sempre presente, s

peixes que vês através das


ondas são para mim pássaros
que cantam no ramo das
árvores, e a espuma das
vagas é para mim como frutos
de Yo do ano. Sim, Bran, o teu
barco riave-

ouro que amadurecem ao long


roçando na copa das árvores,
e um ga sobre o alto de um
bosque, xo do
casco do bosque cheio de

853
frutos maravilhosos encontra-
se debai

teu barco, um bosque repleto


de frutos muito odoríferos, de
frutos Per-

tumado, :ujas folhas são da


cor do mais puro ouro.»

Bran e o,,, seus companheiros


ouviam cheios de espanto o
que lhes dizia Mananann. Este
deu várias voltas ao barco,
com os cavalos a galoparem
em grande estilo e a atirarem
chuviscos brancos na
direcção das -vela,
.1

«Agora devo deixar-vos»,


disse NILtrianaini. Bem sei
que ja passastes muito frio,
fome e sede. mas talvez as
privações fossem ireecssarias
para conseguirdes finalmente

854
avistar a Ilha das Mulheres
através da bruma. É muito
frequente, na verdade,
passar-se perto do que se
pretende sem se dar conta
disso. Adeus, Bran, filho de
Fébal, e que os teus
companheiros e tu remem
com todas as vossas forças
para a ilha das Mulheres,
Emain, que é tão aprazível
para quem a visita. Não estais
longe, e chegareis à ilha antes
do pôr-do-sol.»

Dito isto, Manannan


desapareceu das suas vistas
por entre uma fascinante
nuvem de espuma. Puseram-
se então todos a remar com
energias renovadas, cheios de
confiança e dc ,perança Assim
foi ate que chegaram a uma
ilha que, prudentemente, se
limitaram a contornar. Viram
nela grupos de homens e de

855
mulheres que se riam a
gargalhada e que, mesmo
depois de olharem para Bran e
os seus companheiros,
continuaram a conversar e a
dar grandes gargalhadas.
«Coiii ç_crie/_d que esta não é
a ilha das Mulheres», disse
Bran. «Mas temos de saber
que gentes são essas e o que
e que as faz rirem-se daquela
maneira.»

Tiraram à sorte para escolher


quem iria a terra, e o acaso
elegeu o terceiro irmão de
Bran. Este desembarcou e,
assim que chegou ao pé dos
que se riam, começou
também a rir como eles. E por
muito que o,,,, seus
companheiros o chamassem,
não respondia, limitando-se a
olhá-los e a fazer troça deles.
Então, Bran lembrou-se das
advertências ou druida Nuca:

856
em caso algum deveria levar
mais de dezasseis
companheiros a bordo. Agora
que os três irmãos tinham
desaparecido, a ordem era
reconstituída. Com alguma
mágoa, Bran decidiu então
abandonar este terceiro irmão
na ilha dos Bem Humorados e
voltaram para o alto mar
remando corajosamente.

Pouco depois, ficaram em


frente duma grande ilha onde
se destacava uma vasta
planície, com belos bosques
abundantes em árvores
floridas e um grande planalto
coberto por uma erva macia.
Junto ao mar erguia-se uma
grande fortaleza, alta e
imponente. Atracaram o barco
e dirígiram-se para ela. A porta
estava aberta e entraram para
o pátio, onde havia uma casa
que tinha também a poria

857
aberta. Olhando para o
interior,

858
viram dezassete leitos
ricamente ornamentados com
tapeçarias. Viram também
dezasseis raparigas que
preparavam um banho. Não
se atrevendo a entrar,
sentaram-se no pátio, em
frente da soleira da porta.

Quando o sol começava a


declinar no horizonte
apareceu uma mulher
montada num cavalo de raça.
A cavaleira envergava uma
capticha azul, um manto de
púrpur a bordado, pulseiras
com gravações em ouro, e
sandálias de prata. Desceu do
cavalo em frente deles e logo
uma das dezasseis raparigas
pegou na montada pelas
rédeas e levou-a para a
cavalariça. Então a mulher
avançou para Bran, que nela
reconheceu aquela que lhe
levara o ramo de macieira de

859
ErnaD e depois o fizera ouvir a
música das fadas.

«És bem vindo, ó Bran, filho


de Fébal», disse ela. «Há
muito tempo que eu
aguardava este momento. Foi
a esperança de te receber
nesta ilha que me levou a ir
visitar-te na tua fortaleza. Os
teus companheiros são
também bem vindos por terem
tido a coragem de te
acompanhar nas tuas longas
a-venturas por mar. Pois não é
realmente fácil descobrir esta
terra em que reino só, em paz
e harmonia, sem mágoas,
tristezas ou doenças. Mas
agora que aqui estais, entraí
nesta casa.»

Após entrarem na casa, Bran


e os seus companheiros
tomaram banho em grandes
banheif as que estavam

860
preparadas para eles. Depois,
a rainha sentou-se com as
suas dezasseis companheiras
ao redor num lado, enquanto
Bran ficou no lado oposto com
os seus dezasseis
companheiros à sua volta.
Levaram a Bran um prato de
prata cheio de manjares
requintados e um copo de
vidro cheio até cima de um
licor muito saboroso. Serviram
também urn prato e um copo a
três dos seus companheiros.
Quando acabaram de comer e
de beber, a rainha levantou-se
e disse: «Como vão dormir os
meus hóspedes?» «Como te
aprouver», disse Bran. «Pois
então», disse a rainha, «que
cada um escolha a mulher que
tem diante de si e a leve para
a cama consigo.» E porque na
casa havia dezassete quartos
equipados cada um com um
bom leito, os dezasseis

861
companheiros de Bran
deitaram-se com as dezasseis
filhas da rainha, e ele próprio
foi dormir com a rainha.

Na manhã seguinte, disse a


rainha a Bran: «Fica comigo
nesta ilha, ó Bran, filho de
Fébal, e jamais ficarás velho.
Serás sempre tão joverti como
és hoje, e a tua vida não terá
fim. E os prazeres de que
desfrutaste na noite passada,
desfrutá-lo-ás todas as noites.
Fica, pois ja perdeste muito
tempo a correr de ilha em ilha
entre perigos e grandes,
tormentas. «Mas quem és tu
afinal?», perguntou Bran. A
rainha desatou a rir e

disse: «Que importa isso? Já


me deram tantos nomes que
nem sei qual e o que tenho.
Contenta-te em saber que
estou do teu lado e que daqui

862
para a frente nada de mal te
poderá acontecer. Todos os
habitantes desta ilha me
respeitam e respeitam os
meus hóspedes. Sou a rainha
e todos os dias aplico a justiça
para que nunca deixem de ter
uma vida calma e feliz, sem
guerras e sem conflitos de
qualquer espécie.

Ditas estas palavras, a rainha


despedIu-se de Bran e saiu
para o grande prado existente
em frente da fortaleza, para se
reunir com o seu povo. Bran e
os seus companheiros
permaneceram nesta ilha
durante os

três meses de Inverno,


parecendo-lhes que estes três
meses tinham durado três
anos. Mas, ao fim desse
tempo, Neclitân, filho de
ColIbran, ficou cheio de

863
saudades. «Estamos aqui há
multo tempo», disse ele um
dia a Bran, «Porque não
regressamos a casa?» «Não
sejas incoiiveníente»,
respondeu Bran, «pois em
lado algum levaremos uma
vida tão agradável como a que
aqui levamos.»

Entretanto, Os companheiros
de Bran começaram a
murmurar e a acusar o seu
chefe, dominado pela rainha
da ilha, de não os querer
levar de volta para o seu país.
«Muíto ama Bran esta
mulher», disse German, «e
sendo assim, deixemo-lo com
ela e regressemos nós à
Irlanda.»

Ora, Bran estivera a ouvir a


conversa, e disse-lhes: «De
modo algum partíreís daqui
sem mim. Se realmente

864
pretendeis voltar para o vosso
país, e se, mantiverdes esse
vosso propósito, ficai a saber
que irei convosco, pois o dever
de um chefe é estar sempre
com os seus companheiros.»

Prepararam então em segredo


a partida. Um dia, tendo ido a
rainha presidir a uma
assembleia do seu povo, Bran
e os seus embarcaram no
barco e navegaram para o
largo, mas a rainha, que nesse
mesmo instante voltava para a
fortaleza, viu o barco afastar-
,se com Bran e os seus
companheiros. Ela foi então a
cavalo até à beira-mar, e
atirou Um novelo para dentro
do barco, agarrando-o Bran e
ficando com ele colado à mão.
Nessa altura, a rainha só teve
de Puxar o fio do novelo para
fazer os fugitivos voltarem
para o porto. «Porque partís

865
desta maneira?», perguntou-
lhes ela. «Ao menos POdíeis-
me ter prevenido, em vez de
fugirem como ladrões,»

Como todos abaixaram a


cabeça sem saberem o que
dizer, Bran acabou por tomar
a palavra: «Os meus
companheiros queriam rever o
seu pais c eu não podia deixá-
los partir sozinhos.» «0 teu
sentimento é nobre, Bran, filho
de Fébal», disse a rainha,
«mas sabíeis vós que grandes
peri-

866
gos vos esperavam? Se
quereis Partir para a Irlanda,
podeis fazê-lo amanhã logo
pela nianhã, mas devo
prevenir-vos do seguinte:
nunca deveis descer do barco
e pôr os pés em terra,
aconteça o que acontecer.»

Partiram no dia seguinte,


depois de se despedirem da
rainha da ilha e das suas
dezasseis companheiras, e,
estando o vento favorável, não
demoraram a avistar as costas
da Irlanda onde acostaram
num lugar chamado desde
então o Regato de Bran.` Ora,
realizava-se então uma
grande assembleia na costa, e
perguntaram- lhes quem
eram.

Bran respondeu, mas as


pessoas de terra não
compreenderam as suas

867
palavras. Ele insistiu, dizendo
com toda a exactidão quem
era, onde residia, e que reis
reinavam sobre o país. «Não
conhecemos esses de quem
nos falas», responderam elas.
Então um velho avançou para
a borda da água. «Ouvi contar,
na minha infância, que aí há
uns trezentos anos, um chefe
chamado Bran, filho de Fébal,
partiu para o mar e nunca mais
voltou. És tu? Pareces-me
bem jovem para poderes ser
aquele que dizes ser.» «Sou
eu, apesar de poderes duvidar
da minha palavra», disse
Bran, «e os meus
companheiros estão aqui para
servir de testernunhas.»

Naquele momento, Nechtân,


filho de ColIbran, não se
contendo, ,altou para fora do
barco. Mas mal os seus pés
tocaram na terra ele ficou feito

868
em cinzas, como se tivesse
estado sepultado há séculos.

Então, Bran entoou um


lamento por Nechtân, filho de
ColIbran. Depois, após ter
contado as suas aventuras às
pessoas que estavam ali na
costa, despediu-se delas,
mandou içar as velas e logo o
seu barco desapareceu na
bruma. Ninguém a partir dali o
voltou a ver, mas toda a gente
sabe que Bran, filho de Fébal,
se encontra na Terra das
Fada, algures no vasto
oceano, junto da grande
rainha MorrIgarte, filha de
Ernma.”’

i Trata-se de Brandon Creek,


na baía de Brandon, no norte
da península de Dingle.
Segundo a tradição, foi daq.ui
que São Brandão partiu na
sua navegação cri) busca do

869
Paraíso, o que prova que
existe uma profunda ligação
entre o mito de Bran e a
piedosa lenda de São
Brandão.

Síntese de duas narrativas:


Iniramni Brain (Navegação de
Bran), contida em diversos
manuscritos, editado por K.
Meyer e A. Nutt, com tradução
inglesa em The Voyage of
Bran; Mailduin, editado
por K. Meyer em Zets(-
hhri,ftjúr Celtische Philologiè,
v()[, XIII, tradução francesa de
D’Arbois de Jubainville em
L’Epopée celtique en Irlande,
vol. V do seu Curso de
literatura celta.

- m dia, Mider de Bri Leith, das


tribos de Dana, decidiu fazer
uma visita ao seu filho
adoptivo, Angus, filho de
Dagda, que ele criara e por

870
quem tinha uma grande
afeição. Assim, por alturas da
festa de Samain, ele
deslocou-se até à residência
de Angus, em Brug-na-
Boyneb, e encontrou aí Mac
Oc ocupado a observar, numa
colina, grupos de rapazes que
brincavam na encosta,
enquanto Elcmar. irmão de
Dagda. na colina de Cletech. a
sul, também observava aquela
cena.

A certa altura os rapazes


começaram à bulha, e Angus
correu para os separar antes
que a luta Provocasse sangue
quando Mider os fosse tentar
pacificar. «Sai daqui!», gritou-
lhe ele, com medo que Elcitiar
descesse e fosse também
meter-se no meio daquela
confusão. «Elcmar está
aborrecido contigo desde que
tu o expulsaste de Brug. Eu

871
próprio vou acalmar estes
rapazes estouvados!»

Angus foi então meter-se no


meio dos jovens que se
esmurravam e tentou acalmá-
los, mas não foi fácil e, no
meio da confusão gerada, um
dos rapazes atirou uma ponta
de aveleira contra Mider,
ferindo-o num olho. Então,
Mider aproximou-se de Angus,
magoado e furioso,
mostrando-lhe o sangue que
corria do olho.

«Era melhor eu não te ter


vindo visítar!», gritou ele. «Já
estou arrependido da minha
viagem, Pois sinto-me
humilhado com o que
aconteceu! Esta ferida, no
entanto, não me impedirá de
ver o país em que me
encontro, e não estou certo se
conseguirei voltar para o meu

872
... » «As tuas palavras são
injustas, ó Mider», respondeu
Angus, «e ofendem-me muito.
Vou pedir a Diancecht para vir
tratar de ti. Ele curar~te-á e
poderás

873
depois voltar a ver este país
com tanta clarividência como
se fosse o teu.» Mac Oc, sem
perda de tempo, foi encontrar-
se com Diancecht e dis-

se~lhe o que esperava dele.


Diancecht acompanhou-o a
Brug e tratou imediatamente
de curar Mider, cujo olho ficou
bom. «Excelente», disse
Mider, «poderei agora
comprazer-me com a minha
viagem, pois estou curado.»
«E ainda será melhor»,
retomou Angus, «se ficares
aqui durante um ano, até à
próxima festa de Samain.
Serás meu hóspede e terás o
prazer de visitar a minha terra
e de conviver com os meus
amigos.» «Eu só fico»,
respondeu Mider, «se for
compensado da humilhação
que sofri e da vergonha por
que passei.» «E como desejas

874
ser compensado?», perguntou
Mac oc. «Eu só te peço o
seguinte: um carro no valor de
sete jovens escravas, um
manto a meu gosto e a
rapariga mais bela da Irlaiida.»
«Eu tenho o carro e o manto
que pretendes», disse Angus.
«Mas também quero a
rapariga mais sábia e mais
bela de todas as que existem
na lrlanda», insistiu Mider.
«Onde se encontra ela?» «No
Ulster. Trata-se de Etaine,
filha de Ecliralde, rei do
nordeste. Ela é sem dúvida
nenhuma a mais sábia e bela
rapariga de toda a Irlanda.»

Oc pôs-se a carrunho do
Ulster e chegou Sem perda de
tempo, Mac
c, sidia o rei Ecliraide.
Deram~lhes as boas pouco
depois a Mag Inís, onde re i i

875
vindas, e ao fim de três noites
perguntaram-lhe o que o
levava ali, ao que ele
respondeu que desejava a
mão de Etalne, a filha do rei.
«Não a terás», respondeu
Echraide, «pois, se ta der,
nada mais conseguirei de ti,
devido aos teus poderes
mágicos. E se a minha filha for
desonrada, ninguém das
tribos de Dana me quererá
pagar uma compensação por
isso.» «Garanto-te que isso
não corresponde à verdade»,
disse Angus. «E se te
recusas a dar-me a tua filha,
posso comprar-ta agora
mesmo.» «Assim está bem»,
disse o rei. «Quanto tenho de
pagar por ela?» «0 que eu te
peço é o seguinte: quero que
desbraves nas minhas terras
doze planícies que estão
cobertas de floresta, para que
nelas haja boas pastagens

876
para os meus gados, e para
que nelas se construam
casas, façam jogos e se
realizem assembleias.» «Eu
atenderei ao que me pedes»,
respondeu Mac Oc.

Em vez de voltar para casa,


ele foi ter com o pai, Dagda, ao
qual contou o que se passara.
Dagda prometeu-lhe então
que o trabalho exígido por
Ecliraíde seria levado a cabo
e, deste modo, no dia seguinte
começou o desbravamento
das doze planícies. Findo o
trabalho, Angus foi de novo
encontrar-se com Echraide e
reclamou-lhe a mão de Etaine.

«Tu não a terás», disse o rei,


«a não ser que transformes
em doze rios tudo o que este
país possui de nascentes, de
pântanos e de turfeiras,

877
de tal modo que as águas
possam ir lançar-se ao mar.
Assim, serão drenadas as
minhas terras que darão
peixes em abundância às
tribos e às famílias do meu
país.» «Isso será feito»,
respondeu Mac Oc.

Foi de novo ter com o pai,


expôs-lhe a situação, e Dagda
fez com que doze grandes rios
se formassem no pais de
Echraide antes de se irem
lançar no mar em grandes
estuários, coisa que ’amais se
vira até então. Quando o
trabalho ficou concluído,
Angus voltou a casa do rei
Ecliraide e reclamou-lhe a
mão de Etaine. «Pelo deus
que protege a minha tribo»,
disse o rei, «ainda não é desta
que te dou a mão da minha
filha, pois se eu ta desse,
amanhã já nada poderia obter

878
de ti.» «Que mais queres
então?», perguntou Mac Oc.
«Eu digo-te o que pretendo:
quero o equivalente ao peso
da minha filha em ouro e em
prata. Caso consigas trazer-
me o que te peço, poderás
levar Etalne.» «Terás o que
pedes», respondeu Angus.

Chamaram a donzela e
pesaram-na na casa de
Echralde. Então, Angus fez
trazer o equivalente ao seu
peso em ouro e prata e deu-
o a Echralde. «Agora estás
satisfelto?», perguntou ao rei.
«Acho que já tive de pagar um
bom preço pela tua filha, e que
eu saiba nunca nin ’

1 guem pagou um
preço tão alto por uma donzela
’rlandesa.» «Podes levá-la»,
respo 1 1

879
ndeu Ecliraíde, «mas lembra-
te que és o responsável pela
sua honra e pela sua saúde.»

Mae Oc levou então Etaine


consigo para Brug-na-Boyne
onde o esperava Mider. Ao vê-
lo, Etaine ficou tão encantada
com a sua boa aparencia e
com a sua beleza que se
apaixonou por ele
imediatamente. Mider, por seu
lado, ao ver as feições finas da
donzela e a elegância do seu
corpo, ficou muito bem
impressionado e também se
apaixonou.

Etaine e Míder acabaram por


dormir juntos naquela noite.
No dia

s 1
1 eguinte, Angus deu a Mider
o manto e o carro que lhe
prometera, e Míder, aparti de

880
então muito satisfeito, ficou
um ano inteiro na companhia
do seu ir 1 1

filho adoptivo em Brug.


Concluído este tempo, Mider
anunciou a Mac Oc a sua
intenção de voltar para a sua
própria residência, no outeiro
de Bri Leith. «Não posso
impedir-te de o fazeres», disse
Angus, «mas toma

é niu bem conta da mulher que


levas contigo. A que lá te
espera”) ito

1. No direito ceita. o homem


pode ter unia ou mais
concubmas, mesmo sendo
casado, na condição de a
mulher legítima aceitar a
pessoa que lhe é apresentada
pelo marido. Este concubinato
é de ahum modo leal, pois é
sujeito a um verdadeiro

881
contrato que protege a
concubina: este contrato é
válido por um ano e pode ser
renovado. É o que acontece
neste caso.

882
poderosa e perita em
POIs, foi educada por Bresal,
um dos druidas mais
sabedores das tribos de
Dana.»

Mac Oc, na verdade, tinha


pouca confiança em
Fuamnach, mulher de Mider.
Ela era a filha de Beothach, do
clã de larbonel, e, graças às
lições de Bresal, conhecia
melhor do que ninguem os
sortilégios e sabia lançá-los
sobre quem lhe
desagradasse.

1c

Depois de se ter
comprometido a tomar conta
dela, Mider partiu com Etame
para o outeiro de Bri Leith,
onde foram recebidos por
Fuamilach que lhes deu as
boas vindas. Em seguida, ela

883
contou ao marido o que se
passara nos seus domínios
enquanto estivera ausente.
«Vem, 6 MideD>,
1

disse ela, «para que eu te


mostre a casa e as extensões
de terra que possuis, e para
que a filha do rei possa
contemplar as tuas nquezas.»

Mider fez então uma ronda


completa pelos seus domínios
e Fuamnach mostrou-lhe,
assim como a Etaine, tudo o
que fora feito ao longo do ano.
Depois, levou-os para casa e
fê-los entrar no quarto onde
dormia. «Só mulheres nobres
têm acesso a este quarto»,
disse ela a Etaine, «e fica a
saber que agora podes dispor
dele à tua vontade.»

Mas logo que Etaine se sentou

884
na borda da cama, Fuamnach
bateu-lhe com uma varinha de
aveleira púrpura e
transformou-a numa poça de
,água que se estendeu por
toda a casa. Feita a malvadez,
Fuamnach saiu o mais
depressa possível dali e
desapareceu na fortaleza para
se refugiar na residência do
seu pai adoptivo, o druida
Bresal.

Entretanto, o calor da lareira e


do ar, e a fermentação do solo,
actuaram de tal forma sobre a
poça de água espalhada pela
casa que ela se transformou
num verme, o qual pouco
depois se tomou uma mosca
purpura. Esta mosca tinha
uma cabeça humarta, e jamais
no mundo se vira um insecto
tão belo como aquele. 0 som
da sua voz e o zumbido das
suas asas produziam uma

885
música mais suave ainda que
a das harpas e das gaitas de
foles, e os seus olhos
brilhavam como pedras
preciosas na escuridão. 0
perfume que dela emanava
era tão agradável que fazia
passar a fome e a sede a
todos os que dela se
aproximassem. As gotinhas
segregadas pelas suas asas
curavam todos aqueles que
ficassem doentes ou se
sentissem debilitados. Ela
acompanhava Mider onde
quer que ele fosse, sem
jamais o deixar, e ele
regozijava-se com a sua
presença, pois sabia que
Etaine estava do seu lado
tendo adquirido aquela forma.
Ora, como ele a amava
profundamente, nunca se
interessou por outra mulher
enquanto a mosca esteve com
ele, e sentia-se saciado só de

886
a contemplar. Adormecia ao
som do seu zumbido, e ela
encarregava-se de o acor-

dar sempre que se


aproximava alguém cuja
presença lhe desagradava.
Quando Fuamnach ouviu falar
da mosca que tanto extasiava
Míder,

compreendeu imediatamente
que se tratava de Etaine.
Tratou então de Ir Visitar
Mider, mas Poruma questão
de segurança fez-se
acompanhar a Brug-na-Boyne
Por três chefes das tribos de
Dana, a saber Dagda,
9

0 ma e Lug do Braço Longo.

Mider censurou vivamente


Fuamnach e disse-lhe que, se
ela não estivesse rodeada de

887
três responsáveis pela sua
segurança, a não deixaria
partir viva. Ela retorquiu que
não tinha nenhum remorso
pela acção praticada, que
preferia fazer o bem a si
mesma do que a qualquer
outra pessoa, e que, fosse
qual fosse a forma que
tomasse Etaine, nunca
deixaria de a importunar. E,
dito isto, lançando
encantamentos que lhe
tinham sido ensinados pelo
seu mestre, Bresal,
desencadeou um vento
druídico que envolveu a
Mosca num grande turbilhão o
a arremessou violentamente
para fora da fortaleza de Bri
Leith- E o vento era tão forte e
terrível que a infeliz Etaine não
conseguiu encontrar nem
lugar, nem copa de árvore,
nem cume de colina, onde
pousar durante sete anos,

888
ficando refém dos rochedos à
beira mar e das grandes vagas
que vinham rebentar na praia.
Mas, uni dia, ela bateu em
Mac Oc, quando este
passeava no prado que
dominava a fortaleza do Brug-
na-Boyne, e Mac Oc
reconheceu Etame na forma
de mosca púrpura.

Ele deu-lhe as boas vindas e,


dando-lhe guarida nas pregas
do seu manto para a proteger
do vento que continuava a
soprar, levou-a para o interior
da fortaleza. Aí ele colocou o
insecto na sua câmara de
sol,,), que estava sempre
inundada de luz e que
continha ervas com multo bom
cheiro e Propriedades
maravilhosas. E, a partir de
então, ele dormia todas as
noites ao lado dela e cuidava
dela com todo 0 carinho para

889
que pudesse reaver as suas
cores e a suas energias.

I. Mencionada noutras
narrativas irlandesas, assim
como o ,,to

francês da Folie Tri,çta,11,


esta «Câmara de Sol» evoca
um antigo ritual de
regeneração pelo sei. 0,a, a
cena passa-,se em Brug-na-
Boyne, ou seja, no cairn
megabtico de Newgrange, o
que não acontece por acaso,
Com efeito, no soIstício de
Inverno. os Prjmcros raios de
sol penetra o outeiro de
Newgrange por
n1 n

- uma abertura feita ao cimo


da entrada, sobem ao longo
do corredor e chegan, à
câmara funerária que
iluminam com uma

890
assombrosa claridade durante
ai-uns minutos. ora, nesta
câmara, encontravam-se
bacias de pedra nas quais
tinham ido

olocados ossos e cinzas, É


inegável que se tratava de um
rito simbólico do
renascimento. 0 que é digno
de nota, neste caso. é o facto
de haver urna extraordinária
correspondência entre o mito
e a realidade arqueológiea.
Vide J. Markale, Dolmens el
Menhirs,
10 Civifisation Inégalithique,
Paris, Payot. 1994.

891
Ora, Fuamnach, ao ouvir falar
dos cuidados com que Angus
tratava Etame, na sua
residência de Brug enviou-lhe
um mensageiro para lhe pedir
que fosse a Bri Leith onde ela
própria se deslocaria para
fazer a paz com Mider e o seu
filho adoptivo: se eles
aceitassem a proposta de paz,
ela devolveria a Etaine a forma
humana. Muito satisfeito com
aquela proposta, Mae Oe foi
logo ao seu encontro.

Mas Fuamnach, ao invés de ir


para Bri Leíth, foi direita a Brug
e, entrando na fortaleza,
dirigiu-se logo para a câmara
de sol. Aí lançou uns terríveis
encantamentos, e o vento
druídico, arrebatando o
insecto do lugar onde estava,
pô-lo a errar por cima da
Irlanda. Depois de suportar
muito frio e muita chuva, a

892
mosca acabou por cair em
estado de grande fraqueza no
tecto duma casa onde homens
e mulheres do UIster se
preparavam para começar a
beber. Etaine estava de tal
modo subnutrida e debilitada
que adquirira a forma de uma
mosca normal, e foi naquele
estado que, passando através
do buraco da chaminé, entrou
na taça de ouro que a mulher
de Etar, um dos campeões do
UIster, segurava numa das
mãos. Esta, sem dar por isso,
engoliu-a com a bebida e ficou
grávida naquela noite, dando
à luz, nove meses depois, uma
rapariga chamada Etaine, filha
de Etar.

Entretanto, Mider e Anger,


tendo estado à espera de
Fuamnach sem que ela
aparecesse, tinham ficado
preocupados. «É evidente que

893
ela nos fez cair nutria
armadilha», disse Mae Oc.
«Se ela souber que Etame
está em minha casa, é capaz
de lhe ir fazer mal. Devo por
isso regressar urgentemente a
Brug.»

Quando chegou à fortaleza,


não encontrou Etaíne ria
câmara de sol. Compreendeu
então que Fuamnach ali
estivera e que de novo desen~
cadeara um vento druídico
para levar o insecto dali para
fora. Furibundo, partiu então
no encalço de Fuamnach e
encontrou-a precisamente no
momento em que ela se
preparava para entrar na casa
do druida Bresal. «Maldita
mulher!», gritou ele. «Serás
castigada pelo crime
queicometeste, pois não
posso admitir que tenhas
desonrado e posto em perigo

894
a mulher por quem sou
responsável!»

E, atirando-se a ela, cortou-lhe


a cabeça e voltou depois para
Brug-na-Boyne levando
aquela consigo.

Etaine, por seu lado, foi criada


com todo o carinho por Etar
em Inber Cichmaine, onde
estava rodeada de cinquenta
filhas de chefes. Etar dava-
lhes de comer e vestia-as para
que pudessem estar
constantemente a tomar conta
de Etaine. Esta cresceu cheia
de sabedoria e de beleza, e
todos

234

os homens do UIster
elogiavam as suas qualidades
e o seu encanto.
1

895
Um dia, quando as jovens se
banhavam no estuário, viram
um cavaleiro que, saindo das
águas, se dirigiu para elas. 0
cavaleiro montava um cavalo
escuro multo ágil, imponente e
grande, com a crina e a cauda
frisadas. Cobria-o um manto
verde cujas dobras muito
largas, com um broche de
ouro saliente, caiam sobre
uma camisa fina ornada de
bordado vermelho. Segurava
na mão uma lança de cinco
pontas inteiramente
guarnecida de ouro, e ao
ombro trazia um escudo de
prata bordado a ouro, Uma fita
prendia-lhe os cabelos louros
para impedir que eles caíssem
sobre o rosto. Ele deteve-se
diante das donzelas e entoou-
lhes uni canto estranho que
elas não compreenderam,
embora tenham ficado

896
encantadas com a beleza do
cavaleiro e se tenham logo
apaixonado por ele. Apesar
disso, ele deixou-as, ficando
elas sem saber de onde viera
e para onde ia aquele que era
Mider e que viera de Bri Leith
para contemplar Etaine, pois
jamais ele a esquecera e
jamais a amara tanto como
agora.

Naquele tempo, o rei supremo


da Irlanda era Eochaid Airem,
filho de Fimi. Ora, naquele ano
que se seguiu à sua subida ao
trono, ele mandou que se
anunciasse por toda a Irlanda
que em Tara se realizaria um
festim durante a festa de
Samain. Todos os nobres e
reis dos Filhos de Milé
deveriam aí deslocar-se, pois
aproveítar-se-ía aquela
ocasião para Se tratar de
negócios e para se fixarem os

897
impostos que deveriam ser
pagos ao rei supremo. Mas os
homens da Irlanda
responderam que Dão iriam
ao festim de Tara enquanto o
rei que os convocava não
tivesse urna esposa digna de
si. Na verdade, Eochaid Airem
não era casado, e não havia
chefe ou nobre da Irlanda que
não honrasse o festim de Tara
tendo uma mulher a seu lado.
Eochaid enviou então os seus
servos C os seus mensageiros
a todas as províncias em
busca de uma mulher que
fosse digna do rei supremo.
Quando voltaram, os enviados
disseram-lhe que tinham
encontrado apenas uma
mulher que correspondia
exactamente ao ideal que ele
perseguia: Etaíne, filha de
Etar, no UIster.

Na esperança de a ver, o

898
próprio Eochaid Airem se
deslocou então ao lugar onde
lhe tinham indicado que
estava a rapariga e, ao
atravessar um vale
verdejante, viu uma donzela
junto a uma fonte, Com um
pente de prata magnífico a
sobressair de enfeites
dourados, ela lavava-se num
tanque de prata ricamente
ornamentado com quatro
pássaros de ouro e pedras
preciosas. A donzela estava
vestida com um belo manto
púrpura claro, tendo broches
de prata e um alfinete de ouro
a cin-

899
tilarem sobre o peito.
Cobria~lhe o corpo uma
camisa comprida de seda
verde bordada a ouro, com
ouro e prata acolchetados, e o
sol derramava tons
maravilhosos pela roupa que
trazia vestida. No alto da
cabeça tinha duas tranças
douradas, e quatro ganchos
mantinham-nas separadas,
havendo uma pérola de ouro
no alto de cada uma delas.

Naquele instante a rapariga


soltava os cabelos para se
lavar e, segurando-os com as
mãos, em seouida fê-los
caírem sobre os seios. As Z:I

mãos eram mais brancas que


a neve nocturna e as maçãs
do rosto mais vermelhas que
uma dedaleira púrpura. A
boca era fina e sem defeitos, e
os dentes brilhantes como

900
pérolas. Os olhos eram mais
cinzentos que o jacinto.
Vermelhos e finos eram os
lábios, leves e suaves os
ombros, ternos, doces e
brancos os braços. Os dedos
eram longos, magros e
brancos. As unhas eram muito
belas, de um vermelho pálido.
0 ventre era f,cérico, mais
branco que a neve ou a
espuma do mar. As coxas
eram macias e brancas, a
barriga da perna estreita e
muito elegante, os pés finos,
imaculados e brancos; os
calcanhares eram muito bem
torneados o delicados, e muito
brancos e redondos eram os
joelhos,

Eochaid Airem, maravilhado


com toda aquela harmonia,
aproximou-se da donzela e
cumprímentou-a, tendo ela
correspondido ao seu

901
cumprimento. Depois, ele
perguntou-lhe quem ela era, e
ela respondeu que era Etame.
filha de Etar. campeão do
UIster.

«Donzela, queres casar


comigo’?», perguntou-lhe ele.
«E quem és

Z’

tu?» «Eu sou Eochaid Airem,


rei supremo da Irlanda, e vim
pedir-te em casamento.»
«Não devo ser eu a dar-te uma
resposta, mas sim o meu pai».
disse ela.

0 rei foi logo encontrar-se com


Etar, e este concordou em lhe
dar a filha se ele tivesse um
bom dote para lhe dar.
Eochaid deu-lhe sete jovens
escravas e uma magnífica
manada de vacas brancas, e

902
levou Etame para Tara.

Ao saberem que o rei


arranjara uma esposa, os
homens da Irlanda foram ao
festim de Tara. Chegaram
quinze dias antes do Samain e
permaneceram quinze dias
depois de terminado o festim.
Ficaram espantados com a
beleza e a elegância de Etaine
e não paravam de a elogiar,
dizendo que nunca um rei da
Irlanda tivera uma mulher tão
perfeita.

Entretanto, Eochaid Airem


tinha um irmão que se
chamava Ailill Anglonnach. E
quando este viu Etame pela
primeira vez, no festim de
Tara, apaixonou-se
imediatamente por ela. Não
parava de a contemplar e de
suspirar, de tal forma que a
mulher acabou por lhe

903
perguntar: «Para

quem olhas, ó Ailill? Só o


amo’* Pode suscitar olhares
tão profundos e suspiros como
os teus!»

Ailíll, muito envergonhado,


recriminou-se a si mesmo e
evitou daí em diante olhar para
Etame. Mas, tendo partido os
homens da Irlanda a seguir ao
festim de Tara, Ailill pelo
contrário deíxou-se ficar,
sendo acometido de um
estado de grande fraqueza
devido ao ciúme , -

, a inveja e ao despeito que o


minavam. Preocupado com
ele, Eochaid Airem, o seu
irmão, mandou chamar o seu
médico, Fachtna. 0 médico
auscultou o peito de AffilI, e
este suspirou profundamente.
«Penso que não estás

904
doente», disse Fachtna. «Tu
foste acometido do que me
parece ser uma espécie de
inveja,»

Ao ouvir aquelas palavras,


Ailill ficou cheio de vergonha e
evitou dizer ao médico o que o
atormentava, não podendo
por isso ser curado. Ora,
Eochaid Airem devia partir no
seu périplo real pelas
províncias da Irlanda., mas
Preocupava-o tanto a saúde
do irmão que disse a Etaine:
<Mulher, trata do meu irmão e
presta-lhe toda a assistêrícia
que puderes, pois ele parece-
me bem doente. E, se Por
infelicidade, ele morre, tu
triesma faz-lhe a sepultura e
escreve o seu nome em
ogham na laje que ’oJ ellgidi
neste )ugar.»

Tendo incumbido Etaine de

905
cuidar de Ailili, Eochaid
começou então
0 seu Périplo por todas as
províncias da Irlanda. Etaine,
por seu lado, ]a todos os dias
à cabeceira de Affill para lhe
lavar a cabeça e lhe dar de
comer. Mas Affill piorava de
dia para dia, e Etaine receava
que ele morresse. «Ouve»,
disse-lhe ela uma noite, «às
vezes fico a pensar que a tua
doença é provocada por um
pensamento que não tens
coragem de confessar. Estou
certa de que. se mo
confessares, poderei fazer
alguma coisa para te curar.,>
<Oh

mulher!». respondeu Niffil, «tu


poderias fazer alguma coisa
para me curar mas eu não me
atrevo a revelar-te a causa do
meu mal.» «Diz-me o teu
se,credo» «Não to direi»,

906
obStíDOU-se AffiL

No entanto, ao fim de alguns


dias de muita insistência da
parte dela, ele decídiu-se a
falar, «Se queres saber a
causa do meu mal», disse ele,
«vou-to revelar: és tu. Desde
que te vi pela primeira vez,
fiquei de tal maneira
apaixonado que deixei de ser
senhor do meu coração e dos
meus sentimentos. E uma
situação bem triste, ó mulher
do rei, pois o meu corpo e 0
meu espírito estão doentes e
nada me pode curar a não ser
que tu própria me sirvas de
remédio. Nem podes imaginar
como o meu amor é um
espinho dilacerante que me
rasga a alma e me destrói todo
por dentro! 0 meu amor, que
tem as dimensões da terra
inteira e do céu

907
infinito, tortura-me noite e dia
e flagela-me a alma que vive
no meio de sombras e de
trevas! Não podes imaginar
como me consumo a lutar
conZn

tra as sombras que não param


de me visitar e de me torturar,
ó mulher!» Assim falava cheio
de mágoa Ailill Anglonnac,
filho de Finn, irmão do rei
supremo da Irlanda, Eochaid
Airem. E, depois de se ter
pronunciado, escondeu o
rosto com vergonha por estar
apaixonado pela mulher do
irmão. «É uma pena que
tenhas ficado tanto tempo sem
dizer a origem do teu mal»,
murmurou Etame, «pois
poderíamos tê-lo curado há
muito tempo.» «Tu poderias
curar-me completamente, se o
deseJasses», disse Ailifi. «Eu
quero», retorquiu Etaine.

908
«Esta noite, quando todos
forem dormir, vem ter comigo
à casa que se encontra fora da
for~ taleza. Eu estarei lá e
farei com que fiques curado.»

Aillil teve muito cuidado para


não dormir, naquela noite.
Mas, chegado o momento de
partir para o encontro, foi
visitado por um sono profundo
e dormiu até de manhã.
Etame, por seu lado, tendo-se
dirigido para a casa fora da
fortaleza, viu chegar um
homem fraco e fatigado,
parecido com Ailill, mas ela
percebeu que não era ele.
«Não foi contigo que marquei
um encontro», disse ela, «mas
com um homem a quem
prometi curar, pois está muito
doente devido à paixão que
tem por mim.» «0 encontro
que marcaste com esse
homem não seria

909
conveniente», disse o
desconhecido, «e garanto-te
que aquele que esperavas
amanhã estará curado. Fui eu
que o fiz dormir e vim no seu
lugar para te poupar à desonra
e à vergonha.» «Mas quem és
tu?», perguntou Etaine. «Não
me reconheces? Quando eras
Etaine, filha de Ecliraide,
pertencias-me, e desde então
nunca deixei de te amar. Tu
sabes bem que me chamo
Mider de Bri Leith. «Se é como
tu dizes, o que é que então
nos separou?», perguntou
Etaine. «Os artifícios de
Fuaninach e os
encantamentos do druida
Bresal. Não te lembras, ó
Etaine, a mais amada e a mais
digna de ser amada?»
«Lembro-me, na verdade»,
disse Etaine, «mas tudo isso
está envolto numa névoa
muito distante, parecendo que

910
sombras aparecem à minha
frente sem que eu consiga
apreender o seu sentido. E
que farás tu para curar Ailill
Anglonnach?» «Eu fá-lo-ei
passar por um sonho que o
levará a pensar que te teve
nos braços durante toda a
noite. ó mulher tão amada,
virás comigo?» «E para onde
me levas?», perguntou Etaine.

Então, Mider entoou este


canto:

«0 bela mulher tão amada,


virás comigo

para a terra tão amada onde


se ouvem músicas,

onde sobre os cabelos se


levam coroas de primaveras,
onde, da cabeça aos pés, o
corpo é da cor da neve, onde
ninguém Pode ficar triste ou

911
sentir-se infeliz,

onde os dentes são brancos e


as sobrancelhas são negras,
onde asfaces são vermelhas
como as dedaleiras emflor? A
Irlanda é bela, mas Poucas
paisagens

são tão belas como as que


verãs na grande planície onde
te levarei.

A cerveja da Irlanda éJorte,


mas a cerveja da Grande
Terra é ainda mais inebriante.
E um país maravilhoso o que
já conheces.- nele os jovens
nunca envelhecem

e correm rios de hidromel,

nele os homens são


encantadores, perfeitos, e o
amor não é proibido...

912
0 mulher tão amada, quando
chegares ao meu pais
passarás a levar uma coroa de
ouro no cimo da cabeça,
comerás porco fresco todo o
ano,

tomarás cerveja e leite, ó


mulher,

bela mulher tão amada, virás


comigo?»

«É impossível», respondeu
Etaine. «Estou casada com o
rei supremo da Irlanda e não 0
Posso deixar.» «E se eu
conseguir que o rei da Irlanda
me dê a tua mão, virás
comigo?» «Sim», respondeu
simplesmente Etame. Então
Mider desapareceu, sem que
Etaine soubesse o rumo que
ele tomara.

De manhã, ela viu Ailill

913
Angloninach vir ao seu
encontro com um óptimo
aspecto e um olhar radioso. «ó
mulher!», exclamou ele, «tu
curaste-me, e não sei como te
agradecer.» «Eu sei como
poderás agradecer-me», disse
ela. «Basta que não fales a
ninguém sobre o que se
passou esta noite entre nós.»

Passados alguns dias,


Eochaid Airem voltou do seu
périplo real pelas províncias
da Irlanda. Ao ver o irmão
curado, ficou muito contente e
agradeceu a Etaine o
tratamento que lhe dera.
Então, Ailill Anglonnach voltou
para sua casa e nunca mais
ficou doente.

914
No dia seguinte, Eochaid
Airem levantou-se muito cedo
e subiu ao terraço de Tara
para contempiar a planície
que se estendia sob o
brilhante sol de Verão. Ao
olhar ao redor da fortaleza viu
aproximar-se um estranho
guerreiro, que vestia urna
túnica púrpura e cuja cabeleir2
loura caía em ondas até aos
ombros- 0 guerreiro tinha os
olhos brilhantes e

a lança de cinco pontas. do


pescoço trUia azuis, e na mão
segurava um
edras preciosas suspenso um
escudo de prata bordado a
ouro e com p

nele incrustadas. Eochaid não


o reconheceu, mas sabia que
aquele homem não tinha
estado na noite anterior na
sala de festins de Tara. «Bem

915
vindo, guerreiro que não
conheço», disse Eochaid- «Eu
conheço-te», respondeu o
outro. «Tu és Eochaid Airem,
rei supremo de toda a
Irlanda.» «Tens razão, mas
corno te chamas’» «0 meu
nome não é muito conhecido
entre os Filhos de Milé. Fica a
saber que me charno

«Gostava de jogar xadrez


conMider de Bri Leith.» «E que
desejas?» iu Eochaid,
«eu sou tigo», respondeu o
guerreiro. «Na verdade»,
retorqu ’da muito bom
no jogo de xadrez, e quando
me desafiam para uma parti
nunca recuso. Mas a rainha
ainda está a dormir, e o
tabuleiro e as peças estão nos
seus aposentos.» «Não
importa», respondeu o
guerreiro, «eu tenho aqui um
jogo de xadrez que não tem

916
menos valor.»

Era verdade o que dizia, pois


tinha em seu poder um
tabuleiro de prata com cada
canto iluminado por uma
pedra preciosa. Depois,
retirou as peças que eram de
ouro dum saco com malhas
em bronze, e pousou o
tabuleiro sobre o terraço.
«Agora podemos jogar», disse
ele. «Eu não jogo se não
houver uni prétnio», disse
Eochaid. «E qual será o
prémio?», perguntou Mider.
«É-me indiferente.» «Pois
bem», disse Mider, «se tu
ganhares o prêmio serão
cinquenta corcéis acinzentad
io,,,,, com as cabeças
malhadas e vermelhas, as
orelhas pontiagudas, o peito
largo, as narinas muito
abertas, as patas muito finas e
poderosas, fogosas, rapidas,

917
fáceis de atrelar, e também
cinquenta rédeas esmaltadas.
Se eu perder, os corcéis
estarão aqui amanhã à
terceira hora.» .

os dois homens começaram


então a jogar. Eochaid ganhou
a partida e Míder retirou-se,
levando o jogo de xadrez. No
dia seguinte, quando Eochaid
andava pelo recinto da
fortaleza de Tara, viu Mider
aproximar-se do terraço. Não
sabia de onde ele vinha nem
como conseguira

isfeito ao ver que Mider trazia


consigo chegar ali, mas ficou
muito sat rédeas
esmaltadas. uni grupo de
cinquenta caval ios
acinzentados com

«Está bem», disse ele,


«mantiveste a palavra.» «0

918
que é prometido é devido»,
disse Mider. «Vamos jogar
outro jogo hoje9» «Por mim
está

bem», respondeu o rei, «na


condição de que haja um
prémio.» «Isso nada tem de
mais. Se ganhares esta
partida, dar-te-ei cinquenta
vacas

inbrancas de orelhas
vermelhas, cinquenta portas
com bojo cinzento, c’

quenta espadas com


protecção em marfim, e
cinquenta mantos
sarapintados. 0 que pensas>»
«Concordo em absoluto»,
respondeu Eochaid.

1 Fizeram uma partida,


Eochaid ganhou, e no dia
seguinte Mider voltou com

919
tudo o que tinha prometido. E
assim foi durante vários dias:
Mider perdia regularmente, e
Eochaid ia acumulando as
suas riquezas na fortaleza de
Tara.

Entretanto, o intendente do rei


estava muito admirado com
tantos tesouros acumulados
em tão pouco tempo.
Interrogou Eochaid, e este
contou-lhe como ganhava
aquelas riquezas. «E muito
estranho», disse o intendente.
«Aconselho-te a não confiares
neste homem, pois parece-me
que ele tem poderes mágicos.
Na próxima vez, não deixes
que seja ele a propor o prêmio.
Impõe-lhe tu pesados
encargos, e veremos como ele
assume as suas
responsabilidades. »

Assim, quando Mider

920
apareceu no terraço para
propor a Eochaid uma nova
partida de xadrez, foi este a
impor as condições em caso
de vencer, a saber, retirar
todas as pedras de Meath,
construir uma estrada sobre
os pântanos de Larriraige e
plantar uma floresta no vale de
Breifné. «Isso é muito», disse
Mider, «mas mesmo assim
aceito as condíções.»
Voltaram a jogar e Eochaid
ganhou a partida. «Antanhã
terás o que pediste», disse-lhe
Mider, «mas não deixes que
nenhum homem ou mulher
saia da fortaleza antes do sol
nascer.» «Eu prometo», disse
Eochaid, «ninguém sairá da
fortaleza antes do nascer do
sol.»

Mas, ao invés de manter a


promessa, o rei mandou o seu
intendente ver o que se

921
passava. 0 homem saiu então
da fortaleza e foi observar os
movimentos de Mider. Viu
uma multidão de homens a
trabalharem arduamente na
construção da estrada, outros
a recolherem pedras, e ainda
outros a plantarem árvores.
Voltou imediatamente para
Tara e contou a Eochaid os
grandes trabalhos que
estavam a ser feitos durante a
noite para que a promessa
fosse cumprida. E
acrescentou que nunca vira no
mundo um poder mágico tão
poderoso como aquele que
testemunhara.

Estavam a conversar quando


viram aproximar-se o grande
guerreiro de cabelos louros e
de olhos azuis. Tinha um cinto
à volta do tronco e parecia
furioso. Eochaid ficou um
pouco assustado, mas deu-lhe

922
as boas vindas. «Pouco me
importam as tuas gentilezas»,
respondeu Mider com
aspereza. «As tarefas que me
pedes para executar e as exi-

923
e difíceis, Eu estava
realgências que me fazes são
demasiado duras

1 de cumprir
o combinado para te agradar,
mas tu mente na disposição
s lá, acalma-te», disse o rei.
«Eu tentarei ser abusas da
situaÇão.» «Vamo, ,
íogo?», perguIlmais
compreensivo tia proxima
vez». «Fazernos Outro - -

tou Mider. «De boa vontade»,


respondeU EOchaid- ’<Mas
qual será 0 prérfiío?» «0 que
decidir o vencedor», disse
Mider. «Eu aceíto», disse oa
vontade para contigo, pois
desse modo o rei, «o que
prova a minha b 5

nada fica combinado


previamente.»’
partida, ficanJogaram

924
novamente mas, desta vez,
Míder ganhou a
ele. do Eochaid muito
embaraçado, «Que prémio
desejas?», perguntou

E MideT respondeu, «QueTo


a tua mulher, Etaíne, filha de
Etar do antes de ser tua.»
Aterrado, Uster, que foi minha
mulher MuitO
«Nesse caEochaid acabou
Por dizer’- «Dá-me um prazo»
«Eu dOu-tO»- -
»

so, volta daqui a um ’,


e eu cumprirei o meu
compromisso rnê,

Mider partiu, deixando


Eochaid numa grande
angústia, 0 rei dcsconfiava
que Mider tinha
deliberadamente criado
aquela situaÇãO catastrófica

925
de que dificilmente
conseguiria sair corno
vencIdor* Entretanto.
na0 tinha intenção nenhuma
de perder Etaine e de a dar a
Mider, de tal forma

ões.”’ após muito reflectir,


resolveu não cumprir com
as suas obrigaÇ

que, por esse motivo. no dia


combinado, Eochaid Aírein
reuniu ao seu s se
dos guerreiros da Irlanda.
redor, em Tara, a elite dos eus
homen
rtaleza ser cercaid,nciou no ,,

Além disso, Eochaid Prov


, eDtido de a fo

e de a casa onde estava com


EtaiBe ser defendida por hoda
de tropas,
a quem quer que quisesse

926
faPmens armados e
determinadOS a resistir
m como as da casa, foram
afertar a rainha. As portas da
fortaleza assi
poderes mágicos id sabia que
o homem de grandeS

rolhadas, pois Eocha,


Z:I .o da assembleia, não
faltaria ao encontro marcado,
Etaine estava no mel

chefes e os senhores que


rodeavam o rei naquela noite,
e servia os não
impedirain, apesar de tudo,
que Mider As medidas
tomadas

i, Era evidentemente aqui que


Mider pretendia chegar.
perdendo partidas sucessivas,
o hábil mágico que era capaz
de pagar prémios exorbtant1S
venceu a desconfiança de

927
Echaid e .,lho, o cair na
sua armadilha. Em todas as
nar-

aumentou a sua rapacidade,


Para élic , são
apresentados como sendo
milito infe,,tivas., os Filhos de
Milé, ou Seja, o’ ga o
antigos deuses druídicos que
se rioTes à, personagens das
tribos de Daiw 11,do estas os
s, ou seja, as Fadas da ira~ s,
«boqs gCnte

tomaram por us,quência, até


aos nossos dia t-1

dição popular oral da irianda e


da Escócia. - oral, se não
fosse o com---
2, 0 final desta história poderia
considerar-se «II

que falta ao prometido,


Prlm”ro mandando espia”

928
depois tentandO `’ assum’r os

’) A ,

aparecesse, sem se saber


como, no meio da casa. Ele
era extremamente belo, mas a
todos pareceu que Daquela
noite estava ainda mais belo
do que era habitual, com os
cabelos louros, os olhos azuis
e o manto ornado com pedras
preciosas e um broche de
ouro. 0 coração de, Etaine
estremeceu ao vê-lo assim, no
meio de uma assembleia que
lhe era hostil, mas ficou
calada, limitando-se a encher
os copos de cerveja e de
hídromel. Estavam todos
estupefactos por ele estar ali,
no meio da sala, quando todas
as entradas lhe estavam
vedadas. Mas Eochaíd
avançou para ele e deu-lhe as
boas vindas.

929
«Estou aquí», disse Mider,
«para reclamar o prêmio
combinado e se não mo deres
perderás a honra.» «Um rei da
Irlanda não pode dar a mulher
a outro», respondeu Eochaid.
«Posso dar-te tudo o que me
pedires, mas é impossível que
Etaine parta contigo esta
noite.» «Tu prometeste-ma»,
disse Mider, «e deves liquidar
a tua dívida perante todos os
homens da Irlanda.» «Eu não
te darei Etaine», disse
Eochaid com um ar muito
ríspido. «Não me assustas»,
respondeu Mider. «Ninguém
se pode furtar às suas
obrigações e muito menos um
rei. Eu próprio não tive de
liquidar os compromissos
assumidos, apesar de todas
as dificuldades por que tive de
passar?» «É verdade»,
acabou por ter de admitir

930
Eochaid,

Então Mider voltou-se para


Etaine. «Mulher», disse-lhe
ele, «é verdade que me
acompanharás, se o rei
supremo da Irlanda o
consentír?» «Sim»,
respondeu Etaine. «Eu
prometi~to.» «Mas eu não ta
entrego!», gritou Eochaíd
furibundo. «Cometes
perjúrio», disse Míder, «e
todos os homens da Irlanda
são testemunhas de que não
tens palavra.» «Apenas
consinto que tomes Etaíne
nos braços e lhe dês três
beijos», disse Eochaid. «Farei
então como dízes», disse
Mider.

Míder segurou as armas com


a mão esquerda e, com a
direita, envolveu a cintura de
Etaine e deu-lhe três beijos.

931
Depois, sem pronunciar uma
palavra, fê-la passar por um
orifício do tecto

desapareceram na noite.

Os guerreiros que rodeavam


por não terem podlíi-

indo

932
pertence às tribos de Daria»,
alguém disse, «e as tribos de
Dana vivem c,

nos oute,
iou-se com a

iros da Irlanda. Com certeza


ele refúgi rainha
no outeiro mais próximo.»

Eochaid partiu então, com a


elite dos homens da Irlanda,
para o outeiro mais próximo de
Tara, do lado oeste, o de Bart
Finn. Quando aí chegaram, o
rei ordenou que se escavasse
o solo do outeiro até se
conseguir desalojar os
fugitivos. Escavou-se toda a
noite, vasculharam-se os mais
recônditos recantos do
outeiro”’, mas não se
encontrou nada nem ninguém,
pois os homens das tribos de
Dana tinham o poder de se

933
tornar invisíveis àqueles que
não eram do seu povo. Mas,
de manhã, viram aproximara-
se uma mulher já velha. «Que
procurais vós aqui, homens da
Irlanda?», perguntou ela.
«Procuramos Etaine, a mulher
do rei da Irlanda, que acaba de
ser levada», responderam
eles. «0 homem que foi
encontrar-se convosco e que
levou a vossa rainha não é
daqui», respondeu ela. «Se
desejais encontrá-lo, deveis
dirigir-vos para a resídência
de Bri Leith.»

Rumaram para norte e, ao


entardecer daquele dia,
chegaram ao outeiro de Bri
Leith. Escavaram o solo toda a
noite e de manhã perceberam
que todo o esforço tinha sido
em vão. Apesar disso,
voltaram a escavar durante
todo o dia, e, quando o sol já

934
declinava para o horizonte,
viram dois cisnes brancos
que, lado a lado, se erguiam
no céu, Por um instante os
pássaros sobrevoaram as
suas cabeças e depois,
rumando a norte, perderam-se
na bruma.

A partir deste tempo distante,


quando a tarde cai e uma
bruma leve sai das turfeiras,
ouve-se muitas vezes o canto
dos dois cisnes brancos que
nadam à superfície das águas
calmas de um lago ou de um
rio. Têm um canto tão
harmonioso que é impossível
reter as lágrimas ao ouvi-]o,
pois é a música das fadas que
se eleva no ar por entre os
últimos raios de sol. Quando
menos se espera, vê-se os
dois pássaros levantar voo,
sobrevoar por um breve
instante na bruma, e

935
desaparecer. E todos sabem
que é Etaine, a bela rainha de
Tara, que, na companhia

1. É preciso ter em conta que


o nome gaélico «Airem»
significa «aquele que
trabalha», «aquele que
escava o solo». Este facto não
é certamente casual, e sabe-
se que numerosos cairns
megalíticos foram destruídos
por sucessivas gerações de
agricultores. Por outro lado,
uma das versões da lenda
defende que Eochaid Airem foi
o primeiro irlandês a meter um
jugo nos bois para os fazer
puxar a charrua.

de Mider de Bri Leith, rei das


Sombras, vai percorrer o
céu sobrevoando a Ilha
Verde em direcção ao país
da Eterna Juventude, aí o
e frutos

936
sdeurcaonntehetcedoaotriasn
toezlla1 nem a dor e onde as
árvores têm flores nde
não

1 Síntese de quatro
narrativas, todas intituladas
Tochmarc Etaine (Courtise
d’Etaine), conservadas no
Livre de ia Vache Brune
(Leabhar na hUidré),
manuscrito do fim do século
XI, no Livre Jaune de Lecan,
manuscrito do século xiv, e
no manuscrito Egerton 1782,
Textos publicados em
diversas obras,
nomeadaniente por Best e
Bergin, em Eriu, vol. XII, com
tradução inglesa. Tradução
francesa de Ch.4.
Guyonvarc’h

iriandais, Rennes, 1980


em Textes mYthologiques .
Análise de J, Markale,

937
L’Épopée celtique d’Iriande,
Paris, 1994. A personagem de
Etame simboliza a soberania
da Irlanda, e aparece nas
narrativas rrijtologicas e
épicas com numerosos
nomes, tais como Ethné (mãe
de Lug), Tailtiu (mãe adoptiva
de Lug), Banha, Fothla, Eriu e,
mais tarde, no ciclo do Uster,
com o nome da célebre
Deirdré.

938
Outra obra de,fean Markale
publicada pela ÉSQUILO:

0 CRISTIANISMO CELTA

e as suas sobrevivências
populares

Comoforam os celtas
cristianizados?

0 que é que sobreviveu da


antiga religião druídica?

É respondendo a estas e
outras interrogações que Jean
Markale analisa este
fenómeno histórico
apaixonante que foi a
emergência do cristianismo
celta. Nascido na Bretanha, na
Irlanda e na ilha da Bretanha
de uma fusão entre o
druidismo e o cristianismo,
esta espiritualidade aceita a
mensagem de Cristo

939
conservando ao mesmo
tempo muitas das
características da tradição
céltica: Monaquismo, santos
heróicos, integração das
mulheres no culto, bispos
errantes, peregrinações pro
amore Dei...

Ainda hoje, nas zonas rurais -


essencialmente na Bretanha -
Jean Markale tem descoberto
sobrevivências populares
deste cristianismo celta no
culto dos santos, assim como
nas festas tradicionais e nos
santuários.

Combatido pela Igreja de


Roma - foi mesmo, por vezes,
considerado herético - o
cristianismo celta influenciou
profundamente o conjunto do
cristianismo e constitui uma
chave fundamental para
compreender o «cristianismo

940
português».

N’ DE PÁGINAS: 248 -
FoRmATo: 16X23 Cm -
PREÇO: 17,5

941

Você também pode gostar