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CELTAS
Primeira época
OS CONQUISTADORES DA
ILHA VERDE
A PUBLICAR:
Segunda época
OS COMPANHEIROS DO
RAMO VERMELHO
Terceira época
Quarta época
Os TRIUNFOS DO REI
ERRANTE
Quinta época
1
OS SENHORES DA BRUMA
INDICE
PREFÁCIO –
Nas fronteiras do real
7 PRELUDIO –
0 homem dos tempos antigos
I - NAS BRUMAS DA
AURORA
II - AS TRIBOS DE DANA
III - LUG Do BRAÇO LONGO
IV - A GRANDE BATALHA DE
MAG-TURED
V - A VINGANÇA DE LUG
VI - Os FILHOS DE MILÉ
VII - 0 ESTRANHO DESTINO
DOS FILHOS DE UR
VIII - AS ATRIBULAÇÕES DO
JOVEM ANGUS
IX - DEMÔNIOS E
MARAVILHAS
X - POR AMOR A FINNABAIR
XI - A TERRA DAS FADAS
..............
2
XII - ETAINE E o REI DAS
SOMBRAS
LAMARTINE, 0 Lago
A identidade e a
especificidade de uma
civilização, seja ela antiga ou
moderna, só se tomam
reconhecíveis no caso de nela
se encontrar uma tradição
transmitida de geração em
geração e que lhe sirva de
testemunha essencial. Esta
3
tradição agrega a memória de
um povo ou de um grupo de
povos que vivem em
condições equivalentes ou, no
mínimo, semelhantes, e pode
manifestar-se de modos muito
diversos, desde os simples
costumes até especulações
filosóficas muito complexas.
Mas, na história da
humanidade, sempre se
privilegiou a escrita, por esta
ser o meio mais seguro e mais
fiel de conservar a memória do
passado. Assim se explica
que a Grécia seja o país de
Hesíodo, Homero, Ésquilo,
Heródoto e Platão, apesar de
termos aprendido na escola
que a escultura ocupa um
lugar privilegiado na
civilização que, segundo se
diz repetidamente, constitui
um milagre sem o qual nada
teria sido possível.
Assim, no caso dos gregos,
4
não se coloca a questão de a
sua identidade cultural ser
reconhecida, pois eles
deixaram um número
suficiente de obras escritas
para que possam integrar-se
entre os chamados Povos
«civilizados». Mas o que dizer
dos outros povos que, por uma
qualquer razão, não
conheceram a escrita ou
nunca a utilizaram?
Antigamente, devido à crença
ria «mentalidade pré-lógica»,
tão cara à escola sociológica
francesa do início do século
XX, rejeitava-se uma cultura,
que não tivesse escrita, por
ser considerada incerta,
incoerente e Primitiva. Esta
ideologia (palavra que se
aplica, sem dúvida, a essa
crença), foi a concretização de
um sistema construído sobre a
universalidade de uma Razão
única que justificava qualquer
5
ato de colonização, cultural ou
outra, e de missão,
fossem quais fossem as
intenções; ela privou a
humanidade durante muito
tempo de uma importante
parte de si mesma, pois
rejeitava, sem apelo nem
agravo, tudo o que não
pertencesse às normas em
uso num sistema imutável e
incontestável. Não interessa
se tratava de ignorância ou de
desprezo pela diferença, pois
a verdade é que já se
ultrapassou essa fase, Já
ninguém hoje duvida que Os
construtores dos megalíticos,
que viveram do V ao 11
milênio antes da nossa era, e
de quem não se conhece nem
o nome nem a língua, foram
extraordinários artesãos de
uma civilização brilhante que
ocupou uma grande parte da
Europa, tendo nela deixado
6
marcas indeléveis. Em termos
de obras escritas, apesar
disso, nada deles chegou até
nós. Deles ficaram apenas
monumentos, assim como
misteriosos símbolos
gravados na pedra, os quais,
por terem um conteúdo mais
mágico do que escrito,
testemunham sem dúvida não
apenas um sentido de arte
apurado, mas também um
pensamento muito organizado
e quase científico. Acontece
entretanto que o estudo
destes símbolos e da
arquitectura
extraordinariamente complexa
destes monumentos, a análise
e a comparação dos diversos
objetos arqueológicos
contemporâneos, permitem
que se reconstitua a partir de
agora, mesmo que de forma
incompleta e conjuntural, uma
certa tradição característica
7
da civilização dita megalítica.
8
testemunhos orais que
estavam em risco de
desaparecer e que foram
salvos do esquecimento.
Deste modo, dispomos de
testemunhos que, apesar de
incompletos e deformados,
nos transmitem os vestígios
da alma dos povos celtas.
Mas, na verdade, quem foram
realmente os celtas?
A verdade obriga a que se
diga que sobre eles muito
pouco se sabe.
0 certo é que não os podemos
considerar um grupo racial ou
étnico delimitado, tão vasto e
impreciso é o seu campo de
ação, e tão confusa e
contraditória é a morfologia
daqueles a quem se chamou
celtas, os quais tanto incluem
morenos troncudos e baixos
como louros altos e de olhos
azuis. Será mais prudente
falar-se deles enquanto um
9
povo que fala a língua céltica.
Também é preciso fazer
algumas distinções. Os
cimbros e os teutões, que
foram exterminados por
Marius e os romanos, eram
sem dúvida de origem
germânica, embora tivessem
nomes celtas: Cimbros é o
combroges gaulês, querendo
dizer «do mesmo país» (e que
deu o galês C-vmri); os
teutões provêm de uma raça
celta de onde saiu o irlandês
tuath, «tribo», e que se
reconhece no nome do deus
gaulês Teutatès (ou Toutatis),
literalmente «pai do povo», e
no termo genérico atual
deutsch, «alemão», o que não
deixa de ser algo paradoxal.
Quanto aos celtas da mesma
época, existe outra
dificuldade: a maior parte
deles já não fala uma língua
céltica, como o comprovam
10
certos bretões armoricanos
(da Alta Bretanha), nove em
cada dez irlandeses, para
além dos gauleses e de outros
povos europeus outrora
classificados como celtas ou
que estiveram sob o domínio
celta. Além disso, os autores
da Antiguidade clássica não
estavam mais elucidados do
que nós a este respeito,
confundindo com facilidade
celtas e germânicos, ou então
fazendo dos primeiros uns
vagos «Hiperbóreos», ou
mesmo «Cimérios» que
viviam num universo sombrio
nas fronteiras de Outro
Mundo. A verdade é que os
celtas, cuja existência não se
pode contextar, constituem
uns povos quase míticos, ou
pelo menos mitológico Esse
fato também se explica
largamente pela propensão
dos celt, para confundirem
11
intimamente o real e o
imaginário e, assim y
começaram a fixar a sua
história, para a inventarem
deliberadamente em função
dos seus mitos fundadores.
0 certo é que os gauleses da
Alésia ficariam muito
surpreendid se lhes
chamassem celtas.
Naturalmente, o termo Keltoi
existia há m to tempo, mas era
grego e fora utilizado pelos
historiadores gregos 1
necessidade de classificação,
Ora, os gauleses já não se
sentiam à v tade ao serem
considerados gauleses, como
o provam as dificulda
12
de Vércingétorix e as
acrobacias oratórias a que
teve de recorrer no seu
discurso de Bibracte (monte
Beuvray), em 52 antes da
nossa era, para tentar
assegurar uma coesão
«patriótica» ou «nacional» na
coligação de povos que
tinham pegado em armas
contra os romanos. Um gaulês
era antes de mais membro
dum «povo», duma «tribo»,
portanto duma tuath, e nada
mais lhe interessava para
além disso. E foi sempre
assim: «Nem os irlandeses,
nem os galeses, nem os
baixo-bretões da Idade Z:
13
Cornualha e os bretões, tem
por base a semelhança das
línguas primitivas faladas por
estes povos e um vago
parentesco étnico.»”’ Esta
constatação continua válida e
mostra bem as dificuldades
que se podem encontrar
quando se tenta definir os
celtas, a sua tradição e a sua
civilização.
14
um papel fundamental.
Chamou-se a este período
Primeira Idade do Ferro, ou
Civilização de Hallstatt, nome
de uma estação arqueológica
austríaca. É realmente
verosímil que o domínio
primitivo dos ceitas, dividido
em principados
independentes,
fabulosamente ricos e
requintados como no-lo
provam os móveis funerários
dos tumulí, se estendia ao
norte dos Alpes, entre os
montes da Boémia e o Harz,
prolongando-se até ao sul do
Danúbio. Actualmente existe
um consenso quanto ao facto
de ter sido a partir desta região
que os denominados povos
celtas começaram as suas
migrações, dirigindo-se
sobretudo para ocidente, em
vagas sucessivas, talvez
desde o fini da Idade do
15
Bronze, ou seja, entre 900 e
700 a. C.
16
va os valores da «raça» celta
moria, preconiza
17
povos indo-europeus. Aqui,
mais uma vez, é necessario
precisar este termo, que só
pode designar agrupamentos
humanos que falavam uma
língua comum - ao menos na
origem - e que possuíam
técnicas e estruturas sociais
idênticas. É esta a única
acepção possível do termo,
com excepção de todas as
outras que incluem uma
noção de raça. Assim que se
instalaram no triângulo
BoémIa-Áustria-Harz, os
celtas primitivos, ou por causa
da superpopulação, ou porque
estavam ameaçados por
outros emigrantes vindos de
leste, ter-se-lam dirigido para
ocidente a fim de descobrirem
novos territórios onde se
pudessem estabelecer. Este
facto nada tem de
extraordinário e é comum a
muitos outros povos ao longo
18
da História, explicando que
todos os celtas, hoje tão bem
enraizados na Europa
ocidental e no extremo do
Ocidente, atravessaram o
Reno antes de se instalarem
nos países cuja História os
reconheceu.
Graças ao estudo da
distribuição das estações
arqueológicas e da sua
datação e tendo em
consideração marcas
toponímicas e raros vestígios
epígráficos, é possível
afirmar-se que o fluxo
migratório dos celtas para a
Europa ocidental ocorreu em
dois períodos bem distintos. 0
primeiro, cronologicamente,
situa-se na chaineira das
Idades do Bronze e do Ferro e
engloba um grupo de povos
que falavam uma língua
céltica ainda próxima do indo-
19
europeu comum, a qual,
através de diversos
arcaísmos, chegou aos
nossos dias encontrando-se
no gaélico da Irlanda, da ilha
de Man e da Escócia. Deu-se
a este ramo o nome de
goidélico ou gaélico, ou então
de celtas com Q pois eles
conservaram, tal como o latim,
o uso do som Q indo-europeu
primitivo (por exemplo,
«cmco» do lati. quinque, diz-
se coic em gaélico). 0 segundo
fluxo migratório ocorreu
1 1 ima depois do
ano 500 a. C., através de
vagas sucessivas, tendo sido
a últi
20
britónico, pois ’
aleses, o% os antigos bretões
insulares cujos actuais
descendentes são os 9
habitantes da Cornualha e os
bretões armoricanos. No
plano linguístico, classificam-
se estes povos como celtas
com P, porque os seus
diversos
21
componentes transformaram,
tal como os gregos, o Q
primitivo indo~europeu em
som P, como o mostra o
mesmo exemplo de «cinco»
que se diz pemp em galês e
bretão, e pente em grego.
22
Estes famosos celtas, fossem
quem fossem, não eram
numerosos, constituindo
apenas uma elite guerreira,
técnica e intelectual. Ora, os
países onde eles se fixaram
eram habitados por
populações de que nada se
conhece, mas que, com
certeza, não foram
inteiramente aniquiladas pelos
seus dominadores. Bem pelo
contrário, os celtas tinham
necessidade de mão de obra,
ou seja, de escravos. Fizeram
por isso um esforço no sentido
de dominar as populações
autóctones, celtizando-as, ou
seja, ensinando-lhes a língua
e transmitindo-lhes os
costumes, a técnica e a
religião, o druidismo que era
comum ao conjunto dos
grupos ditos celtas. Além
disso, os celtas impuseram-
lhes as suas estruturas sociais
23
indo-europeias, o seu modo
de vida e o seu modo de
pensar. A partir daí o próprio
tempo se encarregou de fazer
a sua obra inelutável de
assimilação, tomando-se os
autóctones os novos celtas ao
mesmo tempo que os
primeiros celtas não deixavam
de ser modificados pelas
populações indígenas. Este
processo de interacção -
extremamente vulgar -
contribuiu para a formação do
que hoje se chama civilização
celta.
24
ocidente, o que explica a
especificidade da Irlanda,
isolada nos limites extremos
do mundo antigo, e tendo
conservado, mais do que
qualquer outro país de
dominação celta, as tradições
mais arcaicas e reveladoras.
«As descobertas
arqueológicas sugerem que
os celtas chegaram à Irlanda
vindo da Grã-Bretanha,
podendo ser traçada a sua
rota através de Cumberland C
de Wigtownshire até se
chegar ao nordeste do
Ulster».”) É esta a opinião
25
Gália. No fundo, as duas teses
não são contraditórias, pois
pode ter havido diversas
migrações como, de resto, os
irlandeses da Idade Média
deferidiam quando
procuravam reconstitu,r as
idades mais recuadas da sua
história. 0 Importante é saber
que os dois ramos, o gaélico e
o brflonico, coexistiram
durante multo tempo até se
diluírem separadamente na
História moderna, depois de
terem tido uma origem
comum.
26
partida. Esta selva pode ser
identificada com o que se
chama a Tradição, ou seja,
com o que é transmitido de
geração em geração para que
cada unia destas possa
conservar o sentido de uma
certa identidade e os meios de
a exprimir através das
sucessivas etapas da história.
27
responsável pelo seu
enquadramento.
Naturalmente, pode-se
lamentar que a falta de escrita
seja responsável por não
haver testemunhos essenciais
para o conhecimento da
antiga cultura celta; mas esta
não-utilização da escrita,
longe de atestar uma qualquer
espécie de incapacidade,
resultou duma escolha
deliberada das elites celtas,
dos chamados druidas, que
eram simultaneamente
sacerdotes, filósofos,
historiadores, poetas e
mágicos. Júlio César foi muito
claro a este respeito: «Os
druidas, diz ele, acreditam que
a religião não lhes permite
escrever a matéria dos seus
ensinamentos ( ...) pois
não querem que a sua
doutrina seja divulgada nem
que, por outro lado, os seus
28
alunos, fiando-se na escrita,
negligenciem a memória». (De
bello gallico, VI, 14). Eis a
razão pela qual os discípulos
dos druidas aprenderam,
durante uma vintena de anos,
milhares de versos que
resumiam, de forma
irmernotécnica, o conjunto da
tradição celta.
29
detalhes preciosos (V, 29 e
31): «Antes de cada batalha,
eles cantam os feitos dos seus
antepassados e exaltam as
suas próprias virtudes,
enquanto insultam os
adversários Eles
exprimem-se por enigmas (
... ) e usam bastante a
hipérbole.» 0 latino
Pomponius Mela observa que
«estes povos possuem uma
eloquência muito própria»
(111, 2); quanto ao poeta
Lucano, este apostrofa os
poetas gauleses nestes
termos, na Pharsale (1, v, 50
sqq.): «Vós cujos cantos de
glória lembram, ao futuro
longínquo, a memória dos
fortes antepassados
desaparecidos em combate,
bardos, vós dais largas sem
medo à vossa veia fecunda!»
Enfim, se fosse necessário um
reconhecimento quase oficial,
30
poderíamos encontrá-lo no
historiador grego Poliffio,
apesar de tudo, muito
prudente nos factos a que se
refere. Depois de ter pintado
um quadro dos povos
gauleses da Cisalpíria, afirma
convictamente (11, 17) que
«os autores de histórias
dramáticas contam a seu
respeito lendas
maravilhosas».
31
mais próximos da lenda do
que da história e parecem
inspirar-se directamente num
fundo tradicional veiculado
pelos próprios gauleses, fundo
esse que ele conhecia muito
bem. «A história das guerras
gaulesas, diz Henri Hubert é
extremamente singular,
fabulosa e épica.»1’1 E, a este
respeito, Camille Jullian, faz
notar precisamente que «a
derrota dos romanos, diz
claramente Tito Lívio, deveu-
se ao pavor mágico
(miraculum) que lhes inspirou
o grito de guerra dos celtas. As
narrações de Tito Lívio, de
Apio e de Plutarco, cheias de
cor e de pormenor, precisas,
com um extraordinário humor
religioso e muito favoráveis
aos celtas ( ... ),
sempre me pareceram
inspiradas em parte em
alguma epopeia gaulesa».`I
32
Trata-se realmente de uma
epopeia. A definição clássica
do termo, «narrativa poética
de feitos heróicos», não nos
impede de acrescentar que o
gênero se refere sempre a
factos de um passado
longínquo, que na sua maioria
não podem ser confirmados,
mas que fazem parte da
memória colectiva de um povo
ou de qualquer grupo social. A
epopeia gaulesa assinalada
por Camille Jullian e
conservada por Tito Lívio na
33
antes do âmbito da tradição.
Quererá então isto dizer que a
tradição celta, por estar
inscrita no quadro de uma
civilização que rejeitava a
escrita, só pode ser conhecida
através de outras civilizações?
Assim parece ser, pois a
epopeia gaulesa em questão
só chegou até nós graças aos
documentos escritos -
pretensamente históricos -
que os gregos e os latinos
consagraram às guerras
travadas por Roma contra os
habitantes da Cisalpina e às
expedições celtas nos
BalcãsY1 0 mesmo acontece
com a epopeia bretã (ou seja,
da Bretanha insular) à volta do
fabuloso rei Artur: as supostas
aventuras deste e dos seus
cavaleiros, as peripécias da
conquista do Graal, todas as
matérias que actualmente se
consideram de origem celta,
34
só chegaram ao nosso
conhecimento, com a
excepção de alguns textos
gauleses, graças a versões
redígidas em línguas não
célticas - nomeadamente o
francês (dialecto anglo-
normando), o inglês e o
alemão. Daqui resulta uma
situação no mínimo
paradoxal.”)
35
equívocos e todas as
censuras que isso implica,
pode suscitar algumas
dúvidas e, no mínimo,
legitimar alguma reserva.
1. Estudei em pormenor as
36
circunstâncias destas
epopeias meio-históricas,
meio-lendárias, e a sua
difusão em dois capítulos
Rome et Uepopéc celtique,
Delphes el raventure celtique,
do meu livro de síntese sobre
Les Celtes et Ia civilisalion
celtique, Paris, Pay01, 1969.
reimpresso em 1992.
2. Poderiam encontrar-se
pormenores complementares
acerca deste assunto nos
meus estudos sobre 0 rei Artur
e a sociedade célíica, Paris,
Payot, 1976, reimpresso em
1994, e Merlin L’Enchanteur,
Paris, Rctz, 198 1, reimpresso
Albm Michei, 1992. A questão
é iam-
37
Graal, Paris, Pygmalion, 1992-
1995, e é muito comentada na
minha Pequena Enciclopédia
do Graal, Paris, Pymalion,
1997.
38
latino que expressa bem a
ideia que quer transmitir,
secundum Johannen (ou
Marcuni, ou Lucam, ou
Mattheum). A palavra
secundum. nunca quis dizer
«por», C a tradução francesa
oficial, «selon» [segun-
39
tradição oral com origem na
noite dos tempos. Ninguém
hoje em dia acredita que A
Il(ada e A Odisseia são obras
do mesmo autor e que este,
Homero Do caso, foi
testemunha dos
acontecimentos que relata.
Estas duas obras não pas sam
de duas versões tardias de
lendas orais que dizem
respeito a deuses e a heróis
da Grécia antiga, e é por isso
mesmo que elas são apaixo
nantes, pois testemunham
irrefutavelmente um passado
que, sem elas, teria
mergulhado nas brumas do
esquecimento.
40
1 ica expressa numa
língua Já clássica, e colocada
ao dispor de um público que
Já não era contemporâneo do
descrito. 0 mesmo se passa
com as epopeias celtas.
0 facto de elas terem sido
escritas depois de os factos
terem ocorrido (se é que estes
são reais, o que está longe de
ser provado), ou de eles terem
sido posteriormente
manipulados, não significa de
modo nenhum que a tradição
que veiculam Dão seja
autêntica. Com efeito, quando
se falia de epopeia., o
problema da autenticidade
nunca se deveria colocar, pois
ela desemboca
necessariamente num não-
senso: neste domínio, nada é
verdade ou falso e tudo existe
na forma imaginada,
simbólica, codificada,
testemunhando a realidade
41
profunda de uma civilização.
42
do século VII da nossa era que
os monges irlandeses
começaram o seu paciente
trabalho de passar para a
escrita a tradição oral gaélica
que naquela época ainda era
a deles.
43
à escrita uma Ilusão de
permenciiodàdmeuiNtoemant
oess Idiveraosi,mnpermenosa
ter vindo dar s pergaminhos ou
os papéis velino estão imunes
à degradação. Quando os
monges
as grandes epope as do
passado, irlandeses passaram
para a escrita c, 1
44
que e e
asdsaapstcçóãpoia,
sdcotrmapnsoprtoasmiÇ,ãqou
,er sejam de erro e de ou
tenham a ver com
simplifi.cação como de
istem. o propno conteúdo, que
é o mais importante, é óbvio
que eles exi
45
1160, que se encontra no
Triníty College de Dublin; e por
fim o manuscrito dito
RawIinson B 502, também do
século XII, guardado na
BodIeian, Library de Oxford.
os três possuem o que existe
de mais antigo e importante na
tradição gaélica. Contudo, a
Irlanda continuou a recorrer
aos manuscritos não apenas
durante a Idade Média, mas
também no decurso do que se
chama Tempos Modernos,
isto sobretudo com o objectivo
de divulgar as obras em
gaélico, que tinham estado
proibidas ou, no mínimo,
escondidas pelo ocupante
inglês. 0 nosso conhecimento
da epopeia irlandesa pode ser
assim enriquecido graças a
um grande número de outros
preciosos manuscritos.
Mencionemos
46
Z:I ulo
XV (Trinity
Collenomeadamente o Livre
jaune de Lecan, do séc
47
my), o Livre de Lismore, do
mesmo século, actualmente
na posse de particulares, sem
esquecer o Livre de Fermoy,
do século X1V, mais
especializado nos textos
religiosos cristãos. Outros,
menos importantes, revelam-
nos verdadeiras pérolas raras.
Ao todo são uma centena,
estando a maior parte deles
guardada na Royal Iristi
Academy. Só nos podemos
maravilhar quando
comparamos esta abundância
com a pobreza dos raros
manuscritos galeses e à
inexistêncía dos manuscritos
bretões anteriores ao século
XVI. Se não fosse a Irlanda,
nada conheceríamos da
antiga epopeia dos Celtas.
48
simples: «Colecções muito
variadas de narrativas em
prosa e em verso, tanto
sagradas como profanas
versando lendas, história e a
hagiografia, poesia bárdica e
lírica, tratados médicos e
jurídicos, tudo em gaélico
antigo, médio ou moderno,
sem ter que haver a
preocupação da classificação.
»(’) 0 que é admirável é a
mistura, numa mesma
narrativa, da prosa com a
poesia. «Os trechos em prosa,
cuja extensão depende dos
manuscritos, parece que
foram a princípio simples
esboços sobre os quaís o
ímprovisador podia criar à sua
vontade; à medida que os
poemas Iam desaparecendo,
esses trechos iam tomando o
seu lugar.» (2) Estes esboços
são bem demonstrativos de
urna época em que a escrita
49
estava proibida pelos druidas,
transmitindo-se a tradição
oralmente por meio de versos
que os aprendizes estudavam
ao longo de vinte anos,
podendo enriquecer as suas
narrativas quando o
Julgassem útil. Além disso, na
maior parte das vezes, os
trechos em verso das
narrativas épicas estão
repletos de arcaismos que em
alguns casos as torna
incompreensíveis embora
estes últimos comprovem a
sua antiguidade. Considera-se
que todas estas narrativas são
reactuallzações de contos
tradicionais que remontam ao
fundo dos tempos. 0
fenómeno é muito particular
na Irlanda, pois, no País de
Gales poucos trechos em
verso subsistiram nas
narrativas em prosa e, na
Bretanha armoricana, apenas
50
algumas canções dramáticas,
os gwerziou, sobreviveram à
turbulência da história e
lembram de algum modo as
grandes epopeias que deviam
ser cantadas pelos bardos de
outros tempos.
51
conhecido apresentam-se
nunia forma elaborada e
completa: é o que acontece
com a célebre Razzia des
Boeufs de CuaIngé,
verdadeiro monumento
literário que muitas vezes é
comparado à Il(ada e que está
centrada no temível guerreiro
Câchulaínn. Este é também o
herói de muitas outras
histórias episódicas, o que
acontece igualmente com a
maioria dos actores, sejam
«deuses», «demónios»,
humanos ou seres mágicos.
DiT-se-ia que as personagens
das epopeias eram sobretudo
símbolos pré-existentes a
todas as narrativas
organizadas, esforçando-se
por lhes revelar a sua
significação profunda ao
emprestarem-lhes aventuras
pretensamente históricas.
Esta tendência, que parece
52
fundamental em todos os
celtas, contradiz formalmente
a tese de Evhérnère, segundo
a qual os deuses não passam
de humanos divinizados. Com
efeito, sobretudo nas
narrativas que se podem
classificar como mitológicas,
os deuses aparecem
nitidamente inseridos na
história, devido a esta não
estar assente em nenhum
acontecimento real. Aqui se
encontra outra característica
dos celtas: quando ignoram a
história do seu passado ou a
esqueceram, inventam-na.
Pode mesmo chegar-se mais
longe. quando eles não estão
satisfeitos com a hi stória
vivida, negam-na e criam
outra, mais de acordo com a
sua mentalidade. Nos celtas, é
extremamente evidente a
predon-únâncía do mito sobre
a realidade quotidiana.
53
Mas o que atrás foi dito não
deve ser classificado de
acordo com os padrões
habituais. As epopeias
irlandesas apresentam uma
desordem s mi ológicas
reapaque faz lembrar uma
bruma artística. As
personagen it
54
realidades escondidas.
Neste caso, o real, que serve
de base a qualquer narrativa
verosímil, aparece como
transcendido, como um
autêntico surreal, um mundo
do pensamento interior, à
imagem do universo do sidh,
ou seja, do Outro Mundo, que,
segundo a crença irlandesa,
se encontra no interior de
grandes túmulos megalíticos
onde vivem deuses e heróis.
Estes túmulos abrem-se
durante a festa de Samain
(noite de Toussaint), o que
permite a interco-
55
municação entre os dois
mundos. 0 que há de mais
Datural? Não há maravilhoso
na epopeia celta, apenas há
fantástico. Com efeito, é o real
que, passando por sucessivas
metamorfoses, se torna
fantástico.
Comportamentos estranhos,
cenários surrealIstas,
desordem do conteúdo e da
forina, são algumas
características da epopeia
primitiva dos celtas, em
particular da que os gaélicos
da Irlanda quiseram transmitir
a posteridade. Esta desordem
não pode deixar de
surpreender quem vive ainda
à sombra - e ao abrigo - da
tranquilizante lógica
aristotélica bascada no
verdadeiro e no falso. Mas os
celtas nunca conheceram
Aristóteles nem quiseram
56
alguma vez obedecer aos
seus apelos ao senso comum,
tendo preferido permanecer
na dialéctica pré-socrátca
anterior ao milagre grego, e
defender, como o fez
Héraclito, que «os mesmos
caminhos que fazem subir
fazem também descer». Não é
um paradoxo mas uma pura
verdade lógica demonstrar
que qualquer juízo humano
depende do seu sistema de
referência, por outras
palavras, da polaridade da
acção, tudo dependendo do
que se entende por «alto» e
por «baIxo». Além disso, os
latinos, apesar de
considerados lógicos,
empregavam o mesmo termo,
altus, para classificar a altura
e a profundidade, o que
parece ter caído no
esquecimento. Quanto à
desordem surpreendente da
57
epopeia celta, esta não passa
de uma aparência
enganadora: os poetas e os
contadores irlandeses sabiam
muito bem o que estavam a
fazer, pois alguns deles
reconstituíram o plano de
conjunto a partir de contos
mitológicos desordenados ou
em forma de fragmentos,
procedendo assim do mesmo
modo que um Chrétien de
Troyes e outros autores
franceses da Idade Média
que, através de contos
arturianos aparentemente
desprovidos de continuidade,
escreveram e prolongaram a
grande epopeia do Graal e da
Távola Redonda. Com efeito,
as epopeias irlandesas
formam um ciclo
perfeitamente coerente que,
não sendo sempre de fácil
discernimento, aparece no
entanto como um esquema de
58
um extraordinário rigor.
59
valor imenso pois permite que
se tenha uma ideia mais
aproximada do encadeamento
das diversas narrativas cujo
objectivo era refazer a história
da Irlanda de modo a
acentuar~lhe a
especificidade e o valor.
Assim se explica que
apareçam diversas
referências bíblicas, sentindo
os irlandeses a necessidade
de se agarrarem a uma filiação
honrada e quase divi-
60
Brutus era um descendente de
Eneida, e por isso de essência
troiana e divina. Como é
evidente tomavam-se os
desejos por realidades, ao
mesmo tempo que se
conciliava a tradição druídica
pagã com a tradição judaico-
cristã passando pelo Egipto e
pela Grécia. 0 mesmo
acontecerá alguns séculos
mais tarde com a História da
Irlanda de Geoffroy Keating
que, escrita cerca de 1640 e
retomada em diversos
manuscritos, só foi impressa
em 1723 através de uma
tradução inglesa. Tanto o
Livro das Conquistas como a
História da Irlanda estão
repletos de testemunhos da
antiga epopeia celta, que
desafia o tempo e o espaço.
61
a realidade histórica, não
deixa de o ser também que
contêm numerosos elementos
filosóficos e metafisicos,
assim como reflexões
sociológicas, que os
antropólogos modernos não
desdenhariam. Assim, a
enumeração e as
características dos diversos
povos que ocuparam a Ilha
Verde - Ou seja, a Irlanda -
desde o dilúvio são muito
esclarecedoras. os primeiros
invasores, a tribo de
Partholon, são de um tipo que
se pode classificar como
vegetativo, preocupando-se
unicamente em sobreviver,
abrigar-se e procriar, imagem
esta que corresponde, numa
perspectiva simbólica, ao que
existe de mais primário na
civilização, Os segundos
invasores são membros da
tribo de Nemed: ora, o nome
62
nemed significa «sagrado», o
que indica desde logo,
claramente, uma reflexão
metafisica ou religiosa numa
sociedade que até então só
tinha preocupações materiais.
Os terceiros invasores são os
Fir Bolg: também neste caso o
nome é significativo, pois fir
quer dizer «homens» (vide o
latim vir) e bolg tem uma raiz
indo-europela que também
deu em latim.fulgur,
«trovão».”’ Como é óbvio, os
Fir Bolg são sobretudo
ferreiros, mestres do fogo e
inventores de técni-
63
«homens-sacos».
64
cas artesanais novas,
destinadas à guerra ou a
trabalhos agrícolas.
Os quartos invasores da
Irlanda são os famosos
Tuatha Dê Danann, as «Tribos
da deusa Dana», deusa-mãe
cujo nome está associado a
numerosos termos vizinhos do
Médio Oriente, em particular
Tana:it, ou também Anáta,
assim como a rios como o Don
e o Dantibio (Tanaüs).
Segundo a tradição, essas
tribos vieram «das ilhas do
norte do mundo», tendo
introduzido na Irlanda a
ciência, a magia e o druidismo.
Elas são por isso detentoras
de uma sociedade fortemente
hierarquizada à maneira indo-
europeia, baseada em
princípios mais ou menos
teocráticos e onde predomina
uma organização sacerdotal.
65
Além disso, os heróis dos
Tuatha Dê Danann são as
antigas divindades do
druidismo celta triunfante.
Os quintos conquistadores da
lha Verde são chamados, nas
narrativas, «Os filhos de
Milé», ou os «milesianos»,
surgindo do Oriente e
passando por Espanha.
Correspondem precisamente
aos Gaélicos e representam a
sociedade irlandesa
tradicional, tal como a
descobriram os primeiros
missionários cristãos, e tal
como ela era ainda quando da
chegada dos
Anglo~Normandos de
Henrique 11 Plantageneta,
apesar de uma cristianização
que tentara substituir os
druidas pelos padres, os
abades e os bispos junto dos
chefes dos clãs e das tribos.
66
Esta invasão dos milesianos
corresponde ao nascimento
duma sociedade baseada no
equilíbrio entre as duas forças
que a compõem, a política (os
gaélicos) e a religiosa (os
druidas, portanto os Tuatha
Dê Danann). Esse equilíbrio
deriva de, após o triunfo dos
Filhos de Milé sobre os
Tuatha, estes não se terem
deixado eliminar e, segundo
um acordo solene, terem
ficado na posse dos ttimulos e
das ilhas maravilhosas que
rodeiam - miticamente - a
Irlanda, enquanto os gaéllcos
ocuparam a superfície da ilha.
Graças à Incontornável
colaboração entre o druida e o
rei, absolutamente
indispensável para que
qualquer grupo possa
subsistir, a estrutura da
sociedade celta é um
verdadeiro modelo de
67
harmonia entre o mundo
visível e o invisível.
habitando em ilhas
longínquas, têm numerosos
68
pontos em comum com os
ciclopes da tradição helénica e
os gigantes da mitologia
germano-escandinava. Tal
como eles, provocam
frequentes distúrbios e
atacam sempre que há uma
vaga de conquistadores da
Ilha Verde, simbolizando,
como é evidente, as forças
obscuras do inconsciente, os
poderes da destruição e do
caos que devem ser
constantemente combatidas
para assegurar não apenas o
equilíbrio mas também a
sobrevivência de uma
sociedade dita civilizada.
69
se acumulando, cresce.
exacerba-se e acaba por se
manifestar, ocorrendo então
as guerras, as aventuras
expedicionárias, os
acontecimentos imprevistos.
Ora, estas crises não são fruto
do acaso nas narrativas
epicas, podendo constatar~se
que elas coincidem sempre
com uma data essencial do
calendário celta, o que
demonstra que de certo modo
se trata de rituais realizados
segundo um plano bem
determinado e com um
significado profundo. As
invasões, por exemplo,
encontram-se sempre datadas
à volta do P de Maio, e as
guerras, no decurso das quais
morre um rei, ocorrem à volta
do 1’ de Novembro. 0 conjunto
obedece a um esquema
superior que os múltiplos
autores das narrativas epicas
70
conheciam perfeitamente, o
que faz supor que o corpus da
epopeia celta da Irlanda
exprimia a tradição mais
antiga e mais específica dos
povos celtas originais que
sobreviveram a todas as
migraçoes e a todas as
vicissitudes.”’
71
ossetes, povos do norte do
Cáucaso que descendem dos
citas e dos sarmatas, é
particularmente
esclarecedora: em arribas as
tradições se encontram,
apesar de estarem muito
distantes no tempo e no
espaço, os mesmos episódios
e as mesmas personagens,
embora evidentemente com
outros nomes. Podem ler-se a
este propósito, dispersos em
várias revistas, diversos
artigos de Joêl Grisward, e
sobretudo duas obras de
Geoges Dumézil, Romans de
Scythie e d’alentour, Paris,
Payot, 1978, e Le Livre des
Héros, Paris, Gallimard, 1965-
1989, contendo esta última
traduções completas de
narrativas ossetas que
apresentam extraordinárias
semelhanças com as
narrativas irlandesas. É por
72
isso verosímil a existência
desta epopeia primitiva, o que
justifica a procura de um
esquema narrativo original.
73
bro) à da Beltaine (10 de
Maio)”’, ou seja, guiava-se em
função da entrada e saída do
Inverno. A datação das
invasões no fim do Inverno e
no começo da estação estival
corresponde portanto a uma
realidade simbólica, tratando-
se de um novo princípio, de
um novo nascimento, de um
novo ciclo. Quanto à morte de
um rei no início do Inverno,
não há aqui senão a
constatação de um certo
adormecimento, de uma
interrupção das actividades da
função real, guerreira e
pastoral, sendo esta última
particularmente importante no
caso da Irlanda, pois a Ilha
Verde foi sempre e continua a
ser o país por excelência da
criação de gado, o que explica
que a estrutura social dos
gaélicos estivesse
profundamente dependente
74
da criação de gado, a única
verdadeira riqueza destes
povos ainda marcados pelo
nomadismo e cujas fronteiras
jamais ultrapassavam os
territórios do rei, ou, dito de
outro modo, a sua
prosperidade dependia de
poderem contar com a
protecção do rei na sua
actividade pastoril. Este é um
dado muito importante a ter
conta se se quer
compreender, na sua
expressão irlandesa, o sentido
profundo da epopeia celta.
75
logo, mesmo que pareça
paradoxal: as diversas
narrativas recolhidas nos
manuscritos irlandeses
formam uma verdadeira saga
(termo que costuma estar
reservado às homóIogas
escandinavas), análoga à que
Hortoré de BaIzac tentou fazer
ao compor os múltiplos
episódios autónomos da
Comédia Humana. Com
efeito, nestes últimos
encontra-se de tudo um
pouco: fragmentos da vida
quotidiana, lutas intermináveis
pelo poder, a voracidade de
tubarões de dentes afiados, o
sacrifício de inocentes,
histórias de amor de partir
corações, assassínios,
barbáries, proezas heróicas,
delírios poéticos ou proféticos,
e ainda muitos outros
elementos que são comuns à
antiga epopeia celta, assim
76
como ao gemo romanesco
muitas vezes inspirado pelas
vozes do invisível.
do século XIX. As
personagens que
encontramos na Comédia
77
Humana e que vão
aparecendo, aparentemente
em desordem, nos diversos
trechos narrativos, são
absolutamente indispensáveis
para a coerência do plano de
conjunto que foi idealizado
pelo seu autor. Todas elas
representam arquétipos, e
facilmente poderíamos
identificá-los com certos
heróis, não só da epopeia
celta da Irlanda mas também
da epopeia humana em geral.
0 ingénuo mas poderoso
Rastignac tem o seu
correspondente irlandês em
Lug do Braço Longo e no seu
prolongamento humanizado
Cúchulainn; o tímido
Rubempré encontra-se na
tocante personagem de
Dermot (Diarmaid), e a pobre
Esther Gobseck na de
Déirdré, tão exaltada por John
Millington Syngee é a imagem
78
perfeita da Irlanda oprimida e
martirizada. Quanto a Vautrin,
ser proteiforme, é o Thersite
grego, o Lõki germano-
escandinavo e o Bricriu
irlandês, ou seja, uma das
imagens fundadoras do Diabo
medieval, o próprio símbolo do
Tentador que, para melhor
semear a discórdia, se
mascara com as feições
benevolentes do deus Ogina
da palavra dourada, ou então
com as feições dum estranho
Côroi mac Dacré que muda de
forma e de aspecto sempre
que quer enganar um rival.
Honoré de BaIzac não
conhecia rigorosamente nada
das lendas irlandesas, mas o
gênio de um artista de
qualquer época traduz-se em
encontrar através da sua
criação própria os grandes
mitos fundadores da
humanidade, os mitos
79
impereciveis que moldam a
estrutura de um pensamento
humano e que se manifestam
através de imagens e de
símbolos que remontam à
noite dos tempos. Além do seu
exemplo, outros poderiam ser
aqui referidos.
80
tivesse um verdadeiro
significado no espírito dos
contadores: na verdade tudo
leva a crer que os druidas
professavam a existência de
um deus único, incomunicável
e inominável, ao qual por
vezes era dada uma
aparencia humana para que
pudesse ser inteligível. Com
efeito, as personagens
«divinas» que deambulam
pelas epopeias celtas não
passam de funções divinas
materializadas, concretizadas
e encarnadas por seres que,
apesar de terem
características perfeitamente
humanas, são dotadas de
81
poderes sobrenaturais ou
mágicos, trata~se de homens
e mulheres que, por natureza
ou graças a uma paciente
iniciação, atingiram um grau
muito elevado de sabedoria e
de poder assimilando funções
divinas de que são agentes e
donos.
82
definitivo. Os pretensos
deuses celtas são treinadores
que mostram ao conjunto dos
seres humanos como se
trarisfonua um mundo que
ainda mal saiu do caos e se o
leva a um estado de perfeição.
Esta atitude metafisica
encontra-se nos mais
pequenos pormenores da
epopeia e, graças a eles,
respira-se uma esperança e
uma serenidade que fazem
com que cada pessoa
encontre o caminho para o
pedaço de infinito que lhe
coube.
83
embora permeada aqui e ali
por alguns elementos
realistas. É absolutamente
verosímil que estas narrativas,
independentemente da forma
em que chegaram até Dós,
sejam a expressão narrativa,
de algum modo romanesca,
de antigos rituais religiosos,
de velhos dramas litúrgicos
que entretanto se perderam e
nos quais cada personagem
era um sacerdote, um druida e
portanto um deus, ou então
aspirava a sê-lo; os actos são
às vezes orações mais
eficazes que as palavras,
sobretudo quando estas são
pronunciadas de tal maneira
que mal se compreende o seu
sentido. A regra absoluta é por
isso a superação pois, na
perspectiva celta que
encontramos nos textos, Deus
não é, mas transforma -se,
participando todos o seres
84
nesta transformação.
Assim se encontram as
personagens na abertura da
cena, ou melhor, nos
primeiros degraus do
santuário. Na tragédia antiga
era o coro
85
abria o ritual. Neste caso, uma
testemunha vem contar o que
viu, pois qualquer narrativa
histórica deve ser Justificada
por uma tradição autêntica ou
tida como tal. Aqui a
testemunha é uni homem
estranho, Tuân mac Cairill,
acerca do qual se diz ter vivido
várias vidas desde a época do
dilúvio tomando diversas
aparencias. Em narrativas
análogas, substitui-o um certo
Fintan, filho de Boclira e
descendente de Noé. Pouco
importa: era necessaria uma
testemunha fidedigna e
encontrou-se uma. Além
disso, como estas histórias
foram redigidas na era cristã,
impunha-se a caução da nova
religião: esta caução encarna
no monge São Firmen a quem
Tuân vai contar o que sabe ou,
noutra versão, no célebre
santo Colum-Cill (Colomba).
86
Além disso, mais tarde,
quando se tratou de
transcrever a grande epopeia
dos Fiana à volta de Finn e de
Oisin (Ossían), foi o próprio
São Patrícío, o grande
evangelizador da Irlanda, que
veio a evocar a grande sombra
do herói Caílté, um dos
companheiros de Finn, para
lhe contar as aventuras de que
ele foi ao mesmo tempo
testemunha e actor. Acontece,
porém, que Cailté tem uma
dimensão humana normal e
viveu apenas uma vida. Uan
mac Cairill tem um aspecto
mais mágico, roçando as
fronteiras do sobrenatural,
fazendo lembrar o bardo galês
Taliesin que, ao nascer uma
segunda vez, adquiriu um
conhecimento supremo, e
lembrando também Merlim, o
Encantador, da lenda
arturiana, filho de um diabo,
87
mestre da magia e da profecia,
que, segundo os próprios
textos, confia ao eremita
Blaise a missão de passar
para a escrita as aventuras do
Santo Graal, de forma a
chegarem à posteridade.
88
verdade, estas figuras míticas
estão organizadas e
hierarquizadas segundo o
modelo sociocultural índo-
europeu, servindo de fio
condutor a tudo o que foi
edificado na Irlanda e
desejando conservar, apesar
da ocupação anglo-normanda,
a memória dos velhos
gaélicos, depositários de toda
uma tradição de sabedoria e
de concepção do mundo.
89
sentido se poderia comparar
ao Zeus grego e ao Júpiter
romano. Nuada evoca
também o Tyrr germano-
escandinavo (e a personagem
pseudo-histórica latina Mucius
Scaevola), pois perde um
braço durante uma batalha.
Na tradição germano-
escandinava (como na
tradição latina), a «mutilação»
deriva de um juramento
simulado pronunciado com
plena consciência para
proteger o mundo divino, mas
na tradição celta trata-se
antes de uma ferida heróica. 0
problema, no caso dos celtas,
consiste em que a integridade
física do rei anda a par da sua
integridade moral: um rei
doente ou mutilado não pode
reinar, pois se o fizesse o seu
próprio reino estaria doente ou
mutilado, devido a ambos
constituírem uma unidade.
90
Contudo, como entre os celtas
as fronteiras do real não são
claras, há sempre uma
maneira de inverter uma
situação catastrófica,
bastando um braço de prata
para que Nuada readquira a
plenitude das suas funções
reais. Assim, ele poderá
nominalmente levar à vitória
as tribos da deusa Dana
contra as forças obscuras - e
obscuran.tístas -
representadas pelos Fomore,
os demónios de um olho único
e maléfico que têm por chefe o
gigante Balor, o trovejador.
Entretanto, a sociedade
representada pelos Tuatha Dê
Danam está constituída de
forina a reflectir a sociedade
humana, agrupando, por
vezes de forma elitista e
aristocrática, um certo número
de indivíduos que tanto
91
representam arquétipos de
funções sociais, como são de
alguma forma especialistas
duma arte (podendo esta
palavra significar também
técnica). 0 rei Nuada acaba
por ser o eixo de um
mecanismo complexo que só
pode funcionar se cada peça
estiver no seu lugar. Um rei
que não esteja acompanhado
de guerreiros, de artesãos, de
«sábios», de sacerdotes, de
mágicos e de poetas, não
possui nenhuma
relevância.’Que seria do
fabuloso rei Artur sem os seus
cavaleiros e sem o seu
adivinho? 0 mesmo acontece
com Nuada. À sua volta
encontramos personagens
como Ogrua, o mestre da
palavra - aquele Ogrulos que o
filósofo grego c pti-
é co Luciano de Samosata
92
descreveu com correntes que,
saindo da língua, chegavam
às orelhas dos humanos - o
artífice do bronze Credne, o
ferreiro Goibniu, o médico
Diancecht e muitos outros
artistas que participam numa
espécie de conferência onde
cada um tem voto na matéria.
De entre eles destaca-se a
grande figura de Dagda, cujo
nome significa literalmente
«bom deus», e que tem como
apelido Ollathair, isto é, «pai
de todos».
93
contratos e não pára de troçar
deles, Dagda, enquanto «bom
deus», possui uma moca
muito estranha que mata com
uma das suas extremidades e
ressuscita com a outra. Não
será ele o equivalente do deus
gaulês Sucellos, que estava
sempre armado com um
martelo e cujo nome significa
«aquele que bate»? Ou tratar-
se-á de Teutates, ou Toutatis,
o «pai do povo»? Seja como
for, à medida que, com os
séculos, ele se foi
«folclorizando», transformou-
se no Gargantua da tradição
francesa, que Rabelais tão
bem soube recuperar e
revalorizar. Trata-se com
efeito de um gigante dotado de
uma potência sexual fora do
comum e de um apetite voraz.
Além disso, possui um
caldeirão maravilhoso, um dos
arquétipos do Graal, no qual
94
verte um alimento inesgotável.
Mas ele é também um artista
no sentido que actualmente se
dá à palavra, pois consegue
extrair da sua harpa sons que
fazem chorar e mesmo
morrer, que provocam alegria
e riso, ou que adormecem
quem quer que os ouça.
95
memória popular. Rei feérico,
ele é o senhor do cairn(”
megalítico mais famoso do
mundo, o de Newgrange (em
gaélico, Sidh-na-Brug ou
Brug-na-Boyne), que serviu de
inspiração às grandes lendas
da tradição épica irlandesa. E
se Oengus tem uma essência
divina, não deixa por isso de
se vir misturar com os
humanos, intrometendo-se
nos seus jogos, nos seus
assuntos e nas suas batalhas.
Alguns contos populares
descrevem-no como estando
sempre escondido no meio do
arvoredo, pronto a intervir no
caso de a ordem do mundo ser
alterada. Este «jovem filho» é,
em suma, uma espécie de
consciência universal, sempre
latente no espírito humano e
capaz de se manifestar tanto
para operar grandes milagres
como para infligir os piores
96
castigos.
97
palácio maravilhoso, ou sobre
um outeiro megalítico; entre
eles existem laços que tanto
podem ser de aliança pura e
simples, como familiares ou
meramente contratuais. Após
a batalha de Tailtiu e a partilha
da Irlanda com os milesianos,
foi Dagda que, na hierarquia,
ocupou o lugar cimeiro, como
se fosse o rei supremo
possuidor de uma autoridade
moral incontestável e de
poderes para exercer a
justiça. Esta proeminência
encontramo-la também na
personagem de ManaDann,
filho de Lir, epónimo da Ilha de
Man: este reina sobre a
misteriosa «Terra da
promessa», que também se
chama Tir-na-nOg ou «País
da Eterna Juventude», que é
na verdade uma espécie de
paraíso situado algures em
ilhas longínquas, a ocidente,
98
evidentemente, ilhas
estranhas com uma
vegetação maravilhosa e com
grandes espaços conhecidos
pelo nome de Mag Mell ou
«Planície das Fadas».
Acontece entretanto que estes
domínios estão situados sob
um lago, e às vezes mesmo
sob o mar: o Outro Mundo,
para os celtas, está sempre
muito próximo do mundo dos
vivos, que nele podem
penetrar. No que respeita às
«boas gentes», termo popular
que se refere aos seres
feéricos, deambulam pelo
mundo humano sem
quaisquer problemas,
possuindo o dom da
invisibilidade e podendo
assumir um aspecto humano
sempre que o desejem;
podem também tomar a forma
de aves, o que acontece
sobretudo quando se trata de
99
mulheres.
100
gaulês, fazendo notar que se
trata do deus mais venerado
de toda a Gália. A sua origem
é dupla: ele pertence ao ramo
dos Tuatha Dê Danann pelo
lado do pai, e ao dos Fomore
pelo lado materno, o que faz
com que só ele seja capaz, na
segunda batalha de Mag-
Tured (Moytura), de enfrentar
o avô, Balor, de olho malévolo,
e de o matar. Além disso, sem
que ocupe nenhum lugar na
hierarquia, ele é o organizador
por excelência e o artesão da
vitória final nesta batalha. Isto
deve-se ao facto de ele ser um
deus para além de todas as
funções, reunindo o conjunto
das qualidades que se
encontram nos outros deuses;
ele é na verdade o «Múltiplo
101
sua imagem heroicizada e
tomada romanesca.(”
102
«implante» graças a uma
extraordinaria «operaçao»
cirúrgica. Acontece com efeito
que, na perspectiva celta, as
mulheres são dotadas de
poderes ignorados pelos
homens. A mulher é sempre a
imagem simbólica da
Soberania, pois encarna o
conjunto da comunidade da
qual o rei - acessoriamente o
niarido - é a trave mestra
teórica, um pouco como
acontece no jogo de xadrez
em que a rainha é a peça de
maior mobilidade, mas onde o
rei é uma peça fundamental
sem a qual se perde a partida.
Nas narrativas epicas
aparecem também mulheres
mágicas, e frequentemente
feiticeiras, como Funinach,
primeira esposa de Mider,
inimiga jurada da bela Etame,
e mais tarde mulheres-
guerreiras iniciadoras dos
103
jovens e temíveis sacerdotisas
especialistas em manipular os
sortilégios. Estas mulheres
nunca deixam de viver em
plenitude, arcando com as
consequências dos seus
actos. Por muito conscientes
que estejam do seu poder, não
esquecem que podem morrer
de amor, estando sujeitas às
circunstâncias que lhes
alimentou a paixão voraz e
ilimitada e aos caprichos 1do
fado, ou seja, à força de um
Destino desconhecido mas
imanente. E preciso não
esquecer que a origem da
história trágica de amor de
Tristão e Isolda, tão célebre no
mundo ocidental e chegando a
ser considerada o símbolo do
amor humano, está
claramente inscrita na epopeia
celta da Irlanda.
104
destas heroínas femininas
epicas e apresentarem
múltiplas aparências,
múltiplos rostos, múltiplos
semblantes, geralmente três,
tendo em consideração o
número simbólico sagrado dos
Celtas, o qual tanto se
apresenta com a forma de
tríade
105
como de triskell, a tripla espiral
que, girando à volta de um
ponto central, simboliza por
excelência o universo em
expansão. As heroínas
aparecem por isso com
inúmeras aparencias e
nomes, em diferentes épocas
e em encamaçoes sucessivas.
Refira-se em primeiro lugar a
tripla Brigit, que se diz filha de
Dagda (a não ser que ela não
seja sua irmã), e que vem a
ser nem mais nem menos que
a Minerva gaulesa de quem
fala César, deusa das
técnicas, das ciências e das
artes, que os cristãos
recuperaram com o vocábulo
«santa» Brígida atribuindo-lhe
a fundação do célebre
mosteiro de Kildare, antigo
lugar de extrema importância
do culto druídico. Ora, esta
Brigit é também, com o nome
de Boann, a mãe de Oengus,
106
o Mac Oc que concebeu e deu
à luz durante o espaço
temporal da noite de Samain,
ou seja, simbolicamente,
durante a abolição do tempo,
a eternidade. Brigit encama a
vida eterna, e o seu nome,
derivado de Bo Vinda, «vaca
branca», mostra bem até que
ponto se encontra associada a
um alimento inesgotável, o
leite, elemento indispensável
aos povos exclusivamente
nómadas e pastores, como
era o caso dos celtas. A
simbologia do seu nome dará
os seus frutos, e Boann toma-
se o rio Boyne (grafia
moderna) que fecunda com as
suas águas doces um vale
verdejante ao redor do qual se
situam os grandes outeiros
feéricos, que são domínio dos
deuses. E se o nome Brigit
(que significa «poderosa»,
«alta», «luminosa») é
107
extremamente significativo,
Boann, representando a
riqueza avaliada em cabeças
de gado entre os celtas,
constitui a alma duma
sociedade onde predominam
claramente as tendências
ginecocráticas.
108
encamiçamento. 0 furor
guerreiro de que ela dá provas
abundantemente desdobra-se
num furor sexual desabrido
que a transforma senão numa
divindade do amor, ao menos
numa espécie de deusa do
erotismo. A fúria guerreira e a
sexual andam assim a par, e
nos prolongamentos da
epopeia celta encontram-se
numerosas mulheres
guerreiras que têm poderes
mágicos e são especialistas
na arte militar, ao mesmo
tempo que são iniciadoras dos
futuros heróis, como é o caso,
por exemplo, de CGchulainn
ou de Finn mae Cool.
o nome de Morrigane
(Morrigu) que significa
«grande rainha», evoca o da
«fada» Morgana das novelas
arturianas e do ciclo do Graal,
tratando-se, em qualquer dos
109
casos, do mesmo arquétipo,
ao mesmo tempo guerreiro,
sexual e mágico. A Morrigane
da epopeia irlandesa toma
muitas vezes o aspecto duma
gralha, chamando-se então
Bobdh. A analogia com
Morgana é evidente, pois ela e
as suas companheiras da Ilha
de Avalon possuem
precisamente o mesmo dom
de se metamorfosearem.
Além disso, é de crer que a
mulher feérica que leva um
ramo de macieira de Emain ao
herói Bran, filho de Fébal,
antes de o levar a empreender
uma estranha navegação,
seja a própria Morrigane,
embora o seu nome não seja
pronunciado neste episódio.
Porque não havia de reinar a
«grande rainha» nesta terra
bem aventurada de frutos
maduros durante todo o ano e
onde não existem a doença, a
110
velhice e a morte? Seja como
for, a ilha misteriosa de Emam
Ablach é o equivalente, quer
linguístico quer mitológico, da
ilha de Avalon, a fabulosa
Insula Pornorum para a qual
convergem todos os
fantasmas da humanidade
sofredora.
111
companheiros de Finn mac
Cool, conhecerá bem esse
fenômeno, pois subjuga o geis
da bela Grairiné (Grania),
perdidamente apaixonada por
ele. Os filtros do amor pouco
podem fazer face ao
encantamento mágico e
religioso que faz intervir o
mundo invisível e faz
depender os actos humanos
das divindades invisíveis. A
jovem Etaine, profundamente
amada pelo sombrio deus
Mider (que tem numerosos
pontos em comum com
Méléagant de Chrétien de
Troyes), não escapa também
ao geís lançado pela sua rival
Furimach, e nada neste
mundo a consegue poupar ao
longo período de turbulências
e depois de metamorfoses
que a afectarão
profundamente. Apesar disso
a aventura de Etaine e de
112
Mider é uma história de amor
«normal», na mais bela
tradição romântica. Na
epopeia celta, no entanto, o
amor não é um sentimento
isolado, fazendo parte das
grandes mutações que se
operam no universo, tudo se
dirige, por entre as diversas
peripecias psicológícas, para
uma dimensão cósmica à qual
ninguém consegue escapar. 0
que é posto em relevo é muito
menos a natureza fatal da pai-
113
xão amorosa do que a sua
necessidade metafíslca.
Acima de tudo, procura
transmitir~se a ideia de que, a
existir um deus. ele só pode
ser o amor, pois este constrói
o mundo, e a mulher, que é
iniciadora por essência, é
capaz de dar, com o seu amor,
um segundo nascimento, o
nascimento na eternidade,
àquele que escolheu amar.
114
são arquétipos carregados de
significação simbólica, mas
não deixam por isso de ser
dotadas de reacções
humanas e por isso de vida
interior. Naturalmente, há um
aumento do que se chama
qualidades, aumento que é
indíspensável para se pôr em
destaque as acções fora do
comum. E verdade que existe
também uma simplificação
destinada a inserir as
personagens e as acções num
determinado quadro acessível
a um público que não
compreende a profundidade e
as subtilezas da psicologia,
Apesar disso, não se deve
esquecer que os heróis são
humanos, mesmo quando são
apresentados como sobre-
hinnanos. E tanto nas
narrativas épicas da antiga
Irlanda como nas da antiga
Bretanha, são seres humanos
115
que descrevem outros seres
humanos que, ao
atravessarem a vida, tanto
passam por situações de
incerteza, de angústia e de
grande sofrimento como, por
outro lado, também são
capazes de viver grandes
alegrias e de desfrutar de
momentos de grande
felicidade. 0 amor de Mider por
c
116
neblina e o encantamento de
Bran, filho de Fébal, quando
ouve a voz da rainha das
fadas louvar-lhe os encantos
da ilha bem aventurada, são
sentimentos perfeitamente
humanos que qualquer
pessoa poderia sentir,
117
1 que o romantismo pretendeu
inventar. Estas diversas
narrativas que nos chegam do
passado têm um valor que vai
muito para além de serem um
testemunho de um mundo
imerso em sombras, pois
nelas palpita a beleza de
histórias que devem ser
transmitidas de geração em
geração com a plena certeza
de que nelas o belo, a
bondade e o salutar andam de
mãos dadas. A árvore do
conhecimento não poderá
apontar as suas ramagens
frondosas para o céu se as
suas raízes não estiverem
ricamente alimentadas pelas
sombras que deambulam pela
terra, como é o caso das dos
fantasmas que esperam
desesperadamente pelo
momento de encamarem. E só
a poesia pode permitir que se
cumpra esta subtil operação
118
alquímica.
119
ADVERT E NCIA
120
referência precisa ao texto
que lhe serviu de base. As
obras do passado pertencem
ao património da humanidade,
mas torna-se necessário às
vezes relembrá-las a um
Público novo. Era já essa a
tarefa dos transcritores da
Idade Média, que aqui volta a
ser proposta.
121
Naquele tempo, o abade
Finnen”’, na companhia de
seis dos seus discípulos,
percorria a terra da Irlanda
para ai pregar o Evangelho e
baptizar aqueles que ainda
não tinham recebido o
baptismo. Um dia acercou-se
ele de uma fortaleza que se
erguia numa margem, ao
fundo de uma baía, numa
região muito isolada do
UIster.l’1 Como ele e os seus
companheiros estavam
cansados devido à longa
viagem, pediram ao chefe da
fortaleza que os acolhesse.
Mas este respondeu que de
modo algum daria
acolhimento a vagabundos
que incitavam os homens da
Irlanda a abandonarem os
seus antigos costumes.
122
para a porta da fortaleza,
gritou: «Já que é assim, já que
te referes aos nossos antigos
costumes, eu vou lançar uma
maldição sobre o dono deste
edifício, assim como sobre
todos os que nele habitam e
toda a população deste país!
Por Deus Todo-poderoso,
enquanto não me for feita
justiça,
123
estando este último a ilustrar
os seus Anais, de valor
inestimável para a história da
alta Idade Média.
2. Trata-se da baía de
Sheephaven, no condado de
Donegal. No lugar da antiga
fortaleza, encontram-se ainda
vestígios do castelo de Doe,
construído no sCCulo XVI pela
família dos Mae Sweeney.
124
nada farei para evitar que a
desgraça se abata sobre este
país! Nem eu nem os meus
companheiros comeremos
qualquer alimento enquanto
não for satisfeito o nosso
pedido de hospitalidade. Se
morremos, a culpa será de
quem nos recusou alojamento
e de todos aqueles que o
seguiram na sua detestável
atitude. A vergonha abater-se-
á sobre todos e terão de expiar
as culpas, estendendo-se o
castigo pelos descendentes
até à nona geração. É esse o
costume deste pais e eu juro
que o farei cumprir até às
últimas consequências!1’1
125
sábado de noite. Os homens
ficaram deitados sobre a erva
durante a noite e uma boa
parte da manhã seguinte até
que assomou sobre as suas
cabeças um sujeito de
compleição imponente, de
cabelos brancos e barba
abundante, que, depois de os
ter observado, se dirigiu a
Finnen e se ajoelhou diante
dele. «Saúdo-te, homem de
Deus! » disse ele. «Permite-
me que faça frente ao desafio
que lançaste às gentes deste
país e que, desse modo, não
se possa dizer que o costume
da hospitalidade foi traído,
recaindo a culpa sobre cada
um de nós. Eu não moro
longe, e pedi aos meus
criados que acendessem o
lume para cozer os alimentos
no meu caldeirão. Vem,
homem de Deus; tu e os teus
companheiros terão uma
126
acolhimento digno daquele
que vos envia a pregar a sua
mensagem aos povos desta
ilha.» Finnert ergueu-se e
cumprimentou o velho.
«Quem és tu que me chamas
homem de Deus? És tu
também um homem de Deus
ou vens aqui só para me
provocar em nome do
Inimigo? - Eu recebi o
baptismo em nome do Senhor,
o Deus Todo-poderoso, e foi
Patrício que derramou sobre a
minha cabeça a água da vida
eterna», respondeu o velho.
«Peço-te que renuncies à
maldição que lançaste às
gentes deste país e que
venhas a minha casa
descansar e procurar
conforto». «Mas quem és
tu?», insistiu Finnen. «Um
homem dos tempos antigos.
Já há muito tempo que vim a
este mundo, e é por vontade
127
de Deus que cheguei ao dia de
hoje para estar diante de ti.
Acho que isto te deve bastar.
Acompanha-me a minha
casa.»
1. Trata-se do famosojejum
legal, praticado
frequentemente pelos celtas e
que consistia, para o
queixoso, em jejuar diante da
parte adversária, revelando
solenemente os motivos do
conflito. Se o que faz jejum
morre, a responsabilidade
recai sobre aquele que não
reparou os seus erros e que,
por isso, é excluído da
comunidade. Encontra-se aqui
o mesmo princípio da greve da
fome.
128
ineus companheiros te
acompanharemos se não nos
disseres quem és.» «Nesse
caso ouve bem o que te digo.
Nunca ninguém tinha
desembarcado nesta ilha
antes do dilúvio. Conta-se no
entanto que, quarenta dias
antes de as águas subirem,
três mulheres aqui estiveram,
tendo o nome de Banba,
FothIa e Eriu”), e diz-se
também que elas
sobreviveram à inundação.
Mas o que é certo é que esta
ilha peri-naneceu deserta
trezentos e doze anos depois
do dilúvio. Só nessa altura é
que aqui chegou Partholon,
filho de Sera, acompanhado
de vinte e quatro homens e
das suas respectivas
mulheres. E eu próprio estava
entre esses vinte e quatro
homens.
129
«Partholon e o seu clã
estabeleceram-se assim na
Irlanda e aqui viveram muito
tempo. A terra era bela e fértil,
com grandes prados onde os
gados podiam pastar. E o país
agradava-lhes, porque nele
podiam (2)
prosperar tranquilamente e
sem o receio de animais
venenosos. Mas um dia, entre
dois Domingos, uma epidemia
abateu-se sobre a ilha e
morreram todos os seus
habitantes. Entretanto, como
nunca se ouviu falar de um
desastre que não tivesse
deixado ficar ao menos um
único sobrevivente para o
contar, fiquei eu, a única
testemunha dos dias antigos.
130
em falésia evitando os lobos
que percorriam as planícies e
as florestas. Errei assim ao
acaso durante trinta e dois
anos sem encontrar vivalma.
Por fim a velhice abateu-se
sobre mim e os membros
começaram a pesar-me,
ficando eu fraco e
desamparado. Já não
conseguia subir as colinas e a
certa altura, já não me
conseguindo mexer, refugiei-
me numa gruta à espera da
morte.
131
cabelos, as minhas unhas
estavam enormes, estava
todo grisalho, decrépito e nu,
tolhido pela miséria e pelo
sofrimento. Certa vez, depois
de uma noite de sono, ao
acordar numa manhã de sol,
apercebi-me de que tomara a
forma de um veado, facto com
que
2. Não há serpentes na
Irlanda. Este fenómeno deriva
do facto geológico de a ilha se
ter separado do continente
europeu e das Ilhas Britânicas
antes da chegada dos animais
dos países temperados e
132
quentes ao norte, no período
pós-glaciar. Mas segundo
uma lenda tradicional
irlandesa, São Patrício em
pessoa terá caçado serpentes
na ilha lançando-lhes uma
maldição.
133
o meu espírito se alegrou pois
eu voltava a ser jovem.
134
do largo e da chuva que me
encharcava e me obrigava
muitas vezes a esconder~me
debaixo dos carvalhos da
floresta.
135
los de aqui viver em paz.
Assisti a terríveis
perseguiçoes nos vales e ao
longo dos estuários, assim
como a combates mortais e a
caçadas ao homem na
floresta. Mas, por fim, os
Homens-Trovão acabaram
por dominar este país. Em
dada altura estava eu à
entrada da minha caverna,
lembro-me disso como se
fosse hoje, e o meu corpo
voltou a mudar de aspecto,
passando a ter a forma de um
javali. Consigo mesmo
lembrar-me que entoei uma
canção inspirado pela
maravilha que comigo
ocorrera:
136
Palavras eram agradáveis,
outrora, nas assembleias,
«Ora, os Homens-Trovão
foram vencidos por outras
gentes que desembarcaram
nesta terra na noite anterior às
calendas de Maio. Eu vi essas
gentes Incendiarem os navios
nas margens e penetrarem
nos vales; e vi-as combaterem
os Homens-Trovão nas
planícies. Pertenciam às tribos
137
da deusa Dana cuja origem,
segundo se diz, é
desconhecida. Mas é provável
que eles viessem do céu, pois
tinham uma inteligência rara e
os seus conhecimentos
ultrapassavam largamente os
dos outros povos do universo.
138
com que a minha tristeza
aumentasse. Jejuei então
durante três dias, ao fim dos
quais senti que já não tinha
forças. Mas, sem disso me
aperceber, tornei-me um
pássaro, uma grande águia do
mar. Fiquei de novo alegre,
por perceber que poderia
percorrer incansavelmente os
céus desta ilha voando
mesmo rente às nuvens. Foi
assim que levantei voo e que
pude testemunhar tudo o que
se passava na Irlanda. E eu
cantarolava estes versos:
139
«Que história estranha me
contas! », disse Finnen. «E
como é possível que agora
sejas um homem como
qualquer outro?» - «Os
desígnios de Deus são
insondáveis», respondeu o
velho, «pois o futuro a Ele
pertence. Fica contudo a
saber que foi na forma de
animais que conse~ gui
sobreviver a todos os povos
que invadiram esta ilha.
Também assisti à chegada
dos Filhos de Milé e à sua luta
contra as tribos da deusa
Dana. Nessa altura tinha eu a
forma de pássaro e estava no
buraco de uma árvore, junto
ao rio.»
140
Sentia-me bem, com muita
energia, e saltei de rocha em
rocha em di-
141
recção à nascente. Graças à
minha habilidade, escapei
durante muito tempo a
variados perigos, às redes de
pesca dos pescadores, às
garras das aves de rapina que
tentavam agarrar-me, aos
dardos que os caçadores me
atiravam, às lontras que me
perseguiam através da
corrente.
142
que estive no estômago da
mulher de Carifi. Lembro-me
também de ter nascido outra
vez sob uma forma humana,
graças à mulher de Carifi.
Comecei então a falar como
os homens falam, e fui capaz
de revelar tudo o que se tinha
passado na Irlanda desde a
época do dilúvio. E foi depois
do meu novo nascimento que
me chamaram Tuân, filho de
Carlll.»
143
onde se avistava o estuário.
Era uma casa real, cercada
por um muro e por uma
paliçada, e guardada por
alguns guerreiros armados.
Tuân fez entrar os seus
hóspedes, mas quando quis
dar-lhes de comer na sala dos
festins, Finnen disse-lhe:
144
festins. Tuân pedira aos seus
criados para cozerem os
alimentos num grande
caldeirão, no fogo que se
encontrava ateado a meio da
sala. A volta havia juncos e
palha fresca. Finnen, os seus
companheiros e Tuân, filho de
CarilI, sentaram-se ao redor
do fogo.
145
que part sabes
acerca da história do mundo.»
«Com todo o prazer»,
respondeu Tuân.
146
1Segundo a narrativa do
Rawlinson B. 512, publicada
com tradução inglesa de Kuno
Nleyer, The Voyage of Bran,
Londres, 1987. Outra versão,
a do Leabhar na hUidré, foi
traduzida Para francês por
Ch.-J. Guyonvarc’h, Textos
mitológicos irlandeses,
Rennes, 1980.
147
C a p í t LI 1 0
148
o mundo.
149
se diversas gerações de
gigantes que se espalharam
por toda a terra.
150
Nessa altura, Deus
compreendeu que o mal
provocado por Adão ia
arruinar toda a sua criação.
Triste com esse facto e
arrependido por ter dado vida
a Adão e à sua companheira
Havali, resolveu então acabar
com as criaturas que o
ultrajavam, poupando a vida
apenas a um homem com
quem simpatizava: Noé, um
homem justo que venerava o
Eterno. Deus preveniu-o de
que iria fazer chover sobre a
terra durante quarenta dias e
quarenta noites para destruir o
que havia de mal na criação. E
ordenou-lhe que construísse
uma arca, que nela
embarcasse um casal de cada
espécie animal que habitava
na terra, nos ares e nos
oceanos, e que depois nela se
refugiasse com toda a sua
família, pois graças a ele
151
sobreviveria o que havia de
melhor na criação.
152
mal; além disso, esse lugar,
que deveria ser poupado pelo
Dilúvio, jamais deveria ter sido
habitado por serpentes ou por
monstros. A pensar nesse
país, chamou os druidas e
perguntou-lhes onde ele se
poderia encontrar. Os
druidas111 reflectiram
longamente, e disseram-lhe
que só um país poderia ser
poupado, a Irlanda, pois esta
ilha estava situada no lado
ocidental do mundo, para
norte, do mesmo modo que o
Jardim do Éden estava
situado a oriente, e para sul.
153
do conhecimento geral que a
ilha da Irlanda não tem
serpentes, nem dragões, nem
leões, nem sapos, nem ratos,
nem
154
Scotia porque será povoada
pela nação dos escotosl’1.»
«É então para ai que temos de
ir», disse Cessair após ouvir
aquelas palavras.
155
Espanha levou-lhe dezoito
dias. Foi a partir daí que ela
partiu por mar em direcção à
Irlanda, onde só chegou
passados nove dias,
desembarcando na ilha num
dia de Sábado.
1 .Pode surpreender
encontrar-se a presença de
156
«druidas» numa época pré-
diluviana, mas o termo, típico
de uma sociedade celta,
designa antes de mais uma
classe sacerdotal. Forarti os
celtas que compuseram o
transmitiram esta gigantesca
epopeia dos antigos dias, e
fizeram-no com os meios de
que dispunham, de acordo
com os critérios socioculturais
que eram os seus, mesmo
sendo tardia a redacção desta
epopeia (século X1 ou XII) que
procura deliberadamente aliar
a história mítica da Irlanda à
tradição bíblica.
157
chegar ao termo tradicional
Ibernia, para designar a
Irlanda (tendo ainda como
justificação a quase
homofonia Iberia-Ibernia que
justifica a passagem
- imaginária - dos sucessivos
invasores da Irlanda pela
Península Ibérica).
2. Literalmente «queda»,
subentendendo- se do sol, ao
«poente» (Occidentem).
158
Península, como aliás a
Escócia, uma espécie de
Outro Mundo que pode estar
em toda a parte e em lado
nenhum. Há também uma
certa ambiguidade entro os
Alpes e o antigo nome da
Escócia, Alba, e entre o nome
dos escotos e o dos citas.
159
mulheres e outros que foi
vítima de um remo que lhe
atravessou o corpo, e Fintan,
filho de Boclira, o qual,
segundo uma certa versão,
não terá morrido e vive ainda
entre os povos naturais da
Irlanda. 0 certo e que Cessair,
as suas cinquenta donzelas e
os três homens,
desembarcaram nesta ilha
quarenta dias antes do
Dilúvio, ou seja, mil seiscentos
e cinquenta e seis anos depois
do princípio do mundo.
160
desejo que, daqui em diante,
vocês me chamem diferentes
nomes consoante o que eu
fizer. Durante o dia, quando o
sol brilhar, eu chamar-me-ei
Banha. Quando cair a noite,
serei FothIa. E quando estiver
a dormir, quero que me
chamem Eriu.»
161
Só ficou à superfície das
águas a Arca em que Noé e os
seus tinham embarcado, com
um casal de cada espécie
animal. Mas o que os Livros
não dizem é que a Irlanda não
foi coberta pelo Dilúvio. A ilha
estava desabitada, tendo
sobrevivido a mulher que
dormia e se chamava Eriu. Os
Livros também não dizem que,
na vastidão do oceano, no
meio do nevoeiro, algumas
ilhas também não foram
submersas pelas águas. Ora,
nestas ilhas viviam gigantes
que foram poupados pelo
Dilúvio. Foram eles que
depois foram chamados
Fomore, os quais nunca
deixaram em paz os povos
que se vieram a estabelecer
na Irlanda.
162
esta secou, Noé e todos os
seus saíram da Arca e
procuraram lugares onde se
estabelecer. Noé tinha
consigo três filhos na Arca, os
quais ocuparam as três
regiões da terra, a Europa, a
África e a Ásia. Sem, filho de
Noé, instalou-se no que
actualmente é a Ásia, tendo
saído dele vinte e quatro
raças. Cham foi para África,
descendendo dele quinze
raças. Quanto a Japliet, o
terceiro filho de Noé,
apoderou-se da Europa e do
norte da
1
163
do, os citas, os armén’Os e Os
Povos da Ásia Menor, assim
como todos os povos que
ocupam, a norte e a oeste do
mundo, a Europa e as ilhas
que ela tern em frente, no
grande oceano. Japliet teve
oito filhos, e o oitavo chamava-
se Magog. Este teve dois
filhos que se chamavam Baath
e
1bath. Foi deste último, a
saber Ibath, que descenderam
os reis que governaram
Roma. Baath teve um filho a
quem chamou Fenius Farsaid:
dele descendem os citas, dos
quais provêm os gaéllcos.”’
Mas foi de Magog, filho de
Japliet, que saíram os povos
que se vieram a estabelecer
na Irlanda antes dos gaélicos,
a saber, a tribo de Partholon,
filho de Sera, e a tribo de
Nemed, filho de Agnoman,
assim como todos os da tribo
164
de Neined que, após terem
sido expulsos da Irlanda, aí
regressaram mais tarde.
165
deambulou durante um mês
na Adalácia, depois levou
nove dias para Ir da Adalácia
ao país dos Goths. Voltou a
partir deste país e viajou
durante um mês até chegar a
Espanha, demorando mais
nove dias até atingir as costas
da Irlanda. Estava-se numa
terça-feira, o décimo sétimo
dia da lua, nas calendas de
Maio.”’
166
Planície da Ilha. Naquela
altura não havia fazendas,
nem casas, nem campos
cultivados à disposição dos
homens, que só podiam
sobreviver colhendo
167
celtas.
168
rp””
169
qualquer lugar da terra onde
houvesse colmeias, as
abelhas abandonavam-nas
imediatamente.
170
No dia seguinte, Elgnat voltou
a provocar Topa, e ele voltou
a recusar deitar-se com ela.
«Já percebi», disse a mulher,
«Tu não és viril, e por isso não
queres deitar-te comigo.
Devias ter vergonha!»
171
compreendeu o que se tinha
passado. Não se contendo de
fúria, matou o pequeno cão da
sua mulher, Saímer, tendo
sido esta a primeira crise de
ciúmes da história da Irlanda.
172
«Bom Partholon», disse a
mulher, «quando o desejo é
muito, é dífícil resistir à
tentação. Olha à tua volta: as
vacas parecem-te calmas e
tranquilas quando pastam no
prado, mas assim que
aparece o touro ficam cheias
de desejo. E as ovelhas,
quando querem saciar o
instinto, não hesitam em
seguir o primeiro carneiro que
lhes apareça à frente.
Experimenta pôr um copo de
leite à frente de um gatinho:
verás como ele não resiste ao
desejo de tomar o leite».
173
forma huniana, monstros que
tinham uma força descomunal
apesar de terem apenas uma
perna e um braço.
Comandados pelo seu chefe
que se chamava Cichol da
perna curva, combateram
Partholon e os seus filhos. A
batalha durou uma semana
inteira, mas nela ninguém
morreu, pois tratava-se de
uma batalha mágica.
Entretanto, Cichol da perna
curva feriu Partholon num
braço, ferida de que este
nunca se recompos.
174
chama Lough Cuan, que
Partholon morreu na velha
planície de Elta Edair. Esta
planície foi assim chamada
porque nenhum braço,
nenhum ramo, dela alguma
vez saiu. E Partholon morreu
por causa de um veneno que
lhe penetrou no corpo através
do ferimento que lhe fora
infligido por Cichol da perna
curva, na batalha contra os
Fomore. Tinham-se passado
trinta anos desde que
Partholon chegara à Irlanda, e
o princípio do mundo tinha
sido há dois mil seiscentos e
vinte e oito anos.
175
ou seja, durante quinhentos e
vinte anos. Mas abateu-se
sobre eles uma doença nas
calendas de Maio, na
segunda-feira da festa da
Beltame. Esta peste fez
sucumbir nove mil homens até
à segunda-feira seguinte, e
ainda mais cinco mil homens e
quatro mil mulheres após essa
segunda-feira. Morreram
todos, à excepção de um
único homem, Tuân, que era
filho de Sdam, filho de Sera,
filho do irmão do pai de
Partholon. Deus permitíu-lhe
que sobrevivesse, assumindo
as mais diversas aparencias,
desde o tempo de Partholon
até aos tempos de Colum-Cill
e de Finnen. Foi
176
ele que revelou aos gaélicos o
conhecimento da história, as
conquistas que tiveram lugar
na Irlanda, as batalhas
provocadas pelos Fomore,
desde a chegada de Cessair a
esta ilha até à época de São
Finnen, o Leproso. Foi com
esta intenção que Deus o
manteve vivo até ao tempo
dos santos, até ao tempo em
que o chamaram Tuân, filho
de Caffil.
177
hostes. Estabeleceram-se
num lugar fértil e aí
construíram duas fortalezas
reais, tendo sido depois
atacados pelos Fomore contra
os quais travaram uma
batalha onde no decurso da
qual foram assassinados os
dois chefes dos Fomore.
178
Quando os Fomore souberam
que Nemed, filho de
Agnoman, tinha morrido,
aparelharam as suas frotas e
foram combater os filhos de
Nemed. Os chefes dos
Fomore eram nessa altura
More, filho de Déla, e Conan,
filho de Fébar. Este último
construíra uma grande torre
numa pequena ilha, a meio do
mar, e era aí que se reuniam
os navios dos Fomore. Esta
torre chamava-se Torre de
Conan, mas também se lhe
chamava Tormis, ou seja,
Torre da Ilha. E como os
Fomore eram mais numerosos
que os filhos de Nemed,
venceram-nos em combate e
impuseram pesados encargos
aos homens da Irlanda: estes
deviam entregar-lhes
anualmente dois terços do
trigo e do leite que eram
179
produzidos na ilha e dar-lhes
como escravos dois terços
dos recém-nascidos.
Furiosos e sentindo-se
ultrajados, os homens da
Irlanda não sabiam como
haviam de suportar o peso de
tais encargos. Reuniram-se
por isso em segredo e
decidiram atacar os Fomore
de surpresa. Na costa havia
três mil homens, mas outros
três mil embarcaram sob a
chefia do filho de Nemed,
Fergus da face vermelha. Não
tardaram a chegar a Torinis e,
após uma batalha
encarniçada, acabaram por
tomar de assalto a torre, onde
o próprio Fergus da face
vermelha matou Conan.
Depois, voltaram para a
Irlanda para comemorar a
vitória.
180
More, filho de Dela, ficou
furioso quando lhe
anunciaram o desastre da
Torre de Conan e resolveu
vingar-se dos homens da
Irlanda que tinham vencido os
Fomore e agora recusavam
pagar-lhes os tributos.
1 1
181
Nemed, Bethach, filho do
adivinho larbonel, igualmente
filho de Nemed, com o seu
filho Ibath, assim como Fergus
da face vermelha, que era o
filho mais jovem de Nemed.1’1
Os sobreviventes
reconquistaram a Irlanda e
foram encontrar-se com
Fintan, filho de Boclira, que
vivia na encosta de uma
montanha. Fintan tinha a
reputação de ser um sábio e
um vidente, e dizia-se que
estava perfeitamente a par do
nascimento do mundo e do
seu futuro. Quando os filhos
de Nemed foram ao seu
encontro, Fintam disse-lhes:
182
que aqui vos traz ou o facto de
não saberdes qual o rumo a
dar à vossa vida?» «0 que nos
traz aqui, sábio e prudente
Fintan, é a decisão que temos
de tomar por causa dos
Fomore. Eles oprimem-nos
desde que nos mataram um
grande número de bravos
guerreiros, e obrigam-nos a
pagar-lhes um pesa-
183
iriandais, Rermes, 1980. Este
«Livro das Conquistas» é uma
compilação de inforMações
muito antigas apresentadas às
vezes de forma anacrónica,
com lacunas, incoerências e
contradições flagrantes. É
muito difícil reconstituir o fio
condutor desta epopeia
mitológica que diz respeito
não só à Irlanda como a todo
o mundo ceita, sem que se
recorTa a todas as outras
fontes irlandesas, e sem que
se restitua à narrativa
propriamente dita uma certa
coerência cronológica, o que
não significa de modo algum
que a coerência tenha de ter
uma natureza histórica ou
científica. A reconstituição
será assim meramente
conjectural.
184
em gaélico. É uma palavra que
Provém duma raiz indo-
europeia que deu em latim
nemus, «bosque sagrado»,
em gaélico Moderno niamh,
em gaulês nef e em bretão
neni, designando estes três
termos o «céu» de um ponto
de vista religioso, e daí o
antigo nome nemeton,
«santuário», «clareira
sagrada», «Proje,çã,
simbólica do céu sobre a
teiTa», que se reconhece no
nome actual de Néant-sur-yvel
(Morbihan) e da floresta de
Nevet, perto de Locronan
(Finisterra).
185
do tributo que não
conseguimos aguentar por
muito mais tempo.» «0 melhor
conselho que vos posso dar,
brilhantes filhos de Nemed, é
o seguinte: deveis pôr um fim
ao vosso sofrimento e à
opressão dos Fomore. Por
isso deixal esta ilha e ide
instalar-vos noutro lugar deste
vasto mundo.»
186
conflitos. E impossível que se
junte uma multidão sem que
daí não resulte uma querela
por uma razão ou outra. Além
disso, sempre que há um
agrupamento de homens
armados com lanças e dardos,
logo se pensa que o que eles
querem é fazer guerra. Jamais
a paz é possível, na verdade,
enquanto sobre a terra houver
povos que se sentem
invadidos por outros que
chegam depois. Parti por isso,
filhos de Nemed, deixai esta
ilha e espalhai-vos pelo
mundo.»
187
parta para o norte, o outro
para oriente e o terceiro que
siga a direcção oposta ao
curso do sol, mas para sul,
para os lados onde há mais
calor.»
188
aconteça o que acontecer, vós
sereis sempre os filhos desta
ilha e dela sereis para sempre
os senhores.»
189
Dana. Fergus da face
vermelha, que era o filho mais
novo de Nemed, fez-
190
para sul à conquista dos
países onde o sol é mais
quente. Uma tempestade
desviou-o da rota, e fê-lo
chegar ao mar Tirreno. Aí foi
surpreendido por outra
tempestade, que o empurrou
pelo meio das Ilhas até às
costas da Trácia. Aqui o solo
era seco e estéril, nada nele
se podendo cultivar. Apesar
disso, Semeon e os seus
companheiros
estabeleceram~ se naquela
região inóspita e construíram
as suas casas com terra seca.
Graças a conversações com
as gentes daquele país, que
não lhes quiseram fazer
frente, concluíram um tratado
de paz. Ao clã de Semeon
foram atribuídas as
propriedades e as terras que
ficavam junto ao mar e em
fronteiras distantes, em
regiões muito frias, em
191
montanhas escarpadas e em
vertentes de colinas expostas
ao vento norte. Foram-lhes
também concedidas ravinas
profundas e cumes
inabitáveis, em regiões
inóspitas cujo solo jamais
tinha conhecido colheitas de
qualquer tipo. Mas, não
querendo desperdiçar a
oportunidade que lhes tinha
sido concedida, as gentes do
clã de Semeon fizeram
grandes sacos com panos e
com as peles de animais e
transportaram grandes
quantidades de terra arável
através dos rochedos nus e
áridos que lhes tinha cabido
em sorte no tratado de paz.
Entregaram~se ao trabalho
com tanto afinco e com tanta
devoção que daí a pouco
tempo aquelas terras estéreis
se tinham transformado em
planícies aprazíveis e férteis
192
onde se cultivava o trigo, a
vinha prosperava e o gado
pastava em esplêndidas
pastagens. Desse modo, não
se arrependeram de ter
deixado a Irlanda e de assim
se terem furtado aos Pesados
tributos que lhes eram
impostos pelos Fomore.
193
vados e com os prados que
regurgitavam de ovelhas e de
carneiros. Convenceram-se
então de que aquele país lhes
pertencia e que deviam
conquistar aquelas terras tão
férteis aos estrangeiros que
nenhum direito tinham sobre
elas. Foram então falar com as
gentes de Semeon e
propuseram-lhes, em troca do
que lhes tinham dado, outras
terras, ainda mais para norte,
em regiões inóspitas e frias,
em terras duras e cheias de
pedras, de solos infestados de
serpentes venenosas. E, para
evitarem entrar em guerra, as
gentes de Semeon aceitaram
o que lhes era pedido e
deixaram as terras que tinham
tornado férteis.
194
trataram tão bem as novas
terras que as transforrnaram
em campos ricos e férteis, em
tudo idênticos àqueles que
tinham deixado. E, havendo
comida em abundância, as
gentes do clã de Semeon
multiplicaram-se e
aumentaram de número até
chegarem aos milhares. Mas,
vendo os estrangeiros
tornarem-se tão numerosos,
tão ricos e poderosos, os
chefes do país intimaram-nos
a entregar-lhes todos os anos
metade das suas colheitas e
metade dos gados que
pastavam nos prados.
195
«De nada nos serviu fugir da
Irlanda para escapar à tirania
e aos tributos dos Fomore...
Encontramo-nos agora num
país estrangeiro, expulsos de
terras incultas que tornámos
férteis, e estamos sujeitos à
mesma tirania e aos mesmos
tributos. Chegou o momento
de nos revoltarmos contra a
injustiça, pois assim não
podemos continuar» «Tens
razão», disse o seu irmão
Rudraige. «Não podemos
continuar sem reagir e sem
fazer valer os direitos do
nosso traballio.» «Os donos
deste país jamais nos darão
razão», afirmou por seu lado
Slainge. «Só nos resta voltar
para o mar, levando todas as
riquezas que pudermos, e
regressar à terra da Irlanda,
pois essa é a terra dos nossos
antepassados e temos o
196
direito de a habitar.»
197
todos no porto onde tinham
desembarcado quando da sua
chegada.
«Chegou a hora de
partirmos», disse então
Slainge, que era o mais velho
do grupo e aquele que era
considerado mais sábio pelos
irmãos. «Lembrem-se que
temos sido muito prejudicados
pelos habitantes deste país.
Temos por isso de nos vingar,
sem esquecer que cada um
dos nossos homens vale por
cem dos deles.»
198
o produto do saque nos navios
de proa negra que tinham
construído com os seus sacos
e, por fim, levantaram âncora
e desfraldaram as velas.
199
dias até avistarem as costas
da Irlanda. Mas ergueu-se
então uma tempestade
repentina e violenta que fez
com que a frota se dividisse
em três grupos. 0 primeiro a
desembarcar foi o filho mais
velho de Déla, Slaingé, no
lugar que se veio a chamar
Inber Slaingé. Estava-se num
Sábado, no Primeiro dia do
mês de Agosto.”’
200
francês e em inglês, sendo a
célebre espada do rei Artur,
literalmente, «raio duro».
Entretanto é preciso lembrar
que esta história dos sacos
servirem para construir barcos
se apoia numa certa
realidade: a barca irlandesa
típica é com efeito o curragh
(coracle em inglês), sendo a
armação de madeira revestida
de peles e de panos
alcatroados.
201
Os outros desembarcaram em
diferentes pontos do país.
Como não havia contactos
entre os diferentes grupos,
foram enviados mensageiros
por toda a Irlanda com a
missão de pedir aos Homens-
Trovão para se juntarem todos
no mesmo lugar, na fortaleza
dos Reis que se encontra em
Tara.”’ Os mensageiros
percorreram a ilha em todos
os sentidos e cumpriram a sua
missão, de tal modo que daí a
pouco tempo todos se
reuniram no lugar combinado.
202
ele nos dirá como havemos de
partilhar esta ilha de forina
justa.»
1. Santuário pré-histórico,
depois celta, situado não
longe do vale de Boyne, no
203
condado de Meath. É o centro
simbólico da Irlanda, uma
espécie de Omphalos, que foi
respeitado e que se continua a
considerar como sagrado.
3. Segundo a narrativa
conhecida com o título A
primeira batalha de Mag-
Tured, contido no manuscrito
H.2.17 do TrinitY College de
Dublin, publicado por J. Fraser
na revista Eriu, Tomo VIII,
204
Dublin, 1915. Tradução
francesa quase integral de Ch.
-I Guyon-varc’h, Textes
my1hologiques irlandais,
Rermes, 1980.
t o
205
então que começaram a ser
chamados Tribos de Dana,
defendendo certos
historiadores que eles assim
foram designados por causa
de três homens muito
versados na ciência druídica,
os três Deuses de Dana, que
eram filhos da mesma mulher-
chefe que se chamava Dana.
E como eles tinham tantos
poderes como os deuses, as
gentes do seu clã quiseram
partilhar o seu nome e o seu
poder.
206
ressurreição estava a magia
que permitia aos homens de
Dana inserir demónios nos
corpos que tinham perdido a
vida. Deste modo, as gentes
da Síria tinham de lutar todos
os dias contra os mesmos
adversários, o que lhes
provocava um grande espanto
e um enorme transtorno.
Foram Por isso consultar os
seus próprios druidas, que os
aconselharam a estar
vigilantes no campo de
batalha assim que a noite
caísse: nessa altura deveriam
trespassar com um ramo de
freixo os cadáveres que os
enfren-
207
tassem. Se fossem demónios
a reanimar os corpos, estes
cairiam logo e corromper-se-
iam rapidamente. As gentes
da Síría seguiram este
conselho, e massacraram um
grandenúmero de defensores
da Boécia.
208
lhes quatro cidades para que
pudessem ensinar os jovens
do país. Estas quatro cidades
eram Falias, Gorias, Murias e
Findias.1’1
209
especialista em arte de
navegação, Morrigane, filha
de Emnias, grande
conhecedora de cantos
guerreiros, e sobretudo
Eochaid Ollathair, mais
conhecido por Dagda, ou seja,
o bom deus, que percebia
melhor do que ninguém de
assuntos de magia e de
druidismo. E, em cada uma
das quatro cidades em que
eles se tinham estabelecido,
um druida ensinava os jovens
e contava as proezas que
outrora tinham sido
protagonizadas pelos filhos de
Nemed, na terra da Irlanda e
no mundo inteiro.
210
madeira bem polida. Ora,
estando a contemplar a
paisagem, Eri ficou muito
admirada ao ver um navio
brilhante como prata a
navegar diante dos seus
olhos. 0 navio pareceu-lhe de
grandes dimensões, mas ela
não conseguia dístinguir~lhe a
forma. Entretanto, como a
corrente o aproximou de terra,
ela pôde examiná-lo melhor.
1. Segundo A História da
Irlanda, (Foras Feasa ar
Eirinn), composta no sécuio
xvii por Geoffroy Keating e
editada por David Comyn
(Londres, 1902).
211
lhe sobre os ombros, e um
manto com faixas de tecido
dourado revestia a túnica, que
estava ricamente adornada
com bordados de ouro. Sobre
o peito, resplandecia um
broche de ouro onde estavam
incrustadas pedras preciosas.
0 homem trazia dardos de
prata com hastes de bronze
polido, cinco colares de ouro à
volta do pescoço, assim como
uma espada cujo punho de
ouro estava adornado com
círculos de prata e com
ornamentos em ouro.
Maravilhada, a mulher saiu de
casa e aproximou-se da beira-
mar.
212
que vêem os meus olhos»,
respondeu ela.
213
recomendou-lhe que jamais o
desse ou vendesse, cedendo-
o apenas a quem tivesse um
dedo a que o anel se
adaptasse.
214
que tudo o que se vê de belo
na Irlanda e nas ilhas do norte
do mundo, sejam os prados
onde pastam os gados, os
campos onde se cultiva o trigo,
as fortalezas edificadas em
altos cumes, a cerveja que se
bebe nas assembleias, as
velas que iluminam as salas
de banquetes, as mulheres
cujo encanto entontece os
homens, os cavalos que
puxam os carros de combate,
tudo isso não terá uma beleza
comparável à do teu filho. E
correrá de boca em boca: «Eis
o belo Bress.»1’)
215
Depois, o homem dos Fomore
pediu licença para se retirar.
Regressou para o seu navio
prateado e desapareceu no
mar alto de onde tinha saído.
Eri, por seu lado, voltou para
sua casa. Não tardou a
perceber que estava grávida e
dela nasceu Eochaid Bress,
tal como tinha predito Elatlia
dos Fomore. Oito dias depois
do parto, o rapaz parecia ter
quinze dias e continuou a
crescer mais rapidamente que
as crianças da sua idade, de
tal modo que, com sete anos,
tinha a estatura de um rapaz
de catorze anos. Assim era
Bress, filho de Elatha dos (2)
216
reuniram-se e foram
aconselhados a concluir um
tratado de amizade com os
Fomore. Enviaram então
embaixadores à presença dos
Fomore, e selou-se assim
uma aliança entre eles. Foi
assim que Cian, filho de
Dianceclit, desposou Ethné,
filha de Balor, o campeão dos
Fomore. Da sua união nasceu
Lug do Braço Longo, que mais
tarde se tornou o herói de
todos os homens que se
reclamavam das tribos de
Dana. Mas Lug não foi criado
pela mãe pois, logo que as
tribos de Dana chegaram à
Irlanda, ele foi confiado a uma
mulher dos Fir Bolg que se
chamava Tailtiu, a qual foi a
sua ama de leite, e de quem
ele perpetuou a memória
graças aos jogos fúnebres
realizados no mesmo lugar
onde ela foi enterrada, ou seja,
217
em Tailtiu, nome dado mais
tarde a este sítio.’1
2. Segundo a narrativa da
«Segunda batalha de Mag-
Tured», contida no manuscrito
Harleian
5280, editada e traduzida por
218
W. Stokes na «Revista
Céltica», XIII. Tradução
francesa de Henri d’Arbois de
Jubainville, na «Epopée
celtique en Irlande», Paris,
tomo V do «Curso de
Literatura céltica», Paris,
1892. Tradução francesa
parcial de Georges Dottin na
«Epopée irlandaise», nova
edição, Paris, 1980. Tradução
francesa quase integral em
Ch.- J. Guyonvarch’h, «Textes
mythologiques irlandais»,
Rennes, 1980. Para
reconstituir deforma coerente
o fio condutor desta epopeia
dos antigos celtas, é
impossível seguir a ordem
cronológica aparente de
múltiplas narrativas. Assim, é
preciso recorrer às vezes a
certos textos de diferentes
épocas e de assuntos
diversos, regressando-se
depois a textos anteriores ou
219
tidos como tal.
220
sobre a colina de Tara, tendo
havido quem lhe chamasse
Pedra do Destino: o seu grito
indicava o nome de cada rei
que devia governar a Irlanda.”’
De Gorias foi levada a lança
que mais tarde pertenceu a
Lug, e a que também se
chamava Lança de Assal: era
221
mitológicas insistem na união
indispensável entre deus, ou o
rei, e a terra, em particular a
terra da Irlanda. 0 nome da
mãe de Bress, Eri, é uma
variante de Eriu, uma das
denominações da mulher
primordial Cessair, que se
tomou o nome oficial da
Irlanda, Do mesmo modo, o
nome da mãe de Lug, Ethné,
encontra-se com inúmeras
variantes, como Etaine, a
heroína de outra narrativa,
que é a não menos célebre
Boann (a Boyne), mãe do
herói Angus, ou ainda a tripla
Brigit, aliás Dana, deusa dos
Começos. Esta última tem
origens muito remotas, pois
encontramo-la no Médio
Oriente (Anaitis, Anu, etc,), na
índia (Anna Pourna), em
Roma (Anna Parerma), no
nome dos rios Don e Dantibio
(Tanaüs) ou no de certos
222
povos gregos (os Danaoi),
assim como no da célebre
<santa» Ana dos Bretões. NO
folclore irlandês, dá o nome a
dois cumes do Kerry, «The
Paps of Anu», também
chamados os «mamilos de
Anna». Na mitologia galesa,
tornou-se Dôn, a mãe de uma
série de deuses análogos às
personagens das tribos de
Dana. A complexidade das
narrativas irlandesas, onde os
nomes mudam
constantemente, não deve
fazer esquecer que, na maior
Parte das vezes, se trata de
uma entidade inapreensível e
que, como tal, assume
diversos aspectos e nomes.
Naturalmente, isso aumenta a
dificuldade de compreensão
das narrativas mitológicas
mas, assim que se simplifica a
nomenclatura, as
personagens ganham
223
destaque e voltam a adquirir
todo o seu valor simbólico.
Além disso, é preciso ter em
conta que os irlandeses
sempre tentaram explicar o
nome dos lugares através de
factos mitológicos ou
maravilhosos, sendo capazes
para isso de recorrer a
etimologias metafóricas ou a
homofonias flagrantes.
224
irlandeses, a Pedra de Fail foi
emprestada para a
entronização do primeiro rei
gaélico da Escócia, tendo
ficado depois na posse da
abadia de Scone.
225
impossível vencer quem quer
que a brandisse.,” De Findías
foi levada a espada de Nuada,
a que também se chamava
Caladbolg, ou seja, «Raio
Violento»: a ela ninguém
escapava, tal era o seu ímpeto
furioso quando saía da bainha
.(21 De Murias foi
transportado o caldo irão de
Dagda, que continha um
alimento inesgotável, e
ninguém que elele se servisse
deixava de ficar saciado.”’
226
larbonel, o Adivinho,
chegaram nas asas de nuvens
sombrias e não em barcos ou
navios. 0 mais certo, no
entanto, é que, ao
desembarcarem, elas
incendiaram os seus navios
para que não caissem na
tentação de voltar ou de
quererem fugir se algum
perigo as ameaçasse. As
grandes nuvens de fumaça
que, a certa altura,
obscureceram os céus da
Irlanda, fizeram crer que elas
teriam sido trazidas por um
nevoeiro mágico. Mas a
verdade é que a fumaça
ocultou a chegada das tribos
de Dana, que se foram
refugiar no país de Corcu
Belgatan, que é agora
Cormernara, na província de
Coiinaught.1’1
227
Irlanda era Eochaid, filho de
Erc, da raça dos Fir Bolg. Ora,
na mesma noite em que as
tribos de Dana
desembarcaram, ele teve uma
visão durante o sono.
Levantou-se incomodado e
mandou chamar o seu druida
que se chamava Cesard. Logo
que este
228
Fail e o misterioso «Assento
Perigoso» da Távola
Redonda, assento reservado
àquele que levasse a born
termo a aventura da conquista
do Graal, portanto ao «Reí do
Graal».
2. Ela é o protótipo de
CaledfivIch, por-tanto
Excalibur, a célebre espada
cheia de poder que só pode
ser confiada ao rei Artur.
229
dos protótipos do «santo»
Graal cristão cuja aparição
diante dos cavaleiros da
Távola Redonda lhes fornece
o alimento e a bebida que
desejam.
230
«Que haveis visto vós, ó rei da
Irlanda?», perguntou Cesard.
«Na verdade», respondeu
Eochaid, «vi grandes bandos
de pássaros negros surgireiri
das profundezas do mar e
virem na minha direcção. Num
abrir e fechar de olhos, eles
chegaram a terra e
misturaram-se connosco,
trazendo a confusão e a
hostilidade aos homens da
Irlanda. Então, um dos nossos
desembainhou a espada e
cortou uma asa ao passaro
que, de entre todos, me
parecia o mais nobre. Agora, ó
diruida, levanta-te e usa a tua
ciência e a tua magia para nos
dizeres que significado tem
este sonho.»
231
termos: «Não tenho notícias
agradáveis a dar-te a ti e a
todos os homens desta ilha:
vêm ao nosso encontro por
mar guerreiros nobres e
corajosos que nenhuma força
consegue deter. Com eles
vêm a morte e a destruição,
pois são gentes hábeis nas
artes da magia e do
encantamento. Eles lançarão
sobre vós nuvens druídicas
que vos alucinarão e, em cada
combate que travardes com
eles, serels a parte mais fraca.
Fica pois a saber, rei da
Irlanda, que chegou a hora de
os Homens-Trovão deixarem
de ser os donos desta ilha.»
232
informaram que o grupo dos
recém-chegados era
constituída por gente tão bela
que Jamais no mundo se vira
igual, e que, além de muito
bela, possuía armas muito
poderosas e ape-
Ji
233
Tara, «É terrível que não
saibamos de onde vem essa
gente e o que pretende de
nós. Enviemos Sreng, filho de
Sengann, ao encontro dos
recém-chegados, pois trata-se
de um homem rude e de alta
estatura que conhece
Inuitobem as artes e as
ciências. Ele irá perguntar aos
forasteiros quem são e o que
pretendem.»
234
pediu-se da assembleia real e
dirigiu-se para o sítio onde se
tinham entrincheirado as
gentes das tribos de Dana, no
território de Coimaught.
235
ele é.»
236
falavam a mesma língua e que
por isso tinham antepassados
comuns. «Fico satisfeito por
ouvir palavras tão gentis como
as tuas», disse Bress. «Já
percebi que os teus
antepassados são da raça de
Nemed, que o céu lhe seja
leve.» «Eu também fico
satisfeito por constatar que
somos da mesma raça e do
mesmo sangue», respondeu
Sreng. «Fica no entanto a
saber que nós somos homens
muito poderosos e que jamais
recuámos diante de qualquer
inimigo, por muito poderoso
que ele fosse.» «0 mesmo
acontece connosco»,
respondeu Bress. «Fica a
saber que nada nos detém e
que nunca ninguém levou a
melhor sobre nós.» «Não
duvido», disse Sreng, «que o
teu povo é corajoso. Se os
nossos exércitos se chegarem
237
a enfrentar, haverá muitas
mortes em ambos os lados,
por muitas artes mágicas que
sejam usadas para evitar o
derramamento de sangue.»
238
tuas armas», pediu Bress.
«Fá-lo-ei de boa vontade»,
respondeu Sreng, atirando
para o chão as suas lanças.
Bress deixou cair também as
suas. «Pelo que vejo»,
exclamou Bress, «são armas
de pontas largas, pesadas e
fortes, poderosas e cortantes!
Pobre daquele que por elas for
ferido, pois não conseguirá
sobreviver! Como lhes
chamas?» » «São lanças de
batalha», disse Sreng. «Com
elas não há inimigo que nos
faça frente, pois provocam
ferimentos e danos i
rreparaveis nos adversários
abrindo o caminho à vitória.»
«Acredito bem que sim», disse
Bress. «Mas as minhas armas
não são menos eficazes, vais
ver. Com elas, posso espalhar
a morte e a destruição entre
aqueles que quiser atingir,
envenenando-lhes o sangue e
239
fazendo-os desaparecer da
superfície da terra.»
240
Eochald, filho de Erc. E tu, de
onde vens?» «Eu desci
daquela montanha», disse
Bress, «onde estão as tribos
de Dana e o seu rei supremo,
Nuada, filho de Eclitach. As
tribos de Dana vieram das
ilhas do norte do mundo num
manto de nevoeiro e
chegaram à Irlanda graças a
uma tempestade
descricadeada pelos druidas.
É sua pretensão vir habitar
nesta ’lha, e por isso seria
justo que os Fir Bolg lhes
dessem metade dela, para
que pudéssemos viver em
paz.» «Tenho de voltar para
Tara», respondeu Sreng, «e
de transmitir as tuas palavras
ao rei supremo da Irlanda. Até
se chegar a Tara o caminho é
longo, portanto tenho mesmo
de partIr.» «Val», disse Bress,
«mas antes toma uma das
lanças que eu trouxe comigo.
241
Os Fir Bolg saberão assim que
tipo de armas possuem as
tribos de Daria.»
242
do amizade entre si, e cada
um seguiu o seu caminho.
Quando Sreng chegou a Tara,
fizeram-lhe perguntas sobre
as gentes com quem se tinha
ido encontrar.
Os Homens-Trovão reuniram-
se à volta do rei Eochaid e
estiveram a analisar durante
muito tempo a proposta de
243
Sreng. «Nós não daremos
metade da Irlanda aos
estrangeiros», disseram por
fim, «pois se o fizéssemos
eles a seguir apoderar-se-iam
de toda a ilha e escravizar-
nos-Iam, a nós, aos nossos
filhos e aos nossos
descendentes.»
244
batalha», disseram as gentes
das tribos de Dana.
Fabriquemos lanças e
espadas e construamos
fortalezas onde nos possamos
refugiar em caso de
necessidade.»
245
incapazes de nos proteger da
magia das tribos de Dana»,
lamentaram-se eles por fim.
«Nós proteger-vos-emos»,
responderam os druidas dos
Fir Bolg.
E fizeram então
encantamentos à volta da
colina de Tara e detiveram a
magia das tribos de Dana.
Nessa altura, os Fir Bolg
reuniram-se em conselho e
decidiram preparar-se para o
combate. Reuniram as suas
hostes num lugar
determinado, com todos os
seus chefes, todos os seus
nobres e todos os seus reis, e
aquele lugar passou a ser
chama-
do Planície de Lia.
246
de Dana reuniram todas as
suas hostes e, dirigindo-se
para a planície, tomaram aí
posição. Três dos seus
druidas foram enviados ao
encontro dos Honiens-TrovãO
para lhes propor a partilha da
Irlanda em nome da sua
origem comum, visto que os
Fir Bolg e as gentes das tribos
de Dana eram todos
descendentes de Nemed.
247
se apresentava daquele
modo.
248
corajosas como elas. A
batalha na Planície de Lia foi
marcada para quinze dias e
um mês depois do início do
Verão, ao meio do dia. As
hostes puseram-se em
marcha aos primeiros ralos de
sol, e ficaram frente a frente
exibindo escudos
ornamentados com pinturas,
lanças majestosas e reais,
dardos e espadas flamejantes.
Fatach, o poeta dos Fir Bolg,
destacou-se dos demais para
exteriorizar a fúria que sentia
cantando as glórias dos seus
antepassados. Tendo posto
um pilar de pedra no meio da
planície, apoiou-se nele,
enquanto Cairpré, o poeta das
tribos de Dana, enterrou o seu
propno pilar na outra
extremidade da planície e
apoiou-se nele para cantar a
coragem dos guerreiros do
seu povo. Foi a partir daqui
249
que a Planície de Lia passou a
ser chamada Mag-Tured, ou
seja, «Planície dos Pilares»Y1
Actualmente, «Moytura»,
planície situada entre o lago
Arrow e o lago Kcy, na
fronteira dos condados de
Sligo e de Roscommon, não
longe da cidade de Boyle.
250
golpes mortais entre os
guerreiros que ficaram com os
escudos partidos, as lanças
tortas e as espadas
despedaçadas. 0 clamor
tomou-se medonho, e o furor
posto na luta pelos
guerreiros, na vasta planície,
parecia aumentar de momento
para momento. Ao fim do
dia, contudo os homens das
tribos de Daria, vencidos,
tiveram de começar a recuar.
Em vez de os perseguirem ao
longo do campo de batalha,
de’
os Fir Bolg ixaram-se ficar no
seu próprio te
251
uma pedra da Planície e a
cabeça cortada de um inimigo,
com que fizeram um enorme
montículo.
,u lado,
252
prontos para voltarem para o
combate.
253
temível, que se interpôs entre
eles. «Não admito que um dia
se diga», exclamou ele, «q.ue
o meu rei indefeso foi atacado
por três jovens presunÇOsOs.
É comigo que deveis lutar e
não com el,!»
Os três atacaram-no e
sucumbiram imediatamente
aos golpes furiosOs que ele
lhes infligiu. Com a luta já
terminada, apareceram os
Homen,s-Trovão. Viram OS
três homens caídos por terra,
e o rei contou-lhes como
Sreng lutara em seu lugar.
Então, pegaram em pedras
com que encobriram Os três
corpos de modo a formar um
caim, que desde então passou
aser chamado TumUlus de
Champion. Depois disso, o rei
seguiu-os, e Prosseguiram os
combates contra os homens
das tribos de Dana.
254
Ora, eram tão densas as
hostes ali concentradas que,
Por todo o
1 ado,
faiscavam cores
resplandecentes como as do
nascer e as do pôr-
255
da planície, Defendendo-se
atrás de filas serradas, os
homens das tribos de
venenadas,
linha de batalha impe-
1 netrável e sangrenta,
escondendo-se atrás dos seus
escudos coriáceos
sistiam a to
estavam na liflancos das
hosnba da frente, pois os mais
256
velhos foram colocados nos
rfl 1c
Z1
257
por toda a planícíe de Mag-
Tured.
258
Estavam também presentes
três mulheres, as três magas
das tribos de Dana, Bobdh,
Macha e Morrigane, a filha de
Ernmas.”) No meio do tumulto,
elas lançavam feitiços para
ajudar os seus e imprecaçoes
para
I- Ernnias significa
«estranho». Na realidade, as
três magas são três aspectos
da mesma per-
50”agem: Bobdh é a Gralha,
Macha, a Amazona, o
Morrigane a Grande Rainha.
Esta triPlicação encontra-se
na tradição britónica, em
particular na lenda arturianu
em que a fada Morgane
aparece às vezes com a forma
da Amazona Rhiannon e às
vezes com a forma de uma
gralha, pois possui o poder de
se metamorfoscar.
259
enfraquecer os adversários.
As espadas embatiam nas
extremidades dos escudos
redondos, e lâminas
incandescentes provocavam
poças de sangue que
chapinhavam debaixo dos pés
dos homens. Bress, filho de
Elatha, veio combater contra
os Fir Bolg. Cento e cinquenta
guerreiros sucumbiram às
suas mãos, tendo ele aplicado
nove golpes no escudo do rei
Eochaid enquanto este lhe
infligia nove ferimentos.
Sreng, filho de Sengann, veio
combater as tribos de Dana.
Morreram às suas mãos cento
e cinquenta guerreiros, tendo
ele aplicado nove golpes no
escudo do rei Nuada que, por
seu lado, lhe infligiu nove
ferimentos.
260
repelir os Homens-Trovão,
enquanto na planície se iam
acumulando os cadáveres. As
hostes tremiam como a água
de um caldeirão que
transborda por todos os lados,
ou como um rio cujas águas
engrossam quando um
exército abre caminho por
entre elas para os seus
guerreiros poderem passar. E,
como os próprios reis queriam
combater, foi-lhes dado um
grande espaço. Os guerreiros
afastaram-se e os servos,
atemorizados com aquele
espectáculo, puseram-se em
fuga. A terra foi calcada pelos
heróis e com o ardor da luta
endureceram as turfas sob os
seus pés. Sreng e Nuada
infligiram-se mutuamente
trinta ferimentos, e o primeiro
infligiu um golpe terrível ao rei
das tribos de Dana
atravessando com a espada a
261
borda do seu escudo e indo
cortar-lhe o braço direito até
ao ombro. Nessa altura,
Nuada lançou um grito
tremendo de dor.
262
rei. PrecipitOu-se para o lugar
de onde Eochald dirigia a
batalha, exortando os heróis e
dando ânimo aos campeões.
Bress atacou-o furiosamente e
ambos, escudo contra escudo,
feriram-se nas partes do corpo
a descoberto, enquanto os
restantes combatentes se
mantinham no meio de um
cenário caótico, enraivecidos
e tendo de suportar o peso das
suas armaduras e dos seus
corpos.
263
planície de Tured, Eochaid,
filho de Erc, o rei supremo dos
Fir Bolg da
1 - -se 1 1
264
enfrentar as gentes das tribos
de Dana. Mas, assim que os
druidas daquelas souberam
que o rei da Irlanda estava
morto de sede, lançaram um
feitiço de forma a esconder
das suas vistas os nos e os
regatos da Irlanda. E ele, por
muito que procurasse o país à
procura de uma fonte onde
matar a sede, não encontrou
nada. Ora, estando ele a ser
perseguido pelos guerreiros
das tribos de Dana,
aproximou-se de uma
margem, num lugar que hoje
se chama o Areal de Eochaid.
Aí foi atacado por três
guerreiros, mas defendeu-se
energicamente, apesar da
sede que o atonnentava, e
matou-os aos três. Tendo
recebido diversos ferimentos e
estando enfraquecido por
todos os golpes que sofrera,
ele próprio também acabou
265
por sucumbir. E ali mesmo foi
enterrado, naquele mesmo
areal, debaixo de um
montículo que os Fir Bolg
fizeram com pedras para ali
levadas.
266
se aconselhar e decidir o que
fazer. Disse aos Fir Bolg que
só tinham duas possibilidades:
ou deixavam a Irlanda para
sempre e partiarn para outro
país, ou aceitavam partilhar a
ilha entre si e as tribos de
Dana. «A não ser assim»,
acrescentou ele, «teremos de
combater até à última gota de
sangue. E ficai a saber que,
com os poucos homens que
nos restam, não nos será fácil
alcançar a vitória.»
267
Então, voltaram a pegar nos
grandes escudos quadrados,
nas lanças envenenadas, nas
espadas cortantes de metal
azul, e partiram ao encontro
das tribos de Dana, sabendo
que no combate terrível e
desesperado que se
avizinhava o mais certo era
encontrarem a morte. Uma
vez chegados ao lugar onde
se encontravam as tribos de
Dana, Sreng, filho de
Sengann, desafiou Nuada
para o combate como
vingança pela luta que ambos
já tinham travado. Nuada,
como se não tivesse ficado
sem braço, enfrentou-o cheio
de coragem. Com a mão
esquerda agarrou nas armas e
avançou para Sreng, dizendo-
lhe: «Se o que desejas é uma
luta como deve ser, amarra o
braço direito, pois eu perdi o
meu, e assim estaremos em
268
igualdade de condições. Se
queres que a luta seja justa, é
isso o que deves fazer.»
«Nada a isso me obriga»,
retorquiu Sreng.
1 1
«Nós estávamos em
igualdade de condições na
primeira luta que travámos, e
esta é a continuação dessa
primeira luta. É verdade que
eu te cortei um braço, mas os
teus guerreiros mataram o
meu rei, Eochaid, filho de Erc,
e eu tenho sangue real. Cabe-
me a mim vingar a morte do rei
supremo da Irlanda, vencendo
o rei das tribos de Dana.»
Nessa altura interveio Bress,
filho de Elatha:
269
sangue real e poderia
combater no lugar do meu rei.
Mas como estamos unidos por
este j uramento de amizade,
não podemos voltar a
encontrar-nos frente a frente.
Paremos com isto e façamos a
paz.» «Farei como dizes, e
respeitarei desse modo o
juramento feito perante ti, ó
valoroso Bress». respondeu
Sreng. «Espero as tuas
propostas.»
270
Fir Bolg, e são tão grandes as
nossas baixas que tão pouco
podemos saber quantas
foram. Nós pedimos aos Fir
Bolg para partilharem a
Irlanda connosco porque
temos origem no mesmo clã, o
do glorioso Nemed que é uni
nosso antepassado. Era uma
questão de justiça, e nós
tínhamos o mesmo direito que
eles de habitar este país. Eles
não nos quiseram deixar 0
lugar que por herança nos
pertencia, e tivemos de o
conquistar pelas armas,
pagando um alto preço com o
sangue dos nossos heróis e
dos nossos guerreiros. Penso
que chegou o momento de
celebrar um acor-
271
último hoiiiern». «E a voz da
sabedoria que fala pela tua
boca, ó Dagda», disse Nuada.
«E, apesar da dor que me
provoca a minha enfermidade,
apesar da raiva que sinto,
prefiro que se firme a paz
entre nós e os Homens-
Trovão. Que Bress vá ao
encontro de Sreng, filho de
Sengann, e que lhe proponha
o fim das hostilidades e a
escolha, pela sua parte, de
uma província da Irlanda para
habitar com as gentes do seu
povo.»
272
1 1 ao
massacre de Mag-Tured, e
partiu para Connaught, de que
tomou posse.”’ Quanto aos
homens das tribos de Dana,
reuniram-se mais uma vez
273
mão em cada dedo e em cada
articulação. E Miach, filho de
Dlancecht, enxertou-lhe o
braço, articulação a
articulação, nervo a nervo e
vela a veia, por três vezes,
ficando ele curado ao fim de
nove dias. Entretanto,
I)lancecht ficou despeitado
com aquela cura e, furioso,
brandindo a espada sobre a
cabeça do filho, provocou-lhe
um golpe profundo no
pescoço. 0 rapaz, contudo,
curou-se pondo em prática a
sua arte. Então, Diancecht
voltou a feri-lo e chegou ao
osso. 0 rapaz mais uma vez
curou-se voltando a usar a sua
arte. Ainda mais furioso,
Diancecht feriu-o uma terceira
vez na cabeça e atingiu-lhe o
cérebro, tendo sido assi
1 im que
274
A tradição popular local de
Connaught, sobretudo no
condado de GaIway, conserva
a marca da lembrança dos Fir
Bolg. Deste modo, os
habitantes das ilhas de Aran
são considerados os
descendentes dos Homens-
Trovão, e as fortalezas pré-
históricas que se encontram
nas três ilhas de inismore,
Inisman e Inislicer, passam
por ser obras destes
longínquos antepassados, na
verdade mais míticos que
reais, mas capazes de vencer
as barreiras do tempo graças
ao poder do imaginário,
275
Miach morreu às mãos do
próprio pai. E este disse que
ninguém dali em diante o
poderia devolver à vida.
276
Os chefes das tribos de Dana
reuniram-se em conselho.
«Diancecht tem razão», disse
Nuada. «Eu ja não posso ser o
vosso rei, pois
lamentavelmente perdi o meu
braço. Escolhei pois entre vós
aquele que vos parecer mais
digno de ser o vosso rei.»
277
outro modo, o poder de
distribuir as riquezas de
acordo com os méritos de
cada um. Mesmo com uma
prótese, Nuada é um rei
amputado, e não se pode
278
suceder no trono. Costuma
dizer-se que um reino se
estende até ao alcance do
olhar do rei, o que faz supor da
parte deste uma perfeição
física indissociável da
perfeição moral.
2. Segundo a narrativa da
«Primeira batalha de Mag-
Tured», com alguns
pormenores extraídos (10
«Livro das Conquistas» e da
narrativa da «Segunda
batalha de Mag-Tured»,
primeira versão.
tL1
279
seu intermédio, tudo fariam
para impor aos habitantes da
Irlanda encargos tão pesados
como aos seus antepassados
noutros tempos. Assim,
enviaram mensageiros a
Bress para lhe lembrar que, se
a sua mãe era originária das
tribos de Dana, já o seu pai era
Elatha, um dos grandes
chefes dos Fomore, gigantes
que habitavam em ilhas no
meio do nevoeiro.
280
ou mulher, adulto ou criança,
ou arriscavam-se a que lhes
cortassem impiedosamente o
nariz. Para cúmulo, o rei
Bress, desde que soubera que
podia contar com os Fomore,
abusava em benefício próprio
das suas prerrogativas.
Atribuiu terras a si mesmo, e
obrigou os nobres das tribos
de Dana a executarem
trabalhos muito duros em seu
proveito. Assim, Ogma, o
campeão”’, devia levar
diariamente um feixe de lenha
para a lareira da casa de
Bress; I- Ognia é o deus
Oginios que o filósofo grego
Luciano de Samosata, no seu
tratado sobre He-
281
Oginios-Ogina não é celta
mas grego, e evoca a «estrad^
o <caminho», tratando-se de
qualquer modo de uma
divindade da comunicaçk
Segundo a tradição irlandesa,
terá inventado o «ogham», ou
seja, a escrita ogântica vertical
que se encontra nas colunas
de pedra da alta Idade Média
na Irlanda e no oeste da Gr
Bretanha. Obviamente, há
pontos em comum entre o
nome Ogina e o de Ogliam,
282
e Dagda, que já lhe havia
construído a casa, foi obrigado
a construir-lhe fortalezas, Com
o passar do tempo, cada vez
mais os nobres das tribos de
Dana viam com maus olhos os
impostos que lhes eram
infligidos pelos Fomore, assim
como as injustiças que eram
praticadas pelo seu próprio rei
Bress, filho de Elatha.
283
substancial da tua ração de
comida me seja dada!» Foi
assim que, a partir de então,
Dagda passou a dar uma
grande parte da sua comida
ao sátiro. Apesar disso, a
ração daquele era abundante,
sendo cada bocado de comida
do tamanho de um grande
porco. E como Dagda, apesar
de privado de um terço da sua
ração, continuava a fazer os
seus trabalhos muito duros, ia
ficando cada vez mais fraco.
284
n-úm que lhe dê todas as
noites uma terça parte
substancial da minha ração».
«Vou-te dar um conselho»,
disse Bobdh Derg. Tirou a
bolsa da túnica e, pegando em
três peças de ouro, pô-las na
mão de Dagda. «Ouve bem o
que te digo», continuou ele.
«Vais meter estas três peças
de ouro em três bocados de
comida que lhe deres, tendo a
preocupação de que sejam os
mais belos e mais apetitosos.
Cridenbel engoli-los-ã
vorazmente, com as peças de
ouro dentro, de tal modo que o
ouro, ao entrar-lhe no corpo, o
fará morrer. Irão então dizer a
Bress que o sátiro morreu por
lhe teres dado uma erva
envenenada. 0 rei, furioso,
dará ordens para que tu sejas
castigado com a morte, mas tu
defender-te-ás. Dirás que
Cridenbel te pediu os três
285
melhores bocados da tua
comida e que, para o
satisfazeres, lhe deste três
peças de ouro, ou seja, os três
melhores bocados.
acrescentarás que foi por ter
engolido o ouro que Cridenbel
morreu.»
n
1. Membro da classe
sacerdotal druídica, o sátiro
desempenha um papel muito
partícula, as
286
Dagda pôs em prática o
conselho de Bobdh Derg.
Naquela mesma noite, meteu
as três peças de ouro nos três
melhores bocados da sua
comida e deu-os a Cridenbel.
0 sátiro devorou vorazmente
os três bocados e de manhã
foi encontrado morto. Então,
as gentes da casa foram dizer
ao rei que o sátiro tinha
morrido porque Dagda lhe
dera a comer urna erva
envenenada. Bress chamou
Dagda à sua presença e
censurou~ -lhe
veementemente a sua
malvadez, ameaçando-o com
a morte no caso de se vir a
saber que ele era culpado.
«Eu não sou culpado»,
respondeu Dagda. «Crideribel
pediu-me as três melhores
partes que me cabiam, e o que
eu tinha de melhor eram as
três peças de ouro. Dei-as por
287
isso a Cridenbel, e não tenho
culpa de ele ter morrido pelo
facto de o seu corpo não ter
suportado o ouro.» «Se assim
é», disse o rei, «mandarei abrir
o corpo de Cridenbel para ver
se existe ouro lá dentro. Se
não houver, tu morres, e se
houver, ser-te-á poupada a
vida.»
288
deixava dar uso às facas e que
nunca lhes oferecia festins
onde corressem a cerveja e o
hidromel. Nunca havia
grandes festas em que os
poetas, os músicos e todos os
tipos de artistas se exibissem
para gáudio de toda a gente.
Também não se assistia
nunca a grandes competições
onde os campeões pudessem
mostrar as suas habilidades. E
todos se interrogavam como
se havia de ultrapassar esta
situação constrangedora.”)
289
Dana, e
0 Porteiro que lhe vigiava a
entrada da fortaleza só tinha
um olho.
290
ram eles, o filho e a filha de
Dianceclit. Ele chamava-se
Oirmiach e ela Airmed. «Se
são tão bons médicos», disse
o porteiro, «têm de n---10
provar. Não vêem que sou
zarolho? Pois bem, fazei com
que eu tenha um olho no lugar
daquele que me falta.» «E
para já», disse o jovem, «Eu
vou imediatamente pôr um
olho de gato no lugar do olho
que te falta». «Ficarei muito
satisfeito com isso»,
respondeu o porteiro, «e
elogiarei os teus méritos em
todas as assembleias desta
ilha.»
291
satisfeito, pois quando queria
dormir ou descansar, o olho
abria-se ao mais pequeno
chiar de um rato, ao mais leve
bater de asas de um pássaro,
ou mesmo ao mais ligeiro
sopro de vento nos ramos das
árvores. Pelo contrário,
quando tinha necessidade de
observar um grupo de
guerreiros ou uma assembleia
de nobres à volta do caldeirão,
o olho fechava-se-lhe e ficava
com vontade de dormir e de
repousar.
292
entrassem.
293
se pôs a correr por toda a
fortaleza. Os homens da casa
real vieram então ver o que se
passava e mataram o bicho.
294
ronda por braços sucessivos,
não encontravam nenhurn
que conviesse. Referindo-se
ao braço de Moffian, o chefe
POrqueiro das tribos de Dana,
os criados perguntaram aos
médicos: «Este braço serve-
vos?» «Esse parece-nos com
efeito o mais conveniente»,
responderam eles. Era
necessário ainda que o
homem aceitasse de boa
vontade dar o seu braço ao rei
Nuada. «Fá-lo~ei com todo o
gosto», disse o porqueiro,
«desde que isso nos ajude a
livrarmo-nos da opressão dos
Fomore e das injustiças de
Bress.» Oirmiach disse então
à sua irina: «0 que preferes?
Enxertar o braço nos ombros
do rei Ou ir procurar ervas
para permitir que ele se
adapte à natureza da sua
carne?» «Prefiro enxertar o
braço», respondeu Airmed.
295
E, enquanto Oirmiach foi
procurar ervas, Airmed
pacientemente meteu mãos à
obra. Com todo o cuidado,
enxertou o braço do porqueiro
no ombro do rei e, assim que
o Irmão voltou com as ervas,
ela aplicou-as com tantas
cautelas que o braço se
ajustou perfeitamente a
Nuada. Qualquer pessoa que
desconhecesse que ele
perdera um braço em combate
não poderia suspeitar que
aquele braço não era o seu.
Mas, apesar disso, não se
deixou de se lhe chamar rei
Nuada do Braço de Prata.”’
296
braço, Nuada poderia reinar
de novo sobre o seu povo.
Mas outros alvitraram que,
tendo sido atribuído poder real
a Bress, filho de Elaffia, este
não lhe poderia ser retirado
sem seu consentimento. Ora,
era sabido de todos que Bress
se apegara ao poder e que
não o abandonaria sob
nenhum pretexto. «Eu sei o
que há a fazer», disse então
Dagda. «Peçamos a Cairpré,
que é poeta e sátiro, para ir a
casa de Bress e para lhe fazer
provocações pondo a nu as
suas fraquezas e a sua
sovinice.»
297
de boa vontade. Mas Cairpré
achou a casa de Bress
sombria, muito pequena e
desconfortável. Nela
I- Segundo a narrativa do
«Sort des enfants de Tuirenn»
(Oidhech Chloinne Tuireann),
contida em diversos
manuscritos do século XVIII,
publicada e traduzida por
O’Curry em 1863, por P-W.
Joyce em 1874 (old Celtic
Romances) e por Richard J.
O’Duffy em Dublin em 1901.
TraduÇão francesa
fragmentária em R. Chauviré,
Contes ossianiques, Paris,
1947. TraduÇão francesa
integral em Ch.-J.
Guyonvarc’h, Textes
mythologiques irlandais,
Rennes, 1980.
298
não havia lareira para se
poderem aquecer, nem leito
para dormir, nem comida em
quantidade suficiente para
matar a fome. Trouxeram-lhe
três pequenos pães, que
estavam secos e duros. Além
disso, em vez de cerveia e de
hidromel, deram-lhe água.
Comeu os pequenos pães,
bebeu a água, mas dormiu tão
mal na casa real de Bress que
acordou na manhã seguinte
de muito mau humor. Saiu de
casa, atravessou o pátio e ia
pronunciando as seguintes
palavras: «Que horrível é a
casa de Bress, filho de Elatha,
pois nela a comida não é
servida em pratos de ouro, o
leite de vaca não é
generosamente distribuído, a
cerv ’a deliciosa não corre a
rodos, e os poetas, os
contadores de histórias e os
músicos nela não têm lugar!
299
Que rei é este que não sabe
distribuir as suas riquezas?
Daqui em diante, enquanto
Bress, filho de Elattia, for o rei
supremo, não haverá
colheitas, as vacas não darão
leite, não se fará cerveja, riem
se fará a distribuição de
pedras preciosas e de ouro na
terra da Irlanda.»
E, pronunciadas aquelas
palavras, Cairpré deixou a
fortaleza. Bress ouviu a
maldição lançada por Cairpré
e, muito assustado, foi a Tara
encontrar-se com os nobres
das tribos de Dana na casa
real.
300
comportas como um rei»,
respondeu Dagda. Para além
de não seres generoso
connosco, fizeste de nos
escravos e obrigas-nos a
pagar elevados impostos em
benefício dos Fomore. «A
verdade», acrescentou Cian,
filho de Diancecht, «é que nós
nunca deveríamos ter firmado
uma aliança com os Fomore.
Eles só nos deixaram
conquistar esta ilha aos Fir
Bolg para poderem depois
dominar-nos e tirarem
dividendos da nossa vitória, e
tu nada fizeste para evitar que
eles nos prejudiquem.» «Nós
fizemos de ti rei», retomou
Dagda, «porque, o nosso rei
tinha perdido um braço em
combate. Tu tinhas dois
braços, mas eles de nada nos
valeram pois não serviram
para criar riqueza e prospe
’dade.» «0 que é que eu podia
301
ter fc’to», perguntou Bress.
«Eu digori 1
.
302
Nuada como nosso rei.»
303
«Vem comigo, que não terás
dificuldade em achá-lo»,
dIsse-lhe a mãe. Ela
encaminhou~se para a praia e
mandou aparelhar barcos
para navegarem para o país
dos Fomore. Depois, tirando o
anel de ouro que lhe tinha sido
dado por Elattia quando viera
ao seu encontro, estendeu-o
para Bress. Bress pô-lo no
dedo do meio, ao qual ele se
adaptou per~ feitamente. Até
àquela altura, Eri Únha-o
guardado religiosamente, não
o tendo vendido ou dado a
nenhum homem. Apesar
disso, muitos guerreiros
tinham tentado enfiá-lo no
dedo, sem êxito, pois aquele
anel não se adaptava a
nenhum dedo dos guerreiros.
304
situado numa ilha envolta em
nevoeiro. Desembarcaram e
avistaram uma grande
planície onde havia varias
assembléias. Dirigiram-se
para aquela que lhes pareceu
mais bela, e as pessoas que aí
se encontravam perguntaram-
lhes por novidades,
respondendo eles que tinham
vindo da Irlarida.
Perguntaram-lhes então se
tinham cães, pois naquele
tempo era costume, sempre
que pessoas de fora
chegavam a uma assembléia,
realizarem-se competições e
Jogos. «Sim, temos»,
respondeu Bress, «e temos
todo o gosto em que eles
participem em ,
305
se graças à sua imensa
velocidade. Perguntaram
critão aos recém~chegados se
tinham cavalos e se permitiam
que eles Competissem com os
dos Fomore «Temos»,
respondeu Bress, «e é para
1168 uma grande prazer que
compitam com os vossos.»
306
reconheceu o anel de ouro
que tinha na mão e
PergurItou-lhe quem era ele. A
mãe respondeu por ele,
dizendo a Elatha
307
que Bress era um dos seus
filhos, e em seguida contou-
lhe toda a história desde que o
guerreiro estrangeiro se fora
encontrar com ela.
308
comigo» continuou Bress, «os
meus súbditos enviaram ao
meu encontro um poeta que
lançou um feitiço sobre o reino
que durará enquanto eu for
rei.» «Estás a dar-me
pessimas notícias», disse o
pai, «pois se o teu povo ficar
na penúria, não poderá pagar-
nos os impostos que lhes
impusemos. E porque é que
vieste até aqui, tendo deixado
a longínqua Irlanda?» «Vim
pedir campeões para me
ajudarem», respondeu Bress,
«pois é minha pretensão
reconquistar o país pela
força.» «Se em tempo de paz
não conquistaste o teu país,
não será pela força que
conseguirás conquistá-lo.
Temos de ter uma conversa.»
309
0 rei convocou os nobres e os
campeões entre os quais se
destacava Balor, filho de Net,
que tinha um olho maléfico.
Estudaram a situação e
concluíram que, a menos que
o trono da Irlanda fosse
devolvido a Bress, filho de
Elattia, eles perderiam todos
os privilégios que lhes
advinham de tributarem
impostos às tribos de Dana.
Os Fomore reuniram por isso
uma multidão de homens de
todas as ilhas e decidiram
partir para a Irlanda. Aí
chegados, os cobradores de
impostos reclamariain o tributo
devido e, se os homens de
Dana se recusassem a pagar,
iniciar-se-ia uma guerra contra
eles. E foi assim que a Irlanda
viu aproximar-se um exército
poderosíssimo e temível,
como jamais se vira.
310
Entretanto, os nobres e os
campeões das tribos de Dana
tinham-se reunido à volta do
seu rei Nuada do Braço de
Prata, no palácio real de Tara.
Sabendo que Bress os trairia e
que iria pedir auxilio aos
Fomore, tinham decidido
preparar-se para combater
aqueles inimigos cruéis C
impiedosos. A reunião
decorria na casa real,
enquanto o porteiro se
mantinha vigilante no exterior
da fortaleza.”’
311
e as suas feições muito
amplas resplandeciam como
ouro. Vinha montado num
cavalo cuja crina era tão bela
como as ondas do mar e que
avançava tão rapidamente
conio a nortada fria e cortante
da Primavera. Envergava uma
armadura cintilante e na
cabeça tinha um capacete
belo e sumptuoso que
brilhava, estando ornado com
uma rica pedra preciosa atrás
e outras duas à frente. Trazia
também uma espada
maravilhosa, que matava
quem quer que por ela fosse
ferido, e que tomava fraco
como uma mulher em trabalho
de parto quem quer que a
visse reluzir no ardor da luta.”,
Destacando-se dos
companheiros de armas, o
jovem avançou para o
porteiro. «Quem és tu?»,
312
perguntou-lhe este.
«Chamam-me Lug do Braço
Longo. Sou filho de Cian, filho
de Diancecht, e de EtImé, filha
de Balor das ilhas que ficam
para lá do nevoeiro. Fui criado
por Tailtiu, filha de Maginor,
dos Fir Bolg.»
313
tua arte, mas nós já temos um
carpinteiro. Chama~se
Luchté, é filho de Luachaid, e
serve-nos perfeitamente
sempre que queremos edificar
entrincheiramentos ou
construir vigas no tecto das
casas.» «Eu também sou
capaz de forjar relhas do
arado e armas com pontas
bem afiadas», replicou Lug.
«Sei bater o metal quando ele
sai da forja e talhar os objectos
à minha maneira.» «Não
duvido das tuas
capacidades», retorquiu o
Porteiro, «mas já temos um
ferreiro que se chama
Goibmu, que é inigualável nas
artes do metal.» «Eu também
sou um campeão imbatível no
campo de batalha», disse Lug.
«Pois que isso te faça bom
proveito! », exclamou o
porteiro, «mas nós já temos
um campeão que se chama
314
Ogiria. Sozinho ele é capaz de
vencer em combate uma
centena
l’ Segundo a narrativa de A
segunda batalha de Mag-
Tured, primeira versão.
315
de homens armados.» «Eu
também sou tocador de
harpa», insistiu Lug, «e sei
provocar alegria, tristeza e
sortolência.» «Quanto a isso»,
objectou o porteiro, «ternos
também quem nos satisfaz.
Craffine e o nosso tocador de
harpa e, além disso, o nosso
protector Dagda possui uma
harpa mágica com a qual é
capaz de provocar todos os
estados de espírito. A harpa
sai por ela própria da parede a
que está encostada e,
espontaneamente, vem parar
às mãos de Dagda. Como vês,
não precisamos de ti nesta
assembleia real.» «Além disso
sou poeta e contador de
histórias», disse Lug.
«Conheço as histórias de
tempos passados, e sou
capaz de as contar a quem
quer que peça para as ouvir.
Sou a memória viva das tribos
316
de Dana e de todos os povos
do mundo.» «Nós já temos um
poeta, Cairpré, filho de Etame.
Ele conhece tudo o que
aconteceu no mundo desde a
sua criação, e tem o dom de
contar os
1
1
acontecimentos. Se queres
que te diga, não sei o que
poderias fazer por Z:I
317
para os inimigos.» «Também
nesse particular», replicou o
porteiro, «nós estamos melhor
servidos do que qualquer
outro povo. Temos entre nós
diversos sábios e feiticeiros
que conseguem dominar o
vento, a chuva, o mar e a terra.
Temos também três magas,
Bobdh, Macha e Morrigane,
que são as filhas de Errimas.
As três têm o dom de lançar
feitiços durante os combates e
de fazer com que caia chuva
de sangue sobre os inimigos.»
«Está bem ... », insistiu Lug,
«mas eu sou médico e possuo
a arte de sarar as feridas
sofridas em combate.» «Tu de
nada nos servirias»,
respondeu o porteiro, «pois
temos o mais dotado médico
do mundo. Chama-se
Diancecht, e tanto o seu filho
como a sua filha são capazes
de fazer prodígios.» «Sou
318
também copeiro real», disse
Lug. «Num festim sou capaz
de distribuir a cerveja e o
hidromel por todos os
assistentes e de acordo com a
categoria e o valor de cada
pessoa.» «Nós não
precisamos de ti para nada»,
ripostou 0 porteiro, «pois entre
nós existe um copeiro real que
não tem ninguéti, igual no
mundo. Ele serve a cerveja e
o hidromel com sabedoria, e
sem melindrar seja quem for.
Podes ver, portanto, que há
entre nós homens de arte e de
ciência, homens e mulheres
que conhecem todos os
segredos do mundo.» «Pois
bem! », disse Lug, «vai falar
com o teu rei e pergunta-lhe se
conhece alguém que reuna
numa só pessoa todas as qua-
319
for afirmativa, eu renuncio a
entrar na casa real de Tara.»
320
este ganhou a partida. Sem
perda de tempo, o porteiro foi
informar Nuada e os chefes
das tribos de Da’do.
na sobre o ocorri
321
Entrementes, Ogina foi buscar
a grande pedra que se
encontrava no exterior da
casa, e que só podia ser
levantada com o esforço de
vinte e quatro homens;
arrastando-a através da casa,
depositou-a aos pés de Lug,
sendo lançado um desafio a
este. Ora, o jovem guerreiro,
sem pronunciar uma palavra,
ergueu~se, agarrou a pedra, e
com um único movimento
levantou-a na vertical,
fazendo-a depois retomar o
lugar onde estivera.
322
1. Em gaélico, «Samildanach,
um dos numerosos epítetos
de Lug. Esta personagem
divina, cornum ao conjunto do
mundo celta, está com efeito
«para além das funções», ou
seja, reúne em si todas as
funções atribuídas à divindade
única que parece ter sido a
dos celtas. Trata-se do
«Mercúrio» gaulês de que fala
César nos seus comentários,
deus que, segundo o
Procônsul, era o mais
venerado e aquele a quem
foram consagrados mais
simulacrum,
2. OU, dito por outras
palavras, pilares de madeira
ou de pedra.
Trata-se de um protótipo do
célebre «Assento Perigoso»,
que, na Távola Redonda, está
reservado apenas a
323
predestinados.
324
dirigindo-se à assembleia,
tocou com tal perfeição uma
música sonolenta que todos
dormiram um dia inteiro,
desde aquela hora até mesma
hora do dia seguinte. Depois
tocou uma música que fazia
rir, e todos ficaram alegres e
bem dispostos durante muito
tempo. Por fim, tocou uma
música triste, e todos
mergulharam numa profunda
angústia durante a noite e até
à mesma hora do dia seguinte,
lamentando-se e
choramingando.
325
nobres destas tribos e, a seu
conselho, levantou-se do seu
assento e pediu ao jovem
guerreiro para nele se sentar.
Lug do Braço Longo sentou-se
então no assento real, embora
não fosse rei, e Nuada ficou de
pé diante dele treze dias e
treze noites. Depois disso, o
rei foi encontrar-se com
Dagda e Ogiria para lhes dizer
em segredo que era
aconselhável confiar a Lug,
filho de Cian, a chefia da
guerra que iam travar contra
os Fomore. Ogina e Dagda
aprovaram a ideia e foram da
opinião de que Lug deveria ter
a última palavra sobre o modo
como o combate devia ser
travado. Foram então reunir-
se com ele para o
consultarem.
326
ferreiro Goilmiu que contributo
ele lhes poderia dar. «Não te
preocupes», respondeu
Goibrtiu. «Podem os homens
da Irlanda estar em guerra
durante sete anos, e por cada
ferro do dardo que saia da
haste, ou por cada espada que
se parta, eu substituirei a peça
em falta. Qualquer ponta de
armamento que saia da minha
for a será de tal modo eficaz
que o corpo em i
327
seguintes, a menos que os
matem ou lhes cortem as
goelas.» «E tu, Credné»,
perguntou Lug ao artíficie do
bronze, «que grande
contributo nos poderás dar na
batalha?» «Não te preocupes:
fornecerei rebites de dardos,
punhos de espadas, bocetes e
guarnições de escudos.» «E
tu?», dirigiu-se Lug ao
carpinteiro, «que grande
contributo nos poderás dar,
frente aos Fomore?» «Não te
preocupes: fornecerei a todos
os escudos e as lanças de
madeira de que precisarem, e
substituirei instantaneamente
as armas que ficarem
danificadas no ardor do
combate.» «E tu,
328
recuar o rei dos Fomore e três
novenas dos seus guerreiros,
farei com que os homens da
Irlanda fiquem desde logo com
um terço da vitória ganha.
Nenhum inimigo conseguirá
resistir aos golpes que eu
infligir.» «E tu, Morrigane»
dirigiu-se Lug à maga, «que
grande contributo será o teu
nesta batalha?» «Não te
preocupes: tudo o que eu
quiser alcançarei, graças ao
poder dos ineus feitiços. A
minha arte aterrorizará de tal
modo os Fomore que a planta
dos seus pés ficará branca, e
os seus campeões morTerão
uns a seguir aos outros devido
à retenção da urina. Quanto
aos outros guerreiros, fá-los-ei
ter tanta sede que ficarão
enfraquecidos, e farei com
que todas as fontes fujam
deles de modo a não poderem
matar a sede. E enfeitiçarei as
329
árvores, as pedras e as
elevações de terra de tal modo
que, confundindo-as com
contingentes de homens
armados,(” os inimigos nelas
se perderão cheios de terror e
de pânico. «E tu, Cairpré, tu
que nos encantas os ouvidos
com os teus cantos
melodiosos», interrogou Lug o
poeta, «que surpresa
agradável nos reservas nesta
batalha?» «Não te preocupes:
frente às hostes dos Fomore
cantarei a glória dos nossos
pais, os filhos de Nemed.
Depois enfeitiçá-los-ei e
lançar-lhes-ei o glam dicin”1
mais poderoso que alguma
vez existiu na Irlanda. Desse
modo a honra dos Fomore
cairá por terra e eles não
resistirão à investida dos
nossos, o que, podes crer,
Lug, filho de Cian, sem dúvida
se deverá à magia da minha
330
arte».
331
portanto também aos poetas e
a fortiori aos druidas
propriamente ditos, adivinhos
e mágicos de toda a espécie,
assim como aos heróis ou
heroínas que mais se
destacam. Tem algo de
comum com o não menos
poderoso geis, às vezes
traduzido incorrectamente por
tabou, e que é uma obrigação
mágica - e social itriposta a um
indivíduo. Aquele que, por um
motivo qualquer, recuse um
geis é rejeitado pela
comunidade; mas aquele que
seja atingido por um glam dicin
não tem outra saída senão
sofrer passivamente o feitiço.
Parece que, após a
cristianização da Irlanda - ao
menos a crer na tradição
hagiográfica - um certo
número de padres e de
monges praticaram uma forma
atenuada do glam dicin contra
332
não cristãos ou contra
indivíduos culPados de um
grande mal, em geral de
natureza religiosa.
333
Dana, que proezas fareis
durante a batalha?» «Não te
preocupes: desencadearemos
tantas tempestades e tantas
chuvas de fogo sobre os
Fomore que eles nem serão
capazes de levantar a cabeça
e sucumbirão às mãos dos
vigorosos guerreiros que
investirão contra eles. E se
isso não for suficiente,
faremos desaparecer as
fontes, os rios e os lagos da
Irlanda para que os Fomore
não possam saciar a sede que
lhes secará as gargantas
durante a batalha. Essas são
as proezas que faremos, ó
sábio Lug do Braço Longo,
filho de Cian.» «E tu,
Craftiné», continuou LuzeD,
dirigindo-se ao harpista, «que
feito porás em prática nesta
batalha?» «Não te preocupes:
tocarei músicas e melodias
tão doces aos nossos
334
guerreiros que eles
mergulharão num repousante
sono até à manhã seguinte.
Depois disso, irei combater e
matarei o maior número de
inimigos possível.» «E tu,
Bobdh Derg, filho do valente
Dagda». prosseguiu Lug,
«que podemos esperar de ti?»
«Não te preocupes: ire’
combater e logo na minha
primeira investida farei com
que caiam a meus pés, vítimas
dos meus golpes, mais de
uma centena de guerreiros
Fomore. E não deixarei de os
perseguir para os eliminar e
para Os matar até ao último
dos seus homens.» «E tu,
Dagda, o mais sábio de nós
todos», continuou Lug, «que
proezas nos reservas durante
a batalha contra os Fomore?»
«Não te preocupes: tomarei a
dianteira dos homens da
Irlanda e serei o primeiro a
335
avançar contra os guerreiros
que nos vêm fazer frente.
Bater-me-ei contra eles com
tal vigor que arrasarei, corri
sortilégios e com armas, todos
aqueles que tentarem resistir.
Os ossos dos meus
adversários transformar- se-
ão em migalhas de tanto eu
lhes bater com a minha
moca1`, e as migalhas serão
dispersas parecendo saraiva
pisada pelo casco dos cavalos
depois de uma tempestade.
No auge da batalha, mesmo
se estiver cheio de chagas e
de feridas, eu não vos
1 1
336
feito realizarás na luta contra
os Foniore?» «Não te
preocupes: agitarei
337
imagem de Dagdu com a
moca é muito frequente no
misterios0 «Homem
Selvagern», rústico a quem
obedeciam os animais
selvagens e que se encontra
em diversos contos populares,
assim como em romances do
ciclo arturiano.
338
combaterei. Estarei no entanto
em condições de dar de comer
a todos os guerreiros que
estarão sob a tua chefia, e não
deixarei que a fome ou a sede
se instalem entre eles
enquanto durar a batalha.»
339
Findo isto, Lug separou-se
daqueles nobres e chefes das
tribos de Dana e marcaram um
encontro para a véspera de
Samain. Mas, antes de deixar
a assembleia, Lug, pediu a
Dagda para que estivessem
atentos a chegada dos
Fomore, que deveria ser
retardada o mais possível de
modo a que o combate
pudesse ser preparado com
todas as cautelas. E Dagda
prometeu a Lug satisfazer o
seu pedido, pois ele era o
protector das tribos de Daria e
devia, acontecesse o que
acontecesse, velar pela
protecção do seu povo.(”
1. 0 manto mágico de
Mananann também é célebre
na tradição celta: é um objecto
mágico que faz com que se
esqueçam alguns dos
acontecimentos mais
340
recentes. A personagem de
Mananann, pouco
referenciada nas narrativas
que dizem respeito ao
estabelecimento das tribos
de Dana na Irlanda, anha
destaque depois da partilha da
ilha entre as tribos de Dana e
os filhos de Milé, ou seja, os
GaéIs [Gaélicos em português
- N. T.], pois ele tornar-se-á o
rei supremo do «povo
feérico», dito de outro modo,
as gentes das tribos de Dana
que residem nos «sidhs», os
grandes Tumulms
megalíticos.
341
de Agosto. Significa isto que
as batalhas grandiosas são
sobretudo simbólicas e
referem-se a rituais religiosos
muito anti-
90s, assinalados pela
mudança de tendências ou
pela substituição de
soberanos.
3. Segundo a narrativa de A
segunda batalha de Mag-
Tured, primeira versão, com
alguns Pormenores retirados
da versão posterior. Esta,
diferente da primeira,
encontra-se no matruscrito 24
P 9 da Academia Real
Irlandesa de Dublin e foi
publicada por Brian O’Cuiv em
Dublin, em 1945. A única
tradução actualmente
existente é a francesa, de Ch.-
J. Guyonvare’h, Textes
mythologiques irlandais,
Rennes, 1980.
342
C a p í t LI 1 0 1 V
343
de Dana.
344
das tribos de Dana?» «Tu
sabes perfeitamente que eles
”0 suportariam saber que
estou em tua companhia. Se o
soubessem, teriam um ciúme
mortal que se abateria sobre
ti.» «No entanto», disse
]1agda, «eu não sou o único
homem que tem a honra de se
poder encontrar cOntigo.» «É
verdade, Dagda, mas
ninguém o deve saber. Pois,
aos
345
olhos dos homens das tribos
de Dana, eu sou livre, e todos
esperam ser desejados por
mim. Haveria muitos corações
destroçados e inconso, láveis
se os meus encontros fossem
conhecidos.»
346
Dadga deitou-se a seu lado e
ela apertou-o contra as suas
coxas. Aquele lugar onde eles
se uniram chama-se agora
Leito do Casal. Terminado o
acto, Dagda levantou-se e
disse: «Vou deixar-te, pois
tenho a missão de identificar o
lugar onde estão
estabelecidos os Fomore,
devendo depois retardá-los o
mais possivel para que as
tribos de Dana se possam
preparar para a batalha.» «Eu
posso ajudar-te», disse
Morrigane. «Estás a ver o
bando de pássaros negros
que voam por cima das
nossas cabeças? Eles vêm de
leste, e se voam na direcção
do sol poente, é porque um
terrível exército os assusta.
Não é difícil perceber de onde
eles vêm, tão desnorteados:
vêm da planície de Scene,
Junto ao Woral. Foi aí que os
347
Fomore desembarcaram em
massa e é aí que estão as
suas hostes.» «Nesse caso,
vou à planície de Scene»,
disse Dagda. «Observarei os
seus movimentos e verei o
que posso fazer para lhes
retardar a expedição. E tu, o
que vais agora fazer?» «Em
primeiro lugar, vou esperar por
um momento propício»,
respondeu Morrigane, «depois
intrometer-me-ei entre os
Fomore e pedirei para ver o
rei. Deixar-me-ão passar
porque sou uma mulher bela e
atraente, e entrarei na tenda
do rei Indech. Quando ele
quiser saciar os seus desejos
cornigo, farei com que o seu
coraçao se Parta e os seus
rins se diluam em sangue.
Nessa altura, irei mostrar os
restos do rei às tribos de Dana
e, tomando conhecimento de
que os Fomoré perde~ ram o
348
rei, elas partirão para a
batalha com uma coragem
acrescida.»(1)
349
mais ter-
Conduziram-no então à
presença de Indech, rei dos
Fomore que o recebeu com
deferência, pois sabia que
Dagda era um sábio entre os
honiens de Dana. Falaram
sobre o lugar onde deveria
decorrer a batalha e do dia em
que ela se deveria iniciar.
Depois, o rei, querendo tratar
o hóspede com todas as
honras, ordenou aos criados e
aos cozinheiros que lhe
dessem de comer.
350
quantidades de cerveja e de
hidromel, podendo ele saciar-
se à sua vontade. Depois
prepararam-lhe uma papa de
farinha pois sabiam que era
um alimento da sua
preferência, mas ao fazê-lo,
tinham em mente troçar dele e
pôr a nu a sua gulodice. Para
o satisfazerem encheram
então o caldeirão do rei que
era muito grande, cabendo
nele cinco homens fortes, com
leite fresco, farinha e banha,
em idênticas proporções. E
como isso não era suficiente,
deitaram para dentro do
caldeirão cabras, carneiros e
porcos que cozeram com a
papa de farinha. Depois, como
era impossível comer de uma
vez toda a comida do
caldeirão escaldante, fizeram
uma cova no solo e deitaram
para lá tudo o que ele
continha.11
351
Quando Dagda viu a refeição
que lhe tinham preparado,
começou por se queixar
dizendo que não estava
habituado a ser servido
de forma tão rude e altiva. Mas
o rei dos Fomore foi ter com
ele e ameaçou-o de morte se
não comesse tudo o que
estava na fossa. Segundo ele,
desse modo Dagda não se iria
queixar de que os Fomore não
sabiam tratar bem os seus
hóspedes.
352
narrativas arturianas, mesmo
tendo ela perdido alguma da
sua rudeza primitiva e tendo-
se tornado uma espécie de
símbolo sexual.
353
modo a cozer os aliMernos a
uma temperatura moderada,
prática que a todos os níveis
está em conformidade com a
dietética moderna.
354
Percebendo que não poderia
recusar, Dagda pegou na
colher, que era de tal maneira
grande que um homem e uma
mulher se poderiam deitar ao
fundo dela. E cada colherada
que ele tirava da fossa
obrigava-o a devorar meio-
porco, um pernil de ovelha ou
de cabra.”’
355
nunca tinham visto ninguém
com tanta gula.
356
troçavam dele, ficou furioso.
Estava tão entorpecido que
preferiu não dar troco à
zombaria deles. Depois de se
despedir, começou a
caminhar para a assembleia
de Tara para contar o que vira
e a experiencia por que
passara.
357
1.
358
Pantagruel, é uma espécie de
demónio medieval que enche
de sede os seus inimigos
atirando-lhes sal. 0 Dagda
irlandês é uni dos aspectos
que toma esta personagem
saída da mais remota
mitologia.
359
insolente, rnas ela furtou~se e
começou a correr. Dagda
levantou-se com dificuldade e,
percebendo que não poderia
apanhá-la, lançou-lhe pedras,
mas não a atingiu. Então,
enfurecido, jurou vingar-se
massacrando todos os
Fomore que apanhasse pela
frente na batalha, pois eram
eles os culpados pela sua
vergonhosa situação. A
seguir, retomou a marcha em
direcção a casa real de Tara.
360
uns convencidos, por se
atreverem a querer combater
contra nós», disse Indech.
«Tenho a impressão que eles
ficarão reduzidos a migalhas e
que os seus ossos serao
poeira no dia a seguir à
batalha.» «Rei supremo»,
interveio então Bress, filho de
Elatha, «seria bom que
fizéssemos uma última
tentativa para evitar a
confrontação.» «És
cobarde?», gritou Indech.
«Tens medo de medir forças
com os guerreiros das tribos
de Dana?» «Claro que não, rei
supremo», respondeu Bress.
«Se falo assim, é no interesse
de todos. Pelo que me toca,
estarei a vosso lado no
combate e, aconteça o que
acontecer, portar-me-ei como
um rei. Mas se exterminarmos
os homens da Irlanda, esta
ilha ficará deserta e não
361
havera mais ninguém para
cultivar os camPos e para criar
o gado. Que ganharíamos
com isso? As vossas
,i
362
aceitarem estas nossas
últimas propostas, se nos
pagarem o tributo, abster-nos-
emos de os
363
combater e voltaremos para
as nossas ilhas. Mas se eles
recusarem, terão de travar um
combate mortal e de
desaparecer desta terra da
qual passaremos a ser os
únicos senhores.»
364
muralhas da fortaleza, o
porteiro, aterrado, perguntou o
que desejava. Assim que lhe
foi dada uma resposta foi,
apressado, ter com Nuada e
informou-o das pretensões
dos Fomore, que exigiam a
sua parte das colheitas, de
gado e de objectos preciosos,
assim como a devolução da
coroa a Bress, filho de Elattia.
365
nenhuns direitos sobre esta
terra e nós queremos libertar-
nos da escravidão que nos é
imposta por estrangeiros.
Manda-os voltar para perto
dos seus, e diz-lhes para se
prepararem para sofrerem
uma derrota vergonhosa que
lhes trará toda a infelicidade
do mundo!»
0 porteiro transmitiu a
mensagem, e os Fomore, sem
insistirem, regressaram para
junto das hostes do rei Indech.
Entrementes, apareceu Lug,
filho de Cian. Informado do
que acabara de acontecer e,
tomando conhecimento das
exigências do adversário,
ficou negro de raiva.
«Como?», gritou ele. «Vocês
sofreram durante largos anos
a opressão dos Fomore, que
vos impuseram a escravatura,
e deixaram partir sãos e
366
salvos os mais cruéis e
perversos deles?» «Não
tínhamos alternativa»,
respondeu Nuada. «Eles
vieram na qualidade de
mensageiros e era difi~ cil
impedi-los de voltar para junto
dos seus.» «Mas como me
enfurecem os vossos
escrúpulos!», rugiu Lug.
«Deviam tê-los tomado como
reféns ou tê-los massacrado
para que não pudessem
combater-vos na batalha que
se avizinha. Eu vou persegui-
los e fá-los-ei pagar um preço
1. Segundo a narrativa da
Segunda batalha de Mag-
TÚred, primeira versão.
367
perseguir esses malfeitores. 0
teu lugar é aqui, entre os
chefes das tribos de Dana,
que se preparam para travar a
batalha mais violenta que
alguma vez se viu. Serei eu a
ir atrás desse bando
execrável!»
368
teria pela frente na batalha a
travar na planície de Tured,
podendo aí vingar-se deles.
Arreplou então caminho com a
intenção de entrar em Tara.
Atravessou a planície de
Murthemné e logo viu três
jovens armados a virem ao
seu encontro. Reconheceu
neles, imediatamente, os três
filhos de Tuirenn, que se
chamavam Brian, lucharba
e luchar.
369
embora todos eles fizessem
parte das tribos de Dana e
descendessem de Nemed.
Mas era mais forte a
incompatibilidade entre eles, e
os três filhos de Tuirenn
tinham todos herdado um ódio
feroz pelos membros da
família de Diancecht.
370
atacá-lo sem piedade.
371
uma vara de porcos, não
hesitou e bateu em si mesmo
com uma varinha druídica,
adquirindo então o aspecto de
um porco e começando a
esgaravatar no chão como
faziam os outros porcos. «Que
estranho», disse Brian, filho
de Tuirenn, aos in-nãos.
«Vocês não viram, como eu,
um dos filhos de Diancecht a
atravessar a planície?»
«Vimos, na verdade»,
responderam eles, «e
reconhecemo-lo. E impossível
que tenha desaparecido sem
motivo. Desde que vejo
planícies e vales aprendi a
saber distinguir o que existe
do que não existe. Estou bem
em crer que sei como ele
desapareceu: bateu em si
mesmo com uma varinha
druídica de ouro e
transformou-se num porco,
misturando-se com os desta
372
vara- E, neste mesmo
momento, nas nossas barbas,
ele prepara-se para fugir com
os seus semelhantes.»
«Estamos com pouca sorte»,
disseram os dois irmãos,
«pois esta vara pertence a
uma das tribos de Dana e não
podemos matar todos os
porcos, já que seríamos
censurados por isso. Além
disso, mesmo que o
fizéssemos, é certo que o
porco druídico nos
escaparia.» «Tu não és muito
inteligente», respondeu Brian,
«e vejo que de nada te serviu
a lição que recebemos nas
ilhas do norte do Mundo. Tu
nem sequer és capaz de
distinguir um animal druídico
de um animal natural.»
373
varinha mágica e druídica que
trazia sempre consigo, e deu-
lhes a forma de dois cães
muito magros, ágeis e rápidos
que, soltando latidos fortes, se
precipitaram sobre a vara e a
dispersaram. Depois,
investiram sobre um dos
porcos, precisamente aquele
em que se transformara Cian,
e este refugiou-se junto de
uma mata de aveleiras,
esperando não ser visto; mas,
por efeito de artes mágicas,
Brian, adivinhando a sua
intenção, brandiu a sua lança
e bateu-lhe no peito com ela.
374
«E verdade», admitiu o porco,
«eu era UIII homem antes de
adquirir esta forma. Sou Cian,
filho de Dianceclit. Poupa-me
a vida, suplico-te, e serei teu
criado, ficando ao teu serviço
na batalha contra os Fomore.»
«Juro por todos os espíritos do
ar», gritou Brian, «que se a tua
alma voltasse sete vezes para
o teu corpo, eu a caçaria sete
vezes!» «Então», disse Cian,
«faz-me um favor»«Como
queiras», disse Brian. «Deixa
que eu volte a ter a forma liti-
1
375
matado na forma de um porco,
o meu filho apenas poderia
reclamar o preço de um porco.
Mas, ja que me queres matar
na minha forma natural, terás
de o recompensar com o
preço de um homern, o que te
ficará multo caro devido à
minha categoria, as minhas
acções e aos meus méritos. E
serão as armas com que me
matardes que servirão de
testemunho da minha morte
ao meu filho.»(’) «Não serás
então morto com as nossas
espadas», disse Brian, «mas
com pedras que apanharemos
do chão.»
376
depois uma fossa e
enterraram-no. Mas a terra
não aceitou este assassínio e
atirou o corpo para a
superfície. Os filhos de
Tuirenn enterraram-no uma
segunda vez, mas a terra
voltou a rejeitá-lo. E eles,
enterrando-o seis vezes de
seguida, seis vezes de
seguida a terra o rejeitou. Só à
sétima vez, enfim, o corpo
ficou encerrado dentro da
terra. Então, os filhos de
Tuirenn deixaram a planície
de Murthemné e dirigiram-se
para a planície
377
se podia vigiar os moviinentos
e os gestos dos Fomore. E
todos os dias havia lutas entre
eles, nãO Participando nelas
nem reis nem nobres, mas
apenas guerreiros muito rijos
e temerários. Os Fomore
estavam espantados com o
infortúnio que sobre eles se
abatera. As suas armas,
fossem dardos ou espadas,
deterioraram-se sem motivo
aparente, e os seus guerreiros
morriam sem que voltassem
no dia seguinte. Em
contrapartida, era o contrário o
que acontecia com as gentes
das tribos de Dana: as suas
armas, quando porventura
sofriam danos, logo
apareciam intactas e refeitas
no dia seguinte, tão poderosas
e mortíferas como antes. 0
grande artífice que tornava
aquilo possível era o ferreiro
Goibilu, que não parava de
378
fabricar espadas, lanças e
dardos, bastando-lhe dar três
pancadas para
Em diversas narrativas
mitológicas ou épicas, as
armas podem falar e fornecer
dados sobre asPcctos que
envolveram o seu uso. Não se
trata de uma ingenuidade,
sabendo-se que a e ’
379
fazer o seu serviço. 0
carpinteiro Luclité forjava
hastes também con, três
pancadas, sendo a terceira
para as polir e as inserir no
encaixe da lança ou do dardo.
Quando as armas eram
postas ao lado da forja, ele
lançava os anéis nas hastes, e
já não era necessário ajustá-
las. Quanto ao artífice do
bronze Credné, também
fabricava pregos com apenas
três pancadas, sem ter depois
necessidade de os ajustar. E
os guerreiros que tinham sido
feridos ou mortos em combate
voltavam no dia seguinte para
o seu posto, o que se devia a
Diancecht que, com o seu filho
Oirmiach e a sua filha Airmed,
lançara um feitiço na Fonte da
Saúde. Nesta fonte se
banhavam os homens, mortos
ou feridos, ficando com a
saúde restabelecida logo que
380
dela saíam. Esta fonte chama-
se Lusmag, ou seja, Planície
das Ervas, pois Diancecht a
ela deitou urna haste de cada
erva que crescia na Irlanda.
Há quem sustente, no entanto,
que estas plantas, trezentas e
sessenta e cinco ao todo, são
as que cresceram no túmulo
de Miach, filho de Dianceclit,
assassinado pelo pai devido a
ciúmes, por ter enxertado tão
perfeitamente o braço de prata
do rei Nuada. Airmed, a filha
de Dianceclit, tinha posto
estas ervas no seu manto e
tinha-as lançado na Fonte da
Saúde. Mas Dianceclit,
sempre movido por ciúmes,
tinha misturado tão bem estas
ervas que so ele conhecia a
virtude particular de cada
uma.
381
encarregaram um dos seus de
ir ver a disposição das hostes
das tribos de Dana e de tentar
descobrir como eles eram
capazes de fazer tantos
prodígios. Coube a Ruadan,
filho de Bress e de Brig, filha
de Dagda, e que, por
consequência pertencia mais
ao clã de Dana do que ao dos
Fomore, ir espiar o campo
adverso. No regresso, ele
contou aos Fomore as
proezas que vira serem feitas
pelo ferreiro, pelo carpinteiro,
pelo artífice do bronze e pelos
médicos reunidos à volta da
fonte, e conflarani-lhe então a
missão de ir matar o ferreiro.
382
voltou-se e atingiu Goibniu
com a arma, ferindo-o
gravemente. Goibniu arrancou
a arina da carne e, voltando-se
para Ruadan, furou-o dum
lado ao outro, entregando este
último a alma ao pai que
estava em frente, no exército
dos Fomore. Brig veio então
chorar o filho, dando primeiro
um grito e lamentando-se
depois. Crê-se que foi nesta
altura que, pela primeira vez,
se ouviram choros e
lamentações lia Irlanda.
Goibniu, por seu lado, foi
mergulhar na Fonte das Ervas
e, reCu-
perando rapidamente,
reapossou-se da forja e
retomou o trabalho.
nt e os Fomore, encontrava-se
um jovem guerreiro chamado
Er 1.
383
octriallach, que era um dos
filhos do rei Indech. 0 jovem
aconselhou os Fomore a
pegarem numa pedra e a
atirarem-na à Fonte das
Ervas, situada a norte do lago
e a oeste da planície de Tured.
Os Fomore dirigirani-se para
ai, um apos outro, e cada um
atirou uma pedra para a fonte
que ficou assim cheia, de tal
forma que não era possível
mergulhar nela. E desde
então, neste lugar, ergue-se
um outeiro a que se chama
Tumulus de Octriallach.
384
todos envergavam uma
armadura, e tinham um
capacete na cabeça, urna
lança aguçada na mão direita,
uma espada bem afiada à
cintura, e um escudo largo e
sólido aos ombros. Atacar os
Fomore, naquele dia, na
planície de Tured, era como
bater com a cabeça contra
uma rocha, por a rnão num
ninho de vespas, ou ficar
exposto a um fogo ardente.
385
envolver na carnifícina.»
«Tens razão», concordou
Ogina, «mas todos nós
sabemos que ele nos poderá
conduzir à vitória. Que nos
poderá acontecer, se ele não
estiver connosco?» «Nada
receemos quanto a isso»,
respondeu Nuada, «os nossos
heróis não têm receio algum
quando estão diante das
armas dos inimigos, e se’ que
eles saberão resistir à fúria
desta raça cruel dos Fomore,
mesmo se Lug não estiver
presente Para nos dar o
exemplo e nos guiar. Seria
mais conveniente que ele fi~
casse resguardado, pois ele é
o nosso estratega e o nosso
mestre cheio de sabedoria.»III
«Mas», disseram os nobres
das tribos de Dana, «Lug
Iluirica aceitará ficar
resguardado.» «Eu vou
revelar-vos um plano»,
386
continuou Nuada do Braço de
Prata, «antes de começarmos
a comba-
Na Primeira versão da
«segunda batalha de Mag-
Tured», não é dada uma
explicação nem urna
justificação para o facto de
Lug ficar resguardado. Em
contrapartida, na segunda
ver~ são, Nuada propõe que
ele fique resguardado por uma
questão de ciúme e por querer
reclaInar só para si a vitória
final.
387
ter, devemos organizar um
grande festim com muita
cerveja fresca , deliciosa para
os campeões. Faremos este
festim em homenagem a Lug
e com ele presente. Ele, cheio
de alegria, beberá em excesso
até ficar bêbedo. E nós, logo
que o vejamos inconsciente,
atá-lo-emos e amarrá-lo-emos
firmemente com correntes de
metal azul aos grandes pilares
plantados na terra que
sustentam a tenda dos festins.
Desse modo, a batalha
decorrerá sem a sua
presença, e não correrá risco
de vida.» «0 teu plano é
sensato e inteligente»,
disseram os chefes das tribos
de Dana, «e concordamos em
pô-lo em prática.»
388
Lug bebeu tanta cerveja
espumante e curativa que não
demorou a ficar ébrio e alegre.
Os assistentes tocaram
depois harpa e gaitas de foles,
assim como outros
instrumentos, embalando o
real guerreiro com o excesso
de bebida e com a suave
melodia. Depois, Craftiné
pegou na sua harpa e,
dedilhando as suas nove
cordas, tocou até o jovem
guerreiro ficar em repouso
absoluto, profundamente
adormecido. Então, os nobres
das tribos de Dana
apressaram-se a acorrentar o
herói. Amarraram-no com
firmeza aos pilares bem
presos à terra, sem que ele
disso se pudesse aperceber.
As hostes puseram-se logo
em seguida em andamento,
prontas para combaterem pelo
rei supremo da Irlanda, Nuada
389
do Braço de Prata, tendo
ficado apenas Craftiné, o
harpista, para vigiar Lug do
Braço Longo.
390
sabes muito bem que é o
barulho de uma batalha o que
ouvimos. Peço-te, Crafliné,
que me desamarres os laços,
para que eu possa ir à frente
de batalha guiar os nossos
homens à vitória.» «Eu não
tenho a força nem a coragem
suficientes para desatar os
laços, ó Lug», respondeu
Craffiné, «pois foram mãos de
heróis e a força de guerreiros
que te amarraram aos
pilares.»
391
desembaraçar-se delas e
precipitou-se para a porta,
começando a correr para o
lugar onde se defrontavam os
exércitos. 0 alando provocado
pela sua corrida foi tal que não
houve combatente que não
ficasse a vê-lo aproximar-se
com uma mistura de medo e
de espanto. A sua aparência
era tão impressionante que
ambos os exércitos deram um
passo atrás. Então, Lug foi
juntar-se às tribos de Dana e
deteve~se diante de Nuada do
Braço de Prata. «Tu
cometeste um erro terrível, ó
herói real!», gritou ele.
«Pensavas travar a batalha e
libertar a Irlanda sem que eu
pudesse ter uma palavra a
dizer? Foi uma imprudência
terdes iniciado esta batalha
sem terdes tempo para a
preparar. Regressai pois ao
acampamento e esperai pelo
392
sinal que eu vos enviar no
momento que achar mais
apropriado para eliminar a
raça dos Fomore e libertar a
terra da Irlanda dos seus
opressores.»
Então, os chefes e os
guerreiros das tribos de Dana
voltaram ao acampamento,
passando-se a noite sem que
houvesse mais qualquer
escaramuça entre os
guerreiros dos Fomore e os
das tribos de Dana.
Entretanto, Morrigane, filha de
Ertimas, chegara ao campo
dos Fomore e entrara na tenda
de Indech, o seu rei supremo.
E ao sair, nas mãos
manchadas de sangue, trazia
os rins do rei, que exibiu
altivamente aos Fomore para
lhes mostrar que já não tinham
chefe. E, sem perda de tempo,
entrou no acampamento das
393
tribos de Dana.
Os guerreiros de ambos os
lados lançaram um imenso
clamor ao partirem para o
combate. Encontraram-se no
meio da planície de Tured,
394
liunia luta de corpo a corpo, e
um grande número de homens
bravos e ------
I. Trata-se de um canto
mágico - e druídico -
acompanhado de «eircum-
ambulação», de acordo com
um ritual muito antigo. 0 facto
de fechar um olho e de se
aguentar apenas sobre um pé
lembra também uma espécie
de ritual xamânico de êxtase
guerreiro que se encontra no
tema indo-europeu do deus
zarolho (Odhin-wotan, que
deu um dos seus olhos Para
desfrutar da «dupla visão») e
do rei coxo guardião dos
segredos do Outro Mundo (o
Rei Pescador do ciclo do
Graal).
395
generosos logo caíram no
campo de batalha. A
carnificina foi enorn,,, dando
lugar, mais tarde, a imensas
sepulturas neste lugar.
Sentimentos como a vergonha
e o sentido da honra ali se
misturaram à pior ferocidade
que se possa imaginar.
Correram abundantes rios de
sangue na pele branca dos
belos guerreiros que, cortados
pelas espadas, lutavam
encarniçadamente, aplicando
golpes implacáveis com as
suas lanças muito afiladas. 0
fragor da luta foi desmedido,
atirando-se os guerreiros uns
contra os outros com um
grande alarido de lanças e de
espadas. Por todo o lado
ecoava um grande estrondo: o
grito dos guerreiros respondia
ao ruído dos escudos que
embatiam uns nos outros, as
espadas silvavam nos ares
396
indo ao encontro de carne
humana, o estalo das
armaduras misturava-se com
o ruído dos dardos. No choque
brutal dos corpos os membros
superiores misturavam-se
com os inferiores num cenário
infernal. Os heróis caíam uns
a seguir aos outros, e o chão
estava escorregadio sob os
seus pés devido ao sangue
derramado. As cabeças
batiam umas nas outras,
provocando o estalido dos
ossos do crânio e espalhando
os miolos na erva
ensanguentada. E o rio
transportava cadáveres que,
levados pela corrente para os
lagos, aí se amontoavam.
397
desconhecido, que sem
dúvida provinha do País da
Promessa. Tinha uma camisa
de linho, bordada com um fio
de ouro sobre pele branca, e a
túnica, ampla e confortável,
possuía diversas cores. 0 seu
avental muito largo e belo
estava revestido de ouro fino e
possuía franjas, colchetes,
com bordados em prata, tendo
um cinto tão bem guarnecido
que nem a espada mais afiada
do mundo o poderia
trespassar. Lug envergava
também uma armadura em
ouro espesso, com belas
maçãs onde estavam
incrustadas pedras preciosas,
e para se proteger trazia um
largo escudo de madeira
vermelha revestida a ouro.
Nas mãos segurava a espada,
muito longa e fina, escura e
muito cortante; brandia a
lança que tinha ferro
398
envenenado, uma lança larga,
temível, de cinco pontas, da
qual ninguém conseguia
escapar. Mas, sobretudo, ele
trazia consigo a sua moca
usada em batalhas, de ferro
muito sólido, e a sua funda
que lhe permitia arremessar
poderosas bolas de ferro que
nunca falhavam o alvo.
108 C--e-ICI-
399
perante os inimigos. Nele se
misturavam a fúria do leão
enraivecido, o bramido das
vagas do mar no momento das
grandes tempestades, e o
ronco do oceano de espumas
azuis e verdes quando se
abatem sobre a areia. E os
guerreiros de Dana seguiam-
no no seu ímpeto feroz, capaz
de fazer estremecer o mundo.
400
olhar deste olho não lhe
podiam resistir, ficando
paralisados pelo medo. 0
sortilégio deste olho devia-se
a um feitiço que Balor
recebera quando ainda era
jovem. Os druidas do seu pai
tinham posto a ferver um
caldeirão onde deitaram ervas
magicas o feitiços, e ele, ao
abrir uma janela, recebera no
olho o vapor envenenado que
se libertava do caldeirão. A
partir de então passou a ser
chamado simplesmente Balor
do olho maléfico.
401
assim, mas para pôr cobro a
uma batalha que já fizera um
grande número de mortos e de
feridos. Balor virou-se então
para aqueles que o rodeavam,
dizendo: «Companheiros,
levantai-me a pálpebra, para
que eu possa ver o palrador
que se dirige a mim com tanta
impertinência.»
Ergueram-lhe a pálpebra, e
Balor começou a contorcer-se
à volta de Lug para o provocar.
Um arrepio de medo percorreu
o filho de Cian quando viu a
sombria cavidade injectada de
sangue negro que, muito
aberta, observava as tribos de
Dana. Mas, prudentemente,
Lug evitou olhar para o olho de
Balor e chamou Goibniu,
pedindo-lhe para lhe trazer
uma pedra de funda terrível,
arrasadora, maravilhosa, que
conseguisse atingir o olho de
402
Balor e eliminá~lo.
403
seguiram pegar nela, sendo
necessário o próprio Goibrim
para a transportar até à
presença de Lug do Braço
Longo.
404
Balor, o campeão invencível
dos Fomore.
405
Ertitretanto, aproveitando a
confusão Balor fugiu.
406
furiosamente, e Bress,
batendo em Lug com o seu
escudo, provocou-lhe três
ferimentos, mas Lug não
deixou de responder e corfi o
rebordo do seu infligiu~lhe
golpes tão violentos que Bress
estava efn grandes apuros
quando os Fomore vieram em
seu socorro. Dando três gritos
poderosos contra Lug, eles
fizeram chover sobre ele um
feixe de lanças e de dardos,
mas ele evitou-os e fê-los cair
por terra, pisando-os depois
até os transformar em
bocados de ferro contorcido.
Mas esta manobra de
diversão permitira que Bress
escapasse sem ser ferido e
depois se confundisse com os
seus, não conseguindo Lug
encontrá-lo,
407
novo contra os Forriore e não
tardaram a encostá~los à
parede. Desnorteados,
aqueles ficaram
desorganizados e,
abandonando a planície de
Tured, dirígiram-se para o mar
com a esperança de
reembarcar e de fugir o mais
depressa possível da ilha da
Irlanda. No meio deles, Balor
tentava recompor-se da grave
ferÀda que lhe fora inflígida
por Lug do Braço Longo.
408
perfurou-lhe o peito de lado a
lado. «Lembra-te que sou o
teu avô», gritou Balor para
Lug, «e que a tua mãe é Ethné
do rosto doce». «Eu também
sou filho de Clan, filho de
Diancecht, e pertenço às
tribos de Dana!», replicou Lug.
«Por favor, não me
humilhes!», implorou Balor.
«As tuas palavras nada
valem!», respondeu-lhe Lug.
«Já não te estás a humilhar
quando me pedes para te
poupar a vída?» «Eu não te
peço que me poupes a vida»,
replicou Balor, «peço-te
apenas que me deixes
satisfazer um desejo.» «0 que
desejas, então?» «Pois bem,
é o seguinte: se me derrotares
e me matares, quando me
cortares a cabeça”’, peço-te
que a coloques sobre a tua
propria cabeça. Desse modo,
o meu valor guerreiro e as
409
minhas virtudes andarão
contigo(2) , não havendo
entre os meus descendentes
quem eu estime tanto como a
ti te estimo!» «Segulrel o teu
conselho, mas de acordo com
a minha consciência»,
respondeu Lug.
410
a esta época mitológica, já
aqui foi referido, pode
ressuscitar-se s mortos, mas
na condição de a coluna
vertebral e o cérebro não
estarem afectados nem
cortados. isto explica o facto
de ser usual cortar a cabeça
do inimigo, mesmo morto,
Para impedir que ele
ressuscite.
2. Referência ao curioso
«ritual das cabeças cortadas»,
abundantemente
testemunhado pela
arqueologia galo-romana, e de
que dão testemunho
numerosos autores da
Antiguidade clássica: trata-se
de se ficar de posse das
qualidades de um herói,
inimigo ou amigo. 0 tema
encontra-se em diversas
narrativas irlandesas, em
particular nas do ciclo do
411
Ulster,
412
proximidades. Mas a cabeça
esteve aí Pouco tempo, pois
estava tão quente que fez com
que a pedra rachasse e se
dividisse em quatro
413
a forma de pedras e de pilares
na planície, mas poetas, ixou
de avançar em sua direcção e
de os ameaçar, mesmo
tenLug não dei
ão a forma humana e Lug do
eles mudado de aparência.
Eles tOmarani ”t o
exacto de prometeu que lhes
faria um favor se lhe
revelassem o númer
414
todos os chefes traziam as
suas gentes, só POSSO
revelar o número daqueles
que vi tombarem com Os
meus próprios olhos,
415
logo para ele e ameaçou-O
416
lhe o que ouvira da boca de
Bress a respeito das vacas da
Irlanda. X1,’
417
«Sim, evidentemente», disse
Bress. «Se me pouparem a
vida, haverá sempre ria
Irlanda uma colheita por
estação.»
418
já temos o que nos propões.»
«Isso não é bem assím»,
retorquiu Bress, «e se me
deixardes viver, eu diT-vos-ei
como se lavra, semeia e faz a
colheita, que são três coisas
que vos ignorais.» «Se tu mas
revelares», disse Lug,
«poupo-te a vida». «Pois
bem», disse Bress,
1
419
altura ele tirava-a da baínha e
limpava-a. Então, a espada
contou o que vira e
testemunhara Pois, naquele
tempo, as espadas tinham o
costume, assim que eram
desembaiDhadas, de revelar
as proezas que tinham feito ou
que tinham testemunhado. E
assim que se explica que haja
hoje sortilégios nas espadas.
É preciso ter em consideração
que naquele tempo os
demónios falavam por meio
das armas, sendo essa a
razão por que era frequente os
homens adorarem as armas.
420
e o triunfo», respondeu ela,
«mas também vejo que
0 teMPO futuro traz muitas
desgraças. 0 mundo deixará
de me interessar, Pois os
Verões não terão flores, as
vacas não darão leite, as
mulheresnãO terão pudor, os
homens não terão coragem,
as árvores não darão
421
frutos e os mares não terão
peixes. Nada será como
dantes: os velhos prestarão
juramentos falsos, os homens
atraiçoar-se-ão uns aos
outros, os filhos roubarão os
pais... É esse o mundo de
amanhã, mas hoje as tribos de
Dana podem cantar vitória.»
1. Segundo a narrativa A
Segunda Batalha de Mag-
Tured, primeira versão, com
pormenores retirados da
segunda versão,
nomeadamente o episódio em
que Lug se esconde e aquelc
em que Lug e Balor se
422
confrontam.
Capítu1oV
423
«Pois os Fomore dirigiram-se
para sul, e não é provável que
se tenham encontrado.»
«Vamos procurá-lo», disse
Lug do Braço Longo.
424
aparência de um porco. Disse
também que ele tinha morrIdo
às mãos deles depois de ter
retomado a forma natural e
que se encontrava enterrado
debaixo do outeiro.
425
nham provocado a morte. «Ele
foi morto de forma desleal»,
disse Lug. «Esses ferimentos
devem-se a pedras
arremessadas pelos filhos de
Tuiremi, que mataram o meu
querido pai de forma covarde
e aborninável.»
426
Lug entoou então um canto
fúnebre sobre o corpo do pai
427
Tuirenn deram a meu pai, o
valoroso filho de Diaricech1.»
428
que ali se encontravam.
Olhando em volta, viu os
irmãos de Tuireim. Os três
eram famosos pelo seu valor e
beleza, pela sua agilidade e
destreza. Todos eles tinham
ajudado à vitória sobre os
Fomore, e eram muito
considerados por todos. Lug a
certa altura pediu a palavra,
que lhe foi concedida,
concentrando-se nele todas
as atenções.
429
Pronunciadas estas palavras
fez-se um silêncio e foi o rei da
Irlan-
da o prímeiro a falar: «A
alguém que tivesse matado o
meu pai eu não infligiria uma
morte de um único dia, mas
uma pena muito mais dura
ortar. Se tivesse poder para
isso, todos os dias eu
arrancar-lhe-ia de sup
ir a meus pes.»
430
desagravo pelo sucedido, já
que todos os homens das
tribos de Dana pertencem ao
mesmo clã e descendem do
mesmo antepassado. Se eles
me derem uma satisfação,
não violarei o direito que
obriga o rei da Irlanda
aproteger todos os seus
hóspedes. Mas não respondo
pelos meus actos se eles
recusarem dar uma satisfação
pelo assassínio que
cometeram, e nesse caso não
permitirei que abandonem a
casa real de Tara sem se
terem havido comigo.» «Se
tivesse sido eu a matar o teu
pai», disse o rei da Irlanda,
«vería com muito bons olhos
que .a a pacyar-te.»
431
Os filhos de Tuirenn puseram-
se então de lado a falar entre
si. «E a nós que se refere
Lug», disseram luchar e
lucharba. «Pelos vistos, ele
procurou saber do pai o veio a
saber como cían foi morto na
planície de Murthemné.
«Reccio bem», respondeu
Brian, «que ele esteja à
432
ergueu-se e, diante de todos
os nobres e chefes das tribos
de Daria, interpelou Lug
nestes termos: «E a nós que tu
acusas, ó Lug, filho de Cian.
Quando falas de assassínio e
de desagravo, é a nós que te
referes, pois pensas que nós
OS três atacámos o filho de
Diancccht. Não
confessaremos nada, mas
também não fugiremos às
responsabilidades e estamos
prontos a compensar-te pela
morte de Cian como se nós
próprios tivéssemos cometido
o crime.» «Assim sendo»,
disse Lug, «vou então dizer-
vos a compensação que me
devereis dar» «Diz-nos lá qual
é essa compensação, ó LUg.»
«E a seguinte», Prosseguiu
Lug, «Peço-vos três maçãs,
uma pele de porco, uma lança,
dois cavalos e um carro, sete
porcos, um pequeno cão, um
433
espeto de
434
assar e três brados num
monte. É esse o pagamento
que vos exijo pela morte do
meu pai. Se ele vos parece
excessivo, torná-lo-ei mais
leve, mas se vos parece ao
vosso alcance, parti de
imediato em sua demanda.»
«Na verdade», respondeu
Brian, filho de Tuirenn, «nós
não o achamos muito pesado,
o que me faz pensar que
poderás estar a preparar uma
traição contra nós. Ele seria
mais pesado, com efeito, se
exigisse de nós trezentas mil
maças, a mesma quantidade
de peles de porco, cem
lanças, cem cavalos e cem
carros, cem suínos, cem cães,
cem espetos de assar, e cem
brados num monte.» «Nesse
caso», continuou Lug,
«mantenho o preço que
tendes a pagar. Dar-vos-ei a
garantia dos chefes das tribos
435
de Dana, nada mais vos
pedirei e não vos trairei. Exijo-
vos, no entanto, que me dêem
a mesma garantia.»
436
pois são as melhores e as
mais belas de toda a terra.
Têm a cor do ouro bem polido,
e a cabeça de uma criança de
um mês não é maior do que
cada uma delas. Sabem a mel
quando as comemos, e não
deixam amargor nem acidez
na boca. Além disso, não
diminuem de tamanho quando
as comemos, mesmo que o
façamos todos os dias. Aquele
que conseguir colher uma
destas maçãs terá conseguido
cometer a maior proeza do
mundo, pois a maçã
pertencer-lhe-á para sempre.
E eu sei que, segundo uma
profecia desse longínquo país,
serão três jovens corajosos e
arrojados idos do oeste da
Europa que delas se
apoderarão pela força.»
437
pele de porco que pertence a
Tuis, rei da Grécia. Esta pele é
curativa e cura todos os
feridos e todos os doentes que
por ela sejam revestidos, por
muito grave que seja o seu
estado, e desde que tenham
ainda um sopro de vida. Este
porco tinha uma excepcional
virtude: se o fizessem
atravessar um rio, a água
deste transformava-se em
vinho durante nove dias.
Qualquer ferida que ela
tocasse cicatrizava, mas, a
crer nos druidas da Grécia, só
a sua pele, e não ele, possuía
esta virtude. Morto o porco e
esfolada a
438
vos exijo?» «Não o sabemos»,
responderam os filhos de
Tuirenn. «Tu é que tens de no-
lo dizer.» «Pois bem»,
prosseguiu Lug, «é a lança
envenenada de Pisear, rei dos
Persas. Trata-se de uma arma
mágica que é capaz de
cometer as proezas mais
extraordinárias do inundo. E
de tal modo escaldante que,
em tempo de paz, a sua
cabeça fica continuamente
mergulhada num caldeirão de
água fria. A não ser assim, a
povoação onde se encontra
arderia e ficaria destruída.
Com efeito, ser-vos-á muito
difícil apoderar-vos dela.
Agora, sabeis quais são os
dois cavalos e o carro que
desejo receber de vós?»
439
de Cobar, o rei da Sicilia.
Tanto a terra como o mar lhes
servem para cavalgar, e é
frequente vê-los a galopar
sobre as ondas. Não há
cavalos mais rápidos e
resistentes do que eles.
Também não há nenhum
carro tão sólido e tão belo
como aquele a que eles
andam atrelados. Além disso,
quanto mais se matam estes
cavalos, mais eles renascem,
e cada vez mais belos e mais
sãos do que antes, desde que,
pelos menos, se juntem todos
os seus ossos. É minha
convicção que não vos será
fácil obtê-los, pois estão
guardados com todo o
cuidado nas cavalariças do
rei.
440
porcos que estão na posse de
Easal, rei das Colunas de
Ouro. Eles têm a
particularidade única de, ao
serem mortos de noite, serem
encontrados vivos de manhã.
E quem comer um pedaço
deles, nunca fica doente nem
com má saúde.»
441
as mulheres tem para não o
perderem. Quanto aos três
brados no monte que vos
peço, são os brados no monte
de Miodchain, nos países do
norte. Ora, tanto Miodcham
como as suas ’danças
proíbem quem quer que seja
de dar brados naquele monte.
Foi na casa dele que o meu
pai fez a sua aprendizagem, e
se eu tiver a fraqueza de vos
perdoar o vosso crime, é certo
que Miodchain não vos
perdoa-
442
rã. E essa pois a
compensação que vos exijo
pela morte de meu pai.» Os
filhos de Tuirenn
permaneceram em silêncio,
enchendo-se de an-
gústia. Abandonaram a
assembleia e foram falar com
o pai para lhe contar o que se
passara, e para o pôr a par da
compensação exigida por Lug
do Braço Longo pelo
assassínio de Cian, filho de
Diancecht. «Trazeis-Me más
notícias», disse Tuirenn. «lreis
passar por grande perigos se
partirdes em busca do que vos
pede Lug. Mas não tendes
outra alternativa, e e preciso
reconhecer que ele tem razão,
pois haveis cometido o pior
crime que se pode cometer.
Mas previno-vos: vós não
conseguireIs alcançar tudo
isso sem os poderes
443
maravilhosos de Mananann
ou do próprio Lug. Aconselho-
vos pois o seguinte: pedi
emprestado o cavalo de
Mananann, que actualmente
está ao serviço de Lug. Lug
não vo-lo poderá emprestar e
recusará o vosso pedido, pois
o cavalo não lhe pertence.
Então pedir-lhe-eis a barca
que Mananann também lhe
emprestou, e como ele não
poderá recusar um segundo
pedido de empréstimo, terá de
vo-la em~ prestar. E ficai a
saber que a barca vos será
mais útil do que o cavalo.»
444
Mananann.
«É impossível», respondeu
ele, «o cavalo não me
pertence.» «Então», disse
Brian, fillho de Tuircim,
«empresta-nos a barca de
Mananann.» «Desta vez não
posso recusar o vosso pedido.
Levem-na», disse Lug. «E
onde está ela?» «Em Brug-na-
Boylle.»(’I
445
tivessem cometido um tal
crime contra o pai de Lug e por
isso fossem condenados a
errar pelo mundo em busca de
coisas impossíveis de obter.
1. 0 tumulus megalítico de
Newgraiige, ao cimo do vale
de Boyne, no condado de
meath.
446
caminho, daí a pouco chegou
a um porto, na costa das
Hespérides.
447
quando as usarem contra nós
só teremos de usar da máxima
prudência e de estar atentos.
E, assim que os nossos
inimigos estiverem
desarmados, lançar-nos-emos
sobre as macieiras,
apoderando-se 1cada um de
Dós de uma maçã. Quanto a
mim, se puder, apoderar-me-
ei de duas, trazendo uma nas
garras e a outra no bico.»
448
que tinham veneno na ponta.
Os filhos de Tuirenn estavam
tão atentos que evitaram
todas as setas e, seguindo o
plano de Brian, foi-lhes fácil
lançarem-se sobre as
macieiras depois de os
guardas terem gasto todas as
suas munições. Logo depois
levantaram voo, sãos e
salvos, e dirigiram-se para a
barca de Mananann.
449
«e se não descobrirmos um
truque, seremos calcinados
- mas já sei o que temos que
fazer.»
450
barca e retomaram o aspecto
humano.
451
queriam. «Sornos artistas da
Irlanda», responderam eles,
«e vimos a esta cidade recitar
um poema ao rei.»
452
estavam maravilhados, pois
jamais tinham visto uma casa
tão esplendorosa e nunca
tinham sidos recebidos com
tanta pompa em nenhum outro
lugar.
453
«0 teu poema é muito bom»,
disse-lhe então o rei, «mas o
que significa esta alusão à
pele de porco? Eu elogiar~te-
ia o poema de boa vofltade se
não fosse essa alusão, pois é
uma grande impertinência
pedir-rile essa pele. Fica a
saber que, por nada deste
mundo, a dana aos poetas e
aos artistas, ou sequer aos
nobres e aos príncipes, a não
ser que fosse obrigado a isso.
Mas, para te recompensar,
fica certo de que consinto em
454
for pesado e
convenientemente niedido à
minha frente, pois não
acredito em ninguém.»
455
e os seus guerreiros
precipitaram-se sobre eles,
mas, após um violento e
sangrento combate, o rei
morreu às mãos do proprio
Brian, enquanto os dois
irmãos massacraram vários
adversários à sua volta, de tal
modo que ninguém conseguiu
evitar que eles saíssem da
cidade e regressassem à
barca de Mananann.
456
referência, de propósito, à
lança de Pisear, rei dos
Persas.
457
Pegou numa e arremessou-a
contra o rei com tanta
violência que ela lhe
atravessou o cérebro. Depois,
desembainhou a espada e
começou a massacrar todos
aqueles que estavam ao seu
alcance, fazendo os seus
irmãos o mesmo. Descobriram
então a lança, com uma ponta
mergulhada no caldeirão Para
evitar que a casa ficasse em
brasa. Apoderaram-se dela,
assim
458
como do caldeirão, e
regressaram à pressa para a
barca.
459
cortejo muito bem organizado
para irem ao seu encontro. Os
filhos de Tuirenn prestaram
homenagem ao rei da Sicília,
e este perguntou-lhes quem
eram, de onde vinham e o que
pretendiam. «Nós somos
mercenários da Irlanda»,
respondeu Brian, «e
ganhamos a vida ao serviço
de todos os reis da teiTa.»
«Quereis ficar ao meu
serviço?», perguntou o rei.
«Sim, é esse o nosso desejo.»
Fizeram um contrato e
firmaram uma aliança com o
rei da Sicília. Mas, ao fim de
quinze dias e um mês na
fortaleza, ainda não tinham
conseguido obter nenhuma
informação sobre os dois
cavalos e o carro. «Este
contrato de nada nos está a
servir, pois não fizemos
nenhuns avanços até agora»,
460
disse Brian. «Que pensas
então que devemos fazer?»,
perguntaram-lhe os irmãos.
«Ouçam bem o que vos digo»,
disse Brian. «Peguemos nas
nossas armas e no nosso traje
de viagem, e vamos
comunicar ao rei que
deixaremos de estar ao seu
serviço se não nos mostrar a
sua parelha de cavalos.»
Os irmãos aprovaram, e os
três, depois de se arrumarem,
apresentaram-se perante o rei
da Sicília. Este perguntou-lhes
por que motivo estavam em
traje de viagem. «A razão é
simples, ó rei», disse Brian.
«Nós somos mercenários da
Irlanda, mas não nos basta
servir os reis da terra quando
há guerras e conflitos.
Também somos seus
confidentes e seus
conselheiros, especialmente
461
quando eles possuem
tesouros preciosos. Ora,
desde que aqui estamos,
temos sido tratados de uma
forma bem displicente.
Sabemos que tu tens os dois
melhores cavalos e o melhor
carro do mundo, mas evitaste
falar-nos deles e mostrar-no-
los. É esse o motivo que nos
faz querer partlr.» «Fazeis mal
em querer partir»l, respondeu
o rei, «pois, de todos os
mercenários que tenho ao
meu serviço, sois vós quem
mais eu estimo. FIcai a saber
que., se logo no primeiro dia
mo tivésseis pedido, eu ter-
vos-la mostra-
462
que fossem buscar os dois
cavalos e os atrelassem ao
carro, e a ordem foi cumprida
num abrir e fechar de olhos.
Briari ficou então a ver os
cavalos com toda a atenção,
em seguida deteve o carro,
agarrou o cocheiro e,
arremessando-o contra um
rochedo próximo, esmagou-
lhe o crânio. Depois, saltando
ele proprio para dentro do
carro, aplicou um golpe tão
violento ao rei que o deixou
prostrado e inanimado.
Seguiu-se uma luta rija e
impiedosa que envolveu os
guardas do rei, as gentes da
cidade e os tres irmãos, que
deixaram atrás de si um banho
de sangue antes de voltarem
para a barca de Mananann
com os dois cavalos e o carro.
Dali se deslocaram
velozmente para o país de
463
Easal com a intenção de se
apoderarem dos porcos
maravilhosos que lhes era
exigido por Lug do Braço
Longo. Ora, o rei Easal estava
ao par das proezas feitas
pelos filhos de Tuirenn, e
também ele veio em pessoa
recebê-los quando se
aproximaram da sua fortaleza.
«Porque vindes a este país?»,
perguntou-lhes ele. «Por
causa de uma Injustiça que
cometernos», respondeu
Brian, «e porque temos de
pagar um desagravo, faltando-
nos agora levar os teus
porcos. Se no-los deres de
livre vontade, partiremos
pacificamente e muito gratos
pela grandeza da tua acção.
Mas se te recusares a no-los
dares, não deixaremos por
Isso de os levar, custe o que
Custar, após lutas sangrentas
em que muitos dos teus
464
perderão a vida.» «Seria uma
péssima ideia entrarmos em
luta por causa dos porcos»,
disse o rei. «Vou-me
aconselhar.»
465
satisfeitos todos seus dese’
1
466
adquirir para completardes as
cláusulas do desagravo?»
«Falta-nos ir ao país de
loraidh», respondeu Brian, «e
trazer de lá o cão que pertence
ao rei. É um cão diante do qual
se deitam todos os animais
selvagens.» «Posso pedir-vos
um favor?», perguntou o rei
Easal. «Certamente, e nós
satisfazê-lo-emos de boa
vontade, Pois estamos-te
muito reconhecidos,»
1 rmnh
Os filhos de Tuirenn
agradeceram ao rei Easal e
partiram com ele para o país
467
de loraldh. 0 país estava bem
defendido, pois já era do
conhecimento geral que os
filhos de Tuirenn tinham
massacrado muita i
468
Easal. «Por todos os deuses
do céu!», indignou-se o rei de
loraidh, «não seria justo que
eu reconhecesse a três
guerreiros o direito de se
apoderarem do meu cão sem
antes lhes ter dado luta.»
«Não deves proceder com
tanta intolerância», retomou o
rei Easal. «A tua atitude irá
trazer-te muito sofrimento e
infelicidade.»
Os guerreiros de loraidh
avançaram sobre os filhos de
Tuirenn e estes foram cada
um para seu lado, aplicando
469
cada um deles golpes
ViOlentos a todos os que
apareciam à sua frente. Diante
de Brian abriu-sc uma clareira,
tal era a violência com que ele
esmurrava os adversários, e
estes punham-se em fuga
mas ele perseguia-os e
massacrava-os sen, piedade.
Os dois irmãos eram também
impiedosos, um de cada lado,
e lutavam heroicamente
provocando um banho de
sangue. Lutou-sc corpo a
corpo, durante várias horas, e
não cessavam os murros, Os
901-
470
presença do rei Easal. «Aqlll
1
0 rei Easal ordenou que o
combate terminasse- e
libertou o genro na condição
de que ele daria o cão aos
filhos de Tuírenn, condição
que ele aceitou. Depois,
chegou-se a uma paz
baseada numa amizade
infalível. Então, os filhos de
471
Tuírenn despedIram-se do rei
Easal e do rei de loraidh, e
muito felizes, voltaram com o
cão paira a barca de
Mananann.
472
desejo incontido de voltar a
ver o mais depressa possível
a Irlanda.
473
Mas Lug não estava ali, pois
soubera do regresso dos filhos
de Tuireim à Irlanda e queria
que a vingança fosse
completa. Foram por isso
enviados mensageiros por
toda a ilha, e estes acabaram
por encontrá-lo, vindo ele para
a assembleia dos chefes e dos
nobres das tribos de Dana.
474
vos-ia aqui imCdiatamente por
não terem cumprido as vossas
promessas.» «0
475
que dizes?», perguntaram os
filhos de Tuirenn.
476
ficando Tuirenn muito
entristecido e angustiado.
Passaram juntos aquela noite
e de manhã dirigiram-se para
o porto, mas já não podiam
embarcar na barca de
Mananann, pois tinham-na
entregue a Lug. Ethné, a irmã
deles, estava em sua
companhia, acompanhando-
os quando estavam em terra.
E, quando chegou a hora do
embarque, entoou um canto
de lamento que lamentava a
má sorte dos filhos de Tuirenn.
477
levá-los por si mesmo ao
destino que eles queriam
alcançar. A única coisa que
eles sabiam era que aquela
ilha estava sob o mar.
478
Deixaram-no então ir, e ele
entrou na cidade que se erguia
debaixo do mar. Aí estava um
grupo de mulheres a coser e a
bordar, podendo ele
aperceber-se, entre os
numerosos objectos que elas
tinham à volta, de um espeto
de assar. Então, sem fazer
barulho, Brian aproximou-Se
dos espetos, agarrou num e
dirigiu-se para uma porta, mas
de repente todas as mulheres
presentes começaram a rir.
«Que acção corajosa
1. Ou seja, na colina de
Howth, na extremidade
nordeste da baía de Dublin.
479
contrário, precipitando-nos
sobre vós, arrancar-vos-íamos
os olhos e castrar~vos-íamos.
Mas, como vieste só, sem
defesa e como não nos
agrediste, não nos opomos a
que leves o espeto.
Admiramos a tua bravura, e
por isso te deixamos partir.»
Brian agradeceu-lhes e
despediu-se delas. Depois,
deixou a cidade e foi ter com
os irmãos a bordo do barco,
ficando eles satisfeitos por o
verem voltar são e salvo.
Içaram as velas e voltaram
para o alto mar em direcção ao
norte, dirigindo-se para o
monte de Miodchain, o antigo
mestre de Cian, filho de
Dianceclit. Nesse monte
deveriam dar três brados,
levando-os aos três para Lug,
filho de Cian.
480
Demoraram vários meses até
chegarem à ilha onde se
erguia o monte de Miodchain.
Quando aí chegaram,
Miodchain viu-os e velo ao seu
encontro, pois cabia-lhe a
tarefa de impedir que alguém
desse três brados naquele
monte. Ao vê-]o, Brian não
hesitou em atacá-lo, e lutaram
durante muito tempo. Por fim,
Miodchain caiu morto, mas
deixou três filhos que, por seu
lado, vieram lutar contra os
três filhos de Tuirenn. Depois
de uma luta violenta e
impiedosa, os filhos de
Miodchain golpearam os
corpos dos filhos de Tuirenn
com as suas lanças, mas
estes, sem se deixarem
atemorizar e desafiando a
propria morte, atravessaram
de lado a lado os filhos de
Miodchain com as suas
armas, fazendo-os cair sem
481
vida por terra. Então, os três
filhos de Tuirenn deram três
brados nos montes e, apesar
de terem sofrido graves
ferimentos, voltaram para o
barco e desfraldaram as velas.
«Não podemos morrer antes
de chegarmos à Irlanda»,
disse Brian aos irmãos, «pois
temos de pagar a Lug do
Braço Longo a compensação
que nos pediu.»
482
pediu para o recompensar
pelo assassínio do pai. Leva-
lhe o que trouxemos e ped e -
1 he emprestada a pele de
porco do rei da Grécia, para
que possamos sai,ii- os
ferimentos e salvar a vida. Vai
depressa, porque estamos
esgotado,, mas não
queríamos morrer sem Voltar
a ver a Irlanda e sem pagar o
preço do que nos era exigido.»
483
encontrou-o em Tara, no meio
de uma assembleia dos
nobres e dos chefes das tribos
de Dana. Deu-lhe o espeto e
os três brados dados no monte
de Miodchain e, diante de toda
a assembleia, pediu-lhe
emprestada a pele de porco
do rei da Grécia para salvar a
vida dos três filhos. «Isso não
está estipulado no acordo que
fizemos», respondeu Lug,
«Fico muito satisfeito por os
teus filhos terem cumprido a
sua obrigação e por terem
pago a compensação que me
deviam pelo assassínio do
meu pai, mas não me
interessa nada o que lhes
possa acontecer. De modo
nenhum te emprestarei a pele
de porco do rei da Grécia.»
484
sem forças, a bordo do barco,
e anunciou-lhes a resposta de
Lug. «Leve-me à presença de
Lug, ó meu pai», disse Brian,
«e eu suplicar-lhe-ei que me
ceda a pele de porco que faz
sarar todas as feridas e cura
todas as doenças.»
485
Após ouvir a resposta de Lug,
Brian pediu ao pai para o levar
de volta para o barco onde os
irmãos jaziam, e, subindo para
bordo, foi deitar-se ao lado
deles. E logo os três irmãos
perderam a vida, deles se
libertando a alma. Tuirenn
crigiu um pilar para os filhos e
aí gravou os nomes deles em
ogham. E Ettiné, filha de
Tuirenn, entoou um cântico
fúnebre pelos seus três
irmãos.
1. Segundo a narrativa de
Destino dosfilhos de Tuirenn.
486
Cal) ítt, J(,> VI
487
corpos. Depois de uma luta
impiedosa, ele matara o
monstro e levara consigo a
sua manada de vitelas. Foi
então que ele deixou a Eriteia,
levando consigo as vitelas, e
errou
10119amente através da
Céltica, em busca de um lugar
onde pudesse construir uma
cidade. Chegou por fim a casa
do pai de Celtiné, que o
recebeu, lhe deu belas
pastagens e o convidou a
estabelecer-se no seu reino.
488
Imaginou então uma
artimanha e, uma noite,
escondeu
08 animais numa caverna cuja
entrada só ela conhecia.
489
encontrar a mais pequena
pista sobre o seu paradeiro;
pelo caminho ia interrogando
as pessoas que encontrava,
sem nunca receber uma
resposta que lhe pudesse
indicar o caminho certo a
tomar. Então, a bela Celtirjé
veio ao seu encontro. «Eu sei
onde estão as tuas vitelas»,
disse ela, «Mas se quiseres
saber onde elas estão, terás
de aceitar as minhas
condições.»
490
dificuldade em aceitar unir-se
a ela.
Os seus descendentes
reinaram num clima de paz e
491
de prosperidade, construindo
vastas fortalezas para se
defenderem de eventuais
invasões. Bravos e
generosos, os soberanos
fizeram-se rodear de artistas e
de poetas. Um dos soberanos,
chamado Luern, fazia os
possiveis para receber
benesses do seu povo, e
quando passava de carro
pelos campos, atirava ouro e
prata para a multidão de
homens e mulheres que o
seguiam ou que se chegavam
à berma dos caminhos para o
ver passar. Em certas alturas,
ele ordenava que para um
certo recinto preparado para o
efeito se encaminhassem
grandes quantidades de
bebidas preciosas e de
provisões, de tal modo que,
durante vários dias, se podia
entrar livremente no recinto e
ficar regalado com os
492
acepipes que eram servidos
ininterruptamente a quem
quer que chegasse.
493
e atirou-a aos pés do poeta
que corria atrás do seu carro.
0 poeta apanhou a bolsa, mas
continuou a correr enquanto
entoava outro canto, dizendo
que o rasto deixado na terra
pelo carro do rei eram raios
que faziam prenunciar uma
grande quantidade de ouro e
de benefícios para os homens.
494
irmã, Bellovèse e Ségovèse,
Jovens corajosos e
empreendedores. Anunciou-
lhes a sua intenção de os
enviar para novas terras e
pediu-lhes, com este
propósito, para determinarem
o número de homens que
queriam levar com eles,
devendo evitar-se qualquer
revolta entre as populações
com as quais iriam entrar em
contato.
Bellovèse e Ségovèse
escolheram então os homens
que os deveriam acompanhar;
depois foram convocados os
druidas, os sábios, os
adivinhos, e perguntaram-lhes
qual seria o melhor destino a
dar a estes dois grupos. Os
druidas, os sábios e os
adivinhos, depois de se
reunirem, disseram:
«Segundo pensamos,
495
impõem-se duas direções,
uma para a floresta herciniana
e a outra para Itália. Isto deve-
se a que as regiões mais
férteis da Germânia se
encontram perto da floresta
herciniana, numa região a que
os antigos chamavam Orcinia.
Quanto à Itália, o seu clima e
os seus vales muito férteis
permitem cultivar a vinha, o
que será uma fonte de grande
riqueza. «Muito bem», disse o
rei Ambigat, «mas falta-me
saber qual dos meus
sobrinhos vai para oriente e
qual vai para sul.» Tiraram à
sorte, sendo atribuída a Itália a
SégOvèses e a floresta
herciniana a Bellovèse.
496
carroças para transportarem
os víveres e os despojos. No
entanto, como não
encontraram na floresta
herciniana o que esperavam,
os druidas do grupo
preconizaram que se seguisse
para sul, seguindo a mesma
rota dos pássaros que voavam
Ilaquela direcção e passavam
para além de altas
montanhas. Foi assim que
este grupo de celtas, que a si
mesmos se chamavam
gauleses, gente brava,
te`nível e audaciosa,
consegulu subi
497
Na etapa seguinte, aquele
grupo chegou à llírIa, cujos
habitantes levavam uma vida
de ócio e passavam o tempo
sentados à mesa em festins
intermináveis. Os gauleses,
procurando uma maneira de
se desembaraçarem deles
com um mínimo de custos,
decidiram então tirar partido
da sua intemperança: cada
um deles devia convidar um
Iliriano para a sua tenda, e
sentando-o a uma mesa muito
bem fornecida de comes e
bebes misturaria entre a
comida uma certa erva que
desarranja os intestinos. E,
graças a este estratagema, os
gauleses tornaram-se donos
do país, sendo vários os
ilirianos que sucumbiram em
estado de fraqueza, enquanto
outros se atiravam para os rios
devido a não aguentarem a
incontinência infernal dos
498
intestinos.
499
devido aos miasmas que
saiam da terra, o ar tornou-se
tão infecto que apareceu uma
peste de tal modo mortífera
que todos foram obrigados a
abandonar o país. E os
gauleses não quiseram
continuar por muito tempo
nesta região maldita.
500
e Cichorios, o terceiro a
Bolgios. Este últirflO partiu
imediatamente para fazer
guerra aos macedónios.
Os gauleses possuíam um
equipamento bélico que
enchia de espailto os povos
por cujas terras passavam. Na
verdade, como armas
defensivas eles usavam
escudos que lhes desciam da
cabeça até aos pés, ornando-
os cada um a seu gosto. Como
estes escudos serviam não só
para defesa como também
para ornamento, alguns
soldados tinham gravado
neles figuras de bronze em
alto relevo trabalhados com
muito requinte. Os capacetes
de bronze possuíam partes
salientes que davam um
aspectO fantástico àqueles
que os usavam. Alguns destes
capacetes tinham chifr,-’S
501
134 C__C__IIC
502
Revoltado com os seus crimes
atrozes e com os seus
parricídios, atreveu-se a
marchar ao encontro deles
com um punhado de
guerreiros desorganizados,
como se pudesse fazer frente
a um tão poderoso exército.
Os gauleses, cujo rei era
Bolglos, enviaram
inensageiros a Ptolomeu para
saber da 1sua disposição e
para lhe perguntar se queria
comprar a paz, e este último
vangloriou-se perante os seus
por ter levado os gauleses a
pedir a paz. E levou a
presunção ao ponto de
afirmar, diante dos emissarios,
que não poderia haver paz se
os gauleses não
1
503
estivessem desarmados,
Quando os mensageiros
voltaram para o seu campo e
contaram o que se tinha
passado, os gauleses
puseram-se a rir e
exclamaram cheios de
desprezo que o rei da
Macedónía não tardaria a
saber se era por medo ou por
piedade que lhe tinha sido
oferecida a paz. E a
determiiterem au
504
exibiram-na à volta do campo
de batalha para convencer os
macedónios de que não
tinham salvação possível.
505
entusiasmo e de
determinação, ellegou a deter
o avanço dos gauleses que,
muito entretidos a celebrar
506
entusiasticamente o tritirifo,
tinham perdido o espírito
ofensivo. Entrementes, o outro
chefe gaulês, que se chamava
Breno, dirigira-
507
estas eram pouco numerosas
e a maior parte dos jovens que
as compunham receavam a
ferocidade e a reputação dos
gauleses. Assim, estes
últimos, resolutos e
confiantes, facilmente os
fizerem dispersar por todo o
país. Os macedóníos voltaram
então a fechar-se no interior
das muralhas das suas
cidades, e Breno pôde a partir
daí entreter-se a saquear à
sua vontade as regiões
vizinhas.
Entretanto, o saque
acumulado parecia bastar aos
gauleses, cuja satisfação lhes
refreou o ímpeto, facto que
desagradou a Breno. 0
objectivo deste era ir muito
mais longe e descobrir um
país onde ele e os seus
pudessem prosperar e viver
num clima de tranquilidade.
508
Por isso, não descansou
enquanto não convenceu as
suas gentes a pegarem em
armas contra os gregos. Para
as convencer fez discursos
muito eloquentes em que
mostrava de um lado a Grécia
derrotada e sem forças, e do
outro a sua audácia que era
responsável pela opulência
das cidades, a riqueza dos
templos e grandes quantias de
ouro e de dinheiro.
509
tinham a recear de inimigos
tão frágeis e indefesos.
510
seu exército até à Grécia.
511
tendo Breno apenas o
problema da escolha, pois os
celtas tinham uma compleição
sem igual entre todos os
outros povos. Foi assim que,
naquela noite, uma parte do
destacamento conseguiu
atravessar o rio a nado,
enquanto a outra pai-te o
atravessou sem perder o pe, o
que não estava ao alcance de
pessoas mais pequenas.
512
pilhando todas as habitações
que encontravam e matando
todos os homens que se lhes
atravessavam no caminho,
deixando os seus corpos
espalhados pelos campos.
Mas o mais importante para
Breno não era conquistar
Heraclea. Para ele o
objecÚVO principal era
expulsar a guarnição das
muralhas que protegiam a
cidade, pois se isso não fosse
conseguido, não conseguiria
alcançar a passagem das
Termópilas.
513
confronto ficou marcado, por
sua vontade, para o dia
seguinte, ao nascer do sol. Os
gregos avançaram para o
Combate muito bem
organizados e em silêncio
absoluto. Cansados pela
longa viagem, os gauleses
não estavam na sua melhor
forma nem estavam bem
armados, bem pelo contrário.
Tendo apenas escudos em
seu Poder viram-se na
contingência de se atirarem ao
inimigo como uma fOrça bruta,
parecendo feras ferozes a
atirarem-se as suas presas.
Apesar de duramente
atingidos por machados e por
espadas cor-
514
tantes, nem por isso se
rendiam e não perdiam o ,ir
ameaçador e obstinado que
lhes era característico.
Lutaram encarniçadamente,
até ficarem completamente
sem forças e não houve entre
eles quem não fizesse das
tripas coração e não retirasse
dos golpes moi-tais infligidos
pelos gregos as forças
necessárías para lhes
responder da mesma moeda,
provocando várias mortes
entre eles.
Entretanto, os atenienses
cercaram-nos tão bem pelos
flancos que os invasores não
conseguiram sair dos
desfiladeiros onde se tinham
reunido, ficando numa
situação muito delicada. Ao
verem que a situação era
desesperada, os seus chefes
deram ordens para recuar,
515
mas a fuga foi tão precipitada
que numerosos guerreiros,
caindo uns sobre os outros,
morreram esmagados. Outros
dos fugitivos meteram-se
pelos pântanos que naquele
lugar eram vizinhos do mar, e
os gauleses na debandada
perderam tantos homens
como na batalha.
516
gauleses consistia em,
seguindo através daquele
atalho escondido, chegar ao
cimo da montanha e
aproveitar para saquear o
templo.
517
é e de oitocentos cavaleiros,
entreo ando o comando a um
chefe muito
p L
518
sangue e saciavam-se com
519
Passando as Térinópilas
podia alcançar-se o cume do
monte OEta por dois atalhos
distintos: um, muito estreito e
difícil, levava ao cimo de
Trachine; o outro, mais
acessível à passagem de um
exército, atravessava as terras
de Emanes. Breno escolheu
este último para a sua
expedição,
520
o monte OEta de tal forma que
nem se conseguia ver o sol.
Por isso os Fócios que
estavam na região só se
aperceberam do inimigo
quando este lhes infligiu o
primeiro ataque. Gerou-se
então uma enorme confusão,
com as vidas a correrem um
grande perigo, e enquanto uns
procuravam
desesperadamente tapar a
passagem aos gauleses,
outros tentavam fazer
manobras de diversão, mas,
no fim, cercados por todos os
lados, abandonaram as suas
posições e espalharam-se em
todas as direcções, deixando
o adversário dono do terreno,
521
panhavam que era uma tarefa
dos deuses fazer tesouros
para os oferecerem aos
humanos. Um dia, aliás,
estando no interior de um
temPIO, nem sequer deu
atenção às oferendas em ouro
e prata que aí estavam
depositadas, apoderando-se
simplesmente das imagens de
Pedra e de madeira, o que
provocou uma enorme rísota:
como era possível que os
Gregos pudessem dar às
divindades formas humanas
que
522
consagrou à pilhagCm do
santuário pelos persas,
523
eram fabricadas com
materiais perecíveis?
524
pelo contrário, deveria
conceder aos seus homens
uma noite de descanso, já que
estavam esgotados pela
viagem? Dois dos chefes
gauleses que se lhe tinham
juntado na expectativa de um
saque
1 inimigo muito
proveitoso queriam que se
atacasse imediatamente o
525
colhiam os mais diversos
frutos e saciavam o estômago
e os sentidos com o que havia
para comer e beber.
Pressentindo o perigo
iminente, os habitantes de
Delfos perguntaram ao deus
526
se era necessário retirar dos
templos 01, tesouros que ai se
encontravam, e se era preciso
mandar as mulheres e as
crianças para cidades
vizinhas, melhor fortificadas,
onde pudessem estar em
segurança. Pela voz da Pítia,
o deus ordenou que as
oferendas e os ornamentos
dos santuários ficassem nos
seus lugares, pois ele mesmo,
cOm as Virgens Brancas suas
companheiras, se
encarregaria de as ter sob a
sua guarda. No templo do
deus encontravam-se, com
efeito, duas capelas bem
antigas, uma consagrada a
Palas Pronaos e a outra a
Artémis, e estas duas deusas,
de acordo com o oráculo,
secundavam Apolo.
527
gauleses. para começar, o
terreno ocupado pelas suas
tropas sofreu um abalo que
durou uma grande parte do
dia. A seguir, ribombaram
trovões, acompanhados de
clarões contínuos que
aterrorizaram os assaltantes e
impedirarin que eles ouvissem
as ordens dadas pelos seus
chefes. Os raios, que
frequentemente caíam sobre
eles, não se limitavam a matar
aqueles que atingiam mas
igualmente reduziam a cinzas
os que estavam perto deles,
assim como as suas armas.
Para completar o quadro, no
céu apareceram heróis de
tempos antigos que
costumavam devolver a
coragem aos Gregos e lhes
mostrava como combater os
inimigos. Mesmo os
sacerdotes do santuário se
envolveram na batalha e se
528
colocaram na frente de
combate, gritando que deus
os tinha vindo defender e que
tinha sido visto a atravessar as
espessas nuvens que
envolviam as montanhas.
529
elementos tivessem cumprido
o seu papel, soltaram-se do
monte Parnaso grandes
pedras, ou antes revoadas de
rochas inteiras que, caindo
sobre eles, esmagaram não
um ou dois de cada vez mas
trinta e quarenta. E o sol só se
ergueu quando os gregos, que
se tinham refugiado na cidade,
a deixaram, enquanto os
Fócios, por seu lado, desciam
das montanhas geladas. Só
os guardas de Breno e os
homens de elite, muito
robustos e rijos, resistiram ao
ataque, embora estivessem
enregelados e exaustos. Ao
verem o seu chefe
gravemente ferido e numa
situação desesperada, estes
últimos não hesitaram em
cobrir-lhe o corpo e em
transportá-lo, atitude esta que
provocou uma debandada
geral.
530
Na fuga, foram surpreendidos
pela noite e acamparam,
passando c
531
entre si, plenamente
convencidos de que
enfrentavam os Gregos.
1 1 1
532
Breno perdeu muitos milhares
de homens naquela aventura,
tendo sido ele mesmo ferido
por três vezes. Sabendo que
não tinha muito tempo de vida,
chamou ao seu leito de morte
os seus principais lugares-
tenentes e pediu-lhes que
acabassem com ele, assim
como com todos os feridos,
que incendiassem todas as
carroças, alcançassem um
porto e voltassem o mais
depressa possível para o país
de origem, Ordenou também
que o comando do que restava
das tropas fosse entregue a
Kikorios e a Milé, e depois de
se embriagar apunhalou-se a
si próprio, assim perdendo a
vida o chefe desta expedição
que se aventurou pelas
montanhas e pelos vales da
Grécia.
533
Por ordem de Kíkorios, ele foi
sepultado e tirou-se a vida aos
feridos, assim como a todos
aqueles que, em grande
número, tinham adoecido
devido ao frio e à fome.
Depois, de comum acordo
com Milé, Kikorios reuniu os
homens que pertenciam ao
seu clã e dirigiu-se corn eles
para o mar, tendo ainda de
travar várias batalhas para
abrir carninho e chegar aos
barcos. Uma vez embarcados,
ele e os seus deixaram-se
conduzir pelo vento, e
chegaram às costas da Ásia. E
são eles que, desde então,
são chamados Gálatas.1’I
534
Depois de terem trocado uma
parte do saque por barcos,
fizeram-se ao mar e chegaram
às costas de Creta. Contudo,
ficaram aí pouco tempo, pois
não foram bem recebidos
pelos habitantes do país.
Então, embarcaram de novo e
navegaram até ao Egipto,
onde morreu Milé, tendo-se
tornado o seu filho Bréogan 0
535
Pólio (VII, 35), Cícero (De
Divinatione) e sobrctudo,
Pausânias (X, 19, 20, 21, 22,
23).
536
por chegar à costa de
Espanha. E foi aí que morreu
Bréogan, filho de Milé ` que
deixou oito filhos, os quais
foram Os chefes dos Filhos de
Milé que quiseram dar a estes
um país digno do seu valor.
537
aparência sedutora. Desceu à
pressa a montanha e foi contar
aos irmãos o que vira. Mas
Brégu, filho de Bréogan,
troçou dele, dizendo que a
terra que vira não podia ser
senão uma nuvem suspensa
no céu. Mesmo assim, Ith
insistiu levo -os a todos ao
cimo da Montanha de
e u
538
09uiparam_flOs, preparando-
os para se poderem abastecer
de provisões e de água doce.
Quando terminaram os
Preparativos, levantairam
âncora e partiram à vela. E os
ventos empurraram-nos a
toda a velocidade pelo meio
do oceano que cerca o mundo,
ameaçando levar
08.barcos para o fundo e
lançar os seus tripulantes nos
abismos onde rcinam as
trevas da noite.
Os Filhos de Milé já
navegavam há vários dias
quando foram envolVidos por
uma bruma. Como o vento
caíra, andaram muito tempo à
deri’a Sobre as ondas. Mas,
de súbito, viram para lá da
bruma uma luz débil que
Parecia brilhar a Partir do
vazio. Todos tentaram
perceber que luz seria aquela
539
e começaram a desesperar
acreditando estar no fim do
mundo, quando vislumbraram
a silhuetade uma O’Te DO
meio do mar. e
540
pé de uma torre imensa que,
muito direita rio mar, ia
abraçar o céu. pi. caram
estupefactos quando viram
que a torre era de vidro e que,
no seu interior, subiam e
desciam homens que
pareciam não lhes dar
atenção.
541
desapareceu então, e a bruma
encerrou-os numa estranha
obscuridade que os encheu de
angústia.”’
542
o seu irmão Amorgen do
joelho branco, o poeta, que, ao
pousar o seu pé eni terra,
entoou o canto seguinte:
543
144
544
haviam de fazer, os Filhos de
Milé decidiram enviar um dos
seus a presença dos reis das
tribos de Dana para lhes
perguntar se se podiam
estabelecer numa parte da
ilha para a cultivarem e aí
fazerem a criação de gado. E
como tinha sido Ith a coaduzi-
los até ali, foi-lhe confiada
aquela missão, partindo ele
imediataalente com uma
quinzena de homens.
545
Quando Ith chegou a Tara, o
porteiro fê-lo entrar na casa
real, e os reis deram-lhe as
boas vindas expondo-lhe
depois os motivos daquela
disputa.
546
coisa: que permitis que nos
estabeleçamos numa das
vossas regiões. Podeis ficar
certo de que a trataremos
bem, cultivando-a e criando
animais, ficando-vos muito
gratos por todo o bem que nos
fizerdes.» «Tens razão»,
disseram os reis, «quando nos
dizes que é muito triste
andarmos em disputas por
causa de tesouros que não
são dignos disso. Quanto a ti,
volta para perto dos teus
547
druidica), Mac Ceclu, «filho do
arado» e Mac Greine «filho do
sol».
145
548
e diz-lhes que em breve
concluiremos um tratado entre
nós.»
549
em sua perseguição, ferindo-o
gravemente. Ith conseguiu
ainda chegar à presença dos
filhos de Milé e teve tempo
para lhes contar o que se
passara, mas morreu logo de
seguida. Muito consternados,
os seus irmãos e os outros
filhos de Mílé fizeram-lhe uma
sepultura junto da qual
erigiram um marco funerário.
«Não permitiremos que este
crime fique impune», disse
Eber Donn, o irmão mais velho
de Ith. «Vamos imediatamente
pedir aos reis das três tribos
de Dana que seja feita
justiça.»
550
apoderardes dela, ficai a
saber que as estrelas não vos
estão favoráveis.» «E por
necessidade que aqui
estamos», respondeu
Amorgen, o poeta. «Mas com
que direito te permites
pronunciar palavras tão
nefastas? «Fazei-me um
favor», disse Bariba. «Qual?»,
perguntou Amorgen.
«Gostava que o meu nome
fosse dado a esta ilha» «E
como te chamas, e de que
raça és tu?», perguntou
Amorgen. «Chamam-me
Banba», respondeu ela, «e
sou da raça de Adão. Sou
mais velha que Noé. Durante
o dilúvio estava no cume da
montanha, e as vagas do
oceano não me atingiram» Os
druidas dos Filhos de Milé
lançaram então um
encantamento, e Bariba
afastou-se sem que eles lhe
551
fizessem o favor.
552
«Gostava
553
dias conseguissem aportar de
novo, toda a ilha passaria a
pertencer-lhes. Se, pelo
contrário, ao fim de três dias,
os Filhos de Milé não
conseguissem aportar, a ilha
continuaria na posse exclusiva
das tribos de Dana. Pensavam
os três reis que os Filhos de
Milé nunca mais voltariam,
pois os druidas lançariam
tantos encantamentos contra
eles que os impeliriam muito
para longe de terra. «Nós
vamos pensar», disse Eber
Donn. «Que pensa Amorgen
desta proposta?» «Parece-me
razoável», respondeu
Amorgen. «Até que distância
iremos?», perguntou Eber
Donn. «Iremos para além de
nove vagas.»
554
porto de Seria, na foz do rio
Felle, onde tinham ficado os
seus barcos. Embarcaram
neles, levantaram âncora e
navegaram para além da nona
vaga. Os druidas das tribos de
Dana e todos os poetas
lançaram-lhes então
encantamentos, de tal modo
que os ventos em~ purraram
os navios para muito longe da
Irlanda, enchendo de angústia
os seus tripulantes por se
acharem no alto mar.
555
a este vento druídico.» Erech
era filho adoptivo de Amorgen
e chamou-o. «É uma
vergonha para todos os
nossos homens de arte»,
disse Eber Donn, «termos de
suportar durante tanto tempo
a afronta que nos é infligida
pelos druidas da Irlanda.
«Não», respondeu Amorgen,
«não é uma vergonha, mas os
nOssos homens nada podem
fazer enquanto tu mesmo
nada fizeres contra a magia
das tribos de Daria.»
556
direcção e empurrou então os
barcos dos Filhos de Milé para
a costa onde aportaram pouco
depois. «Repara», disse
Amorgen, «que o nosso poder
druídico vale mais do que o
das tribos de Dana. Voltámos
à Irlanda antes dos três dias
que nos tinham aprazado e
temos agora o direito de nos
apoderarmos de toda a ilha.»
557
quem também chamavam Z
558
para os nossos domínios
feéricos. Aí seremos sempre
nós a mandar, aconteça o que
acontecer, e eles não
conseguirao aproximar-se de
nós sem que o saibamos.»
«Além disso», acrescentou
Mananann, «temos o poder de
nos tornarmos invisiveis, e
poderemos por isso errar pelo
mundo sem que alguém possa
suspeitar da nossa presença.»
559
pelo poder mágico como pelo
das arinas, às pretensões dos
Filhos de Milé de ocuparem
toda a Irlanda. Por fim, todos
aceitaram, uns com melhor
vontade do que outros,
enfrentar os invasores e evitar
que eles se apoderassem da
Ilha Verde. 0 destino assim
determinaria o que viesse a
acontecer, e todos juraram
que se confoririariam com o
resultado do conflito.
reagruparam-se longe de
Tara, num lugar que se
chamava Tailtiu em honra da
560
ama de leite de Lug do Braço
Longo, e onde este mandara
que ela fosse enterrada. Aí em
honra dela Lug do Braço Lon
go’
561
1
562
companhia de Mananann,
filho de Lir, foram
encontrar~se com os Filhos de
Milé para lhes proporem uma
forma de partilharem a Irlanda.
Começaram por se sentar em
frente a uma fogueira,
partilharam os alimentos que
tinham sido passados pelo
lume, depois beberam cerveja
e hídromel, sendo por fim
celebrado um acordo.
563
chamaram o sábio Fintan, filho
de Bochra, que falou a uns e a
outros e demonstrou que era
preferível celebrar a paz do
que continuar com guerras até
ao fim dos tempos. Fíntan e
Amorgen prepararam então os
termos de um tratado cujo
juramento deveria ser feito em
nome dos deuses protectores:
os Filhos de Milé ocupar-se-
iam da superfície da Ilha
Verde, encarregando-se do
cultivo da terra e da criaÇão
de animais, enquanto as tribos
de Daria se retirariam para o
mundo dos tumulus e para
pequenas ilhas que existem
ao largo da Irlanda.
564
Deste modo, cada tribo estaria
no seu domínio, o que não
impediria que houvesse
contacto entre os membros de
uma e outra. Nomeadamente
foi determinado que as gentes
das tribos de Dana poderiam,
se fosse esse o seu desejo,
deixar o mundo invisível e vir
fazer companhia aos Filhos de
Milé, podendo por sua vez os
Filhos de Milé visitar o domínio
das tribos de Dana todos os
anos, enquanto durasse a
festa de Samain,
565
cultivando a terra e cuidando
de belas pastagens para os
animais que tinham levado
consigo. Terminou assim a
batalha de Tailtiu, com grande
satisfação de ambas as
partes, e começou então na
Irlanda o reinado dos Filhos de
Milé, aqueles a quem hoje se
chama gaélicos.11)
566
cabendo a Eremon a
soberania do norte. Mas os
dois irmãos não se
entenderam e daí a pouco
travaram uma batalha
sangrenta. Eber Donn foi
morto, e Eremon tornou-se o
rei supremo de toda a Irlanda,
organi~ zando grandes festas
na casa real que se situava no
interior da grande fortaleza de
Tara.
567
reuniram-se um dia para
designar aquele que reinaria
entre elas.
568
nobreza como a sua
sabedoria herdada do pai.
Este facto provocou o
despeito de Lir, que reinava no
tumul Já
que ele esp
ws de Fímiachaid,
Crava ver atribuída a coroa ao
seu próprio filho, Mananann.(”
Contrariado, ele abandonou
por isso a assembleia das
tribos de Dana sem se
despedir de ninguém e sem
pronunciar uma palavra. A sua
atitude chocou de tal modo os
chefes que, depois de terem
confirmado solenemente
Bobdh Derg, todos pensaram
numa maneira de o castigar
pelo seu desdém e pela sua
descortesia.
569
casa, incendiar a sua fortaleza
e matá-lo com uma lança e
uma espada como se ele
fosse um criminoso. E não era
realmente um criminoso, por
ter recusado inclinar-se
perante o rei que tinha sido
designado pelas tribos de
Dana como sendo o melhor
para as conduzir? «Não posso
acatar a vossa proposta»,
respondeu Bobdh Derg, «Uir é
um guerreiro corajoso, sempre
pronto a lutar até às últimas
consequências por uma causa
que lhe tenha sido confiada, e
o facto de não se inclinar
perante mim não impede que
eu seja o rei das tribos de
Dana.»
570
Mananann aconselhou-o
então sobre a melhor maneira
de distribuir as tríbos de Dana
pelo território da Irlanda, de
acordo com a partilha
combinada com os Filhos de
Milé. Segundo ele, era preciso
dispersar as tribos pelos
tumultis e fixá-las também nas
colinas e nas planícies mais
distantes e
571
no oceano, com a excepção
de quando o designam por
país do Outro Mundo. Os
gaélicos estão muito mais
ligados às fontes e aos rios,
portanto às águas doces,
como o parece revelar o nome
de Nechtan (derivado do latim
Nepturiu,), outra denominação
de Elernar, irmão de Dagda,
proprietário de Brug-na-
Boyiie, ou seja, Newgrange.
Uir tem, como correspondente
em galês LIvr (o rei Lear de
Shakespeare), pai dos heróis
Brân Vendigeit «<Corvo
Bendito»), Branwen («Corvo
Brarico») e Manawyddan,
correspondente britónico
exacto do gaélico Mananann,
ele próprio epónimo da ilha de
MaD. Esta tiltíma personagem
aparecia muitas vezes nas
narrativas irlandesas como
SCIldO originária de ilhas
distantes, ou seja, da Terra da
572
Promessa, espécie de paraíso
ceita, às vezes chamado
Emain Ablach, nome no qual
se encontra o termo que
designa as macieiras, o que
remete para a ilha de Avalon
da lenda arturiaria. Às vezes
Mananann chega a ser
apresentado a cavalgar um
fogoso corcel no meio do mar,
o que naturalmente poderia
leva£ a associá-lo a Lima
divindade marinha. Na
tradição galesa, Manawyddan,
contudo, não teIn nenhuma
ligação particular com o mar e
não tem nada de navegador.
573
druídícas, conferiu a todos o
dom da invísibílidade, o
Festim de Goibniu e os porcos
de Mananann: graças ao dom
da invisíbilidade, só eles se
podiam ver uns aos outros; o
Festim de Goibniu evitava que
senússem o avançar da idade;
quanto aos porcos de
Mananann, estes
asseguravam-lhes comida
eternamente pois, mortos ao
entardecer e comidos durante
a noite, voltavam a estar vivos
na manhã seguinte.
574
do vasto oceano. Deste modo
os chefes das tribos de Dana,
em sinal de gratidão,
convidaram Bobdh Derg a
visitar as suas residências
assim que elas estivessem
prontas, e a assistir ao festim
que realizariam para celebrar
a Festa do Tempo, altura que
era escolhida para prestar
homenagens e tributos.(,)
575
os chefes das tribos de Dana.
«Se Lir aceitar a minha
amizade», disse Bobdh Derg,
«eu poderei atenuar-lhe o
sofrimento provocado pela
morte de quem ele amava.
Tenho aqui, na minha casa,
três jovens muito graciosas,
de óptima aparência e
famosas em toda a Irlanda,
Aeb, Aifé e Ailvé, todas filhas
de Aílil], rei de Arann. Elas
estão sob a minha guarda e
prot-c40, pois foram-me
entregues na condição de eu
ser o seu pai adop-
576
Os dois Parágrafos dedicados
à distribuição das tribos de
Dana e aos dons mágicos que
’h” são atribuídos têm origem
em Altranth Tige da Medar (o
alimento da casa dos dois
’OPOs), narrativa contida no
Livro de Fermoy, manuscrito
do século XV publicado com
tradução inglesa por Lilian
Duncan em Eriu, vol. X1,
Dublin, 1932. Tradução
francesa de Ch--J.
Guyonvare-h em Textos
mitológicos irlandeses,
Rermes, 1980.
577
Foram então enviados a Uir
mensageiros da parte de
Bobdh Derg para lhe
perguntarem se gostaria de
firmar um acordo de amizade
com o rei recebendo dele para
esposa uma das suas filhas
adoptivas. Lir ficou eincantado
com a oferta que lhe foi feita e
pôs-se a caminho, no dia
seguIIIte partindo da sua casa
da Colina Branca, com
cinquenta carros muito belos,
em direcção ao Lago Derg
onde Bobdh fixara a sua
residência e construíra a sua
fortaleza. Aí chegado, foi
muito bem recebido i
578
adoptiva que nutria por elas
um imenso amor- «Lir», disse
Bobdh Derg, «estão aqui as
filhas do rei Arann. Podes
escolher a que riials te
agradar.» «Não me é fácil
fazer uma escolha»,
respondeu Lir, «pois todas
elas são muito bel as e de
grande nobreza. De qualquer
modo, penso que seria
conveniente escolher a mais
velha.» «Assim sendo», disse
Bobdh Derg, «a mais velha é
Aeb, que será por isso tua
esposa, se for esse 0 teu
desejo.» «E esse o meu
desejo», afirmou Uir.
579
os convidaria para a grande
festa das núpcias. Ach deu-lhe
dois fi-
580
acabaram de a chorar, Bobdh
Derg disse: «0 amor que
tínhamos pela nossa filha e a
amizade que nos liga àquele a
quem a entregámos como
esposa fazem com que nos
sintamos muito consternados
pela sua perda. Mas a
amizade por Uir roan-
581
próprio Bobdh Def9
582
prazimento. Era costume
deles dor iiirem no mesmo
quarto do pai e, quando Lir se
levantava, de manhã, ’a
sempre deitar-se por alguns
moinentos ao lado deles.
583
acompanharem à casa de
Bobdh Nerg, e quando elas se
sentaram a seu lado Aifé fez
com que os cavalos se
dirigissem para o lago Derg.
Mas Finula estava
contrariada, pois suspeitava
que Alfé lhes queria fazer mal,
tendo-lhes um ódio de morte,
e um sonho tinha-lhe mesmo
revelado que a irmã da mãe
projectava vingar-se daqueles
que lhe provocavam
insuportáveis ciúmes.
584
respeito e amor. Um dia,
rainha, pagarás por essa tua
intenção tão perversa.»
585
condenados a uma ter-
586
rível aventura e todos aqueles
que vos amam sofrerão por
isso. Doravante será entre os
pássaros que se ouvirão os
vossos gritos e os vossos
lamentos.» «Bruxa!»,
exclamou Finula. «Tu tocaste
em nós sem te termos feito
mal, mas podes ter a certeza
de que pagaras muito caro
pela tua maldade e pela tua
desfaçatez, e no fim nada te
poderá valer! Díz-nos só por
quanto tempo teremos de
suportar o feitiço de que
somos vítimas.» «Se quereis
saber, di-lo-ei, mas isso só
servirá para aumentar a vossa
mágoa e a vossa angústia»,
respondeu Alfé. «Conforme. é
meu desejo, o vosso feitiço
durará enquanto a Mulher do
Sul não tiver encontrado o
Homem do Norte. E já que não
resistis à curiosidade, sabei
que nenhum amigo nem
587
nenhum poder vos poderá
livrar da forma em que vos
transformei enquanto vós não
tiverdes vivido trezentos anos
no Lago Darvra, trezentos
anos no Mar de Moyle, entre a
Irlanda e a Escócia, e
trezentos anos na angra de
Doninann. Apesar da vossa
aparêncía, mantereis a vossa
linguagem e cantareis a
música doce dos palácios
feéricos, que é de tal modo
límpída e suave que
adormece todos aqueles que
a ouvem. Ficareís pois
novecentos anos a terde
suportar na superfície das
águas o vento glacial e o sol
escaldante. E essa a minha
vingança, filhos de Li^r, por
me terdes privado do amor do
vosso pai.»
588
prosseguisse a viagem.
Assim, ela continuou o
percurso até à casa de Bobdh
Derg onde foi muito bem
recebida pelos chefes e pelos
nobres das tribos de Dana,
admírando-se no entanto
Bobdh, filho de Dagda, por ela
não ter trazido as crianças. «A
razão é simples», disse ela.
«Uir já não te ama e não te
quer confiar os seus filhos,
com medo de que não tomes
beni conta deles, na sua
ausência.» «Isso surpreende-
me», disse Bobdb Derg, «pois
sei que Lir tem a máxima
confiança em mim e me
confiaria com toda a boa
vontade os seus filhos que
amo tão profundamente como
se fossem os meus próprios
filhos.»
589
a enganar e por isso
apressou-se a enviar
mensageiros para a casa de
Uir, na Colina Branca. Ao ver
estes chegarem, Lir
perguntou-lhes o que os
levava ali,
590
Assim, logo lia manhã
seguinte, aparelhou o carro e
tomou a direcção que levava
ao Lago Darvra. Quando
estava a chegar às
proximidades do lago, os
quatro cisnes aperceberam-se
dos cavalos e do carro, e disse
Finula para os seus irmãos:
«Que seja bem vindo este
grupo que se aproxima do
lago, pois os homens que dele
fazem parte são nobres e
poderosos. Nas suas feições
há muita tristeza e mágoa, e
sem dúvida estão aqui por
andarem à nossa procura.
Aproximemo-nos da margem,
pois aqueles que se acercam
de nós SãO Por Certo Lir e as
gentes da sua casa.»
591
eles terem uma voz humana,
perguntou-lhes a razão de um
tal mistério. «Eu vou-te
contar», disse Finula. «Os
quatro cisnes que vês são os
teus próprios filhos, e foi a tua
mulher, irmã da nossa mae,
que, toda enciumada, nos
metamorfoscou para que nos
perdêssemos,» «Há uma
forma de vos fazer voltar à
forma normal?» «Não há.
Ninguém pode fazer nada por
nos, ao menos enquanto não
tivermos passado pela prova
do tempo, que deverá manter-
nos nesta situação durante
novecentos anos. Vê bem a
nossa triste sorte.»
592
conservais a linguagem, a
razão e a memória?» «0
sortilégio que se abateu sobre
nós», respondeu Finula, «não
nos perrnite que vivamos com
qualquer outro ser humano e
por isso deveremos
Permanecer Destas águas.
Mas resta-nos a nossa
linguagem, e podemos entoar
músicas suaves, iguais às que
se ouvem nos palácios
feéricos. Se Passardes a noite
perto do lago, adormecereis
embalados pela suave
RIelodia dos nossos caiitos.»
Ur e aqueles que o
acompanhavam,
interromperam então a sua
Viagem e acomodaram-se
naquele lugar para passar a
noite. Apuraram os Ouvidos
ao canto dos cisnes, e as
horas passaram por eles com
uma extTema doçura. Mas, na
593
manhã seguinte, Lir anunciou
aos cisnes que tinha de partir,
mas que jainais os
esqueceria. Depois,
prosseguiu o seu clininho até
ao Palácio de Bobdh Derg.
594
adoptiva, irmã da mãe deles,
que lançou sobre eles um
sortilégio, fazendo com que se
transformassem em cisnes
brancos no Lago Darvra, o que
pode ser comprovado por
todas as gentes da Irlanda.
Agora eles são cisnes embora
mantenham a razão, o
espírito, a voz e a linguagem
que encontramos nos seres
humanos.» iva
e, manPerante esta notícia,
Bobdh Derg ficou possesso de
rai
595
que gostarias de ser
transformada! » «A pior de
todas, segundo penso», disse
ela, «seria a de um demónio
do ar.» «Pois bem», exclamou
Boddh Derg, «nesse caso é
essa a forma que tomarás!»
596
na beleza destes cantos,
costumavam também
deslocar-se para ali vindos de
todos os cantos da Irlanda. Na
verdade, na Ilha Verde, nunca
houve música que se pudesse
comparar à dos quatro cisnes.
E os cisnes contavam também
histórias e entretinham-se a
conversar todos os dias com
os homens e as mulheres que
tinham conhecido no passado,
quer tivessem sido os seus
antigos mestres ou os seus
antigos parceiros de jogo, E,
todas as noites, eles
entoavam a música suave do
país feérico, de tal modo que,
por muitas mágoas e tristezas
que alguém tivesse,
adormecia cheio de paz e de
bonomia. Ao ouvir-se o canto
dos quatro cisnes, a felicidade
era plena.
597
de Milé reuniram-se nas
rnargells do Lago Darvra
durante trezentos longos
anos. Ao fim desse tempo,
disse Finula aos seus irmãos:
«Sabeis que já se cumpriu o
tempo que deveríamos passar
aqui? Amanhã deveremos
partir.»
598
dois pais, a saber Lir, o pai
natural, e Bobdh Derg, o pai
adoptivo. Disseram-lhes
adeus, e Fmula entoou um
canto de t i
599
1u01PItO e terrível para nele
se viver. Quando os filhos de
Lir viram a vasta costa
aparecer diante deles,
senfiram a humídade e o frio
colar-se-lhes ao corpo e
ficaram cheios de inedo e de
angústía. Todas as provações
que já tinham passado
pareciarn-lhes uma
brincadeira quando
comparadas com as que
previam. Certa vez, estando a
ser fusÚgados por uma
grande tempestade, disse
Finula aos irmãos: «A noite
que se aproxima será terrível
e vem lá uma tempestade tão
forte e violenta que corremos
o risco de nos separarmos uns
dos outros. Devemos Por isso
marcar um lugar de encontro
para o caso de o vento e a
tormenta nos dispersarem.»
600
na Ilha das Focas, pois todos
conheciam a sua localização.
Ao aproximar-se a meia-noite,
o vento redobrou de violência,
aumentou o rumor das vagas,
os 1
clarões da trovoada
incendiaram os céus, e o
furacao que então se abateu
sobre o céu e os mares fOi de
tal ordem que os filhos de Lir
se dispersaram pelo vasto
oceano sem que pudessem
saber do paradeiro de uns e
outros. por fim a tor~ Menta
acalmou e a terra e o céu
encheram-se de bonança,
achando-se -Finula sozinha
no Mar de Moyje. Então, ao
ver que os seus irmãos tinham
desaparecido, entoou um
canto de lamento e de
desespero.
601
dirigiu-se para a Ilha das
Focas e Passou aí toda a
noite. Ao nascer do sol,
quando perscrutou o
horiZonte, viu aproximar-se
com dificuldade o irmão Conn,
caída
com a cabeça e a penugem
desalinhada, Ela acolheu-o
muito bem e deu-lhe o rfláximo
de conforto que pÔde. Pouco
depois, veio também, em
péssir00 estado, Fíachra,
que., meio encharcado, tremia
de frio e sofria ter-
1velrnente. Finula protegeu-o
com a sua asa e murmurou:
«Ficaríamos ll’u’tO contentes
se Aedh viesse ao nosso
encontro ... »
602
secas, pois encontrara uma
gruta para se abrigar. Finula
recebeu-O muito bem e, para
reconfortar os três, colocou
Aedh debaixo do peito, Conn
debaixo da asa branca e
Fiachra debaixo da asa
esquerda, aconchegando-os a
todos debaixo da sua
penugem que a todos
aqueceu.
603
lamentando a triste sina,
fustigados pelo frio da noite,
pela neve muito espessa e
pelo vento glacial que lhes
cortava a pele e lhes chegava
aos ossos! Depois de terem
penado nesta situação
durante um ano inteiro,
abateu-se sobre eles uma
noite ainda pior: estavam
então na Ilha das Focas, a
água gelava à sua volta e,
como estavam sobre as
rochas, as suas patas, as
asas, as penas começaram a
enregelar, colando-se de tal
modo à pedra que nem
conseguiam fazer um
movimento. Após fazerem um
grande esforço para se
libertarem, finalmente
conseguiram-no, mas
deixaram sobre a rocha a pele
das patas, muitas penas e a
extremidade das asas. «Ah,
filhos de Uir», disse Finula, «é
604
muito triste a situação em que
nos encontramos, pois a água
salgada provoca-nos uma dor
intensa ao tocar-nos, e apesar
disso estamos condenados a
não deixar o mar: além disso,
corremos o risco de morrer se
o sal penetrar através das
feridas que temos por todo o
corpo.»
605
do-sol, tinham de voltar ao Mar
de Moyle.
Aproximaram-se da margem
do rio para identificarem os
belos cavaleiros que, ao
aperceberem-se deles,
também se aproximaram Par
estabelecer conversação.
Estavam entre eles dois filhos
de Bobdh Derg,
606
Aedb do espírito ágil e Fergus
o Sábio, e com eles havia
também dois nobres das tribos
de Dana. Tinham deixado a
casa de Bodh Derg para irem
à de Lir onde iria ser celebrada
a Festa da Idade. Os cisnes
identificaram-se então como
sendo os filhos de Uir e os
nobres das tribos de Dana,
muito satisfeitos Por encontrá-
los, deram-lhes as boas
vindas e quiseram saber da
sua sorte. Depois, Finula quis
saber notícias de Lir, de
Bobdh Derg e de todos os
chefes do povo feérico.
607
a Festa da Idade num clima de
grande alegria e felicidade,
apesar de se ]amentar a vossa
ausencia, pois ninguém sabia
em que e que vós vos havícis
tomado desde a vossa partida
do Lago Darvra». «Ah, oxalá
tenhais melhor sorte do que
nós»,, disse Finula. «Desde
então e até hoje passámos por
terríveis e inimagínáveis
provações, e sofremos
intermináveis tormentos no
fluxo e no refluxo das marés.»
608
De nada nos valem os nossos
tectos Pois só as penas nos
cobrem o corpo.
609
Branca, e cOlItaram a todos as
provações por que tinham
passado os cisnes e coMO era
triste a sua sina. «Nada
podemos fazer por eles»,
disseram os
610
chefes e os nobres, «mas
ficamos contentes por saber
que ainda estão vivos e temos
a certeza de que serão salvos
no fim dos tempos.»
611
Deixaram o Mar de Moyle e,
chegados à angra de
Dorrinann, viveram uma vida
cheia de desgraças e de
tormentas. Certa vez, tendo o
mar gelado à volta deles,
imobilizou-os completamente.
Perante o lamento dos três
irmãos, Finula consolou-os o
melhor que pôde, lembrando-
lhes que seriam salvos
quando chegasse o tempo da
sua libertação. Viveram na
angra de Dormiann durante os
trezentos anos que lhes
tinham sido aprazados,
dizendo Finula por fim:
«Chegou a hora da partida.
Dirijamo-nos agora para o
palácio da Colina Branca,
onde vive o nosso pai com as
suas gentes.»
612
levantaram voo, parecendo
que o ar tinha ficado mais
suave e mais leve. Assim, daí
pouco tempo eles chegaram à
Colina Branca e nela
pousaram, mas ficaram muito
espantados e cheios de
angústia ao verem que
aqueles lugares estavam
completamente desertos. Só
se viam aí outeiros verdes e
pedras dispersas forradas
com urtigas. Os quatro então
chegaram-se uns aos outros e
todos eles deram três gritos de
dor e de lamento. Depois,
Finula entoou este canto:
613
nem uma mulher, nem uma
sombra, nunca tinhamos visto
este lugar assim quando Lr o
nosso pai, nele reinava.
614
tinham crescido. E aí
entoaram a doce música do
povo feérico. Ao amanhecer,
levantaram voo, ergue~ ram-
se nos céus e viajaram para a
ilha de Clare. Quando lá
chegaram todos os pássaros
do país se reuniram à sua
volta, passando a chamar-se
Lago dos Pássaros aquele
lago onde se encontravam.
615
cheios de medo, Pois jamais
tinham ouvido um som como
aquele. Ouviram o som do
sino enquanto ele durou e em
seguida puseram-se a entoar
em surdina a doce música dos
palácios feéricos.
616
eles. «Deus seja louvado»,
disse Mohévog, «Pois o amor
que tenho Por vós é que me
trouxe até esta ilha, que
escolhi em vez de todas as
Outras. Agora, filhos de Lir,
vinde a terra e confiai em m’
617
brilhanmeteu umas entre
Aedh C Finula, e outras entre
Conn e Fiachra. E os qllatro
entoaram admiráveis cantos
que lhe encheram o coração
de alegria.
618
mann, e a rainha era Déoch,
filha de Fingliinti. Eram o
Homem do Norte e a Mulher
do Sul de que Aifé falara
quando lançara o seu
sortilégio sobre os filhos de Lir,
tendo previsto que eles se
encontrariam. Ora, ao ouvir
falar nos cisnes, a mulher ficou
ansiosa por possuí-los. Pediu
a Lergnenn para ir buscá-los,
e o rei respondeu-lhe que iria
pedir a Moliévog para lhe
confiar os pássaros. Enviou
então mensageiros ao
encontro de Moliévog, mas
estes voltaram com a notícia
de que o santo eremita se
recusava a separar deles.
619
presença os pássaros que
tanto dese ava. LergnenD foi
por isso pessoalmente falar
com Moliévog e perguntou-lhe
se era verdade que tinha
recusado dar os cisnes.
«É absolutamente verdade»,
respondeu Moliévo-
620
pôs em fuga. Então, disse
Finula a Moliévog: «Santo
homem, é altura de nos
baptizares, pois não vamos
ficar muito tempo neste
mundo. Quando morrermos,
cava a nossa sepultura e põe
Conn no meu flanco direito e
Fiactira no meu flanco
esquerdo. Quanto a Aedh,
põe-no diante de mim, entre
os meus dois braços.
Apressa-te, pois o nosso
tempo está a chegar ao fim.»
621
Uir conquistassem finalmente
a paz eterna.”’
1. Segundo a narrativa
Oidheadh Clainne Lír (o
destino trágico dos filhos de
Ulr), contida em diversos
manuscritos do fim da Idade
Média. Resumo
pormenorizado por MY1e’
Dillon em Early Irish Literature,
Dublin, 1994. Tradução
francesa de Roger Chauviré
011, Contes ossianiques,
Paris, 1949.
u1oV111
1 - >. >
1 1 1 1 1 ?7:
622
frequentemente entre si,
encontrando-se
nomeadamente para
celebrarem em conjunto a
Festa da Idade. Entre os
chefes havia um que era mais
famoso do que todos os
outros, Eochaid Ollathair, pai
do rei e mais conhecido pelo
nome de Dagda. Este chefe
era respeitado por todos, pois
era capaz de fazer grandes
prodígios como desencadear
tempestades ou apaziguá-Ias.
Além disso, Dagda era
também capaz de proteger as
colheitas, e fazia com que os
gados tivessem sempre
pastagens muito ricas, vindo-
lhe daí o nome Dagda, que
significa «deus bom». E as
gentes das tribos de Dana,
quando precisavam de um
conselho, nunca deixavam de
o consultar acerca dos
acontecimentos do futuro, pois
623
ele aliava as qua~ lidades de
adivinho às de mago.
624
1
625
sem ninguém ver e, quando a
ocasião surgiu, declarou-se-
lhe sem vergonha nem
reservas. «Eu unIr-me-ei a ti
de boa vontade», respondeu
Boann, «mas receio o que
possa fazer Elciriar, pois ele é
um mágico hábil e vingar-se-á
de mim sem dó nem
compaixão.» «É verdade que
ele é um mágico hábil», disse
Dagda, «mas eu sou mais
hábil do que ele, e sei como o
manter longe de tudo o que
nos diz respeito. Confia em
mim, mulher, e nada reccies.»
626
afastado um pouco, Dagda
lançou-lhe grandes
encantamentos para que ele
estivesse ausente durante um
ano. Dagda fez com que ele se
perdesse tia escuridão da
noite e andasse ao acaso por
um longo período de tempo,
pensando apesar disso que a
sua viagem só durara um dia e
uma noite, o que o poupou às
agruras da fome e da sede.
627
respondeu Boann, «pois ele é
o fruto da minha união contigo,
tendo sido esta a única
escolha da minha vida.»
628
filho para ser educado na casa
de Mider, no outeiro de Bri
Leith. A escolha recaíra sobre
Mider porque nele Dagda
depositava toda a confiança e
sabia qu e ele daria ao
rapaz a melhor educação
possível entre os rapazes
niais nobres de toda a Irlanda.
Deste modo Angus, durante
muitos anos, foi entregue aos
cuidados de Mider, em Bri
Leith. Mider tinha um grande
campo de jogos em frente da
sua residência de Bri Leith, e
albergava nesta cento e
cinquenta rapazes e cento e
cinquenta raparigas que
tinharil sido confiados aos
seus cuidados pelos chefes
das tribos de Dana e pCIOS
629
habilidade Inigualávels, e
MIder tratava-o com tanto
afecto como se ele fosse seu
filho.
630
Leith, mal podendo suspeitar
do seu parentesco com
Dagda. Mas, ao ser injuriado,
Triath sobres saltara- se e
retorquira: «E a mim só me
faltava ter de suportar que me
levante a voz um mercenário
que nem conhece o pai nem a
mãe!»
631
disse Mider. «É verdade que
eu não sou teu pai, embora te
tenha criado com um amor de
pai, mas Posso assegurar~te
que tens um pai e uma mãe.»
«Então», disse Angus,
«PeÇo-te que me digas quem
é a minha mãe e onde poderei
encontrar o meu pai.» «A tua
mãe é Boann, a mulher de
Elcirtar de Brug-na-Boyne, e o
teu pai não é Elcrnar mas
Eochaid Ollathair, mais
conhecido pelo nome de
Dagda. Foi ele que me
incumbiu de te educar, às
escondidas de Elciriar, para
que este não ficasse ofendido
por teres nascido na sua
ausência. É esta a verdade,
meu rapaz, e não quero que
me censures por te não ter
revelado mais cedo as tuas
origens. Era preciso antes de
mais proteger a tua mae, pois
se Elcinar tivesse tido
632
conhecimento do que se
Passou, ter-se-ia vingado
iiela.» «Muito bem», disse
Angus, «fico-te grato por me
revelares que não sou um
rapaz sem pai e sem mãe.
Agora, VOU-te pedir que me
leves a casa do meu pai, para
que ele me reconheça e assim
eu deixe de estar sujeito aos
insultos dos Fir Bolg.»
633
Ia época vivia Dagda,
encontraram-no a meio de
uma assembleia dos chefes e
dos nobres das tribos de
Dana. Mider chamou-o e
pediu-lhe Para se retirar por
um pouco para conversar com
o jovem que o acompanhava.
Dagda deixou a assembleia o
foi logo ter com eles. «Pois
bem, que deseja este jovem
guerreiro que nunca aqui tinha
v,ndo?» «É seu desejo ser
reconhecido pelo pai»,
respondeu Mider, «e que lhe
sejam dadas terras, pois não é
justo que o teu filho nada
tenha tendo tu vastos
domínios em toda a Irlanda.»
«Concordo contigo, e fico
muito satisfeito por poder dar
as boas vindas a um filho»,
disse Dagda, «Acontece no
entanto que não tenho
nenhuma terra livre nos meus
domínios para poder
634
satisfazer o seu desejo.» «Tu
não podes no entanto recusar
terras ao teu filho», insistiu
Mider. «Eu sei», disse Dagda,
«preciso apenas de um tempo
para encontrar uma solução, e
depois o seu desejo será
satisfeito.»1’1
635
chefes e os nobres das tribos
de Dana para a celebração da
Festa da Idade na casa de Br-
ug-na-Boyne, na véspera do
próximo samain. Faz com que
o teu filho te acompanhe e eu
pela minha parte farei com que
lhe seja atribuído o domínio de
Brug, com o proprio
consentimento de Elcinar, e
sem que alguém possa opor-
se,»
636
bronze branco ornamentavam
as paredes, e havia animais
de todos os géneros
finamente esculpidos a
decorarem os leitos. Elernar
dera ordens aos seus criados
para irem aos lugares mais
remotos da Irlanda pescar e
caçar pássaros e outros
animais, em honra dos
visitantes. Os chefes das
tribos de Dana sentaram-se
para o festim, COn,
1. Segundo a narrativa
Tocinarch Etaíne (La Courtíse
d’Etaine), contida no Livre
Jaune de Ucan, editado e
traduzido em inglês por 0.
Bergin e R.I. Best, em Eriu,
vol. Xil, Dublin, 1938.
Tradução francesa de Ch-J.
Guyonvarch, em Textos
mitológicos irlandeses,
Rennes, 1980*
637
13obdli Derg ao meio,
Mananann à direita e Dagda à
esquerda. Mais afastados,
encontravam-se Mider e
Angus, com Elemar e Goibnlu.
Os convivas sentiam-se
felizes e estavam de bom
humor, pois eram
obsequiados com os melhores
manjares e as melhores
bebidas que se possa
imaginar. Vieram músicos
recordar-lhes Outros tempos,
e reeitaram-se poemas em
que se exaltavam grandes
proezas das tribos de Dana
quando tinham guerreado
contra os Fir Bolg e os
Fomore. Depois, todos se
foram divertir no prado em
frente à fortaleza e, nessa
altura, Manannan chamou
Angus à parte para que
pudessem falar sem serem
ouvidos. «Esta casa é muito
638
bela, ó Angus», disse
Mananann, «C nunca vi
nenhuma tão bela na Terra da
Promessa. Que bem situada
ela está, num lugar tão
aprazível, nas margens do
Boyiie, e na fronteira das cinco
províncias! Se estivesse no
teu lugar, Angus, não ficaria
descansado enquanto esta
residência não fosse minha, e
lançaria encantamentos sobre
Elcinar para o intimar a deIxá-
la imediatamente de forma a
poder ficar na sua posse.
Estamos na véspera de
Samain e como sabes,
durante a noite de Samain, o
tempo deixa de existir. Bastar-
te-á por isso pedir a Elemar
que te deixe ser senhor de
Brug durante uma noite e um
dia: ele estará tão entretido
com a bebida que nem se
aperceberá de que, no
decurso da festa do Samain,
639
uma noite e um dia equivalem
a uma etem’dade.» «Porque
me dás esse conselho?»,
Perguntou Angus. «Eu
explico-te o motivo»,
respondeu Mananann. «Como
o teu pai quer que adquiras
terras, encarregou-me de te
instruir sobre o que há a
fazer.» «Nesse caso», disse
Angus, «seguirei o teu
conselho.» «Jura então sobre
o teu escudo púrpura e sobre
a tua espada que agirás
rigorosamente de acordo com
o que te direi.» Angus prestou
o juramento que Mananann
exigia dele. «Muito bern»,
continuou Mananann, «fica a
saber que Elemar não é o
dono legí~ timo desta
residência e que o território de
Brug não deverá continuar na
sua posse. Quando voltarmos
para a sala para nos
regalarmos com as bebidas do
640
festim irás ter com Elcinar e,
desembainhando a tua
espada, arfleaçá-lo-ás de
morte, mas nada lhe farás,
desde que ele prometa
satisfazer a tua vontade que
se traduzirá em ficares senhor
de Brug por um dia e uma
noite. Ele não poderá recusar
e, assim que se tiver esgotado
o tenIPO, ele pedir-te-á para
voltar a ser o senhor de Brug,
e tu dirás simPlesmente que o
tempo no mundo se mede por
dias e noites, e que ele nada
mais tem aqui a fazer, pois
deu Brug por uma
eternidade.»
641
um dia. Mas, consumado
aquele tempo, quando
reivindicou a devolução do
seu domínio, Angus
lançou~lhe um encantamento
mágico e ordenou-lhe que
abandonasse Brug o mais
depressa possível. E, ao ouvir
aquela ordem, Elcinar
compreendeu que não tinha
alternativa senão partir.
Elcinar sal
suas gentes, tanto homens
como mulheres. Ninguém que
se encontrasse na assembleia
poderia evitar aquela situação,
nem poderia protestar contra a
injustiça, pois o encantamento
era tão poderoso que a todos
afectava por igual, sendo
impossível fugir~lhe. Mas,
assim que à noite se viu no
642
prado cheio de humidade,
Elemar lamentou-se perante a
mulher e todos os que o
rodeavam: «Que desgraça se
abateu sobre vós, que
pertenceis à minha família e
ao meu clã. É muito triste que
tenhais de deixar Boyne e
Brug, e sentireis uma grande
mágoa e um grande
sofrimento quando estiverdes
muito longe daqui, exilados
em países desconhecidos.
Como é evidente, foi
Mananann quem
maldosamente ensinou Angus
a agir daquela forma. Ali,
estou tão consternado e tenho
o coração tão partido que nem
me importo se tiver de
morrer!”,
643
tu que és o mais sábio de
todos nós, que pensas da
acção perversa de que fui
vítima?» «Penso que a acção
não foi perversa mas justa»,
respondeu Dagda. «Daqui
para a frente é a este jovem
guerreiro que a terra pertence.
Ele apanhou-te de surpresa,
num dia de paz e de amizade,
e permitiste que ele fosse
senhor dos teus domínios
porque te atemorizaste
perante ele. Mas vou dar~te
uma compensação: conceder-
te-ei uma terra que não te será
menos proveitosa que a de
Brug.» «Que terra é?»,
perguntou Elcmar. «Vou-te
dizer: trata-se de Cletech, e
dos três vales ficam em volta.
Fica a pouca distância daqui.
Os jovens do teu clã poderão
vir distrair-se na terra de Brug
todos os dias, e tu poderás
consumir os frutos da Boyne
644
como antes.» «É bom que seja
assim», disse Elcmar.
2. Segundo a narrativa La
Courtise XEtaine.
645
residência como muito bem
entendeu. 0 intendente de
Elemar não tinha seguido
aquele, e veio apresentar-se
ao seu novo senhor, com a
mulher e o filho. Angus disse-
lhe que manteria todas as
suas funções, e que ficaria sob
a sua protecção. E, desde
então, o intendente foi-lhe
devotado, fazendo os possi i
646
braços para a trazer para a
cama, mas ela, com um salto,
afastou-se até se confundir
com a escuridão.
Angus levantou-se e
interrogou os criados, mas
nenhum deles vira a beldade,
e ninguém lhe soube dizer
para onde ela fora. Ele voltou
a deitar-se mas ja não
conseguiu adormecer, tantas
vezes o visitava a imagem
graciosa da jovem. E assim
ele permaneceu até de
manhã, altura em que se
encontrava muito
enfraquecido e triste. A forma
que entrevira de noite, sem
que lhe pudesse tocar ou falar,
pô-lo doente e a partir daí
perdeu a vontade de comer.
Entretanto, na noite seguinte,
a exaustão fê-lo cair num sono
profundo, e voltou a vê-Ia,
tendo ela nas mãos, desta
647
vez, o mais belo címbalo que
alguma vez vira. Ela tocou-lhe
música, e depois desapareceu
da mesma maneira como
aparecera. Angus ficou
acordado o resto da noite e, de
manhã, não quis comer. E
todas as noites aconteceu o
mesmo: a jovem aproximava-
se do seu leito quando
adormecia, mas logo lhe fugia
ou lhe tocava uma música que
o adormecia rapidamente.
648
Então, chamaram Fingen, o
melhor médico do Ulster que
conseguia fazer um
diagnóstico certeiro de
qualquer doença
simplesmente olhando para o
doente, e que, ao ver fumo a
sair de uma casa, ficava logo
a saber quantos doentes havia
lá dentro. Graças a esses seus
dotes o tinham chamado à
residência da Brug.
649
Angus pediu que o deixassem
ficar a sós com Fingen, e
contou-lhe 0 que se tinha
passado, insistindo muito na
beleza da jovem que o vinha
visitar todas as noites.
650
encontrará uma solução»,
respondeu Fingen. «É óbvio
que esta jovem vem ter
contigo porque te ama
profundamente. Porque a não
vais procurar? Envia
mensageiros a Boann, tua
mãe, e pede-lhe para te vir
falar.»
651
morrer por ter visto em noites
sucessivas uma jovem de
grande beleza que lhe tocava
música. «Eu penso»,
continuou Fingeri, «que num
caso destes só a mãe pode
fazer alguma coisa por ele. Se
amas o teu filho, dá uma volta
por esta ilha para saber se
existe alguma jovem com a
aparência que nos é descrita
por Angus. A única maneira de
o curar é encontrar a jovem e
levá-la à sua cabeceira.»
652
existência de alguém que se
parecesse com a jovem
referida por Mac Oc. Voltou
por isso para Brug-na-Boyne
inulto desiludida e, mais uma
vez, foi falar com Fingen.
«Não encontrei ninguém»,
disse ela, «e estou muito
preocupada com o que pode
acontecer ao meu filho. Que
podemos fazer agora?»
«Bem», disse Fingen, «já que
nem a própria mãe conseguiu
descobrir um remédio para o
seL, mal, deve mandar-se
procurar Dagda para que fale
ao seu filho, Pois deve ser
agora o pai a tentar encontrar
uma cura para ele.»
653
«Ora!», exclamaram eles, «o
teu filho Angus está muito
doente
1 im
654
que ele acorda. Percorri a
Irlanda de um canto ao outro,
durante um ano, mas todos os
meus esforços foram em vão.
Que podemos fazer por ele,
sábio Dagda, que conselho
lhe podemos dar?» «De nada
valeria eu falar», disse Dagda,
«pois não posso fazer mais do
que tu.» «E verdade», disse
Boann, «mas tu és o mais
sábio e o mais solicitado dos
chefes das tribos de Dana.
Manda consultar Bobdh Derg,
o teu filho mais velho, pois ele
é o nosso rei supremo. Ele
deve saber melhor do
1
655
acolheu-os com muito boa
vontade. «Sede bem vindos à
minha residência, caros
servos de meu pai Dagda»,
disse-lhes ele. «Que motivo
vos traz aqui?» «0 estado
preocupante de Angus, filho
de Dagda», responderam
eles. «Há dois anos que
ele está doente por ter visto
uma jovem durante o sono, e
a visão fê-lo perder a saúde.
Ora, nós não sabemos onde
se encontra, na Irlanda, a
Jovem beldade que ele ama
profundamente e que todas as
noites lhe vem cantar músicas
muito suaves. Por isso te
convocamos, ó rei, da parte de
Dagda, para que mandes
procurar em toda a ’lha essa
jOvem de beleza lnigualável.»
«Ide dizer a Dagda, meu pai»,
respondeu Bobdh Derg, «que
a mandarei procurar, mas que
preciso do prazo de um
656
ano para tentar encontrá-la.»
657
e dizei-lhe que estou pronto
para levar Angus a esse lago
para poder reconhecer aquela
que viu durante o sono.»
658
para saberes se é a que te
aparece em sonhos.»
659
sonhos e te veio tocar música
muito suave?» «Sim, é ela»,
respondeu Angus,
«reconheço-a bem. Vou falar-
lhe ... » «Isso não é possível»,
respondeu Bobdh Derg, «pois
ela não depende da minha
autoridade e ninguém se pode
aproximar destas jovens.
Nada mais posso fazer por ti e
não lhe podes falar, muito
menos a podes levar
contígo.5>
660
Ethal Aribual do Outeiro de
Uaman, na província de
Connaught. A única maneira
de te aproximares dela e de a
conquistares é falares co,11 o
pai dela. Mas ele só admitirá
dar-te a filha se for forçado a
isso ou se estiver debaixo do
efeito de algum
encantamento.»
661
1
662
Bobdh Derg a Dagda, «que tu
em pessoa fosses a casa de
Ailill e Maevel11, pois é na sua
provincia que se encontra a
rapariga. Se tu lhes pedires
ajuda, talvez eles possam
fazer alguma coisa por ti.»
663
se apaixonou, mas com a qual
não se Pode relacionar nem
pode conquistá-la, o que lhe
provoca uma profunda tristeza
e mágoa. Vim a vossa
presença para vos perguntar
de que modo se poderá
chegar perto desta rapariga e
conquistá-la.» «Quem é ela?»,
perguntou Ailifi. «Caer
Ibormaith, a filha de Ethal
Anbual.» «Ora!», exclamou
Aílifi, «nós não temos nenhum
poder sobre ela, mas mesmo
assim tudo faremos para que
o teu filho a conquiste.»
664
personagens de relevo na
epopeia celta da Irlanda, e
desempenham um Papel
importante em todos os ciclos,
escapando a qualquer
cronologia. A rainha Maeve ri,
particular é Imito
característica, sendo a síntese
entre uma provável rainha
histórica de Conn,,ght e uma
antiga deusa ceita. 0 seu
nome (Mebdh) significa
«embriaguez» mas também
«meio» o que indicia uma
posição intermédia entre o
mundo humano e o Outro
Mundo, divino Ou feérico. Affill
e Macve residem na fortaleza
real de Cruachan (actual
Crogh an, no condado de
Roscommon); e na pequena
montanha de Knoeknarea,
perto de ”90, existe um «cairn»
megalítico que tem o nome de
«Túmulo da rainha Maeve».
665
Uaman e, assim que se
encontrou na presença de
Ethal Aribual, disse-lhe:
«Venho da parte do rei Ailill e
da rainha Maeve pedir para
que os vás visitar pois
pretendem falar-te.» «Não
irei», respondeu Ethal, «pois
sei muito bem o que eles
pretendem. Fica pois a saber
que jamais darei a minha filha
ao filho de Dagda.»
666
pôs a caminho com a escolta
de Dagda, Chegaram ao
Outeiro de Uaman e, após
terem lutado contra as gentes
de Ethal Aribual, penetraram
no outeiro e saquearam-no,
com tal proveito que no
regresso levavam consigo
sessenta cabeças de
guerreiros e Ethal Aribual
como prisioneiro.
667
simplesmente que ela está
sob o efeito de um sortilégio.
Durante um ano inteiro, ela
tem a forma de um pássaro e
no ano seguinte retoma a
forma humana, e ninguém
consegue mudar essa
situação.» «Muito bem», disse
Ailill, «e em que ano ela tem a
forma de pássaro?» «Eu não
devo traí-la», respondeu
Ethal.
668
companhia um maravilhoso
grupo de cisnes. Todos
estarão à superfície das
águas, e será possível falar-
lhes a partir da margem, E111
contrapartida, quem quiser
aproximar-se deles, não
poderá ter a forma humana.»
«Está bem», interveio Dagda,
«já sei o que hei-de fazer.»
669
Dracon, sendo acompanhado
pelo pai. Aproximou-se da
água e viu um maravilhoso
grupo de pássaros brancos
que cruzavam serenamente o
lago e que estavam ligados
entre si por correntes de prata,
tendo a coroá-los arcos de
ouro. Angus, com a forma
humana, chamou a rapariga
pelo seu nome e um pássaro
veio ao seu encontro. «Quem
me charna?», perguntou ela.
«E Angus, filho de Dagda,
quem te chama. PcÇo-te,
Caer, que venhas comigo,
pois o meu amor por ti é tão
grande que não conseguiria
viver nem mais um minuto se
não viesses comigo para a
minha residência.» «Eu não
posso seguir alguém que
possui a forma humana»,
respondeu o pássaro, e
afastou-se.
670
Então, Dagda tocou no filho
com uma varinha mágica e
druídíca, e Mac Oc tomou
imediatamente a forma de UM
cisne majestoso. «Bela Caer»,
gritou Angus, «podes agora vir
comigo?» «POsso, com
certeza, mas na condição de
me dares a tua palavra de
honra que me deixas voltar
amanhã para o lago,» «Eu
Prometo», respondeu Angus,
antes de se abraçar a ela.
671
forma humana: nunca fora tão
bela, e Angus estava no auge
da felicidade. Puseram-se os
dois a cantar a música suave
dos palácios feéricos, e todos
aqueles que ouviam aquela
música ficavam a dormir
durante três dias e três noites.
E a rapariga ficou a partir de
então a viver com Angus no
palácio de Brug-na-Boyne.
672
corações mais sensíveis.(I
673
Capí1u1o1X
674
Loégairé, filho de Crimthann,
um dos mais belos e nobres
guerreiros de Connaught.
«Julgo que devemos saudá-lo
e recebê-lo bem, pois ele tem
um porte nobre e não revela
nenhuma hostilidade contra
nós.»
Quando o guerreiro
desconhecido chegou ao pé
das gentes de Connaught,
estas saudaram-no e deram-
lhe as boas vindas.
«Agradeço-vos a recepção
calorosa», disse o
desconhecido. «0 que te traz
aqui?», perguntou-lhe
Loégairé. «A esperança de
que me possais ajudar» «De
onde vens e quem és?»,
voltou Loégairé a perguntar.
«Sou das tribos de Dana»,
respondeu ele, «e chamo-me
Fiaclina, filho de Rété. Sou um
chefe respeitado entre os
675
meus.» «Se é ajuda o que
pretendes de nós», disse
Loégairé, «nós dar-ta-emos
de boa vontade se tios
disseres o que pretendes.» «0
motivo que aqui me traz é o
seguinte: a minha mulher foi-
me raptada por Eochaid, filho
de Sâl, que a IIVOU para a sua
fortaleza. Inconformado, eu fui
atrás do raptor, que
676
morreu às minhas mãos.
Entretanto, a minha mulher
refugiou~se em casa de um
filho do seu irmão, GolI, filho
de GoIb, cuja fortaleza se
encontra no centro da Planície
Agradável, e ele não ma quer
devolver. já o combati em sete
batalhas, mas em todas elas
fui derrotado e não conseguiu
reaver a minha mulher. Hoje,
travaremos uma batalha
contra GolI, mas são poucas
as nossas possibilidades de a
vencer se não tivermos ajuda.
Por isso vos venho pedir
auxílio, homens de
Connaught, e estou disposto a
recompensar qualquer um de
vós que se junte a mim e
venha combater ao lado dos
meus homens.»
677
ficando os homens de
Connaught a contemplá-lo
enquanto deixava os limites
da terra firme e entrava
lentamente nas águas do lago
com as quais se confundiu.
Cinquenta guerreiros
dirigiram-se então para o lugar
onde tinham visto Fiachria
desaparecer e, entrando nas
águas e descendo até à
profuni
iante
678
que estava na fileira da frente.
679
meio da Planície Agradável»,
respondeu Fíachna, «mas tem
a protegê-la um
poderosíssimo conti11gente
de homens armados.» «Flca
então aqui», disse Loé-airé,
«enquanto eu lá vou com os
meus cinquenta homens.»
ZI
180 C-1le--c-
680
de GoIb, morreu. Estamos na
disposição de lutar até vos
termos morto a todos, Libertai
pois a mulher que tendes
como refém e em troca
pousaremos as armas e
poupar-vos-emos a vida.»
681
manifestar a minha gratidão»,
disse Fiachria a Loegairé,
«mas vou fazer-te uma
proposta: fica comigo neste
país e governemo-lo em
conjunto, tu e eu. Tenho uma
filha que se chama Der GreIne
e, se ela te agradar, poderás
desposá~la.»
682
«Nós gostávamos de ter
notícias do nosso país», disse
então Loégairé a FiacIma.
«Permiti que partamos.» «Se
é esse o vosso desejO, não
vos contrariarei», respondeu
Fiachria. «Mas devo advert
1 1
ir-vos de unia coisa: ’de de
cavalo para o
vossopépsaíesm,
mtearsaa»ssim que aí
chegardes, de modo algum
deveis pousar os
1.
683
metes, e pouco depois
encontravam-se nas margens
do Lago dos Pássaros. Ora,
precisamente naquele dia os
homens de Connaught
estavam leunidos num festim,
e Crimthann, pai de Loégairé,
encontrava-se entre eles,
Todos se lamentavam então
de não terem notícias dos
homens que tinham partido no
ano anterior.
684
rido no ano em que tinham
estado separados. «Não nos
deixes», pediu
685
Crimthann, «pois no reino de
Connaught tu podes ter tudo o
que desejas: ouro, prata,
pastagens férteis para o gado,
cavalos rápidos e as mais
nobres mulheres de toda a
ilha.»
686
fora estipulado a seguir à
batalha de Tailtíu, estes
últimos povoavam o território
da Irlanda enquanto as tribos
de Dana se estabeleceriam
nos outeiros, sob as colinas e
debaixo das águas dos lagos,
não podendo as suas gentes
ser vistas pelos Filhos de Milé
senão quando o desejassem,
pois tinham o dom da
invisibilidade. Vivendo de
acordo com o que tinha sido
combinado entre eles, os dois
povos mantinham excelentes
relações e respeitavam-se
mutuamente.
687
porqueiro das tribos de Dana
que residiam no Munster, o
qual, de nome Friuch, não lhe
ficava atrás em habilidade e
reputação, Assim, sempre que
faltavam bolotas em Munster,
Rucht convidava Friuch a
levar a sua vara de porcos a
Connaught e, por seu lado,
quando faltavam bolotas em
Connaught, Friuch convidava
Rucht para a apanha de bolota
em Munster.
688
sendo de igual valor os dois
concorrentes, as gentes de
Dana ficaram impacientes e
acabaram por lhes impor
provas susceptíveis de
desequilibrar a balança a favor
de um ou de outro. «Já que
sois tão fortes», disseram-lhes
uin dia, «fazei pois com que os
vossos porcos fiquem um ano
sem conICI’-
689
encantamentos sobre os
porcos que tinham ao seu
cuidado e, ao fim de um ano,
ambas as varas tinham não só
sofrido por causa da falta de
comida como os porcos de
Munster tinham emagrecido
tanto como os de Connaught.
«Pelo mal que fizestes
passar os porcos», disseram-
lhes, «ina’s vale que deixais
de cuidar deles!» E a ambos
foi retirada a actividade de
porqueiro.
690
forma de corvo.
691
mais hábil, mas não se chegou
a nenhuma conclusão.
Devemos lembrar-vos que,
por causa das provas que nos
impusestes, haverá muitas
mortes e a Irlanda terá muitas
razões para se lamentar,»
692
E imediatamente, deixando a
assembleia, foi cada um para
seu lado. Um dirigiu-se para o
Shamion, onde mergulhou
transformando-se ’lurfl Peixe
enorme. 0 outro partiu para o
Suir(’) onde mergulhou e, por
1, Rio do Munster.
693
seu lado, também transformou
num enorme peixe. Depois,
ambos, através dos nos, dos
lagos e do mar, nadaram ao
encontro um do outro.
Passaram metade do ano no
Sharmon e a segunda parte no
Suir, e procuraram não se ferir
nem se cansar enquanto se
perseguiam mutuamente.
694
Ao fim de lutarem sem
piedade diante dos homens de
Connaught durante algum
tempo, os dois peixes saíram
do lago e, sobre a margem,
readquiriram a forma humana,
sendo reconhecidos como os
dois porqueiros. Fiachria foi
então até perto deles e deu-
lhes as boas vindas. «Não nos
deveis dar as boas vindas»,
responderam eles, «pois de
nada valem as nossas lutas,
que, como pudestes ver, são
terrivelmente violentas.
Continuamos sem saber qual
de nós é o melhor e
tomaremos agora uma nova
forma para pormos à prova a
nossa habilidade.»
695
lado. Tornaram-se então dois
campeões famosos pela sua
força e resistência. Um era o
campeão de Ochall, que era o
rei do Outeiro de Femen, em
Munster, e o outro o campeão
de Fergria, que era o rei do
Outeiro de Nento-sob-as-
águas, em Connaught. Todas
as campanhas levadas a cabo
pelas gentes de Ochall,
ficavam a cargo do seu
campeão e o mesmo
acontecia em relação às
campanhas realizadas pelas
gentes de Fergria em Nento-
sob-as-águas. A fama dos
dois campeões espalhou-se
rapidamente pela Ilha Verde,
sem que alguém soubesse de
onde eles tinham vindo.
696
estavam a realizar junto ao
lago Raich, 0 cortejo de Ochall
era notável: nele seguiam sete
vezes vinte carros e sete
vezes vinte cavaleiros, e os
cavalos, de uma única cor, ti~
nham riscas prateadas sobre
o corpo. Várias mulheres
desmaiarant ao ver aquele
cortejo, pois nunca na vida
tinham visto um espectáculo
tão esplendoroso. Quando
chegaram, os homens de
Ochall deixaram Os carros e
os cavalos no prado, sem
ninguém a vigiá-los.
Os homens de Connaught
vieram ao seu encontro e
deram-lhes as boas vindas,
perguntando-lhes depois qual
era o motivo da visita. «Nós
697
para vermos quem é mais
forte de entre nós.» «Assí”m
seja», resporideram os
homens de Connaught.
698
antecipadamente que iriam
ser derrotados.
699
Outeiro de Nento-sob-as-
águas», respondeu
orgulhosamente o chefe do
cortejo. «Vim aqui com as
minhas gentes Para competir
cOrivosco. Entre os meus
companheiros, tenho um
campeão tão poderoso que
duvido que alguém deseje
enfrentá-lo.» «pols bem»,
responderam os homens de
Connaught, «outro grupo
antecipou-se ao teu, o de
OchalI, do Outeiro de Femen,
e trouxe um campeão de tal
forma temível que ninguém se
atreve a enfrentá-lo.»
«Façamos com que lutem um
contra o outro», disse Fergita.
700
homens de Connaught teria
aceite o desafio, mas Rinn, o
campeão de Ochali, ergueu-
se imponente e muito seguro
de si e foi ao encontro de
Faebal
que os ites.
Tão violenta foi a luta
ferimentos provocados em
ambos não paravam de
aumentar, ficando os corpos
todos ensanguentados e
cheios de nódoas negras. Por
701
fim tomou-se a decisão de os
separar, por se recear que
pudessem morrer de
exaustão. Mas, após um breve
repouso, mudaram de aspecto
e metamorfoscaram-se em
hediondos demónios da rio
te, e depois arremessaram-se
um contra o outro dando urros
medonhos. E a luta que se
seguiu durou três dias e três
noites sem que jamais um ga-
parados, e readnhasse
vantagem ao Outro. Mais uma
vez foram se
702
Porque quereis saber qual de
nós é o melhor, atraístes
grandes males e penas para
nós os dois, o que acarretará
grandes males para esta ilha
no futuro.» «Que quereis .
og», perguntaram-lhes então.
«Aconte
703
gual valor. Porque não pomos
um fim às disputas
declarando-vos a ambos
vencedores?» «Já é
demasiado tarde»,
Os dois deixaram a
assembleia e desapareceram
sem se saber exactamente
que rumo tomavam,
transformando-se em
minhocas e mergulhando nas
águas. Um deles foi para a
fonte de Uaran Garan, em
Cormaught, e dizia chamar-se
Tumue a quem o interpelava.
0 outro foi para o ribeiro do
Glass Gruin, em Cualngé no
UIster, e dizia chamar-se
704
Crunniuc-
705
água se lança
706
aspecto tão esquisito e que
me revelas coisas
escondidas?» «Já ouviste
falar de Rucht e de Friuch, os
porquelros de Connaught e de
Munster?» «Já, e sei que a
disputa entre eles nunca
acabará pois são os dois
igualmente
707
amanhã, na fonte do
Connaught, uma outra
minhoca, parecida comigo,
também será engolida por
uma das vacas que pertencem
ao reino Maeve. Também esta
ficará grávida e dará à luz um
vitelo que, graças aos seus
mag-
708
Então, o pequeno verme muito
colorido desapareceu na
profundeza das águas do
Glass Gruind, deixando muito
pensativo e melancólico
Maga, filho de Daré.
No mesmo momento, e
naquele mesmo dia, a rainha
Maeve foi-se refrescar à
nascente de Uaran Garan no
Connaught. Nas mãos levava
um vaso de bronze branco,
para lhe a facilitar as abluções.
Mergulhou então o vaso na
nascente e um pequeno
animal que lhe pareceu uma
minhoca ficou preso dentro do
recipiente. Ela ficou a
examiná-lo durante algum
tempo, pois tinha uma foi-ma
estranha e era multicolor, Ora,
de súbito, o animal pôs-se a
falar: «Rainha, tu és poderosa
e respeitada, mas um dia
faltar-te-á qualquer coisa e tu
709
entrarás numa guerra terrível
para conseguires obter aquilo
que te faltar.» «Que queres tu
dizer com isso,
710
verme tão pequeno e
insigníficante?», perguntou a
rainha, cheia de surpresa. «Na
verdade, ao invés de ser um
verme insignificante, sou
capaz de tomar todas as
formas que quero. Mas o
destino está feito de tal modo
que jamais encontrarei a paz
enquanto for vivo. Queres
saber quais foram as formas
que tomei desde que os
homens da Irlanda me
enfeitiçaram?» «Fala,
pequeno verme. e diz-me o
que sabes.»
m era, a razão
711
conseguirem livrar delas.
«Mas», disse Maeve, «quando
é que tu e o teu camarada con-
seguirão descansar?» «0
desfecho 1à está próximo, e
tu terás nele uma palavra a
dizer, ó Maeve. Fica a saber
que, amanhã, uma das tuas
vacas virá matar a sede a esta
nascente e, ao beber água,
engolir-me-á. Ela ficará
grávida e dará à luz um jovem
touro dotado de uns cornos
tão magníficos que se
chamará o Belo Cornudo de
Aé. E fica também a saber que
no Ulster, no Glass Gruind, se
encontra neste momento uma
minhoca em tudo semelhante
a mim. Amanhã ela será
engolida por uma das vacas
de Maga, filho de Daré, que
parirá um touro negro que se
chamará o Moreno de
Cualngé. E tu, rainha Maeve,
712
desejarás esse touro, porque
ele será tão soberbo e
poderoso como o Belo
Cornudo de Aé. E nenhum
touro da Irlanda se atreverá a
mugir depois de o Moreno de
Cualgné e o Belo Cornudo de
Aé o terem feito.»
713
véspera dois prisioneiros,
disse ele: «Aquele que for
capaz de ir pôr o rebento de
um vime à volta do pé de um
dos cativos terá uma
recompensa à sua escolha.»
714
Moreno de CuaIngé.
715
prisioneiros: «Tens de por um
prego na armadura, ou jamais
ela deixará de cair no chão.»
Néra pôs então um prego na
1 1
Ao aproximarem-se da casa
mais próxima, viram-na de
716
súbito ser cercada por uma
corrente de fogo. «Não há
nada de bom para nós nesta
casa», disse o cativo, «pois
onde existe fogo falta a
discrição. Vamos à outra que
está mais perto de nós.»
717
refrescar o corpo e para se
tomar banho, mas não havia
torneiras. No meio da sala
encontrava-se também uma
cuba com lixívia. Depois de ter
bebido um gole de cada um
dos recipientes para a água, o
cativo soprou a última gota
sobre os habitantes da casa,
que morreram todos, Depois
disso, Néra levou o prisioneiro
para a casa das torturas.
i lares.
718
multidão de guerreiros se
confundia com a sonibra, ele
seguiu-os até penetrar no
interior do outeiro. Uma vez aí
189 C_1C?_1
719
chegados, todos aqueles
homens foram mostrar ao rei
as cabeças que levavam
consigo. Néra, por seu lado,
deixou-se ficar prudentemente
para trás, ocultando-se. «0
que é que fizestes ao homem
que vos acompanhava?»,
perguntou-lhes o rei. «Não lhe
fizemos nada, pois não estava
com os outros», eles. «Trazei-
o à minha presença para que
lhe possa falar.» Trouxeram
Néra à presença do rei, que
lhe perguntou: «Como vieste
até aqui?» «Não o sei»,
respondeu Néra. «Eu segui os
guerreiros que assaltaram e
incendiaram a fortaleza.»
«Está bem», disse o rei,
acrescentando: «Vai àquela
casa onde te espera uma
mulher. Diz-lhe que eu é que
te mandei ao seu encontro e
traz-me todos os dias um feixe
de lenha.»
720
E assim foi. A mulher deu-lhe
as boas vindas, e ele dormiu
com ela naquela noite. E todos
os dias, desde então, ele
levava um feixe de lenha à
casa do rei. Mas todos os dias
ele via um cego que,
carregando às costas um
coxo, saía da casa do rei e se
dirigia para um muro em frente
da casa. «É aqui?»,
perguntava o cego. «É sim»,
respondia o coxo, «Agora
vamo-nos embora.»
721
mágica e dá poder a quem a
ostenta. Esconderam-na no
muro para que ninguém, a não
ser o rei, lhe possa tocar.»
«Mas porque e que aqueles
dois vão juntos assegurar-se
de que a coroa está sempre
lá?», perguntou Néra. «A
explicação é simples: como
um é cego e não vê nada, e o
outro é coxo e não consegue
andar, o rei fica certo de que a
coroa não será furtada.»
«Uma coisa ainda me intriga»,
continuou Néra. «Gostava de
saber o que se passou no dia
em que entrei no outeiro. Pude
observar que a fortaleza de
Cruachan tinha sido destruída
e incendiada, e que as gentes
do teu povo mataram Ailill e
Maeve, assim como todos os
que lhe são próximos.» «Isso
não é exacto», respondeu a
mulher. «Foi um exército de
sombras que foi à fortaleza.
722
Mas o que viste acabará por
acontecer se não puseres os
teus de sobreaviso.» «Mas
como?» «Le~ vanta-te e vai
ter com eles. Eles estão
sempre de volta do caldeirão,
cujo conteúdo ainda não foi
comido. Diz-lhes para se
manterem em guarda, na
próxima noite de Samain, pois
os homens do outeiro deverão
atacar nessa altura a fortaleza
de Cruachan e todos os que aí
se encontrarem. 0 que viste
ainda não aconteceu.
Aconselha também
723
todos os outros povos da
Irlanda.» «1\4as eles
pensarão que estou a inventar
histórias se lhes disser que
vim a este outeiro», disse
Néra. «Leva contigo frutos de
verão», disse a mulher. «Fica
também a saber que estou
grávida de ti e que darei à
luz um rapaz. Quando o teu
povo vier destruir o outeiro,
envia-me uma mensagem a
avisar-me, para que eu possa
refugiar-me num abrigo, com o
teu gado. E tu próprio poderás
vir aqui sempre que quiseres.
Agora parte, vai ter com os
teus.»
724
Maeve, assim como os seus
familiares, à volta do
caldeirão. «Cumpriste, o que
te pedi?», perguntou Ailill.
«Cumpri», respondeu Néra,
«mas vivi aventuras muito
estranhas. Fui a um belo país
onde havia grandes tesouros,
pedras preciosas, ricos
ornamentos, comidas muito
saborosas e bebidas
inebriantes. Mas os habitantes
desse pais na proxima noite
de Samain vêm matar-vos e
incendiar a fortaleza, a não ser
que vós mesmos ides na
véspera destruir o outeiro.»
«Nesse caso», disse Ailill,
«nós iremos já sem falta
atacá-los antes que eles nos
venham atacar. Ainda bem
que fizeste esta viagem, ó
Néra. Como recompensa pelo
que fizeste ganharás a espada
de punho de ouro.»
725
Três dias antes do Samain,
Ailill avisou Néra de que ele
deveria ir então proteger a
mulher e os seus bens. Néra
voltou então ao outeiro, e a
mulher deu-lhe as boas
vindas. «Vai agora a casa do
rei», disse-lhe ela, «pois eu fui
lá todos os dias levar um feixe
de lenha em teu lugar, fingindo
que estavas doente. E segura
nos braços o teu filho.»
726
outros povos da Irlanda.
727
ois filhos, Rib e Ecca. Tendo
tido o desgosto de Failbé que
tinha d 1 1 1
728
mas isso de nada lhe valia,
pois Ebliu fazia-lhe esperas e
arranjava sempre maneira de
lhe dar a entender o quanto
estava apaixonada por ele.
Assim, tornou-se inevitável
que Ecca se tenha deixado
seduzir por Ebliu e se tenha
deitado no seu leito de amor,
729
companhia de Ebliu, com toda
a criadagem que o servia. E o
seu irmão mais velho, Rib, que
não se dava bem com o rei
Failbé, foi atrás dele.
730
planície rica e verdejante será
excelente para a criação de
gado, terá sempre alimento
em abundância. E nós
poderemos saciar a sede à
nossa vontade nesta fonte que
brota do solo em direcção ao
ceu.»
Estabeleceram- se então na
planíci
ie de Arbthenn, decididos a
731
residir aí para sempre. Mas,
naquela mesma noite, quando
iam buscar água à fonte, esta
transbordou bruscamente e
inundou-os a todos. E foi a
partir de então que passou a
haver um lago no meio da
planície de Arbthenn.
732
que tinha um brilho muito
incandescente ao pôr~do-sol.
733
gentes, pois não estava
disposto a per~ mitir que
estragassem aqueles pastos
puros que cobriam a encosta.
Feita a intimação, voltou para
Brug.
734
tencionávamos prejudicar-te e
estávamos apenas a
descansar até de Inanhã, Pois
todos nós estamos exaustos.»
«Eu não vos dei permissão
para que ficásseis», gritou
mac Oc. «Sois vós os
culpados por eu ter lançado
um encantamento sobre os
vossos cavalos para os matar.
Se terides algo a lamentar, é a
vossa presunção.» «Tu
procedes mal ao nos
repreenderes tão vilmente!»,
replicou Ecca com veemência.
«Além de não respeitares os
deveres de hospitalidade,
privaste-nos dos nossos
cavalos. Quem é que agora
nos puxara os carros com tudo
o que têm den-
735
tro?» «Vós mesmos puxarei,,
os carros!», respondeu Angus.
736
Angus foi a Brug e voltou de lá
com uma magnífico cavalo
cínzento, de pêlos brilhantes,
a crina prateada e as patas
robustas e ágeis. Trazia o belo
animal arreios de prata
guarnecidos com fivelas em
ouro onde estavam
incrustadas pedras preciosas
de todas as cores. «Cedo-te
este cavalo sem pedir nada
em troca», disse ele a Ecca,
«mas devo prevenir-te de uma
coisa. Este cavalo não
pertence a nenhuma raça que
tu conheças e terás de ter o
cuidado de o não deixar nunca
parar, seja dia ou noite. Não o
deixes nunca descansar pois,
se o fizeres, isso causará uma
grande catástrofe, a qual te
será fatal a ti e aos teus.»
737
Viram maravilhados que o
cavalo, na verdade, puxava
sozinho todos os carros sem
fazer um grande esforço.
Entraram no Ulster e daí a
pouco avistaram uma planície
muito verdejante rodeada de
colinas, a planície de Neagh.
«Eis um belo lugar para nos
estabelecermos», disse Ecca.
«Aqui existe erva em grande
abundância para criarmos o
nosso gado, e o terreno é tão
plano que não teremos
dificuldade em construir aqui
as nossas casas.»
Descarregaram os carros
mas, absorvidos pela tarefa,
esqueceram-se de vigiar o
cavalo. No momento em que
este parou uma fonte jorrou
então do solo, lançando para o
ar jactos de água que se
projectavam torrencialmente
nos céus. Ecca lembrou-se
738
então da advertência de
Angus e, muito perturbado
com o fenómeno que
provocara, mandou construir
sem demora, com pedras de
grandes dimensões, uma casa
à volta da fonte com uma porta
que vedava o caminho às
águas torrenciais. Deste
modo, a água deixou de correr
e de inundar os terrenos
vízinhos, e Ecca decidiu
edificar a sua própria casa
perto da fonte para melhor a
vigiar.
rigorosamente fechada,
excepto quando as gentes da
fortaleza fossem buscar água
à fonte.”’
739
Construiu-se assim uma
cidade ao redor da fortaleza
de Ecca e este, com as suas
gentes, dedicaram-se à
criação de gado que ia pastar
ria erva abundante da planície
onde também se cultivava o
trigo. Ebliu deu a Ecca duas
filhas que se chamaram Ariu e
Libane. Numerosos chefes do
UIster vieram visitar Ecca e
prestaram-lhe homenagem,
tendo ele tanto sucesso que
ficou soberano de metade da
província. E todos elogiavam
as excelentes qualidades de
Ecca, filho de Failbé.
740
desprovidas de qualquer
sentido: por esse motivo lhe
chamaram Curnan, o Simples.
Curnan repetia
constantemente que um dia
um lago surgiria por causa da
fonte, sendo por isso urgente
fazer barcos. «Veio esta
planície cheia de morte e
destruição», dizia ele. «Veio
jactos de água a saírem da
terra, jactos impetuosos e
torrenciais. Veio o nosso chefe
e todos os seus hóspedes
engolidos pela fúria das
águas, Também vejo Ariu, a
minha amada, levada pelas
vagas. Oh!, nem sequer a
posso salvar. Todos morrerão
nesta planície, à excepção de
Libane e de eu proprio. Que
triste destino... E vejo Libane a
leste e a oeste: ela nadará
muito, muito tempo no vasto
oceano, passando perto de
costas misteriosas e de ilhotas
741
obscuras, e perto de grutas
profundas imersas nas J
742
Angus, que lhe dá o cavalo, e
lhe faz a mesma advertência.
Mas o cavalo põe-se a urinar
tão abundantemente que Rib
se vê obrigado a fechá-lo
numa casa. Trinta anos mais
tarde a urina transborda e
inunda todo o país. (Revue
celtique, tomo xv, segundo o
manuscrito de Rermes dos
Dindsenchas, série de notas
mitológicas sobre os lugares
da Irlanda).
743
Neagli. Ecca, filho de FalIbé,
EbIlu, toda a família e todas as
suas gentes foram vítimas das
águas furiosas, salvando-se
apenas a sua filha Libane e o
seu genro Curnan o Simples.”
744
(2)
745
que
1 .Reconhecer-se-á nesta
história o tema da célebre
lenda bretã da Cidade de Is,
engolida pelas vagas do mar
por culpa da princesa Dahud
que deu as chaves das
represas que protegiam a
cidade. No País de Gales
encontra-se esta tradição no
caso da baía de Cardigan,
estando na origem da
catástrofe o esquecimento de
uma mulher encarregue de
vigiar uin poço, que não
fechou uma porta, deixando
assim que ele transbordasse.
Pode tambérn mencionar-se a
tradição respeitante ao país
de Lyonesse, engolido pelo
mar ao largo de Penzance no
Cornwall. Este tema da cidade
engolida pelas águas parece
constante na lenda celta. Ver
J. Markale, Os Celtas e a
746
civilização céltica, Paris,
Payot, 1994 (cap. consagrado
ao Mito céltico das origens) e,
sobretudo A mulher celta,
Paris, Payot, 1992 (cap.
consagrado à «Princesa
engolida»).
747
representações muito
misteriosas, incOrrectamente
chamadas «sercias», que se
podem encontrar no exterior
da catedral anglicaria de
GaIway, e sobretudo a
representação surpreendente
que se encontra num
contraforte, no interior da
magnífica igreja romana de
Clonfert (condado de GaIway),
a qual está alétu disso
colocada sob o orago de São
Brandão, o Navegador.
testemunhara. Quando
Congal lhe perguntou se
queria receber o baptismo, ela
aceitou humildemente e pediu
a Deus para a acolher na paz
eterna. Então ele baptizou-a e
no mesmo instante morreu
Libane, filha de Ecca, que veio
a ser Muirgen, a «Filha do
Mar»Y1
748
Segundo a narrativa A
inundação do lago Neagh,
contida no Leabhar na h Uidré,
manuscrito do fim do século
XI, editado com tradução
inglesa por 1. 0’ Beirne-Crowe
em Ki1kenny Archaeological
Journal, Kilkenny, 1870. Outra
tradução inglesa de P. W,
Jiyce em Old Celtíc romances,
Dublin, 1879.
749
aquele tempo havia um jovem
herói chamado Fraech, que
era o homem mais belo de
toda a Irlanda e Bretanha.
Tinha por pai Idach de
Connaught e por mãe Befinn,
irmã de Boann, das tribos de
Dana. 13efinn oferecera-lhe
dez vacas feéricas, brancas e
com orelhas vermelhas, e que
produziam leite em grande
abundância. Na casa onde
vivia encontravam-se
cinquenta filhos de reis, todos
da mesma idade, com a
mesma estatura e o mesmo
aspecto que ele, e
encontravam-se também três
harpistas muito talentosos. A
fortuna de Fraech era imensa,
e a sua reputação estendia-se
muito para além do
Connaught.
750
reinavam então naquela
província, de tanto ouvir falar
nas excelentes qualidades de
Fraech, se apaixonou por ele
sem nunca o ter visto. Tendo
chegado aos ouvidos de
Fraech as pretensões da
jovem em relação à sua
pessoa, ele decidiu então ir
conhecê-la. A este respeito
falou com as suas gentes, que
lhe deram todo o apoio.
«Mas», acrescentaram elas,
«antes de ires para casa de
Ailill e de Maeve, vai falar com
a irmã da tua mãe e pede-lhe
para te dar presentes
feéricos.»
751
estavam ornadas com
broches vermelhos, cinquenta
túnicas brancas com adornos
de aniinais em ouro e prata,
cinquenta broquéis de prata
com orlas vermelhas
salientes, pedras preciosas
que brilhavam à noite como
raios de sol, e cinquenta
espadas de punho de ouro. Da
casa de Boann, ele trouxe
tam-
752
bém cinquenta cavalos que
tinham como pendentes do
pescoço sinetas de ouro, e
exibiam caparazões de
púrpura, arreios de ouro e de
prata decorados com figuras
de animais e munidos de
cinquenta chi
CI 1
icotes em latão branco que
tinham na ponta colchetes de
ouro; trouxe ainda sete cães
de caça equipados com
correntes prateadas, sete
tocadores de trompa de
cabelos longos dourados,
vestidos com túnicas
multicolores
1 1
753
Quando se aproximavam de
Cruachan onde residiam Ailill
e Maeve, a’sentinela que
estava na torre da fortaleza
viu-os desembocar na planície
e foi anunciar ao rei e à rainha,
aos gritos: «Vem ao nosso
encontro uma companhia
como nunca se viu desde que
reinais sobre Connaught. Juro
pelo deus protector da minha
tribo que jamais se viu
companhia tão brilhante e rica:
vêm com tal ligeireza e com tal
aparato que nunca vi nada
igual! Quanto aos
malabarismos e às
habilidades que exibe o jovem
que se encontra no meio da
companhia, ultrapassam tudo
o que se possa imaginar: ele
atira o dardo para a frente e,
antes que a arma atinja o solo,
sete cães com correntes de
prata seguram-na em pleno
ar.»
754
Ao ouvirem tão grande elogio,
as gentes que se encontravam
na fortaleza de Cruachan
precipitaram-se para as
muralhas para poderem ver o
grupo que se aproximava, e foi
tal a pressa e a sofreguidão
que várias pessoas ficaram
esmagadas, tendo morrido
dezasseis. Depois, o
espectáculo que todos viram
foi impressionante: os
membros do grupo deixaram
os cavalos soltos pelo prado e
libertaram os caes que,
começando a correr
velozmente, num instante, às
vistas das muralhas de
Cruachan, caçaram sete
gamos e sete raposas.
Depois, os cães partiram para
um pântano e trouxeram de lá
sete lontras que depositarafil à
porta das muralhas. Então, os
membros do grupo sentaram-
755
se na erva fresca e ficaram à
espera.
756
ripas e tinha dezasseis janelas
com caixilhos em cobre.
Um caixilho de prata, e a
seguir um frontão, uniam as
travessas da casa e
cercavam-na de uma porta à
outra.
757
vontade», concordou o rei,
«mas entretanto seria bom
que se fosse preparando uma
refeição para os nossos
hóspedes.»
758
prata e de bronze branco
tendo em relevo as figuras de
pássaros e de cães. Quando
se tocava nas cordas, as
figuras corriam às voltas ao
redor dos homens. Os
harpistas começaram a
beliscar as cordas, e
provocaram um tal sofrimento
e uma tristeza tão grande que
morreram doze homens da
casa de Ailill e de Maeve.
759
com o parto dos dois primeiros
filhos, mas induzira ao sono
quando do nascimento do
terceiro, pois o trabalho de
parto foi rtluito penoso e a mãe
adormeceu. Quando esta
acordou, quis comemorar o
que sentira durante os seus
partos.
760
desprendia-se uma luz muito
suave. Por fim, Fraech
levantou-se. «Basta», disse
ele, «que já ganhei esta
partida, seja qual for a joga-
Maeve ergueu-se,
envergonhada por ter deixado
os jovens sem comer, mas
disseram-lhe que eles tinham
sido servidos com grande
fartura. Então, ela pediu que
lhes dessem ainda mais
comidas e bebidas, para que
se saciassem. Depois, Aíli11 e
761
ela chamaram Fraech à parte
e perguntaram-lhe qual era o
motivo que o 1tinha levado a
Cruachan. «Eu queria visitar-
vos», respondeu Fraech. «E
uma grande honra para nós»,
disse Ailill, «e estamos muito
felizes por te conhecermos.
Fica a saber que gostamos
muito de te ter aqui
connosco.» «Nesse caso
ficarei convosco uma
semana», disse Fraech.
762
não lha tivessem apresentado.
763
riqueza e a tua reputação são
suficientes para que a minha
família consentisse em
obteres a minha mão. Além
disso, era contigo que eu
preferia ficar, pois amo-te
desde que comecei a ouvir
falar de ti. Toma este anel, que
servirá para nos manter
unidos. A minha mãe deu-me
para o guardar, e se perguntar
porque não o trago comigo
direi que o perdi.»
Separaram-se logo em
seguida, mas Ailill e Maeve
foram prevenidos de que a sua
filha se encontrara com
Fraech. «Receio muitO»,
disse o rei, «que a nossa filha
fuja com esse jovem.»
«Poderíamos dar-
764
se comprometer a
acompanhar-nos quando
tivermos de fazer uma
expedição guerreira.»
Naquele mesmo momento,
Fraech entrou em casa. «A
vossa conversa é secreta’?»,
perguntou ele. «Se o fosse,
não poderias nela participar»,
respondeu Allifi.
«Gostaríamos que nos
dissesses o que desejas.»
«Nesse caso, serei lesto a
dizer-vos o que dese-jo»,
disse Fraech, que perguntou
em seguida: «Quereis dar-me
a mão da vossa filha’ .>»
765
cavalos de cor acinzentada,
com freios em ouro e prata,
doze vacas leiteiras com
capacidade para darem leite,
cada uma delas, a cinquenta
pessoas, e tendo cada uma
delas um veado branco com
orelhas encarnadas. Peço-te
também que jures que nos
acompanharás sempre que de
ti necessitarmos numa
expedição guerreira. Caso
aceites as nossas condições,
a nossa filha será tua.» «Pela
minha espada e pelas minhas
arrnas!», exclamou Fraech,
«nem mesmo a Maeve de
Cruachan eu darei um tal
dote!» E, irado, deixou-os e
abandonou a casa.
766
encherá de vergonha e de
desonra perante os reis e os
nobres da Irlanda. A meu ver,
mais vale que acabemos com
ele antes que nos deixe ficar
mal.» «Isso não seriajusto»,
disse Maeve, «pois ele é
nosso hóspede, e temos o
dever de lhe prestar
assistência e de o proteger.
Matá-lo só serviria para nos
desonrar.» «Eu agirei de tal
forma», disse Ailili, «que
evitarei que a desonra caia
sobre nós.»
767
possamos admirar o teu
talento.» «Como é o lago?»,
perguntou Fraech. «E igual
aos outros», respondeu Ailifi.
«Não tem nenhuns perigos e
nele é frequente tomarem~se
banhos.»
768
Entretanto, Fraech, sem
nunca deixar de nadar,
estivera sempre, a observar
aquela cena. Seguiu o anel
com os olhos e viu um salmão
saltar para fora da água e
engoli-lo, Sem perder tempo,
precipitou-Se para o peixe,
agarrou nele, transportou-o
para terra e pô-lo num lugar
escondido da margem, no
meio dum canavial. Depois,
quando se preparava para sair
do lago, gritou-lhe AiIiII: «Um
instante! Vês aquela sorveira,
naquele lado do lago? Acho
muito bonitas as suas bagas.
Antes de vires ter connosco,
vai lá e traz-me um ramo.»
769
acontecia, Finnabair
aproximara-se do lago e
estivera a apreciar os
movimentos muito belos e
ágeis de Fraech a nadar:
nunca ela vira um corpo tão
branco, com uma cabeleira
preta tão harmoniosa, e um
rosto tão delicado, com os
olhos azuis e os lábios bem
vermelhos. 0 coração
acelerou-se-lhe e pôs-se a
sonhar.
770
sentiu que, vindo do fundo, um
monstro o estava a atacar.
«Atirem-me a espada!»,
bramiu ele, «Estou a ser
atacado por um monstro!»
771
salvar!»
772
não tem culpa nenhuma e,
além disso, ele demonstrou
multa coragem. Estou
arrependido de ter procedido
tão mal. Quanto à nossa filha,
traiu-nos levando-lhe a
espada. Os seus lábios calar-
se-ão antes de amanhã à
noite, pois já não é possível
tolerar tanta audácia e
presunção.»
773
mulheres vestidas com
túnicas de purpura, com a
cabeça coberta com toucados
e trazendo nos pulsos
braceletes de prata. Logo
alguém foi mandado
perguntar-lhes por que se
lamentavam daquela maneira
e quem eram. «Nós
lamentamo-nos por causa de
Fraech, o filho de Idacha e de
Befinn de quem é o filho
favorito, e o jovem mais
amado de todas as tribos de
Dana.»
774
levaram-no, desaparecendo
na bruma que repentinamente
se levantara e que cobria
Cruachan.
775
onde tinham vindo. Mas como,
ao afastarem-se, elas
continuaram a entoar o
lamento com um sentimento
profundo, todas as pessoas
que se encontravam naquele
momento ’10 Pátio ficaram
loucas. E é desta história que
provém o «Lamento das
776
dos os músicos da Irlanda.”’
777
deixei um salmão, Leva-o a
Finnabair e pede-lhe para o
preparar e para o cozer bem.
Diz-lhe também que o anel se
encontra no interior do peixe.
Creio que ele nos poderá ser
muito útil esta noite.»
778
«Minha flha»,
779
lhe peço, nenhumajóia que lhe
dês a poderá salvaf-» «Assim
780
momento pode surgir o povo
feérico para se misturar com
os humanos.
781
cavalariças.»
782
o a Finnabair, mas soube que
ela to tinha dado. Foi por isso
que, quando mergulhaste no
lago, o tirei da tua bolsa e o
atirei à água. 0 que me
espanta é vê1o aqui. Por tua
honra, ó Fraech, explica-nos
este prodígío,» «É muito
simples ... », respondeu
Fraech. «Ao dar-me este anel,
a tua =, filha ficou
comprometida comigo, o que
te deixou incomodado.
Enquanto nadava, vi-te pegar
nele e atirá-lo à água, e vi
depois o salmão engoli-lo.
Nessa altura agarrei o salmão
e escondi-o na margem, de
forma dissimulada. Ainda há
pouco, antes do festim,
mandei buscá-lo para o dar à
tua filha e foi ela que, ao
mandar cozer o salmão,
descobriu o anel. Assim se
explica que ele esteja agora
perante ti.»
783
Aílill, terrivelmente perturbado,
olhou para Maeve que se
mantinha calada, e depois
fixou o olhar em Fraech sem
ser capaz de falar. «Rei Ailill»,
continuou Fraech, «todos os
que estão aqui presentes
ouviram as palavras que
pronunciaste ainda há pouco.
Tu disseste que, se o anel
fosse encontrado, ela poderia
partir, nem que fosse com o
moço das cavalariças,
segundo as tuas próprias
palavras.» «Tu sabes muito
bem», exclamou Finnabair,
«que só a ti trago no coração!»
«Pelos vistos», suspirou Ailill,
«tenho mesmo de te dar a
minha filha. Exigir-te-ei no
entanto uma única coisa: que
jures acompanhar-nos em
todas as expedições
guerreiras em que
necessitemos da tua
784
ajuda.»1’1
785
zela. Na manhã seguinte,
despediu-se do rei e da rainha
de Connaught e, com todas as
suas gentes e Finnabair,
regressou para a sua
residência.
-a um grande sofrimento.
Roubaram as tuas vacas e
levaram Finnabaír. Três das
tuas vacas estão na Escócia
do norte, no território dos
Pictos. E as outras, assim
786
como a tua mulher, estão nas
montanhas dos Alpes.(’) «Eu
vou à procura dela!»,
exclamou Fraech. «Não vás!»,
disse a mãe, «pois se o fizeres
a tua vida correrá um grande
perigo. Eu dar-te-ei outras
vacas.» «Mas, e Firinabair?»
«Na Irlanda há mulheres tão
belas e nobres como ela e eu
própria me encarregarei de te
arranjar uma que te
convenha.» «Não me
interessa o que dizes», disse
Fraech, «pois de qualquer
modo partirei em busca de
Finnabair e das minhas
vacas.»
787
Cemach(11 com quem fez
amizade. Disse-lhe este,
acompanhando-o na sua
demanda: «A tua missão está
condenada ao fracasso, pois
prevejo que terás de passar
por muitos tormentos e por
muito sofrimento.»
«Acompanhar-me-ás, seja
qual for o perigo?», perguntou
Fraech. «Nunca recusei ajuda
a um amigo», respondeu
Conall. «Acompanhar-te-ei
para onde quer que vás.»
788
ConalI, «enquanto as nossas
gentes esperam aqui por nós.
Sem dúvida, ela poderá
prestar-nos informações sobre
2. As narrativas irlandesas
incluem sempre um jogo de
palavras entre os Alpes , o
nome Alba, que designa Grã-
Bretanha.
789
também um dos protagonistas
da Razzia des Boeufs de
Cualngé. Numerosas
narrativas mostram-no a
intervir nas circunstâncias
mais diversas.
790
ConaIl. «Eles roubaram a
mulher e as vacas de Fraech,
filho de Idach, de Connauhgt,
na Irlanda. A mulher encontra-
se na fortaleza que existe lá
em cima, e as vacas vão agora
pastar para a encosta da
montanha.» «0 que e que nos
aconselhas?», perguntou
Fraech. «Penso que devereis
ir-vos encontrar com aquela
mulher que está a levar as
vacas a pastar. Dizei-lhe por
que estais aqui e ela, que veio
da Irlanda, saberá aconselhar-
vos melhor do que eu.»
Apressando-se, Fraech e
Conall foram então ao
encontro da mulher que
tomava conta das vacas na
encosta da montanha. Ela
deu-lhes as boas vindas e
perguntou-lhes de onde
vinham: «Nós vimos da
Irlanda», respondeu Fraech,
791
«e queremos resgatar a
mulher que está na fortaleza,
assim como as vacas que nos
foram furtadas. Sabes como
havemos de entrar naquele
lugar?»
792
Finnabair, filha de Affil e de
Maeve, é a Prisioneira que
está na fortaleza, e as vacas
dadas a Fraech pela sua mãe,
Befinn, das tribos de Dana,
estão no meio dessas que
guardas.»
I. Espécie de fraternidade
guerreira do Ulster que,
agrupada ao redor do rei
Conor (Conchobar mae
793
Nessa,) fazia as suas reuniões
numa casa chamada «Ramo
Vermelho», onde estavam
expostos os troféus
conquistados nas batalhas.
794
Com efeito, circula pelo país
uma profecia que diz que tu
deverás pôr um teimo aos
nossos infortúnios. Segundo
essa profecia, bastar-te-á
apertar o cinto à volta da
cabeça da serpente para que
esta adormeça
imediatamente.» «Isso é
mesmo verdade?», admirou-
se Conall. «Nesse caso, não
percamos tempo.» «Esperai»,
disse a mulher, «pois os
guerreiros que guardam a
fortaleza são tão perigosos
como a serpente. E melhor
esperar pela noite. Vou para
minha casa mas, esta noite,
não mungirei as vacas, e farei
de conta que as vitelas
precisam de mamar toda a
noite. Deixarei a porta
entreaberta, pois sou sempre
eu que a fecho todos os dias
antes de cair a noite. Vós
entrareis assim na fortaleza
795
assim que os guardas
estiverem a dormir e em
seguida fareis o que muito
bem entenderdes.»
796
No entanto, faltavam três e por
esse motivo se dirigiram para
o território dos pietos do norte,
na Escócia. Após passarem
por graDdes dificuldades,
conseguiram encontrar o lugar
onde se encontravam as
vacas, apoderaram-se delas e
saquearam a fortaleza do que
as roubara. Feito isso,
dirigiram-se para a costa e
navegaram até às costas da
Irlanda, onde aportaram num
lugar chamado Bennchur.
797
esperava.”’
C a p í t ti oX1
L”, ’- 1
798
fortaleza. Estava um dia de sol
e soprava uma ligeira brisa.
De súbito, Bran ouviu uma
música vinda de trás de si.
Voltou-se para saber quem
estava a tocar mas, assim que
se voltou, a mesma música
continuou a ouvir-se nas suas
costas. Isto durou al um
tempo, até que,
9
799
apareceu vestida com um traje
muito leve. Avançando para
Bran, ela começou a cantar:
800
Quatro colunas suportam esta
ilha, são quatro colunas de
bronze
801
pois vive-se sob o signo de
Emain, Beleza de uma terra
maravilhosa Onde tudo é
maravilhoso
802
0 druida chamava-se Nuca.
Bran perguntou-lhe qual era o
significado do canto que
ouvira e da presença da
mulher misteriosa na grande
casa da sua fortaleza. «Não é
difícil de perceber»,
respondeu o druida. «Esta
mulher veio de Emain, ou seja,
da Ilha das Macieiras. E, ao
apresentar-te um ramo de
macieira de Emain, estava a
convídar-te para te ires
encontrar com ela nesse
lugar.» «A sério?», admirou-
se o filho de Fébal. «E onde se
situa esta ilha de que me
falas?» «A ilha situa-se
algures no vasto oceano, para
os lados onde o sol mergulha
nas ondas. Não se conhece a
sua exacta localização e
ninguém lá consegue ir sem a
ajuda de um guia.» «Nesse
caso, que hei-de fazer?»,
803
insistiu Bran.
804
Nuca, ordenou que se
começasse a construir um
barco com três cascos. Feito o
barco, seleccionou os
familiares que o poderiam
acompanhar na arrojada
viagem. Entre eles,
encontrava-se um certo
German, de quem Bran
gostava tanto como se fosse
seu irmão, assim como
Nechtân111, filho de ColIbran,
que era um grande
conhecedor da arte de
navegar, Reunindo o grupo
que o iria acompanhar, Bran
levou-o ao porto de
Cloghan12) para aí se
fazerem os últimos
preparativos para a viagem.
805
de Bran chegaram à praia e
daí começaram a gritar muito
alto para que os fossem
buscar. «Voltai para casa! »,
gritou-lhes Bran, «pois não
posso levar a bordo mais
homens do que os previstos!»
«Nesse caso», responderam
eles, «vamos atirar-nos à
água, seguiremos no teu
encalço, e podes ter a certeza
de que acabaremos por nos
afogar se não nos aceitares a
bordo! » (3)
806
anoitecer, pois o vento não era
suficiente para fazer avançar a
embarcação. Quando a noite
caía avistaram duas pequenas
ilhas rochosas totalmente
desprovidas de vegetação e
com
1. No condado de Clare, no
seio dum vale verdejante e
solitário que domina o maciço
calcáriO desértico de Burren.
Foi em Corcomroe que foi
construída, no século XIII, a
mais ocidental das abadias
cistercienses. A toda a volta
subsistem diversos vestígios
megalíticos e célticos.
2. No condado de Kerry, ao
807
fundo da Baía Brandão, cujo
nome evoca a figura de São
Brandão, o Navegudor,
fundador histórico do mosteiro
de Clonfert, tendo sido
inserido nesse nome o mito
pré-crisião de Bran.
3. Trata-se claramente de um
encantamento mágico: se os
três irmãos de Bran
morressem afogados, a
responsabilidade recairia
sobre Bran que perderia a sua
honra.
808
duas fortalezas em cima.
Ouviram uma algazarra vinda
de lá, que era provocada por
pessoas que falavam alto e
que se vangloriavam de ter
praticado actos heróicos.
«Nós podemos aportar e
perguntar-lhes se conhecem a
direcção da Ilha das
Macieiras», disse Diuran, o
Poeta. «Tens razão»,
respondeu Bran. «Vamos
falar-lhes, pois devem saber
coisas que nós ignoramos.»
809
onde se encontravam.
Os irmãos, sentIndo-se
culpados, não responderam, e
os outros companheiros de
Bran, cheios de angústia,
mantiveram-se também em
silêncio. Andaram assim ao
sabor das correntes durante
três dias e três noites, sem
verem terra. Ao fim do quarto
dia, ouviram um ruído
proveniente de nordeste. «É o
ruído de ondas a baterem na
810
costa», disse Bran. «Dirijamo-
nos para lá, pois estou certo
de que aí descobriremos
alguma coisa.»
811
Ora, -na manhã do quarto dia,
avistaram à luz do sol uma ilha
alta e grande, com terrenos
suspensos nas alturas, Havia
fileiras de árvores em cada um
dos terrenos e, nos ramos,
estavam dependurados
pássaros. Bran e os seus
companheiros aconselharam-
se sobre o que havia a fazer,
mas não chegaram a
nenhuma conclusão. Então
Bran decidiu ir a terra sozinho
não tendo aí nenhum
percalço. Caçou dois
pássaros e levou-os para o
barco, proporcionando a toda
a tripulação uma excelente
refeição. Logo depois
voltaram para o mar.
812
um cavalo, mas que linha as
patas de um cão, o pêlo todo
eriçado e unhas pontiagudas.
Era visível que 0 monstro esta
B,aramnuoitrodeci30onutente,
preparando-se para saltar
sobre eles e os devorar.
s conseguiram escapar-lhe.
813
panhá-lo, dizendo que o risco
era menor se fossem dois.
Assim que desembarcaram,
caminharam com muita
atenção e foram dar a um
grande prado onde
observaram enormes pegadas
no terreno que pareciam ter
sido deixadas pelos cascos de
cavalos. Havia também,
espalhadas 0,11 pouco por
toda a parte, grandes cascas
de noz. E como também havia
casas eni ruínas, chamaram
os seus companheiros para
virem ver com os seus
próprios olhos o que eles
estavam a ver. Este
espectáculo, no entanto,
assustOu-os, Pois não
conseguiram compreender o
que poderia ter provocado
aquelas pegadas e aquelas
ruínas, de tal modo que
apressaram-se a voltar para o
814
barco.
815
onde as vagas lançaram uni
salmão. Desembarcaram
então e entraram na casa.
Esta estava deserta, mas nos
seus quatro cantos havia
quatro leitos, comida e um
recipiente de vidro que
continha uma bebida
aparentemente inebriante.
Eles comeram e beberam o
que encontraram, e depois
voltaram para bordo sem
terem visto vivalma.
816
uma densa floresta. Bran
desembarcou na ilha e,
embrenhando-se na floresta,
arrancou um ramo de urna
árvore. 0 ramo esteve nas
suas mãos durante três dias e
três noites, enquanto o barco
dava voltas à ilha, e ao quarto
dia apareceram três maçãs na
ponta do ramo. Todos
partilharam entre si as maças
e saciaram-se delas.
Também passaram na
proximidade de uma pequena
ilha, baixa e muito bela de se
ver, onde avistaram grandes
animais parecidos com
cavalos. Cada animal mordia
o flanco de outro arrancarido-
lhe um pedaço de carne com
pele, de tal modo que rios de
sangue carmesim escorriarri
das feridas e derramavam-se
sobre o chão. Os navegadores
afastaram-se a toda a
817
velocidade, sentindo-se cada
vez mais fracos e
desamparados pois não
tinham nada para comer.
818
debicar os frutos. «Parece que
estamos com sorte», disse
Bran. «Se estes animais
vermelhos e estes pássaros
comem com tanto prazer os
frutos das árvores, isso
significa que também nós
poderemos comer esses
frutos. Vamos pois abastecer-
nos a terra.»
Desembarcaram na praia e
estranharam que o solo fosse
tão quente debaixo dos pés.
Na verdade, aquele calor
tornou-se tão insuportável que
tiveram de regressar à pressa
ao barco; apesar disso, ainda
tiveram tempo de levar corri
eles uma grande quantidade
de maçãs que lhes permitiram
ter alimento para vários dias.
819
mau cheiro do mar, acostaram
numa ilha estreita na qual se
erguia uma fortaleza rodeada
duma muralha muito branca,
corno se tivesse sido
construída com cal ou com giz,
e tão alta que quase chegava
à nuvens. Como havia uma
porta aberta na muralha, eles
atravessaram-na e viram
grandes casas também
brancas. Entrararri na que
lhes parecia maior e
encontraram-na sem
ninguém, apenas com um
gato que saltava sobre uns
pilares que existiam nos
quatro cantos da sala. Ao ver
os recém-chegados, o gato
não pareceri minimamente
820
coisas. Havia três filas de
objectos numa das paredes da
casa, indo de uma porta à
outra: uma de broches
dourados e prateados
pregados à parede por
alfinetes; a outra de cordões
de ouro, tendo cada um a
dimensão de um círculo de
cobre; e a última, por fim, de
grandes espadas, com Pedras
preciosas incrustadas nos
punhos de ouro. Avançando
pela sala, eles viram no meio,
no fogão, carne assada,
toucinho cozido, e grandes
taças cheias até cima de uma
bebida de cheiro agradável.
«Isto é para nós?», perguntou
Bran, voltando-se para o gato.
821
então que aquela refeição
tinha sido preparada a pensar
neles e comeram e beberam
até se fartarem, adormecendo
depois nuns leitos que ali se
encontravam. Na manhã
seguinte, quando acordaram,
deitaram as bebidas em bilhas
e juntaram os restos de
comida para os levarem com
eles. Mas, quando estavam de
partida, disse um dos irmãos
de Bran: «Eu gostava de levar
um destes colares.» «Não
faças isso», disse Bran, «pois
desconfio que esta casa está
a ser vigiada. Estes objectos
foram postos aqui para
despertarem a nossa cobiça.»
822
flecha implacável e o infeliz
ficou de tal modo em brasa
que se transformou num
montão de cinzas, 0 gato
voltou então para junto de um
dos pilares e Bran tentou
acalmá-lo com palavras muito
suaves, ao mesmo tempo que
pos o colar no seu lugar. Os
navegadores voltaram depois
para o barco, muito
entristecidos por terem
perdido um companheiro.
823
uma cabra branca e a atirava
por cima da paliçada, o animal
tomava-se negro ao tocar no
solo, e se o fazia a uma cabra
negra, esta tornava-se
branca.”’
824
lado das cabras brancas para
ver o que acontece.»
825
negros, quer fisicamente quer
no vestuário que envergavam.
Tinham fitas igualmente
negras amarradas à volta da
cabeça e não paravam de se
lamentar. «Um de nós deve ir
ter com eles e perguntar-lhes
porque se lamentam daquela
maneira. E devemos
aproveitar para lhes perguntar
qual a rota a tomar para a ilha
que desejamos alcançar.»
826
«Que vão lá quatro homens
com correntes e que os
tragam à força. Para terem
êxito não deverão olhar para a
terra, e deverão cobrir o nariz
e a boca para evitarem
respirar os miasmas da ilha e
apenas verem aqueles que
vão buscar!»
827
galesa de Peredur. Vde 3.
Markale, Le (ycle du Graal,
sexta época: Perceval o
Galês. A mudança de cor
significa a passagem de um
mundo para outro, e a
paliçada simboliza a fronteira
entre o mundo humano dos
Filhos de Milé e o mundo,
completamente feérico, das
tribos de Dana. Já , ten,
hamado muitas vezes a este
episódio o «Van das Almas»,
tendo-se corno referência o
texto galês en, que
828
acontecimentos
extraordinários, não estando
eles ainda prontos para
atravessar a fronteira. Assim
s, explica o facto de andarem
nluitO tempo perdidos no mar
antes de encontrarem a Ilha
das Fadas.
829
decididos a falar com os que
nela deviam habitar. Mas,
assim que puseram os pes na
ponte de vidro, caíram todos
para trás, sendo incapazes de
se manter de pé na superfície
muito escorregadia.”
830
mesmo Bran, filho de Fébal?»,
perguntou ela com um tom
ironico antes de voltar a
desaparecer no interior da
fortaleza.
831
filho de Fébal!», gritou ele.
832
semelhante à célebre «Ponte
da Espada» que Lancelot tem
de atravessar para libertar a
rainha Guenievre da fortaleza
de Gorre, ou seja, de Vidro,
onde a mantém prisioneira
Méléagant, uma espécie de
divindade dos infernos.
Note-se que, no episódio aqui
apresentado. Bran e os seus
companheiros não chegarão
nunca a entrar na fortaleza,
sinal evidente de que ela não
é a «Emain Ablach» onde
devem ir. Vide J. Markale, Le
Çycle du Graal, terceira
época: Lancelot du Lac.
833
_”lIF,
834
Em seguida, ela pronunciou o
nome de cada um dos
companheiros de Bran. «Hã
muito tempo», disse ela, «que
sabíamos que vós viríeis.
Mas, nobre Bran, não fiques
ofendido por não poderes
entrar nesta fortaleza.»
835
Bran, «e esta ilha não é aquela
de que andamos em
demanda. Não há aqui
macieiras, e nada nela se
parece com a descriçao que
me foi feita pela mulher antes
de reaver o ramo da macieira
de Emain.» «É pena», disse
Nechtân, «pois esta mulher é
muito bela e ganharias muito
em ter uma esposa da sua
beleza.»
836
para a fortaleza.
Na ausência de Bran,
entretanto, os seus
companheiros não deixavam
de trocar impressões.
Começavam a ficar fatigados
de tantas viagens infrutíferas
e, não sabendo como
regressar à Irlanda, não lhes
parecia má ideia ficarem
algum tempo naquela ilha
onde eram tratados com
tantas atenções.
«E se pedíssemos a esta
mulher para dormir com
Bran?», perguntou então
Nechtân. «Sim», concordou
837
Diuran, «mas como havemos
de propor-lhe isso sem a
ofender?»
838
A mulher começou a sorrir, e
disse: «Amanhã terás uma
resposta para a tua questão.»
Sentiram-se terrivelmente
deprimidos e de nada valeu
Bran tentar cOnsolá-los
dizendo-lhes que aquelas
aventuras eram etapas
necessárias para poderem
chegar a Emain: por muito que
ele se esforçasse, uma
839
profunda tristeza e um
sentimento de desamparo
acompanhava-os enquanto o
barco andava ao sabor das
ondas. De súbito, avistaram
uma ilha de onde Provinham
ruídos estranhos,
semelhantes aos que fazem
os ferreiros quando batem
com a bigorna dos seus
martelos. Aproximaram-se e
viram, com efeito, quatro
ferreiros que ali trabalhavam.
Estavam perto da costa,
quando ouviram um dizer:
«Estão ao vosso alcance?»
«Estão», respondeu outro.
«Mas que gentes são
aquelas?» «São uns garotos»,
disse um terceiro. «E num
pequeno barco», acrescentou
um quarto.
840
disse ele, «mas sem fazer o
barco dar meia volta.
Rememos para trás de modo
que eles não se apercebam da
nossa fuga.»
1)1)1
841
Então os ferreiros
precipitaram-se para a costa,
segurando nas mãos enormes
massas de ferro vermelho e
arremessaram-nas em
direcção ao barco. As massas
não os atingiram mas o mar a
toda a volta começou a ferver
enquanto os remadores
faziam uni esforço
842
durante muito tempo,
maravilhados com a beleza e
a transparencia esplendorosa
da água.
843
focinho do maior boi da
manada, e atirando-se a ele
devorou-o num instante. Nisto
todos os outros bois da
manada se puseram a fugir
numa correria louca. Perante
aquele espectáculo, Bran e os
companheiros ficaram
apavorados, ainda mais
porque o barco não poderia
deslocar-se muito depressa
naquelas águas. Mas,
ultrapassados os momentos
de angústia, conseguiram
deixar aquelas perigosas
paragens e viram-se num mar
normal, apesar da água
parecer parada. Por muito que
tentassem remar com todo o
vigor, durante várias horas o
barco não avançou. Por fim,
le-vantOu-se 0 vento, a vela
enfunou-se, e voltaram a
deslizar sobre as ondas.
844
ilha coberta de árvores que
pareciam salgueiros ou
aveleiras, com frutos
maravilhosos e grandes
bagas. Sacudiram alguns
ramos e depois tiraram à sorte
para ver quem provaria os
frutos, sendo escolhido B ran.
Este esmagou algumas bagas
numa taça e bebeu o sumo,
caindo então num sono
profundo que durou até ao
outro dia àquela mesma hora.
Entretanto, os seus
companheiros mostravam-se
preocupados, sem saberem
se ele estava vivo ou morto,
pois uma espuma vermelha
apareceu-lhe na comissura
dos lábios. Ele, no entanto,
acordou fresco e bem
disposto, e disse-lhes:
«Podeis tomar o sumo, Pois é
excelente.»
845
frutos que puderam para levar
para bordo, certos de que com
eles poderiam obter um sumo
agradável e inebriante,
846
como se fossem frutos,
cachos de uma espécie de
bag «os amarelos, que mal se
viam através das folhas, por
serem estas muito frescas e
abundantes,
1 Bran e os companheiros
ficaram corri os olhos fixos no
pássaro, a ver o que ele iria
fazer. Mas ele não se mexia e,
vendo melhor, repararam que
tinha a plumagem em péssimo
estado, podre e comida pelos
bichos. Um dos homens
aproximou-se com cuidado do
pássaro, e este permaneceu
imóvel; depois voltou para
perto dos companheiros e
todos se preparavam para
partir quando apareceram por
cima deles duas grandes
águias, que por sua vez se
puseram perto do pássaro
enorme. Depois de urna leve
pausa para repousarem, as
847
águias puseram-se a dar
bicadas na sua plumagem,
como que para o aliviar dos
parasitas que o infestavam.
848
mesmo modo misterioso como
tinham aparecido no céu.
Passado um instante, o
grande pássaro saiu do lago e,
depois de se sacudir
vigorosamente, ficou imóvel
na margem como se quisesse
dormir. Cada vez mais
intrigados com o seu
comportamento, Bran e os
companheiros Dão se
atreviam a aproximar-se dele,
limitando-se a observá-lo
através do ramo das árvores.
E por fim o grande pássaro lá
se moveu, agitando as asas e
levantando voo, num instante,
tão veloz e imponente
849
como quando chegara, e
desapareceu na mesma
direcção de onde viera.
«Parece evidente», disse
Diuran, o Poeta, «que ele velo
aqui restau-
850
algum tempo, dando depois
duas ou três braçadas para
chegar à margem. E, naquele
dia, os olhos brilharam-lhe
como nunca, os dentes jamais
tinham sido tão sãos, e
nenhum mal parecia ser capaz
de o atormentar. Apesar disso,
nenhum dos seus
companheiros quis seguir o
seu exemplo, e voltaram todos
para o barco, contentando-se
em levar para bordo as bagas
vermelhas colhidas no
bosque.
851
«Sê bem vindo, Bran, filho de
Fébal, a espantou-se
Bran. «E companheiros.»
«Como é que me conheces?»,
852
parece um mar claro, ó Bran,
filho de Fébal, é para mim uma
aprazível planície corri flores
encantadoras. Enquanto tu
vês vagas à tua volta, eu,
nesta planície imensa e
maravilhosa, vejo gado a
pastar tranquilamente na erva
853
frutos maravilhosos encontra-
se debai
854
avistar a Ilha das Mulheres
através da bruma. É muito
frequente, na verdade,
passar-se perto do que se
pretende sem se dar conta
disso. Adeus, Bran, filho de
Fébal, e que os teus
companheiros e tu remem
com todas as vossas forças
para a ilha das Mulheres,
Emain, que é tão aprazível
para quem a visita. Não estais
longe, e chegareis à ilha antes
do pôr-do-sol.»
855
mulheres que se riam a
gargalhada e que, mesmo
depois de olharem para Bran e
os seus companheiros,
continuaram a conversar e a
dar grandes gargalhadas.
«Coiii ç_crie/_d que esta não é
a ilha das Mulheres», disse
Bran. «Mas temos de saber
que gentes são essas e o que
e que as faz rirem-se daquela
maneira.»
856
em caso algum deveria levar
mais de dezasseis
companheiros a bordo. Agora
que os três irmãos tinham
desaparecido, a ordem era
reconstituída. Com alguma
mágoa, Bran decidiu então
abandonar este terceiro irmão
na ilha dos Bem Humorados e
voltaram para o alto mar
remando corajosamente.
857
aberta. Olhando para o
interior,
858
viram dezassete leitos
ricamente ornamentados com
tapeçarias. Viram também
dezasseis raparigas que
preparavam um banho. Não
se atrevendo a entrar,
sentaram-se no pátio, em
frente da soleira da porta.
859
ErnaD e depois o fizera ouvir a
música das fadas.
860
preparadas para eles. Depois,
a rainha sentou-se com as
suas dezasseis companheiras
ao redor num lado, enquanto
Bran ficou no lado oposto com
os seus dezasseis
companheiros à sua volta.
Levaram a Bran um prato de
prata cheio de manjares
requintados e um copo de
vidro cheio até cima de um
licor muito saboroso. Serviram
também urn prato e um copo a
três dos seus companheiros.
Quando acabaram de comer e
de beber, a rainha levantou-se
e disse: «Como vão dormir os
meus hóspedes?» «Como te
aprouver», disse Bran. «Pois
então», disse a rainha, «que
cada um escolha a mulher que
tem diante de si e a leve para
a cama consigo.» E porque na
casa havia dezassete quartos
equipados cada um com um
bom leito, os dezasseis
861
companheiros de Bran
deitaram-se com as dezasseis
filhas da rainha, e ele próprio
foi dormir com a rainha.
862
para a frente nada de mal te
poderá acontecer. Todos os
habitantes desta ilha me
respeitam e respeitam os
meus hóspedes. Sou a rainha
e todos os dias aplico a justiça
para que nunca deixem de ter
uma vida calma e feliz, sem
guerras e sem conflitos de
qualquer espécie.
863
saudades. «Estamos aqui há
multo tempo», disse ele um
dia a Bran, «Porque não
regressamos a casa?» «Não
sejas incoiiveníente»,
respondeu Bran, «pois em
lado algum levaremos uma
vida tão agradável como a que
aqui levamos.»
Entretanto, Os companheiros
de Bran começaram a
murmurar e a acusar o seu
chefe, dominado pela rainha
da ilha, de não os querer
levar de volta para o seu país.
«Muíto ama Bran esta
mulher», disse German, «e
sendo assim, deixemo-lo com
ela e regressemos nós à
Irlanda.»
864
pretendeis voltar para o vosso
país, e se, mantiverdes esse
vosso propósito, ficai a saber
que irei convosco, pois o dever
de um chefe é estar sempre
com os seus companheiros.»
865
desta maneira?», perguntou-
lhes ela. «Ao menos POdíeis-
me ter prevenido, em vez de
fugirem como ladrões,»
866
gos vos esperavam? Se
quereis Partir para a Irlanda,
podeis fazê-lo amanhã logo
pela nianhã, mas devo
prevenir-vos do seguinte:
nunca deveis descer do barco
e pôr os pés em terra,
aconteça o que acontecer.»
867
palavras. Ele insistiu, dizendo
com toda a exactidão quem
era, onde residia, e que reis
reinavam sobre o país. «Não
conhecemos esses de quem
nos falas», responderam elas.
Então um velho avançou para
a borda da água. «Ouvi contar,
na minha infância, que aí há
uns trezentos anos, um chefe
chamado Bran, filho de Fébal,
partiu para o mar e nunca mais
voltou. És tu? Pareces-me
bem jovem para poderes ser
aquele que dizes ser.» «Sou
eu, apesar de poderes duvidar
da minha palavra», disse
Bran, «e os meus
companheiros estão aqui para
servir de testernunhas.»
868
em cinzas, como se tivesse
estado sepultado há séculos.
869
Paraíso, o que prova que
existe uma profunda ligação
entre o mito de Bran e a
piedosa lenda de São
Brandão.
870
quem tinha uma grande
afeição. Assim, por alturas da
festa de Samain, ele
deslocou-se até à residência
de Angus, em Brug-na-
Boyneb, e encontrou aí Mac
Oc ocupado a observar, numa
colina, grupos de rapazes que
brincavam na encosta,
enquanto Elcmar. irmão de
Dagda. na colina de Cletech. a
sul, também observava aquela
cena.
871
próprio vou acalmar estes
rapazes estouvados!»
872
... » «As tuas palavras são
injustas, ó Mider», respondeu
Angus, «e ofendem-me muito.
Vou pedir a Diancecht para vir
tratar de ti. Ele curar~te-á e
poderás
873
depois voltar a ver este país
com tanta clarividência como
se fosse o teu.» Mac Oc, sem
perda de tempo, foi encontrar-
se com Diancecht e dis-
874
ser compensado?», perguntou
Mac oc. «Eu só te peço o
seguinte: um carro no valor de
sete jovens escravas, um
manto a meu gosto e a
rapariga mais bela da Irlaiida.»
«Eu tenho o carro e o manto
que pretendes», disse Angus.
«Mas também quero a
rapariga mais sábia e mais
bela de todas as que existem
na lrlanda», insistiu Mider.
«Onde se encontra ela?» «No
Ulster. Trata-se de Etaine,
filha de Ecliralde, rei do
nordeste. Ela é sem dúvida
nenhuma a mais sábia e bela
rapariga de toda a Irlanda.»
Oc pôs-se a carrunho do
Ulster e chegou Sem perda de
tempo, Mac
c, sidia o rei Ecliraide.
Deram~lhes as boas pouco
depois a Mag Inís, onde re i i
875
vindas, e ao fim de três noites
perguntaram-lhe o que o
levava ali, ao que ele
respondeu que desejava a
mão de Etalne, a filha do rei.
«Não a terás», respondeu
Echraide, «pois, se ta der,
nada mais conseguirei de ti,
devido aos teus poderes
mágicos. E se a minha filha for
desonrada, ninguém das
tribos de Dana me quererá
pagar uma compensação por
isso.» «Garanto-te que isso
não corresponde à verdade»,
disse Angus. «E se te
recusas a dar-me a tua filha,
posso comprar-ta agora
mesmo.» «Assim está bem»,
disse o rei. «Quanto tenho de
pagar por ela?» «0 que eu te
peço é o seguinte: quero que
desbraves nas minhas terras
doze planícies que estão
cobertas de floresta, para que
nelas haja boas pastagens
876
para os meus gados, e para
que nelas se construam
casas, façam jogos e se
realizem assembleias.» «Eu
atenderei ao que me pedes»,
respondeu Mac Oc.
877
de tal modo que as águas
possam ir lançar-se ao mar.
Assim, serão drenadas as
minhas terras que darão
peixes em abundância às
tribos e às famílias do meu
país.» «Isso será feito»,
respondeu Mac Oc.
878
de ti.» «Que mais queres
então?», perguntou Mac Oc.
«Eu digo-te o que pretendo:
quero o equivalente ao peso
da minha filha em ouro e em
prata. Caso consigas trazer-
me o que te peço, poderás
levar Etalne.» «Terás o que
pedes», respondeu Angus.
Chamaram a donzela e
pesaram-na na casa de
Echralde. Então, Angus fez
trazer o equivalente ao seu
peso em ouro e prata e deu-
o a Echralde. «Agora estás
satisfelto?», perguntou ao rei.
«Acho que já tive de pagar um
bom preço pela tua filha, e que
eu saiba nunca nin ’
1 guem pagou um
preço tão alto por uma donzela
’rlandesa.» «Podes levá-la»,
respo 1 1
879
ndeu Ecliraíde, «mas lembra-
te que és o responsável pela
sua honra e pela sua saúde.»
s 1
1 eguinte, Angus deu a Mider
o manto e o carro que lhe
prometera, e Míder, aparti de
880
então muito satisfeito, ficou
um ano inteiro na companhia
do seu ir 1 1
881
contrato que protege a
concubina: este contrato é
válido por um ano e pode ser
renovado. É o que acontece
neste caso.
882
poderosa e perita em
POIs, foi educada por Bresal,
um dos druidas mais
sabedores das tribos de
Dana.»
1c
Depois de se ter
comprometido a tomar conta
dela, Mider partiu com Etame
para o outeiro de Bri Leith,
onde foram recebidos por
Fuamilach que lhes deu as
boas vindas. Em seguida, ela
883
contou ao marido o que se
passara nos seus domínios
enquanto estivera ausente.
«Vem, 6 MideD>,
1
884
na borda da cama, Fuamnach
bateu-lhe com uma varinha de
aveleira púrpura e
transformou-a numa poça de
,água que se estendeu por
toda a casa. Feita a malvadez,
Fuamnach saiu o mais
depressa possível dali e
desapareceu na fortaleza para
se refugiar na residência do
seu pai adoptivo, o druida
Bresal.
885
música mais suave ainda que
a das harpas e das gaitas de
foles, e os seus olhos
brilhavam como pedras
preciosas na escuridão. 0
perfume que dela emanava
era tão agradável que fazia
passar a fome e a sede a
todos os que dela se
aproximassem. As gotinhas
segregadas pelas suas asas
curavam todos aqueles que
ficassem doentes ou se
sentissem debilitados. Ela
acompanhava Mider onde
quer que ele fosse, sem
jamais o deixar, e ele
regozijava-se com a sua
presença, pois sabia que
Etaine estava do seu lado
tendo adquirido aquela forma.
Ora, como ele a amava
profundamente, nunca se
interessou por outra mulher
enquanto a mosca esteve com
ele, e sentia-se saciado só de
886
a contemplar. Adormecia ao
som do seu zumbido, e ela
encarregava-se de o acor-
compreendeu imediatamente
que se tratava de Etaine.
Tratou então de Ir Visitar
Mider, mas Poruma questão
de segurança fez-se
acompanhar a Brug-na-Boyne
Por três chefes das tribos de
Dana, a saber Dagda,
9
887
três responsáveis pela sua
segurança, a não deixaria
partir viva. Ela retorquiu que
não tinha nenhum remorso
pela acção praticada, que
preferia fazer o bem a si
mesma do que a qualquer
outra pessoa, e que, fosse
qual fosse a forma que
tomasse Etaine, nunca
deixaria de a importunar. E,
dito isto, lançando
encantamentos que lhe
tinham sido ensinados pelo
seu mestre, Bresal,
desencadeou um vento
druídico que envolveu a
Mosca num grande turbilhão o
a arremessou violentamente
para fora da fortaleza de Bri
Leith- E o vento era tão forte e
terrível que a infeliz Etaine não
conseguiu encontrar nem
lugar, nem copa de árvore,
nem cume de colina, onde
pousar durante sete anos,
888
ficando refém dos rochedos à
beira mar e das grandes vagas
que vinham rebentar na praia.
Mas, uni dia, ela bateu em
Mac Oc, quando este
passeava no prado que
dominava a fortaleza do Brug-
na-Boyne, e Mac Oc
reconheceu Etame na forma
de mosca púrpura.
889
que pudesse reaver as suas
cores e a suas energias.
I. Mencionada noutras
narrativas irlandesas, assim
como o ,,to
890
assombrosa claridade durante
ai-uns minutos. ora, nesta
câmara, encontravam-se
bacias de pedra nas quais
tinham ido
891
Ora, Fuamnach, ao ouvir falar
dos cuidados com que Angus
tratava Etame, na sua
residência de Brug enviou-lhe
um mensageiro para lhe pedir
que fosse a Bri Leith onde ela
própria se deslocaria para
fazer a paz com Mider e o seu
filho adoptivo: se eles
aceitassem a proposta de paz,
ela devolveria a Etaine a forma
humana. Muito satisfeito com
aquela proposta, Mae Oe foi
logo ao seu encontro.
892
mosca acabou por cair em
estado de grande fraqueza no
tecto duma casa onde homens
e mulheres do UIster se
preparavam para começar a
beber. Etaine estava de tal
modo subnutrida e debilitada
que adquirira a forma de uma
mosca normal, e foi naquele
estado que, passando através
do buraco da chaminé, entrou
na taça de ouro que a mulher
de Etar, um dos campeões do
UIster, segurava numa das
mãos. Esta, sem dar por isso,
engoliu-a com a bebida e ficou
grávida naquela noite, dando
à luz, nove meses depois, uma
rapariga chamada Etaine, filha
de Etar.
893
ela nos fez cair nutria
armadilha», disse Mae Oc.
«Se ela souber que Etame
está em minha casa, é capaz
de lhe ir fazer mal. Devo por
isso regressar urgentemente a
Brug.»
894
a mulher por quem sou
responsável!»
234
os homens do UIster
elogiavam as suas qualidades
e o seu encanto.
1
895
Um dia, quando as jovens se
banhavam no estuário, viram
um cavaleiro que, saindo das
águas, se dirigiu para elas. 0
cavaleiro montava um cavalo
escuro multo ágil, imponente e
grande, com a crina e a cauda
frisadas. Cobria-o um manto
verde cujas dobras muito
largas, com um broche de
ouro saliente, caiam sobre
uma camisa fina ornada de
bordado vermelho. Segurava
na mão uma lança de cinco
pontas inteiramente
guarnecida de ouro, e ao
ombro trazia um escudo de
prata bordado a ouro, Uma fita
prendia-lhe os cabelos louros
para impedir que eles caíssem
sobre o rosto. Ele deteve-se
diante das donzelas e entoou-
lhes uni canto estranho que
elas não compreenderam,
embora tenham ficado
896
encantadas com a beleza do
cavaleiro e se tenham logo
apaixonado por ele. Apesar
disso, ele deixou-as, ficando
elas sem saber de onde viera
e para onde ia aquele que era
Mider e que viera de Bri Leith
para contemplar Etaine, pois
jamais ele a esquecera e
jamais a amara tanto como
agora.
897
impostos que deveriam ser
pagos ao rei supremo. Mas os
homens da Irlanda
responderam que Dão iriam
ao festim de Tara enquanto o
rei que os convocava não
tivesse urna esposa digna de
si. Na verdade, Eochaid Airem
não era casado, e não havia
chefe ou nobre da Irlanda que
não honrasse o festim de Tara
tendo uma mulher a seu lado.
Eochaid enviou então os seus
servos C os seus mensageiros
a todas as províncias em
busca de uma mulher que
fosse digna do rei supremo.
Quando voltaram, os enviados
disseram-lhe que tinham
encontrado apenas uma
mulher que correspondia
exactamente ao ideal que ele
perseguia: Etaíne, filha de
Etar, no UIster.
Na esperança de a ver, o
898
próprio Eochaid Airem se
deslocou então ao lugar onde
lhe tinham indicado que
estava a rapariga e, ao
atravessar um vale
verdejante, viu uma donzela
junto a uma fonte, Com um
pente de prata magnífico a
sobressair de enfeites
dourados, ela lavava-se num
tanque de prata ricamente
ornamentado com quatro
pássaros de ouro e pedras
preciosas. A donzela estava
vestida com um belo manto
púrpura claro, tendo broches
de prata e um alfinete de ouro
a cin-
899
tilarem sobre o peito.
Cobria~lhe o corpo uma
camisa comprida de seda
verde bordada a ouro, com
ouro e prata acolchetados, e o
sol derramava tons
maravilhosos pela roupa que
trazia vestida. No alto da
cabeça tinha duas tranças
douradas, e quatro ganchos
mantinham-nas separadas,
havendo uma pérola de ouro
no alto de cada uma delas.
900
pérolas. Os olhos eram mais
cinzentos que o jacinto.
Vermelhos e finos eram os
lábios, leves e suaves os
ombros, ternos, doces e
brancos os braços. Os dedos
eram longos, magros e
brancos. As unhas eram muito
belas, de um vermelho pálido.
0 ventre era f,cérico, mais
branco que a neve ou a
espuma do mar. As coxas
eram macias e brancas, a
barriga da perna estreita e
muito elegante, os pés finos,
imaculados e brancos; os
calcanhares eram muito bem
torneados o delicados, e muito
brancos e redondos eram os
joelhos,
901
cumprimento. Depois, ele
perguntou-lhe quem ela era, e
ela respondeu que era Etame.
filha de Etar. campeão do
UIster.
Z’
902
levou Etame para Tara.
903
perguntar: «Para
904
doente», disse Fachtna. «Tu
foste acometido do que me
parece ser uma espécie de
inveja,»
905
cuidar de Ailili, Eochaid
começou então
0 seu Périplo por todas as
províncias da Irlanda. Etaine,
por seu lado, ]a todos os dias
à cabeceira de Affill para lhe
lavar a cabeça e lhe dar de
comer. Mas Affill piorava de
dia para dia, e Etaine receava
que ele morresse. «Ouve»,
disse-lhe ela uma noite, «às
vezes fico a pensar que a tua
doença é provocada por um
pensamento que não tens
coragem de confessar. Estou
certa de que. se mo
confessares, poderei fazer
alguma coisa para te curar.,>
<Oh
906
obStíDOU-se AffiL
907
infinito, tortura-me noite e dia
e flagela-me a alma que vive
no meio de sombras e de
trevas! Não podes imaginar
como me consumo a lutar
conZn
908
«Esta noite, quando todos
forem dormir, vem ter comigo
à casa que se encontra fora da
for~ taleza. Eu estarei lá e
farei com que fiques curado.»
909
conveniente», disse o
desconhecido, «e garanto-te
que aquele que esperavas
amanhã estará curado. Fui eu
que o fiz dormir e vim no seu
lugar para te poupar à desonra
e à vergonha.» «Mas quem és
tu?», perguntou Etaine. «Não
me reconheces? Quando eras
Etaine, filha de Ecliraide,
pertencias-me, e desde então
nunca deixei de te amar. Tu
sabes bem que me chamo
Mider de Bri Leith. «Se é como
tu dizes, o que é que então
nos separou?», perguntou
Etaine. «Os artifícios de
Fuaninach e os
encantamentos do druida
Bresal. Não te lembras, ó
Etaine, a mais amada e a mais
digna de ser amada?»
«Lembro-me, na verdade»,
disse Etaine, «mas tudo isso
está envolto numa névoa
muito distante, parecendo que
910
sombras aparecem à minha
frente sem que eu consiga
apreender o seu sentido. E
que farás tu para curar Ailill
Anglonnach?» «Eu fá-lo-ei
passar por um sonho que o
levará a pensar que te teve
nos braços durante toda a
noite. ó mulher tão amada,
virás comigo?» «E para onde
me levas?», perguntou Etaine.
911
sentir-se infeliz,
912
0 mulher tão amada, quando
chegares ao meu pais
passarás a levar uma coroa de
ouro no cimo da cabeça,
comerás porco fresco todo o
ano,
«É impossível», respondeu
Etaine. «Estou casada com o
rei supremo da Irlanda e não 0
Posso deixar.» «E se eu
conseguir que o rei da Irlanda
me dê a tua mão, virás
comigo?» «Sim», respondeu
simplesmente Etame. Então
Mider desapareceu, sem que
Etaine soubesse o rumo que
ele tomara.
913
Angloninach vir ao seu
encontro com um óptimo
aspecto e um olhar radioso. «ó
mulher!», exclamou ele, «tu
curaste-me, e não sei como te
agradecer.» «Eu sei como
poderás agradecer-me», disse
ela. «Basta que não fales a
ninguém sobre o que se
passou esta noite entre nós.»
914
No dia seguinte, Eochaid
Airem levantou-se muito cedo
e subiu ao terraço de Tara
para contempiar a planície
que se estendia sob o
brilhante sol de Verão. Ao
olhar ao redor da fortaleza viu
aproximar-se um estranho
guerreiro, que vestia urna
túnica púrpura e cuja cabeleir2
loura caía em ondas até aos
ombros- 0 guerreiro tinha os
olhos brilhantes e
915
vindo, guerreiro que não
conheço», disse Eochaid- «Eu
conheço-te», respondeu o
outro. «Tu és Eochaid Airem,
rei supremo de toda a
Irlanda.» «Tens razão, mas
corno te chamas’» «0 meu
nome não é muito conhecido
entre os Filhos de Milé. Fica a
saber que me charno
916
menos valor.»
917
fáceis de atrelar, e também
cinquenta rédeas esmaltadas.
Se eu perder, os corcéis
estarão aqui amanhã à
terceira hora.» .
918
que é prometido é devido»,
disse Mider. «Vamos jogar
outro jogo hoje9» «Por mim
está
inbrancas de orelhas
vermelhas, cinquenta portas
com bojo cinzento, c’
919
tudo o que tinha prometido. E
assim foi durante vários dias:
Mider perdia regularmente, e
Eochaid ia acumulando as
suas riquezas na fortaleza de
Tara.
920
apareceu no terraço para
propor a Eochaid uma nova
partida de xadrez, foi este a
impor as condições em caso
de vencer, a saber, retirar
todas as pedras de Meath,
construir uma estrada sobre
os pântanos de Larriraige e
plantar uma floresta no vale de
Breifné. «Isso é muito», disse
Mider, «mas mesmo assim
aceito as condíções.»
Voltaram a jogar e Eochaid
ganhou a partida. «Antanhã
terás o que pediste», disse-lhe
Mider, «mas não deixes que
nenhum homem ou mulher
saia da fortaleza antes do sol
nascer.» «Eu prometo», disse
Eochaid, «ninguém sairá da
fortaleza antes do nascer do
sol.»
921
passava. 0 homem saiu então
da fortaleza e foi observar os
movimentos de Mider. Viu
uma multidão de homens a
trabalharem arduamente na
construção da estrada, outros
a recolherem pedras, e ainda
outros a plantarem árvores.
Voltou imediatamente para
Tara e contou a Eochaid os
grandes trabalhos que
estavam a ser feitos durante a
noite para que a promessa
fosse cumprida. E
acrescentou que nunca vira no
mundo um poder mágico tão
poderoso como aquele que
testemunhara.
922
as boas vindas. «Pouco me
importam as tuas gentilezas»,
respondeu Mider com
aspereza. «As tarefas que me
pedes para executar e as exi-
923
e difíceis, Eu estava
realgências que me fazes são
demasiado duras
1 de cumprir
o combinado para te agradar,
mas tu mente na disposição
s lá, acalma-te», disse o rei.
«Eu tentarei ser abusas da
situaÇão.» «Vamo, ,
íogo?», perguIlmais
compreensivo tia proxima
vez». «Fazernos Outro - -
924
novamente mas, desta vez,
Míder ganhou a
ele. do Eochaid muito
embaraçado, «Que prémio
desejas?», perguntou
925
de que dificilmente
conseguiria sair corno
vencIdor* Entretanto.
na0 tinha intenção nenhuma
de perder Etaine e de a dar a
Mider, de tal forma
926
faPmens armados e
determinadOS a resistir
m como as da casa, foram
afertar a rainha. As portas da
fortaleza assi
poderes mágicos id sabia que
o homem de grandeS
927
Echaid e .,lho, o cair na
sua armadilha. Em todas as
nar-
928
depois tentandO `’ assum’r os
’) A ,
929
«Estou aquí», disse Mider,
«para reclamar o prêmio
combinado e se não mo deres
perderás a honra.» «Um rei da
Irlanda não pode dar a mulher
a outro», respondeu Eochaid.
«Posso dar-te tudo o que me
pedires, mas é impossível que
Etaine parta contigo esta
noite.» «Tu prometeste-ma»,
disse Mider, «e deves liquidar
a tua dívida perante todos os
homens da Irlanda.» «Eu não
te darei Etaine», disse
Eochaid com um ar muito
ríspido. «Não me assustas»,
respondeu Mider. «Ninguém
se pode furtar às suas
obrigações e muito menos um
rei. Eu próprio não tive de
liquidar os compromissos
assumidos, apesar de todas
as dificuldades por que tive de
passar?» «É verdade»,
acabou por ter de admitir
930
Eochaid,
931
Depois, sem pronunciar uma
palavra, fê-la passar por um
orifício do tecto
desapareceram na noite.
indo
932
pertence às tribos de Daria»,
alguém disse, «e as tribos de
Dana vivem c,
nos oute,
iou-se com a
933
tornar invisíveis àqueles que
não eram do seu povo. Mas,
de manhã, viram aproximara-
se uma mulher já velha. «Que
procurais vós aqui, homens da
Irlanda?», perguntou ela.
«Procuramos Etaine, a mulher
do rei da Irlanda, que acaba de
ser levada», responderam
eles. «0 homem que foi
encontrar-se convosco e que
levou a vossa rainha não é
daqui», respondeu ela. «Se
desejais encontrá-lo, deveis
dirigir-vos para a resídência
de Bri Leith.»
934
declinava para o horizonte,
viram dois cisnes brancos
que, lado a lado, se erguiam
no céu, Por um instante os
pássaros sobrevoaram as
suas cabeças e depois,
rumando a norte, perderam-se
na bruma.
935
desaparecer. E todos sabem
que é Etaine, a bela rainha de
Tara, que, na companhia
936
sdeurcaonntehetcedoaotriasn
toezlla1 nem a dor e onde as
árvores têm flores nde
não
1 Síntese de quatro
narrativas, todas intituladas
Tochmarc Etaine (Courtise
d’Etaine), conservadas no
Livre de ia Vache Brune
(Leabhar na hUidré),
manuscrito do fim do século
XI, no Livre Jaune de Lecan,
manuscrito do século xiv, e
no manuscrito Egerton 1782,
Textos publicados em
diversas obras,
nomeadaniente por Best e
Bergin, em Eriu, vol. XII, com
tradução inglesa. Tradução
francesa de Ch.4.
Guyonvarc’h
937
L’Épopée celtique d’Iriande,
Paris, 1994. A personagem de
Etame simboliza a soberania
da Irlanda, e aparece nas
narrativas rrijtologicas e
épicas com numerosos
nomes, tais como Ethné (mãe
de Lug), Tailtiu (mãe adoptiva
de Lug), Banha, Fothla, Eriu e,
mais tarde, no ciclo do Uster,
com o nome da célebre
Deirdré.
938
Outra obra de,fean Markale
publicada pela ÉSQUILO:
0 CRISTIANISMO CELTA
e as suas sobrevivências
populares
Comoforam os celtas
cristianizados?
É respondendo a estas e
outras interrogações que Jean
Markale analisa este
fenómeno histórico
apaixonante que foi a
emergência do cristianismo
celta. Nascido na Bretanha, na
Irlanda e na ilha da Bretanha
de uma fusão entre o
druidismo e o cristianismo,
esta espiritualidade aceita a
mensagem de Cristo
939
conservando ao mesmo
tempo muitas das
características da tradição
céltica: Monaquismo, santos
heróicos, integração das
mulheres no culto, bispos
errantes, peregrinações pro
amore Dei...
940
português».
N’ DE PÁGINAS: 248 -
FoRmATo: 16X23 Cm -
PREÇO: 17,5
941