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ABSTRACT: The current paper aims to rethink the literary category of “super-regionalism”,
elaborated by Antonio Candido in his essay “Literature and Underdevelopment” (1970). For this,
firstly, we will remember the argumentative line of such text, according to which the works of Latin
American writers of the 1960s - notably Augusto Roa Bastos, Gabriel García Márquez, João
Guimarães Rosa and José María Arguedas - would represent points of synthesis between regional
matter and modernist artistic techniques, constituting a universally significant literature. Next, we
will try to demonstrate how this project of “super-regionalist” literary modernization was associated,
in the Candido’s work, with the development ideology of the 1960s and with certain expectations
regarding the outcomes of the Cuban revolution. Finally, we will suggest rethinking the concept of
“super-regionalism” in the light of the Latin-American historical process from the 1970s onwards,
which was characterized by a capitalist development concomitant with the massacre of the left, the
increase of social inequality and the extermination of local cultures. To this end, we will also
consider aspects of Arguedas's Los Ríos Profundos (1958), which already in the 1950s seems to
1
Mestre em Letras pela Universidade de São Paulo e doutorando no Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada da mesma universidade, com estágio de doutorado na Yale University (EUA). E-mail:
gabriel.cordeiro.lima@usp.br .
40
point out tensions in relation to the reading suggested by “Literature and Underdevelopment”,
anticipating problems that would become clearer in the following years.
KEYWORDS: Antonio Candido, José María Arguedas, Literature and Underdevelopment, Latin-
American Literature.
Introdução
O ensaio “Literatura e Subdesenvolvimento” foi escrito em finais dos anos 1960 por
Antonio Candido a pedido do intelectual uruguaio Ángel Rama, com quem o crítico
brasileiro desenvolvera sólida relação de amizade e interlocução. Em 1970, o texto sairia
na revista Cahiers d’Histoire Mondiale, da UNESCO, com tradução para o francês de
Claude Fell2. No mesmo ano, sua tradução para o espanhol se somaria à obra coletiva
América Latina en su Literatura e, em 1973, seria dada a conhecer sua primeira edição
em português no número 1 da revista Argumento.
Desde então, “Literatura e Subdesenvolvimento” serve de referência a inúmeros
trabalhos acadêmicos, compondo a bibliografia de muitas disciplinas universitárias. Sua
influência se deve, entre outros atributos, à cuidadosa sistematização das tensões
artísticas e ideológicas que preocupavam a crítica literária latino-americana nos anos
1960. Desses problemas, como observou Roberto Schwarz, o texto constitui um “balanço
magistral” (SCHWARZ, 2018, p. 74).
Algumas de suas categorias, entretanto, parecem hoje excessivamente tributárias
do contexto histórico e político dentro do qual Candido as formulou. Tal é, particularmente,
o caso do conceito de “super-regionalismo” (CANDIDO, 2011b, p. 195), aplicado pelo
crítico a uma série de romances da época que, a seu ver, conciliavam a matéria regional
da América Latina às técnicas narrativas do romance modernista europeu. Como
buscaremos demonstrar, essa noção sugeria um processo de modernização literária; por
sua vez, historicamente atrelado à ideologia desenvolvimentista dos anos 1960, a qual
ambicionava um desfecho progressista das lutas políticas de então. Todavia, considerado
o processo histórico dos anos 1970 em diante – marcado pela destruição de culturas
regionais em razão da modernização capitalista, da qual o romance é em si um produto -,
uma noção tal suscita discussões sobre sua atualidade. Mesmo no que diz respeito aos
aspectos literários, a ideia de um regionalismo modernista parece se ajustar pouco aos
romances de um autor como José María Arguedas, a quem a tensão entre narrativa
moderna e cultura local se apresenta em grau de irreconciliação.
Nesse sentido, o presente artigo se propõe a um esforço crítico de revisão, não
para descartar a contribuição de “Literatura e Subdesenvolvimento”, mas para
compreender o seu sentido histórico e político a fim de refletir com a devida distância
sobre os impasses que o tempo lhe impôs.
2
Candido reclamaria da tradução em carta a Rama: “O artigo já saiu antes do livro, retraduzido
pessimamente do espanhol, na revista de história da UNESCO” (CANDIDO, 2018, p. 62).
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Local e universal
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demonstrar a fragilidade do descritivismo e da cor local que teria banido dos seus livros
“extraordinariamente requintados” (CANDIDO, 2011b, p. 194).
Aqui, portanto, o elemento local passa a segundo plano, cedendo lugar à técnica.
Em detrimento do pitoresco, Candido se concentra na meta-narrativa em abismo de
Borges e no narrador “elíptico” e “fragmentário” (CANDIDO, 2011a, p. 22) de Machado. As
prosas borgiana e machadiana seriam novos momentos-chave da formação literária:
dotadas de inédita universalidade e “requinte”, poderiam até mesmo exercer papéis
norteadores no concerto internacional das formas.
De modo bastante entusiasmado, Candido apontará ainda o desenvolvimento
dessa tendência na narrativa latino-americana dos anos 1960. Seu exemplo modelar é o
romance La Ciudad y los Perros (1963), de Mario Vargas Llosa, com seu narrador em
primeira pessoa cuja identidade no enredo é oculta até os últimos capítulos, nos quais a
revelação (de que se trata do personagem Jaguar) dá nova perspectiva a toda a trama.
Palavras de Candido:
Esta técnica parece uma concretização da imagem que Proust usa para
sugerir a sua (...); mas significa algo muito diverso, num plano diverso de
realidade. Aí, o romancista do país subdesenvolvido recebeu ingredientes
que lhe vêm por empréstimo cultural dos países de que costumamos
receber as fórmulas literárias. Mas ajustou-as em profundidade ao seu
desígnio, para representar problemas do seu próprio país, compondo uma
fórmula peculiar: Não há imitação nem reprodução mecânica. Há
participação nos recursos que se tornaram bem comum através do estado
de dependência, contribuindo para fazer deste uma interdependência
(CANDIDO, 2011b, p. 187).
Esse parágrafo em particular representa um salto no argumento de “Literatura e
Subdesenvolvimento”: considerando a narrativa em seu sentido imanente, passa-se a
atribuir significado político à análise formal. Moderna e original, a obra de Vargas Llosa
representaria um novo estágio em um almejado processo de emancipação cultural do
mundo “subdesenvolvido”, na medida em que superaria a dependência estética. Essa
libertação, note-se, viria através da própria deglutição da cultura importada, como sugere
a ideia de um “empréstimo cultural” que o romancista teria sabido “ajustar a seus
desígnios” provincianos.
Por outro lado, em se tratando do século XX, Candido não deixará de apontar a
existência de outras vertentes latino-americanas com menor pretensão de universalidade
e mais preocupadas com o aspecto representacional da vida no continente. Tal o caso do
regionalismo. Vale fazer justiça e notar que, nesse âmbito, a posição do crítico recusa
dualismos simplistas. Embora negue valor à novela de la tierra, depreciando o
centaurismo de seus vaqueiros e gauchos, Candido exalta escritores localistas mais
sóbrios. Diz, por exemplo, que uma obra como Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos,
abandona o cavalheirismo e configura objeto de “alta expressão” (CANDIDDO, 2011b, p.
192), operando a passagem da “consciência de país novo” que marcava o romantismo
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para a “consciência do subdesenvolvimento”, denunciando nossas “técnicas arcaicas”,
nossa “miséria pasmosa” e nossa “incultura paralisante” (CANDIDO, 2011b, p. 171).
Em todos esses momentos, evidencia-se a postura modernizadora subjacente a
“Literatura e Subdesenvolvimento”: por um lado, seu esquema valoriza o progresso
técnico da narrativa como sinônimo de avanço cultural, na medida em que coloca a
América Latina dos anos 1960 em posição de competição igual com o centro da
modernidade (a Europa); por outro lado, valoriza a ficção que tematiza o atraso
socioeconômico, na medida em que esta denuncia a realidade defasada (em relação à
Europa) e pressiona politicamente no sentido da modernização. Grosso modo, balizado
pelo capitalismo central, o esquema pressupunha uma literatura avançada em uma
sociedade por avançar: uma teleologia de literatura e sociedade, cujo ponto de chegada
seria a formação da cultura nacional nos moldes dos países ocidentais de capitalismo
“desenvolvido”.
É assim que, enxergando méritos progressistas em duas vertentes romanescas
bastante diversas, Candido apontará um caminho de síntese das mesmas: o “super-
regionalismo”.
O superregionalismo
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livres, monólogos, fluxos de consciência e visões simultâneas dos escritores
mencionados. Com tais técnicas avançadas, pensava Candido, o ângulo crítico do
regionalismo tout court, que observava o atraso desde um ponto de vista externo,
adquiriria dimensão psicológica e mais profunda – por assim dizer, universal.
Na teoria literária de língua hispânica, esse modelo encontraria uma versão
análoga - e mais influente em nível mundial - no clássico texto de Ángel Rama, “Los
Procesos de Transculturación en la Narrativa Latinoamericana” (1974). Grosso modo,
tratar-se-ia de descrever o processo através do qual uma cultura recessiva (a matéria
regional ou folclórica) produz sínteses ao entrar em contato com elementos da cultura
moderna (por exemplo, o romance). Os exemplos do intelectual uruguaio eram quase os
mesmos de “Literatura e Subdesenvolvimento”; a saber: “José María Arguedas (1911-
1969), Juan Rulfo (1918), João Guimarães Rosa (1908-1968), Gabriel García Márquez
(1928)3” (RAMA, 2001a, p. 233). Na verdade, a afinidade entre Candido e Rama – aliás
celebrada por ambos - era tal que os críticos chegariam a organizar eventos juntos nos
quais dariam divulgação a tais ideias. Em uma carta para seu amigo brasileiro, Rama diria:
Inteiramente de acordo com a tese que conduz você progressivamente da
mudança, por volta dos anos 30, do país novo ao país subdesenvolvido e a
uma avaliação que resgata o regionalismo em uma perspectiva que você
chama de super-regionalismo. É isso mesmo o que lhe propunha, sob o
título de os transculturadores da narrativa, como um dos temas do
seminário em minha visita a São Paulo, de tal modo que é seu artigo que
pode servir de base para o debate, sem que eu acrescente mais nada”
(RAMA, 2018, p. 79).
Dado o prestígio de Candido e Rama, tais ideias se tornariam verdadeiramente
modelares para os departamentos onde os amigos intelectuais atuavam. Particularmente
nas universidades de São Paulo e Montevidéu, o modelo transculturador-super-
regionalista funcionaria como nexo explicativo e orientador da historiografia, formando
gerações de professores e críticos.
A influência é compreensível: a despeito do que se possa dizer hoje, vale notar que
o modelo representava verdadeira lufada de ar fresco para a crítica dos anos 1970. À
época, o que caracterizava o debate literário latino-americano era ainda a polêmica
bizantina entre “modernismo” e “realismo” que preocupara a Europa na primeira metade
do século. Vide, a propósito, os críticos que Candido menciona em seu ensaio: por um
lado, o venezuelano Manuel Pedro González, famoso por deplorar os romances de
Vargas Llosa e rechaçar as técnicas do romance do Primeiro Mundo4; por outro lado, o
uruguaio Rodríguez Monegal, cuja publicação Mundo Nuevo, financiada pelo “Congress
for Cultural Freedom” (organismo cultural da Agência de Inteligência Americana),
3
Rama já havia evocado os mesmos autores no texto “Meio Século de Narrativa Latino-Americana
(1922-1972)” (1973), chamando-os de “aculturadores narrativos” (RAMA, 2001b, p. 190).
4
González condena o deslumbramento, por parte do escritor latino-americano, em relação às
“técnicas marginais e as piruetas de estilo e pontuação que Paris e Nova York exportam”
(GONZÁLEZ, 1967, p. 36).
45
combatia enfaticamente o regionalismo e exaltava o experimentalismo estético5,
sugerindo, nas palavras de Idelber Avelar, uma modernização literária “de direita”
(AVELAR, 2003, p. 40). Nesse universo crítico bipolar, característico da situação periférica
em meio à Guerra Fria, Candido e Rama tiveram o indiscutível mérito histórico de oferecer
uma terceira via.
Olhada com a devida distância histórica e crítica, porém, isso não significa que o
esquema super-regional (ou transculturador) fosse desprovido de pontos delicados, como
veremos a seguir.
5
A respeito de revistas como Mundo Nuevo, diz a crítica Jean Franco: “O apelo aos latino-
americanos por organizações de frente, como o Congress for Cultural Freedom, não era apenas
liberdade mas inclusão na cultura ‘universal’, embora isso disfarçasse um ataque não tão sutil a
culturas nacionais, étnicas e locais, que foram depreciadas como aberrantes, meramente
provincianas ou idiossincráticas. Isso deu ao projeto uma intenção mais frontalmente declarada do
que os modernismos estéticos de Europa e Estados Unidos, cujo poder, nas palavras de Fredric
Jameson, ‘foi, durante a Guerra Fria e no período de sua canonização norte-americana, deslocado e
investido em formas essencialmente anti-políticas de esteticismo acadêmico’”. Tradução própria de:
“The appeal to Latin Americans dangled by front organizations, such as the Congress for Cultural
Freedom, was not only freedom but inclusion in ‘universal’ culture, although this disguised a not-so-
subtle attack on national, ethnic, and local cultures, which were denigrated as aberrant, as merely
provincial, or as idiosyncratic. This gave the project a rather more frontally avowed intention than the
aesthetic modernisms of Europe and the United States, the power of which, in Fredric Jameson’s
words, ‘was, during the cold war and in the period of their North American canonization, displaced
and invested in essentially anti-political forms of academic aestheticism’” (FRANCO, 2002, p. 2).
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sensibilidade das populações subdesenvolvidas no sentido dos seus interesses políticos”
(CANDIDO, 2011b, p. 175)6.
Daí que o crítico enfatizasse também a necessidade de uma constante luta
pedagógica e anti-imperialista, com vistas a fazer frente a essa ameaça. É característica
sua denúncia das nossas “políticas educacionais ineptas ou criminosamente
desinteressadas” (CANDIDO, 2011b, p. 172) como óbices à criação de uma verdadeira
cultura literária. Seria preciso empreender urgentemente um esforço no sentido da
politização e do avanço material e cultural a fim de acompanhar e sustentar o
melhoramento literário que parecia já acontecer. Em outras palavras: lutar para dar às
populações locais as condições de apreciar o romance transculturador ao invés da cultura
de massa.
Essa “vontade de combate” (CANDIDO, 2011b, p. 171) – como diz Candido –
respirava ares bastante peculiares quando da publicação de “Literatura e
Subdesenvolvimento”. Como se sabe, a década de 1960 foi o período dourado do
desenvolvimentismo na América Latina. Ideologia tal acompanhava as agendas
modernizadoras dos governos do Partido Revolucionário Institucional no México, de
Perón e Frondizi, na Argentina e de Vargas e Kubitschek, no Brasil. Amparados em
alianças de classes, os governos desenvolvimentistas locais eram ainda alimentados
pelas diretrizes da famosa Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, a
CEPAL – think tank da Organização das Nações Unidas dirigido pelo argentino Raúl
Prebisch, que preconizava políticas industrializantes. Por todo o continente, a intelligentsia
buscava modos de conquistar autonomia em relação ao capital estrangeiro.
Em “Literatura e Subdesenvolvimento”, mais de uma vez, fica evidente o
entusiasmo com esse cenário. O próprio título do texto revela sua filiação ao programa
cepalino, cujas publicações traziam quase todas a categoria de “desenvolvimento” em
seus nomes7. Não obstante, Candido refere-se a uma “tomada de consciência dos
economistas e políticos” (CANDIDO, 2011b, p. 172) e enxerga na “ideia de
subdesenvolvimento uma força propulsora, que dá novo cunho ao tradicional empenho
político dos nossos intelectuais” (CANDIDO, 2011b, p. 171). A alusão à CEPAL – onde
trabalhavam seus colegas e amigos pessoais Celso Furtado e Fernando Henrique
Cardoso – é bastante clara.
6
Candido usa alguns exemplos que, em face do repertório contemporâneo, parecem remotos: “É
normal, por exemplo, que a imagem do herói de far-west se difunda, porque, independente dos
juízos de valor, é um dos traços da cultura norte-americana incorporado à sensibilidade média do
mundo contemporâneo. Em países de larga imigração japonesa, como o Peru e sobretudo o
Brasil, está-se difundindo de maneira também normal a imagem do samurai, sobretudo por meio
do cinema. Mas é anormal que tais imagens sirvam de veículo para inculcar nos públicos dos
países subdesenvolvidos atitudes e ideias que os identifiquem aos interesses políticos e
econômicos dos países onde foram elaboradas” (CANDIDO, 2011b, p. 175).
7
Vide a revista Desarrollo Económico da CEPAL, onde Prebisch publicaria El Desarrollo
Económico de la América Latina y Algunos de sus Principales Problemas (1949), ou a clássica
obra Dependência e Desenvolvimento na América Latina: Ensaio de Interpretação Sociológica
(1969), de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto.
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A óbvia pedra no meio desse caminho emancipatório eram as Ditaduras Militares,
que, àquela altura, já se haviam estabelecido em Brasil, Argentina, Peru e Guatemala.
Supondo (ainda sem a clareza dos anos seguintes) que estas seriam pró-imperialistas,
Candido demonstrava bastante consciência do problema colocado ao afirmar que éramos
“um continente sob intervenção” (CANDIDO, 2011b, p. 176). Por isso, inclusive, não
descartava a necessidade de soluções radicais. Seu elogio de Cuba como “admirável
vanguarda da América na luta contra o subdesenvolvimento e seus fatores” (CANDIDO,
2011b, p. 188) revelava tanto voluntarismo quanto coragem em um momento em que o
AI-5 já operava e a luta armada brasileira dava seus primeiros passos.
Em todo caso, os próximos capítulos dessa história são conhecidos. As vias
radicais da esquerda foram fechadas a sangue. Nem a emancipação continental, nem o
progresso material ou educacional aconteceram. Na ressaca do desenvolvimento híbrido
dos anos Geisel, que aumentara a desigualdade e a dependência ao invés de diminuí-las,
Roberto Schwarz, em 1986, se perguntava: “como seria a cultura popular se fosse
possível preservá-la do comércio e, sobretudo, da comunicação de massa? O que seria
uma economia nacional sem mistura?”. O próprio crítico respondia: “De 64 para cá, a
internacionalização do capital, a mercantilização das relações sociais e a presença da
mídia avançaram tanto que estas questões perderam a verossimilhança” (SCHWARZ,
2012, p. 32).
Em outras palavras: se o problema, para Candido, era abrir as vias para o
desenvolvimento, este findou por ser tocado à direita, em detrimento das culturas
regionais, da democracia e da igualdade social. Mutadis mutandis, seria importante refletir
sobre a atualidade de “Literatura e Subdesenvolvimento”: se sua aposta na formação
continental a espelhar a formação literária foi desqualificada pelo rumo dos
acontecimentos, seria a teoria do super-regionalismo - ou seu correlato transculturador -
ainda válida para lidar com as questões literárias de então? Ou, mais do que isso: não
seria a ideologia desenvolvimentista, subjacente ao conceito do super-regional, pouco
sensível a eventuais efeitos indesejáveis da modernização?
Responder essas perguntas requer atentar para formulações do texto que resultam
perigosamente ambíguas. Por exemplo: entendido o chamado “folclore” – isto é, as
culturas ou reminiscências culturais locais, não-modernas – como uma “fase”, o lugar
reservado a esse fica pouco claro em “Literatura e Subdesenvolvimento”. Devemos nos
questionar: mesmo que o projeto político do texto triunfasse e os efeitos deletérios do
“folclore urbano” transmitido pelos mass media fossem contidos pelo ensino formal, o que
seria da “fase” das culturas não-citadinas em uma nova era de desenvolvimento
progressista? Ainda que incorporadas pelo romance super-regionalista, elas, ipso facto,
teriam o direito de existir de outra maneira?
É preciso reconhecer que, na conceituação candidiana do super-regionalismo,
segundo a qual “o subdesenvolvimento mantém o elemento regional vivo”, a questão fica
irresolvida. Na formulação, pois, está implícita a ideia de que o desenvolvimento (isto é, o
alvo fundamental do projeto desenvolvimentista que permeia o texto) tornaria os traços
particulares locais desprovidos de sentido. Daí, talvez, o vislumbre de um futuro onde
48
“Não se exigirá mais (...) que Cortázar cante a vida de Juan Moreyra, ou Clarice Lispector
explore o vocabulário sertanejo” (CANDIDO, 2011b, p. 196)”: os escritores urbanos teriam
vencido a etapa do atavismo regional que os romances pitorescos ou super-regionais
“ainda não conseguiram superar”. Ora, porém, foi justamente o desenvolvimento
capitalista realmente ocorrido, promovido pelas ditaduras militares, que apagou as
diferentes culturas regionais através do etnocídio industrializante. Nesse sentido, olhado o
processo histórico, a categoria de “super-regionalismo”, associada a um projeto de
modernização, carregaria mais uma carga de tensão do que de equilíbrio, já que buscava
conciliar dois elementos – o local e o universal – historicamente destinados a se oporem.
Isso, claro, não significa dizer que o projeto desenvolvimentista de Candido fosse o
mesmo de Costa e Silva ou Médici. Ao contrário, “Literatura e Subdesenvolvimento”
representa uma disputa com os generais brasileiros (e com os governos latino-
americanos em geral) em relação aos rumos do “desenvolvimento”. De qualquer forma,
considerado o desfecho da luta, pode-se pensar se a ideia de um secularismo - uma
literatura universalista - que incorporasse sinteticamente o particular local não
representou, ao invés de uma saída para as culturas locais, uma mera etapa em um longo
processo de apagamento.
O caso Arguedas
49
dijera que mejor, mucho más esencialmente interpreto el espíritu, el apetito
de don Felipe, que el propio don Felipe. ¡Falta de respeto y legítima
consideración! No se justifica (ARGUEDAS, 2006, p. 24-25).
Curiosamente, a crítica de Arguedas a Cortázar, aqui, se refere às opiniões
defendidas pelo escritor argentino em uma entrevista à revista Life, no ano de 1969 –
entrevista, aliás, que Candido elogia por trazer “coisas interessantes sobre o novo
aspecto que apresentam fidelidade local e mobilidade mundial” (CANDIDO, 2011b, p.
187). Isto é, certamente o peruano se sentiria pouco confortável em ter sua obra
classificada como “super-regionalista”. O sarcasmo com que se refere às “altas esferas de
lo supranacional” parece deixar pouca dúvida a esse respeito.
Candido, evidentemente, não teve conhecimento da questão ao redigir “Literatura e
Subdesenvolvimento”, sobretudo porque os diários de Arguedas seriam apenas publicados
postumamente, em 1973, como parte do (também póstumo) romance El Zorro de Arriba y el
Zorro de Abajo. Em todo caso, seria possível, antes disso, observar pontos de tensão na
obra do peruano no que diz respeito à ideia de uma literatura que conciliasse os
expedientes narrativos modernos (e/ou modernistas) à matéria cultural quéchua.
Por exemplo: no romance Los Ríos Profundos, de 1958, Arguedas narra a história do
jovem Ernesto, que é matriculado por seu pai em um colégio religioso na cidade de
Abancay, região montanhosa do Peru. Cindido entre a cosmovisão ocidental da elite criolla
e a das populações indígenas exploradas, o personagem vive em permanente estado de
conflito. Desde o princípio, rechaça o modo de vida dos brancos proprietários de terra
amigos de sua família. O próprio narrador, em primeira pessoa, descreve o catolicismo e a
escola cristã com tintas brutais. Os padres responsáveis pela instituição onde Ernesto se vê
confinado são autoritários com as crianças e demonstram total incompreensão da
diversidade cultural peruana, a qual em verdade combatem a bem da evangelização.
Com fortes acentos autobiográficos, a obra tem pouca (ou nenhuma) pretensão de
mobilizar as técnicas da última hora. Em verdade, o que dá seu acento fragmentário é
menos um modernismo consistente do que a montagem algo artesanal da história fictícia -
aliás contada de maneira bastante convencional - com as descrições de paisagens,
animais e objetos da cultura quéchua nas quais transparece a veia etnológica do autor.
Trata-se efetivamente de uma dicotomia estrutural: toda a história inserida no universo
ocidental – isto é, a parte de Los Ríos Profundos passada no colégio religioso – é
retratada a modo de opressão violenta, ao passo que as passagens ligadas aos costumes
locais surgem como momentos de libertação lírica. Vejamos, a título de exemplo, o caso
de dois objetos da(s) cultura(s) evocados pelo romance: a catedral católica construída em
Cuzco pelos colonizadores e o brinquedo indígena Zumbayllu, começando pela primeira:
Era una inmensa fachada; parecía ser tan ancha como la base de las
montañas que se elevan desde las orillas de algunos lagos de altura. En el
silencio, las torres y el atrio repetían la menor resonancia, igual que las
montañas de roca que orillan los lagos helados. La roca devuelve
profundamente el grito de los patos o la voz humana. Ese eco es difuso y
50
parece que naciera del propio pecho del viajero, atento, oprimido por el
silencio. (p. 48)
Agora, como Arguedas trata da descoberta do zumbayllu:
¿Qué podía ser el zumbayllu? ¿Qué podía nombrar esta palabra cuya
terminación me recordaba bellos y misteriosos objetos? El humilde
Palacios había corrido casi encabezando todo el grupo de muchachos que
fueron a ver el zumbayllu; había dado un gran salto para llegar primero al
campo de recreo. Y estaba allí, mirando las manos de Antero. Una gran
dicha, anhelante, daba a su rostro el esplendor que no tenía antes
(ARGUEDAS, 2006, p. 117-118).
A igreja é silenciosa e opressiva; o brinquedo desperta fascínio. O contraste é
explícito. Mais do que que isso: configura uma oposição irreconciliável, com tomada de
partido por um dos lados (no caso, o indígena).
Além dessa peculiaridade formal, como observa Marcos Natali, Los Ríos Profundos
apresenta ainda um forte grau de “tensão do processo de produção linguística” (2005). Há
uma passagem, por exemplo, em que o narrador Ernesto é solicitado por um amigo a
escrever uma carta romântica. O personagem é então tomado por um súbito sentimento
“de aguda verguenza” (ARGUEDAS, 2006, p. 126), passando a se perguntar como redigiria
uma carta parecida às jovens indígenas de seu país. A língua autóctone, na tessitura
textual, irrompe aí de maneira abrupta, sem conciliação transcultural possível em relação ao
castelhano: “escribí: Uyariy chay k’atik’niki siwar k’entita”8 (ARGUEDAS, 2006, p. 126).
Esse conflito entre o particular e o cosmopolita, expresso, como vimos, em todos
os níveis da narrativa, segue até o desfecho, quando o narrador Ernesto abandona a vida
no internato para aderir à luta do povo indígena contra seus exploradores urbanos. O fato
de que as populações autóctones sejam afligidas por uma peste trazida pela urbanização
não o impede de, reconciliado, exclamar feliz: “¡Ya no voy a regressar nunca!”
(ARGUEDAS, 2006, p. 306). Isto é, a epifania se dá, simultaneamente, por adesão a um
modo de vida não-moderno e por recusa da modernidade.
Em outras palavras, se parte dos escritores latino-americanos dos anos 1960
buscavam uma forma narrativa universal, Arguedas descobrira um narrador altero, que
rejeita a urbanidade ocidental posta e se desafoga nas passagens poéticas em que
(re)descobre a vida e a natureza intocadas pelo colonizador. Uma forma que não deixava
de ser moderna (pois se tratava, apesar de tudo, de um romance), mas com dilemas e
sugestões bem distintas daquelas que Candido exaltara em seu ensaio (pois já não se
tratava mais de reinterpretar as técnicas universais do modernismo europeu).
Lida desse modo, a narrativa genuinamente “localista” de Arguedas parece de fato
ter pouco ou nada que ver com o cosmopolitismo “super-regional” que o crítico enxerga
em vários escritores dos anos 1960. Em Los Ríos Profundos, afinal, não se tinha o
equilíbrio harmonioso entre o local e o universal, mas sim o conflito linguístico aberto e a
8
Trata-se do verso de uma canção quéchua, cuja tradução (livre) ao português seria: “escute o beija-flor
esmeralda que te segue. Ele te falará de mim”.
51
tensão permanente em relação à forma romanesca, constantemente vazada por relatos
de antropologia e pela subjetividade do próprio autor, consciente de que o avanço da
cultura ocidental representaria a extinção dos costumes que amava.
Candido poderia ter caminhado por uma leitura similar da obra de Arguedas em
“Literatura e Subdesenvolvimento”, mas não o fez em função de um esquema literário a
espelhar a aposta política no desenvolvimento das nações. Nesse quadro, reservou-se ao
escritor peruano um posto mais “universal” do que o próprio certamente gostaria – o que
faz pouca justiça a uma leitura atenta de Los Ríos Profundos. Considerando o processo
histórico em retrospectiva, bem como as contribuições mais recentes da crítica, seria
impossível não apontar esse ponto cego do modelo candidiano.
Super-regionalismo ou hibridismo?
52
“consciência dilacerada”, em Antonio Candido, já sugerisse algo assim. Caberia à crítica
contemporânea explorar melhor a questão e desenvolvê-la.
Referências
53
___________. “Medio Siglo de Narrativa Latino-Americana (1922-1972)” (1973) / “Meio
Século de Narrativa Latino-Americana (1922-1972)”. Em: AGUIAR, Flávio e
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Elza Gasparotto e Raquel la Corte dos Santos. 3ª Edição. São Paulo: EDUSP, 2001b.
SCHWARZ, Roberto. "Nacional por Subtração" (1986). Em: Que horas são? - Ensaios.
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