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Penas alternativas como regra: prisão é exceção - Luiz Flávio Gomes


Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Penas alternativas como regra: prisão é exceção.
Disponível em http://www.iuspedia.com.br 14 maio 2008.

Em 1995, por força da Lei 9.099/1995, o legislador brasileiro fez uma opção político-criminal decisiva em
favor da despenalização, que significa suavizar, restringir ou eliminar a pena de prisão. Não se pode
confundir despenalização com descriminalização, visto que esta última significa proscrever (aniquilar) o
caráter de crime do fato. A lei dos juizados criminais (Lei 9.099/1995) não retirou do ordenamento
jurídico-penal brasileiro nenhum delito. Tudo ficou intacto (tal como estava). O que ela fez foi prever
penas alternativas para as infrações de menor potencial ofensivo e isso configura, claramente,
despenalização (não descriminalização). r
Uma grande questão pendente no cenário punitivo nacional diz respeito à elaboração de um amplo
programa de descriminalização. Há muitas infrações que hoje ainda ostentam a categoria de delito ou
contravenção mas que deveriam ser eliminadas do Direito penal. Enquanto não chega esse momento, de
enxugar a quantidade exorbitante de infrações penais que temos no Brasil, muitas outras alternativas
devem ser pensadas. r
Quem fez isso (agora) com a profundidade necessária foi o emérito Promotor de Justiça Geder Rocha
Gomes, que é um dos nossos maiores especialistas em matéria de execução penal e Presidente do Instituto
Brasileiro respectivo. Geder acaba de defender a tese de que devemos dar um passo a mais na nossa
política criminal de despenalização, eliminando-se a pena de prisão desde o momento da cominação
naquelas infrações que não contam com dignidade suficiente para suportar essa drástica conseqüência
penal. r
A pena de prisão, mesmo após o advento da Lei 9.099/1995, permaneceu como eixo do sistema penal
brasileiro, ou seja, a referência obrigatória do poder punitivo estatal. r
A proposta apresentada no seu trabalho é outra: consiste na eliminação apriorística da pena de prisão
naquelas infrações médias ou menores. E isso deveria ser feito já desde o momento da cominação da pena.
Cuida-se, como se vê, de proposta político-criminal invertida em relação à que foi adotada em 1995. Parte-
se (na nova proposta) de uma cominação direta de pena alternativa, tal como ocorreu, v.g., com o art. 28 da
nova lei de drogas (penas alternativas para os usuários de drogas). r
A idolatria do sistema penal brasileiro em relação à pena de prisão vem sendo questionada diariamente, em
razão da falência da pena privativa de liberdade. A prisão continua sendo concebida como a principal
resposta do Direito penal para aqueles que infringem as normas penais. Impõe-se a inteira remodelação
desse provecto sistema punitivo, para privilegiar as penas e medidas alternativas, que deveriam já aparecer
diretamente no tipo penal, deixando-se a prisão como medida extremada (medida de ultima ratio). r
Os princípios da dignidade humana, da humanização da pena e da proporcionalidade fundamentam a
mudança pretendida, que um dia, com certeza, será mais radical (ou seja: um dia ainda vamos levantar
com todo vigor a bandeira da descriminalização de centenas de infrações penais, retirando-as inteiramente
do sistema penal). Só assim, aliás, é que se poderá conferir racionalidade a esse sistema. r
Se humanização e razão (racionalidade) eram as duas grandes bandeiras do Iluminismo (segunda metade
do século XVIII), não há dúvida que esse movimento filosófico (inspirado em Beccaria, Voltaire etc.)
continua mais atual que nunca. Nesse âmbito prisional a humanidade apresentou poucos progressos e
muitos retrocessos. Quem conhece minimamente o sistema carcerário brasileiro sabe o quanto medieval é
nossa realidade penitenciária, que foge completamente dos padrões civilizatórios já alcançados em outros
países. r
O Brasil, hoje, figura como um dos países mais violentos e corruptos do mundo. As prisões brasileiras não
desmentem essa assertiva, ao contrário, a confirmam de modo retumbante. Daí o acerto de todas as
propostas que procuram evitar ou suavizar ou restringir a pena de prisão.
O crime e a necessidade de punição, seja ela como castigo ou como forma de “regenerar” o ser humano
sempre existiram desde as civilizações mais antigas. A igreja considerava a pena como uma penitência para
a remissão dos pecados, daí surgirem as penitenciárias como locais de reclusão para reflexão. A diferença
desta para os conventos e mosteiros era o caráter compulsório da inserção do interno. Goffman (1987),
analisa as prisões, mosteiros e conventos, denominando-as Instituições Totais e tratando das características
de cada uma dessas Instituições e dos internos que delas fazem parte. É interessante notar nesta obra, as
semelhanças dessas Instituições e sob que justificativas são elas criadas e mantidas.
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As penas podiam servir e de fato serviam em algumas localidades e épocas como forma de vingança social,
resultando execuções em praça pública, utilizando a forca, guilhotina e outros instrumentos ceifando a vida
como um espetáculo popular.
Inicialmente o caráter da pena era retributivo, ou seja, “ao mal do crime, o mal da pena”. No dizer de Muricy
(1982), a importância da pena mede-se pelas imposições da cultura, em dado momento histórico-social,
variando assim de grupo para grupo e, no mesmo grupo, de época para época. Vê-se, em decorrência das
mudanças sociais, as mudanças no sistema penal como um todo, no sentido da pena e da forma de punição.
Beccaria (1959) concluiu, em 1764, o clássico “Dei deliti e delle pene”, onde pregava a certeza da punição
como tendo maior eficiência que a gravidade dos castigos.
A pena de prisão foi a predominante entre o século XVI e princípios do século XVII. Nessa época pregava-
se que o isolamento faria o indivíduo refletir sobre seus “erros” e chegar ao arrependimento e a
“regeneração” . Qualquer tipo de diálogo era proibido e as conseqüências psicológicas nos internos
começaram a chamar muito a atenção de estudiosos da época. Dostoiewsky (1967), em Recordação da Casa
dos Mortos, defende que o regime de penitenciária oferece resultados falsos, aparentes, esgotando a
capacidade humana. Mostra como se utiliza a figura do detento ‘remido’ para servir como um modelo de
que o sistema é eficiente. Com pensamentos como este é que, na primeira década de XVII, surge o
movimento renovador, contrário às arbitrariedades cometidas e à vida desumana existente nos presídios.
De acordo com Miotto (1992), a preocupação em erradicar as torturas e mutilações surgiu em 794 através do
Concílio de Frankfurt. No final do séc. XVII, houve a discussão em relação à desproporcionalidade entre o
crime e a pena a ser aplicada. O que se percebe com esses fatos e datas é que a preocupação com a pena e o
criminoso sempre existiram, inicialmente de forma desestruturada e, a partir da primeira metade do séc.
XIX, através da Ciência das Prisões, aparecendo, pela primeira vez na análise desta questão, a sociologia.
Os estudos de caráter sociológicos e psiquiátricos fomentaram a discussão de um novo sistema
penitenciário, um sistema em que possibilitasse ao preso benefícios em troca do seu bom comportamento,
chegando até a ser libertado de forma condicional antes do final da pena inicialmente imposta. É o
surgimento do embrião do Livramento Condicional. Esse novo sistema foi implantado na Inglaterra, no
início do século XIX. Junto a essa preocupação veio a de não afastar o interno do convívio social e
principalmente do familiar. As visitas familiares e até íntimas começaram a ser permitidas e mesmo
incentivadas, no intuito de não afastar o preso de forma tão drástica da sociedade. A possibilidade da
liberdade vigiada daria ao sentenciado a oportunidade de um retorno gradativo, sob a tutela do Estado.
O Relatório Final da CPI do Sistema Carcerário da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais
concluiu: “a situação exige uma nova política criminal que não atenha apenas à falta de vagas nas prisões,
mas que possibilite, antes de tudo, a efetiva reintegração do criminoso ao convívio social, o fim dos métodos
violentos como forma de tratamento, a estruturação de um sistema único e o controle efetivo da sociedade
sobre seus agentes de segurança”.
Diante da ausência de resultados satisfatórios, houve a necessidade de aplicar formas alternativas à pena
privativa de liberdade no intuito de combater a impunidade, obedecendo, porém ao princípio da
proporcionalidade do crime com relação a sua pena.
Segundo Bruno (1997) as penas de curta duração não corrigem, mas aprofundam ainda mais o desajuste do
criminoso. Pela sua curta duração, não permitem que alcance qualquer resultado útil às práticas corretivas do
tratamento penal. E ainda mais, levam o pequeno delinqüente ao convívio com criminosos mais
experimentados e endurecidos, que criam em volta uma atmosfera de estímulo ao crime e de
aperfeiçoamento de seus meios.
Segundo o Relatório da CPI do Sistema Carcerário, a porcentagem de condenados que tiveram suas penas
substituídas chega a, no máximo, 2% do total de condenações. Já nos Estados Unidos esse número chega a
68%, na Inglaterra a 80%, tal qual na Alemanha. Diante dessa variação, vê-se que a aplicação das Penas
Alternativas no Brasil é totalmente escassa, apenar de ter sido introduzida em nossa legislação em 1948. Em
1998 a Lei que dispunha sobre a aplicação das Penas Alternativas foi modificada, ampliando seu universo de
atuação.
Segundo a nova lei, terão direito à substituição da pena privativa de liberdade aqueles condenados a uma
pena não superior a quatro anos, desde que o crime não tenha sido cometido com violência ou grave ameaça
à pessoa e nos crimes culposos em geral. O sentenciado, porém deve atender aos requisitos do artigo 44 do
CP, ou seja, não ser reincidente em crime doloso e a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a
personalidade, os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.
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O Estado da Bahia possui, atualmente, cerca de 4616 internos. Calcula-se que cerca de 20% deles poderiam
ser submetidos a uma pena alternativa, diminuindo o custo para o estado e o índice de reincidência .
O motivo deste tipo de pena não esta sendo aplicado de forma tão constante é a ausência de mecanismos de
viabilização e acompanhamento dos condenados. É por tal fato que urge a necessidade da criação de uma
Central de Aplicação e Acompanhamento das Penas Alternativas, como um apoio ao judiciário e ponte entre
este e a comunidade, trazendo a problemática da situação criminal ao seio da sociedade, mostrando como é
responsabilidade geral pensar meios para humanizar a pena e com isso diminuir os índices de reincidência e
até de incidência criminal.
Essa Central, conhecida como CEAPA, esta sendo implantada em todo o Brasil com recursos do Ministério
da Justiça em parceria com as Secretarias de Justiça e Direitos Humanos.
Não há dúvidas quanto à necessidade da Criação desse aparato para a viabilidade das Penas Alternativas.
Porém a forma de gestão ainda deve ser discutida, evitando a ineficiência da Central ou seu funcionamento
de forma a não garantir a aplicação da Pena Alternativa dentro dos padrões pela Lei exigidos.
A primeira coisa que se deve entender é que as alternativas à pena de prisão são penas, estabelecidas em Lei
para determinados crimes e condenados. Essa questão é de extrema importância, posto que o pensamento
geral é o de que esse tipo de execução é uma forma de “passar a mão na cabeça do condenado”. Como
conseqüência desse pensamento, têm-se a vontade de “agravar” a pena já estabelecida. Em muitos locais
onde ela já é aplicada, noticia-se que muitas instituições recebedoras de apenados para o cumprimento de
uma pena de Prestação de Serviço à Comunidade, aloca-os exatamente para as atividades mais degradantes e
fazem questão de os diferenciar como sentenciados, criminosos.
Ora, mesmo para quem não é um estudioso da área criminal, é fácil perceber que se a legislação prevê esse
tipo de pena para aqueles que cometeram infrações menos graves e são primários é exatamente na intenção
de não os tirar do seio da comunidade, da família e do trabalho (quando esses últimos existem, é claro). É
fazer com que eles cumpram alguma pena, sem que precisem estar internos num estabelecimento. É a
continuidade do convívio social.
Quando ocorre de o sentenciado, mesmo estando em liberdade, ser banido socialmente, a Pena Alternativa
de nada possuiu efeito, posto que voltou a ser, como o era no séc. XVI, uma vingança social, financiada e
incentivada pelo Estado.
O fato de haver uma Central de Aplicação e Acompanhamento de Penas Alternativas criada pelo Estado, faz
com que este legitime, pelo menos para a população, toda a atitude que dela venha. No pensamento social,
caso a Central permita tratamentos desumanos ou atitudes de preconceitos, esses passarão a ser entendidos
como parte da pena e até necessários para a execução desta.
No Brasil, a pena não tem um caráter retributivo e a vingança é algo que se pensa como um sentimento
humano. É perfeitamente compreensível ter raiva de uma situação específica de crime, porém não se pode
concordar com a legitimação desse sentimento e a apropriação do mesmo pelo Estado.
Passou a ser comum apresentadores de televisão e locutores de rádio apresentarem programas que
investigam e denunciam crimes. Em muitos desses casos, os próprios apresentadores pregam abertamente a
necessidade da crueldade na execução da pena. Outros, mais discretos, “apenas” cometem o absurdo de
anunciar um culpado e mostrar seu rosto sem que este tenha sido condenado por sentença transitada em
julgado. Onde estará o princípio da Inocência estabelecido na Lei Maior que prevê todos serem considerados
inocentes até sentença penal condenatória transitada em julgado?
Esse ataque da mídia tem feito com que a maior parte das pessoas concordem com atos de vingança ou, o
que é pior, nem notem a gravidade destes e cheguem a achar graça em alguma situação típica de seguimento
à Lei de Talião.
É por esse fato que passa a ser imensamente delicada a tarefa da CEAPA em todo o Brasil. Agora há como a
população participar da execução penal e esse fato deve ser entendido por todos como de extrema
responsabilidade para o bom andamento desse tipo de aplicação de pena. Deve ser uma luta para que a
sociedade absorva a idéia de resocialização prevista em nossa legislação. Na verdade essa história de
resocializar é extremamente polêmica e necessitaria de todo um estudo para tentar defini-la. Porém o que
aqui interessa é a idéia da inexistência da vingança no cumprimento da pena, é entender que cada crime
possui sua pena prevista e o juiz a dosará de acordo com características do comportamento pessoal do
agente. É entender que de nada adianta a crueldade ser inserida na pena e, independente dessa discussão,
mesmo aqueles que a percebem como necessária, devem respeitar a legislação do País em que vivem e sua
condição de cidadão, sem ter, portanto o poder de atribuir uma culpa criminal a alguém e muito menos de
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aplicar a pena que achar necessária.


Não pretendo aqui provar a não eficiência da crueldade na execução de uma pena, apenas demonstrar o que
o nosso Estado legitimou e a importância de cada um saber seu papel na questão criminal. Até pouco tempo,
a população não tinha nenhum contato com pessoas em cumprimento de pena, exceto os parentes e amigos
de internos. A maior parte não tem sequer noção do que é uma penitenciária, da situação de vida imposta
pela estrutura falida e desumana. Mesmo as consideradas “modelos” já são vistas como impróprias, porém
ainda não há alternativa viável à estrutura penitenciária.
A difusão da aplicação de penas em toda a comunidade fará com que esta, pela primeira vez entre em
contato com pessoas que cometeram crimes e que estão em situação de execução da pena. Acrescento esse
final porque tenho ciência que, principalmente em bairros pobres, todos os moradores sabem e convivem
com pessoas que cometeram diversos crimes e são temidas por todos. Estas, porém, estão impunes e muitas
vezes continuam nessa situação. As que foram mencionadas inicialmente são pessoas que cometeram crimes
de menor potencial ofensivo e que foram condenadas, estando sob acompanhamento da justiça criminal.
Os condenados a Penas Alternativas teoricamente não são perigosos e, portanto, mais facilmente
manipuláveis no sentido da exclusão e da alocação da raiva por outros crimes cometidos e ainda impunes.
O início do trabalho de aplicação das Penas Alternativas será muito difícil e deve ser difundido para toda a
sociedade, fomentando a discussão quanto às questões criminais. Porém, pode ser um embrião para a total
participação da comunidade na estrutura criminal, disseminando a necessidade do olhar mais atento para
essa problemática, no intuito de encontrar soluções viáveis e cada vez menos drásticas para os apenados
(não deixando de lado o Princípio da Proporcionalidade entre o crime e a pena a ser aplicada) e para a
sociedade, fazendo esta membro ativo na execução penal e no processo de retorno ao convívio social dos
egressos.
O sistema penitenciário deveria desempenhar um papel privilegiado nesse processo, já
que parte significativa das violências que circulam na sociedade acaba resultando em penas,
sejam elas privativas de liberdade ou restritivas de direito. Na aplicação ou execução dessas
penas, o Estado tem uma oportunidade única de interromper ou atenuar os ciclos de violência
que foram tornados visíveis pelo cometimento de um ato tido como crime. Na ordem jurídicopolítica
brasileira, essa é até mesmo a orientação formal: a Lei de Execução Penal de 1984, por exemplo, não hesita
em expressar o duplo objetivo de “efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar
condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

GOMES, Geder Luiz Rocha. A Substituição da Prisão. Alternativas Penais: Legitimidade e


Adequação. Salvador: Juspodivm, 2008.
BECCARIA, César. Dos Delitos e das Penas. Tradução de Torriere Guimarães. São
Paulo: Hemus, 1983.
BRUNO, Aníbal. Das Penas. 4. ed.. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
QUEIROZ, Paulo de Souza. Do Caráter Subsidiário do Direito Penal. Belo Horizonte:
Del Rey, 1998.

Legislação penal de emergência e alternativas a pena de prisão.

SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão
do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

Justiça restaurativa.
Paul McCold e Ted Wachtel, do Instituto Internacional por Práticas Restaurativas (International Instituto for
Restorative Practices), em trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, realizado de
10 a 15 de agosto de 2003, no Rio de Janeiro por Práticas Restaurativas afirmam que a Justiça Restaurativa
constitui "uma nova maneira de abordar a justiça, que enfoca a reparação dos danos causados às pessoas e
relacionamentos, ao invés de punir os transgressores”. Continuando, os autores dizem que:
A Justiça Restaurativa é um "processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um
crime ou uma transgressão de qualquer outra natureza, chamados de ‘partes interessadas principais’, para
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determinar qual a melhor forma de reparar o dano causado dessa transgressão”. Paul McCold
Dentro dessa estrutura, o que se buscaria seria evitar práticas puramente punitivas (ou retributivas), as quais
tendem "a estigmatizar as pessoas rotulando-as indelevelmente de forma negativa", ou meramente
permissivas, buscando "proteger as pessoas das conseqüências de suas ações erradas".

Dessa forma, a abordagem restaurativa conseguiria, através de uma visão humanista do transgressor, sem,
porém, confrontar esse as ações danosas desse transgressor. Ted Wachtel
De acordo com os autores acima: "a essência da justiça restaurativa é a resolução de problemas de forma
colaborativa. Práticas restaurativas proporcionam, àqueles que foram prejudicados por um incidente, a
oportunidade de reunião para expressar seus sentimentos, descrever como foram afetados e desenvolver um
plano para reparar os danos ou evitar que aconteça de novo. A abordagem restaurativa é reintegradora e
permite que o transgressor repare danos e não seja mais visto como tal.
O engajamento cooperativo é elemento essencial da justiça restaurativa". Trata-se, enfim, de suprir as
necessidades emocionais e materiais das vítimas e, ao mesmo tempo, fazer com que o infrator assuma
responsabilidade por seus atos, mediante compromissos concretos.
A importância, como colocado, seria um sistema de justiça cujo pressuposto fosse à comunidade, ou seja, os
sujeitos diretos e indiretos do conflito, o transgressor e as vitimas da transgressão. O ideal de Justiça
Restaurativa vem propor exatamente que as principais partes interessadas, uma unicidade entre as vítimas e
transgressor. Ou ainda, aqueles que têm uma relação emocional significativa com uma vítima ou
transgressor, como os pais, esposo, irmãos, amigos, professores ou colegas, também são considerados
diretamente afetados. Eles constituem as comunidades de assistência a vítima e transgressor. As partes
secundárias, por outro lado, são integradas pela sociedade, representada pelo Estado, pelos vizinhos,
“aqueles que pertencem a organizações religiosas, educacionais, sociais ou empresas cujas áreas de
responsabilidade incluem os lugares ou as pessoas afetadas pela transgressão”. O dano sofrido por essas
pessoas é indireto e impessoal, e a atitude que deles se espera é a de "apoiar os processos restaurativos como
um todo".
Nesses termos, fica claro que a intenção de reparação do dano é superveniente à idéia de castigo do
transgressor, e que seus sentimentos, bem como sua individualidade, são não só respeitadas, como levada
em consideração durante o processo.

Vivemos um tempo de expansão da violência e da criminalidade, ao mesmo tempo em que se percebe a


ineficácia do sistema de justiça criminal - notoriamente incapaz de oferecer resposta adequada a esse
fenômeno complexo e angustiante.

Nesse modesto ensaio sobre Justiça Restaurativa, não se abordam as causas históricas e sistêmicas da
criminalidade, que têm raízes na própria configuração de uma ordem violenta, excludente, e que faz do
Direito Penal e de seu sistema de operação um instrumento de dominação e negação do outro.

Aqui se propõe um debate sobre um novo paradigma que aflora em vários países – a chamada Justiça
Restaurativa, que transcende a controvérsia criminológica que gira em torno das doutrinas da lei e da ordem
e do garantismo, para lançar um novo olhar sobre o crime.

A visão restaurativa emancipa-se da abordagem típica do pensamento linear do modelo patriarcal, para,
numa mudança para o eixo do pensamento complexo e matrístico, focar as necessidades que as pessoas e
comunidades afetadas pela criminalidade têm em face do delito, propondo um procedimento colaborativo,
solidário e inclusivo, baseado na responsabilidade e na restauração dos traumas e lesões produzidas pelo
crime, e não simplesmente na punição. Não há julgamento, mas diálogo.

O que propõe o paradigma restaurativo é uma abordagem holística e relacional do conflito que cerca o fato
delituoso, numa concepção ressignificada e ampliada de justiça.

O modelo restaurativo vai além do conflito jurídico apenas, para, numa atuação interdisciplinar psicossocial,
dissecar esse conflito e agregar-lhe outros olhares para procurar curar as feridas, restaurando as relações,
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mediante encontros restaurativos entre vítima, infrator e pessoas da comunidade, conduzidos por
profissionais capacitados.

O conflito, segundo Zaffaroni, envolve respostas punitivas, reparatórias, conciliatórias e terapêuticas. A


justiça restaurativa pode contemplar todas essas perspectivas, embora a punição seja adotada, pela via do
procedimento tradicional, só se não se lograr o acordo restaurativo.

Trata-se de propor a abertura de uma nova porta para responder adequadamente não a todos, mas a muitos
crimes, que se disponibilizaria às partes como uma opção voluntária.

Já existem práticas restaurativas em muitos juizados especiais criminais, embora sem a especificidade dos
princípios, valores e procedimentos recomendados por Resolução da ONU, e há meritórias iniciativas
experimentais – projetos pilotos.

A Justiça Restaurativa tem um grande potencial de proporcionar maior satisfação à vítima, ao infrator e às
comunidades, inclusive podendo reduzir consideravelmente a reincidência, segundo pesquisas científicas
levadas a cabo por universidades da Nova Zelândia e de outros países.

Não se trata de desjudicialização nem privatização da justiça criminal, mas de democracia participativa no
processo judicial, que teria, na justiça restaurativa, um complemento – uma ferramenta disponível para
certos casos segundo critérios definidos em lei, em que as partes passariam ao centro do processo, deixando
de ser meros espectadores mudos, com a função de meios de prova, para apropriar-se de um conflito que
lhes pertence, quando quiserem e for possível esse caminho.

A Justiça Restaurativa, como uma forma de mediação penal, não teria apenas uma função de cura das feridas
para os envolvidos e para a comunidade, mas também uma função transformadora – o objetivo das práticas
restaurativas é proporcionar a transformação existencial dos sujeitos envolvidos.

Algumas das diferenças básicas entre o modelo de Justiça Criminal convencional e o modelo restaurativo,
são expostas nos quadros a seguir, para melhor visualização dos valores, procedimentos e resultados dos
dois modelos e os efeitos que cada um deles projeta para a vítima e para o infrator.

A reivindicação de um modelo de justiça criminal menos autoritário, mais inclusivo, mais participativo,
menos traumático, mais legítimo e eficaz (que a justiça restaurativa propugna) não pode, portanto, ser
considerada como simples modismo ingênuo, romântico ou passageiro. As promessas não cumpridas, os
ideais do Iluminismo ainda não alcançados permanecem relevantes e oportunos, como irrefragável conquista
civilizatória. O diferencial é que a complexidade do mundo moderno não mais se permite fundar em razões
“dogmáticas”, puramente acadêmicas, de “cima para baixo”. A ética do discurso (que se apropria de
uma reflexão sobre a linguagem, a comunicação, para bem sinalizar a indispensável exigência de uma
mínima aceitação de valores, princípios, como premissa fundamental nas relações sociais e de poder)
reivindica uma racionalidade compartilhada, dialogada, participativa, como única forma viável de se
promover o primado do bem comum, num mundo de valores em constante mutação. E a “justiça
restauradora”, em perspectiva dialógica, resgata, restaura o valioso poder simbólico, comunicacional, das
esperadas censuras (e por vezes inevitáveis sanções) aplicadas pelo sistema penal. Esse é um
aspecto semântico-pragmático-político-democrático-jurídico que, à luz de CHRISTIE ou de HABERMAS, a
“justiça restaurativa” tem o condão de aproveitar, com máxima e concreta eficácia, superando a “diálogo
entre surdos” que o tradicional paradigma punitivo, sem sucesso, insiste em perpetuar.
Quando as conseqüências desses conflitos tornam-se dolorosos o bastante, elas vão parar em um tribunal ou
no consultório de um terapeuta. A espiral de violência começa como uma espiral de comunicação distorcida
que leva, por meio da incontrolável espiral de desconfiança recíproca, à ruptura da comunicação. Se a
violência começa, assim, com uma distorção na comunicação, depois que ela entrou em erupção é possível
saber o que não deu certo e o que deve ser consertado.
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As características principais do processo restaurativo é a inter-subjetividade, como um método de discussão


e integração social em busca de um consenso. Consenso que nos permitimos rotular de “operacional”, para
sinalizar uma aceitabilidade mínima, entre os participantes, da legitimidade do programa restaurativo.
Afinal, a busca de um consenso absoluto, ontológico, sobre Estado, Direito e Democracia, constituiria um
óbice intransponível aos próprios fundamentos desses institutos. A justiça restaurativa (e daí porque nos
parece válida sua associação com o modelo teórico de HABERMAS) contenta-se com um indispensável
grau de adesão e legitimidade que necessariamente hão de ter, por exemplo, os falantes de uma mesma
língua, sob pena de não serem mutuamente compreendidos. E se o Direito, o sistema judicial não conseguir
resgatar essa necessária dimensão simbólica, comunicativa, longe estarão de resgatar sua própria
legitimidade ética e democrática, fundamento primeiro para a eficácia de seus princípios e normas.
Essencial, portanto, na justiça restaurativa, o encontro da vítima com o infrator e a comunidade, para
discutirem o crime e suas conseqüências, por meio de reuniões monitoradas por mediadores, com a
possibilidade de participação de familiares e terceiros. O resultado desejado é a reparação e a reintegração
social. Reparação dos eventuais danos causados, sejam eles patrimoniais ou morais, e reintegração da vítima
e delinqüente à comunidade, sem estigma ou marginalização. O objetivo é que os participantes se tornem
mais conscientes de seus atos e de suas repercussões sociais.
Opera-se uma mudança sensível e radical em relação ao tratamento dispensado pela justiça penal tradicional,
em que a conscientização do infrator se tenta impor com a dor, a participação da vítima se limita ao
fornecimento de declarações e a comunidade não participa.
Os princípios e as características apresentados diferenciam a justiça restaurativa da justiça penal meramente
retributiva. Na justiça restaurativa há participação, discussão, conscientização, compreensão, solução dos
problemas passados, análise dos problemas presentes e preparação para os problemas futuros, enquanto na
justiça penal tradicional há imposição (e não discussão), retribuição pelo fato passado, esbulho da vontade e
interesse das partes, afastamento da comunidade. No tradicional modelo, inexiste composição de conflitos,
mas quase exclusivamente repressão, o que lhes dá, muitas vezes, um caráter mais grave que seu próprio
contexto originário, criando novos conflitos dentro e fora do contexto fático original levado a juízo.
O princípio do processo comunicacional assenta-se na idéia de justiça social pela soberania e democracia
participativa e diálogo das partes. É a ética da solidariedade, do discurso. Qualquer novo modelo de justiça
que se proponha não encontrará legitimação sem uma efetiva e direta relação com as comunidades e a
sociedade que lhe dá vida. A lide penal afeta diretamente as partes envolvidas no crime e indiretamente
produz danos aos familiares e membros da comunidade da qual autor e ofendido fazem parte, sendo
indispensável que deles se aproxime a justiça penal. O diálogo rompe barreiras e aproxima pessoas,
trabalhando para uma solução imediata, duradoura e futura sobre a lide penal.
A efetividade tem sido apontada como um dos maiores problemas enfrentados pela justiça brasileira no
início desse século, o que determinou reformas nos diplomas processuais vigentes. A falta de efetividade das
decisões na tutela penal não é diferente desse contexto geral e decorre de variados fatores, sendo um dos
mais importantes a ausência de comprometimento das partes com a decisão jurisdicional. A justiça
restaurativa possibilita o envolvimento das partes e a alternatividade das respostas tem por fim tornar efetiva
a decisão tomada no processo restaurativo, dando-lhe cumprimento e comprometendo as partes com a
decisão, na medida em que se assegurou a participação de todos para sua escolha. A conscientização de que
os interesses próprios não podem suplantar os interesses alheios, pelo simples fato de serem próprios e não
dos outros, decorre da solidariedade humana. Em relação à Carta de Brasília, destacam-se os seguintes
valores: atenção às pessoas envolvidas no conflito com atendimento às suas necessidades e possibilidades;
expressão participativa sob a égide do Estado Democrático de Direito; interação com o sistema de justiça,
sem prejuízo do desenvolvimento de práticas com base comunitária.

Conclusão
Em fim, como demonstrado nos tópicos acima, existe vestígios da justiça Restaurativa aqui no Brasil bem
como a possibilidade clara de aceitação e adaptação à realidade brasileira. E mais que isso, a justiça penal
brasileira precisa ser urgentemente repensada, principalmente a sua forma de penalizar uma pessoa que viola
uma norma tipificada. E como viés a esse tratamento, a Justiça Reparadora vem como alternativas ao atual
modelo de resolução de conflitos na área penal; que pode ser taxado como um modelo ultrapassado para
solucionar um conflito. Pois, basta lembrar que o nosso atual código penal, como sendo uma cópia do
código penal Italiano criado por Mussolini durante a ditadura fascista, estão com as sua normas aboletas e
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que, por isso, contribui ainda mais para tornar essa atual forma de solução de conflito ultrapassada. Por
conseguinte, o código penal brasileiro, acaba por ser responsável pela maioria dos problemas enfrentados
pelo judiciário e o executivo, no tocante aplicação e execução da pena. Sendo assim, por que não apostar em
uma alternativa a essa realidade. E como fazer isto, ou seja, concretizar essa idéia que todos almejam? A
resposta seria talvez por em discussão para a sociedade a vantagens sobre discorrido instituto. Pontuando os
pontos positivos que a Justiça Reparadora traria para a sociedade. Poderia até mesmo, fazendo uma analogia,
a experiência de outros países, como a Justiça Reparadora deu certo. Ate mesmo porque, por aqui, outro
paradigma precisa urgentemente ser discutido e implementado. É claro de forma criteriosa, sem esquecer,
considerações a garantias fundamentais de dos agentes conflitantes. A começar pelo princípio da dignidade
humana, da razoabilidade, da proporcionalidade, da adequação e do interesse público. Certos princípios
fundamentais aplicáveis ao direito penal formal, tais como o da legalidade, intervenção mínima, lesividade,
humanidade e culpabilidade.

PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça restaurativa. A era da Criminologia clínica. Jus Navigandi,
Teresina, ano 12, n. 1442, 13 jun. 2007. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/9879>. Acesso
em: 11 jan. 2011.
CHRISTIE, Nils (entrevistado); OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de (entrevistadora); FONSECA, André
Isola (entrevistador). Conversa com um abolicionista minimalista. Revista Brasileira de Ciências
Criminais 21, jan/mar 1998.o Desenvolvimento – PNUD, 2005.
GOMES PINTO, Renato Sócrates. Justiça restaurativa é possível no Brasil? In SLAKMON, C.; DE VITTO,
R.; PINTO, R. Gomes (Org.). Justiça restaurativa. Brasília – DF: Ministério da Justiça e Programa das
Nações para o Desenvolvimento – PNUD, 2005.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade. Volumes I e II. Tradução de
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro; Tempo Brasileiro, 2003 [Pub. orig. Alemanha 1992].

O discurso e o poder.

Privatização do direito penal

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