Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ENTREVISTA
A máquina de cultura:
de Geertz a Hollywood
Sherry Ortner
CF: Gostaríamos de começar por uma meu próprio trabalho tenha passado por
nota de rodapé que você escreveu em The muitas mudanças em termos desta opo-
fate of culture1, falando de Geertz. Você sição, mesmo agora, olhando para trás,
diz: “Levou algum tempo para perceber percebe-se que Geertz estava mesmo
quão profundamente eu estava marcada trazendo algo novo. Era realmente um
pela sua perspectiva, em parte, através momento radical na antropologia, um
de sua influência direta, mas ainda mais momento de reescritura da disciplina. E
pelo impacto que o seu pensamento teve isso era parte da graça, embora eu não o
sobre o programa de pós-graduação em percebesse bem na época.
Chicago, e quão fortemente o programa
de pós-graduação de Chicago, por sua CF: Mas o que você quer dizer exatamen-
vez, impunha-se aos estudantes”. Você te com “impondo-se aos alunos”?
poderia nos falar sobre Chicago nos
anos 60? Quando saí da pós-graduação e comecei
a fazer o que considero meu próprio
Acho que provavelmente não é diferente trabalho, percebi que estava exatamente
agora. Era mesmo muito intenso. Havia cumprindo a agenda de Chicago. E aí,
o sentimento de estar no centro do uni- retomando contato com colegas, com
verso: de ter o melhor departamento, os minha turma de Chicago (nós nos tínha-
colegas mais inteligentes, os melhores mos dispersado e durante algum tempo
professores. Havia essa sensação formi- eu não os vira nem os lera), percebi, de
dável (provavelmente um tanto exagera- repente, que estávamos todos fazendo a
da) de que era a coisa mais maravilhosa mesma coisa. Por mais que pensássemos
do mundo. Havia também uma sensação estar fazendo algo diferente ou original,
de que você tinha que realmente ser só cumpríamos uma espécie de agenda
bom. B+ não era bastante bom. Eu tinha estabelecida em Chicago. Era preciso de
estudado num curso de graduação bem algum modo compreender este fato para
difícil, um college feminino chamado poder superá-lo, para poder ir adiante e
Bryn Mawr, que também era muito bom. começar a fazer alguma coisa nova. Era
Eu exultava com os B+ em Bryn Mawr preciso primeiro dar-se conta do grau em
e, quando cheguei a Chicago, recebi B+ que se estava praticando determinada
no primeiro trabalho. Achei que tinha ido agenda, para então ir além dela — e
bem. Aí percebi que esta era a nota mais espero tê-lo conseguido.
baixa no sistema. Tínhamos também
certa sensação de sermos os “donos da CL: Quem eram seus professores e cole-
verdade”, de que o tipo de antropologia gas de turma?
ensinado em Chicago era a verdadeira
e única antropologia. Havia naquele Pelo que sei, o departamento havia
tempo uma grande polarização: éramos acabado de contratar Geertz, Schneider
“nós” (os interpretativistas, produzindo e um africanista chamado Lloyd Fallers
uma antropologia interpretativa rica e (de Berkeley). E esta foi a grande mu-
complexa) contra os materialistas vulga- dança.
res, que predominavam na Universidade
de Michigan e também em Columbia. CF: Turner não estava lá, naquela época?
Eles eram uma espécie de “Império
do Mal” e nós éramos os mocinhos, os Não. Os Turners chegaram quando eu
que tinham tido a revelação. Embora estava no campo. Não os conheci quando
a máquina de cultura 567
era aluna, eles vieram um pouco depois. uma coisa muito boa: ele protegia os
Geertz, Schneider e Fallers eram muito alunos que queriam fazer algo diferente,
ligados. Geertz e Schneider tinham feito como trabalhar nos EUA, o que não era
juntos a pós-graduação em Relações muito aceitável, então. Ele defendeu
Sociais, em Harvard, e haviam estudado Esther Newton, que queria estudar drag
com Talcott Parsons. Eles refizeram todo queens, assim como defendeu outros alu-
o programa de pós-graduação em Chica- nos que queriam estudar a cultura jovem
go. Por isso, criaram o curso “Sistemas”, americana. Schneider era bom nisso.
que ainda está lá.
CF: Na época, ele estava escrevendo
CL: Como funcionava, então? American kinship3, não é?
Era um regime trimestral. No primeiro Ele estava tomado por American kinship.
trimestre, tínhamos “Sistemas Sociais”, Na verdade, isso é que me salvou, porque
que era sobre antropologia social britâ- eu queria fugir dele, mas tinha medo.
nica. No segundo, “Sistemas Culturais”, Como ele estava com problemas para
era Geertz, bem como Ruth Benedict, terminar o livro, tirou uma licença de um
Margaret Mead, a velha tradição ameri- ano. Ele disse a todos os orientandos que
cana. E o terceiro trimestre era dividido procurassem outros orientadores, que ele
ao meio: metade era sobre sistemas psi- queria terminar o livro e não ia orientar
cológicos — o modelo parsoniano — e a ninguém durante a licença. Eu fiquei
outra metade, antropologia lingüística. muito contente, porque estava liberada.
Tudo isso em paralelo com outro curso Escrevi para Geertz, que estava no Mar-
chamado “O percurso humano”. Tínha- rocos, perguntando se ele gostaria de ser
mos Clark Howell, para o Paleolítico; meu orientador. E ele aceitou.
Lewis Binford, para o Mesolítico; e Bob
Adams,2 para o Neolítico. CL: Você chegou a comentar isto com
Schneider?
CL: Geertz já era o seu orientador?
Bem, tempos depois nós ficamos amigos.
Na verdade, quando me inscrevi em E eu soube que o que aconteceu foi o
Chicago, eu disse que estava interessada seguinte: ele mandou a mesma carta para
no Pacífico. Então me encaminharam todos os orientandos, mas alguns insisti-
para David Schneider. Ele era, em de- ram em continuar com ele, e ele aceitou.
terminado plano, uma pessoa gentil, Eu não; eu estava feliz em ser liberada.
mas em outro, um orientador bem difícil Anos mais tarde, ele me perguntou se eu
(e, creio, também difícil como colega). o tinha deixado por causa da carta e eu
Schneider me enlouquecia, embora eu disse “Sim, é claro!”. E ele me respondeu
ache que ele dava tudo de si e que eu que se arrependia de tê-la escrito. Esta
era muito ignorante. O trabalho dele me é a história.
parecia estranho. Eu não compreendia
o que ele estava tentando fazer mas, em CF: Mas no fim das contas ele deixou
retrospecto, era uma espécie de perspec- uma marca forte no seu trabalho, não é
tiva desconstrutivista. Na época, porém, verdade? Toda a idéia de um símbolo-
parecia-me apenas um tipo de versão chave, que você aplicou para ler a teoria
muito estranha de estruturalismo. Mas antropológica, era basicamente de Sch-
eu gostaria de dizer que Schneider tinha neider, certo?
568 entrevista
Obviamente tinha conexão com isso, mas o doutorado; ou seja, tenho uma rede de
eu não me via tomando-a de Schneider. 25 pessoas do meu ano, sem falar que
Na verdade, me via tomando-a em par- eu era amiga de gente do ano anterior
te de Benedict, mas também de outra e do ano seguinte. Penso, assim, que
linhagem. Por incrível que pareça, de além de tudo o mais, foi simplesmente
Evans-Pritchard. Ele não usou o termo o tamanho em si dessa rede que acabou
“símbolo-chave”, mas fala do gado na tendo muito impacto.
cultura dos Nuer como uma espécie de
símbolo-chave para eles. Talvez, porém, CL: E quanto às pessoas?
eu tenha inconscientemente tirado isso
de Schneider, embora não me visse re- Bem, Ellen Basso era da minha turma,
correndo a ele. assim como Bobby Paul, meu ex-marido,
que agora é decano na Universidade
CF: Você se referiu aos seus colegas de de Emory. Também Harriet Whitehead,
turma em Chicago. Quem eram eles? com quem colaborei, Karen Blu, que
trabalhou com índios da América do
Éramos uma turma muito grande. Ad- Norte. Harriet, Karen e eu viemos juntas
mitiram uns 50 alunos no meu ano. Eles da graduação e éramos chamadas em
aceitavam um grande número de alunos Chicago de “a máfia de Bryn Mawr”. Na
sem financiamento, e a pessoa tinha que turma à minha frente estavam Alfonso
pagar a anuidade do primeiro ano, no Ortiz, Martin Silverman, Esther Newton,
final do qual havia vários exames. Muito Waud Kracke...
difíceis. Ficava-se sentado por cinco ho-
ras fazendo prova de “sistemas” e cinco CF: Roy Wagner era da turma que entrara
horas na prova de “percurso humano”. dois anos antes?
Era preciso passar com notas altas nas
duas provas para seguir no doutorado, Acho que sim. Não o conheci na pós-gra-
sem negociação com os orientadores: duação. Paul Rabinow entrou dois anos
cada aluno recebia um número, não ha- depois, e eu o conhecia um pouco porque
via nome nas provas, que eram avaliadas ele estava sempre por ali. Ele tinha sido
por bancas. Eles levavam isto a sério. aluno de graduação em Chicago. Quando
E era muito bom para as mulheres, concluímos o curso da pós-graduação,
porque anulava o sexismo padrão do Bobby e eu fomos morar em Nova York
sistema. Acho que era acidental. Fizeram e várias outras pessoas também. Paul
desse modo por não quererem membros Rabinow, que era nova-iorquino, voltou
do corpo docente favorecendo alunos. para a sua cidade. E assim acabamos
Eles nem pensavam em sexismo nos anos formando um grupo grande lá e criamos
60. Mas, de qualquer modo, só nove pes- “O Seminário de Chicago em Nova York”.
soas conseguiram dupla aprovação com O grupo montou uma mesa para o encon-
nota alta na primeira rodada, e dessas tro de 1972 ou 1973 da AAA [American
nove, sete eram mulheres. Anthropological Association], que viria a
lançar a antropologia simbólica. Éramos
CL: Então somente nove passaram para oito do grupo e Clifford Geertz como
o doutorado? debatedor. Foi uma coisa impactante.
A sala estava lotada; era o momento de
Não, as pessoas fizeram novas provas. No anunciar a antropologia simbólica para
fim, acho que 25 pessoas, das 50, fizeram a disciplina.
a máquina de cultura 569
mas porque o projeto fazia sentido para em qualquer lugar. Você dá sorte, como
os Sherpas. Eu disse: “Vou coletar todas antropóloga, quando os encontra e eles
as suas tradições, as velhas histórias, encontram você, e as coisas dão certo.
vou falar com os mais velhos sobre o que
aconteceu no passado, sobre a fundação CF: Deixe-me fazer uma pergunta sobre
desses templos e monastérios”, tudo do a condição de gênero no campo. Bruna
ponto de vista deles... E isto fazia mais Franchetto10 relata que se sentia numa
sentido, se comparado ao meu primeiro espécie de condição andrógina. Por um
projeto, que era mais como “Fale-me lado, sexualmente falando, era mulher;
sobre a sua cultura”, o que não fazia por outro, era uma não-nativa e, nesse
sentido para ninguém. sentido, alguém poderoso, uma espécie
de “homem”. Em certas situações, era
CF: Você dedicou High religion ao assis- tratada como homem, tinha acesso a
tente Sherpa que morreu antes de o livro espaços que são proibidos às mulheres,
ser publicado. Life and death on Mount e assim por diante. Você experimentou no
Everest9 é sobre a relação entre os monta- Nepal esse tipo de condição andrógina?
nhistas ocidentais e os Sherpas — relação
que é assimétrica. Como você vê o seu Isso foi mudando nas diversas viagens.
relacionamento com os Sherpas? Acho que, em geral, sim, as mulheres oci-
dentais estão numa categoria separada —
Eu acho que melhorei com o tempo. Eu não só andróginas, mas poderosas.
morro de vergonha ao pensar no meu Os Sherpas têm uma cultura masculina
primeiro trabalho de campo, porque razoavelmente não-agressiva. Assim, nes-
sinto que realmente nós não tínhamos se sentido, mesmo antes de dizer respeito
autoconsciência ou reflexividade. Como à minha própria condição, tudo isso tem
a maior parte da velha antropologia, a ver com o modo com que eles operam.
só funcionou porque as pessoas são le- Os homens não são muito predatórios em
gais. Elas diziam “OK, aqui estão esses relação às mulheres em geral. Além disso,
americanos tolos, não sabem nada, mas na minha primeira viagem, eu estava com
têm boas intenções. E além do mais, Bobby Paul e éramos um casal. Eu era,
não custa nada...”. E assim por diante. portanto, uma mulher casada e não per-
Então, penso realmente que a antropo- cebi até que ponto este podia ser um fator
logia funcionou durante décadas porque relevante, até voltar sozinha, na viagem
as pessoas são legais, e não porque seguinte, quando de fato senti no ar algo
se fizesse a coisa certa ou porque elas que era com certeza de caráter sexual. Eu
tivessem alguma percepção das nossas estava solteira e, novamente, ninguém foi
verdadeiras intenções. Acho que isso foi agressivo, mas havia a percepção de que
evoluindo aos poucos, porque eu tentava eu era mulher, que homens eram homens,
alinhar mais e mais os meus interesses e algo poderia acontecer, esta era agora
com aquilo que os interessava. Foi esse uma possibilidade aberta. Mas depois dis-
tipo de alinhamento que se deu de modo so já fui ficando mais velha, o que de certo
geral no trabalho de campo antropológi- modo voltou a tirar o assunto da pauta.
co. Agora, com relação ao Sherpa a quem
dediquei o livro, Nyima Chotar, ele de CF: Mudando de assunto, de que modo
fato gostava desse tipo de trabalho. Ele se modificou, ao longo da sua trajetória
era uma espécie de intelectual nativo, e intelectual, a relação com o conceito de
acho que se encontram pessoas assim cultura?
572 entrevista
há hoje uma relação frouxa entre aquilo pessoas como Bourdieu não lidavam.
que se dá na teoria geral (digamos assim) Uma delas é a do poder, seja a domina-
e na produção acadêmica feminista. A ção masculina, seja a colonial, a de raça
teoria feminista tem seu próprio leque ou a de etnicidade. Outra questão é a
de discussões a respeito das quais tenho da história: como atualizar a teoria da
minhas impressões pessoais. O tipo de prática com uma perspectiva histórica,
predominância que tem Judith Butler, o que concretamente faço em minhas
por exemplo, de meu ponto de vista, não monografias High religion, Life and
é satisfatório, mas esta é a situação real, death on Mount Everest, e também New
assim como ocorre com Said e Spivak nos Jersey dreaming,12 o livro sobre a turma
estudos coloniais. Eles têm seus próprios de Ensino Médio com a qual me formei.
debates e cada um precisa imaginar São todos trabalhos históricos e usam
como entrar neles e participar, começan- como quadro geral a teoria da prática.
do do ponto em que eles estão. A terceira questão é a da atualização do
conceito de cultura, e meu argumento,
CF: Em várias ocasiões você escreveu so- na introdução desse novo livro, é de que
bre a teoria da prática. Agora, você anun- não há conceito de cultura no Bourdieu
cia um livro que vai se chamar Serious clássico ou em Giddens. Sahlins é, em
games, mas cujo subtítulo é “rethinking muitos aspectos, o mais útil para pensar
practice theory” [repensando a teoria da simultaneamente a história e a cultura.
prática]. Por que intitular esse novo livro Assim, ele tem um papel de bastante
“serious games”? destaque nessa minha nova obra. De fato,
eu acho o pequeno livro das metáforas
“Serious games” é uma idéia de que real- históricas brilhante, 13 mas Islands of
mente gosto bastante, e eu tentava traba- history14 voltou a ficar muito estático, um
lhá-la como um modo diferente de pensar estruturalismo estático. De certo modo,
sobre a teoria da prática e torná-la mais ele nunca chegou de fato a seguir os
útil, tendo em vista algumas das contro- caminhos que abriu com Historical meta-
vérsias de que estávamos falando. Mas phors. Acho, então, que é possível abrir a
nos EUA, nas ciências sociais hard — teoria da prática de muitas maneiras, mas
economia e ciência política — o quadro ainda penso que essa é a grade básica,
teórico dominante é a “teoria dos jogos”. a forma mais útil de pensar nas pessoas
E toda vez que eu falava em público sobre reais em relação à cultura, à história,
“jogos sérios”, eu era tão atacada e levava ao poder — pessoas on the ground, na
tanto tempo defendendo a expressão, que prática, mas articulando com um mundo
acabei desistindo. Agora, não a emprego mais amplo. Isto para a antropologia é
mais como a expressão central do livro, perfeito, porque envolve tanto as pessoas
porque não quero ter que lidar com toda reais quanto as estruturas e os sistemas
essa bobagem. mais amplos.
CL: Mas qual era a idéia? O que a ex- CL: Quando você leu Bourdieu? Qual é a
pressão quer conotar? sua relação com a obra dele?
É sempre a mesma idéia básica, de tentar Não estou certa de quando o li. Deve
imaginar o que é preciso para fazer a ter sido no início dos anos 1980, quando
teoria da prática dialogar com toda uma eu escrevia “Theory in anthropolo-
gama de outras questões, com as quais gy since the 60s”.15 Eu já tinha uma
574 entrevista
Com certeza. E, mesmo assim, eles ainda Esta é a diferença. Assim, é claro, estou
são como todos os agentes: há restrições. assumindo uma perspectiva crítica, a
O sistema dos estúdios já não vigora, mas qual não afirma que as pessoas estão
os estúdios ainda existem e dominam o corretas em última análise. Mas diz que
financiamento dessas empresas: elas preci- é preciso ouvir. A interpretação tem de
sam procurar os estúdios para financiarem incluir as percepções das pessoas, não
os filmes, e formam vários tipos de parce- deixá-las de fora.
ria. Mas até os executivos dos estúdios são
os mesmos, somos nós. Quero dizer que CF: Não é isto que a pesquisa de campo
são duas frações da mesma classe. de longa duração nos permite fazer?
CF: Gostaria de fazer uma pergunta sobre Certo. E é isto que deve ser feito. Apesar
a diferença entre a antropologia crítica e de todas as mudanças, é isto que estamos
a etnografia. Em seu artigo “Generation fazendo. O que há para fazer além de
X”,19 você diz que teve a impressão de que compreender por que eles pensam aquilo
essas pessoas de classe alta não eram a que pensam?
Geração X, mas aparentemente eles se
sentiam como tal. Aqui temos a regra CF: Considerando retrospectivamente
cardeal da etnografia: os informantes o seu esforço intelectual, há algo que
têm sempre razão. Mas, ao mesmo tempo, você não tenha feito e ainda gostaria
para uma antropologia crítica at home, de fazer?
é fundamental a idéia de que o analista
tem uma posição privilegiada e é capaz O projeto Hollywood pretende ser isso,
de lançar um olhar crítico que vai além pretende tentar, de modo relativamente
da autoconsciência. Como você concilia ambicioso, tomar algo como uma máqui-
estas duas exigências contraditórias? na de cultura e realmente pensar sobre o
modo como a cultura é produzida. Mas
Creio que há uma diferença entre não é só isso, eu tenho um pequeno proje-
considerar as percepções das pessoas to pessoal por trás do projeto Hollywood,
acerca de sua própria situação como pois espero produzir pessoalmente dois
falsa consciência, num sentido marxista, documentários sobre a cultura americana
e considerá-las como algo que se deve em geral, sobre os filmes de Hollywood,
levar em conta. Em outras palavras, no sobre minha própria vida.
quadro da falsa consciência, elas seriam
descartadas: “Eles pensam isso, mas na CF: Por que documentários?
verdade é aquilo. Eles se vêem dessa
forma, mas é claro que estão errados. Eu adoro documentários. Sempre adorei.
A verdade é outra”. Ao passo que num É a versão americana, ou talvez univer-
quadro weberiano (ou qualquer outro sal, da etnografia. Os documentários
quadro mais sofisticado de interpretação são aquilo que as pessoas fazem a partir
do que as pessoas dizem ou pensam), daquele mesmo impulso que utilizamos
você tem de levar em conta as próprias para fazer etnografia. Mas os documen-
percepções das pessoas. A interpretação taristas não precisam ser treinados como
que você faz não deve negá-las, mas etnógrafos, não precisam ter nenhum
compreendê-las. É preciso que haja tipo de instrução formal ou qualquer
algum quadro interpretativo que inclua outra coisa. É, portanto, de algum modo,
as percepções delas, e não as descarte. uma etnografia universal.
578 entrevista
Notas
1
Ortner, Sherry (org.). 1999. The fate of Ortner, Sherry. 2003. New Jersey drea-
12
culture: Geertz and beyond. Berkeley: ming: capital, culture, and the class of ’58.
University of California Press. Durham, NC: Duke University Press.
2
Robert McCormick Adams. 13
Sahlins, Marshall. 1981. Historical
metaphors and mythical realities: struc-
3
Schneider, David. 1968. American ture in the early history of the Sandwich
kinship: a cultural account. Chicago: The Islands Kingdom. Ann Arbor: University
University of Chicago Press. of Michigan Press.
4
Distribuído no Brasil com o título A pri 14
Sahlins, Marshall. 1985. Islands of
meira noite de um homem. history. Chicago: University of Chicago
Press.
5
Distribuído no Brasil com o título Uma
rajada de balas. 15
Ortner, Sherry. 1984. “Theory in anthr
opology since the sixties”. Comparative
6
Ortner, Sherry. 1974. “Is female to male Studies in Society and History, 26(1):126-
as nature is to culture?” In: Michelle Ro- 166.
saldo & Luise Lamphere (orgs.), Woman,
culture and society. Stanford, CA: Stan- 16
Ortner, Sherry. 1981. “Gender and
ford University Press. pp. 67-87. sexuality in hierarchical societies: the
case of Polynesia and some comparative
7
Ortner, Sherry. 1978. Sherpas through implications”. In: Harriet Whitehead &
their rituals. Cambridge: Cambridge Sherry Ortner (orgs.), Sexual meanings:
University Press. the cultural construction of gender and
sexuality. New York: Cambridge Uni-
8
Ortner, Sherry. 1989. High religion: a versity Press.
cultural and political history of sherpa
buddism. Princeton: Princeton Univer- 17
Bourdieu, Pierre. 1972. Esquisse d’une
sity Press. théorie de la pratique. Paris: Points.
9
Ortner, Sherry. 1999. Life and death on 18
No original: “Fancy educations, Ivy
Mount Everest: Sherpas and himalayan League educations, wealthy backgroun-
mountaineering. Princeton, NJ: Prince- ds, full of material and cultural capital”.
ton University Press. Ivy League é um conjunto de instituições
tradicionais de ensino muito prestigiosas
10
Franchetto, Bruna. 1996. “Mulheres do leste dos EUA.
entre os Kuikuro”. Revista Estudos Femi-
nistas, 1:35-54. 19
Ortner, Sherry. 1998. “Generation X:
anthropology in a media-saturated
11
Ortner, Sherry. 1996. Making gender: world”. Cultural Anthropology, 13(3):414-
the politics and erotics of culture. Boston: 440.
Beacon Press.