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Vida e obra
BERNARDO MANÇANO FERNANDES
CARLOS WALTER PORTO GONÇALVES (ORGS.)
JOSUÉ DE CASTRO
Vida e obra
Agradecemos aos familiares de Josué pela liberação dos textos e das fotos
para esta publicação
Josué de Castro
Sumário
J O S U É D E C A S T RO,
FOME DE JUSTIÇA
Longe de mim menosprezar a obra realizada pela FAO mas desejo dizer
com toda a sinceridade – e peço que me perdoem por falar com uma sin-
ceridade um tanto brutal – que me sinto decepcionado diante da obra que
realizamos. Decepcionado pelo que fizemos porque, a meu ver, não elabo-
ramos até hoje uma política de alimentação realista perante às desespera-
das necessidades do mundo e aos nossos objetivos. Não fomos suficiente-
mente ousados para encarar de frente o problema e buscar as suas soluções.
Apenas afloramos a sua superfície, sem penetrar em sua essência. (Castro,
1966, p. 55).
Em 1954, Josué de Castro recebeu o Prêmio Internacional da
Paz. Essa atribuição significou também o reconhecimento do empe-
nho de Josué por um mundo mais justo sem fome, ou seja: um mun-
do com fome de Justiça. Nesse mesmo ano foi eleito deputado fede-
ral pelo Partido Trabalhista Brasileiro e reeleito em 1958 com o maior
número de votos do Estado de Pernambuco, até então.
Como político e cientista, Josué realizou diversos estudos e ela-
borou vários projetos. Participou das primeiras pesquisas sobre ali-
mentação no Brasil, realizadas no Rio de Janeiro, em São Paulo e no
Recife. O que resultou na sua expulsão do Recife, acusado de subver-
sivo por denunciar as condições de miséria dos trabalhadores de sua
cidade. Com seus estudos, o autor mostrou para as elites da época
como morria de fome a maior parte da população. Em 1955, apre-
sentou um projeto para a criação de uma reserva alimentar na região
Nordeste, que implicava necessariamente na realização da reforma
agrária e da redistribuição de renda.
Em sua produção científica, Josué de Castro registrou as causas da
fome. A concentração de renda e as desigualdades sociais estão no prin-
cípio da questão. A concentração da estrutura fundiária, a expropria-
ção dos trabalhadores rurais e a utilização da terra para uma agricultu-
ra de exportação em detrimento da agricultura familiar também estão
entre as principais causas da fome. Igualmente analisou como os inves-
timentos de enormes somas de recursos financeiros para a produção
bélica poderiam ser canalizados para eliminar a fome no mundo.
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O médico
Com algum sacrifício de seus pais, Josué partiu para a faculdade
de medicina da Bahia, onde permaneceu por três anos. Concluiu o
curso no Rio de Janeiro, com 20 anos de idade.
Certa vez, diante da pergunta sobre que impressão lhe causara a
Faculdade de Medicina da Bahia, assim respondeu:
A princípio uma impressão de deslumbramento e de veneração por seus
velhos muros, pela austera fachada da sua escola. Depois de desencanto no
que diz respeito ao ensino ali ministrado. Aliás, não só a Faculdade da Bahia,
mas depois a do Rio, também me desapontou por completo. Entrei com um
grande entusiasmo e saí com o interesse quase morto pela maioria dos assun-
tos, na forma em que eram apresentados. Poucos professores me entusiasma-
ram. Na Bahia, destaco o velho mestre Pirajá da Silva, figura veneranda de
homem de estudo, e o professor de Fisiologia, Aristides Novis, que me arre-
batou muitas vezes com o brilho literário de suas preleções. Virei “fisiólogo”
em dois tempos. Estudei com furor, conquistei uma distinção na cadeira e a
amizade do mestre que perdurou até a sua morte. Na Faculdade do Rio, a
grande figura que me encheu de encantamento foi a do Prof. A. Austregésilo,
sem dúvida uma das maiores vocações que teve o ensino médico brasileiro.
O escritor
Eu sonho sonhos distantes,
em barcos ausentes, velozes, ondeantes,
paisagens vivas, longe, diferentes.
Eu sonho sempre. Sonho…
Josué de Castro
Desde jovem, Josué foi um apaixonado pela literatura. Suas am-
bições literárias se revelam no período em que estudava medicina,
quando começa a publicar contos, ensaios e poemas em diversos pe-
riódicos como o Diário da Manhã e a Revista de Antropofagia. Mo-
dernistas como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, além de
amigos, foram referências marcantes do ambiente cultural de sua
geração.
Através das teorias de Freud, interessou-se na possibilidade de
relacionar a literatura com a medicina.
30 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
O cientista
Vivendo no Rio de Janeiro, Josué, a despeito do sucesso da clíni-
ca médica, resultado da viagem de estudos realizada a Roma, come-
ça, paulatinamente a se afastar da medicina exercida em seu consul-
tório.
Ao regressar, eu era o homem que tinha chegado da Europa. A clínica
abarrotou. Fui convidado para dirigir um departamento de nutrição. Não
pude aceitar. Ainda assim, a clínica já não me satisfazia. Faltava 15 dias em
cada 30 de trabalho, no consultório. O que eu queria era escrever a Geogra-
fia da Fome.
Durante a guerra, participou da Comissão de Mobilização Nacio-
nal, escreveu uma grande quantidade de artigos sobre alimentação e
pesquisou o que havia sido até então publicado sobre alimentação e
fome.
Neste momento, Josué mostrava grande amadurecimento, não
só quanto a seus objetivos, como também do ponto de vista científi-
co. Indagado sobre se a ciência deve estar a serviço do social, assim se
expressou:
Claro que sim. A ciência e a técnica são duas outras expressões do mesmo
rosto da cultura e só significam alguma coisa como traços componentes
deste mesmo rosto. Isoladas, perdem toda a expressão. Temos uma com-
provação desta verdade no que se passou nestes últimos anos. A ciência
pura em sua expressão máxima de aparente alheamento ao mundo das
realidades sociais, – a física teórica – em suas transcendentes especulações
deu lugar a descobertas que estão subvertendo, por completo, todos os
princípios e valores de nossa civilização, com ameaças e esperanças que
abalam a consciência social do mundo inteiro. A bomba atômica derru-
bou os últimos muros que ainda podiam separar os homens de laboratório
dos homens da rua.
Foi diante desta situação que resolvemos encarar o problema sob uma nova
perspectiva, de um plano mais distante, donde se possa obter uma visão
panorâmica de conjunto, visão onde alguns pequenos detalhes certamente
se apagarão, mas na qual se destacarão, de maneira compreensiva, as liga-
ções, as influências e as conexões dos múltiplos fatores que interferem nas
manifestações do fenômeno. Para tal fim pretendemos lançar mão do mé-
todo geográfico no estudo do fenômeno da fome. Único método que, a
nosso ver, permite estudar o problema em sua realidade total, sem arreben-
tar-lhe as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras outras manifes-
tações econômicas e sociais da vida dos povos.
Utilizou o método geográfico, no estudo do fenômeno da fome.
“Não o método descritivo da antiga geografia, mas o método
interpretativo da moderna ciência geográfica”.
Neste nosso ensaio de natureza ecológica tentaremos, pois, analisar os há-
bitos alimentares dos diferentes grupos humanos, ligados a determinadas
áreas geográficas, procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as
causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com suas
falhas e defeitos característicos, e, de outro lado, procurando verificar até
onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferen-
tes grupos estudados.
Assim, quando indagado sobre quais os motivos que o levaram
ao planejamento desta obra, respondeu:
A convicção a que fomos conduzidos em nossos estudos da importância
categórica do fenômeno da fome na formação e evolução dos grupos hu-
manos, importância que cresceu tremendamente em nossos dias de tão
acirradas lutas econômicas e sociais no mundo inteiro. Temos a impressão
de que não é possível promover-se a reconstrução do mundo dividido por
blocos antagônicos, sem limpar do mundo estas terríveis manchas negras
representadas por grupos de populações subnutridas e famintas,
inferiorizadas ao máximo, pela falta permanente de uma alimentação ade-
quada. E todo plano para remediar esta angustiosa situação na qual se
encontra, segundo dados estatísticos bem apurados, mais da metade de
seres humanos só surtirá efeito se for baseado num conhecimento intensi-
34 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
O professor
O exercício do magistério iniciou-se como atividade complemen-
tar ao trabalho do médico. Entretanto, ao longo do tempo, não só
Josué foi tomando gosto pelas aulas como também percebeu a im-
portância das mesmas para o desenvolvimento de seus estudos. Gos-
tava, também, do contato com os jovens. Assim, o magistério foi
ocupando um espaço cada vez maior em sua vida.
Fundou, na década de 1930, com vários companheiros, uma
Faculdade de Filosofia em Recife. Neste período foi professor da
Faculdade de Medicina (Fisiologia) e da de Filosofia (Geografia
Humana).
Um ensaio produzido em 1948 para o concurso de professor
titular em Geografia Humana, “Fatores da localização da cidade do
Recife”, demonstra sua vocação didática. Acrescente-se o livro Geo-
grafia Humana voltado para o curso secundário.
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ALIMENTAÇÃO E GRAVIDEZ
Normalmente, a mulher come menos que o ho-
mem, mas, quando a mulher está grávida precisa
comer por ela e pelo filho que se desenvolve por
nove meses em sua barriga.
Depois, quando nasce a criança, a mulher deve
alimentar seu filho pela amamentação. O leite ma-
terno é o alimento mais completo para a criança em
sua primeira idade. E, para poder alimentar seus
filhos, a mulher tem que procurar se alimentar com
bons alimentos. (Ver os dados sobre o leite de va-
cas bem alimentadas e nutridas).
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A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS
A terra no Brasil. A concentração na mão de pou-
cos. O latifúndio improdutivo e a monocultura. Os
terrenos para plantio podem ser mais pobres ou
ricos. A terra precisa ser tratada para poder produzir
bem e continuadamente. Precisa ser adubada e
molhada. A água e o adubo são os alimentos da
terra, fazem a terra viver. Precisamos saber como
preparar o terreno e os canteiros. Hoje, também é
importante saber escolher as sementes.
O político
Na década de 1950, Josué candidata-se à Câmara Federal pelo
Estado de Pernambuco. Não consegue eleger-se na primeira tentati-
va. Insiste, e em 1954, consegue sua primeira eleição. Resultado que
se repete em 1958.
Fui deputado duas vezes. Oito anos. Na segunda eleição, em 1958, tive a
maior votação no Estado. Só na capital, vinte e tantos mil votos. Sabe a
que devo essa vitória? Ao povo votando numa idéia, a luta contra a fome.
Assim justificou sua candidatura durante seu segundo ano de
mandato:
Quando me candidatei, fi-lo com a grande esperança de poder trazer ao
Parlamento Nacional a modesta experiência que tenho dos problemas de
nosso povo, das suas condições de vida, que venho estudando há 25 anos.
Aqui chegando, verifiquei a minha falta de preparo. Foi por isso que du-
rante um ano, em lugar de apresentar projetos, tratei de aprender, de estu-
dar, de observar e de me preparar para realizar, dentro de minhas modestas
possibilidades o que penso fazer este ano: apresentar uma série de projetos
interdependentes sobre os problemas agrários do Brasil.
No exercício dos mandatos pôde desenvolver sua já brilhante
oratória, reconhecida até por adversários. Entretanto, embora gos-
tasse da polêmica e da provocação, que lhe proporcionavam a opor-
tunidade de exibir sua oratória, não conseguia inserir-se no jogo de
interesses pessoais e às vezes mesquinhos que a vida partidária acaba
exigindo. Era um idealista, um sonhador, além de um homem de
ciência.
Vale a pena relembrar parte de seu discurso por ocasião das co-
memorações do dia panamericano:
O panamericanismo que no dia de hoje comemoramos, constitui, sem
sombra de dúvida, um movimento de ação política internacional, que, por
suas origens merece a simpatia e a consideração de todos os povos deste
continente sinceramente interessados numa política de autêntica solidarie-
dade e de ajuda mútua para superar as dificuldades continentais. Não se
pode esquecer que este movimento se originou e tomou consistência como
42 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
O pessoal habilitado através destes cursos deverá, por outro lado, possuir
garantias na execução de seu trabalho profissional, donde a necessidade de
uma regulamentação do exercício da profissão de dietista ou nutricionista.
Comentava-se à época que seu nome teria sido cogitado para
ocupar o Ministério da Agricultura, no lugar de Mário Menegueti.
Também há controvérsias sobre uma possível candidatura sua à Pre-
feitura do Recife.
Embora tenha declarado, em inúmeras oportunidades, que o traba-
lho no Parlamento não o encantou, sua passagem pelo Legislativo Fede-
ral foi significativa para a história das políticas públicas. Graças a seu
empenho como presidente da Comissão de Saúde da Câmara dos De-
putados, foi implantada a Campanha Nacional de Merenda Escolar.
O cidadão do mundo
A repercussão de Geografia da Fome, tornou seu autor o nome
mais cotado para representar o Brasil em organismos internacionais
ligados a questões alimentares. Ingressa na Organização para Alimen-
tação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) em 1948, como mem-
bro de seu Conselho Consultivo. Em pouco tempo será eleito presi-
dente do Conselho Executivo da FAO, cargo que exerce por dois
mandatos consecutivos, de 1952 a 1955.
Meu competidor era Lord Bruce, da Inglaterra. Eu venci por 34 a 30 vo-
tos, depois de um empate no primeiro escrutínio (…) Imagine a emoção
de me ver sentado na cadeira da Presidência, olhar um a um os represen-
tantes das grandes potências e recordar os mocambos do Recife onde se
reproduzia o ciclo do caranguejo e onde vivem outros meninos de rua
iguais ao menino que eu tinha sido.
No exercício da presidência do conselho da FAO, Josué de Cas-
tro empreende uma série de trabalhos no combate à fome no mun-
do, sempre buscando articular os conhecimentos técnico-científicos
para a elaboração de planos de ação. Em sua concepção, qualquer
projeto de intervenção na sociedade deveria estar muito bem
alicerçado em estudos previamente realizados, e esta ação deveria ser
monitorada por estudos avaliativos constantes. Buscou intensificar a
ajuda aos países subdesenvolvidos, não só através de programas e
projetos de desenvolvimento, mas cobrando das nações desenvolvi-
das suas responsabilidades frente aos desequilíbrios regionais, tradu-
zidos na formação de imensos bolsões de miséria em determinadas
áreas do planeta, contra as pequenas ilhas de abundância.
Na medida em que assumia a condição de porta-voz do Terceiro
Mundo, enfrentou forte oposição dos países desenvolvidos, especial-
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O homem
Cresci ouvindo falar de fome desde a mais tenra idade. A princí-
pio como mera e atenta ouvinte, depois como jovem interessada e
finalmente como cientista social, fascinada pelo tema e por suas idéias.
Ao longo de minha vida sempre tive grande dificuldade de escrever
sobre Josué de Castro, na condição de sua filha. Talvez pela formação
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8 de setembro de 1964
Minha filha:
Li as duas cartas que você mandou para sua
mãe de 1 e de 2 de agosto. Gostei muito do tom das
mesmas. Tom de revolta certamente, mas de uma
revolta consciente de tudo o que se está passando,
das razões que determinam todos os atos de van-
dalismo de uma reação desesperada por ter sido
desmascarada pelo processo social em marcha. Gos-
tei muito de sua disposição de participar do proces-
so, de pagar a sua quota pela emancipação do povo
contra o clique dos seus aproveitadores, associa-
dos aos parasitas militares. Gostei, também, do seu
estado de espírito no que diz respeito a minha situa-
ção pessoal e à situação dos meus nas circunstâncias
do momento. Estou com você, não só tudo irá pas-
sar, mas capitalizaremos a única forma de capital
que deve ser acumulado ao máximo – o respeito à
dignidade humana. Seremos cada vez mais respei-
tados. Pelo menos no mundo, onde o respeito que
nos votam compensa o desrespeito em que se vive
hoje no Brasil, conspurcado e aviltado aos olhos do
mundo.
Recebi, também, sua carta de parabéns pelo ani-
versário, a qual me deu grande alegria. Senti você
toda nesta carta. Nela você insiste no mesmo ponto,
que a vida é para ser vivida com o bom e o mau, mas
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estes não serão mais que monstros ou, em virtude das mutações que
surgirão, pais de monstros.
É inevitável que eu apresente um quadro da situação de um pes-
simismo negro. Contudo, apresso-me a acrescentar que, se o perigo é
sério, a ameaça que pesa sobre nós é apenas latente. E, se afastarmos
a hipótese do conflito atômico, pode-se considerar que essa elastici-
dade da natureza de que lhes falei há pouco, ainda está muito longe
de estar totalmente ameaçada. A hipótese de um desaparecimento
do homem, da civilização, não passa de uma hipótese remota.
Depoimentos
fome dos menos afortunados – fome que nunca foi assunto muito
popular em matéria de política. E, no entanto, a fome tem sido,
através dos tempos, a mais perigosa das forças políticas. Foi a fome
que precipitou a Revolução Francesa. Uma multidão de mulheres
dos cortiços de Paris marchou até a sede do Parlamento, bradando
por pão. Os políticos fugiram. As mulheres, com suas hostes reforça-
das pelos homens, rumaram para a Bastilha. A queda da Bastilha foi
o golpe de morte contra o sistema feudal na França, iniciando uma
nova era. Na atual crise mundial, um livro como a Geopolítica da
Fome é de vital importância. Se os políticos de todas as nações do
mundo pudessem esquecer por um momento os seus conflitos polí-
ticos e lessem Geopolítica da Fome, sem idéias preconcebidas, adqui-
ririam certamente uma visão mais sadia dos problemas universais e
teriam, assim, maior possibilidade de salvar nossa civilização de pere-
cer numa terceira guerra mundial. (…)
A palavra “fome”, usada pelo autor, precisa ser bem definida. No
passado, empregava-se a palavra “fome” para exprimir a falta de ali-
mentos para a satisfação do apetite e o número de mortos pela fome
restringia-se então aos indivíduos esquálidos que morriam por com-
pleta inanição. Josué de Castro, porém, usa essa palavra no seu senti-
do moderno, no sentido da falta de quaisquer dos 40 ou mais ele-
mentos nutritivos indispensáveis à manutenção da saúde. A falta de
qualquer deles ocasiona morte prematura, embora não acarrete, ne-
cessariamente, a inanição por falta absoluta de alimento. A carência
total de alimento, tal como se verifica nas épocas de fome em massa,
sempre constituiu uma causa importante de mortalidade. Mesmo
nos últimos tempos, a fome tem matado mais gente do que a própria
guerra. Mas o número dos que assim morrem ainda é pequeno, em
comparação com os que vivem num regime alimentar inadequado
para manter a saúde e que, por isso mesmo, sofrem, em maior ou
menor grau, de doenças da nutrição. Dando-se à palavra “fome” essa
acepção, de acordo com as estimativas feitas antes da guerra, dois
terços da população do mundo vivem em regime de fome (…)
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Olívio Montenegro
Escritor e crítico literário
O Sentido Humano da Obra de Josué de Castro (1958)
Em Josué de Castro o escritor deu sempre o melhor relevo ao
homem de ciência que nunca deixou de ser. Geografia da Fome e
Geopolítica da Fome foram, sem dúvida, nos últimos tempos, os
dois livros brasileiros mais traduzidos nos países do velho e do novo
continente. Em ambos, essas obras conquistaram, quer nos Esta-
dos Unidos, quer na Rússia, prêmios magníficos, que constituí-
ram, para o seu autor, título de uma excepcional consagração e que
tanto havia de dar um luminoso relevo aos seus 50 anos de idade
com grande parcela de trabalhos a serviço do homem, deste ou de
outros continentes. A crítica estrangeira, na sua maior parte, foi de
louvor, de rasgado louvor à obra deste ainda moço cientista brasi-
leiro (…)
No livro Geografia da Fome, o que sobretudo nos mostra o autor
é o cemitério enorme, essa desolação infernal em que o egoísmo do
homem ameaça transformar toda a natureza física do mundo. E daí,
certamente, a nova e estranha geografia, chamada da fome, que abar-
ca quase todo o globo terrestre, e que vemos agora, depois de minu-
ciosamente estudada por Josué de Castro, ser objeto de interesse nos
quatro cantos do mundo. Um dos quadros que o autor pinta em
cores de um pungente, mas justo realismo é o da vida da Amazônia
no Brasil. Um quadro trágico.
Mas o autor revela-se de uma segurança admirável quando chega o
momento de apontar os meios racionais, os meios práticos de reduzir a
um mínimo de sacrifícios os horrores da tragédia amazônica, senão
mesmo de transformar essa tragédia num maravilhoso surto de vida.
68 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Não são impossíveis aos homens esses meios, ainda que requeiram
um vigoroso programa: “Os melhoramentos – diz o autor – das condi-
ções alimentares regionais exigem todo um programa de transforma-
ções econômicas e sociais. As soluções dos aspectos parciais do proble-
ma estão ligadas à solução geral de um método de colonização adequa-
da. Sem alimentação suficiente, a Amazônia será sempre um deserto
demográfico”. É que, na Amazônia, como bem acrescenta ainda o au-
tor: “as águas e a floresta é como se tivessem feito um pacto ecológico
para se apossar de todas as riquezas da região”. Um traço simpático dos
livros do Sr. Josué de Castro é o de que, embora sendo de especializa-
ção, o leitor nem por isto está menos à vontade dentro deles, sem
passar a todo instante, em face de nomes agressivamente técnicos, pelo
vexame de sentir-se mais ignorante do que convém à sua humildade
cristã. Porque, em geral, um dos vícios mais comuns dos nossos livros
de ciência é serem eruditos demais, de um saber muito pesado nas
palavras ainda que muito leve no espírito que os conduz, como se fosse
uma ciência menos para instruir do que para “espichar” o leitor…
Nos livros de Josué de Castro negue-se o que quiser, menos, po-
rém essa sensibilidade humana que os penetra como uma flama ge-
nerosa, exaltando em dramática realidade o problema da fome no
Brasil e no mundo.
O crítico de La revue des auteurs et des livres marca bem essa força
humana da obra de Josué de Castro quando põe em alto relevo o que
nela existe “de um humanismo superior ao humanismo da maioria
dos romances (caso da Geografia da Fome) por isto mesmo que se
trata aqui de uma humanidade mais verdadeira”. E não é esta uma
opinião isolada. Este sentido humano da obra de Josué de Castro é,
da mesma maneira, exaltado por vários outros críticos franceses que
se ocuparam deste escritor. Compreende-se, daí, que esses livros te-
nham sido traduzidos em várias línguas – no francês, tanto como no
espanhol, no polonês, no sueco. E este poder enorme de comunica-
ção decerto que vem menos do temperamento científico da obra que
do temperamento humano do autor.
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 69
Max Sorre
Professor da Universidade de Sorbonne, Paris, França
A Fome sem o Véu Discreto da Fantasia (1953)
Em seu livro Geopolítica da Fome, o professor Josué de Castro apre-
senta um dos aspectos mais prementes, e sem dúvida, o mais trágico
desta geografia da alimentação que é o capitulo inicial de toda a geo-
grafia humana. Realmente, a importância de tais problemas não era
desconhecida dos entendidos do assunto. Existe muito de humanida-
de profunda na obra de um E. Réclus ou de um Vidal de La Blache,
para que não se tivesse deles uma clara consciência. Na verdade, nossos
antigos mestres não estavam enganados a respeito dos tabus que Josué
de Castro denuncia. Todavia, ele tem muita razão quando afirma que
o comum dos geógrafos, e, principalmente, o comum dos homens,
preferia nada dizer a propósito desse assunto. E muitos há que lança-
vam um véu discreto sobre essas feias perspectivas. Eis que, apesar dis-
so, nós, civilizados, vimos levantar-se, à nossa frente, o espectro horrí-
vel da fome. Coisa que não se imaginaria há 20 anos passados: temos
tido fome como nossos avós tiveram fome. Os quadros mais sombrios,
os quais estávamos inclinados a não encontrar senão na literatura, re-
tomaram, a nossos olhos, cor e realidade. Viram os médicos o apareci-
mento, nos hospitais da Europa ocidental, de moléstias estranhas, cujas
causas mal conheciam. Não foi preciso menos para que uma verdade
elementar se tornasse, enfim, sensível: as necessidades alimentares ja-
mais foram satisfeitas de um modo permanente, senão para uma
pequeníssima parte da humanidade. Os demais têm vivido de maneira
precária, à margem da subalimentação. Enquanto as grandes fomes
flagelavam regiões que são como que as terras clássicas da fome, a ameaça
da escassez periódica rondava em torno de numerosos grupos, e a ação
insidiosa dos desequilíbrios dos regimes e das carências atingia profun-
damente os outros em sua vitalidade. Datam apenas de ontem nossos
conhecimentos sobre as moléstias de carência – o que vale dizer, sobre
as formas menos espetaculares, porém não menos perigosas, duma certa
espécie de fome.
70 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Russel Lord
Escritor e jornalista, Nova York, Estados Unidos
Não Há Necessidade de Malthusianismo (1958)
O Dr. Josué de Castro, fundador do Instituto de Nutrição da
Universidade do Brasil, na sua vibrante réplica aos neomalthusianos,
escolheu William Vogt, cujo Road to survival (Caminho da sobrevi-
vência), foi publicado em 1948, como seu principal antagonista. Ele
apresenta provas, das quais algumas são novas, para demonstrar que
embora 2/3 da humanidade sofram fome, no momento atual, este
regime de fome e desnutrição não pertence à categoria dos incuráveis
ou inevitáveis.
72 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Rachel de Queiroz
Escritora e jornalista
Fome, Ciência e Ficção (1946)
Diante de certos livros é que a gente vê como é fácil e sem impor-
tância o ofício de literato. Sim, são realmente os cientistas que nos
botam complexo de inferioridade. Porque afinal de contas fazer lite-
ratura não é mais do que coisa gratuita e à toa, anotar impressões,
traduzir um estado de alma, ou relatar algum sucesso havido, sempre
deformado. Em suma: tudo improvisação, falsificação, fingimento.
Mas escrever um livro que informe, ensine, descubra verdades
encobertas ou controvertidas, isso sim, representa, na realidade, um
mundo de honestidade, esforço, labuta, rigor – além do talento na-
tural que exige em grandes doses.
E é pois o sentimento da minha inidoneidade que me afeta ao
tentar um comentário em torno do livro do ilustre professor Josué de
Castro: o Geografia da Fome.
É essa obra um estudo da fome no Brasil – aliás o primeiro volu-
me de uma série de estudos do fenômeno “fome” no mundo inteiro.
Assunto pouco explorado, pouco discutido, pois como diz o autor
no prefácio, é tema bastante delicado, perigoso, que repugna – um
dos tabus da nossa civilização. Entre gente como nós, os ditos “artis-
tas da pena”, quando se fala em fome e miséria, ou carência endêmica
Marcel Niedergang
Jornalista, Paris, França
A Fome dos Outros (1953)
No começo, havia a fome. Através dos séculos, o homem se bate
com a natureza para dela arrancar a própria subsistência. Hoje, con-
templa, com orgulho, o universo mecanizado que ele domesticou e
no entanto, a fome permanece. Está cientificamente demonstrado
que cerca de dois terços da população do mundo vivem num estado
permanente de fome, mas as classes bem nutridas e os povos saciados
não gostam de falar acerca da fome dos outros.
Neste sentido é que vem muito a propósito o aparecimento da
Geopolítica da Fome, de Josué de Castro. Nunca, na verdade, se falou
tanto de paz, de justiça social e de liberdade em escala universal, mas
também nunca foi tão esquecido o fato de que essas grandes palavras
não têm sentido para aqueles cuja única liberdade é, muitas vezes, a
de morrer lentamente de fome. Felicitações calorosas devem ser da-
das ao ilustre sociólogo brasileiro, ex-presidente do Conselho da
76 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Conferência, Bélgica
União Soviética, 1954
Discurso de posse do novo presidente da FAO, 1951
1964
1967
1969
TEXTOS ESCOLHIDOS
DE JOSUÉ DE CASTRO
1. O CICLO DO
CARANGUEJO
que desse para a família viver com casa, roupa e comida. Casa só de
80 mil réis para cima, para comida uns 150 e os salários sem passa-
rem de 5 mil réis por dia.
Começou o arrocho. Só havia uma maneira de desapertar: era
cair no mangue. No mangue não se paga casa, come-se caranguejo e
anda-se quase nu. O mangue é um paraíso. Sem o cor-de-rosa e o
azul do paraíso celeste, mas com as cores negras da lama, paraíso dos
caranguejos.
No mangue o terreno não é de ninguém. É da maré. Quando ela
enche, se estira e se espreguiça, alaga a terra toda, mas quando ela
baixa e se encolhe, deixa descobertos os calombos mais altos. Num
deles, o caboclo Zé Luis levantou o seu mocambo. As paredes de
varas de mangue e lama amassada. A coberta de palha, capim seco e
outros materiais que o monturo fornece. Tudo de graça encontrado
ali mesmo numa bruta camaradagem com a natureza. O mangue é
um camaradão. Dá tudo, casa e comida: mocambo e caranguejo.
Agora, quando o caboclo sai de manhã para o trabalho, já o resto
da família cai no mundo. Os meninos vão pulando do jirau, abrindo
a porta e caindo no mangue. Lavam as ramelas dos olhos com a água
barrenta, fazem porcaria e pipi, ali mesmo, depois enterram os bra-
ços lama a dentro para pegar caranguejos. Com as pernas e os braços
atolados na lama, a família Silva está com a vida garantida. Zé Luis
vai para o trabalho sossegado, porque deixa a família dentro da pró-
pria comida, atolada na lama fervilhante de caranguejos e siris.
Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se a
terra foi feita para o homem, com tudo para bem servi-lo, também o
mangue foi feito especialmente para o caranguejo. Tudo aí, é, foi ou
está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A
lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré
traz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce
nela, vive dela. Cresce comendo lama, engordando com as porcarias
dela, fazendo com lama a carninha branca de suas patas e a geléia
esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado o povo daí vive
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2 Winslow, E. A.: The Cost of Sickness and the price of Health, Genevè, 1951.
3 Nurkse, Ragnar: Some aspects of Capital Accumulation in Underdeveloped Countries,
Cairo, 1952.
130 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
sei. Tudo o que sei é que, neste livro, se conta a história de uma vida
diante do espetáculo multiforme da vida. A história da vida de um
menino pobre abrindo os olhos para o espetáculo do mundo, numa
paisagem que é, toda ela, um braço de mar – um longo braço de um
mar de misérias.
O tema deste livro é a história da descoberta da fome nos meus
anos de infância, nos alagados da cidade do Recife, onde convivi
com os afogados deste mar de miséria. Procuro mostrar neste livro
de ficção que não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra univer-
sidade sábia, que travei conhecimento com o fenômeno da fome.
O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos man-
gues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife:
Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta é que foi a minha
Sorbonne: a lama dos mangues do Recife, fervilhando de caran-
guejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejos,
pensando e sentindo como caranguejo. Seres anfíbios – habitantes
da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na
infância com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres huma-
nos que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que apren-
diam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama e que
depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se terem
enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se te-
rem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca
mais se podiam libertar desta crosta de lama que os tornava tão
parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com as suas duras cara-
paças também enlambuzadas de lama.
Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se as-
semelhando em tudo aos caranguejos. Arrastando-se, acachapando-
se como os caranguejos para poderem sobreviver. Parados como os
caranguejos na beira da água ou caminhando para trás como cami-
nham os caranguejos.
É por isso que os habitantes dos mangues, depois de terem um
dia saltado dentro da vida, nesta lama pegajosa dos mangues, dificil-
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Eu fui lá na ponta
Eh! Bumba!
Ela de mim não fez conta
Eh! Bumba!
limites fixados pelas leis dos equilíbrios naturais, sob pena de provo-
car graves e, às vezes, fatais rupturas nos ecossistemas.
Os desequilíbrios extremos a que foi arrastado o Terceiro Mundo
constituem, por causa do jogo das inter-relações ecológicas, uma
ameaça para toda a biosfera e assim, ipso facto, para toda a espécie
humana. A fome do Terceiro Mundo pode um dia chegar a provocar
uma peste generalizada, e a sublevação dos famintos pode levar o
mundo inteiro à guerra, se consideramos estes dois problemas: fome
e guerra, como formas de um desequilíbrio dinâmico do meio
soioeconômico.
Não devemos considerar apenas a ação indireta do desenvolvi-
mento sobre o Terceiro Mundo, ação que é mais econômica e cultu-
ral do que puramente física ou natural; devemos nos inquietar tam-
bém com a ação direta: o esbanjamento inconsiderado dos recursos
naturais não renováveis e as rupturas biológicas dos subsistemas eco-
lógicos.
O Terceiro Mundo está sob a ameaça permanente de ver introdu-
zidos tipos de desenvolvimento tecnológicos que, desdenhada a di-
mensão ecológica, podem provocar uma desagregação total de sua es-
trutura. Se levarmos em conta a relativa fragilidade de alguns
ecossistemas equatoriais e tropicais, onde se agrupa a maior parte dos
países do Terceiro Mundo, este perigo adquire maior gravidade ainda.
Ninguém ignora a grande fragilidade do solo nestas regiões devi-
do, sobretudo, à erosão provocada pela exploração abusiva do manto
vegetal. Ninguém ignora que os transbordamentos dos rios tropicais
são controlados por diques vegetais de diversos tipos que orientam o
curso. Por conseguinte, a destruição dessa vegetação provoca inun-
dações e estancamentos de águas, que acarretam graves conseqüências:
da perda dos cultivos agrícolas inundados até a disseminação endêmica
de algumas doenças transmitidas por insetos que proliferam nas águas
estancadas.
Será que basta a constatação de que o progresso tecnológico e o
crescimento econômico atualmente destroem o meio ambiente do
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