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FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES: PRIMEIRA E SEGUNDA

SEÇÃO

Caroline Araújo Chucre de Lima 1

INTRODUÇÃO

Em linhas gerais, o principal objetivo de Kant na obra é alcançar um grau plausível de


racionalidade na ética, ou seja, uma objetividade traduzida na necessidade (obrigatoriedade) e
na universalidade de seus princípios. Assim, a sua principal questão parece ser “Como pensar
a ética de forma objetiva, isto é, universal e necessária?”

Logo no prefácio, o autor indica o sentido geral do título da obra e dá alguns


direcionamentos sobre o seu conteúdo. Basicamente, sustenta que trata da busca por um
princípio supremo da moralidade, isto é, se é possível um sistema moral supremo, autônomo.
Por isso utiliza o termo “Fundamentação”. Resta claro que o termo “Costumes” é usado como
equivalente a “moral”. “Metafísica” se refere a uma esfera de princípios não físicos, isto é,
apriorísticos, não acessíveis pela experiência. Está-se, pois, buscando-se construir
(fundamentar) um sistema filosófico moral (dos costumes) ancorado em princípios de razão
pura (metafísicos).

No final do prefácio, Kant esclarece sobre qual método pretende seguir na primeira e
segunda seção (três seções compõem o livro no total, das quais só importam a primeira e a
segunda para fins desta disciplina). Na primeira seção, intitulada “Transição do conhecimento
moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico”, o método é analítico: o autor pretende
analisar a consciência moral comum até concluir o seu princípio filosófico (regra de
funcionamento, que se revelará o imperativo categórico). Na segunda seção, intitulada
“Transição da filosofia moral popular para a Metafísica dos costumes”, Kant pretende
demonstrar como, partindo da faculdade da razão prática, também se chega ao imperativo
categórico.

1. PRIMEIRA SEÇÃO

Na seção primeira, o autor parte de uma proposição inicial para concluir três
proposições posteriores. A proposição inicial que Kant utiliza como base para as posteriores é

1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará.
a de que “Não é possível em geral pensar em nada no mundo, sim, mesmo também fora deste,
que pudesse ser tido por bom sem restrição, a não ser tão-somente uma boa vontade” (KANT,
2014, p. 21). Ora, Kant parte do pressuposto de que este conceito “já se encontra no bom
senso natural e não precisa ser ensinado quanto apenas esclarecido” (KANT, 2014, p. 26).
Isso significa que a boa vontade enquanto boa sem restrição é tida para Kant como um fato
óbvio que pode ser facilmente observado na moralidade do senso comum: quando querem se
referir a juízos morais, as pessoas utilizam termos em sentido gramaticalmente absoluto, que
indicam a existência de algo bom sem restrição.

Dessa premissa inicial, resta claro que ao julgarmos uma ação de modo moral, é a
vontade determinadora da ação o que nós julgamos moral. Afirma Tugendhat (2003, p. 109):

“a constatação expressa na primeira proposição da 1ª seção é uma reprodução


correta de uma característica fundamental de toda consciência moral, e deve-se
aguardar que se esclareça como Kant pode pensar em tirar dali somente conclusões
que levem ao imperativo categórico”.

Em síntese, a proposição inicial é que só da vontade podemos dizer que seja boa
simplesmente. Essa vontade, será esclarecido mais a frente, é uma vontade pura: a vontade de
fazer a coisa certa.

Ainda, Kant esclarece que o conceito de dever contém em si o de boa vontade. Como
já foi visto anteriormente, a expressão “dever” indica uma necessidade prática que, se tida em
si mesmo, será uma necessidade prática moral. Podemos dizer que agimos de boa vontade
quando agimos por dever (agimos simplesmente por que deveríamos agir, e não por que
queríamos alcançar qualquer resultado por meio da ação).

A partir dessa idéia inicial, Kant formula três proposições: a primeira nos parágrafos
9-13, a segunda no parágrafo 14 e a terceira nos parágrafos 15-16. A primeira proposição diz
respeito ao motivo a partir do qual uma pessoa tem de agir para que sua ação seja considerada
moral: a ação moral será aquela motivada por uma vontade pura (boa vontade), por dever. De
forma geral, podemos agir: (i) de forma flagrantemente contrária ao dever; (ii) de forma
veladamente contrária ao dever, quando aparentemente agimos de forma devida mas por
motivações egoístas – chamada de ação conforme o dever, que possui consequências boas
mas se dá por inclinações, desejos e etc. ; ou (iii) por dever, de forma que a nossa motivação é
predominantemente a boa vontade – agimos de forma X simplesmente por que é o certo a se
fazer (TUGENDHAT, 2003, p. 111).

No último caso, quando agimos por dever, isso não significa que não somos
influenciados pelas nossas inclinações, mas apenas que não estamos subordinados a elas.
Significa que, ainda que todas as minhas inclinações apontem para ações imorais, eu agirei
moralmente e por dever. Nas palavras de Tugendhat (2003, p. 114):

“Irrestritamente boa, assim foi visto, somente a boa vontade pode ser [proposição
inicial com a qual Kant abre a primeira seção]. Daí seguia corretamente que só
podem ser boas ações que não são apenas de acordo com o dever, mas sucedem por
dever e isto quer dizer por causa do bem. Se agora se diz ainda, não poder, o valor
da ação, ser adicionalmente influenciado por inclinações, então isto quer dizer
apenas justamente não poderem de modo algum outros fatores desempenhar uma
função, com outras palavras, que só pode ser boa a ação, cujo único motivo é o
dever (o bem), ou, formulado com mais cautela: *mesmo que possam estar em jogo
outros motivos (inclinações), para a avaliação moral das ações só é relevante, se o
motivo moral foi decisivo*.”

Em síntese, a primeira proposição sugere que o motivo decisivo de uma ação deve ser
imediatamente o dever – a própria obrigação – para que ela possua autêntico valor moral.
“[...] pode ser caracterizado como moral, e, portanto, como bom, somente o agir que é
determinado exclusivamente pela motivação moral” (TUGENDHAT, 2003, p. 121). Segundo
Kant, “A determinação imediata da vontade pela lei e a consciência desta determinação é o
que se chama respeito” (2014, p. 32), de modo que o respeito é o efeito da lei moral sobre o
sujeito, um sentimento que se produz a partir do agir por dever, que advém do valor moral da
ação.

A segunda proposição diz:

“Uma ação por dever não tem seu valor moral no objetivo a ser atingido por ela, mas
na máxima, de acordo com a qual ela é decidida. Não depende, portanto, da
realidade do objeto da ação, mas somente do princípio do querer, de acordo com o
qual ocorreu a ação independente de todos os objetos da faculdade apetitiva”
(TUGENDHAT, 2003, p. 124).

Isto significa que, se a vontade é boa sem restrição, ela não depende da realização de
um resultado para que seja considerada boa por que ela já o é naturalmente. Já que Kant
descarta que o agir moral seja regido em busca de resultados ou por meras inclinações, ele
entende que, na verdade, o que determina o agir moral é uma regra geral (máxima) chamada
de imperativo categórico. A regra do imperativo categórico informa o conteúdo do que é
moral e, por isso, é inteiramente necessária. O valor de uma ação moral não é oriundo dos
seus resultados no plano empírico, mas sim da sua derivação do imperativo categórico. O
conceito de bom não deve ser dado antes da lei moral, mas apenas segundo e por ela.

A terceira e última proposição a ser estudada nesse trecho do livro é uma conclusão
das duas anteriores: “Dever é necessidade de uma ação por respeito à lei” (TUGENDHAT,
2003, p. 129). Esta proposição não traz nada de novo, propriamente, mas apenas liga as duas
primeiras.

A partir disso, podemos nos perguntar: o que é um imperativo categórico? Como


chegar a um imperativo categórico? Como encontrar a lei moral que informa como eu devo
agir?

1.1. O QUE É UM IMPERATIVO?

Em primeiro lugar, o que devemos entender por imperativo? Imperativos são


enunciados. Mas não quaisquer enunciados, imperativos são aqueles enunciados que afirmam
que uma ação é necessária, que ela deve acontecer (ou seja, expressam a necessidade de uma
conduta, também chamada de necessidade prática). Para Kant, os imperativos são
mandamentos que “dizem que seria bom fazer ou deixar de fazer alguma coisa” (KANT,
2014, p. 39).

1.2. COMO RECONHECER UM IMPERATIVO?

Imperativos podem ser identificados pelo uso de dois grupos de expressões


imperativas (que ordenam uma conduta). O primeiro grupo é ter de/ dever (Ex. Fulano deve se
comportar de forma X) e o segundo é bom/mau (X é um bom comportamento).

1.3. QUAIS SÃO OS IMPERATIVOS POSSÍVEIS?

No geral, os imperativos podem ser relativos (hipotéticos) ou absolutos (também


chamados de categóricos). Se nós entendermos que imperativos ordenam uma ação, “Faça X”,
e então perguntarmos “Por que devo fazer X?”, podemos obter resposta em dois sentidos:
relativo ou absoluto. O sentido relativo que a resposta a essa questão pode assumir é “Você
deve fazer X para alcançar o resultado Y” ou ainda “Você deve fazer X para promover o seu
bem-estar”, ou seja, oferece um motivo externo para que você se comporte da maneira X (a
conduta é *boa para* determinado fim, caso em que o imperativo será chamado de
prudencial, ou a conduta é “boa para” o seu bem-estar, caso em que será chamado
assertórico). O segundo sentido é o absoluto “Você deve fazer X simplesmente porque X é o
certo a se fazer!” (a conduta é “boa”, simplesmente).

“Ponhamos, por exemplo, a questão seguinte: - Não posso eu, quando me encontro
em apuro, fazer uma promessa com a intenção de a não cumprir? Facilmente
distinguo aqui os dois sentidos que a questão pode ter: - se é prudente, ou se é
conforme ao dever, fazer uma falsa promessa.” (KANT, 2014, p. 33).

Nesse trecho, Kant se refere às duas formas fundamentais de lidar com um dilema
moral: de forma prudencial (relativa, por imperativo hipotético) ou de forma categórica
(absoluta, por imperativo categórico). Para ele, apenas o imperativo categórico informa a
resposta verdadeiramente moral à pergunta.

1.4. POR QUE ESSA DISTINÇÃO É TÃO IMPORTANTE PARA KANT?

Ao longo do Prefácio e da 1ª Seção da obra já indicada, Kant afirma várias vezes a sua
preocupação em restringir o estudo da moral ao campo da razão pura. Segundo ele, a idéia de
Filosofia Moral completamente depurada de tudo o que possa ser somente empírico é
conseqüência da própria natureza da moral, isto é, do caráter absoluto das obrigações morais
(expresso pelo uso de expressões gramaticais em sentido absoluto). Ao mesmo tempo, é
necessário que assim seja, pois as ações humanas estão sujeitas a todo tipo de perversões
enquanto lhes faltar uma norma suprema para o seu exato julgamento (no caso, uma lei
objetiva que informe se determinada ação é certa ou errada). Isso significa que a vantagem
buscada em ancorar a filosofia moral na razão pura é justamente a sua precisão.

Se fosse diferente, se a moral fosse fundada em imperativos relativos (tais como


propuseram os teóricos utilitaristas ou da ética das virtudes), seria contingente e incerta. Kant
enxerga na busca de motivos exteriores à conduta fragilidades do tipo: Se aceitarmos que
“Fulano não deve roubar para que não seja punido”, também estamos aceitando que, caso, por
algum motivo, a punição deixe de existir, Fulano passe a estar autorizado a roubar. Essa
imprecisão é superada quando estabelecemos pura e simplesmente que “Fulano não deve
roubar”, sem acrescentar um motivo, mas simplesmente proibindo-o de roubar, Nesse caso,
Fulano não estará autorizado a roubar em nenhuma hipótese.
Quando dizer, então, que uma pessoa tem caráter, que possui um bom caráter ou,
ainda, que é uma boa pessoa? Para Kant, é aquela pessoa que é guiada pela boa vontade
independentemente das circunstâncias. Quando as nossas inclinações apontam em sentido
oposto ao dever, o nosso caráter é verdadeiramente testado. Só quando alguém age por dever,
muito embora em sacrifício de suas inclinações, é que resta comprovado que a razão dominou
o desejo e, exatamente por isso, podemos saber que tal ação possui autêntico valor moral. O
caráter é, portanto, a firme disposição de querer agir pela moral.

2. SEGUNDA SEÇÃO

“Cada coisa da natureza atua de acordo com leis. Somente um ser racional tem a
faculdade de agir de acordo com a representação das leis, isto é, de acordo com
princípios, quer dizer, tem uma vontade. Como para a derivação de ações a partir de
leis é exigido razão, assim a vontade não é nada mais que razão prática” (KANT,
2014, p. 47).

Como já foi adiantado, o método adotado por Kant na segunda seção foi o sintético: “o
conceito do dever não é mais pressuposto ou derivado analiticamente de intuições dadas, e
sim deve ser um resultado, desde que se investigue suficientemente a faculdade da razão
prática” (TUGENDHAT, 2003, p. 132). Nesta seção, Kant apresentará o procedimento a
partir do qual construir leis gerais morais, os imperativos categóricos. O procedimento é
composto pela observância de três fórmulas.

2.1. AS FÓRMULAS DO IMPERATIVO CATEGÓRICO

Para que seja elevada ao status de imperativo categórico, uma máxima deve estar de
acordo com três fórmulas: a da universalidade, da humanidade e da autonomia.

(i) Fórmula da universalidade: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas
ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2014, p. 59). Para que essa
etapa seja satisfeita, é necessário que a máxima possua adequação interna (não seja
contraditória) e coerência externa (eu posso racionalmente querer transformá-la em legislação
universal). Ou seja, a máxima precisa ser possível de conceber (adequação interna) e possível
de querer (coerência externa). Em síntese, essa primeira fórmula implica que todas as
condutas que não possamos desejar que se tornem legislação universal devem ser rejeitadas:
não são condutas moralmente corretas.
(ii) Fórmula da Humanidade: “Age de tal maneira que uses a tua humanidade,
tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como
fim e nunca simplesmente como meio” (KANT, 2014, p. 69). Essa fórmula implica na
rejeição de qualquer conduta que tome o ser humano meramente ou exclusivamente como um
meio, como um instrumento, pois isso significa equipará-lo a outros seres irracionais e
desprezar o valor de sua racionalidade.

(iii) Fórmula da Autonomia: "Age de tal maneira que tua vontade possa encarar a
si mesma, ao mesmo tempo, como um legislador universal através de suas máximas”
(KANT, 2014, p. 74) ou ainda "Age como se fosses, através de suas máximas, sempre um
membro legislador no reino universal dos fins" (KANT, 2014, 82). A terceira fórmula
afirma que, para que seja considerada moral, uma conduta tem de ser autônoma e uma lei não
pode ser imposta, tampouco ter seu valor determinado por fatores externos a própria conduta
(circunstâncias heterônomas). Aqui, é exigido que o sujeito possua liberdade positiva, ou seja,
a capacidade de agir adequadamente às leis morais (leis dadas a ele mesmo por sua própria
razão) independentemente de quaisquer obstáculos interiores (desejos, inclinações de agir de
forma imoral) e exteriores (ordens, comandos de terceiros). Esse é o significado de autonomia
moral para Kant.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. ed. 2.Lisboa: Edições 70, 2014.

TUGENTHAT, Ernest. Lições sobre Ética. ed. 5. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.

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