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3ª
EDIÇÃO
O advogado
dos escravos
Luiz Gama
MULTICULTURAL
O advogado
dos escravos
Luiz Gama
Nelson Câmara
Apoio
MULTICULTURAL
São Paulo – 2016
3ª
EDIÇÃO REVISTA E AMPLIADA
O advogado
dos escravos
Luiz Gama
Copyright © 2010, 2016 by Nelson Câmara
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem a expressa
autorização do autor.
Diretor editorial
Décio Nascimento Guimarães
Editor da obra
José Augusto Altran
Diretora adjunta
Milena Ferreira Hygino Nunes
Coordenadora científica Giséle Pessin
Design
Fernando Dias
Capa
Montagem de ilustração de Luiz Gama, em bico de pena por Angelo Agostini e trecho de quadro
“Recife, capital de Pernambuco”, em meados da década de 1820, por Johann Moritz Rugendas.
Instituto Brasil Multicultural de Educação e Pesquisa - IBRAMEP Av. Alberto Torres, 229 - Sala 1101
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“Eu disse, uma vez, que a escravidão nacional nunca havia produzido um
Terêncio, um Epitecto, ou sequer, um Spártaco. Há, agora, uma exceção a
fazer: a escravidão, entre nós, produziu Luiz Gama, que teve muito de
Terêncio, de Epitecto e de Spártaco”.
Uma menção especial para meu amigo, cunhado e médico Paulo Eduardo
Rangel, estudioso e sempre interessado nos problemas sociais.
O livro que agora vem a lume, em sua terceira edição, além de destacar a
multifacetada personalidade de Luiz Gama, reúne as virtudes de poeta
sensível à capacidade da ironia mais fina na edição de jornais satíricos e de
crítica política, dedica-se então, a fixar a vertente mais marcante da vida do
biografado: a coragem e
Nelson Câmara
Esta é a faceta de Luiz Gama que o eterniza: O advogado dos escravos, título
da obra importante como documento que traz à tona, a prova do labor
contínuo de Nelson Câmara, fruto de intensa pesquisa nos Arquivos do
Tribunal de Justiça de São Paulo. O mais curioso e historicamente
fundamental, consiste na transcrição de dezenas de petições e processos nos
quais se verifica a sabedoria e a versatilidade de quem advogava em favor
dos desvalidos contra o peso dos interesses econômicos e contra o
preconceito de muitos juízes formados na mentalidade escravagista da época.
Este livro de Nelson Câmara passa a ser de consulta obrigatória para os
estudiosos da escravidão e da
O advogado dos escravos
Luiz Gama
Apresentação
Ler um livro sempre é uma experiência fascinante e revigorante. O
conhecimento obtido é uma dádiva que entretém a mente, mas também
abastece o coração. Os livros abrem os horizontes para as ideias brilhantes),
sem prescindir das benesses de dar asas à imaginação. Ao mesmo tempo, a
literatura de caráter histórico-documental descortina as pegadas de grandes
homens e mulheres do passado, inclusive daqueles que caminharam em terras
áridas. A história documental de Luiz Gama nutre o intelecto, revitaliza o
coração e desvenda os passos percorridos por um homem que, guardadas as
devidas proporções, foi uma voz que clamava no deserto (cf. Bíblia Sagrada,
Mateus 3.3). Essa voz solitária ainda se faz ouvir, reverberando em nossa
sociedade com brados de equidade, liberdade, tolerância, compreensão e
complacência.
Entrementes, os dias de Luiz Gama não podem receber uma comparação mais
apropriada do que tempos vividos em hostil deserto. Sobretudo, quando sua
história é compreendida sob as agruras da escravatura brasileira. A
escravidão, pois produziu aridez social, política e especialmente humanitária.
Sob o sol escaldante da impiedade e sofrendo de insaciável sede por justiça, o
povo negro foi subjugado e submetido aos mais terríveis escárnios e castigos
físicos e psicológicos. O curso da vida de escravo era apontado por
gargalheiras e chibatas. Atitudes hediondas e vis que, de fato, macularam a
nação brasileira com o sangue de mártires. À semelhança de outros
momentos históricos, havia quem soubesse se aproveitar da dor e do
sofrimento alheio para obter benefício próprio, todavia, havia também quem
fosse uma voz para os que foram feitos mudos à força. Em um tempo que até
mesmo o choro e gemido não eram abafados, Luiz Gama foi o paladino
moderno de milhões de negros, tornando-se o mais célebre advogado dos
escravos brasileiros.
A obra que ora apresentamos em sua terceira edição, narrada pela pena do
professor Dr. Nelson Câmara, presidente da Academia Mackenzista de Letras
– AML, fruto de uma rigorosa e profunda pesquisa sobre os caminhos
percorridos por Luiz Gama, nos deixando diante de um personagem
exemplar, singular por suas ações em prol da dignidade e liberdade humana.
Introdução
“De verre pour gémir, d’airaim pour résister” – “De vidro para gemer, de
bronze para resistir” – foi com essa significativa expressão invocatória do
poeta da “Legenda dos Séculos” (Victor Hugo – no poema Les Chants du
crépuscule), que Rui Barbosa referiu-se ao seu saudoso amigo Luiz Gama,
quando da Conferência sobre o Abolicionismo por ele proferida no Rio de
Janeiro a 18 de maio de 1911, no discurso de posse no Instituto dos
Advogados. Afirmou ter sido uma rara fortuna da sua vida ter cultivado
intimamente a amizade de Luiz Gama, “em lutas que nunca esquecerei”.
Disse mais: [...] que Luiz Gama era um coração de anjo com uma alma de
“harpa eólia de todos os sofrimentos da opressão”, além de ser, também, um
espírito genial com uma torrente de eloquência, de dialética e de graça, uma
abnegação de apóstolo com uma personalidade de granito aureolado de luz e
“povoado pelas abelhas do Himeto” [...] (in: BARBOSA, s.d., p. 197). A
menção de Rui Barbosa merece ser lida por inteiro:
“Para não nomear vivos, lembrarei apenas Luiz Gama... (aplausos repetidos).
Uma das raras fortunas de minha vida é a de ter cultivado intimamente sua
amizade, em lutas que nunca esquecerei. Um coração de anjo, uma alma que
era a harpa eólia de todos os sofrimentos da opressão; um espírito genial;
uma torrente de eloquência, de dialética e de graça; um caráter adamantino,
cidadão para a Roma antiga, inaclimável no Baixo Império; uma abnegação
de apóstolo: personalidade de granito, aureolado de luz e povoado pelas
abelhas do Himeto (aplausos). Se eu houvesse de escrever-lhe o epitáfio, iria
pedir este ao poeta da Legenda dos Séculos: De verre pour gémir, d’airaim
pour résister” (BARBOSA, RUI. s.d., p. 197).
Esses três baianos jamais se separaram nos ideais, embora Castro Alves
tenha, ainda jovem, se ferido gravemente em acidente com arma de fogo
quando cursava o terceiro ano da faculdade, o que motivou sua ida para
tratamento no Rio de Janeiro, então capital do Império e, posteriormente, para
a fazenda de seu pai na Bahia onde veio a falecer ainda jovem. Mas deixou
uma enorme obra poética e fundamental participação em atividades políticas
na capital paulista sempre na defesa dos escravos e pugnando pela Abolição.
Rui Barbosa, já em São Paulo, tivera intensa atividade política na mesma
direção dos outros dois baianos. Tanto em Salvador, como no Rio de Janeiro,
celebrizou
-se no mesmo sentido como jornalista, político e advogado.
Quando do ferimento sofrido por Castro Alves, foi seu amigo Luiz Gama,
juntamente com o mulato Rufino de Oliveira, quem o conduziu em uma
“marquesa” até a Estação da Luz da antiga estrada de ferro inglesa, com
destino ao porto de Santos onde embarcaria em um vapor para o Rio de
Janeiro, para nunca mais retornar. Castro Alves, na então distante cidade do
Rio de Janeiro, nunca deixou de escrever para seus amigos em São Paulo,
recordando com saudade sua mocidade alegre, poética e idealista (cf.
ALMEIDA, 1960, p. 190).
O que quis o destino ao fazer com que essas três talentosas vidas se
cruzassem em São Paulo? Três baianos, origens sociais diferentes, três
destinos diferentes, mas todos unidos, indelevelmente, nas mesmas lutas e
ideais de liberdade como um todo e, particularmente, pelo fim da escravidão!
Dos três, foi Luiz Gama quem permaneceu em São Paulo até a sua morte, em
1882, atuando bravamente como advogado dos escravos, poeta, jornalista
combativo e atuante maçom pela causa da liberdade. E tudo isso diante da
adversidade de ser negro, ex-escravo que conquistou sua própria alforria,
com cultura geral e específica jurídica, embora tenha sido vetado seu ingresso
na Faculdade de Direito de São Paulo. Luiz Gama foi único, posto que, nunca
se curvou ao preconceito. Também jamais cultivou qualquer espécie de ódio
racial no sentido contrário, o que seria uma contradição insanavél. Fez da
tribuna do direito e do jornalismo, a forma de combate à escravidão e a
quaisquer forma de exploração do homem pelo próprio homem. Para atrair a
atenção de escravos, colocava anúncios em jornais oferecendo-se para defesa
gratuita desses.
Ao falecer, Luiz Gama tinha libertado mais de mil escravos (cf. BASILE, in:
LINHARES, 1990 p. 285) e seu funeral, foi na ocasião, o maior
acontecimento da cidade de São Paulo com amplo destaque na imprensa,
fechamento do comércio local e acompanhado por uma multidão que,
levando-se em conta o crescimento populacional atual, hoje estaria na casa
dos milhares de participantes.
Sumário
I
II
III
Luiz Gama: o poeta 100
IV
Luiz Gama: jornalista 124 Imprensa satírica e política 132
V
VI
Morte de Luiz Gama 312
VII
Filho de uma negra africana livre, chamada Luiza Mahin, nascida na região
de Costa da Mina, que corresponde atualmente aos Estados de Gana, Togo,
Benin e Nigéria, Luiza Mahin era pertencente à nação nagô. Conta a história
que esta negra era magra e bonita, com dentes muito alvos e de pele
reluzente. Era conhecida pelo gênio irracional e violento, circunspecta,
quitandeira, entregando-se ao comércio de vendas de frutas, muito popular
em Salvador. Talvez por questões étnicas e raciais, nunca se converteu ao
cristianismo, sendo pagã. Era uma revolucionária natural, sempre com
objetivo, libertar sua raça dos grilhões da escravidão. Foi aprisionada
diversas vezes, sob suspeita de seu envolvimento em movimentos
antiescravagistas. Supostamente participou da maior rebelião negra ocorrida
no Brasil durante o Segundo Império, a Revolta dos Malês, em 1835.
O próprio Luiz Gama descreveu sua mãe como uma mulher altiva,
revolucionária, da qual certamente teria herdado o temperamento.
Luiza Mahin, que se julga ter sido princesa na África, era mãe do poeta negro
Luiz Gama, a quem nos referiremos em outro capítulo. Não há documentos
precisos a seu respeito. Sabe-se que seus pais eram reis no continente negro.
Arrancada violentamente do seu meio e transportada para o Brasil como
escrava, Luiza Mahin foi um destacado elemento de conspiração entre os
negros oprimidos. Sua casa, na Bahia, tornou-se um dos fortes redutos de
chefes da grande revolta de 1835.
Ninguém sabe o seu fim. Mas o seu nome permaneceu na história e na lenda
como um grande símbolo do valor da mulher negra no Brasil” (RAMOS,
1956, p. 52-53).
Toda a pesquisa feita pelos historiadores acerca de Luiza Mahin tem sempre
um fundo de verdade e um tanto de ficção. O historiador João José Reis, por
exemplo, em sua obra Rebelião escrava no Brasil (2003), discorre sobre esse
tema invocando alguns pesquisadores, chamando a atenção para a origem
muçulmana da personagem, sua participação na Revolta dos Malês e fazendo,
também, uma correta crítica ao posicionamento racista do historiador Pedro
Calmon. Diz ele:
Se Etienne Brazil não deu nome à sua rainha, Arthur Ramos, por exemplo,
afirmaria que ‘Luiza foi um destacado elemento de conspiração entre os
negros oprimidos’, acrescentando: ‘Sua casa, na Bahia, tornou-se um dos
fortes redutos de chefes da grande revolta de 1835’. Onde Ramos foi buscar
essa informação, desconheço. O autor promoveu o personagem descrito pelo
filho: a mãe deixava de ser apenas envolvida nas conspirações baianas, para
nestas tornar-se ‘destacado elemento’ e promotora de reuniões malês em
1835. Mas embora afirmasse ter sido ela filha de ‘reis no continente negro’,
Ramos abstém-se de coroá
-la rainha dos rebeldes.
Quando a mãe de Luiz Gama deixou a Bahia, fugindo da perseguição por sua
participação na Sabinada (assim denominada porque foi liderada pelo médico
e jornalista Francisco Sabino Vieira), não deixou paradeiro. O movimento,
que desencadeou a Sabinada, aproveitou-se da reação popular contra o
recrutamento militar imposto pelo governo imperial. O estopim deu-se em
meio a fuga de Bento Gonçalves, do Forte do Mar, chamado hoje de Forte de
São Marcelo.
Mas a anarquia dos espíritos iria, desde os primeiros dias do novo período
regencial, provocar gravíssima explosão, a da famosa Sabinada baiana,
insurreição de caráter republicano, cuja cabecilha foi como tanto se sabe o
desequilibrado médico Sabino Álvares da Rocha Vieira.
O historiador João José dos Reis (2003), descreve detalhadamente dois fatos
importantes que ocorreram por ocasião das Revoltas dos Malês (1835) e da
Sabinada (1837), sendo o primeiro deles, a crueldade das penas impostas aos
escravos, e o segundo a impressionante influência pelo efeito produzido no
comportamento da sociedade na Bahia pelas ações dos movimento de
batuques africanos, relacionados com as revoltas ou quaisquer movimentos
de resistência, a ponto dos defensores da escravidão, ficarem temerosos tão
logo os sons dos batuques começassem a soar pela cidade.
Luiz Gama jamais revelou o nome de seu pai. Consta que era um fidalgo de
origem portuguesa de uma das principais famílias baianas, muito rico e, ao
mesmo tempo, esbanjador volúvel a ponto de ficar reduzido à pobreza
extrema. Sempre que era questionado sobre a origem racial de seu pai, Luiz
Gama dizia não poder afirmar ser realmente branco “porque tais afirmativas
neste país constituem grave perigo durante a verdade, no que consume a
melindrosa presunção das cores humanas” (SUD MENUCCI, 1938, p. 21).
Luiz Gama, ao referir-se a seu pai dizia que, nos primeiros tempos, era
carinhoso. Todavia, quando contava com somente dez anos de idade, em
1840, seu pai mandou que se vestisse e o conduziu ao porto de Salvador, em
companhia de um amigo de nome Luiz Quintella, e vendeu-o como seu
escravo, embarcando-o no navio de nome Saraiva, que partiu com destino ao
Rio de Janeiro. Após a conversa do pai com o comandante da embarcação, no
tombadilho, afastou-se para entrar no bote, deixando Luiz Gama a bordo.
Mas o destino começava a se fazer caprichoso para Luiz Gama, porque esse
comerciante português o levou para a sua casa, por ser ainda um menino, para
fazer companhia para o seu filho, um menino também, e algumas filhas já
crescidas. Além disso, sua esposa, uma perfeita matrona, era cheia de
piedade. Ao adentrar nesse ambiente por volta das 17h, todas as mulheres a
ele se afeiçoaram imediatamente, mandaram-no se lavar, vestiram-no, deram-
lhe comida e o fizeram dormir em boa cama. Luiz Gama pela vida inteira
lembrou-se com carinho dessa boa acolhida.
Como não foi vendido, Luiz Gama em companhia de outro escravo, de nome
José que era sapateiro, foi devolvido para a casa de seu proprietário, o senhor
Cardoso, na província de São Paulo. Um sobrado na rua do Comércio, nº 2,
próximo à igreja da rua Direita. Ali, Luiz Gama aprendeu os ofícios de
copeiro, sapateiro, lavador, engomador e costureiro, mas continuava
analfabeto.
Obtenção da alforria
Luiz Gama, com mente privilegiada e ávido por saber, foi alfabetizado em
apenas um ano e, já no ano seguinte, em 1848, secretamente, passou a obter
provas irrefutáveis de sua condição de homem livre, argumentando com o
fato de seu progenitor ter sido homem livre e sua mãe negra liberta, bem
como o irrefutável aspecto na lei de 1831 que, numa penada, tornou ilegal a
escravidão no Brasil, ao considerar como pirataria o comércio de africanos.
Luiz Gama não se deu por vencido. Reconhecia que, no fundo, o senhor era
boa criatura e lhe devotava estima, como confessou depois. Mas, mesmo
nessa sua primeira mocidade, como o provará mais tarde com toda a atuação
de sua vida, o baianinho tinha sede ardente de liberdade. Não permaneceria
acorrentado a uma injustiça por meras preocupações sentimentais e não podia
aceitar que lhe negassem seu direito legítimo.
Este fato, é um ponto crucial de sua saga, pois Luiz Gama comprovou
cabalmente a sua qualidade de homem livre. Seria preciso não conhecer os
antecedentes do alferes Cardoso para admitir a hipótese de que este tivesse
cedido a considerações altruísticas, num tempo em que ninguém as usava, e
tivesse recuado no seu propósito de reconquistar o moleque. E é o próprio
Luiz Gama quem mostra a qualidade de teima do senhor, quando relatou, por
que razão suicidou-se o alferes, no ato de o prenderem por haver matado
alguns escravos de fome, por terem sido mantidos por muito tempo em
cárcere privado.
Sud Menucci (1938, p. 19-26), transcreve uma famosa carta que Luiz Gama
endereçou a Lúcio de Mendonça em 25 de julho de 1880. Essa carta, na
realidade, constitui o mais importante e talvez único documento completo
sobre a odisseia do grande tribuno, escrita de próprio punho como se fosse
sua autobiografia, e é dever de fidelidade histórica e analítica transcrevê-la
por inteiro:
Recebi o teu cartão com a data de 28 do pretérito. Não me posso negar ao teu
pedido, porque antes quero ser acoimado de ridículo, em razão de referir
verdades pueris que me dizem respeito, do que vaidoso e fátuo, pelas ocultar,
de envergonhado: aí tens os apontamentos que me pedes e que sempre eu os
trouxe de memória.
Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina, (nagô de
nação) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a
doutrina cristã.
Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto
e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva,
geniosa, insofrida e vingativa.
Nada mais pude alcançar a respeito dela. Nesse ano, 1861, voltando a São
Paulo e estando em comissão do governo, na vila de Caçapava, dediquei-lhe
os versos que com esta carta envio-te.
Meu pai não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste País
constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa
presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais
famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória
uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome.
Ele foi rico; e, nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus
braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e
da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito
melhor de baralho, amava as súcias (agrupamentos de má índole) e os
divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e,
reduzido à pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de
Luiz Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos
proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Bahia, estabelecida em um
sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo
do patacho Saraiva.
Remetido para o Rio de Janeiro, nesse mesmo navio, dias depois, que partiu
carregado de escravos, fui, com muitos outros, para a casa de um cerieiro
português, de nome Vieira, dono de uma loja de velas, à rua da Candelária,
canto da do Sabão. Era um negociante de estatura baixa, circunspecto e
enérgico, que recebia escravos da Bahia, por comissão. Tinha um filho
aperaltado, que estudava em colégio; e creio que três filhas já crescidas,
muito bondosas, muito meigas e muito compassivas, principalmente a mais
velha. A senhora Vieira era uma perfeita matrona: exemplo de candura e
piedade. Tinha eu dez anos. Ela e as filhas afeiçoaram-se de mim
imediatamente. Eram cinco horas da tarde quando entrei em sua casa.
Mandaram lavar-me; vestiram-me uma camisa e uma saia da filha mais nova,
deram-me de cear e mandaram-me dormir com uma mulata de nome Felícia,
que era mucama da casa.
Oh! Eu tenho lances doloridos em minha vida, que valem mais do que as
lendas sentidas da vida amargurada dos mártires.
Como já disse, tinha eu apenas dez anos; e, a pé, fiz toda a viagem de Santos
até Campinas.
Valeu-me a pecha!
Desde que me fiz soldado, comecei a ser homem; porque até os dez anos fui
criança; dos dez aos 18, fui soldado.
Eis o que te posso dizer, às pressas, sem importância e sem valor; menos para
ti, que me estimas deveras.
Teu Luiz”.
Cronologia
1877 – Estabeleceu banca de advogados, onde atuou até o final da vida, com
Antônio Carlos Manoel José Soares e, mais tarde, Antônio Januário Pinto
Ferraz. [...]
“Evita a amizade e as relações dos grandes homens; eles são como o oceano
que se aproxima das costas para corroer os penedos”
Luiz Gama
Vencida essa primeira e sofrida parte da saga de Luiz Gama, o destino lhe
reservou, é bem verdade, com o mérito do seu gênio, uma vida de
aprendizado, lutas e vitórias, tendo sempre como farol, a liberdade do cativo,
o ideal de justiça, de democracia, de implantação da República e do fim da
escravidão.
Em 1869, quando seu filho único Benedicto Graccho, contava com dez anos
de idade, Luiz Gama oficializou seu casamento com Claudina Fortunato
Sampaio, como ele também negra. Seus padrinhos de casamento na singela
cerimônia foram os maçons Antonio Carlos e Furtado de Mendonça, ambos
catedráticos da Faculdade de Direito, sendo o primeiro, na ocasião, venerável
da Loja América. Seu filho, como veremos adiante, honrou sobremaneira o
nome de seu pai, por toda a vida, tornando-se engenheiro eletricista e
importante oficial do Exército Brasileiro. Era a boa árvore dando bom fruto!
Luiz Gama e a Convenção Republicana de Itu
Todos os direitos lhes eram negados (...) Eram reduzidos à condição de coisa,
como irracionais, aos quais eram equiparados, salvas certas exceções. Eram
até denominados, mesmo oficialmente, peças, fôlegos vivos, que se
mandavam marcar com ferro quente ou por castigo, ou ainda por sinal como
gado.
A sua opinião cabia vencida e cairá: mas não houve também ali um coração
que se não alvorecesse do entusiasmo pelo defensor dos escravos.
Dir-te-ei sempre, meu nobre amigo, que não estás isolado, no partido
republicano, na absoluta afirmação da liberdade humana. Também como tu,
eu proclamo que não há condições para a reivindicação deste imortal
princípio, que não há contra ele nem direitos nem fatos que se respeitem.
Pereal mundus, fiat justila! E é ignorar essencialmente a natureza das ‘leis de
instituição’, querer que elas respeitem ‘direitos adquiridos’. Não é para Victor
Hugo, nem para Castelar que apelamos: é para Savigny, o histórico.
Ah! Está, em meia dúzia de pálidos traços, o perfil do grande homem que se
chama Luiz Gama.
Filho de uma província que, com razão ou sem ela, não é simpática aos
brasileiros do sul: emancipador tenso, violento, inconciliável, numa província
fundada de escravos; sem outra família a não ser a que constituiu por si; sem
outros elementos que não fossem o seu forte caráter e o seu grande talento;
atirado só a todas as vicissitudes do destino, ignorante, pobre, perseguido,
vendido como escravo por seu próprio pai, enjeitado pelos próprios
compradores de negros, Luiz Gama é hoje em São Paulo um advogado de
muito crédito e um cidadão estimadíssimo. É mais do que isso: é um nome de
que se fez a democracia brasileira”.
Esse é outro importante registro histórico sobre Luiz Gama na luta pela
República e também pela Abolição, por isso sua famosa frase: “Terra do
Cruzeiro sem rei e sem escravos”.
Evaristo de Moraes, que por ter nascido no Rio de Janeiro antes da Abolição
e por ter vivenciado como advogado as primeiras décadas da República e,
ainda, por ser também um mestiço, aprofundou o estudo dos fatos históricos
que antecederam a Lei Áurea. Demonstrou que, entre 1879 e 1880, a
campanha abolicionista se desenvolveu ao lado da propaganda republicana,
chamando a atenção das conferências populares dos abolicionistas-
republicanos Vicente de Sousa, Lopes Trovão, José do Patrocínio, Ubaldino
do Amaral e Cyro de Azevedo. E afirmou: “De quem se dizia republicano,
supunha-se logo ser, também abolicionista, embora a recíproca nem sempre
fosse verdadeira: André Rebouças e Joaquim Nabuco foram abolicionistas da
primeira hora, mas eram e permaneceram monarquistas” (Cf. EVARISTO
DE MORAES, s.d., p. 99).
No que diz respeito ao movimento, em São Paulo, Evaristo de Moraes (p. 99)
demonstra a diferença em relação ao Rio de Janeiro:
Mais adiante:
Intensa foi a atuação política de Luiz Gama no campo da luta pela instalação
do regime republicano no Brasil, atuando como membro na Convenção de
Itu, recusou-se a participar da mesma.
Esse mesmo autor, pouco antes, faz sintomática observação que diz bem do
ânimo nada abolicionista da maioria dos convencionais, mais interessados na
República do que na Abolição, posto que fazendeiros que eram interessados
estavam em manter a mão de obra escrava até o seu limite, trazendo a frase:
“O liberal Silveira Martins dizia amar mais a Pátria que o negro” (Idem, p.
189).
Além dos nomes acima indicados, compareceram mais Luiz Gama, Américo
de Campos, Azevedo Marques, Jayme Serva, Olympio da Paixão, Vicente
Rodrigues e José Ferreira de Menezes, todos da capital, e ainda o solicitador
Francisco de Paula Cruz, chegado de Jundiaí. [...]
Em Itu, excluído o Rio de Janeiro, cuja delegação foi admitida apenas a título
de cortesia, contavam-se 17 localidades. Para a reunião da capital, Américo
de Campos havia, até a data da abertura, recebido a comunicação de 29
eleições, juntando-se à lista anterior mais os municípios de Santos, Limeira,
Rio Claro, Penha de Mogi Mirim, São João da Boa Vista, Pirassununga,
Patrocínio das Araras, Brotas, Serra Negra, Atibaia, Cotia, São José dos
Campos, Paraibuna e Taubaté. Destas delegações, deixaram de comparecer,
com causa motivada, as de Limeira e Sorocaba. O congresso abriu-se,
portanto, com 27 representantes, dando-se a presidência a Américo
Brasiliense, vindo como delegado de Porto Feliz, escolhendo a Antônio
Cintra, delegado de São João da Boa Vista, e a Paula Souza, delegado de
Mogi Mirim, como secretários. Estava presente Luiz Gama, qualificado
representante de São José dos Campos” (p. 115, 147).
José Maria dos Santos (1942), diga-se, foi um dos que melhor registraram
esse momento histórico, relatou o avanço gradual e persistente daquele grupo
de intelectuais combatentes pela causa da Abolição, sempre influenciados
pela luz que irradiava de Luiz Gama:
“Não haveria conveniência, não haveria força nem consideração alguma
capaz de manter Luiz Gama e os irmãos Campos indiferentes àquela nova
expansão das ideias de que haviam sido, afinal, os verdadeiros precursores
em São Paulo. Os esforços dos três nesse terreno, que aliás jamais se
interromperam, então fortemente se acentuam. Américo de Campos
manifestava-se, sobretudo como jornalista, Luiz Gama e Bernardino de
Campos, porém, transbordavam de suas atividades da imprensa para os
auditórios da Justiça, constituindo-se em advogados gratuitos e obrigatórios
de quantos apelos de liberdade chegassem às suas bancas. Nesse ponto era
Luiz Gama o grande animador e o mestre incomparável. A sua casa no Brás
transformava-se numa espécie de refúgio santo de todas as angústias de
redenção. Bernardino de Campos, estabelecido no Amparo, secunda-o no
interior, agindo diretamente nos centros mais irredutíveis e perigosos do
escravagismo [...]
§ único – Esta declaração será escrita e assinada pelo respectivo neófito e por
testemunhas idôneas, escolhidas dentre os maçons presentes, em número
bastante para que venha a produzir todos os efeitos legais.
O jovem Rui Barbosa, então com 19 anos, e que com grande veemência
sustentou o projeto de Luiz Gama, acabou por provocar a renúncia do
professor Antônio Carlos da direção da Loja Maçônica, posto que, este não
concordava com o projeto aprovado. A repercussão desses dois projetos
maçônicos foi enorme na cidade de São Paulo espalhando-se, também, pela
cidade do Rio de Janeiro. Dois meses após, a Loja Maçônica América
instalou, na rua 25 de Março, uma escola gratuita para 25 crianças, também
com aulas noturnas para 160 negros adultos de ambos os sexos, todos com
material fornecido pela própria Loja. Esse episódio histórico, de pioneirismo
na iniciativa de alforriar filhos ainda no ventre de escravas, trinta e sete anos
após, em 17 de maio de 1907, na sessão do Senado da República, o mesmo
Rui Barbosa, recordando com emoção, assim se expressou:
“Eu poderia ir de voo a esses tempos, para mim já remotos, quando nos
começa a alvorecer o antemanhã da vida pública nos bancos da academia, e
mostrar ao Senado que, já então, nesses bons tempos de estudante, me achei
sempre na primeira linha das avançadas, onde os perigos eram mais sérios e
menos cobiçados os lugares; quando, 4º anista de direito, abria conflito com o
meu lente de Direito Comercial, venerável da loja maçônica de que eu era
humilde orador, para fazer triunfar naquele recinto o princípio da liberdade
do ventre escravo, decretado para todos os membros da loja, por um projeto
meu, em defesa do qual tive a honra de ser vitorioso contra o meu lente,
venerável da mesma loja, ilustre professor da Faculdade e fazendeiro
abastado em S. Paulo. Ainda se não tinha decretado no país a lei gloriosa de
Vinte e Oito de Setembro.
Nessa época havia perigos não leves em defender a liberdade dos escravos; e,
em S. Paulo, centro dos interesses da propriedade servil, o assunto era ainda
oiroçado de perigos. Precisava-se de quem fosse – digamo-lo assim
– amarrar o guiço ao pescoço do gato, e fui eu o escolhido para fazer a
primeira conferência abolicionista, que ali se realizou” (BRASIL,
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 1962, V. XXXIV, Tomo I, p. 31,32).
O destemor da Loja Maçônica América foi muito grande nessa luta, valendo
lembrar a forte presença de jornalistas maçons, que também faziam anúncios
libertários em jornais, como, por exemplo, no jornal Correio Paulistano, de
10 de novembro de 1871:
O próprio Luiz Gama fazia também publicar anúncios em jornais tanto com
respeito ao seu trabalho de defensor dos escravos, como também de
publicidade de seu livro de poesias com o qual pretendia amealhar alguns
trocados. Ei-los:
A relação de Castro Alves com São Paulo sempre foi muito forte, assim
como a sua amizade com Luiz Gama e com José Rubino de Oliveira, ambos
negros. Dois consagrados biógrafos do poeta registram o triste episódio de
sua doença em decorrência do acidente que lhe ocasionou gangrena no pé,
quando seus dois mencionados amigos lhe deram a mais ampla solidariedade,
conduzindo-o com todo o cuidado até o trem que o levaria ao porto de Santos
e dali para o Rio de Janeiro onde, na Corte, poderia ter a mais completa
assistência médica.
“Os médicos de São Paulo dizem-lhe que no Rio de Janeiro há mais recursos;
resolvem então transportá-lo para a Corte. O antigo seleiro de Sorocaba, José
Rubino de Oliveira, mulato e amigo de Luiz Gama, apareceu pela manhã e
ofereceu-se para acompanhar o poeta na dolorosa viagem para o Rio.
Pedro Calmon (1947, p. 202) confirma: “Duas palavras sobre esse abnegado
dr. José Rubino de Oliveira: era pardo, amigo de Luiz Gama, antigo seleiro
em Sorocaba, onde nascera em 24 de agosto de 1837. Seminarista, deixou os
estudos eclesiásticos para cursar Direito, em 1864...”.
“Dele pode dizer-se que foi dos primeiros, com Joaquim Nabuco, Luis Gama
e Rui Barbosa, numa época em que a ideia da Abolição era ainda uma
extravagância de poucos, a devotar-se de modo sistemático e permanente à
causa antiescravista” (COSTA E SILVA, 2006, p. 45).
Castro Alves foi uma lenda literária na luta pela Abolição. Mais do que isso,
Castro Alves foi uma estrela cadente que Deus enviou da Bahia para São
Paulo e, a partir da Pauliceia, ao lado de figuras libertárias proeminentes,
como Luiz Gama, Rui Barbosa e outras tantas, irradiou sua luz poderosa para
todo o Brasil. Morreu ainda jovem, como um mensageiro divino que já havia
cumprido sua missão de ajudar a salvar toda uma raça oprimida.
Por outro lado, Rui Barbosa, desde a sua mocidade, assim como Castro
Alves, acompanhou a trajetória de Luiz Gama. Quando jovem acadêmico,
frequentava sua casa e o escritório. Também com ele participou ativamente
dos trabalhos da Loja Maçônica América, em São Paulo. Com ele participou
de vários trabalhos jornalísticos, conferências e debates. Mesmo após ter
deixado São Paulo para advogar na Bahia ou no Rio de Janeiro, nunca deixou
de lembrar desses tempos de convivência com o Paladino da Abolição.
Existem pelo menos dois clássicos pronunciamentos de Rui Barbosa, já
maduro, sobre o amigo Luiz Gama, passados 30 anos do seu falecimento.
Uma dessas passagens foi quando pronunciou o seu famoso discurso de posse
no Instituto dos Advogados, no Rio de Janeiro, em 18 de maio de 1911. Outra
foi a famosa Conferência sobre o Abolicionismo, constante de suas Obras
completas, editada pelo Ministério da Educação por meio da Fundação Casa
de Rui Barbosa:
“Para não nomear vivos, lembrarei apenas Luiz Gama... (aplausos repetidos).
Uma das raras fortunas de minha vida é a de ter cultivado intimamente sua
amizade, em lutas que nunca esquecerei. Um coração de anjo, uma alma que
era a harpa eólia de todos os sofrimentos da opressão; um espírito genial;
uma torrente de eloquência, de dialética e de graça; um caráter adamantino,
cidadão para a Roma antiga, inaclimável no Baixo Império; uma abnegação
de apóstolo: personalidade de granito, aureolado de luz e povoado pelas
abelhas do Himeto (aplausos). Se eu houvesse de escrever-lhe o epitáfio, iria
pedir este ao poeta da Legenda dos Séculos: ‘De verre pour gémir, d’airaim
pour résister’” (BARBOSA, s.d., p. 197). Nada poderia ter sido mais
eloquente para Rui Barbosa, traduzir toda a sua emoção e estima ao amigo
Luiz Gama, desaparecido fazia algumas décadas.
“Por ali se explica bem por que São Paulo, quando se desencadeou em 1866 o
primeiro grande movimento pela Abolição, era o centro mais ativo e mais
forte do escravagismo. Mas por ali também se explicará por que foi em São
Paulo que a reação liberal e abolicionista se manifestou mais intensa, mais
bela e mais heroica.
Era, porém, da reação escravocrata que o novo partido recebia, para crescer e
engrossar, todo o espesso e pesado afluxo do mundo agrário. A torrente fazia-
se mais turva e menos pura. Também se tornava mais volumosa e mais densa
para o embate final contra a Monarquia. Só os mais broncos e obstinados
poderiam crer realmente que, pela República, chegassem a salvar a
escravidão.
Mas o Partido Republicano de São Paulo não nasceu naquele ano. Nas suas
ideias, no seu espírito e no seu programa inevitável, isto é, no que forma
realmente a base de uma corrente de opinião ou a alma profunda de um
partido, ele já existia há dez longos anos de pertinaz e intrépida luta pela
liberdade. A sua certidão de nascimento está nas velhas coleções de O
Cabrião e do Diabo Coxo, com a presença de Luiz Gama e Angelo Agostini,
com a data de 20 de dezembro de 1870. Américo de Campos, então, informa
aos republicanos do Rio de Janeiro que o Clube Radical de São Paulo passou
a denominar-se Clube Republicano de São Paulo. É a ideia da “República”
consolidando-se.
Bento tinha 39 anos quando Luiz Gama morreu, e foi criador de uma
organização secreta denominada Caifazes, nome inspirado em Caifás, o juiz
hebreu que entregou Jesus aos romanos. Desenvolveu mais e abertamente a
luta insurreicional. A Irmandade dos Pretos do Rosário de São Paulo era
aliada nessa luta.
A saga dos negros, até mesmo na liberdade de culto religioso, não foi das
melhores em terras paulistanas. A Irmandade de N. S. do Rosário dos
Homens Pretos de S. Paulo tinha sua igreja na rua 15 de Novembro, perto de
onde hoje está localizada a praça Antônio Prado. No entanto, o referido
Antônio Prado, quando prefeito, fez baixar a Lei nº 670, de 17 de setembro
de 1903, desapropriando a referida igreja para a ampliação do Largo do
Rosário e, três meses após, fez baixar a Lei nº 698, de 14 de dezembro de
1903, concedendo área de terreno no Largo do Paissandu e mais indenização
para que lá fosse construída a nova igreja, o que efetivamente ocorreu.
Antônio Bento tinha o seu quartel-general na sacristia da Igreja de Nossa
Senhora dos Remédios, no Largo de São Gonçalo. A irmandade era a mesma
à qual pertencera Luiz Gama. Ali mesmo, nos fundos da igreja, mantinha-se a
redação e a tipografia do jornal que editava, A Redenção, espécie de museu
de horrores da escravidão: eram exibidos chicotes, coleiras, correntes, cangas
e gargalheiras. A dramatização teatral da tragédia da escravidão era uma das
táticas de Antônio Bento. Uma vez, tendo acolhido um negro que, depois de
torturado, fora salvo da mão do algoz por boas almas do interior da província,
decidiu expô-lo em procissão pelas ruas de São Paulo.
Além disso, segundo José Castellani (1998), havia um código para que os
escravos que fugiam pudessem transitar pelos trens:
Atual fachada da Estação da Luz, por onde atravessavam os escravos embarcados das senzalas das
fazendas e prosseguiam pela via férrea para o Quilombo do Jabaquara, em Santos.
Luiz Gama, por volta de 1870, cerca de onze anos após ter publicado seus primeiros poemas líricos e de
sátira social e política.
A literatura serviu para Luiz Gama como passaporte para os círculos sociais
mais altos, como de resto servia, geralmente, para quem a manejasse com
alguma habilidade. Luiz Gama era mesmo bom na arte de escrever. Em 1859,
quando ainda trabalhava na Secretaria de Polícia, publicara pela tipografia
Dois de Dezembro, de São Paulo, suas sátiras com pseudônimo de Getulino.
A segunda edição do livro sairia dois anos mais tarde, dessa vez, pela
tipografia de Pinheiro & Cia., do Rio de Janeiro. Um jornal anunciava a obra
da seguinte maneira: “Poesias joviais e satíricas por Luiz Gama. Os últimos
exemplares da segunda edição, enriquecida com belíssimos cânticos do
exmo. conselheiro José Bonifácio. Vende-se nesta tipografia a 2$000”.
Mas a poesia de Luiz Gama tinha um ingrediente que não se encontrava nas
obras líricas de então. De acordo com a historiadora Elciene Azevedo (1999),
seus versos traziam uma imagem cultural do negro, em vez de carregar sua
vitimização e um eterno vínculo com o cativeiro. Celebrava, em alguns
versos, a força de sua ascendência africana: “Ao rufo do tambor e das
zabumbas, ao som de mil aplausos retumbantes, entre os negros da Ginga,
meus parentes, pulando de prazer e de contentes, nas danças entrarei d’altas
caiumbas”. Dava valor às virtudes do negro africano, para ser reconhecido
por meio delas: “Minha mãe, que é de proa alcantilada, vem da raça dos reis
mais afamados: blasonava, entre um bando de pasmados, certo parvo de casta
amorenada”.
A poesia Quem Sou Eu?, popularmente chamada de Bodarrada, talvez seja
uma das mais conhecidas das Primeiras trovas burlescas. Nela, Gama traça
um autorretrato: “Faço versos, não vate, digo muito disparate. Mas só rendo
obediência à virtude, à inteligência: eis aqui o Getulino...”. O nome
“Bodarrada” vem da palavra “bode”, que na gíria da época significa mulato,
negro. Assim, Luiz Gama indagava: “Se negro sou, ou sou bode, pouco
importa. O que isto pode?” E terminava sua poesia dizendo: “Haja paz, haja
alegria, folgue e brinque a bodaria. Cesse, pois, a matinada, porque tudo é
Bodarrada!”.
Ao todo são 51 poemas, a maior parte dos quais foi publicada pela primeira
vez em 59, com o título Primeiras trovas burlescas. Em 1861 saiu uma
segunda edição aumentada, que foi a última em vida do autor.
Posteriormente, em 1904 e em 1944 fizeram-se outras edições da sua poesia.
Agora, 50 anos depois, voltam à circulação essas Primeiras trovas burlescas,
em volume organizado por Lígia F. Ferreira. Trata
-se de um acontecimento que é preciso comemorar. Primeiro porque o leitor
agora pode ler, em versão correta, poemas célebres em seu tempo, como ‘A
Pitada’ e ‘O Balão’, além dos referidos há pouco. Segundo, porque a obra
vem precedida de um texto introdutório inteligente e sereno, no qual a
organizadora discute os principais pontos da fortuna crítica do autor e
apresenta os principais momentos da sua conturbada biografia. Terceiro,
porque a tudo isso se acresce um belo conjunto de fotografias, muitas das
quais feitas para esta edição” (FRANCHETTI, 2000).
Todavia, a nosso ver, esse jornalista cometeu injusta crítica, embora com
ressalvas, ao excelente trabalho de Lígia Ferreira, quando afirma:
“Lígia não aborda com a necessária firmeza os pontos cegos evidentes nos
textos que estuda e transcreve. Aceitando, com eles, que o modernismo de 22
é o desenlace lógico de toda a história da literatura brasileira, Lígia acaba por
traçar um panorama literário um tanto descosido, no qual seu objeto não
consegue se encaixar devidamente” (FRANCHETTI, 2000).
O Diabo Coxo, em que Luiz Gama publicou várias poesias, foram depois
reunidas no livro Primeiras trovas burlescas, de 1904. Foi o primeiro
periódico ilustrado a circular, também, charges a respeito da Guerra do
Paraguai, em agosto de 1865, cujo texto criticava a todos.
Mas Luiz Gama, mesmo quando se tratava de atividade poética, não perdia
de vista a oportunidade da causa da Abolição e também da valorização da
raça negra, a qual sempre com orgulho acentuava.
Qual vespa, esvoaçando, atroz picante. Com sátira mordaz, sempre flamante
Picando picarei por toda parte
Se a tanto me ajudar ferrão e arte.
Ciências e Letras.
Não são para ti
Pretinho da Costa
Não é gente daqui”.
(TOLEDO, POMPEU DE. 2003, p. 384).
Santo embora, o mortal que a encontra para, Da cabeça lhe foge o bento
siso,
Nervosa comoção as bragas rompe-lhe, E fica como Adão no Paraíso”.
(Ibidem, p. 385)
Luiz Gama jamais se esqueceu da imagem de sua mãe, na última visão que
dela teve aos dez anos de idade, quando foi arrancado dela em Salvador para
ser vendido como escravo. Após esse acontecimento, o destino, em peripécias
tantas de andanças, acabou por colocá-lo na capital da província de São
Paulo. Fez para ela o poema Minha mãe:
Por essa motivação, escreveu um poema para demonstrar que até o direito à
igualdade do sepultamento no cemitério o negro também tinha.
“Em lúgubre recinto escuro e frio, Onde reina o silêncio aos mortos dado,
Entre quatro paredes descoradas, Que o caprichoso luxo não adorna, Jaz da
terra coberto humano corpo, Que escravo sucumbiu, livre nascendo! Das
hórridas cadeias desprendido, Que só forjam sacrílegos tiranos, Dorme o
sono feliz da eternidade”. (GAMA apud FERREIRA, 2000, p. 153)
Não é por acaso que, Coelho Netto, ao prefaciar a 3ª edição das Primeiras
trovas burlescas, em 1904, assim afirmou:
É difícil, o mais perito gravador não se atreveria a tal empresa e não serei eu
quem a realize.
O seu verso, se não prima pela beleza da forma, se não cintila em lavores
d’arte, se a rima, por vezes, é paupérrima, é leve como a flecha, silva, vai
direito ao alvo, crava-se e fica vibrando.
(...)
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
D’esta arenga receosos,
Hão de chamar-me tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo, Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode,
Pouco importa. O que isto pode? Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muita vasta...”.
(GAMA, apud FERREIRA, 2000, p. 113, 115-116)
“Adverte dessa forma os críticos das Trovas a tratarem sua obra sem
dissociá-los do ‘fenômeno Luiz Gama’. Do seu ponto de vista, aliás, a poesia
de Luiz Gama não era expressão literária da melhor qualidade; contudo,
como poeta satírico ninguém teria sido, no Brasil, mais consequente do que
ele. Ao troçar sua argumentação, Romão da Silva afirma que nas poesias de
Luiz Gama não caberia a preocupação com a forma perfeita dos versos dentro
de uma concepção clássica. O que ele buscava era a facilidade de expressão
para fazer a propaganda de suas ideias e, sobretudo, denunciar a sociedade
imperial. Para o autor, a um homem nas condições de Luiz Gama, negro e ex-
escravo, seria quase impossível fazer parte pela arte. O floreio retórico
poderia ser muito inconveniente para alguém que pretendia usar a poesia
como instrumento de luta e de denúncia.
“Analisando a figura de Luiz Gama, um dos raros negros que tiveram até
certo ponto uma consciência racial, mostra Roger Bastide como a fusão e a
convivência sentimental com o branco impediram Luiz Gama de realizar uma
poesia de inspiração realmente africana. ‘Para chegar a essa inspiração
verdadeiramente africana, como desejava... deveria ter partido do que era
menos mesclado com as coisas do branco, o folclore de sua raça’.
Não creio que sem a opressão violenta e intransigente verificada nos Estados
Unidos essa solução fosse possível. O que aconteceu na América do Norte foi
uma formação de consciência proveniente do afastamento do negro pelo
branco, e não do isolamento voluntário, espontâneo do negro. Onde a raça
mais progressiva deu a mão à menos civilizada não se observou afastamento
mas assimilação. E ainda agora é o que ocorre com os imigrantes. Segregam-
se os que nós mesmos refugamos; os outros se acomodam e aos poucos se
assimilam.
Foi Luiz Gama poeta satírico. Esse gênero de poesia não foi, desde Gregório
de Matos, muito cultivado no Brasil. Os versos de Luiz Gama seriam algo
como os ‘Chatiments’ da campanha abolicionista. Por que não?
Conclui: “Luiz Gama, cujo nome sobrevive como o de um poeta muito sui
generis, foi principalmente um grande tribuno: como jornalista combativo;
como advogado que soube vencer os ardis de uma lei tirânica; como orador.
Mas as artes verbais do jornalista, do advogado, do orador, são como as do
ator: desvanecem-se logo depois da hora da luta e do triunfo. Pálida
continuará a memória que Luiz Gama deixou, se não fosse aquela simpatia
íntima, motivo e consequência de uma empatia perfeita com o assunto, a qual
devemos a sua ressurreição: o livro de J. Romão da Silva.
Tendo lido o livro, sentimos a mesma admiração do ator por aquele lutador:
um dos grandes caracteres da nossa história (CARPEAUX apud SILVA, J.,
1954, p. 7-9).
Com sabença profunda irei cantando Altos feitos da gente luminosa, (...)
Espertos manganões de mão ligeira, Emproados juízes de trapaça, E outros
que de honrados têm fumaça, Mas que são refinados agiotas.
Ciências e letras Não são para ti: Pretinha da Costa Não é gente aqui.
Caricatura satírica dos amigos Luiz Gama e Américo de Campos, figurada na edição de 28 de maio de
1876, de O Coaraci, um dos periódicos de cunho anticlerical e antimonárquico da época, no qual o
advogado dos escravos era colaborador.
José Maria dos Santos (1942), com autoridade, descreve a posição de Luiz
Gama como o “verdadeiro precursor da campanha abolicionista, iniciada por
ele em 1860”. No Rio de Janeiro, só em 1880, invocou como fonte anterior
ao professor Sud Menucci o próprio Evaristo de Moraes em seu livro A
campanha abolicionista, editado por Leite Ribeiro em 1924. Afirma o autor:
Em três noites seguidas de maio, discursa em praça pública aos soldados que
voltam da Guerra do Paraguai, exortando-os a participar da campanha pela
Abolição da escravatura. Publica no Radical Paulistano seu primeiro artigo
abolicionista, “A Emancipação Progride”, no qual profetiza: “A Abolição da
escravidão, quer o governo queira, quer não queria, há de ser efetuada num
futuro próximo”.
Registre-se que, a aludida imprensa foi considerada, pela quase totalidade dos
pesquisadores, a pioneira no estilo satírico no Brasil. Com respeito ao jornal
O Cabrião, vale a pena transcrever a única análise conhecida sobre o mesmo,
de autoria de Raimundo de Menezes (1954, p. 228-229):
Aquilo foi uma bomba. O paulistano não estava acostumado a tais coisas...
Luiz Gama arremata: “Os bispos dos nossos dias, enfaixados de sedas,
brocados e preciosas pedrarias, são o emblema fiel da vaidade soprada pelo
Diabo, calcando aos pés a principal virtude cristã” (Idem, p. XLI).
Os sócios não aprovaram essa ideia. Mas o jornal nascia como defensor do
princípio republicano, e tão próximo do partido que, entre os acionistas, além
dos próprios Américo Brasiliense e Campos Sales, figuravam personalidades
como Martinho Prado Jr., nosso arquiconhecido Martinico, ovelha negra
republicana de uma família de monarquistas, e João Tibiriçá.
‘A Monarquia não contou em São Paulo, para defendê-la, com uma expressão
de periodismo tão completa e adaptada à sua missão político
-social’, escreveu um historiador.
Parece que os italianos foram, desde muito cedo, dos que mais solícitos se
mostraram em proteger os ideais do então humilde advogado dos negros.
Contou o senhor Antônio dos Santos Oliveira que, no Círculo Operário
Italiano, Gama costumava fazer conferências de cunho emancipador, e que
sempre encontrou ali, contribuição pecuniária para a sua campanha. No fim
das palestras, organizava-se a coleta entre os presentes, que eram sempre
numerosos quando falava o notável tribuno, e o montante de dinheiro
arrecadado, era destinado a alforriar os escravos.
O encerramento da polêmica foi feito por Gama, com um artigo a que deu o
título de “Pela última vez”, o qual, embora muito repetido, precisa ficar
arquivado nas páginas desta biografia. Traz a data de 2 de dezembro de 1869
e tem o seguinte teor:
A prova cabal deste acerto está estampada na sua primeira explicação que
ocorre impressa ‘com caráter oficial’. Eis o motivo porque eu tachei de
‘ingênua e notável’ essa publicação. Será isto um novo decreto?
Havia deixado há pouco os grilhões de inédito cativeiro que sofrera por oito
anos e jurado implacável ódio aos ‘senhores’.
“Eu faço casamentos ridículos, uns velhos babões com moças sem fortuna,
bagunço as festas, introduzindo no mundo os jogos de azar, o deboche, o
risível, o grotesco, o picaresco e o burlesco. Sou o inventor do carrossel, da
dança, da música, da comédia e de todas as novas modas da França.
Resumindo, eu me chamo Asmodeu, o diabo coxo” (SALIBA, 2005, Cad. 2).
Sir Ernst Hans Josef Gombrich, um dos mais célebres historiadores da arte do
século XX, especialmente por seus estudos sobre o renascimento, dizia que a
força da caricatura vinha de nossa capacidade quase infantil de singularizar as
imagens, de torná-las nossas, criando estereótipos que conservaríamos
durante muito tempo em nosso repertório imaginário.
A Revista Ilustrada, de Angelo Agostini, periódico republicano, retratava Antônio Conselheiro de
forma caricatural, com séqüito de bufões armados com velhos bacamartes, tentando “barrar” a
República.
O que faz considerar o Diabo Coxo não apenas um dos primeiros e mais
importantes capítulos da história da imprensa paulista, mas talvez um marco
da nossa primeira e incipiente experiência visual (Cf. SALIBA, 2005).
No âmbito jurídico, Luiz Gama tanto buscava provar que os negros haviam
entrado no país após a proibição do tráfico (1850) como defendia, também,
aqueles negros que, possuindo um pecúlio, esbarravam na intransigência dos
seus senhores que não queriam aceitar a liberdade.
Gama utilizava a imprensa para lutar pela liberdade incondicional,
denunciava a escravidão como fator de degradação do ser humano e da
sociedade.
“São Paulo também demorou a ter uma imprensa própria. O Paulista surgira
em 1823 e durara apenas alguns meses. Nos anos 60 somente o Ipiranga e O
Correio Paulistano (famoso órgão oficial) sobreviviam e se limitavam a
reproduzir anúncios de escravos fugidos, ou a anunciar, vez por outra,
notícias da barca que chegava ou partia de Santos”.
É certo que o veículo duraria pouco, como era comum entre os jornais do
século XIX. O primeiro número saiu datado de 2 de outubro de 1864 e
encerrou-se em 25 de dezembro do mesmo ano; a segunda série teria início
em 23 de julho e duraria até 31 de dezembro de 1865. Mas o jornal cobriria
um período importante, tendo a oportunidade de relatar os impasses da
Guerra do Paraguai, as vicissitudes da Corte (que vivia nos trópicos como se
estivessem em Paris), e o movimento da cidade, que decididamente começava
a se animar.
Mais do que isso, São Paulo seria invadida pelas imagens de Agostini, que
permitiam reconhecer políticos, o imperador D. Pedro II em trajes civis ou
majestáticos e, figuras da corte, como o Conde d’Eu; afinal, tratava-se de um
ambiente que mal conhecia a fotografia: Militão Augusto de Azevedo
publicara, em 1862 seu álbum de imagens, captando com suas lentes,
diferentes pontos da capital paulista – quase uma cidade-fantasma.
Começava-se a “ler imagens” e por aí ainda haveria muitas novidades.
Agostini, artista que crescera entre a arte italiana e a finesse francesa, criava,
com Diabo Coxo, seu primeiro jornal ilustrado e de caricaturas.
Basta citar, mais uma vez, Luiz Gama e lembrar como a “mera semelhança”
pode ser, às vezes, muito mais do que uma “mera semelhança”: “Não foi só
por ser mais alto/Que ele rei julgar-se quis/ Foi pela forma tremenda/Do seu
tremendo nariz/Mas o melhor de seu sestro/É mesmo para pasmar;/Quanto
mais néscio se mostra,/Por mais douto quer passar” (SCHWARCZ, 2005).
José Maria dos Santos explicita que, em 1866, tendo desaparecido O Diabo
Coxo, Américo de Campos e Antônio Manoel dos Reis fundaram o Cabrião,
para onde logo passou, mais uma vez, a dupla Luiz Gama e Angelo Agostini.
Aliás, Américo de Campos, saído bacharel da Faculdade de Direito em 1860,
e o seu irmão Bernardino, também formado em 1863, já tinham sido dos mais
ativos colaboradores do Diabo Coxo, tendo vindo todos juntar-se depois no O
Cabrião. Foi mesmo Bernardino de Campos, então o mais jovem do grupo,
quem começou a se fazer notar como jornalista, pela rigorosa exatidão e a
segura objetividade da sua crítica, qualidades essas que ele tanto devia depois
desenvolver em toda a sua longa e brilhante carreira de homem de imprensa e
grande advogado.
A sua nova carreira, fruto de triunfos e vitórias nos tribunais que lhe
alargaram a esfera de atuação até o ponto de o fazer abandonar o jornalismo,
também lhe permitiu mais uma das suas extraordinárias desforras.
Luiz Gama quis ser bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade
de Direito. Não foi recebido com simpatia, antes com indiferença e rejeição
pelo fato de querer realizar o curso como qualquer cidadão livre. Da má
acolhida que lhe fizeram testemunha Raul Pompeia, num artigo publicado,
em 1884, na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro.
Esse fato trouxe, para a sua nova vida profissional, outro motivo para querer
triunfar sem a ajuda de um diploma, em demonstração positiva de que para
entender de qualquer ramo da ciência humana a inteligência e a boa vontade
bastavam. O curso regular, com verificação periódica dos conhecimentos
adquiridos, representava apenas formalidades oficiais, mas não trazia a
sabedoria. E sem passar pelas arcadas, foi um legítimo expoente de cultura
jurídica de sua época e de seu meio.
Outro aspecto interessante que fez com que o destino conduzisse Luiz Gama
à atividade jurídica foi o fato de ter primeiro servido no gabinete do Dr.
Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, Secretário de Estado, na
função de amanuense, efetuando cópias e registro de documentos e estudando
a legislação aplicada na província. Com ajuda desse mesmo protetor, obtém o
cargo de bibliotecário interino da Faculdade de Direito de São Paulo e, na
condição de funcionário público que era, por várias vezes foi requisitado para
compor o corpo de jurados do Tribunal do Juri.
Igreja de São Francisco e Faculdade de Direito, na foto de Militão Augusto de Azevedo, 1862
Por outro lado, à medida que crescia a sua fama de causídico temido e que se
avolumavam as suas vitórias (ele mesmo confessou, em 1880, ter libertado
mais de 500 escravos) comentavam ruidosamente os triunfos de quem estava
transformando a palavra, oral ou escrita, numa arma perigosíssima para as
instituições. Palavra essa muito mais nociva e danosa para os interesses dos
poderosos do que as leis solenes que o parlamento produzia e que a sociedade
não cumpria. Imaginemos a antipatia, a malquerença, a prevenção que os
senhores lhe devotavam, denegrindo-lhe a reputação, o bom nome, o crédito
e a existência num círculo de desconfiança, de aversões e até de ameaças.
A palavra de Luiz Gama jorrava como um raio enviado dos céus diretamente
para os algozes:
“Meu filho,
Dize à tua Mãe que a ela cabe o rigoroso dever de conservar-se honesta e
honrada; que não se atemorize da extrema pobreza que lego-lhe, porque a
miséria é o mais brilhante apanágio da virtude.
Tu, evita a amizade e as relações dos grandes homens; eles são como o
oceano que se aproxima das costas para corroer os penedos.
Não foram poucos os episódios na tumultuada vida de Luiz Gama nos quais
ele teve de enfrentar a adversidade de seus desafetos, os defensores da
escravidão. A medida que crescia o prestígio de Luiz Gama como tribuno,
crescia também o ódio contra a sua pessoa. Mas não cedia ele nada aos seus
princípios libertários. Ao contrário, a cada instante de sua vida, a cada
momento ou oportunidade de diálogo ou de ação, estava sempre voltado para
uma única causa, uma única razão do seu viver, a liberdade. Conta Sud
Menucci (1938, p. 146-147):
O escravo não respondia. Não tinha o que reclamar, pois o amo fora sempre,
mais que humano, solícito e bondoso. O senhor não se conformava com a
atitude do escravo:
E libertou o negro”.
Era assim que Luiz Gama, em cada fração de sua vida, em cada oportunidade
que se oferecia, não deixava de ser sempre o abolicionista coerente.
“Há cenas de tanta grandeza, ou de tanta miséria, que por completas em seu
gênero não se descrevem; o mundo e o átomo por si mesmos se definem;
assim, o crime e a virtude guardam a mesma proporção; assim, o escravo que
mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitável de direito natural, e o
povo indigno, que assassina heróis, jamais se confundirão.
Eu, que invejo, com profundo sentimento, estes quatro apóstolos do dever,
morreria de nojo, por torpeza, achar-me entre essa horda inqualificável de
assassinos”.
“Estes quatros negros, espicaçados pelo povo, ou por uma aluvião de abutres,
não eram quatro homens, eram quatro ideias, quatro luzes, quatro astros; em
uma convulsão sidérea desfizeram-se, pulverizaram
-se, formaram uma nebulosa.
Nas épocas por vir, os sábios astrônomos, os Aragos do futuro hão de notá-
los entre os planetas: os sóis produzem mundos”.
“‘Assim, o escravo que mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitável
de direito natural ou, então, quando porém, por uma força invencível, por um
ímpeto indomável, por um movimento revoltado, levantam-se (os negros)
como a razão, e matam o senhor, como Lusbel mataria Deus!...’. ‘Estas frases
dariam cunho de veracidade a uma explosão de Gama, num Tribunal do Júri,
defendendo um escravo que assassinara o próprio senhor’” (GAMA apud
MENUCCI, 1938 p. 152-153).
E acrescenta:
“Luiz Gama é o líder negro mais representativo de sua raça. É ele um egresso
do cativeiro, que dedica toda a sua vida a um ideal único: A libertação do seu
povo, que sofria como ele, as agruras do cativeiro. Duas influências
poderosas atuaram na personalidade do famoso abolicionista negro: o
exemplo de sua mãe, dirigindo, na Bahia, levantes de escravos; e a reação
contra a injustiça social personificada na imagem paterna, vendendo o
próprio filho” (Idem, p. 90).
“...desta vez não contra os seus interesses de expansão, como era o tráfico, ou
as suas esperanças, como a fecundidade de mulher escrava, mas diretamente
contra suas posses, contra a legalidade e legitimidade de seus direitos, contra
o escândalo da sua existência em um País civilizado e a sua perspectiva de
embrutecer o ingênuo na mesma senzala onde embrutecera o escravo”
(EVARISTO DE MORAES, 1924, p. 11-12).
O próprio Sud Menucci invoca Evaristo de Moraes para dizer que foi esse
quem mais longamente estudou Luiz Gama, num artigo publicado no jornal
Correio da Manhã, no tradicional e centenário jornal do Rio de Janeiro
(fechado pelo movimento militar de 1964), sob o título “Figuras da Abolição
– um escravizado-libertador – Luiz Gama”. Nesse artigo, Evaristo de Moraes
analisa a famosa expressão de que o escravo tem justificado o direito de
matar seu senhor para alcançar a liberdade e conclui:
Prossegue:
“Há oito ou dez anos foi Luiz Gama à barra do júri de São Paulo, processado
por crime de injúrias contra uma autoridade judiciária; defendeu-se por si
mesmo, brilhantemente, teve de referir grande parte de sua vida passada; a
sala do tribunal, apinhada de estudantes, onde estava quase toda a mocidade
da Academia de Direito, a todo o momento cobria de aplausos a voz do réu, a
despeito da campainha do presidente; o júri o absolveu por voto unânime, e
foi Luiz levado em triunfo até à casa. Como defensor de escravos perante o
júri, foi mais de uma vez chamado à ordem pelo presidente do tribunal, por
pregar francamente o direito da insurreição: ‘Todo o escravo que mata seu
senhor’, afirmava Luiz Gama, ‘seja em que circunstâncias for o faz em
legítima defesa’” (MENDONÇA, 1920).
A manutenção foi requerida e ventilada em juízo pelo sr. Luiz Gama, que,
como outras pessoas, achava-se comissionado pela Loja Maçônica América,
de proteger perante os tribunais causa daquela ordem” (AZEVEDO, Elciene.
1999, p. 95).
Este fato servirá igualmente para perpetuar o glorioso triunfo na defesa que
fez ele de si próprio, ante o ilustrado Tribunal do Júri da briosa capital de São
Paulo, reunido no 28 de dezembro do presente ano de 1870 para julgar do
iníquo processo que lhe foi há um ano engendrado sob o fútil pretexto, mas
com o propósito prudente de afastá-lo da brilhante, posto que espinhosa,
posição que ocupa na sociedade como advogado gratuito das causas de
liberdade em toda a Província de São Paulo’” (Idem, p. 195).
Duas famílias grandes, cada uma com três gerações de cativos – com certeza
as famílias “fundadoras” da senzala –, concentravam a grande maioria das
ocupações que não eram de “lavoura”. Ao mesmo tempo, forneciam
proporcionalmente mais compadres para a senzala do que os outros grupos na
fazenda, em especial o conjunto de cativos relativamente “recém-chegados”,
que praticamente não contava com escravos domésticos, qualificados ou com
laços familiares entre si.
“Mentira!
“Atentem nisto!
A liberdade,
Sem piedade,
Eu vendo como Judas vendeu Cristo”.
Outra ocasião fora processado por calúnia contra um juiz, fazendo sua
própria defesa e de forma tão espetacular, foi aplaudido por diversas vezes.
Após a absolvição, a estudantada acompanhou-o em triunfo da sala do
tribunal até sua casa. Criou vários inimigos e por diversas vezes foi ameaçado
de morte. Luiz Gama, quando ia a Campinas para defender a causa libertária,
arriscava a sua vida. Mas à medida que seus adversários radicalizavam,
respondia com mais radicalização: “Perante o direito é justificável o crime de
homicídio perpetrado pelo escravo na pessoa do senhor”.
“‘Hoje, pelas 6 horas da manhã, o senhor dr. Rafael Tobias de Aguiar veio à
cidade, mandou chamar à sua casa, na travessa de Santa Teresa, o pardo
Narciso, que trabalha fora, a jornal, mandou tosquiar-lhe os cabelos e aplicar-
lhe seis dúzias de palmoadas, para curá-lo da mania emancipadora de que
estava acometido...!’.
Gama lembrava, para maior dramaticidade do caso, que Tobias de Aguiar era
formado em Direito, já fora deputado e juiz municipal, e integrava os quadros
do Partido Liberal, cujos princípios se fundavam na liberdade, igualdade e
fraternidade. Paralelamente, num bilhete enviado ao adversário, avisava: ‘O
pardo livre Narciso, a quem V. Sª mimoseou hoje com seis dúzias de bolos
acha-se em minha companhia, e bem garantido de novos atentados’.
A luta de Luiz Gama foi uma verdadeira tarefa de Hércules, que poderia até
desanimar os mais bravos, mas não ao paladino, culto e perseverante em seu
ideal de abolir o injusto cativeiro. Estabelecendo, assim, a redenção final do
sofrimento de uma raça inteira, fazendo valer junto aos tribunais o verdadeiro
direito do ser humano, que então só era reconhecido para os brancos. Assim,
aceitou os ditames, os dispositivos draconianos, a jurisprudência cruel, e veio
para os tribunais discutir a honestidade, a retidão, a lisura de sua aplicação
contra os negros.
Obviamente que Luiz Gama tinha razão, posto que, em se tratando de pedido
de habeas corpus o juízo competente é onde o cidadão se encontra detido.
Vê-se assim que estava formado e demonstrado o caráter forte e sensível,
como um cristal e como um bronze ao mesmo tempo, como anos depois dele
aludira Rui Barbosa (na conferência sobre o abolicionismo em 18 de maio de
1911).
Art. 10º – Em qualquer tempo em que o preto requerer a qualquer juiz de paz
ou criminal, que veio para o Brasil “depois da extinção do tráfico” o juiz o
interrogará sobre todas as circunstâncias que possam esclarecer o fato, “e
oficialmente procederá” a todas as diligências necessárias para certificar-se
dele, obrigando o senhor a desfazer todas as dúvidas para certificar-se dele,
obrigando o senhor a desfazer todas as dúvidas que se suscitarem a tal
respeito. Havendo presunções veementes de ser o preto livre, o mandará
depositar e procederá nos termos da lei.
A luta gradual do legislador a favor dos escravos prosseguia.
Uma tal providência (alude à pretendida revogação das leis de 1818 e 1831),
que contraria de frente os princípios de direito e justiça universal, e que
“excede os limites naturais do poder legislativo”, não podia deixar de elevar
por um lado os escrúpulos de muitos, e por muitos, e por outro, provocar
enérgicas reclamações do governo inglês, que podia acreditar ou bem
aparentar, a crença de que assim, o Brasil iria legitimando o tráfico, não
obstante a promessa de o proibir, como pirataria. Entendo, pois, que tal
doutrina é insustentável por mais de uma razão.
Um único meio assim resta para reprimir o tráfico, sem faltar as duas
considerações acima declaradas (impedir a importação e manumitir os
importados), e é, deixar que a respeito do passado continue, sem a menor
alteração, a legislação existente, que ela continue igualmente a respeito dos
pretos introduzidos para o futuro, mas só se apreenderem depois de
internados pelo país e de não pertencerem mais aos introdutores. Assim
consegue-se o fim, se não perfeitamente, ao menos quanto é possível.
Os filantropos não terão que dizer, vendo que para novas introduções se
apresentam alterações eficazmente repressivas, e que, “para o passado”, não
se fazem favores, “e apenas continua o que esta”.Por isso entreguei não só a
formação da culpa, como todo o processo ao juiz especial dos auditores de
marinha (juízes de direito) com recurso para a Relação, “Bem entendido, só
nos casos de apreensão no ato de introduzir, ou sobre o mar” (Luiz Gama,
1904, p. 188-199).
Fica evidente não só que as leis de 1818 e 1831 eram consideradas em vigor,
como que “só por disposição expressa” podiam ser alteradas ou revogadas.
Era uma tentativa de tornar letra morta a lei anterior, que mantinha proibido o
tráfico. Afinal, pelos interesses e responsabilidades dos ingleses, apressava-se
a Abolição. O governo inglês protestou energicamente contra a adoção desse
projeo de lei, como atentatório aos tratados existentes, e o projeto adormeceu
no Senado.
A imagem do Brasil, no conselho das nações entendidas como “civilizadas”,
estava profundamente deteriorada não só em razão da subsistência do regime
escravocrata, como também pelo desrespeito ao cumprimento de tratado
internacional e da própria lei interna de 1831, que já havia abolido a
importação de novos escravos da África. Quem dá uma síntese dessa imagem
é Luiz Felipe de Alencastro (1999, p. 28-29):
O paradoxo disso tudo é que, sendo o ser humano livre por natureza, a
escravidão, na contramão dessa verdade inconteste, obrigava a compra de
uma liberdade que, na verdade, já deveria de ser ínsita.
Caderneta de poupança da escrava Joanna, movimentada de 1884 a 1887. Nos registros, a cessão do
depósito pela compra de sua liberdade (imagens cedidas pelo Museu Histórico da CEF – DF, nº 238/80,
273/80 e 437/80).
Registros das cadernetas de poupanças dos escravos Lourenço, crioulo, e de Manoel, preto.
Essa situação foi de extrema utilidade para Luiz Gama. Em suas infindáveis
defesas dos oprimidos, debatia-se Luiz Gama em todos os tribunais na defesa
da liberdade do escravo, ora argumentando com o Bill Aberdeen, ora
argumentando com a proibição do tráfico a partir de 1850, ora argumentando
com a Lei do Ventre-Livre, ora argumentando com a lei que proibiu o tráfico
interno. Finalmente, e já com a Princesa Regente, foi expedida a Lei nº 2040,
de 28 de setembro de 1871, Lei do Ventre-livre, cuja epígrafe assim está
redigida:
Mas isso não é tudo. Também com a Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871
e seu regulamento pelo Decreto nº 5135 de 13 de novembro de 1872,
conhecida como Lei do Ventre-Livre, a discussão perdurava com a
resistência escravagista argumentando juridicamente com o princípio não
aplicável de Partus sequitur ventrem, ou seja, o produto do ventre a ele
pertence, quer dizer, se é filho de escrava, escravo é. Ao contrário, os
abolicionistas como Luiz Gama entendiam que o princípio aplicável seria o
do partus sequitur pat rem, ou seja, o produto de ventre é outra coisa
independente do mesmo, portanto, não importando ser o ventre escravo se o
produto em sendo outro, por consequencia é livre.
Luiz Gama argumentava, nesse ponto como Joaquim Nabuco, divergindo dos
juristas dos fazendeiros que pretendiam não aplicar a liberdade dos nascituros
gestados antes da edição da lei do Ventre-Livre pela invocação do princípio
“bárbaro do direito romano – partas sequitur ventrem” ao invés de aplicar-se
o princípio “mais nobre do direito feudal – partus sequitur pat rem” (cf.
FIGUEIREDO, 2003).
A primeira, em que sua proprietária havia estipulado seu preço em “um conto
de réis” e a cativa argumentava o excessivo preço estabelecido para a compra
de sua liberdade e daí porque depositado o valor judicialmente pedia o
necessário arbitramento judicial. Mas, no caso de Luzia, quando tudo ia
terminar para um final feliz, o filho de sua proprietária deu sumiço a ela,
tendo sido mandada, então, para a Casa de Correção da cidade. Luiz Gama
não deixou por menos, e requereu o mandado de busca e apreensão. A
história da escrava Polidora é semelhante e Luiz Gama demonstrou a
disparidade de posturas dos juizes, num conflito de concepções. Dizia ele
que, se antes de 1871, a defesa do senhor tinha uma concepção liberal em
defesa da propriedade, agora era a tecnicidade do processo que residia a sua
atuação em favor desses escravos, embora sem estar devidamente
regulamentada, a Lei de 1871 (Lei do Ventre-Livre). A discussão, por essa
época, para Luiz Gama, se alongava muito na questão da interpretação do
artigo 4º da Lei de 28 de setembro de 1871, que reconhecia o direito ao
escravo formar seu pecúlio para obtenção da alforria, posto que, os
advogados dos senhores argumentavam, amparados no direito de
propriedade, para dizer que o valor do bem deveria ser dado pelo senhor e
não pelo arbitramento judicial.
Luiz Gama, nesses casos e nesse período, argumentava que se deveria ler e
interpretar a Lei de 28 de setembro de 1871, não pelo que ela continha por
escrito mas, fundamentalmente, por sua intenção. E, ironicamente,
argumentava que essa lei não estabelecia a manumissão legal ou forçada,
posto que:
E esta hipótese sempre verificar-se-á toda vez que alguém queira remir o
escravo judicialmente, e pelo seu justo valor, do cativeiro legal em que
estiver (...)
Ainda sobre esse rumoroso caso da escrava Polidora, no qual Luiz Gama
atuou com garra extraordinária, no embate que travou com o juiz Santos
Camargo. Mais de um artigo crítico deixou registrado no jornal Correio
Paulistano, dessa vez no dia 3 de agosto de 1872, dizendo que “os decanos
da famosa academia paulistana” deviam “cobrir as frontes envergonhados”
por terem dado o diploma àquele juiz e, entre outras, diz:
Petição redigida por Luiz Gama em 1872, solicitando a alforria do escravo Fortunato, que fugira de
Botucatu para São Paulo, por não suportar as torturas infligidas pela família de seu senhor.
“... alguns pensam que o habeas corpus data do Código do Processo (1832);
minha opinião é contrária. Entendo que, embora caiba aos autores do Código
do Processo a glória de terem compreendido e tratado de desenvolver o
pensamento constitucional, todavia o habeas corpus é instituição, o habeas
corpus está incluído, está implícito, na Constituição, quando ela decretou a
independência dos poderes e quando deu ao Poder Judiciário o direito
exclusivo de conhecer de tudo quanto entende com a inviolabilidade pessoal”
(In: Pontes de Miranda, 1967,p. 285).
Com propriedade, Mossin (2008) resume:
Como é de conhecimento dos juristas, o writ of habeas corpus pode ser usado
contra ato ilegal do particular que “percuta sobre a liberdade corpórea do
indivíduo”. E prossegue o festejado autor: “Com o advento do Código do
Processo Criminal, instituido pela lei de 29 de novembro de 1832, já se
lavrava esse entendimento”(p. XVIII).
A expressão habeas corpus no direito pátrio surgiu nos arts. 183 e 184 do
Código Criminal de 1830, que cuidava dos crimes contra a liberdade
individual. Dizia ele:
Todavia, do ponto de vista jurídico, rigorosamente esse tipo penal era inócuo,
posto que inexistia norma legal processual para o habeas corpus, o que
somente adveio com o Código do Processo Criminal de 29 de novembro de
1832, em seu art. 340:
“Todo o cidadão que entender que ele ou outrem sofre uma prisão ou
constrangimento ilegal em sua liberdade tem direito de pedir uma ordem de
habeas corpus em seu favor”.
Essa referida legislação, por exemplo, tinha seção com o título “Da Execução
da Pena Capital” estabelecendo no art. 514 que a execução não poderia se dar
em domingo, dia santo ou de festa nacional; que será executado na forca onde
o réu tiver cometido delito e que a mesma será demolida após a execução; no
art. 515 dando poderes para o juiz requisitar força militar e que no dia da
execução o réu deveria ser conduzido pelas ruas mais públicas até o lugar da
execução; no art. 516 que os corpos dos enforcados seriam entregues aos seus
parentes e amigos que o pedirem, sendo proibidos enterrá-los com pompa sob
pena de prisão de um mês a um ano; no art. 517 que “A mulher prenhe não se
executará a pena de morte sinão 40 dias depois do parto”; no art. 518 a
permissividade de pena de galés e com o trabalho forçado.
Todavia, o art. 602 continha uma disposição muito interessante favorável aos
abolicionistas e muitas vezes utilizada pelo próprio Luiz Gama. Dizia o texto
legal:
Por outro lado, a partir do art. 688 é tratado da questão da competência para o
habeas corpus. Logo, porém no art. 689 surge a primeira restrição
hermenêutica para a aplicação da disposição para o escravo, pois o texto é
redigido para “todo o cidadão brasileiro para si ou para outrem” e “o
estrangeiro para si”. Como é sabido o escravo não era conceitualmente
considerado “cidadão”, portanto excluído dessa disposição legal.
Quer dizer que para Oliveira Machado Deus não fez distinção entre os
homens para a aplicação desse libertário instituto jurídico do habeas corpus.
Por via de consequência, se Deus não estabeleceu a distinção, como corolário
lógico o homem também não pode estabelecer. Logo, no melhor juízo, o
instituto do habeas corpus poderia ser aplicado tanto para o homem livre
como para o homem cativo.
“Art. 10. Em qualquer tempo em que o preto requerer a qualquer Juiz de Paz,
ou Criminal, que veio para o Brasil depois da extinção do tráfico, o Juiz o
interrogará sobre todas as circunstâncias, que possam esclarecer o fato, e
oficialmente procederá a todas as diligências necessárias para certificar-se
dele: obrigando o senhor a desfazer as dúvidas, que suscitarem-se a tal
respeito. Havendo presunções veementes de ser o preto livre, o mandará
depositar e procederá nos termos da lei”.
...
e,
Código de Processo Criminal do Império - Art. 353 - A prisão julgar-se-á
ilegal:
1º ... 2º Quando o réu esteja da cadeia sem ser processado por mais tempo do
que marca a lei. e,
Código Criminal do Império - Art. 2º – Julgar-se
-á crime ou delito:
1º ...
Não será punida a tentativa de crime ao qual não esteja imposta pena maior
que a de dois meses de prisão simples ou de desterro para fora da Comarca.
e,
Código de Processo Criminal do Império - Art. 12 – Aos Juízes de Paz
compete:
1º ...
2º ...
4º – A data da matrícula;
5º – Averbações.
...
Art. 56 – O escravo que, por meio de seu pecúlio, puder indenizar o seu
valor, tem direito à alforria (lei – art. 4º § 2º).
e,
e,
§ 3º – Pela matrícula de cada escravo pagará o senhor por uma vez somente o
emolumento de quinhentos réis, se o fizer dentro do prazo marcado, e de mil
réis, se exceder o dito prazo. O provento deste emolumento será destinado a
despesas da matrícula, e o excedente ao fundo de emergência.
§ 4º – Serão também matriculados em livro distinto os filhos da mulher
escrava que por esta lei ficam livres. Incorrerão os senhores omissos, por
negligência, na multa de cem mil réis a duzentos mil réis, repetidas tantas
vezes quantos forem os indivíduos omitidos, e por fraude, nas penas do art.
179 do Código Criminal.
§ 9º – O governo em seus regulamentos poderá impor multas até cem mil réis
e penas de prisão simples até um mês.
...
Originais inéditos de habeas corpus por Luiz Gama: seu racícinio jurídico*
Habeas corpus
Impetrante – Luiz Gonzaga Pinto da Gama Paciente - Braz, Theotonio,
Gregorio, Antonio, Manuel, Agostinho, Mathias e sua mulher Joanna
Lançado a f1. 22, do livro competente
Senhor
Ante V. M. Imperial com mais profundo respeito, vem Luiz Gonzaga Pinto da
Gama, d'esta cidade, requerer uma ordem de habeas corpus em favor dos
oito cidadans Braz, Theotonio, Gregorio, Antonio, Manuel, Agostinho,
Mathias e sua mulher Joanna, detidos na Cadeia de Pindamonhangaba, por
ordem ilegal do Juiz respectivo.
Nesse mesmo dia, Martins Guerra por haver cessado a inteira dicção, que
fôra-lhe posta, por sofrer de alienação mental, iniciou a direção de seus
bens, libertando generosamente todos os seus escravos, em numero de
dezoito; isto adquiriu plena publicidade sem reclamação de ninguem.
Alem disto, não foi no foro competente, pelos meios ordinarios, provada a
fraude para concessão da alforria; e declarada, consequentemente a sua
improcedencia legal.
Nesse pedido de habeas corpus Luiz Gama, com muita astúcia, argumentou
em várias frentes. Primeiro, que tendo o valor do imóvel já garantido a
execução, a inclusão do patrimônio humano dos escravos constituiria um
verdadeiro “excesso de segurança” processual. Argumentou, ainda, que “as
fraudes não se presumem”. Argumentou, também, que não foi provada a
fraude para a concessão da alforria pelos meios ordinários e concluiu o
raciocínio jurídico alegando que se já eram os seus clientes cidadãos
brasileiros, posto que libertos, não poderiam ocorrer tais atos atentatórios à
lei, não podendo ser objeto de sequestro, nem mantidos na prisão. E,
finalmente, arremata com uma forte ironia de que o Juiz Municipal que assim
procedera era “parente do depositário”, não tendo procedido com reflexão
“em conjuntura de tamanha gravidade” eis que “as questões pecuniárias não
prejudicam a liberdade” invocando o “Inst. Just./: de eo cui libertat. Caus. III,
12”.
Finalmente, vale ressaltar que Luiz Gama, nesse habeas corpus, com
pioneirismo, invocou o instituto da suspeição e impedimento do magistrado,
a época inexistente no ordenamento processual. Até nisso foi um advogado
pioneiro.
Nesse caso, nossa pesquisa não obteve acesso à decisão do Tribunal de
Relação.
Habeas corpus 88, de julho de 1882. Pedido de soltura a um tenente, não escravo, ilegalmente detido
em um quartel em razão de mera questão burocrática do Poder Judiciário.
Luis Gonzaga Pinto da Gama, Nesta Cidade, com o mais profundo respeito,
vem requerer a Vossa Majestade Imperial a concessão de uma ordem de
Habeas corpus em favor do Tenente Elizeu Dantas Bacellar, absolvido por
Accordão neste Colendo Tribunal e ilegalmente detido no Salão do Estado
Maior do Quartel da Liura da Capital, por falta de ordem de solutra do Juizo
da Culpa, que é o de direito da Comarca de Capivary, desta Provincia.
Comentário:
Nesse pedido singular de habeas corpus, Luiz Gama advoga para um não
escravo, demonstrando que, também atendia a outros pleitos, desde que
justos, não sendo pois, um radical que só socorria os de sua cor, valendo seu
exemplo para os dias de hoje quando algum radicalismo sobre etnia possa
dividir a sociedade brasileira entre brancos e não brancos.
Nesse caso, o pedido de habeas corpus foi a favor do Tenente Elizeu Dantas
Bacellar ilegalmente detido num quartel da Capital tão só pelo atraso na
ordem de soltura do Juízo da Comarca de Capivari, no interior da Província
de São Paulo, no que foi atendido, ou seja, por mera questão burocrática do
Poder Judiciário, fato esse infelizmente ainda hoje corriqueiro como
recentemente demonstrou o atuante Conselho Nacional de Justiça. No caso
desse habeas corpus, o advogado Luiz Gama foi atendido.
Habeas corpus 92, de agosto de 1882. O advogado implora em favor de dois estrangeiros espanhóis,
supostamente autores de ferimentos a um guarda noturno, todavia, sem provas de culpa.
HABEAS CORPUS 92
1882 Relação – São Paulo fls 1
Habeas corpus Nº 92 Capital
Senhor
J Villaça. P (assinatura)
Comentário:
Nesse outro pedido de habeas corpus Luiz Gama volta a “implorar a ordem
de habeas corpus” em favor de dois estrangeiros, espanhóis, Lourenço
Ganzabis e Santiago Vilarinho, indevidamente detidos na cadeia como
supostos autores de ferimentos na pessoa de um guarda noturno. Ocorre que a
detenção fora a 29 de junho e passado “um mês e seis dias”, ou seja, além do
prazo legal de oito dias, não havia ainda sido feita a formação de culpa em
oito de agosto.
Habeas corpus 01
1874
Petição
de
Habeas corpus
nº 1
Tribunal da Relação de São Paulo
Com o devido acatamento diz Julio Gerard, detido na cadeya desta cidade,
por condennação contra este proferida, por crime de banca-rôta, que tendo
sido absolvido de dito crime, por Accordão do Egregio Tribunal de Relação,
do qual com a presente petição, existe certidão autenticada, que
respeitosamente requer á V. Ex. que se digne mandar, em seu prol, passar
Alvará para que seja relaxada a custódia.
Nestes termos.
P. a V. Ex. benigno deferimento, e São Paulo 5 de março de 1874. Luiz
Gama
Apresentação
Aos 9 de março de 1874, me foi presente o officio retro da, 1ª vara, digo, do
Juis de Direito da 1ª vara da capital. E para constar faço este termo. Eu
João Baptista de Moraes, Secretario
-
De conclusão
E logo no mesmo dia, mês e anno supra mencionados, faço estes autos
conclusos ao Senhor Desembargador José Norberto dos Santos, relator deste
habeas corpus. Eu João Baptista de Moraes, Secretario, escrevi.
Terceira página do habeas
corpus 01.
Quarta e última página do habeas corpus 01.
(Assinaturas ininteligiveis)
De publicação
Aos 13 de março de 1874, nesta Imperial cidade de São Paulo, em a sala das
audiencias da Relação me forão entregues esses autos com o accordão supra
e retro. Eu João Baptista de Moraes. Secretario da Relação escrevi.
Custas na Relação
Comentário:
Nessa petição de habeas corpus, Luiz Gama, em outro caso para um “não
negro”, Júlio Gerard, detido por acusação de “crime de banca-rôta”, mas com
a absolvição pelo Acórdão do Tribunal de Relação.
Habeas corpus 22
(4 assinaturas ininteligíveis)
O facto que deu origem á prisão é hum escândalo. Roubo commetido pelo
italiano Pascoal Calderaro; roubo commetido á sombra da Lei; com arrojo
inaudito, e sob os auspícios da autoridade publica, seja bôa-fe foi
ignominiosamente illaquiada.
Pascoal Calderaro vendeu na taverna a Antonio Ribeiro por quinhentos e
sette mil reis $ 507(...) e por conta desta renda recolheu $ 350 (...); e quando
mais tarde lhe foi o comprador pagar o restante - $150 (...), o vendedor
negou-se a receber a quantia!... e 4 dias depois aprezenta-se com meirinhos
a praça de urbanos, e hum mandado de despejo da autoridade, contra o dono
da casa!...
Isto, Senhor, dá-se na Capital de S. Paulo; e bem deixa res quanto póde
Calderaro em fraudes, e do quanto nam seria ella capaz, em outros logares
menos civilizados!...
Senhor
Luiz Gama
Do exposto vê-se que não expedi mandado de prisão contra Antonio Ribeiro,
mas sim que foi elle preso em conseqüência de haver desobedecido e
resistido á uma ordem deste juízo passadas em virtude de uma sentença do
Sr. Dr. Juiz de Direito da 2ª Vara.
J. Villaça P.
A. Britto
B. Barros de Lacerda
Comentário:
Luiz Gama ----- Impetrante. João Franco de Moraes Octavio ------ Paciente
Aos vinte e três de abril de mil novecentos e setenta e nove, autuei a petição e
documentos que seguem n’este Tribunal de Relação por este termo. Eu,
Herculano Marcos Inglês de Souza, secretário do Tribunal o escrevi.
Senhor
(5 assinaturas ininteligiveis)
E, por estes factos, e com estas provas, com illaçoens tam extravagantes,
baseado o Juiz nas Leis pátrias, sem mais outras ocurrencias, á mingoa de
outros argumentos, foi realizada a prisão do paciente!...
Luiz Gama
Senhor.
Senhor!
No mesmo dia em que constou a concessão de ordem de habeas corpus, em
prol do paciente, tractou-se, com precipitação admirável, e até então
desusada, de pôr termo à formação da culpa: requereu o Autor desistência
do depoimento da testemunha que faltava inquerir; o Doutor Promotor,
sendo a prova [...], conveio na desistência; e o Juiz-Municipal Supplente
nam só concedeu a desistência immediatamente, como ordenou, para logo, o
interrogatório do Acusado.
Aos nove de maio de mil oitocentos e setenta e nove, faço estes autos
conclusos ao [...] da Relação Cavalheiro Agostinho Luiz da Gama, e fis este
termo: Eu Herculano Marcos Inglês de Souza, Secretario, o escrevi.
Aos nove de maio de mil oitocentos e setenta e nove me foram dados estes
autos com o accordão (...), publicado em audiência de hoje, e fiz este termo
para constar. Eu Herculano Marcos Inglês de Souza , Secretario, o escrevi.
Comentário:
O suposto delito fora considerado “provado” por uma única testemunha que,
promiscuamente, desempenhou o papel de denunciante e mandatário, bem
como de um tal Eusébio que confessou em depoimento ter extorquido tal
testemunha. Luiz Gama implora pelo decoro da Magistratura Brasileira. O
Acórdão do Tribunal concedeu o habeas corpus com o argumento de que não
há crime de tentativa segundo o art. 2º § 2º do Código Criminal, podendo
sujeitá-lo à providência do art. 12 § 3º do Código de Processo Criminal.
Habeas corpus 60, de julho de 1880. Defesa de um menino negro menor de 14 anos de idade, libertado
conforme a lei e indevidamente detido na cadeia.
Habeas corpus 60
Senhor.
Villaça P.
(Três assinaturas ininteligíveis)
D – por que o escravo, como causa, vale pelos seus serviços, com limitação
legal de capacidade, de tempo, e de valor. (Vid. Lei n. 2040 – 28 setembro
1871 art. 4º §s 3º e 4º - Accord. Super. Trib. Just. Na Revista n. 9057, - Gaz.
Juri. N. 175 vol. 15 pg. 136).
A prisão, portanto, neste caso, sabe ser incabível, é hum attentado; por que a
Lei expressamente prohibe-a; sob o pretexto de deposito; mormente quando
se nam tracta de pleito manumissario , mas de hua execução de sentença,
como penhora, em parte prejudicada, por se ter verificado em individuo que
foi alforriado.
Senhor.
1º – Que o Luiz é menor de quatorze anos e que foi alforriado por seu
legítimo senhor.
2º Que o menor Luiz estava posto na cadeia a título de depósito.
Mas argumenta que não procedem pelo seguinte: a – A lei só proíbe a venda
de bem de raiz durante a demanda.
d – O escravo, como causa, vale pelos seus serviços, com limitação legal de
capacidade, de tempo e de valor (lei 2040 de 28 de set. De 1871, art. 4º §§ 3º
e 4º e Acórdão do Superior Tribunal de Justiça na Revista nº 9057, - Gaz.
Juri. N. 175 vol. 15. pg. 136).
Habeas corpus 61, de julho de 1880. Ratificação para a liberdade de dois africanos criminosamente
postos em ilegal cativeiro, embora fossem livres.
Habeas corpus 61
Capital
Luis Gonzaga Pinto da Gama – Impetrante José e Felippe - Pacientes
SENHOR
Luiz Gonzaga Pinto da Gama, advogado, com devido respeito, vem perante
Vossa Majestade Imperial impetrar ordem de hábeas corpus em favor de
José, manjólo e Phelippe, Moçambique, ambos Africanos-livres,
criminosamente postos em illegal cativeiro, que nos termos do Decreto de 12
de Abril de 1832, artigo 10º, tendo requerido manumissão, perante a
Delegacia-de-Policia, desta Cidade, forão mandados por em prisão.
Luiz Gama para uso licito, vem respeitosamente, requerer a V.Ex por
certidão o requerimento dos Africanos José e Philippe, o despacho por V. Ex
proferindo em nosso requerimento
E.R.Mª
São Paulo 29 de julho 1880
Luiz Gama
CONCLUSÃO
Dessa decisão e dos autos de fls 02 a fls 18, que serão remettidas ao MM
Juiz.
São Paulo 03 de agosto de 1880.
P. J A. Brito
Foi voto acconde do Senhor Juiz de Direito Gama e Melllo
Comentário:
Habeas corpus 63
Senhor.
E fez uma justificação, sem citação de partes, para provar que o preto - João
Carpinteiro -, chama-se Messias, o que Messias conhecido por João; o que,
sob o nome de Messias está matriculado João, que, por esta engenhosa
industria, é seu escravo; e que assim sendo, - João Carpinteiro -, deve-lhe
prestar serviços!...
Nos termos da lei, o escravo declarado livre, pelo facto da falta de matricula,
póde ser revocado á escravidão, por acção-ordinária, competentemente
intentada, por interessado.
21 de Outubro de 1880
Villaça P.
ciente, e informar, se precizo for. Assim
Pede a Vossa Magestade Imperial benigno deferimento, e
E.R.M.
São Paulo, 20 de Setembro de 1880.
Luiz G. P. da Gama
Senhor.
Nesse pedido de habeas corpus a favor de um negro, Luiz Gama acaba por
documentar perante a história os abusos de toda a ordem cometidos contra
um povo oprimido. Demonstrou que o “preto livre”, o africano João
Carpinteiro, fora ilegalmente preso na cidade de Pirassununga pelo fato de ter
pretendido alforriar-se mediante a quantia de um conto de réis fruto de suas
próprias economias e, diante da resistência de seu senhor, requereu perante a
autoridade competente o arbitramento judicial.
Capital
Luis Gonzaga Pinto da Gama Impetrante Ignacia, Francisco, Leandro,
Antonio, Joaquim e Francisco - Pacientes
Aos cinco de outubro de mil oitocentos e oitenta, nesta Imperial cidade São
Paulo na Caza da Relação, autuo a petição e documentos que seguem, e fiz
este termo. Eu Herculano Moraes Inglês de Souza, Secretario, o escrevi.
Senhor.
Villaça P.
Assinaturas
A primeira, diz-se, e segredo, com mysterio; que foi recolhida por simples
pedido do senhor!...
Os demais por suspeita de haverem fugido dos seus senhores!...
A policia tem, de balde, chamado, por annuncios, aos suppostos senhores;
estes não tem apparecido; os pacientes continuam no cárcere, ou em
trabalhos forçados!...
A máxima, por a qual se pretende que o Juiz Provedor tenha, sob o domínio
da Legislação vigente, competência para conhecer e julgar da condição de
escravos abandonados, ou não procurados pelos senhores, sobre ser
extravagante, é não só attentatoria do direito, como subversiva da bôa-
rasão.
Conclusão
Alegou que a negra Ignácia estava presa há três anos (desde 01/12/1877 e o
habeas corpus estava sendo requerido em 14/10/1880) por ordem da
Secretaria de Polícia; o negro Francisco preso há dois anos (desde
14/05/1878); o negro Leandro preso há oito anos (desde 20/09/1872)! Os
demais clientes também estavam indevidamente presos há muito tempo.
Diz Luiz Gama que nenhum deles cometeu qualquer crime e sofrem tortura
resultante da detenção sem que se possa explicar o motivo.
E arremata com vigor que “a máxima pela qual se pretende que o Juiz
Provedor tenha sob o domínio da legislação vigente competência para
conhecer e julgar da condição de escravos abandonados ou não procurados
pelos seus senhores, sobre ser extravagante é não só atentatória do direito,
como subversiva da boa razão”.
Habeas corpus 66, de outubro de 1880. Pedido de soltura a indivíduo detido sob a alegação,
fundamentada num simples bilhete, de ter ele cometido ferimentos graves em outra pessoa.
Habeas corpus 66
Capital
Luis Gonzaga Pinto da Gama - Impetrante Luiz Alexandre - Paciente
Senhor
Isto, porém, se-diz nuamente, n’um bilhete, sem provas, sem processo, sem
assento na Lei, e sem o apoyo da bôarasão!...
Villaça P. A. Britto
(Duas assinaturas ininteligíveis)
Comentário:
Nesse pedido de habeas corpus Luiz Gama sustenta a soltura de seu cliente
que estava detido ilegalmente há mais de seis meses na Vila de Paranahyba
sob a alegação de ter ele cometido ferimentos graves na pessoa de um tal
Barnabé José Rodrigues, tudo num simples bilhete, sem prova alguma, “sem
assento na lei e sem apoio da boa razão”.
É digno de nota que os mesmo respeitavel Juiz, que com tanta solicittude, por
sua simples matricula defetiva, mandava entregar, como escravos, a
suppostos senhores, hum homem, tenha tanta dificuldade, tantos escrupulos
em declarar livres, em face da Lei, escravos notoriamente abandonados
pelos senhores.
P. Benigno Deferimento.
São Paulo 8 de Fevereiro de 1881. E.R. Mª
Luiz G. P. da Gama.
De Conclusão
(assinatura ininiteligivel)
Accordão em Relação: que não pode ser deferida a petição inicial; por não
ser illegal a detenção dos Pacientes Leandro e Francisco, Alegada a
informação prestada pelo Juiz da Provedoria, constante de Rª e como já foi
julgado por accordão de 8 de outubro do [...] [...]. Custas ex causa.
São Paulo 11 de Fevereiro de 1881
Comentário:
Nesse caso o Tribunal de Relação não deferiu o habeas corpus, sabe lá por
que razão.
Habeas Corpus 74, de março de 1881. Requerimento para a libertação de um negro, ex-praça do Corpo
Policial Permanente, aprisionado sob argumento de ser ele cativo e fugitivo, embora alforriado
licitamente.
Habeas corpus 74
P.D de HC para seu paciente Francisco Sant'Anna dos Santos, (...) (...) de 18
do corrente, ouvindo-se o Antonio cuja (...) se acha o paciente e o (...) , São
Paulo 15 de março de 1881.
P.Benigmo deferimento, e
E. R. M
São Paulo 15 de março de 1881 Luiz G. P da Gama Conclusão
J Villaça. P
Comentário:
Luiz Gama, retratado em bico de pena de Angelo Agostini, em 1882, ano da morte do advogado.
No período final da vida de Luiz Gama, ele ainda teve oportunidade, com
grande esforço, de instituir a Caixa Emancipadora Luiz Gama, que tinha o
objetivo de arrecadar fundos para a concessão de alforrias. Era o desafio final
aos senhores de escravos. Mas a morte o colheu logo depois, em 24 de agosto
de 1882. Santos (1942, p. 172), utilizou a seguinte expressão para relatar o
enterro do abolicionista, no Cemitério da Consolação, quando a multidão
carregou o corpo do grande líder do bairro do Brás até o da Consolação,
passando de mão em mão numa recusa da multidão em aceitar a concessão de
qualquer transporte oficial para o féretro: “O enterro do antigo escravo,
transformado em animador inicial e mais ativo do mais alto movimento
humano e social que jamais tivemos, constituiu um acontecimento como, no
gênero, ainda outro não foi visto na cidade de São Paulo”.
Desde o meio-dia (o enterro devia ser às quatro horas) que o povo em massa
procurava o cemitério. Velhos, mulheres e crianças, principalmente pretos,
dirigiam-se para a triste necrópole, à conquista de um lugar para aguardar a
chegada do féretro. Duzentos e tantos carros acompanhavam a este, mas
vazios. Era uma verdadeira procissão cívica, composta de perto de 4 mil
pessoas, quase todas as associações científicas, literárias e beneficentes de
São Paulo com os estandartes em funeral, lojas maçônicas de que o morto era
um dos mais graduados etc.
“Há três dias, acometeu Luiz Gama. A legião viva da Justiça caiu de súbito, e
o ruído da sua queda espalhou nos corações de seus companheiros o temor
supersticioso de que são perseguidos por uma fatalidade! [...]
Não a queremos sobre nós, quando vemos que da escravidão sai Luiz Gama e
da aristocracia emprestada pelos fazendeiros do Paraíba do Sul e pela Coroa
saem o senhor Ratisbona e o senhor Paranaguá” (PATROCÍNIO apud
FIGUEIREDO, 2003, p. 210, 215).
“Luiz Gama morreu no dia 24 de agosto de 1882, em sua casa da rua do Brás,
a futura Rangel Pestana. [...] O enterro foi solene e concorrido
– o mais solene e concorrido que São Paulo conheceu, no século XIX. Raul
Pompeia deixou dele uma descrição detalhada. Recordá-lo é recordar também
um pouco dos usos e costumes da cidade, na época. Tão logo soube da
notícia, Pompeia tomou o bonde – bonde de burro – do Brás. Encontrou a
casa devastada pela tristeza, com homens e mulheres chorando. [...] O enterro
estava marcado para o dia seguinte. Pompeia voltou à casa, e encontrou-a já
recoberta com a ‘tristeza mercenária dos aparatos fúnebres’. [...] O enterro
saiu às 16h05. Ia-se cumprir a pé o trajeto até o cemitério da Consolação, ‘no
extremo oposto da cidade’. À frente do cortejo ‘ia uma porção imensa do
povo’. Atrás, rolavam carruagens, a passo lento. Ainda no Brás, uma banda
de música juntou-se ao féretro. ‘Por cima do préstito flutuavam os
esplendores de uma tarde olímpica’, escreve Pompeia. [...] Na ladeira do
Carmo, que dava acesso à cidade propriamente dita, juntaram
-se ao cortejo os integrantes da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios,
congregação a que pertencera Gama, com suas copas azuis e brancas e
enormes velas, ‘grossas como cajados’. Logo depois, seis membros do Centro
Abolicionista de São Paulo tomaram as alças do caixão. ‘A cidade estava
triste’, prossegue Pompeia. Inúmeras lojas tinham as portas fechadas, em
manifestação de pesar; as bandeiras das sociedades musicais e beneficentes
da capital pendiam a meio mastro. Apinhava-se o povo nos lugares por onde
devia passar o enterro. Às janelas acotovelavam-se as famílias. Em alguns
pontos viam-se pessoas chorando. A alturas tantas, partilhavam as alças do
caixão o escravocrata Martinho Prado Jr. e ‘um pobre negro esfarrapado e
descalço’. Mais um pouco, no entanto – isso não é Pompeia que conta, mas
um jornal da época –, e ‘um grupo, dentre o grande números de pretos que
tomavam parte no acompanhamento, não consentiu que ninguém mais
conduzisse o corpo, e eles, revezando-se entre si, conduziram-no o resto do
caminho’. O cortejo adentrou o cemitério quando já caía a noite. Ao pé do
túmulo, um orador levantou a voz para pedir à multidão o juramento de que
não se deixaria morrer o ideal pelo qual lutara Luiz Gama. A multidão jurou”.
Cinco anos após, em 1887 (cf. Toledo, 2003, p. 395), a insurreição em São
Paulo tornou-se movimento revolucionário irreversível, e grupos de negros já
tomavam as ruas da capital. No Pátio do Colégio, apedrejavam os policiais
que guardavam a entrada do Palácio do Governo.
Até 1882, enquanto viveu Luiz Gama, a luta abolicionista era travada
predominantemente no campo jurídico, político e jornalístico, embora já se
notasse o espocar de episódios insurrecionais. Entretanto, após sua morte, o
método de luta abolicionista transmudou-se rapidamente, tendo como
epicentro São Paulo, para a luta revolucionária, inclusive com táticas de
guerrilha, comandadas por vários líderes, destacando-se Antônio Bento, em
São Paulo, e Silva Jardim, na então província do Rio de Janeiro. Curioso é
que este último, sendo paulista, deslocou-se para aquela outra província a fim
de lá implementar a luta guerrilheira pela libertação dos escravos, que era
também grande centro escravagista.
Diz o ditado popular que a boa árvore dá bom fruto. Exatamente foi o caso de
Luiz Gama. Seu filho único, Benedicto
A Província de São
Paulo, em 31 de agosto.
A Província de São Paulo, em 29 de agosto.
A Província de São Paulo, em 1º de setembro.
O Estado de S. Paulo , em 21 de abril de 1910, no dia seguinte ao falecimento do filho de Luiz Gama.
Gracco, pela vida afora, foi um cidadão correto e de grande valor. Honrou o
nome de seu pai. Estudou sempre, inicialmente no Colégio Alemão, depois,
na Academia Militar do Rio de Janeiro de onde saiu oficial do Exército
Brasileiro.
“Luiz Gama nº 0464, foi esclarecido que Luiz Gama fora iniciado na
maçônica no grau 18 do Rito Escocês antigo e aceito (Príncipe Rosa
-Cruz) no dia 23 de abril de 1868, na cidade do Rio de Janeiro e que, no
mesmo ano, a 9 de novembro, com notáveis maçons, fundou a Loja
América”.
Lápide do abolicionista Luiz
Gama, no Cemitério da Consolação, em São Paulo.
A rua Luiz Gama sofreu mutações, ao longo do tempo, com respeito ao bairro
a qual pertence, passando de Pari para a Mooca e finalmente Cambuci.
Somente em 1890, isto é, dois anos após a Abolição e oito anos após a
proposição, o nome foi oficialmente efetivado. Não seria crível, aos homens
de mente escravista, batizar uma rua com o nome de um negro.
Cabe resaltar, tambem, que o nome da rua Luiz Gama só passou a figurar no
mapa da Cidade de São Paulo no ano de 1890, conforme se pode constatar na
planta oficial da época.
Vê-se que à exceção do Estado de São Paulo, onde ele atuou intensamente
pela Abolição, somente uma cidade do interior do Estado do Paraná e outra
em Salvador, capital do Estado da Bahia, onde ele nasceu, prestaram essa
homenagem.
Ferroviários
Estação Luiz Gama, no município de Conchas, no Estado de São Paulo. Foi inaugurada em 23 de
agosto de 1919, recebendo o nome definitivo em 1921.
Herma de Luiz Gama, da escultora Yolanda Mallozzi, inaugurada no Largo do Arouche, São Paulo, em
24 de agosto de 1930.
O IAB é uma entidade dos advogados, que foi fundada em 1843, com sede no
Rio de Janeiro, quando esta ainda era capital do Império. Portanto, é uma
entidade que antecedeu a criação da OAB. Seu Patrimônio histórico e
representativo é dos mais importantes, para a área do Direito. Objetivando
homenagear “uma das figuras mais dignas de serem conhecidas dos
brasileiros, Luiz Gama”, e também porque “entre as finalidades estatutárias
do IAB, inscreve-se a promoção da igualdade racial.
Em 29 de agosto de 2009, foi instituída a medalha com o nome desse
extraordinário advogado, Luiz Gama. O renomado arquiteto Oscar Niemeyer
fez o desenho da mesma, em especial deferência ao IAB. Na mesma data, o
professor Fábio Konder Comparato, professor titular de Direito da
Universidade de São Paulo - USP, em comemoração ao 166º aniversário do
IAB, pronunciou oração em homenagem ao grande tribuno Luiz Gama.
Ineludível é o cordão umbilical que, por toda a vida, uniu Luiz Gama à sua
mãe Luiza Mahin, negra nagô livre, alfabetizada e de origem muçulmana,
participante de movimentos revolucionários em Salvador e no Rio do Janeiro,
onde desapareceu. Ficando perene sua imagem, a um só tempo, meiga e
combativa, na memória do grande Paladino. Por isso, nada mais justa que
essa homenagem fosse associada a seu filho. Sensibilidade teve o prefeito de
São Paulo Mário Covas, baixando o Decreto nº 20.723, de 6 de março de
1985 (p. 1, c. 2), concedendo a ela o nome de Praça na capital de São Paulo:
Palavras finais
“Luiz Gama foi um fenômeno. O homem que triunfou sobre o destino” Júlio
Romão da Silva (ed. 1954, p. 22).
O objetivo dessa obra, foi resgatar a figura emblemática de Luiz Gama,
colocando em destaque, a sua condição de advogado dos escravos.
Perquerindo desde o seu nascimento, em 1830, na cidade de Salvador, Bahia,
sua saga e a magnitude de sua morte, em 1882, em São Paulo, analisando
pormenorizadamente as ações de luta pela liberdade de seus irmãos,
reduzidos pelo estamento de então, à condição animalesca de escravos. O
fundamento e princípio da liberdade e justiça norteou a sua conduta. No
entanto, e isto é importante atualmente destacar, que o fato de ter nascido
negro e, como escravo, obteve por conta própria a sua alforria, elevando-se, a
seguir, à condição de culto e inflamado tribuno, competente e sagaz
jornalista, poeta satírico. Essa trajetoria não o fez acomodar-se às benesses da
sociedade dominadora branca, nem tão pouco tornar-se um arsenal de ódio
contra essa mesma sociedade. Foi, antes de mais nada, um defensor do ideal
de justiça, sem qualquer discriminação. Era um humanista no sentido mais
amplo da palavra. Por isso mesmo defendeu, também, em seus famosos
processos judiciais com habeas corpus não somente para beneficiar negros
cativos mas, também, brancos injustiçados, fossem eles brasileiros ou
estrangeiros, como vimos em alongadas análises de suas petições de “habeas
corpus”.
Luiz Gama foi, então, um personagem do século XIX, que viveu e morreu em
um dos maiores centros escravocratas do país, a província de São Paulo, esta,
já em pleno desenvolvimento da riqueza do café. Tornou-se um símbolo
nacional de resistência negra ao escravismo, de liderança libertária, de
democrática luta política pela abolição e o fim da monárquia. Luta essa no
campo político, jornalístico e jurídico, no enfrentamento direto da sociedade
dominante.
“Infelizmente, não tem sido dado a Luiz Gama, dentro de nosso história, o
destaque que ele merece por sua atuação na preparação da emancipação dos
escravos, talvez porque sua atuação tenha sido em São Paulo e não na Corte,
ou, talvez porque ele desapareceu antes da assinatura da Lei Áurea, não tendo
participado da hora final e não recebendo aplausos e loas tributados a outros.
Entretanto, Voltaire e Rousseau também morreram antes da Revolução
Francesa e a história não lhes nega o lugar de precursores daquele movimento
(1972, p. 107).
Luiz Gama foi um combatente que utilizava, com lógica irrefutável, as armas
da lei e do direito, esse entendido no sentido amplo de direito natural e de
direito positivo. Por isso mesmo, em um memorável julgamento no Tribunal
de Relação de São Paulo (hoje Tribunal de Justiça) no qual um escravo era
julgado por ter matado o seu senhor na luta pela liberdade, para espanto de
todos e gáudio da jovem platéia acadêmica, exclamou: “[...] o escravo que
mata o senhor cumpre uma prescrição inevitável de direito natural [...]” Sud
Menucci (1938, p. 148-149).
Ao contar sua história, buscamos celebrar um justo tributo a Luiz Gama. Ela
caminhou não só reconstituindo e documentando a história para lição
hodierna e futura, como também, para combater o estigma do racismo, da
discriminação de qualquer tipo, por mais residual que ainda permaneça em
nosso meio. E não só. Também auxiliar na construção da cultura de acreditar
na Justiça, como Luiz Gama sempre acreditou, no entendimento de que, fora
dela, não há salvação para a sociedade democrática, como no conhecido e
verdadeiro axioma de direito romano: extra justitia nulla salus.
Referências
ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.) Vida Privada e Ordem Privada no
Império. In: História da Vida Privada no Brasil. v. 2: Império: a corte e a
modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 11-95.
Documentos oficiais
Jornais
REALE JR. Miguel. Ainda a escravidão. O Estado de S.Paulo,06/03/2010,
p. A2. Diversas publicações dos jornais A Provincia de São Paulo, Correio
Paulistano e o Estado de São Paulo, conforme transcrições (diversos
capítulos)
Sites
Disponível em www.rochanegra.com.br/principal.html. Acesso em: 7 ago.
2008.
Agradecimentos
Angela Margarete Caniato Coordenadora de Gestão Documental - Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo
Marcelo Thadeu Quintanilha Martins Diretor do Centro de Acervo
Permanente - Arquivo Público do Estado de São Paulo
Acervo do Museu Republicano de Itu - SP Coleção Francisco Rodrigues,
Fundação Joaquim Nabuco, Recife
Nelson Câmara
Anita, brava e decidida, naquela colina de Roma, a lutar por um mundo de harmonia e
igualdade.
Eros Roberto Grau
Anita Garibaldi
Do Réu Jesus Cristo – História
Prefácio – Dr. Antônio Cláudio Mariz de Oliveira “A obra não aborda apenas
os dois martírios de Cristo – os seus julgamentos – que antecederam ao seu
supremo sacrifício. Ela
faz um esboço histórico sobre a sua vida e sobre seu pensamento. Constitui
uma obra preciosa para o estudo da vida de Jesus, especificamente sobre o
seu comportamento e o dos juízes durante o iníquo julgamento.”
Laguna, 1839, dois olhares se cruzam se
lando o encontro de Anita e Giuseppe,
a paixão e a aventura libertária do casal
Nelson Câmara
Apoio
MULTICULTURAL