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escápula

victor squella

Escápula
© 2019 Victor Squella sumário
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.
Conto de verão 13
Coordenação Editorial escápula
Isadora Travassos
[um pedaço de pêssego]  17
Produção Editorial [enquanto lia sobre um menino vermelho]  18
Alice Garambone [você entende do que estou falando?]  19
João Saboya
Julia Roveri
[no dia de meu aniversário nasceu]20
Rodrigo Fontoura [pense na medusa e em eros]  21
Capa hinos mínimos23
Michaela Manzieri
casa é um nome
[são as mãos — ] 29
[quantas pétalas cabem]30
[é mais fácil]31
[não é assim que se desconstrói]  32
cip-brasil. catalogação na publicação
[numa conversa sobre]34
sindicato nacional dos editores de livros, rj
casa de praia
s761e
Sobre a linguagem de uma casa 39
Squella, Victor
Escápula / Victor Squella. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7 Letras, 2019.
Exercício sobre a fecundação das flores 42
Livro ix: outras notas sobre a brevidade 45
isbn 978-85-421-0830-9
Correspondência: gênese da mirabelle 47
1. Poesia brasileira. I. Título. Epílogo para o que é impossível 49
19-60181 cdd: 869.1
cdu: 82-1(81)
cartas
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária crb-7/6439 Modo de amar xvi53
Carta náutica 55
Decíduo56

2019 retrato
Viveiros de Castro Editora Ltda. Autorretrato como figo e romã 61
Rua Visconde de Pirajá 580 sl. 320 – Ipanema
Rio de Janeiro | rj | cep 22410-002 posfácio – Luiza Leite63
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
como un poema enterado
del silencio de las cosas
hablas para no verme
alejandra pizarnik
Este livro é também de Paulo,
Helena, Miriam & Marília

Para Tia Mara, sempre presente e em festa.


conto de verão

começa com um nome


dizendo um nome
até dar coisa
ao nome
dizer até que apareça
algum tom — cor —
até tornar terra
e então aos poucos
água e alguns relevos

dizer o lugar
e repetir
até que o nome
seja lugar
que o trem seja
apenas língua

não é que não se possa


viajar ao nome
mas os trilhos
já não parecem mais
caber no espaço entre
o dente e a língua

pode-se sempre
prometer que
sim
iremos
tomar o trem
que os trilhos
irão sustentar
nossas bocas
até chegar ao nome

13
escápula

Onde o amante
se insinua
é dia
– luiza neto jorge
um pedaço de pêssego
uma fatia qualquer
poderia
dizer mais
a finura do corte ou
a facilidade com que a faca
pouco afiada rasga a casca
esta cena diria mais

pêssegos figos e kiwis são


tão longe nunca estão
à mão quando preciso quando sinto
vontade de experimentar

pense você na figueira


da sua casa
de infância
pouco importa se confundimos

a imagem que deveria dizer mais do que


pouco importa a imagem
e sim o gesto
o gesto do corte os ademanes da faca
murilo diria os ademanes da mão
que segura a faca e corta figos
em fatias muito finas

estamos debaixo da aveleira cortando


figos pêssegos e os meus pés
sobre sua escápula
para me manter firme sob a sombra
de sua árvore

17
enquanto lia sobre um menino vermelho você entende do que estou falando?
com asas você entende das frutas e das cores? sabe do que falo
que se apaixonava por herakles quando falo de pêssegos e falo de figos
pensava no que um dia por causa de adília e sempre evito uma fala
disse sobre um filme ou diretora sobre romãs pois foi a primeira fruta
que comi neste ano
é difícil assistir seus filmes algo sobre sorte foi o que ela disse
são três dias
de uma vida — no quarto você entende quando faço convites
há um assassinato e depois não consigo dizer? você
entende a vontade de morder
o alívio é o assassinato a maçã no cume
não foi você quem disse da macieira e digo maçã
mas é evidente é o assassinato e não figo ou damasco
o alívio e repito
o que há de chocante não por causa de
num assassinato como alívio? um deus mas
por causa daquele fragmento
o livro termina em que as mãos não alcançam
herakles admirando os homens o desejo
do you see that / beautiful. he is looking at the men
ancash e geryon para o vulcão você entende o cortar de frutas
i mean the fire, says ancash. / herakles grins at the dark. como exercício
we are amazing beings, de divinação?
where they stand side by side with arms touching,

(no mito herakles assassina


geryon e seu pequeno cão
que também é vermelho)

18 19
no dia de meu aniversário nasceu pense na medusa e em eros
esta mancha em teu braço — deixe para lá pentesileia,
todo nascer uma alegria dizem suas máquinas de guerra
alegria não felicidade — medusa e eros eram belíssimos
uma mancha não uma pinta eles eram quase
ou algo natural como uma outra coisa
costuma acontecer
cabelos-serpentes
era uma espécie de cama asas enormes
um leito de linhas
diga-me isso não são monstros
um desenho uma proteção
isso não te aterroriza?

é possível imaginar sylvia plath e me diga que isso


dizendo something dark: não é paixão
não é desejo
i’m alive only by accident ?
ou algo como:
dying is an art like everything else. / i do it exceptionally well pense que pentesileia foi
aterrada
oh these lines. our unborn child ao ver aquiles
the child of a loveless & stillborn
romance — agora pense no poema de paulo
e então with a nod ele diz:
a água é boa e o ar é bom. / a carne é terra: também soa, / também
agradeceria este isto
sobe às nuvens, certo, // e arde como a chama mais impura. /
porém é terra. e só palavras-terra / me aterram.
natimorto
e sim só palavras-terra
aterram
e a terra é carne: também soa

eros the melter of limbs sappho diria em resposta


não em sua língua
mas na de anne carson

20 21
hinos mínimos

no: tongue breaks and thin


fire is racing under skin
and in eyes no sight and drumming
fills ears
– safo (por anne carson)
quando acordar corte-me
romãs — doze sementes
é uma matemática simples
um plano
de fuga —
para que
fique preso
um plano para
que não se abram
abismos

podem rosas
sobreviver
numa caixa? num poema
sim pode
haver rosas violeta
plantadas dentro de uma caixa
para serem presenteadas: é isto
que chamam jardim
de adônis?

eu emudeço diante da sua


escrita com a
qual crava experimentos

você dirige me escreve sob


suas regras
nesta cenas de um filme sobre um jantar

25

onde cortar versos


são necessários os cortes
para que se estanque
isso pode não ser um poema

uma experiência um relato


há apenas esta voz que diz
e diz e diz e diz
há apenas este eco: casa é um nome
o silêncio:

é meio-dia

o que fazer da tua pele?


de todo este excesso
quando está por perto

algo se aproxima do selvagem


próximo ao encontro
do sêmen e do mar

o que fazer da tua pele?


que é como um véu
Wait Mister. Which way is home?
(de herakles) sobre a minha
They turned the light out
and the dark is moving in the corner.
e se me desfaço
– anne sexton
me tornando menos carne —

em que intervalo se esconde o desejo?

26
são as mãos —
as mãos, os dedos
este emaranhado
de linhas

são as mãos
que cravam
buracos
como touros
e seus chifres
no tórax
de um toureiro
espanhol

são as mãos
que moldam
derretem
geram
outros incêndios

são as mãos —

balançando as folhas
como uma brisa
da montanha

são as mãos
de safo

29
quantas pétalas cabem é mais fácil
num nome ter facas à mão
do que frutas
e quantos nomes podem o açúcar
te pertencer sem que algo mude que se oferece
frente ao gume
e quando frente ao nome
permaneci é mais fácil
mudo com as palavras se manter à
dissolvendo cozinha do
nos dentes que à cama
por causa
como naquela manhã com do fogo
as frutas sobre a mesa das facas
como diz
algo se alterou o poema
I sharpened knives
à medida que as palavras All night.
morriam nos dentes e tudo To welcome you
que podíamos ver era por causa In the brilliance of their blade,
dos relâmpagos
que desciam a garganta é mais fácil
aos que correm
com facas
construir uma
casa
em meio de
chamas

30 31
devemos dormir
na cozinha onde
há facas fogo e fica
não é assim que se desconstrói fácil escapar &
uma casa começa-se sempre destruir tudo aquilo
por objetos afiados que chamam
e onde os guardamos casa

gavetas armários armários


dentro de outros armários

começa-se pelas facas


tesouras
vidros with sharp
edges
uma casa começa
sempre
pela cozinha

não é assim
que se constrói
uma casa
dizem
é pela base
e pelas colunas

a cozinha sempre
vem depois
das colunas das janelas
e por vezes
dos quartos

os objetos cortantes
devemos guardar
debaixo de travesseiros
não em gavetas
distantes

32 33
disse meu nome
para mim
se referindo a
numa conversa sobre outro
você foi dito: beijou o
victor... (o c depois de ana luísa amaral
suprimido, é claro
como fazem com o meu)
não era de mim
porém que falavam

este nome
(o meu
e o dele
uma coincidência
que hoje sinto na pele
uma ferida na língua
da mesa de bar)
em inglês o c
não é suprimido
e é ainda mais usado
victor significa
(em tradução livre):
vitorioso

o que há no
meu nome (
que também é
o dele) então?

se há um
victor (o c
não suprimido)
foi quem começou
este poema quando

34 35
casa de praia

eu volto pela brecha


– henri matisse
sobre a linguagem de uma casa

Durante o verão
a casa nunca se deixa
marcar

A poeira não
fixa nos móveis
na mesa apenas

as frutas da estação
sucos com cores
vivas pães e conversas

sem muita preocupação


de serem interessantes
Minha mãe que diz

pesquei estas abóboras


junto com o peixe
que jantamos

ontem
e a conversa que segue
porque sabe-se que

os verbos são ferramentas


com as quais minha mãe
gosta de brincar

A casa segue em
movimento como
cortinas em janelas

abertas porque é assim


que gosto delas
iluminando a casa

39
com a cor do O que faço é permanecer
sol e da areia mudo por alguns segundos
dizendo se podemos e dizer: o mar

ou não descer Como se houvesse uma


até a praia surpresa ali
para lá como se já não vivesse

alguém me perguntar perto do mar


sobre que tipo de pessoa quando não é verão
eu seria se morasse e posso falar minha
ali naquela casa língua e continuar
se trocaria tudo a não me expressar
por hábitos bem
mais saudáveis
diminuir o café
caminhar mais e talvez

me tornar um penélope
me entregar ao bordado
ou algum outro tipo

de crochê talvez
falaria melhor a língua
daqui e nossa

comunicação seria melhor


eu diria que não que
seria ainda mais confuso

e citaria beckett ou
parafrasearia um filósofo
qualquer

que disse quando


concordaram com ele:
então não me expressei bem

40 41
exercício sobre a fecundação das flores o corpo da amante queima
e a areia não é suficiente
para esconder os pés
O que está sendo atrasado?
a pergunta derrama sobre podemos continuar
os pêssegos — cortados é evidente que sim
se uma estação floresce
no café da manhã não deveriam
dizer perguntas deste tipo de outra um verso
mas continuamos espalhando pode florescer também
ao acaso quando
sobre os pêssegos e seus há verde mas o fruto
caroços a mesma pergunta o que não é suficiente para todos
está sendo atrasado? o fruto é também

o verão, um grito. grito-fruto


eu acho: os corpos à beira da de uma boca-semente.
piscina como numa grelha o retorno da amante,

queimando e deixando escapar mas quem retorna?


uma espécie de brilho o que está sendo é mesmo possível esta volta
atrasado? o recolhimento das flores esta transformação. filha

da primavera. É mesmo a primavera em um momento


que vem antes do verão? amante noutro?
um fragmento diz que [?] fez o que há de diferente

três estações, a quarta floresceu neste retorno?


dentre as três. É o retorno (usaremos retorno agora
o que está sendo atrasado? e não volta) de todo

o fragmento é grego modo comemos a polpa


e de grego tudo que habita
tem um pouco. Supondo que sim nas sementes

é o retorno o que está sendo da romã. O corpo está queimado:


atrasado, o que isto significa? a pele, a garganta… não da filha
que a primavera só existe quando mas da amante e se

42 43
da semente já experimentamos se livro ix: outras notas sobre a brevidade
rasgamos com os dentes a polpa
da semente nos resta o desejo p/ clara

pela
pele
O que pode querer
um amor senão
a brevidade de
uma estação?

Basta uma palavra


e o amante é uma
chama branca queimando
durante o verão

enquanto os frutos
apodrecem
por estarem no ponto
mais alto da árvore

e se os cumes estão
mais altos que os olhos
se o amor é mais veloz
que o próprio ato de

foder o que podemos


nós querer de um breve
amor? Há pelo menos
sete maneiras diferentes

de se contar o tempo
e diversas de se ver
uma marca
na parede

44 45
Outubro já começa correspondência: gênese da mirabelle
o tecido do tempo esgarçado —
alongado,
Hoje usei a mesma bermuda que usamos
esburacado
no dia em que cruzamos
Seria esta a linhas
oitava maneira
que separam uma terra da outra
de se contar
Lá não falavam a minha ou a tua
o tempo? Contando
língua era outra mas certas palavras
seus buracos olhando-os
ou nomes nos confundiam
de fora para dentro
pela sua semelhança
em busca de
pois todas as três línguas estranhas
outras formas de
entre si dividiam a gênese latina
amor que não seja E de uma língua para outra bastava
aquele que diz: um trem com exceção de uma separada das outras
estas conchas
me incomodam por um oceano
Poderíamos listar aqui como fizemos
lá o que une as três línguas

O latim
O mar
As praias

Mas não
não seria suficiente para dizer da confusão
que fazíamos quando queríamos pedir

algo para refrescar o calor


e nem mesmo a água parecia gelada o suficiente
nem mesmo a praia parecia o lugar ideal

para aquele sol e é por isso que te escrevo


Pois encontrei um punhado de areia
na bermuda que usamos

46 47
naquele dia ou naqueles dias naquela cidade epílogo para o que é impossível
pois pedi que me deixasse com aquilo
com aquela bermuda que tinha a mesma cor
Aqui eu retorno ou retomo certas coisas
da fruta que comemos sem saber o nome que não foram ditas por muitas razões
e ficamos sem saber por dias talvez porque já foram ditas por poetas gregos
sabendo apenas do sabor
mas foram queimadas nos papiros e não
O sabor me vestia bem mas a cor teremos de volta uma palavra pra descrever
não nunca me vestiu bem e mesmo como eu estou sempre me virando para olhar
a bermuda sendo sua continuei para trás na espera que alguém me flagre
andando pela cidade de pedra procurando
a não saber vestir aquela cor
pelo jardim vermelho pelas asas vermelhas
por culpa da pele e por culpa
da cintura que não cabem pelo menino vermelho que ficou congelado
para sempre naquela tela entre o quarto
neste tom de amarelo escuro
e o mundo ambos vermelho
que alguns chamariam de vermelho
como chamam aquela fruta selvagem Retorno ao trabalho de inventariar palavras
queimadas no fogo vermelho dos papiros
que viajou da Anatólia até chegar àquela por mais que não haja evidência que foi tudo queimado que
cidade e receber o nome certo trabalho
Mirabelle que poderia ser o mesmo
foi do tempo mas imagino agora tudo neste tom de vermelho
da mulher que as cultivava e que e então vem o fogo e o vinho e todas as outras coisas
as ofereceu dizendo que associamos a esta cor
coisas velozes
como o suor É apenas suor mas eu gosto de observar
e não sabíamos nunca onde começava como percorre a coluna que se dobra e se ajeita com a calma
ou de quem está em alto mar
terminava uma
Aqui eu retomo com as minhas palavras
palavra vermelhas
e não mais a de outros poetas em outros tempos

devo dar-lhes ou não nome?


Quando esta pergunta surge sempre penso nas flores
que chamam wild flowers e como quando pergunto

48 49
que flor é esta? é uma flor selvagem
respondem como se não tivesse dado o nome
para tudo que é selvagem mas por que

domesticariam uma flor? uma flor não


oferece os perigos de um tigre ou urso
até mesmo um salmão oferece mais perigo

do que uma flor


Talvez por não termos o hábito de comer
flores mas sim peixes e todo corte que uma flor oferece cartas
é mínimo se pensarmos nos dentes de um tigre ou nas garras
de um urso no meio da floresta
e agora eu retorno ao meu país

onde foi inverno todo este tempo


e agora é primavera mas o suor
continua a percorrer e eles continuam a remar

como que em alto mar para que eu observe


uma figura cada vez menor
através desta lente desta câmera que você escolheu

para ver-me
toda vez virando
olhando para trás

50
modo de amar xvi

foi óbvio como


é óbvia uma garrafa
vermelha caindo de
determinada altura ou
um acidente de estrada

põe devagar os dedos


devagar —
eu dizia

silenciosamente

devagar os dedos
violentamente
como um acidente
de tauromaquia

põe devagar e algo


acontece não
uma dor algo de
novo algo de cintilante

é mais um modo
este
mais um modo de ajudar
o outro
mais um modo de limpar
a dor
do outro
põe devagar os dedos
devagar —
as facas entre a quarta
e a quinta costela
ou em qualquer outro vão

53
pode-se sim soldar carta náutica
um abismo
com facas
Uma língua. Uma língua contra a neblina deitando um caminho.
é possível A passagem da voz. Uma nova estação. Um calor. Só calor e um
agora devagar barco náufrago que veleja pela arena. O barro seco — descamando.
os dedos Ocre sobre mar. Uma lín — uma boca. A voz pavimentando a
as facas neblina. Os dias sim os dias ainda como o barco. O calor. Só calor
devagar nasce da falta. A falta da . A neblina da . Veleja sobre o ocre.

é possível amar
matar

é possível matar
sem saber

é possível dar razão


aos que dizem
não sei
perante uma morte

de outro

You suit me well, for you can make me laugh


— marianne moore

54 55
decíduo discutir sobre os braços de Andrômeda e seu cinturão de estrelas e
sua fome já não ouvimos
mais nossas memórias e os olhos correm as folhas para achar um
Colocamos os pés pra dentro do rio esperando o momento em que
pedaço de céu procurando por algum sinal de Andrômeda
Andrômeda
devorando a galáxia com nome anódino porque é assim — há sempre
colidiria com a Via Láctea daqui bilhões e bilhões de anos. No intervalo
este atraso no nosso céu
entre uma tâmara e outra
em bilhões e bilhões de anos em algum momento com certo atraso
confundimos nossas memórias contando um ao outro histórias de
veremos algo acontecer —
infância do outro
Andrômeda e Via Láctea num abraço ou beijo — ou uma confusão
sem notar por causa da correnteza e por causa da atenção às tâmaras
inteiramente nova.
nossos pés
se tocam e certamente se cruzam dentro do rio. Continuamos assim
a confundir nossas memórias
como confundimos os nossos pés dentro d’água, eventualmente
levamos nossas mãos para dentro
também abandonando os caroços o suco e a baba que restou.
Podemos sempre olhar o passado
para saber o que vai acontecer — é como os astrônomos fazem. É
como sabem que a qualquer momento
em bilhões e bilhões de anos haverá uma colisão mas agora já não se
sabe o que pode acontecer
depois. Sabe-se que existe uma distância inimaginável entre duas
galáxias e a cada milênio se torna
mais possível de se imaginar em algum momento será como estas
memórias este rio estes pés estas tâmaras.
Colocamos as memórias pra dentro do rio sem querer quando
limpamos as mão e depois levamos
água até nossas bocas. Passamos a confundir nossos pés o suficiente
para desprender o andar de nós
por alguns momentos e forçados a ficar ali de pés e memórias debaixo
d’água,
ouvindo a correnteza e o som de flauta que o vento toca nas árvores
falamos baixo para não atrapalhar a música e já quase não nos ouvimos

56 57
retrato
autorretrato como figo e romã

Eu sei, faltaram as fotos


dos figos secos
que havia prometido —
em algum lugar entre meu dedo
e a lente da câmera a foto
devem ter caído
sem que eu notasse acredito
havia pouca cor
então não poderia saber
do sabor do figo
mas posso pois isso não perdi
entre a língua e os dentes
contar que sim
que havia sabor
de figos secos e que o sabor
não foi eclipsado pela foto
de cascas
de romãs e tangerinas
que tirei mais cedo —
nem pela foto do mamão
de anos antes de uma outra viagem.
Mas que não saberia reconhecer
o sabor agora dos figos
fossem secos ou fosse
apenas pela casca.
Teria que os deixar
ao Sol sem nenhuma escolha
deixá-los ali para uma outra
boca que seja pois sequer
os veria pois sequer haveria
razão para ver figos, tirar fotos
ou prová-los porque não te
prometi que faria nada disso.

61
Não prometi fotos, ou sabores
prometi que voltaria já que tinha
um pedaço de papel que garantia
minha volta já que havia tratos
e despedidas a serem feitas.
Eu sei, faltaram as fotos
e os figos e o pistache (em pó)
e até um presente que dissesse
mais do lugar onde fui. posfácio
Mas perdi o punhado
de areia que havia guardado
nos bolsos, perdi as pedrinhas
que nunca soube onde guardei
e mesmo me perdi
numa cidade tão pequena que
bastou eu virar o pescoço
para que me encontrasse
novamente.

E sim, aqui,
eu sei, os figos faltaram.

62
posfácio

Escápula, de Victor Squella, começa com um prólogo, “Conto de Verão”,


e termina com o poema “autorretrato com figo e romã”. No trajeto
entre esses dois pontos, encontro uma profusão de frutas, sementes
e cascas. Também a praia, o sol, a areia e versos que dizem da ação
dispersiva do tempo: “a poeira não / se fixa / nos móveis”.
Anne Carson, uma das poetas com quem Victor estabelece uma
conversa no livro, diz que o pensamento precisa se deslocar para estar
vivo. O autor então nos lembra que a casa não é apenas pouso, mas
um lugar onde o vento passa continuamente: “durante o verão / a casa
nunca se deixa marcar / a casa segue em movimento”. Escrever e bus-
car os nomes são modos de locomoção:

dizer o lugar
e repetir
até que o nome
seja o lugar
para que a viagem
não seja necessária
que o trem seja apenas
a língua

Escápula é o osso triangular que temos nas costas (um de cada


lado). A palavra designa também qualquer coisa que serve de apoio.
Se encaramos a poesia como uma espécie de língua anômala, o livro
escápula talvez se aproxime da condição médica chamada escápula
alada (que descobri online por acaso), em que o osso se desloca da
caixa torácica e se torna protuberante como uma asa. A asa: vestígio de
Eros e indício de sua presença futura. Eros, o jogo em que os nomes, os
corpos e as coisas coincidem e se desencontram sem parar.

65
são as mãos — e então with a nod
agradeceria este isto
balançando as folhas
como uma brisa natimorto
da montanha
Se de um lado há o pavor do poema-relação que nasce morto, por
são as mãos
outro, é preciso construir a casa com “objetos afiados”. E o esforço de
de safo
construção é ao mesmo tempo testemunho da destruição.
Alguns poemas lembram os quadros do Richard Diebenkorn, os objetos cortantes
com seus azuis marítimos e frutas cortadas ao meio, pousadas sobre devemos guardar
uma mesa qualquer. Tudo parece arejado e luminoso, como diz a epí- debaixo de travesseiros
grafe de Luiza Neto Jorge logo no início: “Onde o amante / se insinua não em gavetas
/ é dia”. No entanto, alguma coisa falta diz Victor: “um pedaço de pês- distantes
sego / uma fatia qualquer / poderia / dizer mais / a finura do corte ou
devemos dormir
/ a facilidade com que a faca / pouco afiada rasga a casca / esta cena
na cozinha onde
diria mais”. há facas fogo e fica
Da síntese comedida e da claridade salta uma força disruptiva, “o fácil escapar &
que fazer da tua pele? / de todo este excesso?”. Eros é também capaz destruir tudo aquilo
de provocar uma espécie de dissolução. As mãos de Safo, suaves como que chamam
a brisa, “moldam / derretem / geram / outros incêndios”. O desastre casa
é convocado. Ler os versos deste livro é como olhar para pinturas de
Georgia O’Keeffe, em que os ossos são atestados de vitalidade, ainda A epígrafe “eu volto pela brecha”, de Henri Matisse, que abre a
que por antítese ou subtração. seção “Casa de Praia”, traduz uma poética em que a lacuna assegura
A relação entre Eros e Tânatos, ou Eros e Plutão, aparece como a fagulha da novidade, do vento leve. São os intervalos que permi-
alternância entre a luz e a opacidade, a calmaria e a urgência. Não à toa tem o trânsito de Eros e a existência da justaposição de vozes. Victor
Sylvia Plath e Anne Sexton são aqui escápulas, ou apoios. Aniquilar cria uma escrita polifônica em que os sujeitos que falam nem sempre
torna-se recurso para evitar a vertigem produzida pela presença de são especificados. Mistura as figuras de Safo, que diz, na tradução de
Eros. É preciso esboçar “um plano para / que não se abram / abismos”. Anne, “eros the melter of limbs”, e Gerião, o monstro vermelho e alado
Victor pergunta: “o que há de chocante / num assassinato como alí- que se apaixona por Héracles no romance em versos, Autobiografia
vio?”. Recorre aos poemas Lady Lazarus e Natimorto, de Sylvia Plath, do Vermelho, também da poeta canadense. Eros se faz presente pela
para dizer dos fins prematuros: lacuna, na distância entre territórios, na linha fina entre os nomes e as
coisas que eles designam. Assim como na tarefa de traduzir, Eros apa-
dying is an art like everything else / I do it exceptionally well rece por meio de lampejos, tentar vê-lo é tatear a parede de um quarto
oh these lines, our unborn child escuro em busca de um interruptor de luz que iluminará o cômodo
the child of a loveless & stillborn por breves instantes.
romance Em Breves Conferências, Carson diz: “Desejos redondos como

66 67
pêssegos florescem a noite inteira em mim, já não recolho os que
caem”. Pode parecer estranho que as experiências do excesso e da
calma estejam vinculadas. Eros é capaz de produzir uma sensação de
reconhecimento ou de retorno à casa (uma imagem muito presente
em escápula) e ao mesmo tempo o impulso de fuga.

são as mãos
que cravam
buracos
como touros
e seus chifres
no tórax
de um toureiro
espanhol

Pensar como quem transita por espaços abertos talvez seja o ensi-
namento dos poemas de Victor. Movimentar-se é mais importante,
mesmo que sacrifique os nomes. Eros é o senso de humor, presente
na epígrafe de Marianne Moore: “You suit me well, for you make me
laugh”.
Nas escápulas encontramos os vestígios de asas, talvez um modo
de reconhecer a possibilidade do voo. E o fim talvez seja aqui apenas
outro nome para “uma confusão inteiramente nova”.

Luiza Leite

68
primeira edição impressa
na gráfica eskenazi
para viveiros de castro editora
em outubro de 2019.

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