Existe diversas situações onde se precisa decidir entre a prevalência de determinado
direito fundamental sobre o outro, tendo em vista a diversidade de direitos fundamentais protegidos pela Constituição Federal. Na ciência jurídica as lides envolvendo essas circunstâncias é sua própria essência. Destarte, torna-se imprescindível reconhecer que os direitos fundamentais possuem natureza de princípios. Por terem natureza principiológica, os direitos fundamentais possuem forte conteúdo axiológico, ou seja, são carregados de valores dentro do ordenamento jurídico nacional. Os princípios, por sua, vez, não são vistos mais atualmente como eram no positivismo, como valores éticos a serem seguidos pela sociedade, atualmente os princípios são carregados de normatividade, o que os faz um tipo de norma, assim como as regras. Os princípios constitucionais são normas que sustentam e sevem de fundamento jurídico para o ordenamento constitucional, são os valores primordiais e as bases do sistema normativo da sociedade. Não são considerados apenas meros programas ou sugestões para ações da iniciativa privada ou do Poder Público, eles dão a direção para as atividades pois possuem verdadeira força vinculante. A possibilidade de que normas constitucionais possam entrar em colisão tem conformado um dos mais graves problemas da contemporânea teoria jurídica. Como se sabe, normas constitucionais, especificamente as advindas do processo constituinte originário, não guardam hierarquia entre si (princípio da unidade da Constituição) e, portanto, não permitiriam, em caso de colisão, uma solução de precedência a priori ou absoluta em favor de uma ou de outra norma. No mesmo sentido, Barroso (2009, p. 329) acrescenta que “não existe hierarquia em abstrato entre princípios, devendo a precedência relativa de um sobre o outro ser determinada à luz do caso concreto”. Em outubro de 2016, o plenário do Supremo Tribunal Federal foi palco de mais uma colisão de princípios, cujo o mérito principal era constitucionalidade de uma lei estadual que regulamentava a prática da vaquejada. No caso concreto entra em choque o direito ao desporto e a manifestação cultural através da vaquejada e o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado pela consagração da carta magna da proteção da fauna e flora. Cumpre ao Supremo, tendo em conta princípios constitucionais, harmonizar esses conflitos inevitáveis. O comportamento decisório do Supremo diante da necessidade de ponderar o direito ao meio ambiente com os direitos individuais de naturezas diversas tem sido o de dar preferência ao interesse coletivo. Mais controvertido apresenta-se o conflito do direito ao meio ambiente com outros coletivos, como o do pleno exercício dos direitos culturais, exatamente o que ocorre na situação concreta. Partindo desse ponto, verifica-se a necessidade de se conhecer a técnica de ponderação entre princípios utilizadas para se solucionar os conflitos envolvendo direitos fundamentais. A jurisprudência nacional entra comumente em contato com circunstâncias dessa natureza. Deste modo, busca-se neste artigo analisar a aparente colisão de normas constitucionais e os votos do acordão da ação direita de inconstitucionalidade nº 4983 que se utilizaram da técnica da ponderação de princípios para decidir qual princípio prevalece sobre o outro para solução de colisão entre direitos fundamentais.
2. APRESENTAÇÃO DO CASO
A vaquejada é uma prática desportiva tradicional no nordeste brasileiro, na qual um
boi jovem é solto em uma pista e dois vaqueiros montados a cavalo tentam agarrá-lo pela cauda. O objetivo é fazer com que o animal caia com as quatro patas para cima, demostrando perícia e técnica do vaqueiro. A prática da vaquejada remonta a uma tradição secular sertaneja de captura do animal. Em 6 de outubro de 2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal - STF julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4983, ajuizada pelo Procurador- Geral da República contra a Lei nº 15.299/2013, que regulamenta a vaquejada como prática desportiva e cultural no Estado do Ceará. Por 6 votos a 5, os ministros consideraram que a vaquejada impõe sofrimento aos animais e, portanto, fere princípios constitucionais de preservação ambiental. O julgamento da matéria teve início em agosto de 2015, quando o relator, ao votar pela procedência da ação, afirmou que o dever de proteção ao meio ambiente (artigo 225 da Constituição Federal) sobrepõe-se aos valores culturais da atividade desportiva. De forma abreviada, verifica-se abaixo a análise dos argumentos do Advogado-Geral da União, Procurador do Estado e Governador do Estado do Ceará.
2.1. Advocacia-Geral da União
A Advocacia-Geral da União diz da procedência do pedido. Explicita que a prática da vaquejada, embora deva ter o reconhecimento como valor cultural, expõe os animais a maus- tratos e crueldade. Aduz estar presente conflito entre os artigos 225, § 1º, inciso VII, e 215 do Diploma Maior, tendo o Supremo julgado a favor da proteção ao meio ambiente, quando reveladas situações de tratamento cruel a animais, ainda que dentro do contexto de manifestações culturais. Articula caber a observância dessa jurisprudência no caso concreto. Eis a síntese da manifestação: “Constitucional. Lei nº 15.299/2013 do Estado do Ceará, que regulamenta a vaquejada como atividade desportiva e cultural. Alegação de ofensa ao artigo 225, § 1º, inciso VII, da Constituição da República, que impõe ao Poder Público o dever de proteção da fauna, vedadas as práticas que submetam os animais a crueldade. Preliminar. Inobservância do ônus da impugnação específica. Mérito. A submissão dos animais a situações de maus-tratos não encontra amparo na Constituição da República, mesmo que realizada dentro do contexto de manifestações culturais. Manifestação pelo não conhecimento da ação direta e, no mérito, pela procedência do pedido formulado pelo requerente.”
2.2. Procurador da República
Sustenta o conflito entre normas constitucionais – aquela que assegura o direito ao
meio ambiente, artigo 225, e a que garante o direito às manifestações culturais enquanto expressão da pluralidade, artigo 215. Afirma ser necessário dar maior peso, na espécie, à preservação do meio ambiente. Consoante articula, a lei impugnada não encontra respaldo no Texto Maior, violando o disposto no artigo 225, § 1º, inciso VII, da Carta. A Procuradoria Geral da República reitera as razões expostas na inicial para opinar pela acolhida do pleito.
2.3. Governador do Ceará
O Governo do Estado do Ceará pronunciou-se em duas oportunidades. Na primeira,
discorreu sobre a importância histórica da vaquejada. Defendeu a constitucionalidade da norma atacada, porquanto, ao regulamentar o esporte, teria protegido os bens constitucionais ditos violados, impondo a prática adequada do evento e estabelecendo sanções às condutas de maus-tratos aos bovinos. Afirmou obrigar a lei a adoção de medidas protetivas da integridade física e da saúde dos animais. Sustentou haver sido a vaquejada reconhecida como “prova de rodeio” pela Lei federal nº 10.220, de 11 de abril de 2001, e os praticantes do esporte, atletas profissionais. Aduziu cuidar-se de direito cultural amparado pelo artigo 215 da Carta da República, além de servir de incentivo ao turismo e fonte de empregos sazonais, de alta relevância para a economia local. Na segunda, apontou, preliminarmente, a inépcia da inicial, ante a veiculação de alegações genéricas, e a inadequação da via eleita, em virtude de a proclamação pretendida depender da apreciação de questões fáticas. Alegou a ausência de impugnação quanto à aludida Lei federal nº 10.220, de 2001, por meio da qual a vaquejada foi classificada como rodeio, o que impediria a apreciação do pedido formulado nesta ação considerada a impossibilidade de assentar a inconstitucionalidade da norma da União por arrastamento. Quanto ao mérito, salientou que a vaquejada faz parte da cultura da região, revelando patrimônio histórico do povo nordestino, direito fundamental coletivo previsto no artigo 215 da Carta de 1988. Ressaltou a impropriedade da defesa apriorística do meio ambiente natural em detrimento do cultural, devendo tal análise ser realizada diante do caso concreto. Destacou que a legislação questionada atende à exigência de desenvolvimento econômico sustentável. Enfatizou não se confundir a vaquejada com os casos de “brigas de galo” e “farra do boi”, pois inexiste crueldade com os animais, como ocorria nos mencionados eventos declarados inconstitucionais pelo Supremo.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.